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Vergílio Ferreira

Aparição
Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra
pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas
flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma
memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento,
há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a
espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a
face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita.
Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível. Nesta casa enorme
e deserta, nesta noite ofegante, neste silêncio de estalactites, a lua sabe a
minha voz primordial. Venho à varanda e debruço-me para a noite. Uma
aragem quente banha-me a face, os cães ladram ao longe desde o escuro das
quintas, fremem no ar os insectos nocturnos. Ah, o sol ilude e reconforta.
Esta cadeira e que me sento, a mesa, o cinzeiro de vidro, eram objectos
inertes, dominados, todos revelados às minhas mãos.
Eis que os trespassa agora este fluido inicial e uma presença estremece na
sua face de espectros... Mas dizer isto é tão absurdo! Sinto, sinto nas vísceras
a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma palavra que o diga
coalha-me logo em pedra. Nada mais há na vida do que o sentir original, aí
onde mal se instalam as palavras, como cinturões de ferro, aonde não chega o
comércio das ideias cunhadas que circulam, se guardam nas algibeiras. Eu te
odeio, meu irmão das palavras que já sabes um vocábulo para este alarme de
vísceras e dormes depois tranquilo e me apontas a cartilha onde tudo já vinha
escrito... E eu te digo que nada estava ainda escrito, porque é novo e fugaz e
invenção de cada hora o que nos vibra nos ossos e nos escorre de suor quando
se ergue à nossa face.
A mancha da lua fosforesce como o vapor de uma lenda. Um bafo quente
sobe dessa água, sagra-me de silêncio como um dedo na fronte. E outra vez
agora me deslumbra, em alarme, a presença iluminada de mim a mim
próprio, o eco longínquo das vozes que me trespassam. Como é difícil,
miraculoso, pensá-lo.
Quanta coisa aprendi e sei e está aí à minha disposição quando dela
preciso. Mas esta simples verdade de que estou vivo, me habito em evidência,
me sinto como um absoluto divino, esta certeza fulgurante de que ilumino o
mundo, de que há um fora que me vem de dentro, me implanta na vida
necessariamente, esta totalização de mim a mim próprio que me não deixa
ver os meus olhos, pensar o meu pensamento, porque ela é esses meus olhos
e esse meu pensamento, esta verdade que me queima quando vejo o absurdo
da morte, se pretendo segurá-la em minhas mãos, revê-la nas horas do
esquecimento, foge-me como fumo, deixa-me embrutecido, raivoso de
surpresa e de ridículo... E, todavia, sei-o hoje, só há um problema para a vida,
que é o de saber, saber a minha condição, e de restaurar a partir daí a
plenitude e a autenticidade de tudo - da alegria, do heroísmo, da amargura, de
cada gesto. Ah, ter a evidência ácida do milagre que sou, de como
infinitamente é necessário que eu esteja vivo, e ver depois, em fulgor, que
tenho de morrer. A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o que me
cerca é de dentro de mim que a sei - não do olhar dos outros. Os astros, a
Terra, esta sala, são uma realidade, existem, mas é através de mim que se
instalam em vida: a minha morte é o nada de tudo. Como é possível.
Conheço-me o deus que recriou o mundo, o transformou, mora-me a
infinidade de quantos sonhos, ideias, memórias, realizei em mim um prodígio
de invenções, descobertas, que só eu sei, recriei à minha imagem tanta coisa
bela e inverosímil. E este mundo completo, amealhado com suor, com o
sangue que me aquece, um dia, um dia, - eu o sei até à vertigem - será o nada
absoluto, dos astros mortos, do silêncio. Mas tudo isto é quase falso, é quase
estúpido só de estar a pensá-lo, a dizê-lo, porque a sua evidência é um
milagre instantâneo.
A lua subiu ao céu quente, a sua água escorre-me agora pelo corpo. Lavo
nela as minhas mãos e é como se me purificasse num tempo anterior à vida,
num luminoso halo de coisas por nascerem. Súbito, neste silêncio mineral, a
porta da sala range e o vulto de minha mulher, o seu corpo franzino, esfuma-
se na sombra. Senta-se ao meu lado, estende os pés ao luar sem dizer nada: ao
fim de muitos anos aprendemos a verdade, na aparição da graça, num limiar
de presença, antes que sobre a Terra fosse pronunciada a primeira palavra.
Tomo as suas mãos nas minhas e no deslumbramento da noite abre se,
angustiada, a flor da comunhão...
I

Pelas nove da manhã desse dia de Setembro cheguei enfim à estação de


Évora. Nos membros espessos, no crânio embrutecido, trago ainda o peso de
uma noite de viagem. Um moço de fretes abeira-se de mim, ergue a pala do
boné:
- É preciso alguma coisa, senhor engenheiro?
Dou-lhe as malas, digo-lhe que há ainda um caixote de livros a
desembarcar.
- Então é dar-me a senhazinha, senhor engenheiro.
- Mas não me trate por engenheiro. Sou professor do Liceu.
Com passinhos curtos, anda dobrado como se tivesse dores de bexiga. A
cara e os olhos são vermelhos, ensopados de sangue. Carrega tudo aos
ombros com uma complicação de cordéis, promete-me uma pensão muito
boa, mesmo na Praça, que é já ali, e convida-me a segui-lo com os seus olhos
lastimosos de aguardente.
Está uma manhã bonita, com um sol íntimo dourando o ar, um vento leve
da planície, fresco de orvalhos. À minha frente, o moço de fretes, agachado
sobre si, vai dançando um estranho ritmo de arame com os seus passos
saltitados. Mal o olho.
Trago em mim um pesadelo de ideias, um cansaço profundo que me alaga,
me submerge. A Praça ainda é longe e não já ali, como me garantira o moço.
Mas a angústia que me habita, a violenta redescoberta da morte, que eu acabo
de fazer, tornam-me estranha esta cidade branca, separam-ma dos meus olhos
vazios. Venho de luto, o meu pai morreu. Que têm que fazer, em face da
minha dor, da minha alucinação, estas árvores matinais da avenida que
percorro, a branca aparição desta cidade - ermida?
- Estamos quase, senhor engenheiro.
Pelo empedrado das ruas, carroças estremecem com um estrépito de
ferragens, cruzam-se diante de mim as fachadas dos prédios numa alucinação
de luz, uma vaga de aridez abre-me à imensidão da planície.
Sobre o casario branco vou descobrindo aqui e além manchas negras de
velhos templos, e ao alto, disparadas ao céu, as torres da Sé. Subitamente,
recordo-me do doutor Moura. Fora condiscípulo de meu pai, passara mesmo,
há algum tempo, pela nossa casa da Beira, meu pai escrevera-lhe dias antes
de morrer. Eu tinha de visitá-lo, mas não antes de descansar, de me refazer,
de achar dentro de mim a pessoa conveniente para visitas. Com os seus
passinhos travados, o moço de fretes anda mais depressa do que eu. Pára
agora, carregado de bagagem, olha para trás para que eu não o esqueça. Mas
a cidade é fácil nesta rua principal: o que se perde nela não são os passos mas
apenas, quando muito, o olhar. Com efeito, nas súbitas arcadas que levam à
Praça, abre-se-me um obscuro labirinto onde julgo repercurtirem-se, como
ecos de uma gruta, os ecos do tempo e da morte.
- Cá estamos, senhor engenheiro.
Sobe-se por uma escada íngreme e estreita, selada de frios muros como os
de uma prisão. No primeiro andar há uma tabuleta de um médico dentista. No
segundo andar, um velho abre uma porta com o cabaz das compras. A pensão
é no terceiro. Quando cheguei ao alto, já o moço tocava a campainha. Um
homem abriu enfim, um homem alto , corpulento, com uns óculos sujos
enterrados no nariz.
- Senhor Machado - disse o moço -, aqui o senhor engenheiro é professor
do Liceu. Trouxe-o para aqui.
O Sr. Machado olhou-me, cumprimentou-me e por fim concentrou-se.
Toda a sua massa varonil teve um toque de retraimento, como um arrepio de
vergonha. Dava as mãos à frente do peito, com timidez , cerrava os olhos
castos com uma compunção beata:
- Eu, senhor doutor, para lhe ser franco, aceitar professores do Liceu, hoje
tenho muitas dúvidas...
Falava devagar, centrado de virtude.
- Muito bem - disse eu. - Procuro outra pensão.
O Sr. Machado, porém, ergueu logo a mão alarmado, de cotovelo colado
ao tronco, abanou a cabeça de olhos cansados: Não, não.
- O senhor doutor não me entendeu. O que eu queria dizer era que em
minha casa exijo respeito. A minha casa é uma casa muito séria. Ora aqui há
tempos tive aí um professor... Ó senhor doutor... Viriha aí uma senhora...
Voltou-se para o moço:
- De que estás à espera, Manuel?
Paguei ao moço, o moço ergueu a pala do boné:
- Quando precisar, senhor engenheiro. É só perguntar pelo Manuel Pateta.
- ... Pois, senhor doutor - continuou Machado -, até... até... Meu Deus! Uma
vez ia eu no corredor...
Aplaquei o homem uma vez mais; eu estava tão cansado, queria enfim
estirar-me, dormir talvez um pouco. O quarto, largo e branco, dava para o
terraço, onde fios de roupa brilhavam ao sol; e um gralhar de galinhas que se
ergueu não sei donde lembrou-me subitamente os grandes silêncios da aldeia.
Cerrei as portas da janela e estendi-me sobre a cama à procura do sono. Mas
os olhos ardiam-me com uma espertina viva e só pude recordar.
Eis que se me levanta de novo a imagem de meu pai, caído de bruços
sobre a mesa, ao jantar, dias antes de eu partir. Todos os anos, pela vindima,
meus pais queriam ali os três filhos como pelo Natal. O Tomás vivia perto,
tinha a sua lavoura, mas não deixava nunca de comparecer ao jantar. Mas o
Evaristo vivia na Covilhã. E agora, que escrevo esta história à distância de
alguns anos, exactamente neste mesmo casarão em que tudo se passou,
relembro vivamente o estrépito da sua chegada nessa manhã de Setembro.
Ouço de novo no meu quarto a buzina metálica do seu carro, berrando para
todo o pátio com espalhafato.
Um ar de arraial invade toda a casa. Há portas e janelas que se abrem
bruscamente e enfim a voz de Evaristo e de Júlia sacodem tudo com a sua
alegria mecânica, automática, como um bater de êmbolos e bielas: “Eh,
pessoal!” Depois, num alarme de berros já na sala de entrada:
- O monge? Onde é que está o monge?
Monge sou eu. Vou ao encontro de todo aquele estardalhaço e apanho uma
pancadaria de abraços do meu irmão e da minha cunhada. Julgam do seu
dever serem alegres e são-no com alarido, para a família, para os criados.
Júlia empurra-me o filho, que tem o meu nome e é uma criança triste e
amarelenta. Depois põem-se a contar toda a viagem:
- saímos cedo, não, temos de passar o dia todo com os pais.
- tu não querias, tu só querias vir depois do almoço.
- cala-te para aí, não digas asneiras, eu sempre disse: vamos cedo.
- eram nove horas já estávamos na Guarda, este emplastro (o filho), para o
tirar da cama...
- e então por cá?
- então, monge, conta-nos coisas -, falavam atropelados, acotovelavam-se,
queriam saber que tal a colheita desse ano. Júlia era gorda, tendendo para a
elefantíase, e em breve se estafou de falatar, suada e vermelha. Mas o
Evaristo, magro e alto, articulado como um boneco de lata, parecia dançar um
infindável charleston. Fumava cigarros miudinhos, cantarolava, irrequieto,
dizia a meu pai (que era médico e viera do consultório):
- Então, velhote...
Meu pai sorria, minha mãe sorria contagiada. Desde pequeno que Evaristo
tinha aquele modo fácil de estar bem-disposto e essa era decerto mais uma
razão, para a minha mãe o preferir. Porque havia outra, talvez mais forte, que
era a de meu irmão ser o filho mais novo e lhe recordar por isso melhor a
maternidade. Aliás, Evaristo nem sempre era alegre.
Parecia habitá-lo uma pessoa não única ou coordenada, mas feita das
sucessivas aparências de cada circunstância. Ria ou chorava com uma
facilidade incrível, era cruel ou amável, egoísta ou generoso.
Mas esta mesma volubilidade impunha-o à estima de muitos que
conviviam com ele, por ser imediata, impudica e portanto corajosa, com a
sedução de todo o acto de coragem, para o bem ou para o mal. Também este
modo repentista de ser indicava aos outros, por vezes, o que deviam sentir. E
eles ficavam gratos por isso. Já o sogro (que era dono de uma fábrica na
Covilhã) não lhe apreciava o feitio, pouco grave para a seriedade dos
negócios.
Tomás veio pela tarde. Veio só, a cavalo, para estar um pouco connosco,
regressaria logo depois: Isaura não poderia abandonar ou trazer a criançada.
Minha mãe protestou:
- Olha! Dormíeis cá todos. Fazia-lhes cá as caminhas.
- É uma trabalheira - protestou meu irmão.
- Traz, traz a ranchada - clamavam Júlia e Evaristo.
E assim se fez. Tomás voltou à aldeia (que ficava a uns dez quilómetros da
nossa) e algum tempo depois aparecia com uma extraordinária carrada de
gente.
Estava uma tarde calma. Toda a massa da montanha, erguida em frente da
nossa casa, se dourava ao sol do Outono. Do pátio subia o aroma quente dos
tonéis lavados, do mosto que uma dorna trazia do lagar. Meu pai
visivelmente preferia o Tomás , talvez por ser o mais velho e o mais sensato.
Tomás amava o campo, a lida agrícola, e a imagem-síntese que dele tenho
desde sempre é a de um lavrador , cheirando à terra, ajudando à manobra da
descarga do milho para a tulha, assistindo à lavagem dos tonéis, à pesagem
dos carros de lenha, à tira das batatas nas tardes quentes de Agosto, à
fabricação do azeite pelas noites frias de Dezembro.
Relembro. Uma grande mesa oval resplandecente de brancura, cristais,
reflexos de louças, dois grandes candeeiros de globos pálidos, e fora, pelos
espaços da noite nua, uma memória grande de paz. Um longo abraço, quente
de ternura, sufoca-nos a todos na procura de um refúgio, de uma alegria
perdida quando? onde? o sonho não é de nunca. O que é vivo, o que é real é
aquela ceia vulgar, com uma sopa, vários pratos, doces e uma necessidade de
preencher os espaços de silêncio com o que há de único na hora e não
sabemos e nos foge. Sobre esse vazio enorme, para a comoção e o alarme, o
meu irmão Evaristo fala dos seus negócios, 200 contos, 500 contos, a casa
Varela, em Lisboa, 400 contos de encomendas, a de Crispim & C.á, do Porto,
a guerra acabara, agora era quanto pudessem produzir. Evaristo trouxera um
livro de facturas, queria mostrar, Júlia falatava, gorda e vermelha, contava
anedotas com pimenta, e a paz?, e a alegria do nosso encontro com a
memória? Depois falou o Tomás. Mas o que ele contava tinha agora mais
verdade - era a terra e o vinho desse ano, as sementeiras e as próximas
manhãs de geada e de sol e a paz solene da fecundação. As suas mãos grossas
e escuras como fragas, quase não faziam gestos, os seus olhos desciam sobre
si, sobre Isaura e os filhos, como se receasse perder-se de uma comunidade
de raízes, dessa plenitude fértil onde tudo estava certo: a harmonia da vida e
da morte. Por fim, Evaristo e Júlia interrogaram-me sobre o meu futuro no
liceu. Lembravam episódios do seu tempo de estudantes com o prazer
póstumo de poderem agora confraternizar com um professor, de poderem
como que vingar-se dos seus terrores de outrora. Meu pai mal falava. Mas
ouvia-nos atento, com a tolerância de sempre. E era como se desejasse que a
vida se revelasse espontânea através de nós, dos nossos sonhos, das nossas
virtudes e misérias. A certa altura, porém, ergueu a cabeça branca, inclinou-a
um pouco para trás e para o lado, para lhe quebrar a altivez - mas não a
decisão - e disse:
- Bem. Estamos aqui todos reunidos uma vez mais. Estás tu e o Tomás e o
Evaristo. E nós e a Júlia e a Isaura. E estão os pequenos. Para o Natal
queremo-los cá outra vez. É bom estarmos aqui todos. A casa é grande de
mais para nós...
Voltou-se para minha mãe:
- Não é verdade, Suse?
- Não me chames Suse.
- Não é verdade, Susana?
Não sei que pacto se estabelece entre a pessoa que somos e o nome que nos
deram: o nome, como o corpo, é nós também. Não imagino com outro nome
nem o Tomás, nem o Evaristo, nem o Álvaro, nem o Alberto. O Álvaro é o
meu pai e o Alberto sou eu. Não sei se era por isso que minha mãe não
gostou nunca de que meu pai a chamasse Suse. Mas o meu pai teimava
sempre, talvez por isso também: para criar para si isso que era ela, para a
moldar nisso ao seu poder - no nome.
Depois de um silêncio, meu pai perguntou:
- Está a correr mal o discurso, não está?
Minha mãe não respondeu, fitando-o apenas com esse seu olhar
extraordinário de mansidão e amargura. E foi Evaristo quem falou:
- Não senhor. Vais muito bem. Estamos todos encantados de te ouvir. Diz
lá o resto.
E ele disse:
- Bom. Agora, que vocês vieram, já é mais fácil recomeçar. A vossa mãe
ainda não se resignou com o terdes crescido. Quanto a mim, penso que...
Mas subitamente meu pai teve um arranco, esboçou o gesto de apertar o
coração e caiu a todo o peso sobre a mesa. Um prato saltou, estilha-çando-se
no chão, um copo tombou, derramando o vinho na toalha.
Fulminados, não nos movemos. Até que, aturdidos de pânico, nos
levantámos todos em tropel, correndo para meu pai. Erguemos-lhe o busto, a
cabeça branca tombava-lhe para o peito, os braços pendiam-lhe inertes.
- Está morto!
Quem foi que gritou? Está morto, está morto! Júlia dava gritos
espavoridos, as crianças choravam com alarido, minha mãe abraçava-se a
meu pai, tacteando-lhe a face, as mãos, o peito, intimando-o a viver,
ordenando-me, iluminada, que fosse chamar o médico. Fui à vila com o
Tomás, o médico veio, meu pai dormia sereno sobre a cama, onde os criados
o tinham já estendido. Quando enfim foi possível acomodar cada um na sua
dor, depois de Evaristo, que desmaiara, esgotar os seus berros, entrei sozinho
no meu quarto, abri uma janela para a noite. Uma grande lua solene, suspensa
sobre a aldeia, banhava toda a massa da montanha.
II

Quero tentar dormir. Toco a campainha reclamando pelo Sr. Machado e


um banho que me serene. O Sr. Machado consente, mas com uma pequena
restrição:
- Ó senhor doutor. Eu quero prevenir já o senhor doutor de que em minha
casa um banho é um banho, quero dizer, é para uma pessoa se lavar. Porque
eu tive cá um hóspede, ó senhor doutor, aquilo eram umas cantorias, toda a
manhã a cantar e a encher tudo de água.
Cansado, prometi ao homem um banho rápido. Sim, sem música.
- Que as coisas querem-se claras logo no princípio.
- Decerto, decerto.
- Tive uma vez aí outro hóspede...
- Onde é a casa de banho, senhor Machado?
- É ali, senhor doutor. É ali. Mas há-de sempre fazer-me o favor de esperar
um quarto de hora para encher a banheira.
Lavei-me enfim, mudei de roupa, saí para o Liceu, com uma tranquilidade
nova. A cidade resplandecia a um sol familiar, branca, enredada de ruas como
de velhas ciladas, semeada de ruínas, de arcos partidos, nichos de santos das
orações de outras eras , janelas góticas, como olhares embiocados.
Évora mortuária, encruzilhada de raças, ossuário dos séculos e dos sonhos
dos homens, como te lembro, como me dóis! Escrevo à luz mortal deste
silêncio lunar, batido pelas vozes do vento, num casarão vazio. Habita-me o
espaço e a desolação. E é como se aqui ouvisse ainda a tragédia da planície
nos teus corais de camponeses. Subo a rua que leva à Sé, viro ao largo do
Templo de Diana. E nas colunas solitárias ouço como o murmúrio antigo de
uma floresta imóvel. O zimbório da Sé brilha, dourado ao sol matinal. Fico a
olhá-lo longo tempo, parado sob um arco que se lança sobre a rua, suspenso
de silêncio e de memória. Depois as ruas descem apressadas, oblíquas a
velhos medos, até outras ruas obscuras, onde me perco. E finalmente
descubro o edifício do Liceu.
Conto tudo, como disse, à distância de alguns anos. Neste vasto casarão,
tão vivo um dia e agora deserto, o outrora tem uma presença alarmante e tudo
quanto aconteceu emerge dessa vaga das eras com uma estranha face
intocável e solitária. Mas os elos de ligação entre os factos que narro é como
se se diluíssem num fumo de neblina e ficassem só audíveis, como gritos, que
todavia se respondem na unidade do que sou, os ecos angustiantes desses
factos em si - padrões de uma viagem que já mal sei.
Eis-me , pois, em face do Liceu e da minha estrada final. Não escolhi a
profissão: de algum modo saíra-me. Nesta sala em que escrevo, meu pai
levanta-se de outrora , faz-me sentar aqui, a esta mesa, passeia em diagonal.
Pára enfim na minha frente, pergunta-me, fitando-me:
- Que curso queres seguir?
Tinha de optar já, no sexto ano do liceu, pelo de Letras ou de Ciências.
Mas o interesse profundo de um e de outro como podia eu sabê-lo? A
verdade de um curso não está no que aí se aprende mas no que disso sobeja: o
halo que isso transcende e onde podemos achar-nos homens. Assim meu pai,
que era médico, estava certo com a sua profissão, como o meu irmão Tomás
estaria com o seu curso de Agronomia, como o meu irmão Evaristo com as
suas sucessivas reprovações no quinto ano.
- Penso - disse meu pai - que te darás melhor em Letras.
Decerto, decerto: eu nunca tivera saúde, a vida de professor era tranquila.
Porque eu sonhara sempre, talvez por isso, com uma farda militar e uma vida
romanesca. Meu pai corrigiu:
- Não é só isso. Há mais razões.
Sim. Havia o meu interesse pelas leituras, a invenção do indizível e o meu
verso clandestino que a cantava. Havia a minha dedicação pela velha tia
Dulce e pelo seu velho álbum, de que depois falarei.
Havia enfim, desde a infância, essa velha pergunta sobre a descoberta de
nós próprios e que eu também fizera um dia a meu pai:
- Quem sou eu?
Era uma tarde de Verão, meu pai lia o jornal ao pé do tanque, eu olhava a
água, absorto.
- Bom - disse meu pai, um pouco perturbado: - tu és meu filho, um homem,
um ser vivo que pensa, que vive e que há-de morrer como todo o ser vivo.
- Mas eu, eu o que é que sou?
Meu pai optou por contar-me a história da evolução da vida. Mas eu, que a
acredito hoje como exacta, sentia, como sinto, que alguma coisa ficara por
explicar e que era eu próprio, essa entidade viva que me habita, essa presença
obscura e virulenta que me aparecera, como também contarei, quando a vi
fitar-me do espelho.
O Liceu estava deserto, as aulas começariam daí a dias, agora haveria
apenas os exames da segunda época. E jamais eu esqueceria essa aparição do
Liceu, como a de toda a cidade, tão estranha. Templo de Diana. Só nessa
noite o vi bem, nessa noite de Setembro, lavado de uma grande lua - raios
imóveis de uma oração mutilada, silenciosa imagem do arrepio dos séculos...
Repetia-se no Liceu a Universidade de Coimbra como eu a ia guardando para
sempre. Mas era como se o tempo habitasse os claustros de mais longe, talvez
pelo silêncio dessa manhã despovoada, talvez pela imensidão da planície, que
lhe dava um ar de ruína. Um empregado escuro olhou-me vagarosamente,
longo bigode caído, olhos redondos de pasmo como os de um retrato egípcio.
Adiantei a minha identidade, o homem atravessou uma sala para me anunciar
ao reitor. Mas o reitor não estava: pela porta entreaberta vi apenas um grande
cão perdigueiro que adormecia o seu tédio sobre uma esteira. A presença do
cão dava ao empregado a certeza de que o reitor já viera. Apareceria portanto
dentro em pouco. E eu saí de novo para o claustro. Havia no centro um
jardim tratado, em cujos canteiros verdes morriam as últimas rosas de Verão.
Sobre um pequeno lago erguia-se uma taça de mármore onde vinham pombos
beber. Até que, para o silêncio de uma porta à entrada, ouvi uma forte
descarga de água e um homem alto apareceu. Segui-o com os olhos,
convencido de que era enfim o reitor.
E, com efeito, o homem alto e vagaroso abriu uma porta secreta e entrou
no edifício. Fui de novo à secretaria e o empregado, sem uma palavra,
penetrou na reitoria para me anunciar. Mas eu já estava ali à porta à espera de
um aviso.
- Que faça o favor de entrar - ouvi de dentro.
Entrei, cumprimentei, disse o meu nome:
- Alberto Soares.
- Doutor Alberto Soares. O novo professor do primeiro grupo. Professor
efectivo. Em que Liceu esteve este ano? Mas sente-se Tem aí essa cadeira.
Sentei-me. Tinha feito apenas o serviço de exames desse ano. Em
Coimbra.
- É portanto o primeiro liceu em que ensino - acrescentei.
De que nadas a vida se sustenta! O necessário, sim, o necessário é que o
futuro os habite mesmo em ilusão. Boa noite, reitor. Falo-te daqui da
montanha, ouvindo os cepos a estalar na chaminé, ouvindo as vagas do vento.
Nada soube de ti, amigo. Nunca. Mas dos teus pecados ou virtudes, o que me
relembra agora é essa amável perfeição de uma face cansada de quem
esgotou a vida e essa boa tolerância para quem a estava anunciando. Porque
eu tinha projectos tão ingénuos. Onde se calara a voz da minha gravidade?
Subitamente, com efeito, pus-me a falar de coisas extraordinárias a realizar,
excitado no meu entusiasmo de principiante. Exercícios, redacções, técnicas
modernas de pedagogia, leituras de modernos escritores, cultura, cultura.
Também disse, é verdade, como era necessário aprender a distinguir um fado
de uma sinfonia, um Picasso de um calendário. Bons deuses! E como tudo
isso me foi perfeito na manhã de sol do jardim, na face grave do homem,
céus, na minha profunda solidão! O reitor ouvia-me do lado de lá do seu
cansaço e parecia animar-se um pouco à passagem da minha juvenilidade.
E dizia na sua voz patuda de catarro:
- Sim... Sim...
Baixava os olhos, batia um lápis na mesa.
Depois tocou a campainha e o empregado voltou a aparecer:
- Deixe ver o horário e as cadernetas do senhor doutor Alberto Soares.
Dia novo. Belo dia de Outono cheio de memórias de Verão. Tinha o corpo
sovado de insónia e do comboio, os olhos ardidos de espertina, mas sentia-me
bem, já na rua, com os meus papéis profissionais na algibeira. Olho a planície
do alto da rampa e sinto-me invadido dessa plenitude de quem olha o mar do
alto de uma falésia.
E dois dias depois começavam os exames da segunda época. São meia
dúzia os alunos que essa manhã suam as entranhas. Há uma guerra de Tróia a
decidir a golpes de dicionário. Eu assisto, ainda comovido.
Fumo ao longo da sala, abro enfim uma janela para o espaço da planície,
crestada, abandonada ao sol.
Passa ao longe o assobio de um comboio de crianças, um carro desliza pela
fita negra de uma estrada. O tempo arrefecera bruscamente. E um sol triste
pousa ao de leve nas coisas, um vento inesperado sopra de vez em quando,
revolve no chão as folhas secas das árvores. Nos fios eléctricos que passam
diante das janelas agrupam-se cachos de andorinhas que meditam na sua
longa migração. Estremecem no baloiço, aos sopros do vento, de penas
eriçadas, olhando ao longe com melancolia.
Subitamente, porém, a porta abriu-se e o vasto reitor entrou. Trazia no seu
sorriso belfo e infantil uma pequena notícia para me dar:
- O doutor Moura telefonou-me a perguntar por si. Quer saber onde é que
o pode encontrar.
III

Mas não foi fácil encontrarmo-nos. Eu próprio lhe telefonei daí a pouco e
acabámos por marcar o encontro para o dia seguinte no Arcada, sem que
Moura se lembrasse de que era uma terça-feira, ou seja, dia de mercado. Com
efeito, ao entrar no café, após o almoço, tive a surpresa de ver aquele vasto
túnel apinhado de gente. O corredor atravancava-se de negociantes, porque
era ali, entre bebidas, que se realizava o mercado da semana. A terça-feira era
dia de porcos, como soube mais tarde que lhe chamavam. E, por isso, quando
recordo esses dias distantes, a imagem que deles tenho é a de um ventre
glorioso digerindo poderosamente, preenchendo compactamente todo o
espaço do café... Achei a custo um lugar a um canto, à esquerda de quem
entra e onde viria a instalar-me para sempre. Em mesas postas para o almoço,
forasteiros mastigavam; e dir-se-iam eles tão naturalmente feitos para isso,
que mesmo sem mastigarem me pareciam mastigar; como certos carros
aerodinâmicos, mesmo parados, parecem largados a grandes velocidades...
Por entre a vozearia, a fumarada e o odor a corpos, tento localizar o doutor
Moura em quem tenha o olhar inquieto e procure também como eu. Canso-
me enfim e para ali fico, abandonado a cigarros e a olhos vãos.
Decerto o encontro falhara. Meu pai recomendara-me o Moura como um
apoio no deserto. E sei que lhe escrevera. Tinham sido colegas em Coimbra,
tinham ambos construído aí um passado, sobretudo através de uma discreta
boémia - essa que, por ser discreta, pode melhor depois preencher uma
memória. Meu pai contara-me que o homem tinha uma bela voz de tenor e
coadjuvava os amigos com serenatas nos flirts de ocasião. Bato um novo
cigarro, espero ainda. E de súbito vejo vir até perto de mim um sujeito gordo,
baixo, ensacado, de olhar inquieto pelas mesas.
Ergo-me, vou até ele. Fitámo-nos ambos um momento até acharmos o
nosso traço de união; e foi ele quem primeiro o descobriu:
- É o doutor Alberto Soares? Ora viva, viva. Então que tal de viagem?
Onde está instalado? Ora vamo-nos sentar um pouco. Isto hoje é mau dia,
mas nem me lembrei.
E sentámo-nos. Moura pediu o seu café e, talvez por reparar no meu fato
preto, evocou enfim o meu pai. Contei-lhe o desastre súbito da sua morte
(que ele soubera pelos jornais), mas era evidente que Moura se não sentia
muito impressionado. Tinha a sua alegria espontânea, firmada não sei em quê
– como aliás nunca soube. Depois falou da minha aldeia, da nossa casa, e ela
foi verdade mesmo ali, naquele ar grosso de fumo, de algazarra, de notas de
conto esfolhadas pelas mesas de negócio.
- Passámos lá há dois anos. Não: há três.
- Eu estava para fora.
- Eu sei. O Álvaro, o seu pai, disse-me. Mas a casa, a casa. Extraordinária.
Muito antiga, não é?
Velha casa. E eu sendo, aparecendo, criando-me através de ti e de mim.
Muito antiga? Havia uma data que eu descobrira no sobrado: 1761 ou 1767.
Algum velho mineiro a trouxera do Brasil. Um vasto jardim em frente, com
um grande alpendre ao lado, um pinhal descendo oposto até à ribeira, e
adiante a montanha.
- Vai-lhe custar a adaptar-se - disse Moura. - Isto aqui é muito diferente.
Mas note: também tem a sua beleza. Quando eu vim foi o mesmo. Porque eu
não sou daqui. Mas casei em Évora e por cá fiquei. A mim diziam-me: O que
custa são os primeiros dez anos.
- Espero ir para o ano para Lisboa.
- Eu sei, quero dizer, calculo. O senhor não é um desconhecido. É muito
falado lá em casa. A minha Sofia, que também faz versos...
Sofia. à luz do meu Inverno, eis que te lembro no teu corpo esguio, no teu
olhar ácido de pecado...
Domingos de Primavera pelos campos, noites quentes de Verão no Alto de
São Bento, a planície banhada de uma lua enorme. E tu voltada para o céu,
cantando, cantando: Ai... Ai, ai, ai, ai Ouço nas vísceras o teu canto ardente,
iluminado de loucura. Os céus estremeciam à anunciação da tua divindade.
Os teus olhos vivos, Sofia, a tua face tão jovem tinham o mistério da vitória e
do desastre, da violência do sangue.
Canta! Que mais há na tua vida que o teu canto, a angústia do teu grito
contra os céus desabitados?...
- ...Também faz versos? - perguntei por fim.
- A minha Sofia? Se ela tivesse tanto jeito para o latim como tem para
isso...
- Latim?
- Dois anos reprovada na admissão a Direito, veja o meu amigo. Dois anos.
E, se calhar, vai-se ao ar também o terceiro.
Mas um moço de face redonda, um começo de calvície, um sorriso cortado
à navalha, de orelha a orelha, aproximou-se de nós, poisou a mão no ombro
do Dr. Moura:
- O Chico está melhor. Passei agora lá por casa.
- Ah, sim? Bom, então não preciso de ir lá já.
- Mas passe por lá logo. Ele diz que se sente melhor. E já fala outra vez em
políticas e em razão e em cultura, eu sei lá. Ontem estava macambúzio, ar
amodorrado.
- Um novo amigo: doutor...
- Alberto Soares.
- Alfredo Cerqueira. Como está o senhor doutor?
- Meu genro - disse ainda Moura.
- Marido de Sofia? - perguntei.
- De Ana. Tenho três filhas - esclareceu Moura, sorridente. - E desculpe...
Ora vamos a ver: sábado. Pode ir jantar connosco?
Fui. A casa ficava para as portas de Alconchel. No átrio havia um grande
pote de cobre. Subia-se uma larga escadaria de pedra, bordejada de uma fieira
de bilhas de barro que Moura coleccionava. Com grandes arcadas de velho
mosteiro, todo esse rés-do-chão se congelava com um frio mineral, uma
frescura de catacumbas. E eu o lembro agora, a esse frio, numa súbita
imagem de um estranho silêncio coalhado em abóbadas... A criadita que me
atendeu, toda armada de folhos, meteu-me num escritório, selado de
reposteiros. A casa era grande, mal se ouvia um rumor de passos ou de
portas. Até que o Dr. Moura apareceu, açodado. Estendeu-me os dois braços,
conduziu-me através de uma baralhada de salas até a uma espécie de
marquise, onde me esperavam já com aperitivos. Em frente havia um jardim,
cercado de um alto muro, onde a noite começava a germinar. Duas palmeiras
explodiam no céu como granadas. E ao longe, para lá do casario, a planície
azulava-se como horizonte marinho. Conheci então Madame, abundante
senhora, loura por antiguidade (devia ter cabelos brancos), ousada e astuciosa
por direito de mamã. Conheci a mulher do Cerqueira, Ana, Ana. Tinha
cabelos longos e lisos, face magra de energia e de ânsia, olhar vivo de
estoque... O lábio superior abria-se com a irregularidade de um dente. E
conheci-te, Cristina. Estavas com os teus sete anos, a tua saia azul de folhos,
o teu arzinho de menina grave. Nada dirias por então - e que tinhas tu a dizer?
Falarias dali a pouco, só depois do jantar. E de um modo tão extraordinário,
Cristina, que eu te ouço ainda agora como a voz mais perfeita de tudo quanto
me aconteceu, esse ano e outro ano, e todos os anos da vida...
Até que, como numa expectativa de teatro, apareceu Sofia. Tinha um
vestido branco, colado como borracha, e um corpo intenso e maleável. Uma
forte adstringência apertava-a contra si, endurecia-lhe o boleado das curvas
como duas maxilas cerradas.
A cinta fechada disparava-lhe os seios, uma luz inquieta iluminava-lhe os
olhos. E era assim como se uma descarga da terra a atravessasse toda, a
revoluteasse num duro arranque de ira... Apertei-lhe a mão com calor,
subitamente infeliz. A noite adormecia sobre a terra, cálida, tranquila, como
uma nudez saciada. Sofia, Madame Moura e Ana e Alfredo cercaram-me
dessas perguntas de nada com que se inicia um convívio. Não conhecia o
Alentejo? Nunca tinha ido a Évora? Ficaria por lá? Que ensinava eu?
Não, não fora nunca a Évora, não ficaria por lá, ensinava português e
latim...
- Latim, latim - exclamou Sofia, imensamente divertida por haver no
mundo, e ali ao pé, quem ensinasse tal coisa.
- Gostava de Letras, decidi-me pelo ensino - esclareci. - E como o latim
tinha futuro e me não dei mal com ele...
- Oh!, o latim... - exclamou Sofia ainda.
- Descanse que não serei um professor exemplar - prometi eu,
imediatamente, desculpando-me como de uma degradação. Aliás, acrescentei,
uma profissão não era para mim um bilhete de identidade. Poderia ficar na
aldeia, trabalhando a terra como o meu irmão Tomás. Mas havia o vício do
livro, do meu verso clandestino. Cumprido o dever burocrático, ficar-me-ia
tempo para o mais. Sim, sim escrevia o meu verso. Mas a arte não era para
mim um mundo da letra impressa, uma estúpida invenção de passatempo ou
de vaidade: era uma comunhão com a evidência, uma reencarnação na
verdade de origens - eu o sabia, eu o saberia sobretudo depois. Ana tinha uma
pergunta a fazer. Mas Alfredo interrompeu-a:
- Ó senhor doutor. O senhor doutor vai ver que o Alentejo... Eu tenho aí
uma herdade, havemos de lá ir. Em a gente aqui estando, digamos, dois anos,
dois anos! A gente quer lá outra coisa...
E sorria em volta com o seu sorriso repuxado, deliciosamente ingénuo,
quase imbecil. Mas a criadita vermelhusca, toda estalada em folhos brancos,
apareceu no terraço, anunciando o jantar.
Ana ficou a meu lado com a sua pergunta de há pouco. Havia nela a
violência de um prosélito recente ou em crise. Era em crise, boa Ana, como
em breve eu saberia. Sim, Ana. Essa tua inquietação, essa tua fúria
silogística, o desejo encarniçado de demonstrares, deram-me cedo a certeza
de que nada em ti estava seguro.
- Li dois livros seus - disse-me ela. – Publicou mais algum?
Não, não publicara, disse eu, centrado na atenção de todos.
- Que se passou em si do primeiro para o segundo? Dir-se-ia que o seu
deus ressuscitou também no terceiro dia.
- Não, não, minha filha - interrompeu Moura, pousando precipitadamente o
talher. - Hoje não me levas à discussão. Isto é comigo, sabe? - acrescentou
para mim.
- Julguei que fosse comigo.
- É comigo. Bem: eu sou religioso, acredito em Deus, em Cristo, no Papa,
no dogma, em tudo o que me ensinaram. Mesmo não tenho tempo para
pensar mais no assunto. Tenho um Deus para me tomar conta da vida e da
morte. Fico com o tempo livre para tomar eu conta dos doentes.
Ao meu outro lado estava Sofia. Interpunha breves perguntas, de olhos
baixos, erguia-os às vezes subitamente, fitando-me como um tiro. De uma
vez olhei Madame. ela envolvia-nos aos dois com malícia e tolerância.
Alfredo, docemente calvo, sorria para tudo, falava de novo das herdades,
perguntava-me se eu gostava de fruta, porque queria que eu provasse umas
laranjas que lá tinha e havia de me enviar à pensão. Estava eu no Machado?
Pois bem: no dia seguinte... não, daí a dois dias, havia de me remeter um
cabaz de laranjas. Como as preferia eu? Da Baía? Voltava-se para a cunhada.
- Diz lá tu, Sofiazinha querida, que tal as laranjas da Baía.
“Que gente, que gente”, pensava eu. Moura, lançado no jantar, parecia
distraído no prazer com que comia. Porque a sua boa disposição tinha a
sólida base de um estômago cumpridor. Imprevistamente, Ana regressou à
sua obsessão:
- Há uns versos no seu livro que me intrigam.
Dizem assim, mais ou menos:

Do sangue nascem os deuses


que as religiões assassinam.
Ao sangue os deuses regressam
e só aí são eternos.

- Ah, não! - clamou Moura, bruscamente acordado na sua sobremesa. -


Deixem Deus sossegado e o doutor Soares também.
Mas o jantar acabava e fomos tomar café para outra sala. Madame teve
tempo ainda de me perguntar:
- Desculpe: mas não é então crente?
- Decerto que não, minha senhora.
- Ah, estes jovens de hoje, estes terríveis jovens...
Inesperadamente, porém, apareceu um tipo baixo, sólido, quadrado, de uns
trinta anos, com um ar dominador de pugilista.
E foi em todos uma alegria maravilhada e enternecida:
- Chico! Já estás bom, Chico? Então que foi isso?
- Perguntai ao vosso pai.
E Moura esclareceu, paternal: um pouco de tensão, um pouco de excesso,
ele sabe, ele sabe; com um bocado de juízo, tudo entra na ordem. Mas
tinham-se esquecido de mim e foi Ana quem nos apresentou. Chico (como
imediatamente passei também a tratá-lo) veio sobre mim para me apertar a
mão com um sacão brusco, como se me reconhecesse nobremente desde uma
secular fraternidade. Tal fraternidade, porém, não existia, como logo mo
demonstrou. Com efeito, conhecia também os meus versos, tinha de acertar
comigo umas ideias:
- Temos muito que conversar. Há imenso que fazer.
- Ouve lá, ó Chico - interveio Alfredo. - Como era aquela frase que tu há
dias disseste? Anda a gente em cavalarias e mal se descuida está para aqui a
pensar na morte. Não era bem assim, era uma rica frase. Já a quis dizer aqui
ao doutor, mas não me lembro.
- Come. Come e não digas tolices.
- Lá estás tu a querer tramar-me outra vez.
E eis que chega a tua hora, Cristina. Terias tu já dito alguma coisa? Não me
lembro. E que dissesses? O que tens a dizer, as palavras não o sabem. Nem o
lugar. Nem a hora. Tu não és de parte alguma, de tempo algum, Cristina.
Súbita aparição, foste surpresa em tudo para todos. Sim, eu sei. Já o sabia
quando te conheci...
Cristina viera fora de tempo. Ninguém a esperava já. O pai errara as contas
da fisiologia, havia a lei moral - e ela nascera. Os amigos de Moura,
risonhamente, quando se referiam à filha, perguntavam-lhe pela neta... E ele
sorria, inocente, porque a verdade da vida era mais forte do que ele, simples
instrumento ou espectador...
- Cristina - disse Moura -, tu agora vais tocar um bocadinho para o senhor
doutor.
A miúda fitou-me com os seus olhos azuis, sorriu imperceptivelmente e
sentou-se ao piano. Ajeitou a saia à roda do banco e, de mãos imóveis no
teclado, apesar do nosso silêncio, esperou ainda pela nossa atenção ou pela
sua.
E então eu vi, eu vi abrir-se à nossa frente o dom da revelação. Que eram,
pois, todas as nossas conversas, a nossa alegria de taças e cigarros, diante
daquela evidência? Tudo o que era verdadeiro e inextinguível, tudo quanto se
realizava em grandeza e plenitude, tudo quanto era pureza e interrogação,
perfeito e sem excesso, começava e acabava ali, entre as mãos indefesas de
uma criança. Mas tão forte era o peso disso tudo, tão necessário que nada
disso se perdesse, que as mãos de Cristina se estorciam na distância das
teclas, as pernas na distância dos pedais - toda a sua face gentil, até agora
impessoal e só de ância, se gravava de arrepio à passagem do mistério. Toca,
Cristina. Eu ouço. Bach, Beethoven, Mozart, Chopin. Estou de lado, ao pé de
ti, sigo-te no rosto a minha própria emoção. Apertas ligeiramente a boca,
pões uma rugazinha na testa, estremeces brevemente a cabeleira loura com o
teu laço vermelho. E de ver assim presente a uma inocência o mundo do
prodígio e da grandeza, de ver que uma criança era bastante para erguer o
mundo nas mãos e que alguma coisa, no entanto, a transcendia, abusava dela
como de uma vítima, angustiava-me quase até às lágrimas. Toca uma vez
ainda, Cristina. Agora, só para mim. Eu te escuto, aqui, entre os brados deste
vento de Inverno. Chopin, Nocturno número 20. Ouço, ouço. As palmeiras
balançam no teu jardim, a noite veste-se de estrelas, adormece na planície.
Donde este lamento, esta súplica? Amargura de sempre, Cristina, tu sabe-la.
Biliões e biliões de homens pelo espaço dos milénios e tu só, presente, a
memória disso tudo e a dizê-la...
Quando Cristina acabou, todos a quisemos beijar. E ela veio à roda, já
infantil e desabitada de grandeza, um pouco intrigada de que algo se tivesse
passado em si. Ana, estranhamente, acariciou-a de um modo especial, falou-
lhe baixo ao ouvido como numa cumplicidade.
Depois, cantou-se. Com grande surpresa minha, o Dr. Moura, com uma
excelente voz de tenor, fez um dueto com Sofia, cantando um trecho já não
sei de que ópera ou oratória. Soube depois que Moura estudara canto e fazia
parte de um coro que se exibia às vezes na Sé. Sofia tinha uma linda voz de
contralto sem trémulos nem petulância. Porque o canto não era nela senão o
anúncio de que estava viva, de que estava presente na terra.
Ergui-me enfim para me despedir. E subitamente, sem que o tivesse
pensado, ofereci-me para ensinar a Sofia o seu latim necessário. Madame
Moura aceitou logo, estalando de prazer:
- Que favor, senhor doutor... É um milagre. Sofia! Nem agradeces?
Ela agradeceu, declarando logo que era uma péssima aluna, que iria
arrepender-me. Moura confirmou: eu arranjara uma carga de trabalhos. Tinha
eu ao menos uma boa palmatória para ajudar?
Saí enfim para a noite, Chico saiu comigo. E, enquanto subíamos a rua,
falou-me de si, falou-me de Évora. Estava ali há cinco anos, era engenheiro,
trabalhava na Direcção dos Monumentos. Évora era uma cidade absurda,
reaccionária, empanturrada de ignorância e de soberba. Em Évora - tinham-
lhe dito um dia - não se podia ter mais do que a quarta classe nem menos que
300 porcos.
- Qualquer iniciativa cultural é logo abafada de desprezo e de banha.
O peso da Idade Média enegrecia ainda as almas, e os mouros também. Ter
meia dúzia de amantes era para aqueles sultões um sinal de abundância. E
havia damas que durante anos não saíam à rua, ou saíam apenas pela Semana
Santa. Muitas casas tinham jardins. Pois visse eu se os descobria. Cercavam-
nos de muros altos como a toda a sua vida. Criar relações em Évora era um
milagre. Tudo ali tinha muralhas: a sociabilidade, os jardins e, enfim, a
própria cidade. Mas de vez em quando aquela gente ia a Lisboa. E então era
vê-la desabafar: casinos, teatros, ceias. Depois recolhiam ao mosteiro. Havia
damas que nunca se viam na rua. Vira-as ele, Chico, fumando e bebendo no
Estoril. Évora era a Quaresma e Lisboa o Carnaval. Ora bem, ele, Chico, e
alguns amigos não desistiam de importunar a embófia gorda daqueles
senhores. Falhara em tempos o Círculo de Cultura Musical. Falhara o Cinema
Clássico. Mas iam atacar outra vez. Agora, com uma série de conferências na
Harmonia. Poderia eu colaborar?
Vagueámos pela cidade morta, de arcadas desertas.
Disse enfim ao caloroso homem:
- Ignoro tudo de Évora. Mas sinto que você exagera. Por ora sei apenas que
é uma cidade fantástica. E quanto às conferências, decerto estou pronto a
colaborar.
Subi às escuras as escadas da pensão, bati quatro vezes à porta. Veio enfim
abrir-ma o Sr. Machado, de chinelas, um capote sobre uma extraordinária
camisa, que lhe chegava às canelas. Naturalmente, arreou-me duro:
- Ó senhor doutor... Em minha casa à uma hora está toda a gente na cama.
Quem quiser vir mais tarde faz o favor de pedir a chave.
- De acordo, senhor Machado, de acordo. Não torna a acontecer.
Começava a irritar-me aquele tipo, eu tinha de mudar de pensão. Mas,
quando me deitei e apaguei a luz, o convite de Chico para fazer a conferência
incendiou-me de alvoroço. Tinha ali uma oportunidade de pôr ordem no que
me excitava . Um dia poderia desenvolver as minhas ideias num estudo mais
longo; agora precisava de as fixar nos pontos capitais. E foi isso que
desencadeou toda a história que narro.
E, todavia, como é difícil explicar-me! Há no homem o dom preverso da
banalização. Estamos condenados a pensar com palavras, a sentir em palavras
que, se queremos pelo menos que os outros sintam connosco. Mas as palavras
são pedras. Toda a manhã lutei não apenas com elas para me exprimir, mas
ainda comigo mesmo para apanhar a minha evidência. A luz viva nas frestas
da janela, o rumor da casa e da rua, a minha instalação nas coisas imediatas
mineralizavam-me, embruteciam-me. Tinha o meu cérebro estável como uma
pedra esquadrada, estava esquecido de tudo e no entanto sabia tudo. Para
reparar a minha evidência necessitava de um estado de graça. Como os
místicos em certas horas, eu sentia-me em secura. Fechei os olhos
raivosamente e quis ver. Regressava à aldeia, nessa noite de Setembro,
quando meu pai morreu. Se tu viesses, imagem - minha condição... Se
apareces, Como me esqueces tão cedo, como te sei e te não vejo!
Voltado para a montanha toda lavada de lua ouço alguém abrir-me a porta.
- Temos de ir vestir o nosso pai - disse Tomás.
Senti um arrepio na ameaça do contacto com uma carne morta. Mas reagi.
Que mãos profanas para te tocarem, meu velho? Que outras mãos senão estas
na piedade, de um coração despedaçado? Sofro. Vou até ao quarto onde meu
pai dorme, Veste as calças de saragoça dos trabalhos agrícolas, as botas
ferradas que não quis tirar para a festa de família. Evaristo recusa-se a
colaborar connosco. E, para se justificar, desata aos berros outra vez. Temos
de chamar o António. E ele vem, baixo, grosso, a cabeça já branca, com uma
selva de cabelos no peito descoberto. Entra no quarto, benze-se e atira-se ao
trabalho. O mais difícil era descalçar as botas. Eu e o Tomás seguramos o
corpo, ele puxa. Não vai. Manda-nos afastar, aproxima-se do ouvido do meu
pai e diz-lhe coisas em voz baixa. E depois, sozinho, suavemente, tirou as
duas botas.
- Todos os mortos se fazem rogados - explicou-nos. - Então a gente pede e
eles dão um jeito.
Céus! Onde a minha repugnância? Tudo me esqueceu. Corpo morto, carne
morta. Como as pedras.
Trabalho com aplicação, quase com gosto. As calças, a camisa, sapatos de
verniz - os sapatos é o António quem lhos calça. Eis-te pronto, meu velho,
para a grande viagem. Estás sereno, a face gravada de doçura, de perdão a
tudo, à vida, à morte. E uma comoção humedece-me os olhos. Vou até ao
meu quarto, abro as janelas para a noite.
Então bruscamente ataca-me todo o corpo, as vísceras, a garganta, o
absurdo negro, o absurdo córneo, a estúpida inverosimilhança da morte.
Como é possível? Onde a realidade profunda da tua pessoa, meu velho?
Onde, não os teus olhos, mas o teu olhar? não a tua boca, mas o espírito que a
vivia? Onde, não os teus pés ou as tuas mãos mas aquilo que eras tu e se
exprimia aí? Vejo, vejo, céus, eu vejo aquilo que te habitava e eras tu e sei
que isso não era nada , que era um puro arranjo de nervos, carne e ossos
agora a apodrecerem. Mas o que me estrangula de pânico, me sufoca de
vertigem é teres sido vivo, é tu estares ainda todo uno para mim, na memória
do teu riso, no tom da tua voz, que era lenta, sossegada, nas ideias que punhas
a viver entre nós, na realidade fulgurante de seres uma pessoa.
Recordo-te totalizado, olho-te. Que é que te habita, que é que está em ti e
és tu? Não, não é a carne, não é o corpo: é aquilo que lá mora, aquilo que
ainda dura de ti nestas salas, neste ar, aquilo que eras tu, o teu modo único de
ser, aquilo a que nós falávamos, atravessando a tua parte visível. E, no
entanto, sei, sei que esse tu real que te habitava não era senão a sua morada;
como o espaço de uma casa, a intimidade do homem, são as paredes que o
fazem: derrubada a casa, a intimidade que lá havia também morre...
E desde quando o sei, desde quando? A verdade aparece e desaparece.
Deus, a imortalidade e uma ideologia política e a sedução de uma obra de arte
e a sedução de uma mulher - onde começam?, onde findam? Sou um
indizível equilíbrio interior. Vivi, agi, toquei com as mãos tanta ilusão
consistente. Depois a ilusão desfez-se. Ficou, porém, o rasto do que toquei, o
gesto das minhas mãos - essa última união com o que quis, acreditei. Então
eu descobri que as mãos estavam impuras. Lavar-me, renascer. Deus está
morto porque sim. Não foi bem, meu velho, porque me ensinaste a história da
terra e do homem e dos bichos que já não há e de que há seres humanos desde
há dois dias, isto é, desde há um breve milhão de anos, se tanto. Não foi por
isso, não foi por isso. Foi porque Deus se me gastou. Sei só que não está certo
que ele viva. Sei que ele é absurdo porque o é. Sei que ele está morto, porque
não cabe na harmonia do que sou. Não cabe. Como não cabe a simpatia das
mulheres que aborreci. Como não cabem as anedotas . infância, que já não
têm graça nenhuma. Como não cabe nada do que já não sou eu. Não discuto,
agora, não discuto! Sei lá porque é que uma anedota de que ri não tem hoje
para mim graça nenhuma! Sei só que a não tem. E, todavia, pesa-me como
uma pata de violência a realidade da pessoa que somos. Há muita coisa a
arrumar, a harmonizar, muita coisa ainda a morrer. Mas por enquanto está
viva. Por enquanto sinto a evidência de que sou eu que me habito, de que
vivo, de que sou uma entidade, uma presença total, uma necessidade do que
existe, porque só há eu a existir, porque eu estou aqui, arre!, estou aqui, EU,
este vulcão sem começo nem fim, só actividade, só estar sendo, EU, esta
obscura e incandescente e fascinante e terrível presença que está atrás de tudo
o que digo e faço e vejo - e onde se perde e esquece. EU! Ora este eu é para
morrer. Morre como a intimidade de uma casa derrubada. Sei-o com a certeza
do meu equilíbrio interior. Mas como é possível? Agora eu sou essa
intimidade, agora eu sou o seu espírito, a sua evidência.
IV

Porquê, eu tinha um problema: justificar a vida em face da


inverosimilhança da morte. E nunca mais até hoje eu soube inventar outro.
De que poderia falar na conferência? Nada mais há na vida do que beber até
ao fim o vinho da iluminação e renascer outra vez. Riqueza ou miséria,
ciência, glória, vexame, e a política e até a arte para tantos artistas,
conhecimento do homem no corpo e no espírito - quantos modos de esquecer
ou de não saber ainda o pequeno problema fundamental. Mas o que é
extraordinário e me exaspera é que eu próprio tenha precisado de uma vida
inteira para o saber. E quantas vezes agora o esqueço? O mais forte em nós é
esta voz mineral, de fósseis, de pedras, de esquecimento. Ela germina no
homem e faz-lhe pedras de tudo. Assim, quando procuro em mim a face
original da minha presença no mundo, o que descubro não é o alarme da
evidência, o prodígio angustioso da minha condição: o que descubro quase
sempre é a indiferença bruta de uma coisa entre coisas. Eis-me aqui
escrevendo pela noite fora, devastado de Inverno. Eis-me procurando a
verdade primitiva de mim, verdade não contaminada ainda da indiferença.
Mas onde esse sobressalto de um homem jogado à vida no acaso infinitesimal
do universo? Se meu pai não tivesse conhecido minha mãe; se os pais de
ambos se não tivessem conhecido; se há cem anos, há mil anos, há milhares e
milhares de anos um certo homem não tivesse conhecido certa mulher; se...
Nesta cadeia de biliões e biliões de acasos, eis que um homem surge à face da
Terra, elo perdido entre a infinidade de elos, de encruzilhadas - e esse homem
sou eu...
E todavia, agora que me descubro vivo, agora que me penso, me sinto, me
projecto nesta noite de vento, de estrelas, agora que me sei desde uma
distância infinita, me reconheço não limitado por nada mas presente a mim
próprio como se fosse o próprio mundo que sou eu, agora nada entendo da
minha contingência. Como pensar que eu poderia não existir? Quando digo
eu, já estou vivo... Como entender que esta iluminação que sou eu, esta
evidência axiomática que é a minha presença a mim próprio, esta fulguração
sem princípio que é eu estar sendo, como entender que pudesse não existir?
Como pensar que é nada? A minha vida é eterna porque é só a presença dela
a si própria, é a sua evidente necessidade, é ser eu, EU, esta brutal iluminação
de mim e do mundo, puro acto de me ver em mim, este SER que irradia
desde o seu mais longínquo jacto de aparição, este SER - SER que me fascina
e às vezes me angustia de terror... E todavia eu sei que isto nasceu para o
silêncio sem fim...
Como tu, meu velho. Aí estás à beira da cova, na urna aberta, para te
reconhecermos pela última vez. Onde a tua pessoa, onde o que eras tu?
Passam pela estrada os carros chiando. Vêm das vinhas, das vindimas, trazem
o aroma da terra e da vida. Mas tu agora és apenas a tua imagem. Que é de ti?
Ouço para lá dos teus lábios cerrados a tua palavra grave, vejo as tuas mãos
erguerem-se, povoadas de um gesto que eras tu. Não! Quem te habitava não
é. Viverás ainda na memória dos que te conheceram. Depois esses hão-de
morrer. Depois serás exactamente um nada, como se não tivesses nascido.
Quantos crimes, vexames, remorsos, alegrias e projectos e traições e castigos
e prémios e tudo e tudo nos milhões de homens que passaram noutros séculos
por esta pequena aldeia e souberam os seus sítios e a montanha e a ribeira e
se souberam daqui e disseram esta casa é minha, esta terra é minha e sentiram
a aura de tudo isto, destes ventos, destas noites, e são hoje o nada integral,
absoluto, pura ausência, nada-nada? Eis que começa a tua longa viagem para
a vertigem das eras, para a desaparição do silêncio dos milénios. Sim, agora
ainda vives para mim porque te sei.
Como os retratos do álbum da tia Dulce...
Boa tia Dulce! Lembro-te. Era irmã do meu avô, herdada pelo meu pai com
a velha casa, uma velha criada, e com o velho ar de tudo. Magrinha como
uma suspeita, sisuda por defesa no receio de que lhe faltassem ao respeito,
revestia de gravidade aqueles dos seus actos em que pudéssemos ver uma
inferioridade, como, por exemplo, comer sempre com muito apetite. Porque
na aldeia o apetite é uma degradação, por lembrar a pobreza ou a
animalidade. Por isso tia Dulce comia com requinte, muito séria, mastigando
devagar, com um pequeno ar de desgosto, trabalhando os talheres com
minúcia – mas alimentando-se sempre muito bem.
Mas ofendo-te, velha mulher, aqui a desvendar a tua psicologia - eu, que
detesto como um insulto essa coscuvilhice das minudências íntimas, esse
ofensivo desmontar de relojoaria, como se um ser humano fosse um
brinquedo. Mas tu eras alguma coisa mais do que um boneco, eu o sei. Ainda
que tu mesma talvez o não soubesses. Porque em ti vivia a fascinação do
tempo, o sinal do que nos transcende.
Assim eu esqueço esse teu intransigente apetite, as más digestões
consequentes e a magnésia e os clisteres, a tua boca aguçada em
conveniência, a tua vingança contra a idade nessas maledicências secretas
com a tua amiga Inocência, a do falatório beato, as tuas intrigas com as
criadas nos saguões familiares, as tuas rixas com o António, o moço da
lavoura, a ganância com que defendias o teu pecúlio de tostões, a gula com
que recebias os nossos beijos, que eram a prova de que não tínhamos nojo de
ti - assim eu esqueço tudo, e o que te resume, boa mulher, é esse teu velho
álbum de fotografias, que tanta vez me explicaste por saberes que eu
conhecia já a vertigem do tempo e me legaste depois para o guardar e eu
tenho agora aqui na minha frente como o espectro das eras e das gentes que já
mal sei e me fitam ainda do lado de lá da vida e me querem falar sem
poderem e me angustiam como o olhar humano do Mondego dias antes de o
António o matar.
V

E todas as quartas e sábados eu dava lição a Sofia.


Começámos pelo princípio para recapitular. Ela cantava as declinações,
tinha um modo gracioso de se enganar e de tal forma que eu sentia
obscuramente que os erros é que estavam certos. E era assim como se
qualquer coisa a habitasse e fosse maior do que ela e do que a miséria das
regras de gramática. Mas tinha sobretudo uma maneira brusca e cravada de
travar e de me ficar olhando, como se me procurasse em qualquer sítio de
mim onde não houvesse lembrança do que estávamos dizendo. Eu sentava-
me num sofá em frente dela, ela sentava-se noutro sofá, cruzando a perna,
escrevendo em cadernos de uma infância já morta. Era raro eu ver Madame
ou alguém mais da casa. A pequena criada, vermelhusca, sempre a estalar de
sangue, vinha abrir-me a porta e metia-me no escritório. Eu ficava ali à
espera algum tempo, abafado de estofos e silêncio, até que Sofia entrava.
Fechava sempre a porta atrás de si com um à-vontade que era quase desprezo
por quem exigisse que ficasse aberta. Assim, era como se entre Sofia e mim
uma única vida se estivesse gerando e ambos a reconhecêssemos. Uma única
vez me apareceu de chinelas, uma camisola azul sobre os ombros, igualada
assim ao trato familiar da banalidade doméstica onde habita a fraqueza e a
necessidade.
Mas Sofia sabia-se excepcional. Por isso se vestia em perfeição, destra e
aguda, disparada desde os saltos aos seios agressivos, aos olhos rectos e
lúcidos. E eu sentia que tudo o que é vivo na terra estava ali presente no seu
corpo. Que tinha que fazer, frente à execução da alegria, o meu pobre
ministério de cadáver? Assim um íntimo desastre me tolhia e envelhecia as
palavras. Um dia, depois de eu explicar não sei que regra sintáctica, depois de
Sofia tentar cumpri-la num exercício, fechou o caderno, cansada, risonha de
tolerância. E perguntou:
- Porque há-de a vida ter razão sobre nós? Porque havemos de ser sempre
nós a submeter-nos? Um curso e um marido e filhos...
Tive uma palavra professoral, como era ali da minha obrigação:
- Se todos fizéssemos só o que nos apetece...
- Sim. Mas porque é que numa vida certa o verbo studeo há-de pedir
dativo?
- Que queria você fazer, Sofia?
- Sei lá, sei lá...
E ficava muito séria, olhando ao lado qualquer presença obscura - e ambos
nos esquecíamos dos livros e cadernos. Mas acontecia outras vezes que Sofia
entrava na sala, grave, bem integrada na sua função de aluna, sabendo tudo,
absolutamente tudo, com uma certeza e minúcia que me derrotavam. Os
exercícios estavam feitos correctamente, sem erros, às lições atrasadas
conheci-as sem falhas. Eu tentava então traduções à primeira vista. E Sofia,
após leves hesitações e depois de eu dar um ou outro significado, traduzia
quase bem. No entanto, na vez seguinte, ela voltava a errar desastradamente.
Naturalmente, um dia irritei-me:
- Basta de troça, Sofia. Você sabe. Você não quer é dizer. Você decidiu rir-
se disto tudo.
- Rir-me? Que absurdo! Faça um esforço, doutor, faça um esforço. Saia um
momento das regras e excepções. Só assim talvez entenda. Há dias em que é
absolutamente necessário que eu não saiba! E então não sei, não sei, não sei.
Não me peça explicações. Não sei!
E saiu do escritório, talvez para não chorar ali. Madame, porém, apareceu
logo, dir-se-ia estar ali à escuta. E, sem me perguntar o que se passara,
limitou-se a pedir-me desculpa.
- Desculpa? De nada, minha senhora. Sofia hoje está mal-disposta. Temos
de ter todos paciência.
Vexado, reuni os meus papéis, meti-os na pasta - nessa pasta que eu tanto
viria a odiar - e saí.
Mas algum tempo depois Sofia procurou-me inesperadamente na pensão.
O senhor Machado anunciou-me a sua visita, de mau modo, inquieto decerto
de um aroma a mulher, de uma suspeita a tramóia:
- Está ali uma senhora a procurá-lo. É uma filha do doutor Moura. um
grande amigo meu, uma pessoa de bem. Mas, ó senhor doutor, o senhor
doutor já sabe que em minha casa...
- Nem mais uma palavra, senhor Machado. Não pode então vir uma
senhora a esta casa? É isto um convento?
- Não, senhor doutor, está bem de ver que não é um convento.
- Ou a presença de uma senhora faz disto por força um lupanar?
- Credo, Jesus, o que ele disse, o que ele disse!.
E fugiu a apertar a cabeça.
Não! Tinha de sair dali! Mas para onde?
Sofia esperava-me na sala de jantar, em pé, bela e vigorosa:
- Que fez ao senhor Machado? - perguntou-me em voz baixa. - O homem
parecia que tinha visto o Diabo, o Diabo antigo, o autêntico.
Contei a Sofia o que se passara. Ela riu um riso ilícito, clandestino, e eu
tive a primeira certeza do que já suspeitava...
- Ele diz-se amigo do seu pai.
- Oh, o pai... O pai ri-se. O homem também faz parte da Conferência de
São Vicente de Paulo. Bem vê, há as sobras da pensão. Mas não ficamos aqui
a dizer mal.
- Vamos dizer mal para onde?
- Bem. Vai só o doutor. Vai o doutor e o meu pai, que o espera lá em
baixo.
- Sofia...
- Não pergunte nada. Oh, não recomece. Devo pedir-lhe desculpa? Pois
bem: desculpe.
Saímos. Moura esperava-me, com efeito, na Praça, com o projecto de um
passeio aí adiante. Ia ver um doente, eu precisava certamente de ir
conhecendo o Alentejo. Não, Sofia não podia ir. Sentei-me à frente, ao pé de
Moura, no seu Fiat pequeno. Lembro-me bem de que nessa manhã toda a
Praça acordara enfeitada de crisântemos. Mas só agora eu reparava bem
neles. Havia crisântemos ao longo das arcadas, uma roda de vasos cercava a
fonte por dentro das grades.
Havia-os brancos, roxos, amarelos, de cabeleiras caídas para os olhos, com
o seu ar fatal ao sol triste de Outono.
Partimos pela estrada do Redondo, atravessando as duas linhas férreas.
Atrás ficava a cidade, dourada pelo sol, coroada pela Sé. Moura parou o carro
no alto de uma rampa para que eu ficasse gravado daquela aparição. E daqui
do meu Inverno, desta noite em que escrevo, eu a relembro agora. As casas
brancas apinhavam-se, umas contra as outras, à ameaça do deserto e da
desolação. E ali parado, em face da cidade perdida na planície, era como se
ouvisse em mim um coro de peregrinos à vista de um santuário nas romagens
antigas...
- Temos de ir indo - lembrou Moura.
Ele tinha pressa de falar de Sofia. E havia tanta coisa a contar. Porque tu
foste sempre uma criança difícil, Sofia. Eu tinha de ter paciência, de te não
levar muito a sério. De uma vez, contou Moura, Sofia foi repreendida pela
mãe. Era então uma miúda de sete anos e a repreensão foram duas palavras
severas. A falta fora um capricho absurdo da garota.
Sofia brincara toda a tarde no pátio, sujara-se, rasgara o vestido. Havia
nessa noite visitas de cerimónia, a mãe vestira a miúda de lavado. Mas à hora
da recepção Sofia apareceu na sala com o vestido roto e sujo, apresentou-se
assim mesmo às pessoas de cerimónia. Madame sentiu-se vexada, trouxe a
filha a um recanto disciplinar e explodiu. Sofia nada disse. Não se ria, não
chorava. Estava apenas muito séria como se tivesse cumprido um dever. Mas
nessa noite, ao deitar, desapareceu. Correu-se a casa toda, bateu-se à porta
dos amigos, da família. Nada. Meteu-se a Polícia, a Guarda, telefonou-se para
as estações do caminho de ferro, das camionetas. Em vão. Só na tarde do dia
seguinte ela reapareceu, absolutamente serena, indiferente à aflição familiar.
Tinha estado todo esse tempo empoleirada na chaminé de um forno
abandonado, no pátio. De outra vez, e sem questão nenhuma, atou fortemente
um nastro num braço, prendendo a circulação. Já tinha a mão roxa quando o
pai descobriu. Sofia sentiu-se alegre por saber que estivera em risco de perder
o braço todo. Mas aos doze anos saiu realmente de casa, a pé, com destino a
Lisboa. Apanharam-na em Montemor. Raramente confraternizava com a irmã
nas suas brincadeiras, preferindo entreter-se sozinha, quase sempre fechada
no seu quarto povoado de bonecas. Mas este modo de ser tranquilo, este
modo de fechar-se consigo, era ainda o indício de uma tensão interior de que
se tinha o sinal flagrante no jeito súbito de fitar como se então explodisse.
Vivia sempre à escuta de uma invisível ameaça ao seu mundo pessoal -
mundo de alegrias ou amarguras que só ela sabia. Acontecia assim às vezes -
Moura contava - que durante uma conversa (como quando o pai falava da
morte de algum doente) ela sorria enlevada com o ar distante, separado, de
uma louca. Como em situações diversas (uma vez, por exemplo, numa festa
de anos da irmã) ela fugia de todos, grave de amargura mas raramente
chorando. A certa altura houve quem preconizasse o recurso de um colégio.
Meteram-na no colégio. Mas não houve outro remédio senão tirá-la de lá,
porque duas vezes tentou suicidar-se. Sofia! Como eras estranha! Como o
foste até ao fim! Mas agora que morreste de uma morte inesperada que te
evitou o gesto puro de te matares, agora que relembro toda a tua vida certa,
evidente, na mais breve atitude, reconheço a verdade antiga, axiomática, de
todo o teu raiar a um mundo de limites, de máximos, de pura iluminação.
Passam os campos à nossa volta no desamparo do Outono. Raros homens de
pelico vão andando pela estrada para o deserto do seu destino.
Um ou outro aparece, solitário, no meio do descampado. Eu olho e ouço.
Por sobre o rumor surdo do carro o teu pai fala. Mas já sem a bonomia do seu
viver sem problemas.
- Se ela casasse, se ela casasse...
Ele sabe a lição da fisiologia. E depois? Em certo serão de Inverno, Sofia,
Ana quebrou-te, creio que por descuido, um braço a uma boneca. Tu foste
para o quarto, grave, sem uma lágrima. E de um a um quebraste todos os teus
brinquedos, impedindo violentamente que te levassem os cacos: melhor que a
náusea das compensações medianas, preferias o absoluto da destruição.
Senti um ataque brutal a todas as minhas vísceras e vi como era
compreensível o sonho de Sofia. Realizar a vida num acto, num gesto, num
sonho, por mais miserável que seja. Mas Sofia, como eu havia de saber,
conhecia apenas o arranque e a inquietação. Sabia talvez apenas de que lado
da vida lhe falavam. De qualquer modo, como entendê-la, pois, nas
explicações do pai? E disse:
- Talvez não seja só uma questão de casamento.
Moura olhou-me um instante, a sorrir com resignação da minha
ingenuidade:
- Sou médico, meu bom amigo. E às vezes desejava não sê-lo.
- Que sabe a fisiologia sobre os sonhos de um homem?
- Talvez não saiba muito - admitiu Moura. – Mas não há dúvida de que, se
o irmão corpo está tranquilo, os sonhos são mais razoáveis. Claro:
Sofia era então uma criança. Mas desde quando o não é? Problemas
complicados, trapalhadas da vida. Bom: a estrada boa acaba aqui. Agora
vamos cortar por este ramal.
Era um caminho mau, escavado das chuvas e dos carros das mulas. Para
um lado e outro estendiam-se as terras escuras e abandonadas. De longe em
longe erguia-se o espectro de uma ou outra azinheira. Reunir a vida num acto,
num sonho. Mas ter primeiro a evidência da sua grandeza, da sua verdade. E
ter a evidência daquilo que ele recusa.
Subitamente à beira de um monte, um homem de pelico ergueu a mão ao
carro. Eram três ou quatro casas apinhadas num terreiro. Moura parou e
reconheceu o homem:
- Você outra vez? Então o que é que há de novo?
- Eu sabia que o senhor doutor ia ali à dona Alzira e pus-me aqui à espera.
- Mas então o que é que há?
O homem olhou-me para ver até que ponto eu podia participar do seu
segredo.
- Se é preciso, eu saio - declarei.
- Não, acho que não - disse Moura. - O senhor doutor pode ouvir? -
perguntou.
- Ele também é doutor? - adiantou o homem raiado de esperança.
- É doutor, mas não é médico. Diga lá então.
E o homem contou uma história incrível. Moura já a conhecia, porque fez
referência a uma consulta na cidade. Mas de nada lhe valeu, porque o homem
ia contá-la outra vez desde o princípio. Receava muito que lhe tivesse falhado
algum pormenor e isso lhe destruísse a esperança. Contava-a agora de novo:
- Quando foi da sementeira, o patrão Arnaldo disse-me: “Ó Bailote, tu já
não tens a mesma mão para semear”. Porque eu, senhor doutor, tive sempre
uma mão funda, assim grande, como um cocho de cortiça. Eu metia a mão ao
saco e vinha cheia de semente. Atirava-a à terra e semeava uma jeira num ar.
Conta, bom homem, conta o teu sonho perdido.
Tinhas, pois, uma boa mão de semeador bíblico. Atiravas a semente e a
vida nascia a teus pés. Eras senhor da criação e o universo cumpria-se no teu
gesto. E, enquanto o homem falava, eu olhava-lhe a Face escurecida dos
séculos, os olhos doridos da sua divindade morta. Imaginava-o outrora
dominando a planície com a sua mão poderosa. A terra abria-se à sua
passagem como à passagem de um deus. A terra conhecia-o seu irmão como
à chuva e ao sol, identificado à sua força germinadora.
- Agora o patrão diz que eu já não tenho mão.
E mostrava a sua desgraçada mão, envelhecida, carbonizada de anos e
soalheira. Moura olhou-me e sorriu-me numa cumplicidade.
- Olhe. Faça ginástica aos dedos. Assim.
E exemplificava. De olhos escorraçados, o homem lamentou-se:
- Tenho feito, senhor doutor. Mas o patrão Arnaldo diz que eu já não tenho
mão. Veja, senhor doutor, então isto não será ainda uma mão de homem?
E tentava cavá-la fundo, com os dedos gretados no ar.
- Então que quer que eu lhe faça?
- Dê-me um remédio, senhor doutor. Um remédio que me ponha a mão
como a tinha. Assim grande, assim funda, assim, assim...
E moldava no ar a capacidade de uma mão de Jeová.
Fios de sol escorriam de uma azinheira perto da estrada. Os campos
repousavam no grande e plácido Outono. E pelo vasto céu azul, sem a
mancha de uma nuvem, ecoava levemente a última memória de Verão.
Moura pôs o motor a trabalhar.
- Então passe muito bem - disse ao semeador.
E o carro arrancou, erguendo o pó do caminho.
VI

Mas a visita à doente foi breve. Era uma casa fidalga perdida no
descampado. Espectros de um ou outro homem ou mulher olhavam-me no
carro parado, olhavam o silêncio em redor. Regressámos enfim pelo mesmo
caminho. Quando, porém, chegámos ao monte do semeador, saltou-nos à
frente um grupo de pessoas numa sarilhada de gritos, de imprecações, braços
no ar, braços apontados para uma loja. Moura saiu do carro e o magote de
gente seguiu-o. Fiquei só. Mas o médico regressava daí a pouco, pálido,
transtornado.
- Que aconteceu?
Ele não respondeu logo, conduzindo o carro aos tropeções. E só quando o
monte se não via já me declarou:
- O homem enforcou-se.
Senti-me embrutecido, atordoado em todo o corpo.
Só. Era espanto e fúria e terror. Era essa indizível e total suspensão em que
a absurda evidência nos esmaga pela absoluta certeza e absoluta
impossibilidade. Sei e recuso. Uma violência iluminada incha-me no cérebro,
estala-me o crânio como uma massa solar. Pensar, reflectir, como?, como?
Apenas vejo, apenas vejo, fascinado, imóvel.
Apanha-me todo e queima-me e endurece-me nas mãos enclavinhadas uma
surda intoxicação. Moura, a meu lado, nada diz. à luz obscura da tarde
parece-me que envelheceu. A gordura que lhe enchia a face feliz descai-lhe
agora para o pescoço em pregas flácidas. Os campos estendem-se a perder de
vista, o ar acende-se de um último clarão. Que fazemos nós na vida? Que
incrível pertinácia nos resolve numa ilusão toda a imensidade do milagre de
estar vivo? Não vale então nada, meu velho desconhecido, esse prodígio de
seres, em face de uma mão que não é já a de um semeador?
Tinha uma missão a executar, uma extraordinária notícia a transmitir.
Precisava urgentemente de fazer a conferência, de revolucionar o mundo.
Porque o mundo aparecia-me sob a forma de uma absurda estupidez. Era
necessário que todos os homens vivessem em estado de lucidez, se
libertassem das pedras, chegassem ao milagre de ver. Era absolutamente
necessário que a vida se iluminasse na evidência da morte. Viriam a chamar-
me mórbido, doentio. Porquê? Mais real do que o nascer era o morrer. Porque
quem nasce é ainda nada. Mas quem morre é o universo, é a pura necessidade
de ser. Um homem só é perfeito, só se realiza até aos seus limites, depois de a
morte o não poder surpreender. Não porque a tivesse decorado como um
gato-pingado, não porque a tivesse esquecido, mas por tê-la incorporado na
plenitude da vida. Sabia bem quanto era difícil já não digo esta aceitação
esclarecida mas até o ver o problema; sofrer o impacto da sua fulgurante
aparição. Eu próprio quantas vezes o esqueço! Quantas vezes me remordo em
desespero, porque nada vejo, nada vejo! A parte animal do homem, a parte
gorda, a que tem sono e quer dormir é brutalmente pesada.
Mas agora eu sei, eu vejo. Procuro por isso o Chico na sua repartição. Não
está: saiu para uma avaliação de prédios ou o exame de alguma construção.
Procuro-o no café depois das cinco: não está também. Vou enfim a sua casa.
Mora ao pé de São Francisco, numa casa que dá para o Jardim. Bato à porta:
iam ver se o senhor engenheiro estava. E ele aparece enfim, de roupão e um
cigarro entre os dentes. O quarto é grande e no rés-do-chão. Quando passam
carroças na calçada, o soalho estremece. Passam constantemente carroças,
mesmo a horas tardias. Ouço-as ainda agora, martelando toda a cidade,
percorrendo em fila as estradas da planície. Levam fardos de palha moída,
lenha para os fornos, azeite, louça de barro.
Na minha imagem distante, filtrada pelo tempo, unem-se à figuração de um
pelico, de um ventre e face gorda, de notas de conto esfolhadas nas mesas do
café à terça-feira, essas carroças rijas com machos e almocreves, martelando
a cidade de uma memória de terra e de estrume. Chico pergunta-me:
- Então que há, professor?
Tratava-me por professor, que era a fórmula mais certa para ele de uma
camaradagem tolerante. Eu tratava-o por Chico e às vezes por engenheiro.
- Pensei já na conferência - disse eu.
- Óptimo. Mas a coisa não vai ser fácil. Falei já com os senhores da
Harmonia, mas eles não se entusiasmaram. De que vai você falar? De
cortiça? De adubos? Não vai. Bom, nesse caso está tramado.
- Vou falar de uma coisa nova, de uma descoberta extraordinária.
- Descoberta? Então não é para a Harmonia: é para a Academia das
Ciências.
Eu fumava, nervoso. Um candeeiro estampava a luz na secretária, dissolvia
o quarto em penumbra. Sentia-me possuído da minha evidência e mal reparei
assim na ironia do engenheiro. Queria falar, tinha de falar.
- A minha descoberta destina-se a toda a gente. Nem é uma descoberta.
Quero dizer: é a descoberta de uma aprendizagem.
O engenheiro recostou-se na cadeira como um advogado que se informa ao
atender um cliente. Eu estava numa situação de inferioridade e o que desejava
não era uma tolerância mas uma comunhão. De súbito, porém, bateram à
porta. O engenheiro mandou entrar e quem apareceu foi um moço meu aluno.
Mostrou-se embaraçado com a minha presença, prometeu sair logo.
- Podes ficar - disse o engenheiro. - O doutor dá licença. É meu primo -
acrescentou para mim.
Não dera ainda tal licença. Mas concordei. Era o Carolino, meu aluno de
Literatura, moço bisonho, com a cara crivada de espinhas e a quem por isso
os colegas chamavam o Bexiguinha.
- Lá passei no Redondo. O teu pai não estava - declarou o engenheiro ao
rapaz. - Mas estava a tua mãe... Não acreditou lá muito nessa história de mais
livros. Mas mandou o dinheiro.
E passou notas ao rapaz, que as guardou em silêncio, corando fortemente.
O engenheiro acendeu novo cigarro, recostou-se outra vez:
- Mas diga então, professor.
Não, amigo. Não é para essa tua fleuma abundante que eu tenho voz.
Procura! O rasto da tua radiação divina, o lume secreto da tua aparição, onde
está? Onde o perdeste, amigo? Em que recesso do teu ar monolítico? Trago o
eco perdido do ermo de ti próprio. E tu, pobre Bexiguinha de olhos alagados
de estupefacção? És tu só então que me estás ouvindo? Mas de que falo eu,
afinal? De que nada tão brutal de fúria e solidão? Descobri as raízes da minha
vida, a flagrância do que sou. E falo, falo. O entusiasmo incendeia-me, as
minhas palavras são já quase só vibração. Mas só talvez assim estejam certas,
como um ferro em brasa que nos atinge não pelo ferro que é.
- A descoberta que proponho é bem difícil - insisti eu. - Não lhe contei
ainda o caso do homem que se enforcou?
- Contou-me o Moura - disse Chico.
- Que foi? Que foi? - perguntou o Bexiguinha, a voz fina e cantada da sua
terra e que assim o aquecia como a uma criança.
- Encontrámos um homem há dias, quando o doutor Moura ia ver um
doente. O homem queixava-se de que já não tinha uma boa mão para semear.
à volta, quando passámos outra vez pelo monte, o homem tinha-se enforcado.
Bexiguinha abriu os olhos e a boca.
- É preciso vencer esta surpresa que nestes casos nos esmaga. Ajustar a
vida à morte. Achar e ver a harmonia de ambas. Mas achá-la depois de
sabermos bem o que é uma e outra, depois de nos encandearmos na sua
iluminação. Sabia acaso o homem o milagre que destruía? Mas eu sei.
- Como se sabe, senhor doutor? - perguntou-me o Carolino na sua voz
ridícula, que tanto me desmanchava.
E de repente, em face do interesse do rapazinho, não dito em palavras mas
expresso na sua avidez, de novo me empolgou a fúria de revelar. Virei-me
para o Bexiguinha, falei só para ele. E perguntei:
- Porque é que, no silêncio da noite, nos assusta falar em voz alta? Nunca
fizeste essa experiência?
- Nunca fiz, senhor doutor - respondeu ele no seu tom de falsete.
Era preciso fazê-la. Mergulhados no silêncio nocturno, sentimo-nos não
existir. O que existe é como que o absoluto do mundo, a presença aguda das
coisas. O universo aguarda a vinda do primeiro homem. E subitamente
gritamos: “Eu estou vivo, EU SOU.” E falamos connosco, fazemo-nos
perguntas. Sobe-nos então à garganta uma surpresa de terror: “Quem sou eu?
Quem está aqui comigo?” Dá vertigens. É como se nos aparecesse um
fantasma e estivesse dentro de nós e fosse alguém a mais e visse pelos nossos
olhos e falasse pela nossa boca. Só os doidos falam sozinhos, porque não têm
medo. O mundo para eles não existe: só existe a sua loucura. Por isso nós, se
falamos, nos sentimos doidos, separados subitamente do mundo. O que existe
então não é o quarto onde estamos, os livros, a noite; o que existe é este
vulcão brutal que sai de nós, o jacto do deus que nos habita, esta
monstruosidade que nos adormecia dentro.
Mas de súbito o telefone tocou. Chico ergueu-se pesadamente, foi atender.
- Como está? Sim... Não, não... Pois... Os alicer... Pois... Os alicer... Não,
eu já lhe tinha dito. Os alicerces é que ficaram mal.
Pousou o telefone, voltou-se para mim:
- Mas dizia você, professor...
Não, quadrado homem de ferro e de cimento. Não me entendes, não te
entendo. Falo para ti, Bexiguinha.
- Há uma outra experiência - disse eu. - Uma vez, quando era miúdo...
Contei. Nós estávamos sentados na varanda da casa, voltada a oriente.
Tomávamos o fresco, o dia fora abrasador. Detrás da serra a lua ia em breve
aparecer e nós esperávamo-la quase em silêncio. Só meu pai me repetia a
história dos astros, que eu guardava na memória: Antares, Altair, Deneb,
gigantes vermelhas, órbitas no grande vazio dos espaços. A lua veio enfim.
Eu sentara-me no chão, mas apetecera-me deitar-me ao comprido para ver
melhor as estrelas. E minha mãe mandou-me ao quarto procurar a manta e a
almofada dos nossos sonos no tempo. A porta estava aberta, a lua entrava por
uma das janelas. Procurei a manta e a almofada numa cadeira, no canto onde
minha mãe as arrumava. Subitamente, porém, quando ia a erguer-me, eu vi
que estava alguém mais no quarto. Dei um berro, larguei tudo, estatelei-me
no corredor. Aos meus gritos acudiu minha mãe, meu pai, meus irmãos, as
criadas, a tia Dulce. E ali, à face de todos, declarei:
- Está um ladrão no meu quarto.
A minha mãe arrebatou o candeeiro a uma criada e fomos todos atrás dela.
Mas, iluminado o quarto, examinados os recantos, o ladrão não apareceu.
- Oh, a imaginação desta criança! - exclamou minha mãe.
Sermão sobre a minha imaginação. Meu pai aproveitou a oportunidade
para atacar o malefício das historietas que nos contava a velha tia Dulce.
Aliás, quem mais as escutava era precisamente eu, não tanto então, durante a
minha infância, como mais tarde, quando vinha a férias e desentulhava do
sótão, das lojas, dos cantos das arrumações, velhos vestígios de outrora -
jornais, fotografias, algumas bem recentes, pois já eu figurava nelas, mas que
para mim tinham já a distância ilimitada do passado.
Subitamente, meu pai teve uma ideia:
- Onde é que viste o ladrão?
- Ali.
- Põe-te lá onde estavas. Olha agora em frente.
Olhei. Quem estava diante de mim era eu próprio, reflectido no grande
espelho do guarda-fatos. Meu pai pôs-me a mão na cabeça com a sua
protecção.
Minha mãe voltou a lamentar a minha fantasia. E o meu irmão Evaristo fez
rir toda a gente, porque se pôs diante do espelho a fingir medo:
- Um ladrão! Olha um ladrão!
Regressámos à varanda, tia Dulce regressou à grande sala batida do luar e a
cujas janelas rezava as suas contas. A lua vogava agora em pleno céu. No
grande silêncio, os ralos e os grilos frisavam a noite de gritos. No ar pairavam
ainda as crepitações do calor, com uma memória de cigarras estalando à luz
do sol... Eu, porém, relembrava o meu susto à súbita presença de alguém que
agora sabia ser eu. À hora de deitar meu pai ordenou-me:
- Tu vais-te deitar sozinho. Tu és um homem.
Desde sempre, dormíamos cada irmão em seu quarto. Cumpri o dever de
ser homem e deitei-me sozinho, tendo o cuidado de não olhar para o guarda-
fatos. Mas no outro dia, assim que me levantei, coloquei-me no sítio donde
me vira ao espelho e olhei. Diante de mim estava uma pessoa que me fitava
com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava.
Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse
alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara. Pela primeira vez
eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser vivo que até então
vivera comigo na absoluta indiferença de apenas ser e em que agora
descobria qualquer coisa mas, que me excedia e me metia medo. Quantas
vezes mais tarde eu repetiria a experiência no desejo de fixar essa aparição
fulminante de mim a mim próprio, essa entidade misteriosa que eu era e
agora absolutamente se me anunciava.
Calei-me enfim. Uma carroça retardatária atroou toda a calçada. Pelos
vidros das janelas via a massa nocturna do Jardim, imaginava o busto de
Florbela, colocado ali há pouco tempo, numa manhã clandestina, agora
meditando sobre o seu pesadelo. Chico dormitava ao eco das minhas
palavras. Carolino tinha agora a boca aberta, todo petrificado. Por fim o
engenheiro falou:
- Tudo isso, professor, é muito grave.
- Grave como?
- Grave. O que você propõe é pura e simplesmente o regresso à pedra
lascada...
- Lascada?
- ...porque o homem sabe que existe já desde então.
- É falso. E que o soubesse? A verdade é que o não sabe hoje. Tenho a
certeza.
Chico endireitou-se, fez peito. Era tremendo a fazer peito. Porque tudo se
me deslocava para uma questão de músculos.
- Vivemos numa época formidável - disse ele. – A única verdade a
conquistar é a de que todos os homens têm direito a comer.
- Quando é que afirmei que o homem deve passar fome? Mas, se em todas
as épocas se tivesse só pensado na melhoria económica, hoje não seríamos
homens: seríamos apenas máquinas. O meu humanismo não quer apenas um
bocado de pão; quer uma consciência e uma plenitude.
Bexiguinha olhava-nos, ora a um ora a outro, como num jogo de pingue-
pongue. Chico interpelou-o:
- Tu que pensas?
O moço estremeceu, abriu mais os olhos, num raio de loucura:
- Eu acho bem, eu... Eu já tinha pensado. Às vezes, lá em casa, ponho-me a
pensar: o que é que sentirá uma galinha?
- Uma galinha? - perguntou o engenheiro.
- Sim. Uma galinha. Penso assim: Se eu fosse galinha? E o que o senhor
doutor contou, isso do espelho, também já tenho pensado. A gente às vezes
brincava a fazer caretas ao espelho. às vezes fazia uma coisa que não devia
fazer. E depois chegava ao espelho, fazia caretas e era mesmo como se me
estivesse a ralhar a mim próprio. Depois ficava melhor. Mas falar alto para
mim nunca falei.
Ficámos todos embaraçados. Bexiguinha olhou-nos, estupefacto do nosso
embaraço e talvez do seu.
Até que o engenheiro se abriu todo em gargalhada para restabelecer a
normalidade:
- Com que então, Carolino, uma galinha...
- Eu não sei porque é que te ris. A gente pensa: Se eu fosse um cão? Se eu
fosse uma galinha? Uma galinha tem um olho para cada lado, por exemplo, e
tem aquela coisa dura que é o bico. E depois a galinha dorme empoleirada
num pau e não cai.
- Bem, bem. Temos galinha que chegue. Trata mas é de não gastares o
dinheiro dos livros em paródia. E esquece a galinha. Pensa, por exemplo, na
vaca, para variar.
- Mas a vaca também é um bicho esquisito.
Eu estava atónito. Porque sentia em Carolino, através do que havia nele de
estranho, uma inquietante separação de si, não sei se para um encontro lúcido
consigo, se para uma união de loucura. Precisava de conversar com o pobre
Bexiguinha. Ele não era decerto um louco. O modo de falar era trôpego,
ridículo no seu esganiçado de falsete, e isso é que sobretudo perturbava. Mas
o telefone retiniu de novo. Chico foi atender.
- ...Não, não me esqueci. Atrasei-me só um pouco. Tive visitas. Ainda cá
estão... O professor e o Carolino. Sim... Até já.
E para nós:
- Com a história da galinha, esqueci-me de que tenho galinha em casa dos
Cerqueiras.
- Então vão sendo horas - lembrei eu, levantando-me.
- Vão sendo horas - concordou Chico, erguendo-se também.
Carolino, vexado a sangue, com as espinhas mais visíveis, saudou o primo
brevemente e saiu comigo. Estava uma noite nítida, com estrelas de vidro. No
largo deserto, à luz dos candeeiros, a Igreja de São Francisco erguia a sua
massa negra entre as fachadas brancas dos prédios. E as janelas iluminadas na
pequena colina sugeriam um presépio à minha memória de Inverno.
- Onde moras tu, Carolino?
- Na Rua da Mouraria.
- Vou contigo. Damos uma volta aqui por baixo.
Gostava de percorrer as ruas silenciosas, emaranhadas como uma
alucinação. Numa ou noutra janela armava-se ainda o pau com o fio da roupa
branca. Das tabernas, com meias-portas fechadas, vinha um eco sujo de luz
fosca e de sarro.
- O senhor doutor acha que o que eu disse era assim para rir? - perguntou-
me subitamente o Bexiguinha.
- Bem, Carolino; nós temos muito que conversar. O que disseste não é nada
uma tolice. Quando era miúdo senti uma coisa parecida com um cão. E com
um gato. E com outros bichos. Descobri neles o começo de uma pessoa. O
cão chamava-se Mondego. O António matou-o.
- Quem era o António?
- Um criado.
Percorríamos o labirinto de ruas em todos os sentidos. Mercearias escuras
como grutas com uma luzinha ao fundo, antros de carvoeiros, interiores de
casas iluminadas para lá das cortinas, namoros oblíquos de esquina - toda
aquela zona da cidade se cruzava de segredo e de suspeita.
- Também fiz outra experiência, senhor doutor.
- Que experiência?
- Bem... Não sei como explicar. É assim: mastigar as palavras.
- Mastigar as palavras?
- Bem... É assim: a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, estrelas ou
qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E depois,
pedra já não quer dizer nada.
Como, Carolino? Sabes então já a fragilidade das palavras, acaso o milagre
de um encontro através delas connosco e com os outros? E saberás o que há
em ti, o que te vive, e as palavras ignoram?
- Quantos anos tens tu?
- Dezassete.
- Gostas de fazer versos, de escrever?
- Nunca fiz versos, nunca escrevi. Gosto é de pensar.
- Tu percebeste o que eu queria dizer?
- Percebi tudo, tudo, tudo. Vou pensar muito nisso.
Fazer assim: pôr-me bem no centro de mim e ver-me, sentir-me bem de
dentro para fora, descobrir a pessoa que está em mim.
Afinal deixei o Bexiguinha na Praça do Giraldo. Eu tinha ainda de ir ao
Nazaré antes que a livraria fechasse.
VII

Só no dia seguinte eu soube que a nossa conversa em casa do engenheiro


tinha sido largamente comentada em casa dos Cerqueiras. Eu subia a Rua da
Selaria para o Liceu, parara um pouco diante de um cão que todos os dias ali
estava na rua, ladrando para uma janela até lhe atirarem de lá um osso. Era
decerto um cão vadio, com o seu pêlo surrado e olhos lacrimejantes. Eu
próprio lhe trouxera esse dia um bocado de pão, que o desgraçado apanhou
com infinito fastio: tal o seu regime de ossos, não apreciava decerto pão. Foi
quando à minha beira travou uma furgoneta e descobri ao volante o Alfredo
Cerqueira.
- Então, doutor, a alimentar os animaizinhos... O doutor já tem um cão,
temos de arranjar uma galinha para o Carolino... Tinha o seu sorriso
repuxado, de orelha a orelha, como uma figura de Bosch. E logo abrindo-me
uma porta.
- Entre, doutor, que eu levo-o ao Liceu.
Entrei, instalei-me.
- Já sabe então da história - disse eu.
- O doutor sabe lá o que isso foi. Já há muito tempo que não ria assim.
Aquele Chico é levado dos diabos.
- Grande galhofa, então, estou vendo.
- Não senhor. Aquilo foi o cabo dos trabalhos. A Sofiazinha começou a
discutir e não queira saber. A minha mulher a princípio não abria a boca. Ela
é muito calada... Mas depois começa também a dizer das suas... Olhe, doutor,
não sabia para que lado me virar. Eu nunca assim vi uma coisa. E de noite?
Primeiro que sossegasse? Eu só lhe dizia: “Ó mulher, mas porque é que te
ralas com isso?”, E ela logo: “Cala-te que não sabes o que dizes”. Assim
mesmo: Não sabes o que dizes. E eu, é claro, calei-me... Ela é a minha rainha
e eu obedeço. E de manhã pôs-se-me lá diante do espelho a olhar-se, a olhar-
se...
- Mas então: riram ou discutiram?
- Quem riu fui eu. Oh, aquele Chico, aquele ladrão... Tem muita graça,
aquele maroto. Tem muita piada...
Alfredo dera a volta à Praça, já despida de crisântemos, atravessara a Rua
dos Infantes, sempre embaraçada de peões, e, chegado à rampa do Liceu, quis
descer até ao portão. Mas impedi-o disso para lhe facilitar a manobra do carro
e ali ficámos um momento, dominando a planície, que se estendia ao fundo.
- Então aqui o deixo, doutor. Passe muito bem.
E já quando me afastava:
- Doutor! Olhe que a minha mulher quer falar consigo.
- Quando quiser. E a propósito de quê?
- Não me disse. Mas imagino que é ainda por causa da galinha.
Mas com quem falei primeiro foi com Sofia. Era sábado e chovia desde
alta noite. Lembro-me bem dessa primeira chuvada de Inverno, porque a
chuva era para mim o abalo da revelação e abre como auréola o halo da
memória ao que nela aconteceu.
Subtilmente, aliás, é à vibração inefável das horas da natureza que eu posso
reconhecer melhor o que me aconteceu no passado. Um sol matinal, a
opressão das sestas no Verão, o silêncio lunar, os ventos áridos de Março, os
ocos nevoeiros, as massas pluviosas, os frios cristados são o acorde
longínquo da música que me voa, tecem a harmonia vaga de tudo o que fiz e
pensei. A minha vida assinala-se em breves pontos de referência. Mas esses
pontos, como os de uma constelação, abrem-se ao que os ressoa como música
de feras, vêm de longe até mim não no que os concretiza mas na névoa que os
esbate como um murmúrio nada. O passado não existe. Assim me acontece às
vezes que toda a minha vida de outrora se me revela ilegível: o que a forma
não são factos, sentimentos que se analisem ou reconheçam, mas os ecos
alarmantes de um labirinto onde a chuva, o sol ou o vento repercutem e quase
criam uma estranha vibração. São vozes que me chamam dos quatro cantos
do espaço e eu não ouço senão quando a aura das horas mas lembra. Daí que
me acusem por vezes de retórico. Ainda um dia hei-de falar desse equívoco
da retórica. Porque não há retórica apenas da inflação da garganta. Há-a do
empolamento como do esquematismo; do calor como da frigidez; do sentir
como do pensar; da emoção como da inteligência. Se Hugo é retórico, é-o
também Mallarmé; Lívio como Tácito, Sá-Carneiro como Pessoa, Camilo
como Eça, Régio como Torga. A retórica pode não separar um autor de si
próprio: separa-nos a nós dele, quando o não aceitamos. A própria vida será
retórica para aquele que está morto... Hei-de falar disto aos meus alunos.
Conheço uma certa emoção das horas, sei da aparição dos instantes-limite,
das vozes submersas, e gostava de dar aos outros essa notícia. Há uma vida
atrás da vida, uma irrealidade presente à realidade, mundo das formas de
névoa, mundo incoercível e fugidio, mundo da surpresa e do aviso. Assim o
próprio presente pode ter a voz do passado, vibrar como ele à obscuridade de
nós. A minha retórica vem do desejo de prender o que me foge, de contar aos
outros o que ainda não tem nome e onde as palavras se dissipam com a névoa
do que narram.
Como não falar, pois, desse sábado pluvioso, com uma massa de cinza
balançando no espaço até aos limites da vertigem? Revejo-a, a essa hora de
água, desde as janelas da sala de jantar, debruçado para a Praça numa espera
despovoada. Os carros passam embrulhados de resguardo, estrugindo nas
toalhas de água, as casas descem unidas a colina, escondem-se algumas no
refúgio da planície. As horas dos sinos escorrem pela face dos prédios, uma
flacidez gomosa ingurgita-me nos membros, na garganta. Tenho de preencher
o tempo até ir dar lição a Sofia. As arcadas enchem-se de gente silenciosa que
olha a água a cair, o café fumega de capotes molhados. Na livraria, o chão de
tábuas apodrece de humidade, o ar empasta-se da poalha de água que o vento
atira pela porta. Saio enfim quando a hora chega.
Rente aos muros, desço a rua, onde só os carros passam desarvorada-
mente. De gola erguida e sem chapéu (porque sempre me seduziu o ar de
aventura e uma cabeça descoberta). aperto contra mim, de mãos nos bolsos, a
minha pasta miserável de professor. Venho para a lição, como sempre, com
uma corda dorida na garganta. Espero algum tempo depois de tocar à porta e
finalmente o trinco estala e a criadita aparece, toda armada de folhos brancos.
Mas, depois de tirar a gabardina e de a dar à rapariga, reparo que no limiar de
uma sala, à esquerda Sofia me esperava toda de preto. Não se moveu.
Encostada, pelo lado de dentro, à meia-porta fechada, a aresta da porta
cortava-a de alto a baixo, dividindo-a pelo meio dos olhos, dos seios, das
pernas. A criadita desaparecera, ficáramos nós, sozinhos, sob a cúpula
claustral do átrio, com o rumor fantástico da chuva na rua. Avancei enfim;
Sofia, sem se desencostar, entregou-me a mão esquerda, abandonada, como
se ma desse a beijar.
- Sofia!
- Olá, doutor.
Desencostou-se então da porta e foi a uma prateleira tirar livros. Veio
depois com eles, erguidos ao alto nas pontas dos dedos, como nos cafés os
criados transportam às vezes as bandejas. O vestido de veludo negro, colado
ao corpo, esticado até ao pescoço e até ao limite dos braços finos, iluminava-
lhe a face jovem, a doçura quente da nuca sob os cabelos puxados para o alto,
a fragilidade das mãos, tão brancas e subtis. Mas o que sobretudo se
iluminava era o seu maravilhoso olhar, esse olhar de uma violência ingénua,
secreto e húmido e fulgurante como um primeiro pecado. Estávamos sentados
a um ângulo de uma mesa, Sofia pousara as mãos sobre o livro aberto. E
então irresistivelmente tomei-lhas nas minhas. Palpava-as, olhava-as, olhava-
as na sua alvura de creme, nos fios azuis das veias. Os dedos curvavam-se,
lineares, até ao bico das unhas, em curvas longas como o eco de uma harpa.
Mas sem gestos, abandonadas à minha procura, pareciam-me mortas. Então
virei-as: por dentro tinham menos mistério, menos vida. Ou talvez que tudo
fosse de estarem frias. Tive um gesto de as aquecer. De súbito, porém,
qualquer coisa se separou em mim mesmo e senti que o meu gesto se
quebrava. Ergui os olhos a medo para Sofia. Ela olhava-me impassível:
- Tenho sempre as mãos frias. Mesmo no Verão.
Como eu já lhe não investigava as mãos e lhas tinha para ali
desaproveitadas, ela retirou-mas para procurar um estojo, donde tirou uma
longa boquilha em que acendeu um cigarro.
- Que me diz ao meu escritório privativo?
Era uma sala pequena de abóbada alta, dois maples, uma mesa, estantes e
alguns quadros. Uma grande janela dava para o pátio deserto, onde a água
estalava sem cessar. Sofia acendeu a luz e fechou a janela. E neste claustro de
intimidade, com a chuva afastando-nos a cidade para longe, sentíamo-nos
numa solidão para os dois e era como se o mistério de Sofia me fosse mais
revelado ou menos invulnerável.
- Está-se bem aqui - disse eu.
O calor fechado do irradiador eléctrico, o silêncio inconsútil, vigiado pela
chuva, a nossa presença defendida, como que legitimavam a minha excitação,
o apelo voraz que subia em mim. Mas havia a conveniência, esse plano
neutral em que podíamos comerciar.
E perguntei:
- Estudou a lição?
- Não peguei em livro - disse ela, sorrindo entre o fumo do cigarro. - Não
está contente?
- Contente? Porquê?
- Ouça, doutor: se alguma coisa me preocupou sempre foi ser consequente,
unir o que faço ao que... Porque não faz o mesmo?
- Como não faço o mesmo?
- Oh, não faz... Se o fizesse, já me tinha beijado.
A violência que me apanhou não foi súbita.
Houve um silêncio de atordoamento. Até que na intimidade dos meus
ossos, dos meus nervos, uma raiva de dentes me endoideceu. Sofia estava na
minha frente, frágil e intensa como uma fibra de nervo; e eu sentia-a toda
colada ao meu apelo, aniquilada, num esmagamento de mãos torcidas, de
mastigação... Ergui-me trémulo, apoderei-me dela, cerrei-a violentamente no
meu calor, tentei reduzi-la toda a esse ápice incandescente, onde a vida
infinita se me centrava. Mas ela, com uma energia que era eficaz por me pôr
diante de mim, por vir dela - um ser frágil -, repeliu-me com raios no olhar.
Senti-me miserável como quem é apanhado nu: o que era do meu mistério,
do meu segredo, ficara ali exposto, sem que Sofia me pagasse a minha
revelação com a revelação de si própria. E reuni os meus papéis, preparando-
me para sair. Ela então veio sobre mim, já humilde, curvada, pagando alguma
coisa da minha humilhação com um pouco da sua fraqueza.
- Nada aqui tenho a fazer - disse eu.
- Fique, fique.
- Não se divertiu bastante?
Sofia então tomou-me bruscamente a cabeça nas mãos e deu-me um beijo
rápido na boca. Mas eu sentia-me vexado. Tinha, aliás, a certeza de que, se
tentasse de novo tomá-la, de novo havia de me repelir. Sentei-me, por fim,
em silêncio, acendi um cigarro. Uma onda forte de chuva batia agora no
pátio, irradiando a presença de tudo para uma desolação imemorial. Sofia
acendeu também um cigarro; e a sala, abafada de fumo, começava a segregar
um cheiro a vício nocturno.
- Que mais deseja dizer-me? - perguntei.
- Ah, você não entende, você não entende... O Chico contou em casa da
minha irmã o que você lhe disse. E eu sabia-o, eu sabia. Você não trouxe
nenhuma novidade. Aliás o Chico não soube contar. Mas foi como se
soubesse, porque eu já conhecia tudo.
Calou-se um momento, quebrando a cinza do cigarro. Num instante a porta
da rua abriu-se, alguém entrou, limpando os pés no tapete, trocando com
alguém palavras ininteligíveis.
- Não se preocupe. Ninguém vem aqui. Dei ordens terminantes.
- Não estou preocupado. Estou só a ouvi-la.
Eu reconciliava-me pouco a pouco com ela. De novo se me erguia,
fascinante, no seu corpo selado de luto, nas suas mãos agudas, de gestos
oblíquos, no seu olhar ilícito e inocente. Sofia falava. Em momentos
fulgurantes, pelo meio da noite, ela descobrira também a vertigem da vida, da
sua pessoa, da gratuidade desse absurdo milagre, da interrogação para o
amanhã: Eu já conhecia tudo. Ou talvez não tivesse descoberto
verdadeiramente e só agora, ao aviso da minha palavra, tudo se lhe revelasse
em violência, um bater descompassado do coração. Que havia, pois, mais
para a vida, para responder ao seu desafio de milagre e de vazio, do que vivê-
la no imediato, na execução absoluta do seu apelo? Eliminar o desejo dos
outros para exaltar o nosso. Queimar no dia-a-dia os restos de ontem. Ser só
abertura para amanhã. A vida real não eram as leis dos outros e a sua sanção
o seu teimoso estabelecimento de uma comunidade ,para o furor de uma
plenitude solitária. O absoluto da ida, a resposta fechada para o seu fechado
desafio só podia revelar-se e executar-se na união total com nós mesmos,
com as forças derradeiras que nos trazem de pé e são nós e exigem realizar-se
até ao esgotamento. Este eu solitário que achamos nos instantes de solidão
final, se ninguém o pode conhecer, como pode alguém julgá-lo? E de que
serve esse eu e a sua descoberta, se o condenamos à prisão? Sabê-lo é afirmá-
lo! Reconhecê-lo é dar-lhe razão. Que ignore isso o que ignora que é. Que o
despreze e o amordace o que vive no dia-a-dia animal. Mas quem teve a
dádiva da evidência de si, como condenar-se a si ao silêncio prisional?
Ninguém pode pagar, nada pode pagar a gratuidade deste milagre de sermos.
Que ao menos nós lhe demos, a isso que somos, a oportunidade de o sermos
até ao fim. Gritar aos astros até enrouquecermos. Ilumi-narmos a brasa que
vive em nós até nos consumirmos. Respondermos com a absoluta liberdade
ao desafio do fantástico que nos habita. Somos cães, ratos, escaravelhos com
consciência? Que essa consciência esgote até às fezes a nossa condição de
escaravelhos.
Calou-se enfim. Uma beleza demoníaca, como de uma criança assassina,
fulgurava-lhe nos olhos líquidos, na face branca, na boca ávida e sangrenta.
E um apelo de uma união trágica e blasfema subiu-me pelo corpo como um
grito estriado, uma raiva distorcida com longos olhos cho-rando... Então,
quase serenamente, tomei Sofia nos braços e ambos nos sentimos perdidos de
aflição como no último amor de dois condenados à morte.
Quando voltámos a ouvir a chuva no pátio e nos reconhecemos enfim um
ao outro, o olhar que trocámos foi quase de amargura e de piedade. Mas, após
um longo silêncio, Sofia acabou por sorrir-me, porque era ela talvez quem ali
apenas poderia proteger:
- E a lição? Não damos hoje a lição?
Trabalhávamos agora o canto 4º da Eneida. Ela abriu o livro:

“Anna soror, que me suspensam insomnia terrent”. Quis novus hic nostris
successit sedibus hospes.”

E traduziu, já séria, fulminando-me quase de gravidade:

Minha querida Anna, que fantasmas nos trazem desvairadas! Que


assassino foi este que entrou na nossa casa!

Mas subitamente parou, sorriu-me outra vez, beijou-me devagar nos olhos,
quase com devoção:
- Meu querido assassino...
- Mas hospes não significa...
- Meu bom assassino...
VIII

A chuva cessara quando saí, a tarde escurecia rapidamente. Sentia-me


perturbado e pus-me a percorrer a cidade sem destino. Trazia ainda nas mãos
um calor de sangue, trazia em todo o corpo um sabor morno à humidade
elementar onde o cansaço, à angústia, a plenitude subterrânea anunciam o
esquecimento absoluto e a ressurreição absoluta. Doíam-me ainda os dentes,
as unhas, as junturas dos ossos. Uma raiva milenária centrara-me em delírio
como num acto de desespero. O frémito que se extinguia em mim não falava
a uma harmonia solar mas a um choro solitário de condenado. Assim me
agradava percorrer as ruas como se fugisse de mim. Nos muros brancos
ressumando água, nos pátios e jardins empapados da chuva e que eu entrevia
por portas entreabertas, pelo gradeamento de janelas vazias, nas gentes que
passavam, flácidas como esponjas, no céu espumoso de névoa, no suor de
goma, já frio, do meu corpo, eu sentia a lassidão que entorpece e cerra os
olhos e inventa um abandono de caminhos desertos ao vento. Saio à estrada
de circunvalação, vou ao longo da muralha com os seus dentes descarnados
em arranque para o vazio... Como a minha cólera Se obscura... Será pois vão
tudo o que sonho? Velho Fausto da pobre ilusão, serás tu, pois, o génio dos
meus dias? E já à hora da procura, da juventude... Sou novo e sei. Como mo
não sabe a vida? Pergunto-o, . agora que passo sob os grandes arcos do
aqueduto, e é como se me coroasse o triunfo de uma ruína. A estrada de terra
batida enlameia-me os passos, os carros fogem, estrugindo na lama, crianças
brincam em poças de água negra. Do alto da rampa do Liceu, aonde chego
enfim, olho atrás um momento a planície saqueada. As terras ensopadas
fumegam em silêncio. A espuma da neblina amassa o horizonte, um arrepio
de viés, como um esquema de vidros, inteiriça o mundo à ameaça da noite...
Só ao longe, para as bandas de Évora-Monte, um rasgão no céu abre ainda
uma mancha de sol - um facho erguido sobre um campo de ruínas... Encosto-
me ao gradeamento do largo e penso para o deserto com o fumo do cigarro.
A noite veio de súbito quando as luzes se acenderam.
Bruscamente, porém, a imagem de Sofia estampou-se-me nos nervos.
Precisava de a ver de novo, de cerrar o mundo todo no meu punho sangrento.
Atravessei a cidade, desci a sua rua, bati à porta. Que iria dizer? Oh, Sofia,
nada, nada. Ver-te, ver-te só. Ouvir-te ainda, mergulhar até às fezes da minha
condenação. Por milagre ela estava ainda no escritório, veio logo até à porta.
(Esperava-te também, esperava-te também....) Que era a vida e o seu sonho e
as suas conveniências? Ser feliz, ser feliz. Esgotar no instante toda a ferragem
e velharia de quantos problemas e interrogações e amarguras. Fui até ao
âmago, ao extremo limite da procura, até ao ponto incandescente onde as
minhas angústias e a minha raiva se consumiam, se largavam na babugem de
uma boca que espreme todo o seu fel e todo o seu sonho... Mas tudo era tão
excessivo que um grito de dor me vibrou desde as unhas dos pés. Numa estria
de fogo, ardiam-me os rins, o estômago, a garganta asfixiada, a minha língua
de veneno...
Saí enfim. E quando transpunha a porta, Madame Moura, ao que julguei,
fingia descer a larga escadaria para uma sala ao lado. Veio até mim, tomou-
me nas suas a minha mão e apertou-ma longamente:
- Como vai a nossa estudante?
Falava por cima do que estava dizendo com as mãos.
Respondi às palavras como pude:
- Vai bem. Vai muito bem.
Sofia, encostada à meia-porta, que a cortava na vertical, sorria apenas,
longe do que dizíamos ambos.
IX

A vida recomeçou. Todos os dias de manhã subo a Rua da Selaria para o


Liceu, ouço a praga de carroças que atroam a cidade. Perto do nicho do
senhor dos Terramotos, que lhe fica ao alto e quase em frente, o cão espera o
osso da janela lá de cima. Com a chuva, encolhe-se a tremer no limiar de uma
porta. Eu rodeio a Sé, desço uma escada íngreme junto de três arcos
solitários, desço a rampa, recomeço as aulas. Fixar uma vida em torno de
uma ideia, de um sentimento, como é difícil! à unidade que nos pré-existe a
cada um, à unidade de sermos, a vida imediata, quotidiana, é uma selva de
caminhos, de veredas, de confusa vegetação. Tão fácil nos perdermos! O
mais grave, porém, é que na sua rede muitas vezes não sentimos que nos
perdemos. Cada caminho impõe-se-nos na sua presença imediata. Um
caminho é o caminho em cada instante que passa. Muitas vezes o pensei, aos
domingos, no mercado matinal, junto de São Francisco. Aldrabões de feira
fecham um círculo de atenção, impingindo o seu vigário; vendedores de
ferro-velho oferecem restos de arados, parafusos, três elos de corrente, bacias
descascadas, armações de lavatórios, espelhos, garrafas vazias, rolhas, fivelas
de cintos; livreiros vendem almanaques antigos, folhetos de cordel, livros de
missa, volumes de folhetins, compêndios escolares de outrora; há os
vendedores de fatos usados, de chapéus velhos; há os vendedores de louças,
velho calçado; há ainda, perto do muro do jardim, os vendedores de blocos de
cal, com as suas carroças pousadas nos varais, os cavalos desatrelados
ruminando a ração. Mas cada fragmento deste lixo está exposto
preciosamente, porque lhe pertence uma fracção do nosso interesse, do nosso
entusiasmo. Pobre feira da ladra - a vida. Eis-me passando para o jardim, para
beber o sol do Inverno. Mas ouço os aldrabões e quedo-me e olho o estendal
de ferrugem, de sebo livreiro, à face das grimpas da velha igreja.
Um dia, ao descer para o Rossio, que é um vasto largo deserto onde gosto
de deambular, encontrei Cristina com a criada, a Lucrécia, subindo a arcada
para a Praça. Vinha seriazinha, com uma gravidade que nela não era imposta
pela educação - essa forma de antecipar o adulto na criança. Com o seu
casaco de creme, um barrete azul de malha apertado no queixo, os cabelos
louros saindo para os ombros, caminhava certa com a criada, saudando
senhoras solenes, armadas como tronos, que lhe sorriam, homens postados às
portas das lojas, lavradores de botas de bezerra e de colarinhos sem gravata,
travados de ouro. Porque Cristina era muito popular.
- Então, Cristina! Foste à tua lição de piano?
- Não, não fui à minha lição de piano. A minha professora vai-me dar as
lições a casa.
- Então aonde foste?
- Fui ver a Ana, que está doente.
- Doente?
- Sim. Ontem tinha febre. Mas hoje está melhor.
Ana morava ali perto e resolvi bater-lhe à porta. Quando, porém, uma
criada abriu e perguntei pela saúde de Ana, Alfredo, que saía, reconheceu-me
e fez-me entrar. Era uma casa antiga, com um grande átrio frio, uma escada
ao fundo com corrimão de granito. A meio do vasto átrio, um grande pote de
cobre, como em casa de Moura, centrava aquela nudez de luxo de velhas
eras. E uma vez mais eu senti ali, como em casa de Moura, como em tantas
outras as entrevistas num ocasional abrir de portas da rua, a presença fria de
tempos remotos, essa presença de ossos e de linhagem, um opaco silêncio de
grutas, um eco de velhos senhores com botas ferradas em madrugadas de
gelo, a memória póstuma de uma rudeza primitiva. Ana estava sentada ao
fogão numa pequena sala aberta de portas para todo o lado e que os pesados
reposteiros mal defendiam. Ergueu para mim os seus grandes olhos de fogo,
sorriu com o seu dente saído, que dava ao seu corpo vibrante uma graça
infantil de imperfeição.
- Então que foi isso? - perguntei.
Mas Alfredo interrompeu-me, de mãos dadas à frente, curvando-se para
nós com a sua bochecha rosada:
- Bem, meus caros amigos. Vocês ficam agora aqui no quentinho a
conversar, que eu vou aí adiante à minha vida. Meu caro doutor... Adeus,
Aninhas, minha rica... O Chico também deve estar a chegar.
Sentei-me num sofá em frente de Ana. A lenha estalava no fogão, pelos
vidros de uma janela eu via adiante, descendo para os lados da estação, uma
floresta de chaminés brancas, flores de gesso nos ângulos das casas, grandes
terraços gradeados de ferro.
- Mas então? - perguntei ainda. - Uma ponta de gripe? E já melhor?
- Coisa sem importância. Uma dor de cabeça, umas décimas de febre. Tudo
passou. Fui sempre muito saudável.
- Sim, sim. Diga-me, dona Ana...
- ... Ana. Sou só Ana. Tenho aqui o bilhete de identidade...
- ... Diga-me, Ana: nunca pensou em concluir o seu curso? (Um curso de
Letras que eu sabia ter interrompido para casar.)
- Ouça, doutor Alberto...
- ... Sou só Alberto. Tenho aqui o bilhete de...
- Ouça, Alberto: o curso não me entretinha senão mais três anos. E, de
resto, eu não quero entreter-me...
- Decerto - concordei. Mas o curso não era para entreter, era para lhe firmar
uma... uma consciência. Sem dúvida, num curso pouco se aprende. Mas dá-
nos pontos de referência, talvez nos dê uma certa forma de responsabilidade.
Ana calou-se, tirou de uma cigarreira de pele branca um longo cigarro, que
acendeu. Depois, bruscamente, mas calma, sacudindo a cinza, perguntou-me:
- Que há entre você e Sofia?
A velha ordem de pedagogo, que vivia em mim, incendiou-me de remorso
e cobardia. Mas reagi:
- Sofia sabe o que quer...
- Sabe o que quer... Todos julgamos que o sabemos. E depois um acidente
qualquer vem-nos provar que não.
- Você não sabe, Ana?
Ela olhou-me com o seu olhar iluminado, como se quisesse defender-se de
uma acusação, não minha, mas dela. E, um pouco transtornada, increpou-me
vivamente por ser ali a testemunha dessa acusação:
- Quem julga você que é? Que notícia extraordinária pensa que nos traz?
Tenho a minha vida resolvida há muito tempo e não é qualquer pessoa,
qualquer ideia que pode transformar-me.
- Mas, Ana, eu não disse nada, eu não disse. Você é que afirmou que um
acidente qualquer nos pode mudar.
Ah, como te torces dentro de ti! Também tu então nada sabias de ti!
Também eu te trouxe a notícia das vidas onde hás-de acender a nova luz.
Céus! Mas tão eu fui necessário! Todo um mundo duvidoso esperava o novo
Messias! Sofre, amiga! Trago comigo a destruição dos mitos que inventaste,
desses cómodos sofás em que instalaste o teu viver quotidiano, como esse em
que estás sentada. Mas eu não te ensinei nada! Ninguém nos ensina nada,
talvez, minha amiga. Só se consegue aprender o que nos não interessa.
Porque o mais, o que é do nosso fundo destino, somo-lo: se alguém no-lo
ensinou, não demos conta disso. Ensinar então é só confirmar.
- Resolvi definitivamente os meus problemas com os deuses - clamou Ana
ainda. - Definitivamente!
Mas eu não falara ainda de deuses. Sabia bem, todavia, como a minha
notícia podia trazer o seu eco. Também eu liquidara as minhas contas com os
céus...
- ...não sei se definitivamente, Ana. Mas creio que sim. Quem pode estar
prevenido contra as evidências do futuro? A parte de nós que é
transaccionável, que está regrada para os gestos, o código das ruas, essa
poderá mudar-se talvez, porque é postiça quase sempre. Mas a iluminação de
dentro, a pura presença de nós próprios é o nosso ser. E esse não se muda
senão quando ele quer. Uma vez...
E comecei a contar. Eu andava no liceu, estava no sétimo ano...
Mas subitamente Ana estendeu o braço com um dedo em riste e veio pôr-
mo diante:
- Não conte. É tudo tão doloroso...
Os olhos vidrados brilhavam.
- É tudo tão simples - disse eu. - Tudo o que é forte e decisivo acontece
como ter fome.
Sentia-me aturdido, com vagas de febre nos ouvidos. A janela
multiplicava-se numa fieira de janelas paralelas ou num esquadriado de
rectângulos até à planície, uma dor penetrava-me no crânio como um prego.
Ana pôs um cepo no fogão, um gato preto com uma fita vermelha ao pescoço
e um guizo subiu para o sofá. Moveu-se lesto e silencioso como uma insídia.
Depois, ronronando, de cauda espetada, rodou em torno do busto de Ana,
encostando-se-lhe, de patas tensas, como se a empurrasse, enrolou-se-lhe por
fim no regaço. E ali ficou assim, com a sua presença inquietante, oblíqua de
avisos nos olhos lúcidos que entreabria com um lampejar metálico. Um
silêncio trémulo descia com a tarde que alastrava pelas faces planas da
cidade, pelo horizonte da planície nula. Errava no ar um vago odor a
remédios e talvez que a minha vibração de febre fosse como um seu contágio.
Ana olhava-me, direita, desde uma eternidade imóvel que vinha das esfinges,
dos desertos, civilizações perdidas, da obscuridade de todos os ses e de todas
as interrogações. E eu projectava-me todo, fascinado, para aquela pessoa
inteira.
Habitada no limite dos seus seios fortes, das suas ancas volumosas e
solenes como a noite germinara, das suas mãos imóveis, do seu dente
ingénuo de imperfeição. E, ao irresistível apelo daquele milagre avulso,
daquele mundo ignorado, fantástico e sem importância, outra vez me inundou
a torrente de perguntas, de espanto, de exclamações absurdas e eram o rio
caudaloso que tentava exprimir-me e onde só os destroços dessa minha
alucinação podiam dizer espalhadamente o que eu queria dizer.
O instante em que me afirmo é uno como um ronco. Bruta expressão de
presença, flagrante indiscutibilidade. Mas eu sei que lhe pré-existem e o
erguem quantos ventos e aluviões e estrume e infinitos sóis. Somente agora
que são eu, não os entendo. Sei que mudei, mas não sinto ter mudado. Se
tento recuperar o passado, não o consigo. Os factos que verdadeiramente
recordo não têm imediatamente significação. Porque o que eles significam é
mais violento e antigo do que eles.
- Escurece - disse Ana. - É Melhor acender-se a luz.
- Sabe que o meu pai era ateu? E que minha mãe foi sempre o que se
chama uma beata? Meu pai explicava-nos a vida, o universo, tinha sempre
respostas naturais para as nossas perguntas. Minha mãe casou com ele, amou-
o sempre, mesmo por aquilo que o separava dela. Creio que o julgava forte. O
pai de minha mãe era um anticlerical esturrado. Com pêra e tudo. Fui à igreja,
fiz a minha comunhão. O padre ia a nossa casa e arrotava. Depois soube que
tinha filhos. Bem: eu tinha um Céu, tinha Inferno, Deus Padre, Deus Filho, o
Espírito Santo, anjos, diabos, a aparelhagem completa para a vida funcionar
bem. No liceu; quando passava um padre, os estudantes mais velhos, alguns
de barbas, gritavam:
“Quá;” ou diziam: “Já perdi uma coroa”. O meu irmão “quá” Evaristo era
terrível. Blasfemava como um espanhol.
Uma vez, muito bêbedo, meteu-se no coro das Filhas de Maria durante o
mês da Virgem, que é em Maio e pôs-se a cantar desafinado. Puseram-no na
rua e foi aclamado. O meu irmão Tomás já não ia à missa. Mas não dizia mal
dos padres. Foi para Lisboa e recusava-se a ir à desobriga. Minha mãe
chorou, ele abraçou-a e o meu pai sorriu. A certa altura eu comecei a não ir à
missa. Outras vezes ia. O pecado começava a ser-me familiar. Não sei porque
não ia à missa, não significava nada. Mas rezava ao deitar.
Era um jeito, como ler antes de apagar a luz. Um dia pensei: “Que
estupidez.” Os gestos reformam-se. Porque os gestos duram. Como um
cadáver. Cortei com o gesto e apanhei uma insónia. Na noite seguinte já
dormi. E uma vez pensei: “Afinal, Deus não existe”. Não existia mesmo. Era
evidente, natural, claro, como era claro não haver Pai Natal. Mas era agora
evidente desde as raízes, como à superfície mecânica do dia-a-dia. Evaristo
blasfemava, mas conformava-se e desobrigava-se e, se não ia à missa, era por
despeito, como quem se vinga. Depois fui político. Ser avançado era bom e
verdadeiro como ter força e ser novo. Depois deixei de ser novo e de fazer
barulho. E, quando não houve barulho, ouvi vozes obscuras, submersas a esse
mesmo barulho. Depois a vida não teve significado, porque me estava sem
emprego. Bom: então, deste grau zero, descobri que estava vivo, que existia,
e era eu. E agora tento salvar essa extraordinária descoberta, pô-la a funcionar
com o universo e a morte. Troilà.
O gato preto ergueu-se do regaço de Ana, espreguiçou-se, arqueando o
dorso, abrindo a boca de dentes agudos. Depois saltou ao chão, com um
baque no estofo almofadado. Ana meteu outro cepo no fogão.
Agora, as faces brancas das casas tomavam um tom azulado, baralhavam-
se numa intercepção de planos, como num jogo de axiomas estéreis.
- Que toma? - perguntou Ana, erguendo-se a uma estante envidraçada de
álcoóis. - Há uísque Vat 69 (não faz mal a ninguém), há brande, Coineau,
Porto, Madeira, conhaque Napoleão e Carlos I. genebra...
- Uísque. Com sifão.
Trouxe o material, prepararam-se as bebidas.
Abriu latas de amêndoas, pinhões, amendoins. E, bruscamente, mas com a
calma habitual, a calma que era nela uma tensão a explodir, Ana perguntou-
me:
- Porque é você tão pantomineiro?
Onde conversávamos nós, Ana? Em que ponto cimeiro entre espaços
desabitados? Pergunto-o agora diante de outro fogão, aqui, na velha casa,
aberto de limiar. Não há presenças aqui senão as das origens. Minha mulher
dorme. Estou só. Habito o início, o silêncio de mim próprio, onde a verdade é
nua como o luar na montanha.
Pousei o copo bruscamente, verguei a fronte acabrunhada. O gato
empinou-se-me aos joelhos, fitou-me com os seus olhos sulfúricos, miou.
Sacudi-o, ele bufou, de dentes à mostra, sapateando as patas no ar, de garras
desembainhadas.
- Porque me chama pantomineiro?
- Tudo comédia, tudo comédia. Deus vive no seu sangue como um vício.
Deixar de beber, de fumar. Mas o seu mundo é o do ópio e do álcool.
- De que tem você medo?
Ela empalideceu, gastou três fósforos para acender o cigarro:
- O moralista é normalmente um pecador. A moral vivida não se prega.
Não pense que vem perturbar-me. O que mais detesto num demó-nio não é o
mal que faz: é a sua pedantice. Estamos todos prevenidos, estamos todos
prevenidos!
- Ana!
Ela não falava alto senão com os olhos. Mas esses eu ouvia-os até me doer
a cabeça. Como numa fúria de injúrias a um condenado... Depois pegou no
gato, pôs-se a beijá-lo, a esfregar-lhe a cara no focinho, a fazer-lhe cócegas
no ventre felpudo. E, sem uma transição, arremessou-o ao tapete com um
estrondo e um tinir de guizo. Alongou o pescoço, falou-me em voz surda, de
augúrio:
- E julga você que Sofia é sua? Teve já vários amantes! O primeiro foi um
aluno da Escola Agrícola. Depois foi um colega dele. Na praia, uma vez, foi
um homem casado. Em Lisboa, no Carnaval...
- Cale-se!
Ela sorriu, enlevada, fechou os olhos e recostou-se. Eu ergui-me para sair.
Mas pouco depois a porta abria-se e Alfredo apareceu:
- Já embora, doutor? Foi por eu chegar?
- Não. Tenho de ir indo.
- Deixe-se estar mais um bocadinho. Trago uma notícia que também lhe
interessa. Adeus, Anica, minha rainha. Mas sabem o que sucedeu?
Não me sentei, mas não saí logo. Alfredo, porém, depois de beijar a
mulher, instalou-se numa cadeira, estendendo as botas de cano para o lume.
Ia falar mas suspendeu-se ainda, indicando-me o sofá.
- Sente-se, doutor.
Ana interveio, inesperadamente:
- Sente-se. E ouça: jante hoje connosco.
Sentei-me, acendi um cigarro.
- Pois a coisa é uma maçada - confessou Alfredo Cerqueira. - Então não
querem lá ver uma destas? Estive agora com o Ramiro dos artigos eléctricos
(e a propósito, Anica, o secador do cabelo não tem conserto. A bobina ou o
dínamo tinha de ser enrolado à mão e levava horas e horas e não tem
pessoal). Mas então não querem lá saber que a família do Bailote vai
processar o meu sogro?
- Quem é o Bailote? - perguntou Ana.
- O homem que se enforcou, o tal que já não tinha mão para semear.
- Mas que tem o meu pai com isso? - interveio ela ainda.
- Pois isso foi o que eu logo lhe disse. Então que é que o meu sogro tem
com isso? Que o meu sogro o desanimou. Olha o Bailote... Então não
conhecia? Era muito... tinha muita piada, aquele ladrão. Uma vez, doutor...
Contou. Não o ouvi. Baralhavam-se-me as ideias e tremia. Queimavam-me
a boca palavrões de insulto, de vingança, precisava de vexar aquela tipa, que,
de perna cruzada, baforava um fumo feliz. A ameaça sobre o pai decerto a
não comovia. Gozava a renda das ofensas que capitalizara em mim. Sou
então um aldrabão, senhora? Preciso então de valorizar a minha fraqueza à
tua face? Mas porque me desafiaste? Não preciso do teu apoio, do teu
interesse, da tua complacência! A minha vida é minha, sou eu que a resolvo
contra a tua arrogância, o teu escárnio imbecil. Deus morreu, Deus não é a
minha meta, é o meu ponto de partida. Assumo a minha fraqueza como
assumo as minhas tripas. Na miséria ou na glória, sou eu! E como é reles que
fales na tua irmã. Que me importam os amantes que teve? (É claro que o meu
sogro vai ter com...) Onde me queres ferir? Em que parte da minha miséria?
(...mas o advogado...) Sofia é maior do que a tua vilania. Sabe o preço dos
seus sonhos e paga-os sem hesitar. Aliás, eu não a amo; Ouço nela a voz dos
actos que unificam, dos gestos que resolvem a vida por uma vez. (Eu disse
logo ao Ramiro: - Que é que o advogado há-de...) Não, não quero suicidar-
me. Quero achar a evidência que procuro, estabelecer nela a minha vida em
plenitude. Mas o grito de Sofia imita-a no esquecimento. Esquecer, unir,
vertigem... os teus olhos calmos, Ana, o homem que se enforcou, estava uma
tarde bonita, Ana, uma luz pura, filtrada em violeta, uma alquimia de ouro, as
azinheiras estáticas, a sua sombra em cauda solene (...porque a questão é só
esta: “que lei é que...)”, onde a grandeza da vida? Não na qualidade do sonho
senão para quem sabe de mais, uma mão que semeie, que se cave fundo,
absorva o máximo de semente, responda ao pedido da terra, à voz da
misteriosa germinação, e o teu pai (nunca o meu erro...), somos todos
culpados, somos todos ignorantes, culpado eu de lhe não dizer: “É tarde já,
meu amigo, não semeies, resigna-te a ser tu semeado, é tarde já”! - que horas
são? Olho o relógio e olho Ana e assim nos esquecemos um instante. Só
então reparo que Alfredo se calara, suspenso sobre nós; há um silêncio
submerso nas raízes da nossa presença. Olho Alfredo, num instante, ele sorri,
mudo, com o seu sorriso oco, à maneira de um velho desdentado. Depois,
sibilino, ri alto e curto eh, eh... Estremeço. Ana emprega a força da sua
naturalidade para restabelecer tudo em verdade corrente. E pergunta:
- Quando é que tu me hás-de dar o casaco, redo? O meu marido não tem
vergonha de andar pela cidade sem um botão no casaco?
Alfredo senta-se-lhe ao pé, “diz “minha rainha” e corre-lhe o cabelo,
exibindo-me a sua posse. Depois deseja saber o que penso da questão do
sogro. Penso que é uma questão sem pés nem cabeça. - Tal qual o que eu
disse logo ao Ramiro. E diz-me, doutor, não conhece a nossa casa?
- Ó Alfredo...
- Minha rica Aninhas, deixe-me mostrar a casa ao doutor. Eu gosto muito
da minha casinha...
E ergueu-se convidando-me a acompanhá-lo. Mal me lembro dela. Mas
recordo bem o quarto, o quarto de casal, onde Alfredo se demorou. Fez-me
palpar o colchão, bater as molas. Ele próprio caiu sentado a todo o peso sobre
a cama, balançando-se com regalo.
- Bela cama, hem, doutor? Estreada há oito dias.
Disse que sim, sem retraimento: Sofia não dormia ali...
- E sabe uma coisa, doutor? Quando quiser uma cama, vá ao Romão das
Portas de Moura. Isso é que é um artista de se lhe tirar o chapéu, o ladrão.
Olhe só para isto!
E tornou a cair sobre o colchão, provando a comodidade das molas. Eu
estava enjoado - ou não bem isso, talvez: desconcertado. Quem era aquele
tipo? Apenas um idiota? E que pretendia ele de mim Circunvaguei ainda um
olhar pelo quarto: a cama tinha um dossel com o seu aparato real, um aroma
oleoso impregnava de intimidade todas as coisas; tudo tinha um ar de servido
e uma memória à presença de corpos e suor.
- Está visto, doutor?
Claro que estava visto - e regressámos à sala. Mas com certa surpresa
nossa...
- ...Olha quem aqui está! Pois já vieste, Chiquinho da minha alma? Então
levanta-te e vem cá dentro, que te quero mostrar uma coisa.
“Era a cama” - pensei. Com certeza. Chico levantou-se, risonho, lá foi para
dentro com Alfredo. Ana fechara as portadas das janelas, e um quente de
conforto, em estofos e fogão, unia a sala de agasalho, e esquecimento. Eu não
me sentara, esperando Alfredo para me despedir. Sem me dizer nada, Ana
olhava o fogão, olhava o relógio, até que tirou o termómetro de um sovaco,
desapertando a blusa até à alvura do seu recato:
- Trinta e seis e oito. Está fino. Sente-se, Alberto.
- Tenho de ir indo.
- Já dei ordens para o jantar. Não seja cobarde e desmancha-prazeres.
Uma fúria de cães mastigou-me os nervos. Seria pecado que pudesse
vexar-me, era esse da cobardia. Amigos de Coimbra chamavam-me velho,
cobarde, decadente, só porque eu tinha agora um problema de vida-morte, um
problema metafísico para resolver. Tinha lutado com eles, tinha atirado o
meu punho e o meu berro de combate. Não entendiam assumir a miséria do
homem, enfrentar o que humilhava a sua condição era um sinal de coragem
mais profunda.
- Não sei o que pretende de mim - disse - Mas sei que não sou cobarde.
- Então sente-se - respondeu, enquanto abria a mesa.
A mesa era excessivamente grande para quatro pessoas. Possivelmente
tinha tabuleiros corrediços e esticara-os até ao tamanho maior. Aos topos fica
ela e o marido. Chico e eu aproximadamente ao centro, mas não frente a
frente, de modo que os quatro talheres não desenhavam bem um losango:
Chico ficava mais perto de Alfredo e eu de Ana. A sala era enorme, com uma
frialdade de grandes muros de sombra, e, apesar dos radiadores eléctricos, eu
sentia-me arrepiado de nudez. Comíamos em silêncio, com tinir árido de
talheres. Enchíamos a colher, parávamos como se a sopesássemos,
engolíamos.
Alfredo dedilhava por sobre a mesa uma torrente de palavras, que nos não
atingiam, como a agitação da super-grandeza. Falava de bois, de cavalos, de
raças de coelhos e galinhas e finalmente dos seus canteiros de rosas e de
goivos entalhados junto ao muro de uma herdade, mesmo ao pé da grande
nora.
Sob esta agitação palreira havia entre nós uma conspiração de olhares.
Eram olhares não planos, frontais, de um puro encontro de presenças, mas
longos de cumplicidade, para lá dos olhos.
Em mim, porém, eram só interrogação e suspeita. Era sobretudo Ana quem
instaurava esta clandestinidade, fitando-me a mim, a Chico, sorrindo
transversalmente. Alfredo às vezes interrompia-se surpreso, intervindo no
jogo. Mas logo voltava à sua herdade, aos bois e às rosas, estabelecendo
talvez conscientemente a sua conversa de palavras sobre a nossa conversa
muda. Uma criada veio, levou os pratos da sopa. Os talheres brilham à luz
das lâmpadas, tecem uma ligação de fios de aço. Enchem-se os copos de
cristal, retine no ar uma nitidez de arestas, uma realidade facetada espelha-se
entre todos os objectos. Encostados aos muros, há móveis com uma
abundante exposição de pratas, dentro de montras de vidro, como nas
ourivesarias...
Subitamente, Ana tira flores do centro da mesa e: vem-nos enfeitar a lapela
aos três. Sinto-me lúcido e vão como as pratas dos bombons espalhados pela
mesa, amontoados em taças de vidro. Estou inútil, de mãos na toalha branca,
diante das louças, da fieira de copos de pé alto, dispostos em escala. Que é de
mim?, do que me habita?, do que me esqueço? Então Chico retoma para Ana
uma questão decerto dos dois:
- O Comité de Salvação não pode explicar a tua atitude senão por um
abandono dos princípios.
Vejo-me pelos olhos de Chico, vejo-me pelos olhos de Ana, de Alfredo,
sinto-me pessoa na pessoa Deles, reconheço-me um todo fechado do lado de
lá, edito-me em mim próprio na pessoa deles, sinto-me uma quádrupla força
misteriosa, fechada sobre si. Olho cada um deles, penso o ser estranho de
cada un, com um tipo de gestos, tom de voz, a luz viva que é eles. Penso por
Ana: “Vejo o meu marido um pouco tolo, coitado, vejo o Alberto,
extraordinariamente magro, de pequeno bigode estúpido, porque a você”.
Bigode? Eu lhe digo, Ana, eu lhe digo: para me ajudar à personalidade.
Está satisfeita? Penso no Chico: Vejo Ana, vejo este tipo aqui em frente,
magro e viscoso como as suas palavras, os seus gestos, a sua acção sub-
reptícia. Que sou eu para eles? Que objecto destrutível e sem consequências?
Sobre o aparador há um busto, só agora reparo nele, há em mim sempre um
véu de cegueira, uma distracção congénita mesmo para o que me vive dentro,
é fácil esquecer-me, é fácil esquecer-me, seduz-me terrivelmente às vezes
uma quebreira de febre, de cansaço, longinqua-mente sonho com um estado
nulo de indiferença onde tudo seja igual em mim, a virtude, o bom e o mau.
A minha lucidez é violenta como um ataque. O busto lembra Cristina, tenho a
certeza de que foi Ana quem o fez.
- O Comité de Salvação estranhou a tua falta.
O Comité não era nenhuma agremiação, não tinha estatutos, nem sequer
mesmo essa mística que pertence a qualquer agrupamento. O Comité não
existia. Soube-o logo nesse dia. Era um grupo de pessoas amigas que se
reuniam rotativamente na casa de uns e de outros para discutirem e tomarem
chá.
Nunca fiz parte dessas reuniões, porque justamente eu era o inimigo. Ana
desculpa-se:
- Não pude ir. Estava doente.
- Isso foi depois.
- De que se ocupa o Comité? - perguntei.
Foi o Alfredo quem explicou: Redimir o homem de hoje, preparar o de
amanhã, não é, Chico?
Silêncio. Ouço um guizo sob a mesa, atravessando a casa como um sinal
clandestino: o gato preto. Mas então, preparar o homem de amanhã?
- É preciso prepará-lo todo! - clamei eu.
- Ouça, meu amigo - disse Chico, brincando com o pé de um copo e
fitando-me com os seus olhos pequenos, cravados numa face pálida, de
pedra, pescoço em feitio de caibro. - É exactamente por isso que nos irrita:
que alguém nos venha ainda com notícias dos deuses e da água-benta.
- Quem veio com a caldeirinha de água-benta? - perguntei.
- Olha, Ana, minha rica, tomaste o xarope antes do jantar?
Ana acena com a cabeça, a criada ronda a mesa de novo com meia
travessa, eu escolho ainda uma asa de frango. Ninguém mais voltou a servir-
se e como sozinho, meticulosamente, tentando salvar o desastre. Acabei
enfim. Aceito uma laranja com recheio de chantilly. Chico fita-me de vez em
quando como a fazer pontaria ao meu sossego que o desassossega, Até que
dispara:
- Uma palavra pode ser tão criminosa como uma punhalada. Irra, falemos
claro: que pretende você?
- Ana - perguntei -, arranja-me um café?
- Decerto. Tomamo-lo lá dentro.
E voltámos à sala do fogão. Uma pinha de brasas e cinza derretia-se na
grelha. Ana pôs cepos novos.
Senti que estava bloqueado de hostilidade, até de Alfredo, talvez por me
supor sob a sedução da mulher. Que pretendia eu? Era tão estúpido dizê-lo
assim, entre um mundo concreto, endurecido, estável. Para me explicar, era
preciso uma preparação, não de palavras mas de um estado afectivo, de nudez
íntima, de humildade. Não o dissera já a Ana? Adequar a vida (que é um
pleno de ser, um absoluto, uma actividade necessária) com a morte (que é
uma nulidade integral, uma pura ausência, um nada-nada).
- Sou materialista! - disse eu.
- Você? Materialista? - riu Chico. - Essa tem graça.
- Mas o meu materialismo não é o de um pedreiro.
- Quantas colheres? - perguntou-me Ana, erguendo o açucareiro.
O sonho, o alarme, o mistério, a presença de nós, nós próprios, a
interrogação, o mundo submerso da nossa intimidade - tudo era da vida real,
da matéria de que eram feitas as pedras e os cardos. Sim, os deuses tinham
habitado tudo isso. Mas os deuses estavam mortos. Mortos sem discussão.
Mortos-mortos. Porque recusar a evidência desse mundo? Ele era o homem,
do seu barro, como os dentes e as tripas.
Havia uma tarefa ingente: reabsorver em humanidade natural, em
equilíbrio, todo esse mundo suspeito era suspeito. Mas talvez fosse suspeito
só por o terem viciado: na verdadeira era do mito, os deuses não tinham ainda
nascido.
- É exactamente porque sou materialista que esse mundo me intriga. Se
tivesse deuses para lhes recambiar estes seus bens não me interrogava duas
vezes. Interrogo-me, porque a morte é um muro sem portas.
Há uma luz verde de um quebra-luz a um canto.
Alfredo cabeceia ponderadamente, diz por fim:
- Sim senhor. Muito bem visto.
Tenho-lhe ódio. Para este imbecil, eu falei bem.
Chico bebe cálices de Macieira. Ana tem já o gato preto ao colo.
Imprevistamente, diz-me uma palavra de aplauso:
- Essa é a base última de um verdadeiro humanismo: instalar o homem
mesmo nos aposentos divinos.
É uma frase bonita, talvez, mas não fui eu que lha disse? De qualquer
modo, Ana opõe-se a Chico, toma o meu partido. O telefone retiniu, Ana foi
atender:
- Sim, Cristina. Diz ao pai que estou bem. Não, não tenho febre. Sim...
Quanto a isso, não sei... Está; jantou cá.
Pousou o telefone:
- A Sofia perguntou por si.
Corei. Corei ou não? Senti-me mal. Sorvi uma longa fumaça do cigarro -
do charuto. (Alfredo apresentou-nos uma caixa aberta de charutos).
Agora não há mais nada a dizer. Ana põe um disco a girar no aparelho, que
lhe fica ao lado e ela utiliza pelo dia fora para matar o tempo. Discos gastos.
Ou aparelho mau. Discos já roufenhos.
Folheamos revistas, há um silêncio de harmonia ou de suspensão: Gosto de
olhar o lume, os cepos com uma chama azulada que mal adere à madeira e
desliza por ela aos lampejos. É um lume discreto como uma breve presença.
Não como este diante do qual escrevo aqui, na velha casa, e que enche o
espaço deste salão com um justo augúrio onde me perco e tenho medo. Não
podemos ficar ali indefinidamente, Ana tem de se deitar cedo. Parece-me que
Alfredo já cabeceia de sono. Tem os olhos pequenos e vidrados de álcool
(bebe bastante), uma face menineira de boas cores, um pasmo ancestral em
todo o seu ar ingénuo. Sorri quase sempre. Ouve as nossas conversas,
apartado, fitando-nos alternadamente, balançando às vezes gravemente a
cabeça como se comparticipasse do que dizemos. Mas, quando mal nos
descuidamos, ele reage e fala de outra coisa. Tem portanto também o ar de
dizer. E, como o diz sem reservas, supõe-no importante. Sinto que, pouco a
pouco, a minha pessoa perde interesse para esta gente - para Ana. A minha
presença não é exemplar senão de vez em quando. Pois é uma presença
neutra, desvendada, nivelada. Quanta coisa a concluir de tudo o que se
passou? Ora não o sei. De repente, Chico pergunta-me:
- Já foi crente?
Claro que tinha sido. Quando o deixara de ser?
Pois bem: há uns sete anos. Chico teve um riso cru, o seu riso áspero de
fibra. Era um tipo estriado de músculos, pálido, um cabelo rente e
encarapinhado de atleta. Donde vinha o meu mal? Claro, de uma vocação.
Ele criara-se em puro ateísmo, nada anti. Porque ser anti é correr ainda o
risco de ser pró. Ele era sempre puramente ateu. A Humanidade futura devia
ser puramente ateia.
- Ó Alfredo - disse Ana -, tu não te envergonhas de estar já a dormir?
- Levantei-me às seis, minha Anicas. Mas não estava a dormir. Estava a
ouvir, estava a aprender. Este Chico, e você também, doutor, sim senhor, que
ricas coisas têm dito. Tenho aprendido muito.
Levantámo-nos. Ana apertou-me vigorosamente a mão nas suas, fitou-me,
sorriu com uma cumplicidade sem razão, disse:
- Apareça. Apareça muitas vezes. Temos imenso que conversar.
Chico separou-se de mim logo à porta. Não ia, pois, já para casa ou evitava
acompanhar-me. Estalou-me os ossos na sua mão quadrada, não com
fraternidade, como estive quase a julgar quando o conheci, mas como se
quisesse vitalizar-me com a sua energia. E já depois de se despedir:
- Não pense que isto fica por aqui. Você é responsável por tudo quanto
acontecer.
Tudo o quê? Encolhi os ombros e desandei. Não era ainda muito tarde, mas
a cidade apareceu-me despovoada. Solitário, sentia-a assim. As fachadas dos
prédios desciam obliquamente, altas, nuas, como numa aparição a um jacto
de velocidade, formavam em baixo, na rua, como um estreito canal entre
barragens. Uma mão, como espátula, esquadriava em planos o jogo das
frontarias, um eco surdo alongava-se pela rua até ao vazio da planície
adivinhada ao longe, como um cerco infinito à cidade irreal. Vagueei longo
tempo através das ruas, facetadas de branco, pelo puro gosto de me sentir
sozinho, sem ideias, anulado de silêncio. Uma cidade fantástica erguia-se
imaginada, numa geometria árida de superfícies lisas, com faixas de sombra e
luz estiradas dos candeeiros às esquinas, com filas de janelas altas e cerradas,
túneis de arcarias desertas, flechas de torres, de chaminés à altura dos astros,
ângulos negros de ruas, nóvel espectro de uma civilização perdida... Saí pela
estrada, subi a São Bento, ali fiquei algum tempo, cortado de frio, olhando ao
longe a cidade contra o azul-escuro do céu, toda brilhante de luzes como uma
cascata ou uma pinha de diamantes. Filas de lâmpadas derivavam do centro
até se perderem na escuridão. Algumas luziam ainda, já longe da cidade, em
viagem não sei para onde. Sentia-me bem ali. Havia perto uma casa de
janelas apagadas. Pensei nela para viver. Tinha talvez ainda algum poema a
escrever, mas sobretudo tinha de me visitar de vez em quando, de me não
perder da minha aparição. Quando regressei à cidade era tarde. Pensei seguir
a estrada de areia que através de quintas vai dar à de circunvalação.
Receei o escuro, voltei para a estrada de alcatrão que entra na Rua da
Lagoa. Cidade deserta, agora realmente deserta. Mas a minha exaltação
figurava-a morta desde há séculos. Apetecia-me gritar para as ruas ermas. As
arcarias abrem um túnel de silêncio, as fachadas descem em obliquidade de
vertigem. Sinto ainda um eco longo, todavia inaudível, a não ser numa certa
repressão de expectativa. Vozes mortas erguem-se com as fachadas, embatem
no silêncio das galerias, multiplicam-se como num labirinto. E eu que falo?
As lâmpadas adormecem pelas esquinas, há um ressoar de espaço, como num
mundo primordial.
Caminho devagar sob as arcadas. Um breve dançarino agita-se lá ao fundo.
Reconheço-o enfim.
- Boas noites, senhor engenheiro.
- Não me chames engenheiro. Sou professor do Liceu.
- Sim, senhor engenheiro. Tem Aí uma coroa para o Manuel Pateta.
Dou-lhe a coroa, mas ele já está borracho. Creio que está borracho mesmo
sem beber. Encontro-o às vezes pela manhã: tem já os olhos a escorrer
aguardente.
- Muito obrigado, senhor engenheiro. Boas noites, senhor engenheiro.
Tenho a chave da pensão? Sermão do Sr. Machado. Tenho de sair dali. A
casa no Alto. A casa no Alto.
X

Reentro no Liceu com entusiasmo - o entusiasmo do principiante, ou seja,


do que ainda está criando. Possivelmente, porém, o trabalho mais não é o que
nasce logo mecanizado e não tem, pois, nunca a surpresa do cansaço. Porque
se não cria indefinidamente. Eu inventava assim técnicas novas julgava que
inventava. Contava, por exemplo, uma história para os alunos a redigirem,
confrontava depois as redacções com a que da mesma história era de um
autor célebre. Baralhava frases correctas e incorrectas para os alunos as
distinguirem. Fazia perguntas dos cadernos com as redacções para que cada
aluno fizesse a crítica da de um companheiro.
Obrigava-os a fazerem redacções na primeira pessoa, imaginando-se que
essa pessoa era um groom de pé, ou um caixeiro, ou uma costureira, ou um
professor. Eles começavam: Eu sou groom no Café Britânia e verificavam
com surpresa que o mundo se lhes transfigurava. Contava as minhas
experiências aos colegas, ao reitor. Mas o que mais me excitava eram as
conversas à margem dos textos, dos assuntos de literatura - precisamente uma
disciplina do Carolino (o Bexiguinha), que andava no séptimo ano. Eu dizia:
“Abramos aqui um parêntese; ou: Agora, um pouco de paleio”. E largava
em divagações de toda a espécie.
De que falava eu? à distância destes anos já mal me lembro. Ou lembro
quase só os assuntos e nem sempre o halo da emoção que os torna meus e
portanto verdadeiros. Porque só há a verdade do que somos ou do que
reinventamos como nosso. Os alunos abriam os olhos, fascinados, e eu sentia
que eles transpunham o limiar da aparição. Mas havia os recreios e a
caderneta e as notas, o mundo sólido e imediato. Como o havia para mim. Já
disse como este mundo é insidioso. às vezes tentava prolongar a vitória sobre
ele. E ficava na aula (que era na sala durante o intervalo, olhando a planície,
dourada por um sol trémulo ou varrida de grandes vagas de chuva. Outras
vezes, se tinha um furo no horário e havia sol, passeava pelos claustros ou no
jardim. De tarde, a fila de arcadas batida de sol tinha uma luz interior,
recortava-se em sombras nos azulejos da parede. Desfolhavam-se ainda no
jardim umas últimas flores vermelhas e amarelas, semelhantes a lírios. Dos
telhados, pombos desciam, em linhas convergentes, para a taça da fonte.
Um dia o reitor veio surpreender-me nesse meu passeio. Aliás eu vira o cão
entrar pelo pátio e soubera logo que o homem vinha aí. Sem um desvio, o
perdigueiro virara à direita, subira as escadas e enfiara pela secretaria. Ia
decerto para o gabinete do reitor, onde tinha o seu recanto, junto da secretária
para consumir a sua melancolia. Porque era um cão triste. Fazíamos-lhe
festas, ele ficava quedo, de rabo pendido e cabeça baixa. O reitor veio para
mim com o seu andar patudo de gigante:
- Então? A fazer horas? A fazer horas? Hen...
- A fazer horas, senhor reitor. Está um dia...
- Hen... Está quente, está bom.
Parou, pôs-se a embrulhar um cigarro, muito direito, quase embe-zerrado,
de olhos baixos e lábio grosso estendido, como se encarasse o seu vício com
tolerância e desprezo:
- Está quente, está bom. Hen... Então como se está dando por cá?
Eu ia-me dando bem. E estava satisfeito com os alunos, com as técnicas
que experimentava, as redacções, por exemplo, senhor reitor, e as leituras, de
vez em quando, à margem das matérias obrigatórias, e a cidade e o tempo, a
memória, o silêncio, é claro, Lisboa era o meu fito, sim, tinha esperança de
para o ano, e afinal o clima, tinham-me dito que, bom, era da serra, estava
habituado ao frio, o claustro do Liceu (àquela hora da tarde, um recolhimento
de mosteiro, bom para se morrer ou quase), pois era assim, estava satisfeito.
O homem passeava comigo para trás e para diante ao longo de um dos lados
do jardim, onde o sol estendia uma passadeira de luz. às vezes, ao virarmos,
trocávamos o passo. Ele acertava-o logo como um soldado na forma, dando
um pequeno salto ridículo. Disse enfim:
- Esta cidade... É preciso cuidado, muito cuidado. Essas redacções, é claro,
são curiosas, são muito curiosas. Mas dê outras, dê outras. O groom, a
costureira e tal. É claro, são redacções curiosas. Mas não as dê, não as dê. Há
outras, é claro, nunca ensinei Português. Mas há outras. A Primavera e tal.
Uma tempestade. As histórias dos meninos que dão esmola a um pobre e
assim. As histórias de esmolas são sempre bonitas. E ficam contentes os ricos
e os pobres...
Ria com o seu riso de catarro, a sua infinita bonomia para as loucuras do
mundo. Eu não o entendia bem logo então, porque a minha serenidade não
dava para mais do que para ouvi-lo, saber o que me dizia... E àquela hora de
sol de Inverno e de silêncio, tudo era excessivo para uma harmonia inocente.
A sineta anunciava os últimos cinco minutos e em breve os claustros se
encheriam da algaraviada crua dos moços.
Mas, se eu não podia atrair os alunos a uma realidade sociológica, podia
falar-lhes do mistério obscuro da vida. Aliás, julgo-o hoje, bom reitor, o que
tu me proibias não era bem que os alunos sentissem a pessoa flagrante do
moço de fretes, do operário; era que eles criassem outro ser, à margem da lei
dos homens e talvez dos deuses. O que tu me proibias era que eles formassem
com as suas mãos mortais uma pessoa nova, um outro Adão fora da Bíblia.
Mas havia tanta coisa de que falar! De uma vez calhou lermos a “Sobolos
rios que vão”.
Contava-se aí da Babilónia e da Jerusalém celeste. E Camões, meu reitor
de não sei quando, só queria dizer que a pátria celeste era uma aspiração do
seu sonho de miséria, do seu sonho de condenado. Mas eu sabia, eu, que não
tenho um Deus que me justifique e redima, eu, que, luto há tanto tempo por
reconduzir à dimensão humana tudo quanto traz ainda um rasto divino, eu,
que desejo reabsorver isso na minha condição mortal e efémera de um pobre
arranjo de água e barro, eu, que nada recuso à minha emoção e ao meu
alarme de tudo quanto me alarma ou me comove, eu, que sou materialista
mas não só de um materialismo que se mede a metro e pesa na balança, eu,
que conto com o reinado integral do homem na terra da sua condenação e
grandeza, assumindo tudo quanto se anuncia em mistério e exaltação, eu
sabia que a memória de Camões, para além dos olhos e da carne, era a minha
memória de origens, a minha memória absoluta. Somente no meu impulso
para ultrapassar as nuvens, para vencer o espaço da minha vida, eu achava o
céu vazio. Mas a memória era minha, eu o sabia, eu o sabia destes avisos
surdos que me abalam nas raízes do meu ser, deste alarme de nada quando
certas horas me visitam, quando a tua música me lembra, Cristina. Chopin.
Nocturno número 20.
Cristina... Falei aos moços de Proust, do tempo reencontrado nas
lembranças, do halo que se ergue de um sabor que se conheceu na infância,
das pervincas azuis de Rousseau, reencontradas mais tarde com a memória de
outrora. Mas a minha memória não era bem essa. A minha memória não tinha
apenas factos referenciáveis, não exigia a sua recuperação para que o halo se
abrisse. A minha memória não era memória de nada. Uma música que se
ouve pela primeira vez, um raio de sol que atravessa a vidraça, uma vaga de
luar de cada noite podiam abrir lá longe, na dimensão absoluta, o eco dessa
memória, que ia para além da vida, ressoava pelos espaços desertos, desde
antes de eu nascer até quando eu nada fosse há muito tempo para lá da morte.
Visão de uma alegria sem risos, de uma plenitude tranquila, ela falava de um
tempo imemorial como as vozes oblíquas da noite e do presságio. A presença
imediata esvaziava-se e o que ficava pairando era um tecido de bruma e de
nada, canção sem fim, harmonia ignota de paragens sem nome. Que um Deus
tivesse respondido outrora a essa procura desorientada, a essa busca para lá
da vida, eu o sabia, eu o compreendia. Os espaços abandonados do céu vazio
tinham agora, todavia, um eco mais profundo. Das abóbadas povoadas pelos
anjos, pelos santos, pela divindade, o eco descia ainda mais amplo, mais
retumbante. De pólo a pólo, a memória vibrava assim como corda retesa
através do universo, e o homem reaprendia a conhecê-la como sua, como
nascida dos seus sonhos seculares e que nele dormiam até que uma íntima
nudez ou humildade ou atenção os fizesse vibrar de novo, lhes reconhecesse a
persistência. Assim Camões era ainda nosso, embora Jerusalém fosse uma
cidade morta. O seu apelo e as vozes que lhe falavam ouviam-se ainda agora
ao abalo flagrante das horas excepcionais. Sonho para sempre vivo, talvez, o
que inquietava o homem era a descoberta, não reconhecida ainda
inteiramente, de que a voz ouvida era sua, de que o sonho atirado à infinitude
não trazia outra resposta senão a que nele se pusera, de que os monstros e a
glória e o terror e a grandeza fantástica do seu eco eram o prodígio que
habitava o próprio homem e com ele se consumia e renascia. A Jerusalém
não é em parte alguma e só a conhece o alarme de milénios de um homem
que se interroga, se procura no absoluto de uma plenitude que é o seu sonho
de entre pedras e cardos. A Jerusalém é nossa, mas construímo-la tão longe,
tão dentro da nossa violenta inquietação que só a sua miragem nos visita de
quando em quando, à hora das raízes e das sombras.
Naturalmente, poucos moços me entenderam. No seu olhar aberto de
espanto, a sua imobilidade face da anunciação, eram o sinal de que algo
longínquo lhes acenava infinitamente.
Eis que, porém, o Carolino me procurou ao fim da aula. Mal tinha reparado
nele enquanto ia falando.
E de uma vez que o fitei pareceu-me pálido, borbulhas picotando-lhe a cara
de vermelho.
- Senhor doutor...
- Dize.
- Eu não sei se entendi bem, mas...
- Sim, dize.
... mas é como se entendesse, quero dizer...
- Sente-lo.
- Pois... Mas... é tudo tão... Não sei como dizer: é tudo tão forte, tão... Mas
eu, eu já sei quem sou, já me conheço, quero dizer, já uma vez me vi. E eu
queria falar disso ao senhor doutor.
Quando um aluno assim me procurava, eu não tentava naturalmente
entender-me com ele no plano da evidência, do sentir, da consequência, da
fraternidade de dois homens que se reconhecem e buscam identi-ficar-se na
comunhão: procurava apenas elucidar, instruir, informar, colocando-me no
plano neutro de um registo de ideias: a comunhão, a evidência, era só
enquanto falava para todos – como se entre a minha condição de professor e a
condição de cada um deles, simples particu-lares, separados do que os
sagrava e transcendia a todos como comuni-dade de alunos, só pudesse
transitar, fiscalizada e clara, a secura das ideias. Mas o Bexiguinha não tinha
ideias: tinha quase apenas o seu alarme de louco.
- Tens aula agora a seguir?
- Não tenho, senhor doutor.
- Então podes vir comigo, se quiseres. Vou dar uma volta pelo campo.
E ele seguiu-me um pouco atrás, com receio talvez de os colegas repararem
naquela camaradagem com um professor, de que o julgassem manteigueiro.
Mas, transposto o portão, alinhou comigo: Descemos a rampa do Liceu,
tomámos a estrada do Redondo, mas, chegados à primeira passagem de nível,
seguimos à esquerda, ao longo da linha férrea. Desoprimido da presença dos
outros, Carolino falou enfim. Eu, porém, não sabia se o entendia bem, porque
era possível que eu entendesse nele só o que sabia de mim. Não era fácil
conversarmos, aliás, porque seguíamos por uma vereda da linha e não era
assim possível caminharmos sempre a par. Na sua voz cantante, quase de
falsete, Bexiguinha contava-me das suas experiências. Voltava a relatar-me a
sua curiosa destruição da linguagem:
- A gente quando fala não pensa nas palavras, - dizia -, mas depois
tornamos a dizer as mesmas palavras muitas vezes, muitas vezes, e já não são
nada, é como que uma fala de doido.
- Sim.
- A gente diz por exemplo: “Esta cidade é bonita”. E depois repete: “Esta,
esta, esta, esta” assim muitas vezes. E no fim já não é nada, é só som. Mesmo
que se repita a frase toda. Primeiro a gente fica com uma ideia na cabeça.
Depois já não há nada.
Eu olhava-o: sim. As palavras são pedras, Carolino; o que nelas vive é o
espírito que por elas passa.
- Mas há outra coisa, senhor doutor.
Havia outra coisa, bom moço. Eu, porém, não queria envenenar-te, ao
contrário do que depois se afirmou.
Grito daqui aos que me acusam, grito-o com a força, uma força igual e
invencível como a da montanha na noite.
Reassumir, reabsorver, recuperar tudo o que ao homem se anuncia e é dele
e é da terra de que nasceu e o há-de consumir. Não errei, não errei, eu afirmo,
apesar da ameaça desta noite longa e deste vento que estala na chaminé,
apesar destas vozes de augúrio que me cercam. Não te pregava a morte,
Bexiguinha.
Pregava-te a vida, mas a vida iluminada perante as suas últimas raízes. Ver
não é um erro. O que acontece é que nem todos os olhos aguentam: a
cegueira que aí nasce vem dos olhos, não da verdade.
Havia outra coisa - e de súbito Carolino disse-a:
- Pensei muito, senhor doutor, na história do homem que se enforcou. Esse
homem que já não tinha boa mão para semear. E então eu pensei: já não há
deuses para criarem e assim o homem, senhor doutor, o homem é que é deus
porque pode matar.
Olhei-o feroz e aterrado.
- Eu não digo que se mate, senhor doutor, eu não digo isso. Digo é que
matar é igual a criar. Bom, não é bem igual, quero dizer, é diferente, eh, eh...
E riu, imbecilmente, infantilmente, pálido, as espinhas pontuando-lhe de
novo a cara.
- O senhor doutor há-de dizer que é uma ideia disparatada e eu não sei, mas
parece-me... E depois foi uma coisa muito forte, quando o pensei, uma coisa
muito grande, muito grande.
- A vida é um milagre fantástico - disse eu. – A vida é um valor sem preço.
- Mas por isso mesmo, senhor doutor, por isso mesmo. às vezes penso: um
assassino não será por isso que mata?
- Um assassino é um sub-homem, não um super-homem.
- Pois é, senhor doutor, mas se o assassino souber muito bem, muito bem o
que destrói...
Mas uma massa negra, com um ronco surdo, saltou-nos bruscamente
adiante. Distraído como estava, assustei-me. Era um porco fugido de algures
e perseguido por um homem. Reparei então numa espécie de bairro de lata,
ali próximo da linha e que o Carolino me explicou serem pocilgas.
Esquecidos do que dizíamos, pusemo-nos a observar as casotas de madeira
alinhadas em arruamentos, donde soprava agora um cheiro a estrume. O
homem perseguia aflito o gordo bicho, porque em breve passaria a
automotora. Com efeito, reconduzido o porco, a automotora apareceu ao
longe, balançando-se suavemente, crescendo como um grito, passando em
furacão num atroar de ferragens. Adiante, porém, saímos da linha para um
caminho no descampado. Perto, numa cerca de muros altos, denteada de
pedra, pastavam em sossego corças, veados, coelhos. Foi o Bexiguinha quem
me explicou na sua voz raquítica e rindo com aquele seu riso, que era um
misto de timidez e de perversidade:
- É para os matarem, senhor doutor. É pràs caçadas. São os veados aí de
um ricalhaço. Quando querem caçar, soltam um ou dois veados e coelhos.
Depois matam-nos.
Olhei o moço profundamente:
- Mas porque é que te ris?
- Eu não me estou a rir, senhor doutor.
Só agora reparei que tinha os olhos azuis. Era um azul claro, aguado, como
uma lucidez serena. Qualquer coisa vinha neles à superfície, qualquer coisa
de evidente e de irremediável. Acendi um cigarro, pus-me a andar em
silêncio. Carolino veio logo atrás de mim. Caminhávamos agora por uma
ponte estreita, paralela a uma outra, alta, de ferro, onde passava o comboio.
Em baixo, um regato formava uma toalha de água com pedras de lavadouro à
beira. Os juncos reflectiam-se no espelho, numa harmonia delicada, e eu parei
um instante, ainda preso daquela quietude à luz da tarde, daquela miniatura
de uma alegria a cintilar, fresca e instantânea. Talvez por me lembrar dos
flashes de água da minha aldeia, em dias nítidos de Inverno, nos campos
marginais da ribeira.
Andados, porém, alguns passos, vimos num largo campo uma manada de
vacas. Já perto delas, ouvimos o boieiro dar ao cão que o acompanhava uma
ordem em tom normal, como quem conversa.
Devia ser uma ordem, porque o cão imediatamente desatou em correrias,
circundando a manada, ladrando furioso a alguma vaca tresmalhada e
recalcitrante, até as juntar todas numa só massa. Quando alguma
reconsiderava e voltava atrás, o cão arremetia contra ela, forçava-a a
regressar. O homem assistia, imóvel , à manobra do cão. Por fim, resignadas,
todas regressaram em paz, num ressoar solene de chocalhos pela planície,
como a anunciação de um Angelus. Mais perto de nós, um bando de galinhas
bicava, por aparente passatempo, tufos de ervas, montículos de lixo. Mas eis
que a certa altura, quando a manada atravessava o caminho, o cão se separou
do grupo, avançando contra nós. Veio a passo lento e olho fito como se
quisesse surpreender-nos, acelerou depois, e a uns seis metros estacou
bruscamente, disparando a ladrar como quem prega um susto. Estendia para a
frente as patas dianteiras, o peito quase de rojo, alçava o traseiro nas patas
posteriores, em plano inclinado, e ladrava, de cabeça aos estremeções.
Instintivamente, eu e o Carolino baixámo-nos à procura de pedras. O cão
percebeu o gesto e desandou, de rabo murcho, instalando-se porém, outra
vez, logo adiante, na posição de guerra. Carolino baixou-se, apanhou enfim
uma pedra, disparou-a como um tiro.
O cão virou-se, fugindo, convulsamente. Mas a pedra, não o atingindo,
voou sobre ele e foi apanhar em cheio, incrivelmente, a cabeça de uma
galinha.
Não havia ali ninguém, o homem da boiada, indiferente ao cão, afastara-se
provavelmente para um monte um pouco adiante. Com o impacto fulminante,
a galinha rolara uns passos estonteada, agitando as asas aflitas, caíra, enfim,
de borco, toda atirada para a frente, as penas das asas abertas sobre a terra.
Provavelmente Carolino não vira o desastre, atento ao cão, que desistira do
assalto e desaparecia ao longe. Porque, quando eu lhe disse:
- Mataste uma galinha, ele olhou-me, olhou o sítio do bando, com um ar
emparvecido. Depois correu para lá, baixou-se, pegou na galinha por uma
asa. Em volta, na planície deserta, não havia um rumor. Eu fui-me
aproximando, Carolino, imóvel, segurava ainda a galinha suspensa. E olhava-
a fascinado, olhava-lhe o bico, donde o sangue pingava, olhava-lhe as penas
da asa que segurava toda aberta em leque, a outra asa descaída, as patas
negras com anéis de rugas e de dedos unidos. E dizia em voz surda:
- Matei-a.
- Temos de saber de quem é o bicho - falei eu. - Tem de se pagar a galinha.
- Matei-a.
Mas não havia ali ninguém. No próprio monte, que branquejava à
distância, tudo parecia morto. Levar a galinha até lá? Deliberei um instante,
decidi finalmente:
- Deixa a galinha aí, algum pobre a aproveita.
Ele olhava-me, segurando ainda e sempre o bicho pela asa. E sem me
desfitar, com o seu ar apatetado, largou-a enfim. A galinha tombou num
baque surdo e lá ficou, toda enovelada de penas, uma asa ainda semiaberta,
cobrindo-lhe quase as patas estendidas.
XI

Regresso a férias pela primeira vez, depois que o meu pai morreu. Natal.
Possivelmente, não haverá ceia este ano. Minha mãe vive só no vasto
casarão, Evaristo, provavelmente, consoará com os sogros, na Covi-lhã. Mas
que não venha ele nem o Tomás nem a ranchada das crianças. Para mim não
faz diferença: estou eu e aquilo que me povoa. A evidência da vida não é a
imediata realidade mas o que a transcende e estremece na memória. A minha
memória está cheia. Da janela do comboio olho a montanha ao longe, branca
de espaço, olho as matas de pinheiros, o chão trágico de pedras. Tento
reconhecer aí o que é vivo e relembra, o que dura e aparece nos instantes do
alarme. Fecho os olhos, raivoso, e busco e busco a verdade inicial, a que sabe
a minha presença no mundo, o que eu sou, a música irredutível que às vezes
me visita. Ah, o Natal não é de nunca, porque nunca foi do presente. A
alegria que procuro é de um outrora absoluto, desde antes da infância, do eco
que me transcende do passado ao futuro, me vibra com o som de uma
harmonia que não sei.
Espera-me na estação o António com a carroça.. – Há um Overdand na
casa, velho carro de perna alta, que só o Tomás sabe guiar. Mas não me
desagrada viajar assim. Instalo-me no banco, de manta aos joelhos. O criado
traz um rolo de notícias para me ir abrindo pela viagem. Mas eu tenho tanta
coisa para mim... Ponho-lhe a mão no ombro:
- Velho António! Deixa-me pensar.
Pela estrada fora, aberta entre a neve, os guizos do cavalo retinem
alegremente. Uma claridade baça desce do céu imóvel com a promessa de
mais neve. E para um olival distante gente escura canta. Fecho os olhos
ainda, e escuto. É uma música antiga, da idade da terra, da idade do destino
dos homens: Da amargura funda como os séculos, dos biliões de sonhos
consumidos pelas eras, ela vem até mim, essa a canção de nada, abrindo no ar
sobre a solidão do Inverno, com a mensagem de uma noite perene.
Caminhamos agora por uma recta extensa. Passam à nossa beira camponeses
escuros, um ou outro pedinte de viagem com a face das misérias bíblicas. Ao
fundo, barrando o horizonte, ergue-se a montanha, que recua, vagarosa,
diante de nós, como para nos atrair à sua verdade de génese. E, suspenso
sobre ela, unido ao cântico dos homens, que já não ouço, eis que se me abre
um coral longínquo, eco de que paz triunfal numa manhã solene, esperança
sem fim, esperança eterna? Messias. Haendel. Behold the Lamb of God that
taketh away the sin of the world.
E é como se através da multidão dos séculos eu ouvisse o tropear de todos
os povos da terra caminhando comigo, cantando o sonho da sua amargura
milenária. Gente estropiada, escarros de humilhação, a fome, e o remorso, e o
cansaço, e a loucura que emerge como um incêndio na noite, e a lepra, e a
angústia da interrogação, velhos da idade do sofri-mento, gente que espera,
gente que sonha... De que abismos esta mensa-gem? A montanha vibra na sua
massa branca ao apelo da ansiedade. Vozes de longe, cantando, cantando.
Marcha sem fim, ó coro da desgraça de sempre! Que força absurda vos ergue
para a esperança do que não há? Surely He hath borne our griefs, and carried
our sorrows!
Como o sabeis? Como o sabeis? Ah, a vossa dor é a medida da eterni-dade.
Mas a esperança renasce-vos sob as mesmas cinzas e a mesma ruína... Ei-los
cantando como doidos para a distância do céu nublado. Mas vós acreditais
que uma estrela nascerá por detrás das nuvens...
O coro morre ao longe entre o silêncio das fragas.
E quem avança para a montanha e para a mão que dela se ergue sou eu só.
Esperança de nada, só relembra agora a névoa da música irreal, onde de
mim?, em que encontro impossível com a paz e a plenitude.
Chegamos enfim a casa, o tinir alegre dos guizos por todo o pátio. Mas não
vejo ninguém. Há um silêncio quase tão audível como o de quando o
comboio pára nos apeadeiros pelo meio da noite.
Entro em casa e é o mesmo silêncio pelos salões abandonados. Final-mente
aparece uma criada. Perguntei por minha mãe, ela leva-me ao seu quarto
Sentada na cama, um xaile pelos ombros, minha mãe abraça-me numa
aparente indiferença. Mas que tinha? Porque me não avisara? Dissera sempre
que estava bem de saúde!
- Estou bem - confirmou. - Senti-me hoje cansada, apeteceu-me ficar na
cama.
- É preciso avisar o Tomás!
- Estou bem. Levanto-me daqui a pouco. Amanhã parece que vamos
consoar com ele. Falou-me nisso, pelo menos. O Evaristo não vem.
Torcia nas mãos desocupadas uma franja do xaile, erguia às vezes os seus
olhos espessos, que emergiam de uma distância de brumas, arras-tando
consigo um peso imenso de cansaço, de desilusão e de bondade.
- Mas veio cá um médico?
- Não estou doente.
E, com efeito, pela tarde levantou-se. Mas veio logo para a braseira (que
preferia ao fogão) e aí se ficou, na sua cadeira, revolvendo as cinzas, alheada:
Mal tinha perguntas a fazer-me, o que era extraordinário, porque eu era agora
mais filho do que qualquer dos outros, visto ser solteiro, porque vinha de
longe e porque ela estava só. Ou talvez que por isso mesmo ela tivesse
aprendido a linguagem do silêncio, essa em que as palavras são a névoa do
alheamento, da meditação do nada, e em que as palavras em voz alta são da
pessoa de fora como as de um intruso. Ao jantar, porém, Quis saber da
minha vida e eu contei-lhe e eu disse-lhe do Alentejo e da planície, do Dr.
Moura, que ela conhecia, das aulas, dos professores. Minha mãe ouvia-me,
sorria, como se descansasse, já à hora da morte, sobre o meu destino.
- Estás magro - disse, no entanto.
- Sempre fui magro.
- Sim. Mas estás magro.
Boa velha, que tens? Soa a tua voz a uma voz de nada. Casa deserta, os
filhos dispersos, o marido morto. E a tia Dulce e as criadas de outrora. Já sei
que não estás doente, e para que é precisa a doença? A doença é um pretexto,
tu não precisas de pretextos.
Subitamente alarmado, eu disse:
- E se tu viesses comigo?
Ela sorriu quase com pena. Estendeu a mão sobre a mesa, apertou a minha
em silêncio. Mas pouco depois deitou-se, eu fiquei só, à braseira. Em breve,
porém, toda a casa mergulhava em silêncio. Fui para o quarto, abri a janela
para a noite. O céu limpara, era agora um imenso lago escuro onde uma lua
branca boiava. Toda selada de neve, a montanha brilha até aos píncaros mais
distantes, flutua levemente num vago halo azul. Ressoa brevemente o
murmúrio da ribeira, do ar imperceptível, do silêncio dos grandes espaços
livres, uma adstringência recorta a sombra dos pinhais, geometriza a noite em
linhas de aço... Fecho a janela, fico a olhar por trás dos vidros. E parece-me
subitamente que o dia não renascerá jamais, que a verdade da vida só ali se
cumpre para sempre, na secreta imobilidade das coisas, na pureza lunar de
uma neve nocturna.
Deito-me enfim, mas não fecho as portadas da janela.
A lua desce da serra, entra pela vidraça, derramando-se pelo soalho em
coágulos de gelatina. Por uma noite assim, há cerca de vinte anos... Por
vezes, tento reconquistar-me desde o mais remoto passado. E, embora
reconheça que nada explica nada, há pontos de referência que se me erguem
como marcos geodésicos e me fixam o mapa da vida. Sabe-me bem
relembrar. A vida amplia-se-me até limites mais distantes do que ela, e eu
apareço aí como quem a vive mas apenas se descobre submerso nela, ou sua
pura testemunha. Não falei ainda do meu cão Mondego?
Era uma tarde de Junho, regressávamos os três irmãos da escola. A certa
altura da estrada, saímos para um caminho entre campos de cultura. Revejo
essa tarde à claridade lunar. Passam carros na estrada, uma poeira quente
doura as árvores das bermas, o sol brilha obliquamente na folhagem. Ouço
ainda uma voz que sobe das leiras regadas. É uma voz anónima como o
espírito da terra. E é que, a dada altura, reparo que atrás de nós vinha u cão
lazarento. Evaristo apedrejou-o, o cão ganiu e afastou-se. Mas algum tempo
depois, Tomás reparou que o cão nos seguia outra vez. Farejava, pois, o dono
na sua inquietação de cão livre. Evaristo procurava já outra pedra,
praguejando, o cão fugira, olhando de lado, pressentindo o perigo. Mas a
submissão do cão deu-me pena e a importância de toda a pessoa que tem
pena.
- Mondego!
Dei-lhe um nome, o cão olhou-me de longe, imóvel, com o seu olhar triste
e ressentido de velhice.
- Mondego! Venha aqui!
Não se mexeu. Mas, assim que recomeçámos a andar, o cão seguiu-nos os
passos. Ao portão, porém hesitou: sabia, como todos os cães, que a
propriedade privada existe... Então encorajei-o, Tomás encorajou-o. Mon-
dego olhava-nos, a avaliar das nossas tenções. E, enfim, entrou. Fui bus-car-
lhe de comer, eu gostava tanto de ter um cão. Tia Dulce, severa, não me
aprovou: associava os cães à gente ordinária, aos pastores, caseiros, à gente
nómada, ciganos, oleiros e caldeireiros ambulantes, que os traziam presos aos
eixos dos carros. Minha mãe aceitava-o, mas na rua, no quintal. O cão ficou.
O António fez-lhe a casota num só dia, com a ajuda do meu entusiasmo. Pôs-
se-lhe palha, uma tigela à porta e, para lhe dilatar a área de liberdade, esticou-
se um ramo até ao galinheiro onde o cão deslizava a argola da corrente. Mas
o cão não utilizava essa folga. Aninhava-se à porta, como à espera da morte,
animando-se apenas com a minha presença. Porque eu vinha com frequência
até ele e falava-lhe e o cão erguia os olhos para mim com uma sabedoria
compadecida. Estabe-leceu-se assim uma comunicação entre nós por uma
certa qualidade de presença, de realidade íntima, de pessoas. Todos os bichos
que eu obser-vara até então eram puros objectos mecânicos, como os grilos,
os ralos, as louva-a-deus; ou matéria, lama com movimento, como os vermes,
as rãs, os sapos; e os que eram já vida, como os pássaros, os bois, mal tinham
estabelecido comigo uma convivência que lhes revelasse, se a tivessem, a
individualidade. Sempre a vida me fascinou, sim. Mas nas vibráteis lagar-
tixas, cujas caudas cortadas remexem ainda frenéticas, nas vívidas doni-nhas,
nos ratos estrepitosos, nos pássaros, eu não sentia senão confusa-mente uma
forma total de vida, a mesma força universal repartida pelos bichos, esse
modo de ser em que o começo e o fim não são um limite mas elos de uma
continuidade. Ora no cão eu pude sentir obscuramente uma pessoa. Quando
distinguia os meus passos, alvoroçava-se, ladrava com a sua voz rouca, e, ao
aproximar-me, erguia-se, agitava a cauda, acabava por se deitar, com o
focinho sobre as patas estendidas, olhos semicer-rados, sentindo-se bem com
a minha companhia silenciosa. Fazia-o erguer-se, dava-lhe ordens, ele
obedecia sem entu-siasmo. Mas, se não podia fazer força, podia
perfeitamente conversar, entender-me. Eu falava-lhe, ele abria os olhos
profundos. Tinha a sua personalidade defi-nida, com simpatias e antipatias, o
conhecimento do que se passava à sua volta, as intenções dos que se
abeiravam dele.
Ora um dia, precisamente, descobri meu pai e o criado conversando ao pé
do cão e visivelmente sobre ele. Mondego adoecera, o pêlo rareava em
clareiras leprosas, os olhos bordavam-se-lhe de escorrências, vomitava
frequentemente. Deram-lhe drogas, mas o pobre não melhorou. Era uma tarde
de Inverno, perto do Natal, a montanha cobria-se de neve, como agora a via
para lá da janela. Quando eu me aproximei, meu pai e o criado
interromperam-se. Mas o cão deu-me a notícia, ladrando, rouco, na direcção
dos dois, olhando-me depois com amargura e humildade.
- Estava eu a dizer ao António que o cão não passa este Inverno - declarou
meu pai. - Para ele era uma sorte se morresse.
- Não morre! - disse eu, aflito.
Mas Tomás aproximara-se também:
- Que é que tu esperas do cão? Viveu, tem de morrer.
Não havia ali, porém, uma acusação. Havia só o reconhecimento de uma
evidência serena. Mas justamente para mim o que era evidente não era a
morte, era a vida. Como podia o cão morrer? Como podia morrer a sua
pessoa?
Caíra um nevão mais forte e Mondego, com o frio, mal saía da casota.
Espreitava ao buraco, não comia e eu não tinha já dúvida de que ele iria
morrer. Assim, pelas manhãs eu corria logo ao quintal, como se a vida do cão
dependesse da minha pressa.
- Morre, mas leva tempo - disse um dia o pai.
Na noite de Natal fomos à missa do galo. Era uma noite perfeita, como a de
agora, com uma lua limpa no céu, estrelas vivas coroando a terra. A neve
brilhava na montanha, os sinos dobravam para a noite. De nossa casa, só o
meu pai não ia à missa. A mulher do António segurava um lampião para ir
decifrando os poços de lama que os transeuntes abriam na neve e a lua nem
sempre iluminava. Ao longe, nos caminhos da serra, outras luzes brilhavam,
no rasto da esperança, convergindo para a igreja.
Subitamente, porém, quando transpúnhamos o portão, tive o choque de um
alarme. A casota do cão ficava a um canto do quintal, perto do alpendre onde
se arrumavam os bois. Admiti bruscamente que o cão tivesse morrido. E,
abandonando o grupo, fui sozinho até ao fundo do jardim. à luz da lua,
espreitei para a casota, chamei o cão. Mondego não respondeu. Meti a mão
dentro - o cão não estava. Presumi, absurdamente, que tivesse rebentado a
corrente, se tivesse aninhado no alpendre. Fui para lá, mergulhei para um
lado e outro no escuro, chamei: Mondego! Nada. Mas eis que, ao voltar-me
para sair, eu vi o cão, enfim: suspenso de uma trave, enforcado no arame,
Mondego recortava-se contra o céu, iluminado de lua e de estrelas. Dominei-
me, não gritei. E corri para o grupo, que voltava atrás a procurar-me.
Desculpei-me como pude e segui para a igreja, chorando duramente:
quando Cristo nascia entre cânticos e luzes, Mondego balançava de uma trave
o seu corpo leproso, banhado de luar...
No dia seguinte quiseram iludir-me: o cão teria aparecido morto à porta da
casota. Não reagi. Levantei-me apenas e fui eu enterrar o animal, para que
fosse amortalhado com ternura, para que a última voz da terra a falar-lhe
fosse uma voz de aliança.
Já não vejo a lua, que subiu mais no céu. Mas a face da montanha, voltada
para mim, ilumina-se agora toda, branca e solene. E nesta imóvel radiação do
silêncio, nesta vasta suspensão do tempo, a morte do Mondego irmana-se à
de meu pai, dissolve-se num imenso apazigua-mento. Como um olhar
gravado de cansaço, a lua vela o ossuário da terra, a profunda surdez que me
submerge...
XII

Deixei abertas as portadas da janela e o sol acorda-me cedo. Entra pela


vidraça, começa a derreter os ramos de gelo que o frio cristalizou pelo lado
de dentro. Olho esses ramos um instante. Desenham-se em curvas regulares,
estampam-se nos vidros quase simetricamente. Filetes de água cortam já um
ou outro, como na chapa de uma gravura que se destrói. Despertas pelo sol,
as coisas iniciam o seu bulício de seres vivos. Sobre a mesa, o jarro vidrado
posto dentro da bacia brilha em sol, cintilando de alegria. Uma toalha, toda
estalada em brancura, cobre-lhe a boca, tomba para os dois lados, com festos
apertados de goma. A minha roupa desmancha-se numa cadeira. Um mundo
frio de reflexos esquadria-se no espelho. Estou só e sinto-me bem. Fecho os
olhos ainda, abandonado à dormência da manhã breve, tento ouvir na casa os
rumores matinais. Mas levanto-me enfim. Não há frio e abro a janela toda à
invasão do sol. A neve esterilizou a vida numa pureza excessiva e sem tempo
como a de um estranho mundo artificial de plástico, de ersatz. Ou o sol sobre
a neve. Porque a neve só tem tempo talvez, só é genesíaca com um céu
escuro de nuvens ou um augúrio lunar... Uma palavra erradia e vibra ao longe
no ar branco, golpes avulsos ressoam no céu de vidro: portas que se fecham?,
lenha que se parte para o lume?, carros que estremecem nas calçadas? A
aldeia fica num córrego, o ar freme na manhã.
Subitamente, um buzinar forte ecoa pelo pátio.
Aguardo o gralhar de Júlia, da pobre Júlia gorda, o matraquear esque-
mático, esse árido estrépito de maquineta do Evaristo, com a pergunta final:
- O monge? Onde é que está o monge?
Mas o gralhar não vem, a maquineta não trabalha. O que me vem, e já do
corredor, do seu desencontro de ângulos, é a voz pesada do Tomás. Não
entendo o que ele diz, mas breve o ouço parar à porta do meu quarto:
- Pode-se entrar?
Abro a porta, abraçamo-nos. Admiro a sua pujança estável de lavrador, ele
fala paternalmente da minha magreza.
- Tu não tens frio? - pergunto.
Não traz sobretudo. Usa um fato grosseiro de saragoça, botas de bezerra
cardadas. As mãos têm um toque áspero e crestado de geadas, de invernia. Os
olhos riem, levemente azulados.
- A Isaura? Os pequenos? E quantos é que tu já tens?
- Tenho... Eu te digo: seis, quase sete. Tudo bom de saúde. Tudo fino.
- Quase sete... E ouve uma coisa: que tem a nossa mãe?
Tomás não sabia. A mãe tinha dias que ficava na cama. Não queria
médico. Apetecia-lhe a cama, era só. Tomás não sabia que fazer. às vezes
remetia-lhe dois netos para a distraírem. Vinham sempre dois para se não
aborrecerem. A mãe gostava das crianças, mas esquecia-as ou elas marti-
rizavam-lhe a paciência. E pedia socorro a meu irmão: “Vem buscá-los que
os não posso aturar”. Quem vinha muito agora lá a casa era a Inácia, velha
beata que ia escravizando minha mãe com uma religiosidade minuciosa de
novenas, terços, irmandades do Santíssimo, do Coração de Jesus, de São
Vicente de Paulo. O velho prior, o das forças, morrera de congestão. Era um
homem vermelho a estalar de musculatura. Arrotava às refeições. Contava
proezas da juventude. Agora o novo prior era um moínho de rezar. De
madrugada à noite rezava. A mãe ia indo nisso, excepto quando decidia ficar
longo tempo na cama.
- Eu vim cá para combinarmos onde se ceia hoje - acrescentou Tomás. - Os
meus sogros vêm; e nesse caso, estás tu a ver...
Os sogros: o Sr. Paulino e Dona Ermelinda. O Sr. Paulino enriquecera
negociando em fazendas, de feira em feira, com uma pequena carroça, tinha
uma vozinha aflautada. Dona Ermelinda era uma senhora geniosa, toda
rebiteza. Isaura era filha única. Tomás fizera um bom casamento.
Imprevistamente, sobre a questão da consoada, minha mãe foi
intransigente: não sairia dali. E, em vistas disso, fiquei também.
- Mas vai tu! - dizia-me ela. - Vai tu!
Claro que não ia. Iria no dia seguinte almoçar. Minha mãe prometeu ir
também. Tomás ficou ainda algum tempo, viemos ambos até ao pátio beber o
sol. Ele não se cansava de me avaliar a magreza:
- Precisas de comer. Precisas de descansar os miolos. Talvez te fizesse bem
casar. E ouve outra coisa: a mãe não te disse nada das partilhas? Há tempos
fez-me uma proposta. Como sabia que vinhas, não te escrevi. Mas escrevi ao
Evaristo.
A questão das partilhas era simples: dividiam-se já todos os bens e minha
mãe recebia uma mesada de cada um de nós. Eu aprovei. Natural-mente o
Tomás governaria as minhas coisas. Ele aceitava em princípio, mas teria
ainda de pensar, de falar com Isaura. Quanto ao Evaristo, era possível que
aparecesse pelas férias para aproveitar a minha vinda e arrumar-se tudo de
vez.
A ceia foi lúgubre. No entanto minha mãe vestira-se de festa, a mesa
resplandecia de cristais. Ficámos ao pé um do outro, nos mesmos lugares do
costume: ela num topo, eu ao lado, logo ao dobrar do ângulo. O mais
estranho, porém, é que a mesa está esticada à máxima dimensão, com a toalha
a cobrir-lhe a sua vasta nudez. Só ao meio um ramo de azevinho artificial,
com velas presas por apliques amarelos. Em volta, pesando sobre o ambiente,
está a velha mobília, grossa e escura, de renascença holandesa. Minha mãe
fala pouco. E, quando o faz, tem o costume arrepiante de olhar os lugares
vazios. Falas portanto para aí, boa mulher. Acompanho-te o olhar e olho
também. Eis-nos, pois, testemunhas do nosso próprio destino - um pano
branco, ao longo de uma mesa, amortalhando uma ausência, meia dúzia de
velas, trémulas na sombra, velando uma memória. Fora, a noite é uma
vibração de seda. Ouço-a, ouço-a no nosso silêncio afogado, nas sombras
geladas do pátio, no rumor esparso ao longe, eco de um mundo de outrora. As
velas consomem-se no ramo de azevinho. Os sinos começam a dobrar para a
noite.
XIII

Tomás apareceu pelas onze horas com o carro.


Levámos a nossa mãe à igreja (ela não fora à missa do galo), aguardámos
que saísse.
- Já não vais então à missa - disse-me Tomás.
- Há quanto tempo... Mas ainda ouço os coros.
- Como ainda?
Ouvia-os. Saíam da igreja, vibravam pelo adro todo coberto de neve,
uniam-se à solene plenitude da montanha. Em volta do adro corre um cerco
de casas negras. Uma delas tem um alpendre com um suporte de traves
ressequidas. Aí nos abrigamos, voltados para o sol. Na encosta da serra, entre
as árvores carregadas de neve, flutua ainda a neblina matinal como a massa
confusa e original da criação. E era aí, na aparição da manhã, que os cânticos
do Natal se me abriam luminosos, lavados na pureza de um início absoluto,
inventados em inocência e em confiança perene. Esqueço o Tomás e penso.
Não tenho saudades de mim, não tenho saudades de nada: amanhã é o dia de
hoje. O que me seduz no passado não é o presente que foi - é o presente que
não é nunca. O que sonho nestes cânticos não é a paz do passado: o que
sonho é o sonho.
- Como estranhas que eu os ouça? - disse eu ainda.
- Sabes tu... Sabes tu o que é a vida?
- A vida... Bom. Tu lês muito, tu sabes coisas. É claro, também leio,
também penso. Leio pelas noites de Inverno, a Isaura rala-se. Mas eu trabalho
a terra. É difícil explicar-te: a gente colabora com a terra. A gente come os
frutos, a gente mata as reses, mas não as destrói. Há um pacto de aliança.
O sol não nos aquece: aquece a terra. É difícil explicar-te. Ainda ontem
estive no lagar do azeite. Os lagareiros tinham já os fatos ensebados de óleo
negro. E as mãos. E a cara. Tinham a cor do azeite velho e rançoso. Eram o
próprio azeite. E eu achei-os extraordinários. Digo-te isto por muitas razões.
Até talvez por estares magro.
Após um longo silêncio, os cânticos irradiaram de novo da igreja, abrindo
no adro como uma grande flor de neve.
- Mas tu não ouves esta música? - perguntei.
- Ouço. Mas não ainda, como tu. Hei-de ouvi-la sempre, suponho.
- Mas não és crente, tu.
- Se o fosse, não a ouvia, suponho. Os que estão dentro não a ouvem:
cantam-na. A terra não se conhece a si própria.
- Terás tu... Terás tu achado o que procuro?
...essa superação de todas as angústias, de todas as dúvidas? Terás tu visto
o absurdo e o milagre, e ficado tranquilo?
- Não sei o que queres dizer. Mas tenho a certeza de que não achei o que
procuras. Porque, se tu procuras, só tu podes achar.
Mas a missa acabava. Alguns homens, dos que ficam ao fundo da igreja,
começavam a aparecer à porta, enfiando o chapéu. Iam-se formando grupos
junto das velhas casas, aquecendo-se ao sol. Minha mãe apareceu enfim,
ajeitando a mantilha. Senta-se à frente com meu irmão, eu sento-me atrás,
sozinho, apoiado todavia ao banco deles. Minha mãe nada diz, mas a sua face
grave irradia a velha acusação contra a nossa irreligiosidade. Nem no dia de
Natal... Sim, a mulher. Mas saberás tu como conheço o teu mundo, agora que
o não habito? Saberás tu que o eco dos teus coros me persegue neste caminho
de neve? Vêm de longe, dos espaços de vertigem, iluminados na sua branca
fascinação. Como as velas do presépio, brilham na estrada deserta entre as
árvores imóveis.
O sol repete-os e o mundo canta-os com uma força surda, como a
inocência irresistível que quase nos faz chorar. Sabes tu que coragem cruel é
necessária para ouvi-los e permanecer fechado no triunfo do nosso árido
destino? Vimos de longe, mulher.
Caminhámos até onde se abria a revelação. Ouço os teus choros na minha
terrível maioridade. São belos e tristes como o aceno de uma criança que
ficou na estação...
O carro roda vagaroso nos trilhos escorregadios. Gente passa pelas bermas,
fechada de sinal e de uma alegria íntima. O sol abre-se à brancura da terra,
cintila na neve em agulhas estrídulas...
- Queres entrar em casa, mãe? Ou seguimos já?
- Entro só um momento. Entrai vós também um momento.
Mas nós esperamos. Acendo um cigarro, abro os vidros do carro: um bafo
gélido coalha-me na face. A casa negra, suspensa do augúrio de longas eras,
solitária no enorme silêncio branco. Àquela distância, a montanha
desdobra-se em grandes vagas de neve até ao céu duro, de aço azul.
Subitamente pergunto a Tomás:
- Tu és feliz?
Ele olha-me surpreso, até me entender:
- Nunca pensei nisso. Ou antes: talvez tenha pensado. Pois é claro que
pensei. Mas não me perguntei se era feliz. Difícil responder-te.
Reconheço e aceito, talvez. A vida é feliz e eu faço parte da vida.
- Nunca pensaste na morte?
- Se a vejo todos os dias!
- Pergunto se pensaste na tua.
- Na minha... Claro que pensei. Tenho os filhos, quase sete. Como não
pensar?
Mas não era disso que eu falava. E expliquei-me de longe, desde o limiar
da minha obscura interrogação. Adequar a nulidade da vida à sua brutal
necessidade. Pensá-la no domínio prático é fácil como estar entretido. Mas
não era isso: era assistir à aparição incandescente da nossa própria pessoa, ver
o jacto fulgurante que sai de nós e não ficar cego, não ficar atordoado.
Contra, porém, a minha expectativa, Tomás não se perturbou:
- No Inverno, às vezes, leio pela noite fora:
É bela uma noite de Inverno, muito certa, muito nítida. Venho à janela ver
as estrelas, os campos escuros sem um ruído. Bom: então acho extraordinário
que eu esteja vivo. E sinto-me bem eu. Mas não me sinto eu sozinho. Outras
partes de mim estão em outro lado e são os filhos que dormem, ou os
trabalhadores com quem falei, ou a terra que ajudei a trabalhar. E é como se
eu fosse só uma parte de qualquer coisa muito grande que vai para além de
pessoas conhecidas e chega às pessoas conhecidas - dessas e a outras e para o
passado e para o futuro.
- Mas não é isso! É muito diferente! É muito diferente!
Todavia, minha mãe chegava enfim e Tomás pôs o carro em marcha.
Então, de súbito, lembrei-me das prendas para os pequenos. Voltei atrás,
procurei nas malas, achei por fim os cartuchos de guloseimas, tarros
alentejanos com doce de raiz de escorcioneira, doces regionais. Carreguei os
embrulhos, instalei-me ao carro. Deslizávamos agora pelo caminho estreito
até atingirmos a estrada larga. Depois percorremos uns dez quilómetros até à
aldeia de meu irmão. A casa era dos sogros, que viviam noutra terra e ali
tinham uma vasta quinta de vinha, oliveiras e terra de semeadura. Minúsculo
povoado com um pequeno ribeiro e vastas extensões de terra árida de
fraguedo. Casa larga de lojas e um andar. Atrás, uma vinha, e logo depois
uma velha mata de pinheiros. Quando o carro travou do lado de trás da casa,
depois de subir uma alameda que a contornava, uma horda de garotos
assaltou-nos em alta grita. Os mais velhos vinham à frente, descendo com
desembaraço a escada de granito; atrás, no fim de todos, vinha o mais
pequeno, chorando desolado por não poder acompanhar os irmãos. Isaura
apareceu também no alto da escada, descendo depois devagar. A miudagem
saltava à minha volta, eu pedia juízo para fazer a distribuição dos embrulhos.
Por fim lá consegui impor a minha justiça e cada qual levou a sua parte,
aplicando-se logo a desembrulhá-la, confrontando-a com a dos irmãos.
- Não lhes dê confiança, senão nunca mais o largam - disse Isaura.
Tomei ao colo o mais pequeno, que não conseguia desatar o pacote.
Apoiado à escadaria, sentei-o numa perna e ambos nos entregámos ao
trabalho. E logo que acabámos, o pequeno quis ir para o chão, para exibir o
seu triunfo aos irmãos. Minha mãe subiu enfim com Isaura, os miúdos
desapareceram, eu fiquei só com Tomás. O sol brilhava morno, seguimos por
uma vereda entre os galhos da vinha, coberta de uma pequena camada de
neve que de pouco espessa derretera quase toda. Chegámos enfim à mata,
onde algumas rochas nuas se expunham ao sol. Olhei em roda, respirei
profundamente, todo aberto àquele horizonte plácido de um dia de sol e de
neve.
- Eis-te nos teus domínios, Tomás. Com uma ranchada de filhos. Como um
belo patriarca.
Ele olhava em volta também. Depois fitou-me, cerrando um pouco os
olhos, como se me investigasse:
- Tu disseste que era diferente, que vermo-nos não era vermo-nos nos
outros. Quando a gente sente a sério uma coisa, julga que ninguém mais a
sente. Julga-o, porque é difícil exprimir isso que sente. Tu julgas que o velho
Deus e a violência estúpida da morte e o milagre da vida nunca entraram nas
minhas contas. Entraram. Mas agora são como animais familiares. Durmo
bem no meio deles.
- Não é possível! Tu não viste nada! Tu não viste a pessoa do nosso pai, a
realidade única que ele era, que o habitava. Tu não assististe ainda à aparição
de ti a ti próprio. Tu nunca pensaste a sós contigo, no silêncio: Estou vivo, eu
sou, eu, esta vitalidade iluminada que se sente, se não pensa, se toca e é
estranha e arrepia de medo e nos põe os cabelos em pé. Tu vives adormecido
nesta quietude da terra e no fundo não sabes que és mortal.
Tomás abanou longamente a cabeça:
- Pobre Alberto. Porque não vais tu à missa? É a tua última tarefa.
- Não se soluciona uma vida como se soluciona uma doença. Toda a
verdade para a vida é uma criação: ninguém a pode ensinar. E, se a ensina e
aprendemos, não damos conta disso, é ainda uma criação.
- Um pouco assim. Já to disse há pouco. Em todo o caso, os apóstolos
existem.
- Como as trelas dos cães. Ou como a luz num quarto escuro; o que estava
no quarto não se emendou.
- Talvez, talvez - condescendeu Tomás. - Eu sou um pobre lavrador. Não
tenho um stock de ideias para estas ocasiões. Mas creio que estás enganado
sobre a experiência de mim próprio. Na verdade, nada disseste ainda que eu
ignorasse. às vezes ponho-me a pensar no caso dos meus filhos. Eles são
seres independentes, sentem-se a si próprios sem ligações com nada, como
nós nos sentimos em relação aos nossos pais. Ainda que se pareçam
connosco, que tenham os nossos tiques, eles não o sabem, não o entendem.
Mas eu vejo-os de mim para eles e sinto que alguma coisa de mim está neles,
que alguma coisa me pertence. A minha vida é única, é um milagre, como tu
dizes. O nada absoluto da morte atordoa. Mas eu sei que para além de mim há
a vida e que a vida não morre. Sim, raras vezes vejo isso flagrantemente. Mas
quando o vejo não fico cego.
Abala-me um pouco, mas acabo por ficar calmo e aceitar. A morte então
toma a velha imagem do sono - do sono que se apetece ao fim de um dia de
trabalho.
- Tomás! Alberto!
- Lá vamos, lá vamos.
O almoço foi um espectáculo tão extraordinário que jamais o esqueci. E
agora que o relembro neste Inverno em que escrevo, sinto-o ainda como a
resposta melhor do meu irmão Tomás a tudo quanto eu lhe disse. Outras
vezes almocei ou jantei em sua casa. Mas só este almoço do Natal me recorda
como resumo e sinal das suas repetições. Na grande sala interior, uma
extensa mesa (talvez duas ou três ligadas) brilhava com os talheres para doze
comensais: nós, toda a tribo do Tomás, e ainda os sogros, com quem mal
falei. Pouco depois abancava já a ranchada das crianças, incendiando toda a
casa de um alarido infernal, batendo nos pratos com as facas e garfos,
esboçando rixas entre si. Isaura, tranquila, ultimava os preparativos, pedia
sossego. Mas os garotos tinham a sua excitação, as suas queixas mútuas. Por
fim, abancámos nós; e, distraídos ou surpresos, os garotos acalmaram. Mas,
logo que se estabeleceram na novidade, recomeçaram em violenta diatribe.
Gritavam, erguiam-se, apresentavam reclamações sempre aos berros,
mobilizavam a atenção de Isaura, dos pais dela e por fim de minha mãe. No
entanto, no meio desta balbúrdia, Tomás falava-me em voz baixa, como se
tudo fosse silêncio. Ficara num dos topos, eu logo ao lado dele. Com uma
violência crescente, os miúdos atiravam-se impropérios, amuavam, pondo o
prato de lado, tinham exigências especiais, chorando com alarido,
abandonavam a mesa e atiravam-se em correrias, esboçavam mesmo cenas de
pancada.
Entretanto, porém, Tomás ia comendo calmamente.
Voltava-se para mim, apresentava uma ideia das que o iam percorrendo:
- Eu não sei bem qual é o teu problema. Nem como o desejas solu-cionar.
Mas parece-me que o problema hoje é só um, e a gente, vê tu, anda tanto à
trela que nem sequer nos é fácil inventar ou descobrir outras questões. Ora
bem...
Um prato caiu no chão com um fragor de estilhaços.
- Ora bem - continuou Tomás tranquilamente. - Se o problema é o da
harmonia, eu sei que não há problema. E os problemas, aliás, não sendo nossa
invenção, não tendo nascido em nós, em que medida não são o nosso
passatempo? Tu dizes e eu também que tudo o que interessa à nossa vida é
nossa criação: o teu problema criaste-o tu? Tens a certeza?
Era-me difícil falar no meio daquela algazarra. Eu mal ouvia Tomás; e um
sorriso de ternura para a sua serenidade, para aquela impossível instalação na
vida com o silêncio dos campos ou o estrépito das crianças, começava a abrir
em mim e a desarmar-me.
Tomás era de um mundo diferente. Mas somente a sua confissão de
evidência harmoniosa me intrigava, me excitava. Teria ele atingido o cimo
inverosímil que eu sonhava existir como limite indistinto da minha busca
sufocante? Seria ele a prova concreta de que esse limite existia? Ter-lhe-ia
aparecido a evidência da plenitude num mundo desértico, com rastos
profundos de tantas vozes mortas?
- O meu problema - disse eu por fim - criou-se-me, porque o senti meu.
Que os outros mo iluminassem, pouco isso me importa.
Ora pela tarde, imprevistamente, apareceu o Evaristo com a Júlia e o
miúdo. Tinham ido à aldeia, souberam da nossa vinda a casa do Tomás e
vieram também. A sarilhada que se armou alastrou por toda a casa, espalhou-
se pelo pátio. Evaristo palmeava-me as costas, exibia a sua alegria como
exemplo e estímulo do meu génio macambúzio, Júlia, afogueada e gorda,
também me batia, estalando de optimismo e de arremesso. Por fim Tomás
pegou em mim e no Evaristo e levou-nos para as pedras da mata, onde ainda
dava o sol. Na copa alta dos pinheiros, uma leve brisa ressoava a espaço e
silêncio. Mas não se via bulir um ramo, uma erva, naquela plácida aridez de
um dia linear. à nossa frente, o alinhamento seco dos galhos da vinha
lembrava a ordenação final de um campo de mortos; e, no fundo, a casa,
acaçapada e sombria, soturna de Inverno e de grandes medos, entroncava-se
em força, na força da própria terra, com a face escura da escuridão dos
séculos... Mas só eu parecia ter olhos para tudo em volta, porque, quando vim
a mim, Tomás e Evaristo altercavam com firmeza. Evaristo desengonçava-se
com o seu ar matra-queado, Tomás erguia a fronte, sólido de serenidade. Era
a questão das partilhas. Num papel já pronto e bem discriminado, Evaristo
anotara a valorização das terras, com as diferenças miúdas de pés de oliveira,
árvores de fruto, regime de águas de regas, muros em ruína. Eu não era
casado, não tinha filhos e talvez por isso não entendia bem o preço
esmiuçado destas coisas. Deixei que os dois se entendessem. E, para que a
minha presença os não perturbasse, afastei-me mesmo com um cigarro.
Explorei a mata, fui ver o horizonte para o lado de trás, tomei nas mãos um
bloco de neve, olhando-o encantado na sua maravilha. Quando voltei,
Evaristo e Tomás estavam mudos, decerto amuados. Perguntei:
- Chegastes a acordo?
Iam falar os dois ao mesmo tempo. Calaram-se, fitaram-se a ver quem
falava primeiro. Evaristo adiantou-se: ele propunha que a Tapada formasse
um lote e que a Urgueira e a casa formassem outro. Mas Tomás entendia que
a Urgueira e a casa só podiam interessar a quem quisesse a casa. Ora o
Evaristo punha a condição de não ficar ele com ela, porque não vinha viver
para ali. Mas Tomás também não.
- Fica para mim - disse eu.
Calaram-se ambos. Mas logo Evaristo se ensarilhou numa demons-tração
imbricada de que a casa e a Urgueira valiam mais que a Tapada. Para ele,
claro, não valiam, mas só porque lhe não interessava viver na aldeia. Em
absoluto, a casa valia metade da Tapada, até porque tinha terra em volta.
Consentia que eu ficasse com ela, se desse uma compen-sação aos dois. Por
exemplo: vinte contos.
- Já não fico com ela - disse eu.
Evaristo então disparatou. Não julgasse eu que por ser doutor o podia
enrolar. Uma vez que eu aceitara ficar com a casa, não podia voltar atrás.
Expliquei que aceitara, mas sem compensação. Além disso, a mãe continuaria
a viver nela e, portanto, a casa só seria de facto minha após a sua morte.
- Que Deus Nosso Senhor te castigue do roubo que nos queres fazer! -
clamou Evaristo.
- Não quero a casa! Acabou-se - declarei. - Organizem os lotes como
entenderem e tiram-se depois à sorte.
Afastei-me de novo, deixei-os com o problema. Mas pouco depois cha-
mavam-me. Regressei. Tomás propunha que fôssemos para uma espécie de
escritório que ele tinha a um extremo da casa e onde se acumulavam livros
em estantes, alguns no chão, entre material de apicultura, um enxofrador de
vinha inpregnado de verdete, fios de uvas secas e alguns braços de cebolas.
Evaristo recorria de novo aos poderes divinos para nosso castigo. E, de
súbito, uma voz esganiçada falou à fechadura da porta:
- Olhem que a Tapada é para mim. Estás a ouvir, Evaristo? Olha que a
Tapada é para nós.
- Assim é impossível - disse eu, farto.
Foi uma operação difícil. Havia que recorrer a um advogado. à ameaça de
despesas, Evaristo consentiu no sorteio.
Os lotes ficaram a seu gosto. Mas foi, apesar de tudo, diante de um
advogado que se tiraram os bilhetes. Coube-me a Urgueira e a casa. Fora o
Esteval e uma mata. A Tapada ficou para o Tomás.
Evaristo cortou relações connosco.
XIV

E eis-me de novo em Évora, por uma manhã de sol. A minha história


espera-me mais terrível do que nunca, disparando para o seu desfecho. Venho
à janela do comboio, que abranda a marcha e estremece nos trilhos, olho a
cidade, que ao longe se move lentamente. O sol limpa-lhe a face, a colina
ergue-a na mão como a um objecto de preço. Fico de pé a vê-la, a mala ao
lado, pronto para o desembarque, olho a massa escura de São Francisco, as
torres negras da Sé, os blocos brancos dos prédios construídos uns nos outros,
e, em volta, como um espanto da cidade, a imensa planície já verde. O
comboio estaca num súbito silêncio que torna mais solitária a estação. Desço
com a mala, o chão de cimento solidifica-se-me sob os pés.
- Alguma coisa, senhor engenheiro?
Manuel Pateta vem para mim com os seus passinhos de arame. Soergue o
boné, os olhos chorosos escorrem aguardente. Dou-lhe a mala, ele põe-se a
andar adiante, dobrado em compasso, como se lhe doesse o ventre, as calças
de ganga pelo meio da canela, os pés sem meias em alpercatas brancas.
Acendo um cigarro e, embora haja táxis na estação, prefiro seguir-lhe atrás o
seu andar de pássaro. De repente o homem parou, voltou-se. Tinha algum
problema a resolver:
- O senhor engenheiro vai prò Machado?
Falava com uma voz presa de sarro e de cuspo.
- Vou, vou para o Machado.
- Mas sabe, senhor engenheiro, o senhor engenheiro se calhar não sabe, o
senhor engenheiro não pode ir para o Machado, a pensão do senhor Machado
já fechou.
- Fechou?
- Fechou, sim, senhor engenheiro. O senhor engenheiro não pode ir para lá.
A pensão do Machado já fechou. O senhor engenheiro pode ir para a
Eborense ou para a Diana, também pode ir para a Giraldo.
E, sem mais explicações, pôs-se a andar outra vez. Fui apanhá-lo, pus-me a
andar ao lado dele, quis saber o que havia. O homem explicou:
- O senhor Machado fazia parte de um grupo. Depois disseram à Polícia
que eram comunistas. Mas não eram. Andavam de camisa a... a dançar...
Olhei-o um instante, ele deixou cair o beiço gretado e riu-se apaler-mado e
de gosto. Ia andando, parava de vez em quando, olhava para mim e ria de
novo.
Com efeito, a pensão estava deserta. Foi uma mulher gorda quem me
atendeu, de mãos dadas sobre o ventre: o Sr. Machado fora à terra, resolvera
fechar a casa. Instalei-me, pois, na Eborense, para onde levei as minhas
coisas. Mas nesse mesmo dia tentei saber quem era o dono da casa do Alto.
E, para a execução completa do meu projecto, pensei numa escola de
condução que me desse carta em breve para comprar um carro. Era um
projecto que eu trazia de férias, desde o sorteio dos bens. Alto de São Bento,
o vento da planície e os meus olhos perdidos na lonjura... Agora, porém,
arrumado o problema da pensão, queria era ver Sofia. Escrevera-lhe da serra,
não me respondera nunca. Desci por isso a sua rua, pela tarde, depois de fazer
horas no café, após o almoço. Sofia! à medida que me aproximava de casa, a
sua imagem ardia-me em todo o corpo. Precisava tanto de ti, Sofia, que eu
tremia de dor e julgava inve-rosímil que tu estivesses a dois passos, do lado
de lá da porta, com o teu riso fresco, os teus olhos vivos de inocência e
perversão, o teu corpo áspero e delicado. Suam-me as mãos, a minha boca é
uma maldição de secura. Relembrei-te nas férias? Não sei: escrevi-te várias
vezes. Mas havia tanta coisa sobre mim - velhas memórias e o espaço e o
silêncio e a neve. Agora estou só com a minha violência. Toco a campainha,
a campainha não se ouve e fico na dúvida sobre se funciona. Mas algum
tempo depois o trinco da porta estala e Lucrécia aparece, baixa, a face alegre
a espirrar de vermelho.
- Adeus, Lucrécia. (Como está o senhor doutor?) A menina Sofia está?
- A menina Sofia não está!
Não estava? Estupidamente, nem perguntei pelos senhores. A minha
primeira visita devia ser para eles, mas Sofia enchia-me todo, expulsava a
memória dos pais. No entanto, senti obscuramente que era bom ela não estar.
Havia o meu alvoroço imbecil, a minha ira dolorosa, a minha ideia tão fixa,
tão apertada no crânio, tão ardente de execução, que me parecia inverosímil
que Sofia existisse. Subi, pois, de novo a rua, quase contente de que tudo
falhasse, para que dentro da minha calma o mundo me renascesse. Mas
quando cheguei à Praça, vi Ana e Alfredo. Ela vinha esplêndida como
sempre, o seu cabelo louro enrolado ao alto, saia e casaco cintado, abrindo na
gola branca da blusa como uma flor. De sapato alto, um volume quente à flor
da saia, batia-a toda uma onda de plenitude. A seu lado, Alfredo exibia
ostensivamente o seu fato grosseiro de camponês, calça de cotim, bota de
cano, um blusão de um castanho desbotado. Foi ele quem me descobriu:
- Olha quem ele é! Então já de volta, doutor?
Cumprimentei os dois. Ana, como se eu não tivesse saído de Évora, falou-
me serena. Mas disse depois bruscamente:
- A Sofia ficou de vir ter connosco ao café. Não quer vir também?
Sim, vou; mas porque mo perguntas? Porque me odeias? Acaso porque me
amas? Seria cómico, mas tu sabes, o Alfredo é possível que o suspeite. E de
quem não suspeita ele? Ei-lo aqui a nosso lado, vestido de esfregão. Que a
cidade inteira lhe insulte a humilhação para que esse insulto se vire contra ti,
contra o teu esplendor de fêmea soberba.
Fomos para o Lusitânia, instalámo-nos ao fundo, no canto da direita.
- Que é que toma a minha Anicas?
- Chá e bolos.
- E você, caro doutor?
Podia ser um galão e uma torrada.
- Pois eu vou num bife com batatas fritas. E uma garrafa de cerveja.
- Ó Alfredo...
- Mas que quer a queridinha? Estou com fome, tenho apetite...
Eu, porém, mal o ouço. Penso em Sofia. Toda a frente do café se rasga em
vidraças, olho através delas o trânsito da rua. Estava um dia claro de Inverno,
com um sol vivo pelas fachadas.
- A minha queridinha já não gosta do seu filhinho? Porque eu (diz para
mim) sou o filhinho dela. Ela trata de mim, ela dá-me conselhos. Mas o
filhinho porta-se mal, não é, queridinha?
- Não dês espectáculo.
- Vê? Já está a ralhar com o menino.
- Diga-me uma coisa, Ana: a Sofia esteve doente?
Ela olhou-me longamente até me entender. E depois, com piedade:
- Não. Não esteve doente.
O criado trouxe o meu lanche e o de Ana. Alfredo impacientava-se:
- Esse bife, José, esse bife.
Desapertava o blusão, metia os dedos nas cavas do colete que trazia por
baixo. Ana trincava um bolo, bebia o chá, de busto direito, a goles solenes.
Eu sentia-me vexado. Então Ana perguntou-me:
- Que tal as suas férias?
- Bem. Muito frio, muita neve.
- Sim. E meditou? E aprofundou as suas teses?
- Teses? Mas uma tese não se medita: fala-se, lê-se, discute-se. A vida é
mais séria do que isso.
- São servidos? - pergunta Alfredo, quando o criado lhe traz enfim o bife. -
Não queres um bocadinho, Aninhas?
Ela cerrou os olhos sobre si, apertou os dentes, como se lhe tivesse dado
uma dor repentina. Abriu os olhos, disse em voz surda:
- Não.
- E você, doutor?
- Obrigado.
Inesperadamente, Alfredo perguntou:
- Sabe que a raça dos cavalos está a desaparecer?
- Não sabia - disse eu, amável e desnorteado.
- Está a desaparecer. A prova está em que para a procriação é preciso um
chegador ou apontador. Cá para o Alentejo chama-se apontador. Mas creio
que para o Norte lhe chamam chegador.
Era uma intervenção absurda. Ana baixou os olhos, pálida, uma ira fina nas
narinas trementes. Acendi um cigarro, olhei a rua: quando viria Sofia? O café
estava quase deserto. Uma ou outra pessoa avulsa quedava-se imóvel e
alheada, diante da mesa e da chávena vazia; os criados, de pano branco no
braço, encostavam-se ao balcão. Silêncio estranho para a minha tensão, para a
grosseria ofensiva de Alfredo, para a imóvel tensão de Ana, toda aguda de
lâminas... O sol embatia no prédio em frente, iluminava a rua num clarão. A
sala do café esquadriava-se em nitidez nos reflexos dos metais, na lisura dos
mármores, na lucidez das vidraças, como uma evidência estéril. Se tu viesses,
Sofia...
E ela veio, enfim. Surgiu à porta, de casaco amplo, fina, quente de
intimidade. Trazia o cabelo solto, a orla enrolada à volta como no dos
cavaleiros medievais, uma franja na testa e os olhos vivos de sempre. Mas
quando chegou ao pé de nós, disse-nos apenas:
- Olá!
E esclareceu logo depois que o Chico vinha aí.
- Só ele? - perguntou Alfredo.
- Não. Vem também o Carolino.
E compôs, num disfarce, qualquer coisa no cabelo, olhando o vazio,
sorrindo. Que tenho eu com isso? Eu to pergunto desde a minha noite longa.
Acaso te amei? Não amo ninguém, não amo ninguém: amo a minha
violência. Senta-te, Sofia. Toma o teu lanche. Que fio invisível te une agora a
Ana? Belas ambas e um desafio comum à minha ira infeliz...
- Então quando veio, doutor?
Toma o teu lanche. Sim, está quente. Tira o casaco, eu te vejo ainda agora,
de busto flexível como uma cólera sanguínea... Sim, vim hoje:
- Não lhe mandei dizer quando vinha?
Alfredo ri o seu riso oco e guinchado, de olhos fitos no bife.
- Claro! Que memória a minha - disse Sofia. – E tu, Ana? De corpo bem
feito? Mas está um dia esplêndido.
Tudo quanto eu dissesse estava a mais. Havia, porém, talvez a minha
curiosidade legítima. Não penses. Que são os outros para a tua vida, a tua, a
tua, essa que te remorde e te ameaça e exige explicação? Que são eles mais
que a distracção inútil ou prejudicial? A luz morre devagar, o branco das
casas vibra num tom violeta, a cor da esterilidade... Há aulas amanhã e o
aceno da tua casa no Alto para tocares, sem importunos, a verdade da tua
condição.
Chico aparece e vem com o Carolino. Vejo-os avançar pelo café, Carolino
à frente, de olhar inquieto, mas não tímido, Chico atrás, baixo, bloqueado de
força, o ar empertigado de boxeur.
- Então os meus meninos só agora? Senta-te, Chiquinho. Sente-se você,
Carolino. Que é que tomam Vai um bifezinho?
Bexiguinha está agitado, cumprimenta-me comprometido, o olhar incerto,
o sorriso incerto, olhando em roda à procura de lugar. Chico aperta-me a
mão; na sua mão quadrada, com um ar evidente de desprezo. Agrupa-se uma
nova mesa à nossa, Carolino instala-se ao pé de Sofia. Há um momento de
embaraço, eu fumo um cigarro. Alfredo chama o criado.
- Sempre vai para Lisboa para o ano? - Pergunta-me Ana.
- Não sei. Espero uma vaga neste concurso:
- E essa coisa da pensão? - interrompe Alfredo. - Isso é que foi uma
escandaleira! Muito me ri eu quando me contaram. Só ontem, minto, só
anteontem é que eu soube. O doutor conhece a história?
- Contou-ma o carregador.
- Era o Machado, era o Dagoberto também, era... quem era mais? Todos à
roda a dançarem; O diabo dos homens, para o que lhes havia de dar...
Mal o ouço. Olho Sofia. Há um diálogo mudo entre ela e Carolino.
Carolino baixa a cabeça, faz sinais com os olhos, franze a testa, sorri, faz
gestos com as mãos. Sofia olha, interrogadora, pensa, tem enfim um sorriso
de quem entendeu.
- E agora para onde muda? - pergunta-me Ana.
- Para o Alto de São Bento. Alugo lá uma casa Se cá ficasse, comprava um
moinho.
Toda a gente se interessou pelo meu projecto.
Sofia pergunta-me logo, a meio do seu diálogo com o Bexiguinha:
- Quando muda?
- Logo que tenha carta de condução. Sim, tenho de comprar um carro.
- No Alto de São Bento? - estranhou Ana. - Que ideia!
Porquê, Ana? Estou longe, estou só. Largar-te-ei à tua liberdade, eu o
demónio que te irrita, largarei Sofia, a minha vida é criminosa, vós mo fazeis
acreditar. E, no entanto, não há verdade alguma fora dela. Chico pareceu
ouvir-me:
- Mas é um sítio ideal para ele - disse a Ana. - Está isolado, pode meditar
em sossego sobre o espantoso milagre de estar vivo e o incrível absurdo da
morte.
Mas tu não riste, Ana. E perguntaste-lhe a ele o que tinha ele a dar aos
homens. Chico foi claro como um murro:
- Pão e orgulho.
- Orgulho de quê?
- Deles mesmos. Para não consentirem que lhes ponham a pata em cima.
De queixo nos polegares, Sofia e Carolino espreitam a conversa de longe.
Estais, pois, unidos secretamente. Como me sinto ridículo. A união, aliás, é
entre todos vós. Eu a pressinto neste meu banco de réu. Que és tu, Ana, mais
do que um meu advogado de defesa - se fores?
- Que fará você - pergunto a Chico - quando os homens tiverem comido e
já estiverem a fazer a digestão?
- Conforme. Se a digestão for difícil, bicarbonato. Se não for, um passeio
ao ar livre ou um bocado de sesta.
Alfredo, de olhos piscos, a face redonda de sorriso, fumava e ouvia. De
súbito, interrompeu:
- Vocês sabem quantos coelhos pariu este mês uma coelha branca que lá
tenho?
Mas Chico insultou-o: para o diabo ele mais a coelha dele:
- Já me tramaste - chorou Alfredo. - Já me codilhaste. Há tipos que só são
felizes quando podem humilhar os outros.
Olhei Ana, ela tinha os olhos baixos, revolvia, séria, o açúcar no fundo da
chávena.
- Tenho de ir indo - disse eu.
Chamei o criado, mas Alfredo travou-me o braço: “estava pago, ora essa;
não senhor, estava pago”.
- Quando muda? - perguntou-me Ana, como se falasse só para mim.
Mas eu já lho tinha dito: dentro de uns vinte dias. Ela sorriu:
- Depois nunca mais aparece.
- Que ideia. Aliás...
Voltei-me para Sofia, embaraçado:
- ... não temos o nosso latim para resolver?
- Ah, não sabe? O pai não esteve consigo?
- Não o vi ainda. Cheguei hoje.
- Mas não foi lá a casa?
Neguei cobardemente. Neguei sem pensar. Sofia; porém, foi cruel:
- A Lucrécia... vejam aquela rapariga. Disse que o doutor tinha lá estado
pelas quatro horas.
Vexado - eu já estava de pé -, declarei abertamente:
- Fui procurá-la mas foi a si.
XV

Mas o que o pai de Sofia me não dissera disse-mo o reitor. Com efeito,
logo no primeiro dia de aulas, ou logo num dos primeiros, mandou-me aviso
de que me queria falar. Procurei-o à tarde, mas na reitoria só estava o
perdigueiro, enroscado a um canto, consumindo o seu tédio. Esperei à porta
da secretaria, olhando o claustro já despovoado, os últimos raios de sol que
douravam o perfil da frontaria. O homem veio enfim de qualquer sala
longínqua, insólito na solidão das arcarias. Fez-me entrar à frente, indicou-me
um sofá:
- A... Eu mandei-o chamar... a...
Depois sorriu, para que eu me sentisse melhor. Mas eu nunca me senti mal,
reitor. Tu eras um ancião e no teu ar largo e pesado perdiam-se, como num
mar, todos os ímpetos do mundo. Fala, bom homem. Eu te escuto ainda
agora:
- É preciso cuidado, todos temos inimigos. Ora vieram-me dizer que você
dava lições.
- Lições?
- Sim. à filha do Moura.
- Sofia? Mas... Não são lições. Ajudo-a no latim.
- Pois é... pois é... De qualquer maneira, são lições particulares. E a lei, já
vê, a lei é clara. Não dê lições. Está bem, uma dúvida de vez em quando, uma
pergunta que ela lhe faça... Mas já vê: lições regulares! Duas vezes por
semana, não era?
- Sim, realmente, duas vezes. Mas gratuitas. Eu não dava propriamente
lições... É extraordinário como estas coisas se sabem logo.
Temos inimigos, todos temos inimigos, explicava ainda o bom homem, de
olhos baixos, beiço estendido. Todos temos inimigos, era preciso cuidado
com os inimigos. Como soubera ele? Era fácil: recebera uma carta anónima,
perguntara ao Moura, e o Moura (que é um belo rapaz) natural-mente
confirmou logo.
Saí embaraçado de fúria e de surpresa. Quem fora o canalha? Como o
soubera? Mas não te agites: Sofia, de qualquer modo não quereria mais
lições. A tarde alonga-se em silêncio - olha-a, escuta-a. Estás só. É bom
estares só. Ao alto da rampa suspendo-me, disperso. O largo está vazio,
debruço-me das grades, vou pela planície de olhos perdidos, até à linha aguda
da serra azul e longínqua. As searas abrem-se em promessa à aparição das
sombras. Talhões ainda despidos alisam-se, macios. Casas avulsas recolhem-
se ao primeiro sinal da noite. Um apelo doce de uma paz longínqua fala-me
onde me esqueço, imperceptivelmente, insidiosa-mente. E é já quase com
violência que me ponho a andar ao acaso pelas ruas. Vou pela Rua do
Colégio, tento prender-me das casas à beira, olho por outras ruas, que descem
a pique, com muros de quintais, palmeiras abrindo pelo céu, apontando ao
longe súbitos trechos de planura que me lembram uma praia, uma ria de
povoações marinhas. Há uma casa à direita, ao alto de um jardim, com uma
fachada de azulejos azuis, um terraço com balaustrada. Tem um olhar de
horizontes como quem chega a um mirante. Do portão de ferro, que dá para a
rua, entre duas colunas, sobe uma escadaria para um parque de ciprestes e
limoeiros. Uma outra casa adiante, com um brasão, abre-se de arcarias, num
jardim traçado pela curva da rua. Contorno-o, olho-o. Meto pelo labirinto das
ruas ao pé da Sé. Há uma a pique, penosa como uma velha penitência. Paro a
meio, ergo os olhos para a massa escura da catedral, o alinhamento dos
contra-fortes, a renda de corda, lavrada a mãos grossas, pelas rosáceas, pelas
ameias, a ascensão, até às flechas, de uma força entroncada, vinda do fundo
da terra, escorrendo ainda o seu negrume de raízes... Dos frisos imbricados
milhafres atiram gritos para o silêncio; por cima dos coruchéus, no vasto céu
azul, uma nuvem isolada vai passando devagar.
No entanto, o meu corpo não se engana. Eis que, depois de vaguear pelas
ruas e becos, esta humilhação secreta de ossos e de vísceras, esta cólera
sangrenta, este choro oculto e desgraçado de baba e solidão, este urro
amordaçado se exprimem de uma só vez quando estou de novo na Praça, ao
cimo da rua de Sofia. Desço apressado como se com receio de que a urgência
me abandone. Aperto o botão, não ouço a campainha: terá tocado? Agora
espero; agora amedronto-me, tenho quase pena de mim. Mas o trinco estala e
Lucrécia aparece. E, sem me deixar falar, explica imediatamente que:
- A menina Sofia está a dar lição.
Mas eu não to perguntei, Lucrécia! Eu venho é visitar os Senhores.
- Então faça favor de subir.
Mas espera: a dar lição? Quem lhe dá lição agora? Lucrécia não responde,
mas eu também não chego a perguntar. Hesito ainda junto ao bojudo pote de
cobre que centra todo o átrio. Subo enfim a larga esca-daria de granito,
bordada das bilhas de barro que, Moura coleccionava. Terá ele já bilhas da
Beira? Nunca lho perguntei, mas deve ter, os cântaros da Beira nada têm de
especial. Lucrécia abre-me a sala de visitas, que é também o escritório, e ali
me deixa no silêncio de carpetes e reposteiros. É um silêncio esponjoso,
selado a mofo, que me afoga a boca, os olhos, os ouvidos.
Passa com estrépito uma carroça na rua: ouço-a num rumor amor-tecido
em sucessivas pastas de algodão... Que faço eu aqui? Sinto-me mais presente
a mim, mas de uma presença mole, gomosa, aturdida de estofos. Ouço passos
no corredor, Madame vem aí enfim. Mas os passos perdem-se de novo, lá
para dentro. Que vais tu dizer-lhe? Naturalmente, vens trazer cumprimentos.
Supõe que te fala de Sofia, evidentemente fala-te de Sofia. Sê calmo, sê em
evidência como a vida, o caso de Sofia é bem claro, houve a carta, o reitor, e
há tanta coisa por cima e à volta e para além... Mas eis Madame à porta (não
lhe ouvi os passos), loura, risonha e abundante. Senta-se e é como se se
sentasse sobre a vida. Como estava eu?, quando tinha chegado? - eu já viera
ali a casa...
- Vim a horas inconvenientes, não apresentei cumprimentos...
Madame sorri, pára, atira-me olhares clandestinos, pousa os olhos no
regaço, volta a fitar-me, mas fixa-nos com um olhar amplo onde caibo eu,
alguém mais, a vida toda, que ela já vê soberanamente em conjunto. E eu
sentia-me quase bem, desaparecido aí, na sua protecção, na sua tolerân-cia,
no seu ar cimeiro. Ou será que tudo isso, boa Madame, é o desprezo pela
minha insignificância, este meu ar tímido, consumido em magreza, em olhos
estonteados? Porque tu sabes, desde o teu trato mundano, batido no teu corpo,
nos teus prazeres secretos (como será a tua submis-são no prazer?), nas
nódoas dos teus desgostos, nas tuas mentiras, na mecânica endurecida da tua
convivência, tu sabes que a aventura de Sofia é um pormenor sem
importância, excepto no protocolo correntio; no rumor fácil das palavras
convencionais, tão sem importância como a nulidade de um pobre professor,
de um jovem magro, assustadiço, não alisado pelo uso e em cujas arestas é
fácil prender as mãos. E se não é assim, se há uma consciência na aventura de
Sofia e na minha, que fiquemos com ela - tu o pensarás, Madame - e que a
aproveites ane-xando-a ao teu mundo de conveniência.
- Essa questão das lições... - Diz, Madame! Essa questão...
- ... Vocês podiam continuar como até aqui, que ninguém sabia nada.
- Mas como se soube?
Como se soube, Madame? Acaso imaginas quem me terá denunciado?
- ... Poderia tê-lo feito alguém muito da casa.
- Quem?
Eu não sei, Madame. Supõe que foi o Alfredo, ou Ana, ou o Chico, ou a
própria Sofia.
- ...Porque a gente fala com A ou B à confiança, não pensa que A ou B diz
a C ou D e assim por diante. Aliás, que mil razões profundas para isso e que
tu não sabes, Madame, nem eu?
- Portanto, o senhor doutor também poderia ter falado.
Toca, Cristina. Ouço-te ao longo da porta entreaberta, ao longo dos
corredores - que vens tu fazer à nossa conversa? O dia morreu cedo através
destes cortinados, destes reposteiros, o teu piano é a voz desta hora, do meu
cansaço.
- Sim, minha senhora, eu podia ter falado. Mas não falei.
- Eu chamo a Sofia.
Lucrécia apareceu toda vermelha, foi abaixo, voltou - Sofia tinha saído.
- De resto - disse eu -, Sofia já tem professor.
- Que professor? O Carolino?
- O Bexiguinha?
- Quem é o Bexiguinha?
- Os rapazes chamam Bexiguinha ao Carolino. Ele tem aquelas borbu-lhas,
chamam-lhe o Bexiguinha.
- Mas o Carolino... Não. Que ideia! – disse Madame. - O rapaz é do
Redondo, a Sofia esteve lá nas férias, tenho lá uma irmã. O Carolino
prontificou-se a estudar com ela. Mas ele é, coitado...
E calcule, desistiu do liceu, vai como externo a exames. Que pode saber
ele?
Toca, Cristina. Suspenso da tua música, ouço.
Devo ter erguido a mão, a interromper Madame. Ela consente, Madame
sorri, quero eu ir ouvir?
- Sim.
Vamos pé ante pé, o teu piano enche o deserto da casa, as abóbadas, a
escadaria, as sombras dos corredores. É a sala de outrora, de um outrora que
já não sei - onde de mim?, em que hora de paz ou de agonia, de plenitude ou
de choro, lembrada agora, evocada agora com o seu sinal de origens para lá
da vida e da morte, agora, neste rumor de Inverno e de grandes ventos? A
porta está aberta, eu sustenho Madame para não interromper. De costas, a
cabeleira loura de Cristina desce-lhe pelos ombros. Tem uma camisola azul
de malha. Em frente, aberto na estante do piano, um grande livro de música.
Madame entra cautelosa, eu fico à porta um instante. Decerto Cristina ouviu-
nos, mas não se interrompe. Ou talvez não tenha ouvido, e eu sinto que seria
bom que não nos ouvisse, a nós, à nossa grosseria, às nossas manhas de
animais em disputa, à parte de nós manufacturada pela vida. Entro também na
sala, instalo-me num sofá, de modo a ver a face de Cristina. Do alto de uma
janela, à esquerda do piano, desce a última claridade da tarde. E é para mim
uma aparição essa alegria que me ignora e sorri da luz para Cristina, para os
objectos na sala. Toca ainda, Cristina. E que estarás tu tocando? Bach?
Mozart? Não sei. Sei apenas que é belo ouvir-te nesta hora breve de Inverno,
neste silêncio fechado como uma pérola. Um halo vaporoso estremece à tua
volta e eu tenho vontade de chorar. Que tu sejas grande, Cristina. E bela. E
invencível. Que te cubra, te envolva o dom divino que não sei e evoco à
memória de um coral majestoso no centro do qual te vejo como no milagre de
uma aparição. Escrevo pela noite e sofro. Onde estás tu e a tua música?
Cristina... Se tu viesses! Até à minha fadiga...
Direita, as mãos dadas à frente, com a tua rugazinha de seriedade, uma
revoada de brancura a envolver-te, cantando-te... Sê viva sempre, Cristina. Sê
grande e bela. Deuses! Porque a traístes? Eu te guardo agora como um perene
nascimento, como a memória sufocante de uma verdade inacessível.
Cristina terminou enfim. Abro-lhe os braços, ela vem para mim de olhos
baixos, ergue-os depois e sorri tolerante.
- Sabes que tocaste muito bem? - digo-lhe, depois de também sorrir.
- Não foi muito bem, não. A minha professora diz que eu tenho de tocar
mais depressa.
- Mas ela não pode - disse Madame. - Os dedos ainda não chegam.
- Pois é. As oitavas não posso. E, mesmo os pianos e forte, a minha
professora diz que também não estão muito bem.
- Tem de estar um dia - digo-lhe. - Há-de estar tudo um dia muito bem.
Espero ouvir ainda o teu primeiro concerto.
Ela fita-me de lado, desconfiada, faz depois um momo de aborreci-mento,
como se eu estivesse a fazer troça.
E a minha vida recomeçou, cronometrada a aulas, a toques de sineta, a
longos silêncios de cigarro no quarto da pensão, a vagabundagem pela
cidade, sobretudo às horas da tarde. Tomava lições de condução e em breve
teria a carta, porque de há muito sabia a teoria (desde que um dia, há muitos
anos, meu pai me explicara o mecanismo das alavancas) e porque tinha, na
opinião do instrutor, decidida vocação para o volante. Foi todavia um período
desagradável: a cidade renascia-me sob o signo da mecânica, com ruas
apertadas, cruzamentos enviesados, cotovelos em ângulo recto. A rede das
ruas esboçava-se-me em movimentos instintivos, mas ainda conscientes, dos
meus membros, apelava para o jeito das mãos na rotação do volante ou dos
pés na manobra dos pedais, aparecia-me aos olhos na decifração das placas
que regularizam o trânsito. Uma rua estreita e distorcida não era uma voz de
tempo e de silêncio - era um comando aos reflexos de pés e mãos.
Pela manhã, os ruídos da cidade criavam-me os sinais com que ainda a
relembro. Estrépito de carroças, batendo a ferragem nas calçadas, a corneta
do azeiteiro, toque de ferrinhos do caldeireiro ambulante; pregões do
vendedor de queijo meia-cura, queijo, do comprador de peles de coelho ou de
lebre, do vendedor de mel, água-mel e louça - ó cidade estranha, cidade
velha, portas entreabertas para pátios seculares com velhos criados de lavoura
de blusas de xadrez, com as pontas atadas à frente, campaniços de pelico
vindos das herdades, cidade milenária dormindo o sono da planície, entre os
restos deixados pelas praças e povos que vieram, se cruzaram, partiram.
Nestas noites de vigília ressoam-me à memória as horas das igrejas, vibram-
me até ao anúncio indistinto do meu alarme, rolam pelo descampado sob a
eternidade do céu. No limiar de uma porta da Rua da Selaria, por uma tarde
de chuva, um cão tirita ainda, de focinho apontado para a sua janela alta, à
espera de que a abram e lhe atirem um osso...
Não vi Sofia durante longo tempo. Entretanto tirei a carta, comprei carro e
aluguei a casa de São Bento. Mas não me mudei logo, porque era necessário
decidir várias questões prévias (mulher da arrumação, refeições na cidade,
compra de alguma mobília). Um dia, porém, recebi um bilhete de Sofia:
podia eu estar em certa hora no Museu? Fui. Sofia estava já no pequeno
claustro, estudando, dobrada com interesse, a inscrição de um cipo funerário:
- Ouça, doutor. Você, que sabe latim, diga lá o que é que isto quer dizer.
Como se nada houvesse entre nós. Tentei ler a inscrição. Mas nesse
instante uma avalancha de turistas invadia o Museu. Eram estrangeiros,
decerto ingleses, pela tralha de aparelhos que traziam ao ombro e pelo ar
infantil, branco e rosado, dos cavalheiros, mesmo idosos (como pela face
avelhãtada das mulheres, mesmo jovens). Espalharam-se pelo claustro,
desorientados, até que um cicerone veio tomar conta deles.
- Se saíssemos? - propus a Sofia.
- Para onde?
- Para onde... Bom: antes de mais: que me queria você?
Ela fitou-me com o seu olhar cintilante. E falou.
Mas o que me dizia vi bem que ficava à superfície
do que era mais grave.
- O Alfredo quer que a gente vá no domingo almoçar à Sobreira. Mas teve
receio de o convidar.
- Receio? A mim?
- Você já leu o Eterno Marido, de Dostoievski.
- Mas receio porquê?
- Pavel Pavlovitch esqueceu-se de interpor ou o Stepane ou o Veltchaninov
entre Natália e um deles.
- Não sei o que quer dizer. Sei que Ana é uma mulher extraordinária.
Mas a vaga de turistas regressava das salas do rés-do-chão.
- Se saíssemos? - perguntei de novo. - Podíamos... É verdade: você não
quer experimentar o meu carro?
Ela cerrou os olhos em deliberação profunda:
- Sim.
Descemos as escadas da Sé, perdemo-nos por vielas até à garagem perto do
jardim. Julguei que Sofia preferisse esperar-me na rua: acom-panhou-me e
instalou-se logo no carro. Na estrada de Reguengos, pouco adiante do desvio
para Viana, havia um eucaliptal atravessado por um caminho que ligava com
a estrada. Foi Sofia quem sugeriu esse sítio, depois de pensar em vários
outros: a albufeira, o riacho na estrada das Alcáçovas, os sobreiros ao alto de
uma rampa da estrada para o Redondo, a ponte, mais adiante, na mesma
estrada de Reguengos. Atento à condução, aos olhares de quem cruzávamos,
eu não falava. E Sofia, absorta, não falava também. O sol de Inverno
iluminava a planície, já toda verdejante e a perder de vista; as árvores das
bermas, em fileiras ininterruptas, entestavam em cunha à velocidade do carro.
Passámos o desvio para Viana, breve a mata de eucaliptos surgia à nossa
esquerda.
Abrandei a marcha à espera do caminho. Sofia pôs-me a mão no braço:
- É aqui.
Era um caminho escavado, com cortes bruscos que sacudiam o carro.
Parámos enfim numa clareira e aí ficámos algum tempo em silêncio, sem nos
movermos. A minha atenção desprendia-se do carro. E naquele súbito
descampado, com o aroma intenso de Sofia ao pé de mim, as suas formas
quentes entre o casaco aberto, a sua face tenra e branca, o seu olhar oblíquo
de pecado, inchava-me de cólera o corpo todo. E brusca-mente as minhas
mãos ficaram cheias da sua massa, os dentes esta-laram-me como à aparição
de um raio. Sofia, porém, impassível, aguardava sem pressas que eu me visse
só e reparasse que mais alguém estava a ver-me - ela precisamente. E eu me
vi, ridículo, numa espécie de degradação sem cúmplices. Saí do carro, atirei
com a porta e afastei-me, acendendo um cigarro. Quando voltei, já sereno,
Sofia fumava também no seu jeito de pegar no cigarro a dedos breves,
soprando o fumo por um fio de lábios. Sentei-me a seu lado, vago e sério.
- Por quem me toma você? - perguntou-me ela enfim.
- Eu sei o que quero. Eu sei.
- Que se passou nestas férias? não tenho o direito de saber?
- Evidentemente que não. Mas eu conto, eu conto. Foi para isso que vim,
para contar. Conta, Sofia. Para lá dos eucaliptos, na estrada de pedra, o rumor
dos carros cresce como um susto, ergue-se ameaçador, desaparece com o seu
pânico. Podes contar, Sofia, estou calmo e há ainda sol nas árvores.
- Só uma vez você foi grande. E eu penso: você não era isso, você meteu-se
numa ideia como quem se mete numa bicha que por acaso tem pouca gente.
Ou como quem se embebedou.
- Como? Como?
- Mas eu estava feita, doutor. Só me faltava apalavra. Você sabia a palavra.
- Que tem que fazer Carolino na sua vida?
- O Carolino é um homem como qualquer outro. E é novo. Além disso tem
ideias. Também sabe valorizar até o que não tem valor. Mas é
extraordinariamente tímido. Bom, há várias formas de timidez, quero dizer,
várias razões para o ser. Mas a dele é a daqueles para quem um pecado é
mesmo um pecado, uma sedução terrível, e que defendem portanto a
inocência que detestam ou que amam com um amor infeliz. Dirá você:
dominar uma inocência é próprio do homem. Pois é. Mas eu também gosto.
Toda a mulher é um homem não realizado - não é o que vocês pensam Aliás,
dominar uma inocência é talvez uma fraqueza que quer imitar a força. Não é
isso mais próprio da mulher?
- Pobre Bexiguinha - murmurei, tentando valorizar a minha derrota com a
compaixão.
- Mas você também é um tímido! - riu Sofia. - E, depois, ele falava muito
de si. Admira-o ou admirava-o. E eu pensei: assim, também o tenho a ele. Ele
é você.
- Porque mente? - perguntei.
- Mas que é a mentira? O que digo talvez não fosse verdade noutra altura.
Mas é-o agora, porque o digo. Se o digo, achei bem que o dissesse. Logo, é
verdade em mim, agora.
- Coitado do Bexiguinha...
- Que estupidez, doutor! Que estupidez em si!
Carolino disse-me: “Que bonita você é.” Imagine a violência que o
dominava para ele o dizer. Nós estávamos no fundo do quintal dele, a minha
tia tinha ido visitar-lhe os pais. Havia ali um pavilhão com trepa-deiras secas.
A sala tem janelas ao sol. A um canto havia um sofá. Ele chorou, porque foi
tudo muito mais forte do que supunha. Lembra-me um tio que já morreu. Era
um segundo-tio que tomava rapé. Uma vez um primo meu pediu-lhe uma
pitada. À primeira tentativa, o pobre moço desatou a espirrar e passou assim a
espirrar toda a tarde. Meu tio disse-lhe: “Que rapaz feliz! Ainda espirras...”
- Como você é cruel!
- Oh, não me elogie, não gosto que me elogiem. Só eu é que gosto de me
elogiar.
Então tive uma revelação. E, olhando Sofia longamente, pesadamente,
perguntei:
- Quem é que me denunciou ao reitor?
- Mas fui eu, naturalmente.
- Com uma carta anónima!
- Tive de lhe fazer ver que outras pessoas da cidade já sabiam. Só assim
dava resultado.
XVI

A quinta da Sobreira fica na estrada do Espinheiro. Mas vira-se à direita, a


certa altura, por um caminho estreito, bordado de valados e piteiras - e perdi-
me. Descobri enfim a casa, aonde já viera com Alfredo numa tarde vazia de
Dezembro, porque Alfredo gostava de levar os amigos às herdades, mostrar a
sua familiaridade com os camponeses, como quem admite que a generosidade
é uma forma evidente de poderio. Lembro-me de lhe gabar a casa para seu
gosto. Ele massacrou-me logo com a explicação miúda dos confortos da
vivenda.
Filho único, herdara uma interessante fortuna. Mas Ana, infelizmente, não
podia dar-lhe filhos: desarranjo no ventre ao primeiro parto falhado, uma
operação eliminatória. Evoco a quinta ao sol cálido de Inverno. A casa tem
um alpendre à largura da fachada, no estilo colonial, para o lado de nascente.
Uma sala térrea de mosaico abre-se em frescura, relembra já lá fora a
violência do Verão.
Filas de plantas bordam as alamedas, um aroma de mimosas desva-nece-se
no ar com uma lembrança de estradas longínquas. Uma piscina vazia escava-
se no terreiro, com um ar de ruína nas folhas secas, deposi-tadas no fundo. A
um topo estende-se um pano de cimento colorido: um vago frémito de linhas
de água, a rosa e cinzento, âncoras-algas boiando, afogando-se no ondeado
límpido. Alfredo explicara-me que era um muro do Cardoso, seu amigo de
Lisboa. Cheguei quase à hora do almoço, todos mostraram interesse pela
minha demora. Mas foi Alfredo, de chapéu de campónio e com um pequeno
sacho, quem me fez uma festa maior:
- Olha, olha o nosso doutor! Mas isto serão horas de se aparecer? Perdeu-se
então no caminho... O Alentejo é assim, doutor. Como é que a minha
Aninhas diz? Diz lá, Aninhas, diz lá. “Caminhos abertos, caminhos
fechados.” Diz lá tu, que tu é que sabes. Porque a minha Aninhas, em coisas
de livros, de cultura, é uma deusa.
Sorrio, olho em volta. Ana encolhe os ombros.
Sofia saúda-me de longe. Carolino a seu lado para os fundos da quinta.
Ana senta-se ao sol, com um grande chapéu de palha. Chico, de pé, continua
uma conversa baixa, ri musculadamente, transmite de vez em quando a
Alfredo, em voz alta, uma ou outra frase para fingir uma comunidade,
Alfredo responde agradado, como se mesmo de longe fosse o dono da
conversa. Mas de súbito interrompe-o:
- Tu já viste a minha ninhada de porcos? Vamos daí ver a minha ninhada.
Você há-de gostar, doutor.
Ana não quer ir.
- Vem Aninhas. Vem ver os porquinhos. Eles gostam tanto de ti! Porque a
conhecem, doutor. Ela leva-lhes uma folha de couve, eles conhecem-na.
Ela olha-nos, como se nos consultasse, ergue-se enfim. Do muro da
pocilga, vemos em baixo uma massa convulsa de bichos negros, ouvimos
uma grulhada de guinchos, os roncos compassados da porca, que ergue para
nós os dois furos do focinho. Alfredo estava contente, mas mos-trava-se
sereno para que a sua importância parecesse natural. Contou coisas de porcos,
a história, esse ano repetida, de um leitão nascido a mais e que tivera de
matar. A Natureza era muito engraçada... - mesmo muito engraçada. Não sei
se sabem que cada porco tem a sua teta. Mal nascem, cada bicharoco toma
logo conta da sua. E ali, meus amigos, é que não mama mesmo mais
ninguém. Desta vez não havia teta para toda a gente. Porque cada porca, aqui
o doutor talvez não saiba, sabe muita coisa mas de porcos talvez não saiba,
cada porca tem dez tetas. Se nascem onze porcos, é claro, um fica a ver
navios. Mesmo dez porcos já é de mais. A não ser que seja uma porca muito
robusta. Oito porcos é que é o normal. A minha porca é um monumento.
Aguenta ali dez crias, sim senhor. Mas nasceram onze e tivemos de matar
uma. Eu tive muita pena... Mas tinha de ser e matou-se mesmo o
animalzinho.
- Mas porquê? - perguntei com deferência. – O leitão mamava nos
intervalos das refeições dos outros...
- Qual quê, doutor - elucidou-me com piedade. – O leitão morria de fome.
Se ele pegasse numa teta, vinha logo o dono e punha-o fora.
Saturado do cheiro a estrume, afastei-me. Sofia passou por mim, sorriu-me
cúmplice, Carolino mal me olhou, sinistro e hostil. Almoçámos na sala térrea,
onde se expuseram os cabazes trazidos da cidade.
Pelas janelas abertas entra a luz viva de Fevereiro, vêm os primeiros
aromas da terra fecundada. Ao anúncio da alegria, pássaros vibram já na
radiação do sol, uma expectativa encantada abre-se pelo ar. Alfredo, de pé,
distribui as rações, incita-nos a um desembaraço folgazão. Recebo a minha
dose, encho o meu copo, invisto com o meu apetite. No silêncio de
introdução, ensaiamos uma comunidade de alegria, razões fáceis para ela.
Alfredo tenta a sorte, fala do apetite de Carolino, que empalidece, coalhado
de borbulhas. Depois ataca Sofia, que come pouco, em gestos esguios. Por
fim, estabelece-se uma conversa para essa zona, eu falo a Ana, que está à
minha frente:
- “Caminhos abertos, caminhos fechados.” Porquê fechados, quanto mais
abertos?
- Quando se muda? - interrompeu-me ela.
Bebo um gole de prazo:
- Talvez esta semana. Ando nisto há uma vida, falta sempre qualquer coisa.
- Tem pressa de mudar... E que está lá à sua espera?
- Não sei, não sei bem. Só se espera o que já se sabe, não é? Mas sei que há
lá silêncio para me não distrair.
- Distrair... Que medo você tem de se distrair. Mas quem quer não é. Não é
santo quem quer. Nunca pensou que era um impostor?
- Até os grandes o hão-de ter pensado, Ana. Mas só há impostura quando
há público. E o que eu procuro é ser público de mim próprio.
- Oh... É um público como qualquer outro.
- Ó Chico - interrompeu Alfredo -, tu não querias dizer qualquer coisa aqui
ao nosso doutor?
Chico fez um momo displicente de quem não se lembra e de quem não
ligava importância. Olhei-lhe a face esverdinhada, de pergamóide, os dois
olhinhos pequenos e pretos cravados como pregos.
- Não tinha nada de especial a dizer. A não ser talvez das conferências.
- Ora é isso mesmo - aproveitou Alfredo. – Era precisamente das
conferências. Sim senhor, era isso mesmo, lembro-me agora muito bem.
Chico hesitou, bebendo um trago desdenhoso:
- Bom, o que há sobre as conferências é que já se não podem fazer.
Não se podiam? Expandi-me sobre a cultura, sobre a grossa obstinação do
alentejano, a sua encasmurrada negação a que uma ideia o perfure e a sua
gorda bazófia disso, encordoada a riso rouco, esse riso que vem do estômago,
esse riso pançudo. Eu repetia Chico, afinal. Mas Chico fazia agora restrições.
Havia o senhor feudal, decerto; mas havia também o operário, o trabalhador.
As conferências eram para estes e exactamente por isso é que tinham sido
torpedeadas. A conversa alastrou: verdadeira cultura, falsa cultura,
esterilidade de gabinete, consciência dos problemas amassados nas mãos,
saber inútil, saber prático. Depois veio a política e o mundo de amanhã e a
reforma de uma cultura ancilosada. Depois ainda as relações do homem
interno e externo. Chico era de opinião que o homem de dentro era lavável,
escarolável, à agulheta de uma nova ordem social. Eu também o admitia, mas
não o imaginava, como não podia imaginar uma pessoa estranha ao que eu
era.
- Vocês sabem que o porco é um animal inteligente? - interveio Alfredo. -
Sim, senhor, muito inteligente. Ora vejam vocês: aqui no Alentejo há aldeias
onde os porcos vão todos juntos para os montados com um garoto. Pois à
noite, quando regressam, vai cada qual para a sua pocilga e não se enganam,
cada um sabe muito bem onde é que é a sua casa. Uma vez estava eu aí numa
aldeia e vejo os porcos voltar do campo. Em dada altura, um deles distraiu-se
e passou a pocilga sem reparar. Mas chegou à frente, parou e fez assim:
room, room. Foi como se batesse na testa e dissesse: Espera, já me esquecia.
E voltou para trás. O porco é um animal muito inteligente...
Carolino riu de gosto, eu ri polidamente, Ana olhou o marido com
ferocidade.
- A minha Aninhas não achou graça, já conhecia a história.
Voltei-me para Ana, subitamente lembrado do processo projectado contra
o Moura:
- Uma coisa: em que ficou essa questão do homenzinho que se enforcou?
Foi o Alfredo quem respondeu:
- Em nada, como era de esperar. Olha os Bailotes. Espertos como ratos...
Mas podia lá ser, agora o meu sogro o responsável!
- Tinha filhos?
- Dez - disse Ana. - Dois ainda pequenos, três anos um, o outro dois. O
mais pequenino é uma rapariga.
- Outra coisa - lembrei : - porque não veio a Cristina?
- Está adoentada.
- Doente?
- Barriguite, coisa sem importância - esclareceu Alfredo.
Carolino não dissera ainda nada. Mas de vez em quando eu apanhava-o a
observar-me, como se receasse de mim uma surpresa e desejasse estar
prevenido. Mas que surpresa te poderia eu dar, bom moço? Reconheço-te
hostil, ignoro os teus projectos. Quem não sabe em Évora a história de Sofia?
E quem sabe como tu a sabes ou a queres saber? Por mim, está tranquilo. Há
tanta coisa grave à minha espera! Sê feliz, moço. Ou sê infeliz, que é a forma
mais nobre talvez da felicidade. Aproveito no entanto este silêncio. E
pergunto-te:
- Então desististe do liceu, Carolino?
Ele ficou violentamente sério, quase louco, murmurou: “desisti, desisti”.
- Mas frequentavas o liceu durante o segundo período e desistias no
terceiro. É o costume.
- Desisti no segundo.
- Tens explicadores?
Bexiguinha atirou-me em riste o seu olhar colérico:
- Eu acho que não tenho satisfações nenhumas a dar.
Medi-me com o moço, a olhos mudos. Alfredo interveio:
- Ouça lá, ó Carolino. Se a gente for ao Redondo no Carnaval, você é capaz
de nos dar lá de comer?
XVII

E eis que me instalo enfim na minha casa do Alto. E Tomado o desvio para
São Bento, sobe-se depois aos moinhos: a casa fica ao lado direito. Uma
vizinha trata-me dos arrumos, tomo na cidade quase sempre as refeições,
mesmo as ligeiras, que, todavia, por vezes eu próprio preparo. No pátio em
frente há um toldo de glicínias que começam a florir, e, debaixo, bancos de
madeira apodrecendo. Sob os beirais da casa há sempre um frémito de asas:
as primeiras andorinhas. Ao lado, para lá de um caminho rústico, um alto
pano de velho muro abre-se em ruínas, mostrando no interior as pedras
brancas de sombra. Atrás há um quintal semeado que não arrendei e onde
crescem favas novas, uma mesa de pedra e bancos junto à casa para os
grandes calores de Verão. Para longe, ondulam linhas brandas de colinas,
salpicadas de casas brancas, donde sobem vozes anónimas de gente, cânticos
de galos que vibram no ar com um sinal antigo de terras solitárias. Fixo três
grandes pinheiros de vasta copa redonda, não longe dali, a cuja sombra eu me
iria estender nas tardes de grande sol. Mas o que eu sobretudo gostava de
olhar era a cidade. E eu a revejo agora do meio da minha noite, plácida e
branca, cercada de infinitude. Instala-se na colina, cisma para a lonjura, onde
me abismo também, veste de branco a acumulação dos séculos como de um
luar de morte. O espaço esvazia-se até ao limiar da memória, onde alastra o
meu cansaço, o afago quente de um choro, o aceno de sinais que se
correspondem como ecos de um labirinto. Num oblíquo aviso afloro o que
estremece sob os gestos enfim apaziguados. Évora, Évora. Para o meio da
planície, uma inesperada toalha de água de represa lembra ao longe os poços
do deserto. Uma ou outra casa branca, perdida na planura, descansa-me os
olhos de vertigem da distância. Quedo-me longo tempo ao meu mirante,
evoco, no vasto céu, o eco de um coral alentejano, essa voz para o deserto
donde nunca se responde...
Fecho a janela enfim, regresso à minha presença. Que busco na minha
solidão? Chico acusa-me. Ana também, talvez. A massa de amigos com que
fui fraternizando através da vida despreza-me com náusea. E, no entanto,
nenhum deles tem uma resposta que aniquile o que me fascina. Para que
serve, para quê? Mas do para quê sei muito pouco, porque sei de mais: para
ser homem. Porque só se é homem assumindo tudo o que fale em nós. Chico
pensa na utilidade prática. Mas, se através dos tempos o homem pensasse
apenas na utilidade prática, hoje não seria um homem, seria um parafuso. De
resto, os utilitários estão lutando contra si: conquistada a base prática,
liquidados, em hipótese, os problemas de bem-estar, forçada toda a azáfama
ao silêncio, eis que as flores da solidão, da asfixia, brotarão com a sua
virulência clandestina da miséria do homem: a vida estará então toda ela por
conquistar, desde o limiar das origens.
No arrumo da casa há mil coisas a fazer: caixotes por abrir, livros a pôr no
lugar. Tomo os instrumentos de trabalho, ponho-me a martelar, pregando,
despregando. Os livros pelo chão inquietam-me: têm o ar desgraçado de um
stock de alfarrabista. Elevo-os à sua dignidade, perfilando-os nas estantes,
irmanando-os na sua comunhão silenciosa.
Subitamente, no meio da confusão da livralhada, descubro o álbum da tia
Dulce. Estou cansado e sento-me. É um álbum velho, pesado como o tempo.
A capa arredonda-se em almofada, com uma dama antiga, em tons verdes e
brancos, segurando no regaço um leque fechado. Cinta instantânea, seios
pequenos, um olhar enviesado de galanteio clandes-tino. As folhas cartonadas
só se passam devagar; e em cada face de folha, só um ou dois retratos. Vida
efémera. Tão breve. E aí, o sonho invencível da solidez, de uma unicidade
eterna. Retrato de grupo há só um. Mas as figuras não estão centradas para
um ponto único, não nos olham nem se olham, altivas na sua independência.
Viram-se para a esquerda e para a direita, para o alto, para a frente, num
desafio arrogante. Cerro os olhos e sei de novo que toda esta gente morreu.
Mas o que mais me perturba é pensar que o rasto dessa gente está suspenso
de mim. Porque eu tenho ainda uma pequena notícia da sua vida, o eco
apagado do que foi a massa complexa do seu ser e sentir. Tia Dulce contou-
me. E foi como se ela própria se dobrasse à piedade por essa gente
desaparecida e quisesse que alguma coisa perdurasse. Mas de muitos retratos
já nada sei. São esses que eu fito com mais angústia. Têm olhos espantados
ou risonhos ou sérios. Que medos, que sonhos, que virtudes lhes inventaram a
vida em eternidade? Mas vós estais mortos e ninguém vos julga e ninguém
vos ouve. Que sei, porém, de vós outros, meus amigos? Tu, por exemplo, de
colarinhos à Lincolnsim, eu te lembro na voz da tia Dulce. Eras “muito
respeitado”. E tu, boa moça, de peito armado em folhos e cordões? Eras filha
de... Já não sei. Mas não casaste, tia Dulce o disse. Das tuas vigílias, do teu
suor de insónia, do teu choro nocturno, eu te invento à minha aflição
compadecida. Frágeis fios destas imagens amarelecidas, conver-gindo para
mim, para a minha memória cansada, presos do futuro por uma breve
referência, uma nota, uma etiqueta. Terei um filho talvez. Eu lhe contarei o
que sei de vós. Mas ele o esquecerá talvez, ou o filho do meu filho, ou o filho
do filho do meu filho. Então aparecereis num recanto do sótão, absurdos,
incríveis, inquietantes, com uma face a falar ainda, como o olhar de um cão
que nos fita, nos procura, e que o silêncio de permeio e que um vidro de
permeio separam irremediavelmente de nós. Mas agora ainda estais vivos,
ainda alguém, eu, aqui, silencioso nesta casa solitária, vos liga à vida que
freme para lá destes muros na Primavera anunciada, nas primeiras andorinhas
que me buscam o beiral, na planície aberta de esperança.
Sede vivos neste instante infinitesimal em que vos fito e vos sei um nada
do vosso convulso e rico e inverosímil milagre.
Fecho o álbum, acendo um cigarro. Para lá da janela atinjo a linha azul do
horizonte que se desvanece na tarde. Penso, penso. Não, não penso: procuro.
Outra vez, outra vez. Não, não quero “saber”, sei já há tanto tempo... Mas
nenhum saber conserva a força que estala no que é aparição. Porque o
escrevo de novo? A verdade é que nada mais me importa. E, todavia, um
estranho absurdo me ameaça: quero saber, ter, e uma aparição não se tem,
porque não seria aparecer, seria estar, seria petrificar-se. Queria que a
evidência me ficasse fulminante, aguda, com a sua sufocação, e aí, na
angústia, eu criasse a minha vida, a reformasse. Mas uma reforma, uma
regulamentação é já do lado de fora. Quem é fiel a uma certeza e a pode ver
quando lhe apetece? A fidelidade é então só teimosia ou cedência à parte
convencional da “nobreza de carácter”, da “honradez”. Não é isso, não é isso
que eu quero. Em que iluminação eu acredito quando falo em nome dela e a
imponho a Ana, aos outros? Falo de cor - a iluminação é então a minha noite
de secura.
Por isso, quando ela volta, eu me abro à sua devassa, à acidez da sua
presença. Por isso eu a recebo ainda agora e falo dela e me aqueço e queimo
ao seu lume. Não escrevo para ninguém, talvez, talvez: e escreverei sequer
para mim. O que me arrasta ao longo destas noites, que, tal como esse outrora
de que falo, se aquietam já em deserto, o que me excita a escrever é o desejo
de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que
me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na
própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser,
escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.
Fecho o álbum, acendo um cigarro. E, como tantas outras vezes, de novo
me assalta a presença obcecante de mim próprio, esta terrível presença, esta
coisa, isto que mora comigo, que é brutalmente vivo, independente, que
desaparece, que volta, num jogo de reflexos em que me vejo, me perscruto,
me sinto eu, e breve me foge e está apenas sendo o mundo em roda, estas
paredes,. estes livros. Fixar bem, apanhar em flagrante esta realidade
medonha que emerge de mim, me estonteia, se me some. Fixá-la a essa luz
subtil, não a esquecer, mergulhar até onde sou, para que nada de mim se
perca no que hei-de decidir; sentir, ser no mundo, para que eu saiba bem o
que há a salvar, o que está condenado, para que a construção que vier brote
desde as raízes. Canso-me, insisto, canso-me. Um acto de presença não se
define, não cabe nas palavras, SOU. Jacto de mim próprio, intimidade
comigo, eu, pessoa que é em mim, absurda necessidade de ser, intensidade
absoluta no limiar da minha aparição em mim, esta coisa, esta coisa que sou
eu, esta indivi-dualidade que não quero apenas ver de fora como num espelho
mas sentir, ver no seu próprio estar sendo, este irredutível e necessário e
absurdo clarão que sou eu iluminando e iluminando-me, esta categórica
afirmação de ser que não consegue imaginar o ter nascido, porque o que eu
sou não tem limite no puro acto de estar sendo, esta evidência que me aterra
quando um raio da sua luz emerge da espessura que me cobre. E estas mãos,
estes pés que “são meus” não são meus, porque eu sou-os a eles, mas também
estou neles, porque eu vivo-os, são a minha pessoa e todavia vejo-os também
de cima, de fora, como a caneta com que vou escrevendo...
Eu o disse, o repeti a Ana quando um dia me veio visitar. Eu a calei no
silêncio da sua submissão até onde ela me começava a ouvir e estremecia
também no cigarro febril, nos olhos cerrados até à sua procura e à sua
angústia. Eu o disse e repeti a Sofia quando uma noite, sozinha, veio no carro
do pai e se sentou à minha mesa e bebeu pela noite fora. Porque me
procuraste, Sofia? Repeli-te, a princípio, não sei porquê. Talvez porque nada
do que eras tu me fora prometido, talvez por renascer uma voz de justiça
entre nós ambos e que eu escutava ainda, com uns ouvidos justos ou injustos,
não sei. Mas qualquer eco de desespero vibrava ainda em mim, vinha ainda e
sempre talvez, porque é possível que só aí eu esteja certo e a evidência que
me queima seja a procura ou a expressão disso que sou e me recuso. Assim te
atravessei por fim da minha loucura ou da minha raiva, esse gosto furioso de
vencer em ti o que em ti resistia ou me alucinava. Tu, uma pessoa inteira, tão
flagrante, tão vibrante no teu contorno, no tom da tua voz insidiosa, nos teus
gestos estriados de vício. Um segredo de ti me fascina - tocá-lo, vencer-te,
vencer-me, saldar num urro toda esta aflição. Eis-me escrevendo como louco,
aos tropeções nas palavras, enrodilhado, contraditório talvez, a boca
amaldiçoada de secura, um frio íntimo nos ossos, um arrepio no ventre.
Sofia... Saíste já alta noite, vim ver-te descer a colina, correr ao longo da
estrada no rasto de uma pequena luz. A paz não está em nós, não está a minha
em ti, não está em mim a tua. Mas tu queres amar o teu próprio desespero
como uma embriaguez, eu sonho a plenitude de umas mãos dadas com a vida.
Talvez, porém, que para lá da minha verdade que procuro esteja a tua
loucura. Não quero pensar agora - agora não. O luar verde de Março sobe no
horizonte da minha noite de vigília, esta noite infinita em que escrevo. Olho-
o pela janela na montanha e uma alegria profundamente triste embacia-me o
olhar. Minha mulher dorme. Tremo de pensar que o sossego que às vezes me
visita esteja só na sua bênção; na paz que irradia do seu silêncio. Estarei só e
condenado? O reino da vida está cheio ainda do rasto dos deuses, como num
país velho perdura a memória dos senhores antigos e expulsos. Mas o homem
nasceu - nasceu agora da sua própria miséria e eu sonho com o dia em que a
vida fique cheia do seu rasto de homem, tão certo e evidente e tranquilo como
a luz da tarde de um dia quente de Junho...
XVIII

Cristina. Está um dia bonito, Cristina. Os campos estalam de fecun-didade,


os homens lavram as terras, guiando os arados, as cegonhas, que vieram de
longe, limpam os vermes com o seu bico comprido. Algumas levantam voo,
vão aonde não sei, talvez aos ninhos que os grandes ninhos delas, de vergas
entrançadas, talvez já estejam habitados nas chaminés, nas nervuras secas
dos ramos. Correm três passos, abrem as asas e sobem. Ponho-me a olhá-las
muitas vezes esticadas como fusos, as grandes asas, esfarrapadas nas pontas.
Andam na terra como em andas, articulando as patas mecanicamente como
robots. São mulas que puxam às grades, aos arados. Na terra inculta, nas
bermas dos caminhos onde manchas brancas de malmequeres enfeitam uma
memória de graça e de festa. De festa, Cristina , vamos ao Redondo, é dia de
Carnaval. Está um dia belo de sol, de luz viva e quente com um assomo de
Verão.
- Tu vens comigo, Cristina?
- Não, não vou consigo. Vou com o Alfredo.
Tens um costume de holandesa e eu vejo-te ainda, tão graciosa na tua saia
folhada, de barras verticais azuis e brancas, uma blusa de rendas, socos altos,
chapéu branco de um tecido rígido com bicos erguidos como um barco ou um
templo oriental. Não vais então comigo, vais com Alfredo, com Ana, com o
Chico. Eu vou com tua mãe e Sofia: o teu pai não pode ir.
A estrada alonga-se por entre as searas verdes com manchas, à distância,
de cores variadas, amarelas, brancas e roxas, com manchas castanhas das
terras lavradas, um castanho húmido de gleba fecunda. Alfredo vai à frente
com o jeep marcando a marcha, Sofia e eu atrás com o meu pequeno
Volkswagen.
Senta-se ao meu lado, apesar de eu lhe sugerir a meios-olhos e palavras
que devia ir atrás com a mãe.
- Lindo dia, lindo campo - digo eu em voz alta.
- Deve ser a única oportunidade do Alentejo, esta da Primavera.
- Gosto mais em Agosto - opõe Sofia, olhando em frente.
Terra calcinada, deserto estéril - pensei -, a cor dos restos do incêndio, o
teu destino de desastre, Sofia. Sim, entendo. Madame Moura concordou
comigo e para isso encostou-se ao nosso banco, onde lhe sinto os braços.
Tinha costela do Norte, do Minho, talvez, a água, o verde, o lirismo do que é
mimoso e tranquilo. Sofia responde ainda - o Alentejo era trágico, não lírico,
só a praga, a blasfémia ardente o exprimia.
Alfredo acelera a marcha, já o não vemos. Eu sigo em andamento
moderado, trago o carro em rodagem ou trago em rodagem a minha
aptidão de condutor. Mas lá para diante ,apanhamo-lo enfim: ele estacionara
a uma sombra.
Acolhe-nos à estrada, pergunta-me que volante saí eu. Rochas nuas como
ossos afloram aqui e além debaixo de oliveiras, de azinheiras, um cheiro
intenso a germinação alastra sobre a gravidez da terra. Distingo sobretudo um
aroma a mimosa, esse aroma quente, genesíaco, a força e a liberdade, bebido
a haustos fundos e a braços abertos. Alfredo localiza-a adiante, toda copada
de verde e oiro. É ele próprio que lhe vai cortar alguns ramos para
enfeitarmos os carros. Cristina atira serpentinas do alto de uma seara para a
estrada, uma leve brisa ondeia-as para longe, prende-as nos ramos de alguma
árvore. Ata depois algumas aos pára-choques dos carros, aos fechos das
portas, onde se prendem também ramos de mimosas com as suas folhas de
renda, os seus cachos de bolas de oiro em pó. E, ovantes assim de festa,
retomamos a marcha. O ar vibra nas serpentinas retesas, estala algumas, que
ficam para trás enroladas na estrada. vai connosco, com a nossa festa, uma
excitação de boémia e aventura.
Bexiguinha aguarda-nos no largo da vila. Tem para nós uma janela de
família donde podemos ver o cortejo. Fico na rua, quero ver a festa de perto.
Na pequena praça, enquadrada de casas, o sol aperta já, convicto de Verão,
cega o ar, numa reverberação a brancura. Passam na rua os primeiros
comediantes daquela comédia pobre: homens de mulheres, de pernas peludas
à mostra, para que o equívoco se não consume, homens gordos,
acarnavalados com cartolas, com máscarras de carvão na face, com a
exibição de uma degradação voluntária - arrepio-me, confranjo-me, tento
achar o significado deste prazer no rebaixamento do cómico, neste aceno à
animalidade, no gosto da assunção do grotesco, como se no homem se não
calasse uma saudade do reles, um eco grosso de enxúndia. Num café
próximo, onde me instalo, homens enfarruscados (que é o seu passe, o seu
cartão de livre-trânsito na galhofa) trazem ao ombro sacos de cevada, de
tremoços secos, pousam no mármore das mesas cestos de ovos que
esvaziaram e atascaram de farelo durante o Inverno, ensaiam breves pugnas
entre si, disparando punhados de tremoços como balas. Mas o cortejo vinha
aí para iniciar o torneio. à primeira volta não havia batalha, era a volta da
apresentação, como numa tourada. São carros com motivos alegóricos,
quadros vivos, com ranchos de moços que cantam, que lançam serpentinas. à
segunda volta, porém, começa a luta, e uma fúria de chacina desvaira toda a
praça. Do alto dos prédios e dos cafés para os carros, uma guerra desembesta
ao apelo da raiva que o ano policiou, vibra em disparos violentos de
pequenos sacos, comprimidos de cevada, de farelo, excita-se, aperta a ira de
entusiasmo, ressoa em risos cavados, ecos de triunfos sanguinários de outrora
- assim o penso, refugiado a um canto, perto de uma janela. às primeiras
arremetidas, os moços dos carros tentam ripostar.
Passam por fim escondidos, cobertos com mantas, defendendo-se da
metralha. Foi um espectáculo triste. Num intervalo, entre duas passagens do
cortejo, saí do café, procurei a minha gente pelas janelas. Foi Alfredo quem
me viu, me fez sinal para entrar. Estava contente, ria. Ana conversava com
Chico num sofá. Madame e Sofia não estavam. Cristina travava uma pugna
de serpentinas com uma janela ao lado.
- Então gostou? - perguntou-me Ana, e eu fitei-a apenas com surpresa.
- São levados do diabo estes melros do Redondo - dizia Alfredo. - Todos os
anos é isto, doutor.
- Quando partimos? - perguntei.
- Já embora, doutor? O Carolino quer-nos dar o lanche.
Lanchámos no quintal, dentro do pavilhão, onde encontrei com os meus os
olhos de Sofia antes de entrarmos. Ela veio para mim, com perguntas
supérfluas como rama movediça de uma obscuridade com raízes. Bexiguinha
encarou-nos aos dois, empalideceu, o rosto crivou-se-lhe de borbulhas.
- Sinto-me sujo - disse eu a Sofia. - Julguei que tudo estivesse morto.
- Com o Carolino?
Mas que tinha eu com isso? Nunca te amei, Sofia. Sabia que o teu caminho
passava por mim e eu deixei-te passar. Conheço o teu desespero, conheço-o
das minhas horas de crise, vencer-te, vencer-me, esvaziar-me no gosto que
imitasse o arranque – o arranque para nada... Tento lembrar-te, Sofia,
lembrar-me aí, onde nada tinha que fazer. O pecado anda comigo, sim, o
pecado, que é vizinho desta tensão-limite em que me busco, em que sonho
ver-me ainda, ainda, em que desejo queimar tudo o que perdura da minha
crosta, para que enfim me descubra em autenti-cidade e pureza. Não és nada
para mim, eu o sei, eu o sei, não és mais do que o inverso do que me aspiro,
como um espelho de feira. E, todavia, sinto-te ao pé de mim, demasiado viva,
demasiado real, como o grito que dura de uma aflição antiga. Ou será que eu
te evito como à condenação verdadeira que me espera? És bela, Sofia. Bela.
Como um veneno.
Quando regressamos a Évora é quase noite. Alfredo comeu e bebeu
alegremente. Tem a face rubicunda do prazer carnudo. Instalamo-nos nos
carros, partimos.
Alfredo rompe logo em viva aceleração e em breve por isso o perdemos de
vista. Uma claridade imensa e circular traça ao longe o horizonte, e nas rectas
extensas um coro de fadiga sobe em mim como a memória das grandes
marchas pelo deserto. Ouço que música, Cristina? Acendo o rádio - é a
música mecânica, tento outra, não há mais estações, fecho o rádio e calo-me.
Madame Moura questiona-me sobre o cortejo - oh, Madame, foi tudo tão
vexatório, tão...
Subitamente, porém, numa sucessão de curvas em declive, apare-cem-nos
pela frente Chico e Alfredo agitando os braços freneticamente. Travo a
fundo, o carro rabeia pela estrada, estaca enfim ao pé deles.
Têm sangue na face e nas mãos, falam sufocados: ao fundo de uma ravina,
mas direito, entestado a uma azinheira, estava o jeep: Cristina? Ana? Que foi?
Que aconteceu? Multiplicamos as perguntas, descemos precipitadamente,
Chico ampara Madame, que quer descer também, que não pode descer, Sofia
corre atrás de mim, a última luz da tarde coroa a terra apaziguada. Ana tem
Cristina ao colo, aparta-lhe os cabelos da testa, onde o sangue coagulou.
Morta?
Cristina respira, está viva ainda, mas não dá acordo de si. Trans-portamo-la
com cuidado para o meu carro, Ana ampara-a também sem um queixume,
sem uma palavra, senta-se atrás, encosta Cristina ao peito, onde manchas de
sangue lhe tingem a blusa, Madame vai à frente comigo e grita e grita. Sofia
fica com Chico e com Alfredo, esperam um novo carro que passe. Rompo em
grande velocidade, mas os estremeções da marcha abalam Cristina, o corpo
despedaçado de Cristina. A noite desce devagar, Évora é longe, Évora é
longe. Madame vira-se para a filha e grita sempre e sufoca de aflição, Ana
atira-lhe um berro arrancado do mais fundo da angústia, Madame volta-se
para a frente, põe as mãos no rosto e chora só para si. Nada digo, nada
pergunto, olho desvairado as rectas infindáveis, aperto ainda de novo o
acelerador, quando a estrada me parece lisa. O silêncio estala-me todo, os
olhos nublam-se-me de água. Faço um esforço brutal para ser útil, para
cumprir, para ser uma força desta máquina que rola pela estrada sem fim com
uma vida que se extingue. Cristina, Cristina. Está uma tarde bonita, Cristina,
toda azul e rosa, os campos recolhem-se para o sono da noite. Nas dobras de
sombra só uma casa brilha de longe em longe à memória do dia. Acendo os
faróis, mas é a hora má do crepúsculo, em que se vê pior com eles - e apago-
os outra vez. Carros desarvorados, com restos de Carnaval, passam por nós,
levam a sua festa. Mas pelo espelho retrovisor vejo um outro carro que nos
segue. Tento reconhecer quem vai nele. Não consigo.
Serão talvez Sofia e Chico e Alfredo. A meu lado, Madame aban-dona-se,
desfalecida, Cristina geme de vez em quando. Já quase sossegados dentro da
nossa dor, ouso falar enfim:
- Ana!
Mas ela não me responde. Vejo-lhe no espelho a face branca, tento ver-lhe
os olhos. A estrada é longa, a estrada não acaba, Ana parece-me olhar sempre
em frente, nesta marcha interminável, como se nada mais houvesse para ela
do que esta fuga sem fim, pelo espaço de um deserto, gravada de loucura...
Olho atrás a estrada, o carro de há pouco segue-nos ainda, não tenho dúvida
agora de que são Sofia e os outros. A noite vai-se fechando, acendo os faróis,
agora vejo melhor. Rolo ainda infinitamente pelos campos abandonados, um
ar fresco entra pelo carro com o perfume húmido da germinação.
Quanto tempo ainda? Olho nas bermas os marcos da quilometragem -
estamos perto, estamos perto. Até que de súbito, ao alto de uma rampa, Évora
surge-nos adiante, toda armada de luzes, recortada ainda na última claridade
do céu. Neste instante o carro que nos segue põe-se-nos a par, Sofia corre o
vidro, pergunta-nos por Cristina, diz que vão à frente para o hospital. E, com
efeito, quando chegamos, dois enfermeiros esperam-nos com uma maca.
Moura? O Dr. Moura? Está onde? Sofia e Madame interrogam-se, Madame
recomeça a chorar como quem de novo se recorda, diz-me na Sé. Parto eu
sozinho pelas ruas solitárias, onde restos de serpentinas suspensas dos fios
evocam a alegria morta. Entro na Sé, quedo-me suspenso da massa de coros
que reboam pelas abóbadas. Ao fundo, um trono de luzes investe-se desses
cânticos, irradia-os de majestade. Uma paz de submissão afunda aquela gente
que alastra pela nave, recolhe-a à memória milenária de quantos homens pelo
escuro das eras se reencontraram tranquilos nos despojos de si próprios, na
proster-nação que abdica... Que cerimónia era aquela? Agora não o sei, agora
tento orientar-me entre as vagas do coral, que vêm não sei donde, das lájeas
do chão, do alto dos pilares, do próprio espaço inebriado de incenso.
Passa à minha beira um homenzinho diligente, com ar de sacristão, de
funcionário da igreja, pergunto-lhe por Moura, falo do desastre da filha. O
homem leva-me ao coro. Moura canta ainda, de papel na mão, interrompe-se
ao aviso do homenzinho, olha-me, vem para mim. Saímos logo, eu informo-o
brevemente, rompemos para o hospital. à porta do quarto acumula-se gente,
eu afasto-me e vagueio pelos corredores. E de súbito, desde uma memória de
infância, eu soube a festa da Sé: Moura desagravava o Senhor dos pecados do
Carnaval...
Não me deitei em toda a noite, sentado pelos bancos do corredor,
divagando pelo hospital. Alfredo e Chico tinham sido examinados pelos
médicos, não havia senão leves contusões. Pela madrugada entrei enfim no
teu quarto, Cristina. à luz frouxa da lâmpada que rezava ao pé de ti, vi-te
enfim a face branca coroada de ouro. E a certa altura, sem que ninguém mais
tivesse visto, só eu vi, só eu vi, Cristina, as tuas mãos pousadas sobre a dobra
do lençol moveram os dedos brevemente. Era um movimento concertado das
duas mãos, mas num ritmo de cansaço final. Na dobra do lençol tu sentias o
teu piano, tu tocavas, Cristina, tu tocavas para ti e para mim.
Música do fim, a alegria subtil desde o fundo da noite, desde o silêncio da
morte. E eu ta ouço ainda agora, Cristina, gelado à lua verde deste Março na
montanha, entre o vago deserto que alastra à minha volta e este húmido afago
que me vela os olhos de ternura...
XIX

No dia seguinte ao do enterro fui pela tarde a casa dos Cerqueiras. Eu


queria falar com Ana, dizer-lhe qualquer coisa, não lhe dizer nada, oferecer a
minha presença à sua amargura, que eu imaginava ser maior que a de todos,
decerto porque não vira Ana chorar. Quando à noite, aliás, no silêncio da
minha casa, eu revi a tragédia e recordei tudo desde quando chegara a Évora,
lembrava sobretudo aquela afeição quase clandestina de Ana pela irmã, as
palavras secretas que lhe dissera da primeira vez que ouvi Cristina tocar.
Lembrava o desastre maternal de Ana, a sua impossibilidade de ter filhos, o
modo como, calma, quase solene, tomara Cristina nos braços, a trouxera no
colo toda a viagem, se inventara para Cristina, até ao fim, a mãe que o seu
ventre sonhava ainda.
Bato à porta, ninguém me vem abrir. Olho ao alto as grandes janelas de
guilhotina - viam-se as portadas através dos vidros. Bato uma vez ainda,
espero um momento, vou-me embora. Telefonei depois do café para casa do
Moura, mas ninguém respondeu também. Absurdamente, desci a rua, bati-lhe
à porta, mas a campainha, que eu nunca ouvia, parecia-me agora, com o seu
silêncio, também certa com tudo o mais. Tinham, pois, saído todos da cidade.
Ao próprio Chico não o encontrei nesses dias; mas não era provável que os
tivesse acompanhado. E que podia ele dizer-me? Sim, uma verdade vivida
fechava talvez um cerco: que palavras de concórdia para de uma muralha a
outra? Eis-me de novo só. A chuva voltou, balançada a grandes ventos. Fico
a olhá-la, difusa-mente, desde o fumo da lonjura donde avança em altas
vagas, submer-gindo a planície. A cidade afoga-se na espuma nevoenta,
imobiliza-se, de olhos opacos, no fundo do meu cismar. Passam na estrada
carros desarvorados, com um rasto de pânico, ouço-os estremecer na minha
memória vazia. Longa espera de nada a uma janela para o deserto. E dias e
noites assim.
Mas certa noite ainda de chuva em que eu regressava tarde (tinha ido ao
cinema, ficara ainda no café), depois de arrumar o carro na garagem e quando
ia abrir a porta da casa, vejo um vulto cosido no umbral. Estaquei, procurei a
minha lâmpada de algibeira.
- O senhor doutor desculpe. Eu tinha de falar hoje consigo.
Conheci a voz, sosseguei um pouco, alarmado ainda, todavia, com o
insólito de tudo:
- Entra. Podias ter vindo a outra hora. Deves estar a escorrer.
- Tinha de vir hoje.
Abri a porta, acendi a luz, Carolino entrou. Debaixo da chaminé, no lugar
do fogão que não tinha (servia-me de um fogareiro), acendi uma fogueira
com jornais e tábuas de caixotes. Mas Carolino não se moveu. Em pé no
meio da cozinha, os cabelos escorrendo-lhe pela cara, os braços pendentes,
olhava tudo aparvalhado.
- Senta-te. Puxa uma cadeira. E diz então o que há. Tomas um álcool? - E
fui procurar dois cálices e uma garrafa.
- Não me trate por tu.
Suspendi-me, de conhaque na mão para encher os dois cálices: um frio
súbito preveniu-me nos ossos de um perigo insuspeitado. Ilumino-me de
vigília, armo as minhas defesas.
- Senta-te - repeti. - E toma um cálice.
Sentei-me eu próprio ao pé da mesa, acendi um cigarro, aguardei. Carolino
mantinha-se de pé com um ar desgraçado de desespero. Pingava como um
náufrago, olhava o chão fixamente:
- Sei tudo... Sei tudo...
- Senta-te. Enxuga-te ao lume.
- Não me trate por tu!
Silêncio duro. Tomo o meu cálice, bebo um gole natural. Olho o
Bexiguinha, aguardo de atenção engatilhada.
- Os senhores julgam que eu sou um trouxa, todos vocês julgam que eu sou
para aqui uma trampa. Mas enganam-se, mas enganam-se, sou um homem,
sou eu! Eu posso! Eu, se quiser... Tenho o mundo nas mãos, até a cidade, até
uma cidade, podia deitar fogo à cidade, podia.... Eu sou eu! Tenho estas
mãos...
E erguia-as de dedos estranguladores.
- Tenho-me a mim, não sou um monte de esterco, sou um homem livre,
posso, que são vocês mais do que eu?
Ela foi-se embora sem uma palavra. Mas já há muito tempo. Eu bem
percebi, eu bem percebia tudo.
- A gente engana-se, Carolino, a gente às vezes engana-se. Creio que te
referes a Sofia.
- Não pronuncie o nome dela! Você tem os lábios porcos!
Estremeci, dominei-me:
- Sofia não deve ter ânimo para te escrever. Com a morte da irmã, ela...
- Não fale nela, não fale de Sofia nem mais uma vez! - E avançou para a
mesa, apoiando-se na borda, fitando-me de olho gázeo.
Olhei-o de frente, disposto a tudo mas sem me levantar:
- Vamos a saber de uma vez: o que é que o meu amigo quer?
Ele sofreu um choque com a minha decisão. Eu olhava-o sempre, de
coragem apontada. Carolino, então, de olhar vago, veio vindo vagaroso à
roda da mesa. Ergui-me, segurei a garrafa. Carolino estacou. E inespera-
damente caiu numa cadeira, recostou-se, estendendo as pernas, e começou a
rir um riso idiota e babado. “Está bêbedo” - pensei. - “Ou endoideceu?”
O desamparo da noite agravava-me o alarme. Ouvia o vento no telhado e
nas ramadas, como num filme de terror. Mas tudo aquilo era absurdo. Atirei
cem mãos poderosas ao meu susto inverosímil. Admiti mais fortemente que o
moço endoidecera. E na noite perdida, abalada de chuva e de vento, o
espectro da loucura era-me um pavor abstracto, intangível, inatacável... Não
lutava, pois, com a presença física do jovem, que eu podia talvez aniquilar,
mas com o que de súbito se me revelava nele de informe, de medonho, de
irradiante. Tentei, porém, de novo um nivelamento humano:
- Porque é que me procuraste? Que tenho eu com tudo isto?
- Eu sou um homem! - gritou o moço outra vez. - Sei o que quero. Sou
livre, sou grande, tenho em mim um poder imenso. Imenso como Deus. Ele
construía. Eu posso destruir.
- Explique imediatamente de que se trata. Senão ponha-se na rua.
- Eu? Na rua? O senhor é tolo. O senhor pensava que podia fazer chacota
do pobre Bexiguinha. Eu sou o Bexiguinha! Eu! Estas mãos são minhas! - E
tornava a exibi-las com os dedos em gancho. - E estes braços, estas pernas,
estas borbulhas. Mas por dentro eu sou igual aos outros, quero dizer, sou
maior, sou... Eu posso, eu, se quisesse... E ela nunca mais me olhou para a
cara... Mas eu... Ela vai ter uma surpresa. E está uma noite bonita para correr
o mundo. Expulso do paraíso... Não estou bêbedo, não estou doido, é bom
estar aqui a olhar o senhor, que está vivo e me está a ver e está cheio de
medo. Eu não tenho medo. De nada. Mesmo da morte, o senhor tem medo da
morte, a morte é a gente antes de ter nascido... nascido...
Calou-se enfim; e outra vez o vento me alucinou no silêncio da noite,.
frenético, aziago. Pareceu-me que o moço esgotara a sua fúria nesse modo
imediato de palavras. Ergui-me, quase sereno, dei uma sugestão:
- Tomas um cálice e levo-te a casa.
Sem erguer os olhos, estendeu o braço, eu empurrei-lhe o cálice cheio.
Repentinamente, porém, ele deu um pincho e apareceu-me em frente de
navalha aberta. Era uma navalha de ponta que abria de estalo. Erguia-a alto,
como uma condenação, um brilho maligno reflectia-se dela para os olhos do
moço, ao clarão da fogueira. Instintivamente, atirei-lhe a mão ao pulso e
aparei o golpe. E com uma força brutal, ignorada na minha timidez, no meu
súbito alarme, na própria submissão a que me vergava a noite, torci-lhe o
braço, triturando-lhe o pulso. A navalha caiu, pisei-a com uma patada,
despedi um murro cerrado à ponta do queixo do moço, que cambaleou. E, na
raiva que se apossara de mim, esbofeteei o rapaz até me estafar. Mas eu
sentia obscuramente que apenas me esbofeteava a mim... O moço caiu na
cadeira, deitou a cabeça na mesa, fechou-a com os braços e chorou
medonhamente um choro convulso como num estertor. Apanhei a navalha,
fechei-a, meti-a no bolso. O vento crescera de fúria. E era estranho e
inquietante ouvir os soluços de Carolino no meio da solidão tempestuosa.
Mas quem te destruiu os sonhos, bom moço? - eu to pergunto daqui, do
meio da minha vigília, em que retomo e recrio (e me reinvento) a verdade
original do que passou. O ar das grandes alturas é bom, meu jovem. Que o
teu corpo o não saiba, que o não saiba o teu veneno - quem é culpado? Não,
não fui eu, nem contigo nem com ninguém, se a culpa não é maior do que o
nosso sonho e o nosso esforço de verdade ou de inocência. Bebe o teu cálice,
Bexiguinha. Bebe. A noite avança, a madrugada vem aí. Sabes tu se a tua
força ou a tua raiva é maior do que o sol? O sol é forte, Carolino. Não
procures a noite por não suportares o dia. Leva para o sol a tua aparição e
serás um homem. Mas que verdade é a tua descoberta a sangue e a morte
Porque sei agora que o teu crime não era contra mim, não seria contra ela. O
teu crime era contra a vida, contra o absurdo que te assolou. Mas eu não
queria isso, não queria isso...
Mas em que medida tu já me esperavas? Tu? Sofia? Sofia disse-me que eu
não trouxera novidade nenhuma. Sim: a semente não germina senão na terra
que a espera. Culpado eu? Não quero pensá-lo agora. Agora não.
Fumei um cigarro, Carolino bebeu. Olhava o chão com um ar miserável de
quem se sente destruído, vexado no próprio crime que não cometera - ou por
isso mesmo que o não cometera: corridos todos os riscos (e o maior, o do
espectáculo), o bom moço chegava ao fim como viera.
- Come alguma coisa.
Tinha queijo, pão, manteiga. Havia leite numa jarra. Ele parecia
abandonar-se à minha compaixão. Mas teve ainda um arranque de orgulho e
recusou-se-me. Ergueu-se de salto e dirigiu-se à porta.
- Eu levo-te no carro.
Parou, quando me ouviu. Mas não se virou. Avançou por fim, decidido,
para a porta, abriu-a e saiu. Um golpe de vento e de chuva dobrou-o sobre si,
fez-lhe flutuar os cabelos desalinhados. Corri a chave, voltei para a cozinha.
O vento estalava na chaminé.
Quando a manhã entrou pela janela, eu dormia ainda, debruçado sobre a
mesa.
XX

Perguntei a alguém o que se passou - estou cansado de o meditar sozinho.


Mas nem o próprio Chico encontro: na repartição informam-me de que
partira para o Algarve. Telefono para casa de Moura ninguém ainda. Bato à
porta de Ana - ninguém vem abrir. A cidade inventa-se-me a desastre e a
espectros.
- Bom dia, senhor engenheiro, como está o senhor engenheiro?
Há o Manuel Pateta e os seus olhos podres a escorrerem aguardente. E as
aulas. E o Liceu. Que significa para mim a aliança dos alunos? Sim, às vezes
encontramo-nos numa comunidade de interesse, ou não bem de interesse
talvez: - de surpresa. Mas a surpresa só o é uma vez. Depois fica a repetição,
o enfado. E para o enfado os moços têm uma defesa, que é a inquietação do
sangue, a astúcia, a indisciplina. Vencer essa constante agressão não é fácil:
quase nunca atrás dela há algo mais do que ela. Tenho então de descer ao
nível deles, dar-lhes como o prazer de me vencerem e tentar depois, na minha
aparente derrota, na minha submissão, o suborno para o que me interessa.
Toda a profissão é uma abdicação. Mas abdicar diante da força abstracta da
lei, diante, sobretudo, dessa massa informe que é só força gratuita, orgulho de
quem tem todos os caminhos disponíveis, sem a limitação, a
responsabilidade, até mesmo o vexame de ter assumido um - a juventude...
Lisboa! Mas no concurso que se abriu não fui classificado.
Não encontrei o Chico e foi bom não o encontrar: contar o que se passara
seria expor-me à devassa do meu pecado possível (o que é sempre uma forma
de o tornar real), seria abrir ao sol o escândalo. Mas o escândalo abriu-se do
mesmo modo. As vozes surdas que já alastravam desde há tempos (eu era um
homem público através dos alunos e famí-lias) precisavam apenas de
qualquer índice importante que as centrasse, as encorajasse, lhes desse razão.
Tal índice surgiu não sob a forma de uma realidade bruta (eu não morrera, eu
não ficara ferido) mas sob a forma apenas de uma voz mais alta que esse
rumor.
Quem a ergueu? Não sei. Talvez que Carolino tivesse anunciado
previamente o seu lance para de algum modo se comprometer a ele, não
desanimar.
Avisou-me o próprio empregado da secretaria, o de bigode caído e olhar
desgraçado como de retrato egípcio. Quando entrei na reitoria, o reitor
embrulhava um cigarro, grave. Mandou-me sentar.
Sentei-me no maple de couro preto, ao lado do qual dormia enroscado o
cão perdigueiro. O bom homem não acabava de enrolar o cigarro, olhos
baixos, centrado de seriedade, o beiço estendido. Acendeu o isqueiro, enfim.
E eu ali, eterno réu perante o mundo e a vida.
Entre a fumarada de dois sorvos, o homem abriu uma conversa preliminar:
- Já sabe os resultados do concurso?
- Não fui classificado, senhor reitor. Fiquei em terceiro lugar.
- Sim... Não concorreu a nenhuma outra vaga... Só Lisboa.
- Só Lisboa.
- Hen... Ainda há outro concurso lá para...
- Agosto, creio.
- Sim. E volta para Évora, se não for para Lisboa?
Entendi. Entendi enfim. Querias, pois, expulsar-me, bom homem, ou que
eu me expulsasse. Eu estava, pois, a mais no teu plácido reino de claustros e
de silêncio.
- Não sei se voltarei para Évora. Não tenho projectos nenhuns.
- Sim. Évora é uma bela cidade, Évora é uma cidade extraordinária. E está
perto de Lisboa... Mas, por exemplo, Setúbal ou, digamos, Santarém ou
mesmo Leiria... É claro, são tudo meios pequenos. É o defeito de Évora
também. Tudo se sabe e, se se não sabe, inventa-se. Pois é...
Convidava-me a abrir eu a questão delicada. Mas eu sustive-me, sem saber
aliás como falar. O homem então calou-se, de olhos baixos, o lábio estendido,
batendo um lápis na secretária. Finalmente despertou:
- Os ditos chegam sempre, a gente não quer ouvir, mas ouve, não tem outro
remédio. O senhor é inexperiente, o senhor é novo... A gente julga às vezes
que está procedendo bem, mas é preciso sabermos com quem falamos.
- Não sei do que se trata, senhor reitor. Mas nada tenho de que me acuse.
- Pois... Ela é uma louca, oh, o pai sabe-o bem. E depois esse tolinho desse
moço... Mas há o nome do Liceu, há o nome da casa.
Corei estupidamente, devo ter corado como uma donzela. Senti, pelo
menos, um instante, o esvaziamento de mim próprio, a fuga das razões em
que ordenasse o meu todo. E nada disse. O reitor percebeu-me escla-recido.
E, olhando a minha confusão e fragilidade (fala, idiota, tens ou não uma
personalidade?, és ou não responsável?, é ou não consequente a tua vida?),
encerrou a entrevista:
- Está pois tudo esclarecido... Eh... A vida é assim, você está novo, a
experiência é sempre dura... Boa tarde então.
Não cheguei a saber o que se dizia na cidade. Mas, ao sair do Liceu, cada
olhar que cruzasse era um escárnio, uma acusação. Ninguém, porém, ousou
falar-me claramente do caso. E, assim, em breves dias o silêncio de mim para
os outros dava-me uma certa defesa como uns óculos escuros...
Possivelmente, o reitor exagerava. E vinham aí as férias da Páscoa para
alongar ao passado toda a agitação presente. Eu temia sobretudo o encontro
com Moura. Mas a morte de Cristina devia ser para o bom homem (como
para toda a família) uma noite demasiado negra para ver fosse o que fosse
através dela. Assim um pouco o confirmei quando me cruzei com Alfredo.
Eu faltava muito às aulas, fugia muito para o campo ou para casa, desertando
da cidade. Um dia eu sentava-me junto a um riacho, na estrada das
Alcáçovas, mas em sítio donde vigiasse o meu carro. Parou então um jeep ao
pé dele e vi Alfredo. Instintivamente saudei-o, ele veio ter comigo. Trazia a
sua blusa habitual (apenas com a braçadeira do luto), calça de cotim e bota de
cano. Imaginava-o pesaroso com tudo o que sucedera, mas Alfredo, por
superficialidade, por insolência ou até por fortaleza, pouco mudara:
- Pareceu-me o seu carro e disse cá comigo: “será mesmo o doutor?”
- Sou eu mesmo.
- Mas que diabo de ideia essa de vir para estes sítios?
- Gosto de ver a água, de ver os juncos.
Ele sentou-se ao pé de mim numa das rochas que apareciam por todo
aquele campo de azinheiras. Perguntei-lhe por Ana, pelos sogros. Ele então
bateu-me no ombro uma palmada folgazã:
- Que diabo veio a ser essa história do Carolino? Ai o ladrão, para o que
diabo lhe havia de dar.
Aceitei a plataforma de entendimento mútuo que Alfredo me oferecia e
sorri também do lance como de uma garotice.
- Olha a Sofiazinha agora a provocar duelos. É levada da breca aquela
rapariga.
- E a sua mulher? Como aguentou a morte de Cristina?
- A Anica, é claro, ficou abalada, ficou bastante abalada. Lá a levei a
distrair, ela é que escolheu, ela é que disse mesmo para onde queria ir.
Estivemos então na serra e na Praia da Rocha. Viemos de lá anteontem.
- Na serra onde?
- Na Covilhã. Nas Penhas da Saúde. Mas sabe lá, doutor, os trabalhos que
tive com a minha Aninhas.
E contou, contou largamente, mas como um estranho, os silêncios de Ana,
as horas sem fim à janela da pensão, suspensa dos horizontes de neve, os
passeios solitários pela estrada entre pinheiros (não queria que o marido a
acompanhasse e eu, é claro, submeto-me sempre às suas ordens). Depois
foram para a Rocha, mas sem passarem por Lisboa nem por Évora.
Aí recomeçou a sua meditação. Vagueava pela praia, às vezes mesmo de
noite, sentava-se nas falésias, ouvindo o mar. Eu dizia-lhe: - “Aninhas, não
precisas de nada? Sentes-te doente?” E ela só me respondia: - “Deixa-me”.
- Até que apareceu o Chico. Tinha ido ao Algarve em serviço e passou pela
Rocha. Mas desta vez achou-se ao engano: a Aninhas mandou-o bugiar.
Olhei o bom Alfredo: ria largamente com o seu riso oco, como de um
desdentado, a bochechinha vermelha. Tenho a certeza de que jamais Chico
interessou a Ana. Alfredo sabia-o possivelmente também. Mas uma hipótese
contrária parecia dar-lhe prazer - o velho prazer da humilhação. Mas teria
Chico ilusões? Talvez: Alfredo era um convite a isso, até porque parecia
admiti-lo e quase aceitá-lo. Mas tu, Ana, eras tão grande, tão bela na tua
vigorosa afirmação, que é estranho ter Chico imaginado sobre ti o que não
eras. Chico? Não o terei eu imaginado, não bem, embora, sob a forma de
traição da tua parte, mas de uma forma clara e humana de comunhão comigo?
Era evidente que Ana sofria de uma crise. Gostava de estar com ela, Ana
sabe as palavras do abismo...
- Já tentei visitá-los a vocês. Nunca estão.
- Não vá por ora, doutor, não vá por enquanto. Deixe passar mais uns dias.
A minha Aninhas precisa de repouso. Ela é muito de magicar, ela é muito
pensativa. O doutor vai, começa com filosofias, ela pela-se por isso e temo-la
tramada. Depois há ainda a questão da Polícia a resolver. É claro que o
desastre, oh, eu nem quero pensar nisso. Os técnicos verifi-caram que se
partiu a direcção. E podia lá haver crime, eu? Coitadinha da Cristininha...
A nossos pés o ribeiro falava a linguagem dos loucos, conversando sozinho
ao longo dos campos ermos. Tufos de juncos isolavam-se nas águas,
rebentavam das margens, esboçando uma imagem de frescura e de repouso à
ameaça do Verão na grande planura.
- E Sofia? - perguntei.
- Ah, já cá faltava... Pois a Sofiazinha ficou em Lisboa. Não: estou a
mentir. A Sofiazinha veio a Évora, mas voltou logo para Lisboa. Foi para
uma casa de freiras, a ver se tira a Admissão. E já vê, agora aqui em Évora...
Foi para Lisboa. Foi muito bem pensado.
Sim. É absurdo que eu a lembre, como se não desistisse de a sentir do meu
destino. Eu a esqueci por certo, a julguei estranha a mim, porque a mecânica
dos meus dias, a execução da vida não davam, dentro em pouco, pela sua
falta. Mas que me é essencial? Que define, realmente, a minha necessidade?
A minha disponibilidade é talvez mais extensa do que eu desejo. Descobri-
me na negação e na procura: será que interrogar não é querer uma resposta?
Há homens que em toda a vida apenas afirmam, e, se negam, é só para
afirmarem. Variará o que afirmam, não esse modo de serem homens na
afirmação. Pergunto-me às vezes a que fundura de si mesmos vai o seu ser
categórico. Mas eles próprios o ignoram ou se desinteressam disso. E que é
uma autenticidade? – pergunto-me, pergunto-me. Ceder a uma tentação (de
um roubo, de um assassínio, de um pecado qualquer) ou não ceder à tentação
é talvez igualmente autêntico: quem não cede reconhece-se mais ele na resis-
tência, no incómodo da virtude, como quem cede se reconhece também. Se
não, porque não pecou - ou pecou? Que fundura é a da tentação, no modo de
ser de um homem, se se lhe pode resistir? Quem afirma é assim como quem
nega, assim é. Será? Terei, pois, como destino esta agitação constante, esta
sufocação de nada? Será, pois, uma ilusão o termo da minha luta, esse termo
que eu me invento talvez só para a dignificar? Sei o que quero, agora que o
não tenho. Que será necessário inventar-me ou descobrir-me em mim para
saber que tenho o que quis, quando o tiver - quando o tivesse? Porque eu sei
o que desejo, mas pode a vida não sabê-lo: a vida também sou eu, o que
ignoro de mim, amanhã.

Nessa tarde deixara o carro na garagem para lubrificação. Uma lição de


Português levou-me à Biblioteca, ao pé do Templo de Diana. Chovia, não
muito. Aguardei, todavia, que abrandasse. Mas a pressa incitou-me: não era
chuva que me ensopasse.
Farto de aguardar no limiar da porta, atiro-me, de gola erguida. Mas ao pé
da Sé uma brusca descarga pesada, grossa, faz-me refugiar no pórtico. No
empedrado do largo a água embate com extraordinária violência, ergue um
vapor como se as pedras fumegassem. De vez em quando abranda, mas logo
recrudesce, cerrando uma cortina espessa: como a instabilidade de um
homem colérico, cedendo, recomeçando. Hesito longo tempo sem saber que
fazer, olhando ao lado as caixas tumulares com inscrições góticas, as siglas
de alguns degraus, as fieiras pálidas dos apóstolos, desajeitados no alto das
suas colunas. Mas, quando um trovão abala toda a cidade, entro
instintivamente na Sé. Um vasto silêncio de cúpulas, de largas superfícies
nuas afoga-me em pesadelo. As naves estão desertas e mergulhadas na
obscuridade de um peso de chuvada batendo nos vitrais, prolongando no seu
rumor uma memória de catacumbas, de aturdimento e refúgio. Sigo com o
olhar o avançar solene das arcadas até a um limite imaginado de uma
distância de alucinação, sinto-me despojado de mim, errando em pasmo pelo
espaço das abóbadas. Um súbito clarão ilumina os vitrais, o silêncio da
catedral, com um sinal antiquíssimo de aparição de deus bíblico. Aguardo o
trovão da velha cólera dos céus, relembro as flechas do templo, erguidas além
das nuvens, no diálogo fraterno e solene dos grandes poderes cósmicos...
E eis que de repente descubro que não estou só: lá no fundo, num ângulo
do cruzeiro, uma breve presença de negro destaca-se à luz trémula que desce
da lanterna. Avanço pela nave, olho ao lado um instante: “Ana!
- Ana!”
Ela volta-se devagar, fita-me sem espanto. Vou para ela, sento-me ao pé,
Ana banha-me a face do seu olhar ardente, serena mas com o ar estranho de
quem me não reconhecesse ou de quem me visse à distância de um adeus
para nunca mais...
- Ana! Que faz você aqui?
Ela olha-me ainda, sem responder.
- Recolheu-se da chuva? Está à espera de alguém?
- Estou aqui - disse por fim em voz baixa.
E foi como se declarasse que estava ali para sempre. Mas eu o sei hoje,
Ana, que era bem para sempre, que os caminhos da tua inquietação vinham
afinal dar ali. Está uma tarde de tempestade e eu te vejo, Ana, eu te vejo,
submissa, rendida ao peso de uma velha condenação, procurando nos
despojos de ti mesma a última flor de humildade que te perfume a solidão. E
tenho pena de ti.
- Mas você...
Olhei-lhe a face pálida, envolvida de sombra, o olhar angustiado, onde
passava às vezes um breve raio de loucura, tentava entender tudo daquela
presença insólita entre os espectros de uma catedral deserta com uma fúria de
tempestade pelos céus.
- Ouça, doutor, trouxe o carro?
- Não trouxe. Foi por isso que entrei. A chuva apanhou-me no largo.
- Não podemos estar aqui, não podemos estar aqui.
- Veio há muito?
- Há uma hora, há duas. Não sei...
Falava baixo, sempre baixo, como se emergisse dos fundos de algum terror
e o não tivesse ainda esquecido.
- Mas não podemos sair - disse eu. - A chuva não pára.
E por momentos ela pareceu ignorar-me. Olhava em frente a presença
longínqua da sua obsessão.
- Mas, Ana, você sente-se bem?
Então, abruptamente, ela gritou para os ecos das abóbadas:
- Sinto-me bem!
Assustei-me. Fiquei interdito. Mergulhei em longo meditar.
Ana então pareceu reconsiderar sobre o seu excesso, arrepender-se, quase
compadecer-se de mim:
- Todos me perguntam se estou bem - disse outra vez em voz baixa. -
Todos pensam que estou doente. Estou cansada, mas não estou doente. Sinto-
me bem, bem...
- Mas porque veio você aqui?
- Venho aqui às vezes. Gosto de vir aqui. Não foi você para São Bento?
Porque foi você para lá?
- Mas, Ana!, São Bento não é uma igreja...
- Um dia saberá que é. Um dia saberá...
E sorria, enlevada, numa alegria subitamente tranquila, como o halo de
uma criança num limiar.
- Não, Ana. Não o saberei jamais! Não, não!
- Não tenha medo. Não negue tanto. Eu sei que você se ilude.
- Não iludo!
- Sei-o, porque foi a sua linguagem que eu achei para me exprimir a mim
mesma, para me certificar a mim mesma.
- É absurdo! É impossível!
- Não fale alto.
O clarão de um raio incendiou os vitrais. Mas o trovão só já tarde se ouviu,
distante, espraiado em grandes rolos, como a notícia de uma praga longínqua.
Eu calava-me indeciso, intrigado, quase enovelado de vexame. A reacção de
Carolino, a reacção de Sofia, expressariam de algum modo um desastre da
minha angústia; mas eu sentia-os ainda um pouco ao meu lado, como o rasto
miserável da minha condição. Fulminados de mal-dição, de castigo, eles eram
ainda da minha humanidade, resolviam-se ainda nos limites do homem.
Destruíam-se com o seu protesto, mas recusavam-se a renegar o seu destino,
morriam no combate, mas não pretendiam salvar-se fugindo desse combate.
Mas Ana fugia, eu o pensava dolorosamente, eu o via absurdamente,
opacamente, como um muro. Uma memória envelhecida de cera, de água-
benta, de meninos de coro, de beatas, de novenas, de indulgências, de
confessionário instalou-se-me no estômago até à náusea. Era impossível que
Ana, a bela Ana de olhos de fogo, da graça invulnerável do seu dente
irregular, da força plena do seu corpo, ignorasse a degradação que eu lhe
estava imaginando. Impossível? Não sei, não sei, não sei: tu casaste com
Alfredo...
- Foi aqui que puseram a urna de Cristina – disse ela inesperadamente.
- Cristina? Mas porque é que...
- Aqui...
Depois, transfigurada, falou, falou. Frases desconexas, ideias avulsas,
pedaços de um monólogo, de um naufrágio profundo:
- ..E de súbito vê-se que não é possível morrer.
Que não é possível! Onde está Cristina, a que era ela, não a que morreu de
vestido de holandesa, não a que tocava, ela tocava tão bem... Havia outra,
outra, profunda, Ela, eu via-A, vinha até ao seu olhar, ao seu sorriso, eu via-
A, eu vejo-a, relembro-a, está aqui comigo, conheço-a, só me não pode falar.
Sou irmã dela, não eu, que você vê, sou irmã dela EU, que estou comigo, que
me sinto ser, eu... Então e eu poderia lá morrer? Sou irmã dela e de você e
disto que anda aqui neste silêncio grande, no eco da chuva, dos relâmpagos,
dos trovões que ressoam com uma voz que não vem nos livros, que é uma
voz dos grandes céus desertos. Como diz você? A voz inicial... Ouço-a, sei-
a... Mas isto é muito maior que nós, muito maior, muito maior... Reduzir essa
voz à dimensão humana? Da dimensão humana são só os ouvidos para a
ouvirem. E é preciso não estar distraído. Então a gente assusta-se, a gente
sabe que tudo isso existe...
- Não era assim, não era assim...
- Mas ninguém me entende. O meu pai julgou que sim. Não entende. Ele
também anda distraído...
- Mas você veio aqui. E aqui é o lugar de seu pai...
- Aqui é um lugar em que se ouve bem... Aqui é um lugar que tem uns
restos do que é importante. Estas cúpulas, esta hora fechada...
- Mas você acredita. Em quê?
- Não pretenda que eu diga, não pense que eu diga um nome. Sou pequena
e sei que a grandeza existe. Existe onde? Existe. Sinto-o em mim como uma
pancada no escuro...
- Oh, Ana... Essa grandeza é sua, de mais ninguém. Essa grandeza é nossa,
nós a descobrimos, a arrancámos do nosso pobre barro. Porque o barro é
nosso, é o barro da terra.
- Não me conte a história do homem, você sabe-a desde a infância, o seu
pai ensinou-lha, mas você não acreditou. Como quer que eu acredite?
- Acreditei, acreditei. Também ouço a voz da chuva, da tempestade. Mas
essa voz é minha. Só sonho com ouvi-la sem estremecer.
- Há-de estremecer sempre. Até reconhecer que lhe não pertence. Não a
inventou você. Deram-lha, veio-lhe de outrem. E você esquece que está a
repeti-la como se lha não tivessem dado. Papagaios orgulhosos e ridículos,
empoleirados na sua pobre suficiência...
- Ridícula é essa verdade de renúncia.
- Não renuncio: assumo.
Impossível diálogo: Ana mergulhara já numa nova natureza, num ser
integrado de si mesmo, fechado em si mesmo, como uma coisa. Só a minha
tolerância, decerto a minha disponibilidade de procura, de incer-teza, de pura
aspiração, me permitiam ainda uma permuta de palavras: duas verdades
vividas ignoram-se decerto uma à outra ou insultam-se, talvez.
- Mas, Ana, tudo isso é violentamente absurdo. Não é preciso falar-lhe do
que a ciência nos demonstrou, e a biologia, e o mais que você sabe. É idiota
falar-lhe nisso, porque isso é já o nosso sangue, é já a nossa evidência, é já
ridículo falar disso. Há um equilíbrio interno, há a flagrante certeza de que o
homem é humano.
- Sei tudo isso, não tenho razões nenhumas para opôr a isso. Sei só que
vejo. Alguma coisa mais se misturou no meu sangue e é já o meu sangue. É
bom ver...
A chuva parara, uma claridade maior abria pelas naves, pelas abó-badas.
Do alto do coro um facho dourado desceu enfim para o cruzeiro como a
sagração de um mistério, a unção absoluta do mundo obscuro, do mundo
submerso às nossas palavras vãs.
- Já não chove - disse eu. - Posso acompanhá-la a casa?
- Não, não. Prefiro ir sozinha.
Acompanhei-a até ao largo. O sol escondera-se de novo atrás de nuvens
altas. Um vento fresco de águas estremecia na folhagem verde das árvores.
Bruscamente, tive uma ideia:
- Que diz o Chico a tudo isso?
XXI

Mas não o pude saber tão cedo. Ana não mo dissera ou não soubera dizer.
Chico e eu, aliás, evitávamos encontrar-nos, ou só eu o evitaria, desejando
esse propósito para os dois, a fim de me tranquilizar. Não tinha medo de
discutir, de afirmar a minha verdade: sentia só, como com Ana, que duas
verdades vividas não podem talvez estabelecer um diálogo... Não tinha medo
e, todavia... Tinha eu afinal uma verdade e não apenas uma dúvida? Ter-se-ia
até apagado em mim a fascinação de quem precisamente se mostra inteiro,
seguro de si, embora, para a minha suspeita, essa inteireza seja só
publicitária? De qualquer modo, não nos vimos tão cedo. De resto, as férias
vinham aí e eu sonhava-as ardentemente para sossegar, fugir: dos outros, da
desordem violenta nas minhas relações.
Mas um domingo de manhã Chico bateu-me à porta.
Veio cedo, trazia no rosto musculado e cor de azeite o rasto de uma insónia
total. Era um domingo bonito, cheio de sinos ao longe. O sol vivo
aproveitava qualquer frincha para me invadir a casa. Chico bateu à porta com
violência, a violência categórica de quem vem por ordem da justiça. E foi
essa ideia absurda que me assaltou, a ideia de que uma autoridade qualquer
me vinha condenar. Vesti o roupão, fui abrir. E ao ver o engenheiro, tentei
um sorriso, uma palavra fácil que legalizasse tudo:
- Você? Tão cedo? Que ventos o trouxeram? Mas nem há vento afinal...
Ele não respondeu e entrou abruptamente como um polícia. Eu fiquei atrás,
fechei a porta. Vim encontrá-lo já na sala, de pé, junto às janelas.
Fulminantemente pensei que alguma coisa muito grave se passara de
véspera, talvez na reunião de sábado que se costumava fazer, em alguma
sessão do Comité, a que nunca assisti, mas que eu sabia funcionar em casa de
Ana, do médico Saldanha, do advogado Nogueira, no quarto do próprio
Chico. Quando cheguei a Évora, pôs-se a hipótese de eu ser integrado nessa
pequena sociedade secreta. Mas logo se viu que eu não tinha interesse, que eu
era mesmo o inimigo. Aliás, o Comité não existia: dava apenas a
oportunidade de uma conversa livre, de uma leitura e comentário de papéis
clandestinos, de um revigoramento de esperanças para o futuro político do
País, esperanças boas para um fim-de-semana e uma noite tranquila. De resto,
o nome de Comité de Salvação fora Alfredo quem o inventara, num dia
excepcional, e os outros adoptaram-no. (Chico dizia que fora a única
invenção de Alfredo em toda a sua vida e que ficara estafado para o resto dos
seus dias.)
- Venho aqui apenas perguntar-lhe se você tenciona voltar para Évora no
próximo ano.
Como? Ah, não! Era o cúmulo.
- O meu caro amigo está equivocado. Eu não me integro em nenhuma
hierarquia. Eu não tenho satisfações a dar a ninguém.
- Tem!
- Perdão. O meu amigo vem a minha casa, instala-se numa autoridade que
eu nunca lhe dei.
- Posso dizer na rua o que tenho a dizer aqui.
Era evidente que algo de grave ocorrera nos sonhos do sujeito. Era
evidente que eu servia de pretexto a um desforço, um desabafo. Tentei
serenar. Chico, aliás, num confronto físico, impunha-me reflexão: baixo,
duro, plasmado em bronze, tinha uma lenda agressiva de músculo e de rixa
que eu conhecia.
Olhei ao lado, instintivamente, à busca de uma defesa: uma cadeira, uma
jarra, uma pá de braseira... Optei por me sentar e acender um cigarro.
- Sente-se, Chico. Conversemos um pouco.
- Quero só que me responda.
- Ouça: a ideia de não voltar tem-me assaltado com frequência. Mas você,
com essa imposição, incita-me a reconsiderar. Quero resolver sem vexame.
Sem vexame muito visível.
- Reconhece, portanto, que não é oportuno voltar.
- Talvez. Mas não pelas suas razões. Reconheço pelas minhas.
Ele acabou por se sentar, fitando brutamente a sua inquietação.
Lembrei-me do Carolino: a loucura era acessível a todo o homem, era do
destino de todos: chamamos loucos apenas aos que não regressam dela...
- Você sabe a que extremo Ana chegou? - perguntou-me.
- Sei. Tentei já fazê-la reflectir. Inútil.
- Reflectir? Mas ela repete-o a você, ela diz exactamente as suas palavras.
- Não estou apaixonado por Ana. Ana não está apaixonada por mim.
- Não falo disso!
- Ainda bem...
- Não falo disso! Falo da sua mixórdia irracionalista, dos seus sofismas, da
sua perversão.
Ergo-me, abro as janelas. Para a cidade ao longe, para a planície verde,
uma paz solene de sol e plenitude abre-se, expande-se, como um triunfo
anunciado. Abril da luz, da festa primordial, da reinvenção do início, como te
lembro, como me dóis!
Regresso ao meu lugar, acendo novo cigarro:
- Tem a certeza de que não é irracional?
- Eu? Irracional?
- Toda a ideia vivida é do sangue, não do cérebro. Não há ideias
estritamente racionais. Nem sequer talvez na tabuada.
- Não pretenda enrolar-me, meu amigo. Sou pesado. Não é fácil
manobrarem-me.
Mas ninguém manobrava ninguém: apenas poderia operar a revelação.
Olho-me, Ana, não tenho culpa de nada. Os teus demónios são teus.
- Ana reconheceu-se. Eu fui só um espectador.
- Mas eu sei que, se o espectador desaparecer, ela se descobrirá diferente.
Diferente...
E um instante, uma onda de fraqueza pareceu-me quebrá-lo, a onda
solitária do próprio silêncio final. Deixei-o render-se totalmente a si mesmo,
talvez para que eu tivesse um pouco de razão, me sentisse onde não fosse o
réu que treme e se humilha. Mas Chico reagiu:
- Tudo o que se passa nela é absurdo. Absurdo como a estupidez. Absurdo.
- Ana viu. Foi ela que mo disse. Tentei reconduzi-la: não era aquilo, não
era aquilo... Ana regressou. Nunca sonhei regressar.
Chico pôs-se em pé. Um momento pareceu-me ir ainda falar. Mas susteve-
se. E nem sequer se despediu.
Abriu a porta, bateu-a secamente, desandou para a cidade.
XXII

Conduzo o carro, parto para férias. Não irei à aldeia senão um ou dois dias
- apetece-me andar.
Não tenho projectos, não procuro nada, excepto estar só, eu só, soldado à
máquina, nesta pura fuga de vertigem, nesta fuga de nada, nesta quente
sedução de esquecer. Estradas abertas, campos abertos, a alegria à minha
volta, evidente, natural como a luz do céu. O carro gira vertiginosamente, o
motor zumbe como uma obsessão, espectros de casas, gentes à beira da
estrada, outros carros que se cruzam com o meu num mundo reinventado à
alucinação. Mas eu estou calmo e leve como quem transforma um risco num
jogo. Dos restos do que passou, dos pedaços em que me quebrei, de tudo o
que bateu à minha porta, à pessoa que me habita, a memória sobe, purifica-se,
aquieta-se à minha volta, penetra-me o sangue, estabelece-se em harmonia,
como se fosse de amanhã, como se fosse já de agora que a revivo à luz da
noite. Atravesso Lisboa, tomo a estrada de Sintra - que maldição pesa sobre a
assunção do nosso destino?, sobre o nosso confronto connosco mesmos?,
sobre a evidência da nossa condição? Será que é sagrado e intocável o nosso
signo animal?
Árvores nas bermas, bosques, fontes, frigus opacum, o céu é azul como o
sorriso que aflora ao meu olhar, ao meu corpo purificado dos despojos do
cansaço. Sintra é um túnel de sombra como uma igreja. Abrando a marcha,
não porque o trânsito me obrigue mas porque a hora se grava de uma paz
solene de grandes árvores com raios de ouro entre a folhagem, os troncos,
com um halo de sossego em toda a terra. Não paro, tomo à direita a estrada
de Mafra, vou andando até que a noite me recolha. O sol desce para os lados
do mar, rasa o campo aberto que vou atravessando, Que esperas tu da vida?
Vê como os teus sonhos se resolvem nos outros em... Mas são actos
definitivos, não se iludem, não se iludem.
Duvidar é cómodo, interrogar-se é cómodo. Sei o que quero, sei o que
sonho. Que fazes para o atingir?
Mafra. Sentado em monumento, entroncado em monumento, branco,
gordo, há um abade que cheira a suor de um minuete de grandes damas,
confessionário, perucas empoadas, uma plebe inumerável, coxos, lepro-sos,
festa do Corpus Christi, imagens-síntese ao sol da brisa marítima. Que fazes
para o atingir? Não sei, não sei. Reconheço-me na evidência última da minha
condição - saber é já conquistar. Mil razões e factos me trabalham a saúde e
um dia vejo-me doente. Mil remédios me trabalham a doença e um dia
reconheço-me saudável. Toma o teu remédio, doente. Toma o teu remédio.
Qual remédio? Não o sei.
Como quem se despe de todos os artifícios, eis-me nu à minha face. A vida
é curta - tanto tempo só para isto, para me desnudar. Um dia virão os
mensageiros da Grande Reconquista, agora é cedo, a vida é curta.
Um dia virão os arautos do Grande Dia e lançarão aos ombros nus do
homem a verdade da alegria. Ou a própria terra e o próprio sol inventarão à
nudez o calor vindo do sangue.
Torres Vedras, na Praia da Areia Branca há uma pensão que avança até ao
mar, o sol tomba em majestade, eu, aqui, ao mirante do Ocidente, sinto-me
bem. As ondas rolam em espuma o embalo do meu terror. Fico à janela do
meu vazio, disperso ao rumor da solidão marinha. Nasce no céu, ao meu
olhar saqueado, a primeira estrela, que mal espero. Levo-a comigo para o
meu sono, para que a noite me não fique desprotegida. E durmo, durmo. O
mar recolhe a minha inquietação, balanceia-a, reconhece-a em espuma
branca...
Porque o conto agora, nesta noite de Abril? A Páscoa vem aí como outrora,
a encosta baixa da montanha lava-se da água errante que transborda das
nascentes, cobre-se de verdura e de flores que nasceram para o sonho de
ninguém, para o meu olhar fortuito, talvez, e estão certas como esta hora
absurda de alegria que ninguém conquistou, que é alegria por ser da verdade
para isso. Que fazes para atingir o teu sonho? Não o sei. Um dia virão os
núncios da Grande Reconquista. Quando for a hora para isso.
Aceito o mar e o seu reconforto, sigo a orla marítima, vou com os ventos
de viagem. São Martinho, Nazaré, subo ao alto das falésias, os mareantes de
outrora... Que ilusão! A busca indefinida é do destino do homem. Sim. Mas
outra busca, depois desta. A minha procura é a primeira, a que está antes de
todas, a que encontre para este corpo mortal, esta luz vivíssima e mortal, o
seu lugar ignorado num universo que se cumpre, com ventos e águas e serras,
desertos e planetas e Vénus e Marte e estrelas, Antares, Deneb, Altair - meu
velho pai - e galáxias e milhões de anos-luz e o infinito que submerge e
aturde. Silêncio. No vasto ressoar das águas verdes, aqui, do alto da falésia,
do limite da inquietação, quando nada mais resta do que partir, aqui, frente
aos ventos salgados, frente à montanha muda, lavada ao perfume angustiante
da germinação, ouço-te ainda Cristina. Fica um pouco. Até que o sorriso me
reconheça e me sagre. Leiria, Figueira, Aveiro, Porto. Praia de Âncora, -
esgota-se-me pelo caminho o que é de mais em mim, o que é excessivo para a
pequena entrevista que comigo marquei, Praia de Âncora, há uma mata para
os passos retardados, os últimos que restam da agitação, há um mar sentido a
nórdico, a mim, que venho do Sul.
Depois ziguezagueio em busca das capelas românicas, lembro-me desde as
aulas de História de Arte, vi uma à beira da estrada - a de Bravães -, procuro
outras, São Pedro de Rates, Ferreira, Roriz, ó mãos desajeitadas, trôpegas de
medo e de uma brutal humanidade inchando nos músculos informes, nas
faces broncas de pasmo, e a flor e a flor delicada tentando romper através
dessa grossura ancestral, da pele tanada a calos e a invernos seculares. De
Amarante a Vila Real, a serra do Marão ressoa à hora original do meu
destino, do mundo inicial da minha aparição, aberto a terrores de grandes
córregos, de vastas superfícies nuas, de silêncios suspensos de nevoeiros.
Desço enfim à minha aldeia - o tempo mudou. Um vento árido varre as areias
da estrada, mas a terra alegra-se à festa da Primavera. Minha mãe estranho-a.
A ausência dos filhos, do marido, criou-lhe já um mundo habitável, mundo
sereno na própria solidão. O seu olhar espesso de sonho mas vivo de ânsia, de
sorriso longínquo, envelhece agora numa quase severidade entre rugas de
pedra, imóvel. Agita-se pela casa, que centra ao seu mando, ordena a sua vida
para a morte, sem que a morte, porém, tenha voz nos seus domínios. Uma
voz que se ouça. Tenho o quarto arranjado como se eu fosse esperado, mas eu
venho de improviso.
Pergunto-lhe pela saúde, ela sorri: Bem. Reconheço-a fechada como se um
muro a rodeasse e fico de fora olhando. De que segredos se resolve uma
vida? De que pressões, escolhos, sacrifícios? Reintegraste-te toda, boa
mulher. Que podem sonhar-se em eco as palavras que te disser? Somos a
mesma carne, o mesmo calor de sangue, dizem-me que me pareço contigo, no
olhar ao menos, no olhar: estamos sós e definitivos aqui à face um do outro...
Erro pela aldeia – imagem do velho recomeço, da depuração da morte que o
tempo acumulou. O leite que bebo sabe às giestas floridas, os cordeiros
mamam a alegria nas tetas das mães, estremecem até às caudas de prazer - o
prazer irmão da angústia (rasgados à faca pelos vendedores, que os apertam
entre as pernas, os sangram para uma tigela, os despem em carne quente e
vermelha para a festa pascal). Cheira a loureiro nos velhos muros, as camélias
de plástico abrem pelos jardins, sobre as leiras revolvidas à plantação das
batatas, o cuco marca o eco da alegria irradiante. Não vejo o Tomás, não vejo
o Evaristo, sei que com a hora nova nasceu ao Tomás mais um filho. Mas é o
sétimo e quase me esqueço assim de que é realmente um primeiro, porque é
sempre um primeiro cada homem que nasce. De resto, parto em breve - e
minha mãe não estranha: mesmo presente, é como se eu fosse ausente,
porque a ausência assumida, assimilada à velha ordem, é o mundo dela, ou
parece. Páscoa da convivência, da alegria que já fala de janela a janela, tecida
ao sol já cálido nas visitas do prior, Páscoa da Natureza, da confraternização
com ela, a olhos alegrados em flores e águas libertas, demora-te um pouco
ainda, fica um pouco ainda ao apelo da minha plenitude... Ah, que a tua
absurda verdade fosse a minha razão cheia quando a quisesse; e que a tua
verdade natural fosse a minha verdade ignorada, tão ignorada e viva que,
quando eu a quisesse provar, as razões fossem de mais...
Mas na marcha para o Sul tudo me está esperando.
Os factos que me fizeram, me estruturaram, rebentam pelos caminhos
desertos, aguardam-me como ciladas.
Há alguma coisa então em mim que é daqui? O que eu sou é então também
deste pó que me vai cobrindo o carro novo, o fato novo?
XXIII

O Verão chegou à cidade como uma explosão.


Maio viera sereno, com alguns dias de chuva, continuando quase o
Inverno. A chuva desapareceu, o tempo estabeleceu-se em acalmia. No pátio
do Liceu as quatro árvores reverdeceram. Algumas delas polvi-lham-se de
florinhas lilás com um aroma activíssimo, quase doentio. Passeio por lá
durante os furos do horário, vou até ao gradeamento de ferro olhar as searas
já louras. Num quintal próximo uma rola canta. Ao fim das aulas divago pelo
jardim público para ouvir os pássaros. Pelos túneis de sombra os mióporos
espargem florezinhas brancas como numa apoteose. Quando dará flor o
aloendro? Pombos de leque esvoaçam na alameda, pelos beirais do palácio,
pela cúpula do coreto, cisnes vogam lentamente nos lagos sob chorões.
Sento-me, reconciliado, nos bancos de azulejos, fechados em recantos
clandestinos, vou visitar Florbela, olho-a de um banco de madeira que lhe
fica em frente, medito com ela. É uma cabeça calma, triste e majestosa.
Banha-se de grandeza e gravidade desde a fronte cansada, que verga sobre as
mãos em repouso, até às espáduas largas, em que o pescoço se espraia.
Sinto que ela prevaleceu sobre a melancolia dos séculos e que chegou até
nós para nos dar testemunho. Não está bem ali, rodeada de lirismo. E
imagino-a num limite da cidade, frente à planície deserta, num alto pedestal
tocando os astros...
Da minha história, ninguém conhecido durante largos dias. Vejo o Moura
acidentalmente na sua ronda de clínico. Saúda-me do carro discretamente ou
finge não me ver. Pelos caminhos rústicos, vou à procura de sombra nalgum
sobreiral, nalgum velho muro, na Quinta das Glicínias, que tem uma torre
fálica num montado, velhas árvores nodosas, enrameadas em bosque, um
tanque comprido e uma casa deserta. Ou rompo pelas estradas da planície,
Vila Viçosa, serra de Ossa, Monsaraz - terra estranha, esqueleto de velhice e
de ruína, com crianças solitárias que riem como sobre uma sepultura.
Normalmente, porém, viajo em torno da minha casa. Há uns pinheiros atrás
do Alto, para aí vou com algum livro, alguma pequena ideia.
Mas um dia encontrei de novo Alfredo e foi de novo através dele que eu
tive notícias dos outros. Alfredo praticava uma certa independência do que ia
acontecendo à sua volta, atento, porém, a tudo, como se o seu destino não
interessasse a ninguém e ele próprio o tivesse de defender. Pergunto-me se
ele era um tolo, embora gostasse de se exibir em tolice: por vingança?, por
astúcia? Tinha os seus meios de combate, sem que mostrasse aplicar-se a eles
com muito empenho. Assim a sua vida parecia resolver-se numa certa
tolerância para com os desvarios, vicissitudes da vida, que ele atravessava
com risos e despropósitos. Encontrei-o no Banco, eu esperava a minha vez de
receber dinheiros da aldeia, obser-vava, aplicado, a mecânica do caixa,
retirando de pequenas divisórias de uma espécie de mostrador notas e
moedas, que contava, alinhava, entregava ao guiché. Intrigava, era
inquietante a frieza profissional do homenzinho, manuseando maços de notas
como objectos sem valor, passando e repassando fortunas entre os dedos
inocentes, sem um olhar de cobiça, sem uma demora de calor - só o calor de
quem manuseia os objectos de um ofício. Era um sujeito magro, nervoso,
com uma execução de gestos de uma máquina perfeita. Ao fim do mês
receberia as suas notas, as suas, para as tocar de outro modo, as integrar no
calor da sua casa, como a cozinheira após a sua tarefa, à hora da sua refeição.
Eu estava na bicha quando uma mão me pesou no ombro:
- Olha quem ele é! Então por aqui, doutor?
Tive o meu pequeno sobressalto, embora já habituado a não me
sobressaltar com Alfredo. Recebi o meu dinheiro, esperei pela vez dele.
- Nunca mais os vi, onde param vocês?
Não, não os tinha procurado. Simplesmente, podia tê-los visto na rua.
- É que nós estamos na Bouça - disse Alfredo. - Temos a ceifa à porta, eu
tinha de lá ir todos os dias. Há lá uma casa e a Aninhas quis ir para lá.
- Demoram-se, portanto.
- Uma coisa, doutor: venha daí a minha casa. Ou tem que fazer? Então
venha daí. Hão-de lá ir uns homens carregar umas coisas, entretanto
conversamos um bocado.
O Verão chegara como um vulcão, a cidade abafava em silêncio. A casa
estava deserta, de janelas cerradas. Ficámos no rés-do-chão, numa sala vazia,
com cadeiras de pau. Alfredo abriu a janela que dava para o pátio. Um muro
branco em frente fulgurava ao sol, acima e ao longe uma faixa azul de céu,
como na violência luminosa das pinturas impressio-nistas.
- Que é que toma, doutor? Há bebidas lá em cima. Tome, vá. Arranjam-se
mesmo bebidas frescas. Quer uma limonada? Uma cerveja?
Não tomei nada, acendi um cigarro:
- Mas, então, agora ficam pela herdade?
- Ouça uma coisa, doutor: vá lá um dia destes. Valeu? O doutor nunca viu
uma acêfa? Arranja-se lá uma jantarada, está lá também a Sofiazinha...
- Sofia?
E Alfredo riu com malícia: “oh, aquela Sofiazinha, aquilo não era uma
mulher, aquilo era um demónio. Então eu não sabia?”
- Mas naturalmente não sei de nada.
- Pois a Sofiazinha já deixou Lisboa. Você sabe lá, doutor. Calcule que
tentou suicidar-se outra vez...
E ria, com um gozo muito íntimo, visceral. Não perguntei como tentara
suicidar-se, Alfredo também mo não disse. Contava a série de desvarios de
Sofia - noites passadas fora de casa, um grupo de malandros com quem se
atirara a estúrdias, rixas com as directoras da casa e um ultimato urgente ao
pai para a retirar de lá.
- Está agora aí, diz que vai fazer exame e que há-de passar. Ela é capaz de
tudo. Se se lhe mete uma coisa na cabeça, é capaz mesmo de a fazer. Mas o
meu sogro pergunta: mas, mesmo que passe, que vai fazer esta rapariga
amanhã em Lisboa? E quem diz Lisboa diz Coimbra. É uma mulher levada
do diabo.
- E Ana? Está mais conformada?
- Ah! Tenho uma surpresa. Vai ter uma grande surpresa. Não senhor, não
lhe digo. Vá lá à Bouça.
Ouça, doutor, vá amanhã! Não senhor: depois de amanhã.
- Não sei o caminho.
- Qual não sabe? Sabe, sim senhor. E se não soubesse, vinha cá buscá-lo.
Mas não é preciso. Ouça, doutor, que eu vou explicar-lhe. O doutor lembra-se
dessa vez que foi com o meu sogro? Quando o Bailote se enforcou? Não vá
dizer nada a ninguém, mas já lhe digo que a surpresa tem que ver com o
Bailote. Ora bem, depois de passar esse monte onde o homem se enforcou, o
doutor segue adiante, segue sempre adiante. E aí coisa de um quilómetro
encontra um caminho à direita. É esse. Depois é só seguir em frente que vai
lá ter.
- E outra coisa: o Chico? Ele vai também?
Era absurda a pergunta, Alfredo não a achou tal: o Chico estava para fora,
havia quase uma semana que o não via. Ele tinha a seu cargo a inspecção de
toda a área do Sul. E, ou era a Beja ou ao Algarve, saía muitas vezes.
Também ia a Lisboa, à direcção dos serviços.
- Mas, se ele vier e nós lá, aparece com certeza. Aqui para nós, doutor, eu
gostava bem que aparecesse.
Não perguntei porquê. Alfredo, porém, como se eu perguntasse, disse
ainda:
- Cá por coisas.
E riu um riso secreto, de uma astúcia profunda, que lhe iluminava a face
feliz.
Fui no dia combinado. Era um dia pavoroso de calor, desse velho calor
alentejano, sólido, imóvel, fincado à terra como um ódio tenaz. Logo pela
manhã a casa inunda-se-me de luz, que rebenta das frinchas, vinda do próprio
sol, das reverberações do pátio, da poalha incandescente do ar. Os pássaros
excitam-se pelas ramadas do quintal, uma mosca vareja penetra-me no
quarto, incha-me à memória um calor gordo de bronze. Saio para o Liceu,
tenho aulas só de manhã. São já aulas de fim de ano, os exercícios estão
feitos, a matéria já foi dada, canso-me à procura de motivos que inventem
uma novidade, um recomeço, vençam o mormaço da aula, a falta de
convicção dos alunos e minha.
- Fale-nos de qualquer coisa.
É o convite ao sonho, talvez à aparição. Mas de que vos hei-de falar,
amigos? Creio que já vos contei tudo o que sabia. Histórias de pintores, a
aventura da arte moderna, a crise do mundo, a contingência absoluta do vosso
nascimento, até as aporias do Eleata, essa fina absurdez do movimento da
seta, o mistério do tempo, que mais?, e a que propósito contei tudo? Já não
sei...
E após o almoço, parti. Atravessadas as duas passagens de nível, a planície
submerge-me, alucinada de fogo. A fita de asfalto dardeja, vagas de lume
embatem-me no carro. É a estrada do Redondo, onde Cristina agoniza. Mas
nada em volta relembra agora a sua música, nesta hora estática de terror.
Árvores das bermas olham-me a viagem, paralisadas à praga do sol. Acelero
a marcha na esperança de uma brisa, mas o ar espesso arde como a massa
liquefeita de um metal. Olho à esquerda, atento ao desvio para a herdade, e
ele surge-me enfim, escavado e poeirento. Balanço agora entre um mar
branco de searas que torram ao calor, sob a concha enorme de um céu de
zinco. Agora como nunca, uma condenação pesa em mim de solidão
ofegante, de blasfema aridez, nesta insólita marcha pela terra abandonada,
fervendo em silêncio, amadu-rando em suplício o grão da minha fome.
Eu o sinto sobretudo quando enfim chego à herdade: diante de mim, em
fila, como em marcha de penitência, homens e mulheres, cosidos com a terra,
ceifam uma seara. E na minha carne incendiada uma memória antiga de uma
fraternidade esquecida arde com essa gente fulminada pelo sol. Mas não vos
traio, amigos, se outra aflição à espera se me levanta após a fome saciada.
Que a justiça vos redima, homens do castigo. E que, à sombra da paz que vos
sonho e vós sonhais, a minha aflição vos reconheça, para que a nossa
fraternidade seja total. Que direis vós então, que direis? Porque a vossa voz
só agora vem do estômago, do vosso corpo condenado, da miséria do vosso
sangue de veneno. Mas que o vosso corpo se cumpra e a vossa fome se
cumpra. Não virá então o sono, mas outra insónia e outra, a pálida vigília de
quem espera ainda. Mas agora sois só os escravos da maldição - maldição dos
homens que se enojam de ter as vossas tripas, os vossos ossos, e se revolvem
a inventar-vos diferentes e se inventam uma cumplicidade do céu, com
deuses do seu partido e da sua violência. Eu vos amo até na vossa
barbaridade, flor bárbara da vossa condição. Como explicar-vos, porém, que,
após a vossa justiça clamorosa, há outros gritos abaixo da saciedade, sob a
redenção futura da vossa humilhação? Sede bons, amigos, sede
compreensivos. A fome da nossa condição não se esgota num estômago
tranquilo...
Alfredo irrompe de um portão, com um vasto chapéu de palha. Eu
quedava-me no carro, à sombra de uma azinheira, olhava ainda o suplício dos
ceifeiros. A meu lado, um rapazinho guardava a bilha de água tapada com
uma concha de cortiça, o cocho, e que ele levava aos homens ou aonde eles
vinham beber.
- Então ficou aqui, doutor?
- Olho isto, olho isto...
Endurece-me a garganta, amaldiçoada de secura, o ar cintila em faúlhas,
queima-se-me o olhar nesta praga de aridez. Quebrados pelos rins, os homens
ceifam sempre. Sinto-me nas suas mãos, nos seus ouvidos, na sua língua, um
mundo de arestas, calcinado, esgazeado de sede, crepitante de bichos de
metal, fulminado de cólera e de blasfémia.
- Traga o carro cá para dentro, doutor.
Ponho o motor a trabalhar e um eco de óleos e ferragens irmana-se-me à
desumanidade em redor. Alfredo, com grandes gestos, auxilia-me na
manobra difícil. Venço enfim o portão, paro à sombra de uma grande
nogueira, perto de uma cisterna. Ao lado, debaixo de um caramanchão
armado em ferros como uma capela, vejo Ana. Ana? Ela ergue a face de um
livro que lê, olha-me por cima de uns óculos... E é extraordinário, Ana, que
eu sinta fulminantemente e obscuramente e dolorosamente (mas com que
invasão de simpatia!) que os óculos te fiquem tão bem... De súbito, -
estremeço, intrigado: Alfredo ficara de lado, observando-me, precisamente à
espera da minha reacção: brincando ao pé de Ana, sob o dossel de glicínias,
duas crianças fitavam-me curiosas.
Alfredo não resistiu mais; e, rindo como se me tivesse pregado uma
partida, declarou entusiasmado:
- Aqui tem, doutor, a surpresa de que lhe falei.
Mas eu não entendera ainda. E ele explicou, já quase condoído da minha
hesitação:
- São os filhos do Bailote, os dois mais novos. Ficámos com eles. E que me
diz a isto, doutor?
Mas eu não dizia nada. Olhava Ana, via-a atenta aos pequenos, com o livro
no regaço, esquecida de mim.
- Há certos tipos que estão sempre prontos a julgarem os outros parvos,
doutor. Mas é preciso cuidado... às vezes enganam-se. Isto de se julgar uma
pessoa parva... Não. Nem todos somos parvos.
Eu não entendia. Seria comigo?
- Quero-lhe dizer uma coisa, doutor: a minha Aninhas é feliz.
Sim, sim: acredito (foste tu então que lhe trouxeste as crianças?). Mas
admito mesmo, meu pobre Alfredo, que Ana acabe por se apaixonar por ti. E,
agora, que relembro, admito-o com uma força maior. Tinhas o teu método,
tinhas o teu processo. No fim de contas, não eras um ser passivo. Os teus
insultos à beleza plena de Ana, mediante a ostentação da tua baixeza, da tua
grosseria, as tuas intervenções absurdas nas nossas discussões, eram uma
forma de ataque, de afirmação de uma personali-dade. De certo modo,
agredias Ana, sobrepunhas-te a ela e a nós. E colado ao teu estratagema
talvez ingénuo mas eficaz, colado à tua luta subterrânea e imediata,
incorporado a uma força quase natural é como se hoje reconhecesse em ti um
escárnio a todos os nossos problemas, a toda a nossa perturbação. Tomás
estará além como tu estás aquém de toda a minha angústia. Mas um e outro
vos ordenais numa linha de eficácia. Tomás é inverosímil. Tu repugnas-me,
pobre tonto - e todavia intrigas-me e quase me perturbas de inquietação, sei lá
até se de remorso.
Ana olhava o marido, serena, lavada numa pureza excessiva para os meus
olhos alucinados. Toda vestida de preto, os óculos a situá-la num mundo de
resignação, de outra idade, as duas crianças brincando sob a paz do seu olhar,
Ana retirava-se definitivamente da minha angústia, que continuava, se
alimentava de tudo o que falasse a sua voz, que seguia na indefinida procura
do eco que lhe respondesse, da noite final sem insónia ou pesadelo.
- Ana!
- Sente-se. Não apanhe sol. Não quer que o Alfredo lhe arranje um chapéu?
- Veja lá, doutor. Arranja-se já aí um chapeirão que o cobre todo. Não
quer? Então dêem-me licença, que tenho de ir à minha vida.
- Ana...
- A Sofia está aí, sabia?
- Não. Sim. Ana: você achou? Você chegou ao fim? Você dorme
descansada?
- Está um dia ardente, está um calor pavoroso. Mesmo aqui na sombra se
sente...
- Desde quando tem as crianças?
- Lembro-me às vezes de você: é extraordinário como no corpo destes
pequenos há uma pessoa viva, um todo independente, com uma cons-ciência
brutal da sua individualidade. Sei agora que nada disso é absurdo...
Acendi um cigarro, afrouxei o colarinho. Uma verdade natural, uma
harmonia natural trespassava toda a terra, os campos, as árvores, Ana, as
crianças.
Mas eu estava de fora...
Subitamente, Sofia apareceu ao pé de nós.
Literalmente: apareceu. Não lhe ouvi os passos, não lhe vi a sombra.
Surgiu imprevista ao pé do caramanchão. Vestia calça de cotim azul até sob
os joelhos, onde se lhe apertava contra a perna, abrindo numa fenda. No
tronco, cingindo os seios disparados, uma blusa branca sem mangas. E na
cabeça um vasto chapéu de palha. Ria, imovelmente, um vivo riso vermelho:
- Viva!
Ana envolveu-nos a ambos. Mas ignoras tu ainda, Ana, que a nossa vida
não se reconhece? Nem no desespero? Porque eu não desespero e a aparência
disso dá-a a minha fraqueza, os gritos ocasionais do meu cansaço. Oh, Sofia é
tão bela, Ana. Como evitá-lo sempre? Bela como a perdição, como todo o
pecado. Se na minha angústia há muito de pecaminoso... Não sei, não sei,
agora não.
Perguntei a Sofia pelos estudos, para normalizar a sua presença e a minha
em face da sua pela lei que à nossa volta tudo parecia apaziguar. Ela
declarou-me que ia tudo muito bem. Faria exame, tinha a certeza de que iria
passar. Estava bem resolvida a tirar um curso superior, natural-mente o de
Direito, amava a justiça, tinha talvez também o seu pequeno sonho de
emendar o mundo. Fitei-a um instante, esquecida de nós, varada de si própria,
um rasto de sorriso nos lábios, agressivo e desde-nhoso. Sentou-se, acendeu
um cigarro. Estendia a perna esquerda, apoiando a planta do pé, dobrava a
direita, aproveitando a liberdade das calças para aquela atitude rígida de
nobreza. Em volta o sol chiava de brancura na cal áspera da casa, da cisterna,
na sílica do ar... Os pássaros calavam-se nas ramadas, a terra abrasada
estalava de maldição. Hora de cobras, de insectos metálicos crepitando ao
calor. E do outro lado do muro, no dorso dos homens, o testemunho vivo
dessa praga...
- Não preferem estar em casa? - perguntei.
Sofia protestou: amava o sol, a chaga viva da luz.
Ana olhou as crianças, num alarme. Quisera deitá-las, fazê-las dormir a
sesta: os miúdos viviam a excitação dos brinquedos desconhecidos, da alegria
desconhecida.
Fui ainda ver a ceifa e o seu suplício. Mas o que era aí doloroso só o vejo
bem agora, revertido à verdade antiquíssima e original que tacteio nesta
procura nocturna. E pela tarde jantámos ao ar livre.
A noite descia, a terra atirava baforadas de forno.
Alguns homens ficaram ainda, Alfredo pediu-lhes que cantassem.
- Deixe-os lá - sugeri.
- Eles gostam.
- A gente gosta.
Eles gostam... Gostais como? Que logro procurais nessa música resignada?
Ninguém vos sonha assim, ninguém dos que vos sonham o futuro.
Reconhecervos-eis nesse sonho? Plácida, a planície adormece, lavrada
ainda dos restos de calor – numa linha longínqua, a Lua sobe como uma mão
final. Pelos campos rasos e crestados alastra o coro dos ceifeiros à procura de
um eco. As crianças adormecem nos degraus da casa. É a hora do regresso,
ergo-me, despeço-me.
Então Alfredo propõe-me:
- O doutor podia levar Sofia. Escusava eu de ir à cidade.
Aflijo-me e aceito. Ponho o carro a trabalhar e mergulho no descampado,
já todo inundado de lua. Sentada a meu lado, Sofia fuma em silêncio. Está,
como eu, saturada das memórias do dia, memórias densas, ofegantes,
pesando sobre os olhos, sobre o peito, sobre os membros inchados. Abertas à
infinitude, as searas ondulam ao luar. A presença de Sofia, a presença de nós
ambos à solidão a toda a volta chama-me a uma intimidade de uma defesa
comum, de um mútuo entendimento que não existe. Como uma ilha de
naufrágio.
- Sofia...
O carro balança às ondas da lua, não me cessa no corpo essa estranha
sensação de refúgio, de sobrevivência a um desastre universal.
- Sofia! Os miúdos ficam agora com eles?
- Foi Alfredo quem os descobriu. Ana aceitou-os como se os esperasse há
muito. Há gente cobarde para tudo, para aceitar, para acreditar, para jogar a
vida numa solução. Como se houvesse uma solução.
- Não tem você a sua?
- Tenho a de não a ter. Assumo a vida toda sem sofismas. Sou corajosa e
não tenho ilusões.
- Calo e esqueço, eu.
Bruscamente ela disse-me.
- Pára!
Atirei uma patada ao travão, o carro chiou, guinando pela estrada. Sofia
desceu, olhou a ravina da berma. E só então reparei: era o sítio do desastre de
Cristina. E, sem uma transição, Sofia irrompeu a cantar. Era um cantar da
Beira Baixa (creio que da Beira Baixa), escuro, antiquíssimo ou com um
sabor a isso, ali, na grande noite lunar.
Aguardei que Sofia terminasse, inteiriçado de surpresa e de terror. Sofia,
porém, entrou de novo no carro, cantando agora a meia voz. Reco-mecei a
marcha, caminhando todavia devagar. E Évora apareceu enfim, exposta na
colina, toda armada de luzes.
Desci a rampa, atravessei as duas linhas férreas, mas, quando cheguei ao
bairro novo, Sofia pediu que me desviasse para a direita, e entrei pela estrada
de circunvalação:
- Gostava de ir à tua casa.
À esquerda, panos de velhos muros, à direita o campo deserto. Passei à
Porta de Avis, passei por sob os altos arcos do Aqueduto, vim sair à estrada
de Arraiolos. E, chegados a casa, Sofia apoderou-se de mim com uma raiva
de desespero. Abruptamente, senti inchar-me nas mãos, nas veias, o seu
corpo frágil e extraordinariamente vigoroso. Os ossos doeram-me de novo,
uma milenária sede de conquista, de vitória cruel, estalava-me a boca, as
narinas. A lua entrava por uma janela aberta...
Depois viemos para a rua ver a noite, a cidade, a planície obscura,
atravessada longe por um pequeno comboio todo iluminado, como por uma
larva estranha.
Deitámo-nos numa rocha, olhando os astros. Eu falava das estrelas, das
gigantes vermelhas, das anãs brancas, das novae, da medição das distâncias,
das nebulosas, da nossa galáxia, cuja distância máxima, de extremo a
extremo, é de cem mil anos-luz, da Andrómeda, a mais próxima, a um milhão
de anos-luz, dos montões de galáxias, algumas à distância de quinhentos
milhões de anos-luz, das grandezas relativas, da E do Cocheiro, que é maior
do que a órbita de Saturno, dizia nomes de um sabor terrível para mim,
Arcturo, Capela, Aldebarão, Rigel, Betelgeuse, Altair, falava do aspecto da
Ursa daqui a cem mil anos, contava de textos indianos em que se falava de
certa polar, o que só poderia ter acontecido há x milhares de anos, contava do
movimento de precessão...
- ... em cada 25.000 anos o eixo da Terra descreve um cone duplo em torno
da perpendicular à eclíptica... ...e que há 120 séculos a nossa polar não era a
estrelinha que sabemos mas a Vega; e que daqui a outros 120 séculos sê-lo-ia
a Vega outra vez.
- Pois bem - disse Sofia. - Para toda essa coisa brutal como inventar uma
resposta?
E de novo ela cantou, agora um canto desconhecido que a exprimia com
ardor. Voz bela, enchãdo os espaços. E, agora que tudo findou, eu a ouço
ainda aqui, nesta noite de Verão, com um insidioso arrepio... Porque, apesar
de bela, a sua voz soava-me como um insulto, era ácida como todo o
desespero de Sofia. E eu disse:
- Não se fica em paz quando se te ouve. Não se fica. Que pena não poder
agora ouvir Cristina sequer na memória...
Sofia voltou ao Alto ainda algumas vezes. E trazia-me sempre o seu
pânico, explodindo, sanguíneo, em desvario amoroso, em cânticos para a
noite e, rarissimamente, num ou noutro poema breve.
Depois deixei de a ver: quando uma outra vez a encontrei, ela falava-me
como se eu mal a conhecesse: decerto a nossa entrevista, confirmo-o hoje,
recordando o que depois aconteceu, tinha acabado para sempre.
XXIV

Foi no café, durante as férias de ponto, que eu recebi a notícia da morte de


Chico. Quem ma deu? Já me não lembro. Saí abruptamente para sua casa,
que ficava ao pé do jardim, como julgo já ter dito. Mas a criada que me
atendeu ficou pálida e desmentiu a notícia: o senhor engenheiro estava mal,
mas felizmente não morrera. Fora apenas uma das suas crises de coração,
desta vez particularmente grave.
E, com efeito, alguns dias depois convalescia. Para mim houve uma certa
perturbação, quase um desapontamento, na falsidade do boato: que obscura
paixão do desastre nos domina?, ou que orgulho subtil de termos sempre
razão, ainda que a razão magoe? Quando Chico melhorou fui visitá-lo. Ana
estava também. E Alfredo. Chico sentia-se humilhado na sua qualidade de
enfermo, de homem indefeso – ele que trazia no sangue, nos músculos, uma
voz de triunfo, de positividade maciça.
- Um doente não é um homem - começou por dizer. - Um doente é um ser
em decadência. Tudo o que é válido para a vida não deve contar com ele. Não
abuse de um doente, como os padres...
- Mas o espírito de um doente, para você, não tem que estar doente - disse
eu.
- O espírito faz-se no sangue.
- Não! - objectei. - Para você, não: uma ideia exacta deve-lhe ser exacta de
qualquer modo.
Calei-me um pouco, acrescentei:
- O espírito faz-se no sangue, está bem. Mas justamente eu já sei que o meu
sangue há-de apodrecer. E eu quero estar prevenido para quando ele estiver
podre.
- Não abuse da situação...
Estava uma tarde quente, do Rossio vinha já o eco da azáfama para a feira.
Ana olhava tudo, ouvia tudo, quase desinteressada. Mais tarde, já eu não
estava em Évora, disseram-me que tu, Ana, te tornaras fanática. Verdade?
Não sei. Sei apenas que, por então, tu reagrupavas-te ao teu mundo novo, à
maravilha que irradiava de uma paz reencontrada. Eras crente, não eras ainda
apóstola.
Havia contas a saldar com as convicções antigas, com as suas testemunhas.
Mas justificar-se, discutir parecia-lhe decerto inconveniente. Vivia a sua
alegria, mas na humildade: só por encantamento?, por deferência? Vivia a sua
alegria e era só: o silêncio resolvia-lhe toda a manifestação. Chico sentia-a
distante e, talvez por estar doente, aceitava já a distância como resignado. Eu
não queria violentar o engenheiro a uma discussão frontal do que ficara em
aberto entre nós. Eu não queria abusar da situação.
Mas precisamente eu pretendia incluir a situação numa problemática da
vida. Sentia, sabia que era um logro decidir-se para a vida sem ter-se em
conta a doença, a morte. Um homem não se limita a dois braços fortes
erguidos. Um homem limita-se em toda a sua condição. Se as ideias de um
doente são ideias doentes, porque serão decisivas as ideias com saúde, se a
saúde é uma contingência, um estado passageiro? As ideias saudáveis
também são débeis: elas pertencem ao acaso do vigor. Poder-se-ia pois
responder a quem as expõe que a sua exactidão depende apenas de uma
frescura ocasional do sangue: o seu rigor é contingente... Mas eu queria
soluções para toda a idade da vida, eu queria uma certeza assumida,
assimilada, para a ameaça da morte. Eu queria que a desgraça da nossa
condição nos não trouxesse surpresas... E era isso exactamente que eu
sonhava para todos os homens, para a hora em que um estômago estivesse
calado, adormecido.
- Portanto - declarei - a exactidão de uma ideia não é uma exactidão em si.
Portanto, toda a razão é irracional. Sei-o há muito. Mas, você só agora o
sabe... Um doente não pode ter opiniões para a vida. Você o diz. Por mim,
digo antes que as deve ter e nunca mais esquecê-las.
- Não seja desleal, professor.
- Que cada qual esgote a sua voz - disse Ana. - Que a esgote até ao fim.
Você mesmo, Alberto. E então se saberá. Uma voz certa não tolera
discussões, não foi você quem mo disse? Todos vocês discutem..
- Só falta que Ana me traga um padre e os santos óleos... Mas não traz!
Uma ideia com saúde não é uma ideia como as outras: é uma ideia normal.
Ninguém faz fé no juízo de um bêbedo ou de um doido. Ninguém a pode
fazer no juízo de um doente.
- Somente um louco ou um bêbedo é incapaz de dizer isso - objectei.
Chico soergueu-se:
- Por favor! Acabemos.
- Sim senhor - interveio Alfredo -; que rica discussão, que ricas coisas aqui
se disseram! Muitas ideias vocês trazem nessas cabeças! Eu, é claro, sou um
bruto, não é, Aninhas? Mas cá vou vivendo, enfim, cá vou cumprindo...
Um altifalante crescia na aragem vinda do Rossio. Outro altifalante passou
na rua, anunciando o Circo Luftman. Tocava longe uma trompete pelas ruas,
anunciando decerto uma tourada. Para lá da janela e do muro gradeado do
jardim, Florbela continuava a sua meditação. E nesta mistura de excitações da
vida e da melancolia final, das palavras de Chico e da sua condição de
vencido, nesta soma entrecruzada de esperança e de desastre, de conquista e
de submissão, um instante foi como se a própria vida tivesse mais razão do
que tudo isso, fosse maior do que nós, a nossa inquietação, o nosso desejo de
vencê-la, de capturá-la numa ideia, numa significação onde coubesse toda e
nos permitisse enfim que nos confron-tássemos com ela. Porque o meu sonho
não era afinal senão esse: o de reabsorvê-la toda; e talvez que para isso a
minha pequena ambição, com a minha angústia, fosse a última etapa, sempre
esquecida, apelando para a integração do que sempre se olvidava, do que
sempre aparecia com um sinal de degradação, de fraqueza, de miséria, ao
sonho invencível - lúcido ou ignorado - para a condição do homem, de uma
condição de deus...
XXV

A feira abriu com grande excitação. Todo o Rossio se iluminou de festa


com fieiras de barracas, carrocéis, circos, stands de carros e máquinas
agrícolas, tendas de doçaria, de fotocómico, tômbolas, jogos de argolinha,
aparelhos de buena-dicha com variantes de passarinhos que tiram o papel da
sorte, tiro ao alvo, aparelhos para demonstração de forças, solitários
vendedores de água com uma bilha e um copo ao lado, vende-dores de
mantas, de escadas, de cestos - sob um céu duro de altifalantes e poeira e
vibrações luminosas. Noite de São João, noite cálida de bruxas e de sonhos.
Para lá da mesa em que escrevo, para lá da janela aberta, clarões de fogueiras
abrem-se de descantes que irradiam pelos céus. Há danças, entre as estrelas,
de gente que se dá as mãos... A montanha arfa pesadamente dos grandes
calores do dia. Eu ouço e comovo-me. De vez em quando o homem lembra-
se de clamar a sua presença contra a noite, contra as sombras. As fogueiras
são os fachos dessa vitória efémera. Mas é belo que se discuta até ao fim o
derradeiro triunfo do silêncio. Eis Évora discutindo-o também aos meus olhos
irradios e doridos. Nesta praça de loucura ignoro a loucura. O que enfrenta o
meu cansaço, o que afoga a minha interrogação é esta fácil desautorização da
morte. Nós, os homens das contas complexas de quem aprendeu mais do que
as quatro opera-ções, das bibliotecas de catacumbas de quem ousou mais do
que o a b c, de quem arriscou as ideias e as não gastou em palavras, sabemos
que a discussão se não esgota num simples voltar de costas, numa troça de
desprezo, embora soberana e eficaz como a das crianças. Mas esta gente
pareceu-me hoje, neste breve instante, que é viva e natural, que tem a força
bravia das ervas dos baldios. E uma opressão esmaga-me como diante de uma
audácia a que só nós emprestamos consciência para a tornar audaz. Eis-te, aí,
bom reitor, com amigos que eu não sei, a uma mesa de esplanada, cheia de
canecas vazias de cerveja, como um pólipo de ventosas... Saúdas-me risonho,
o lábio grosso, a face injectada de boa disposição. O Verão era a tua hora de
grandes libações, lembro-me de no café te ver com frequência bebendo uma
tarde inteira, enchãdo a mesa de vidros que mandavas retirar para não
publicares a tua sede. Eis-te a ti, Ana, passeando com gente que só conheço
de vista e te torna a ti, a meus olhos, anónima e dispersa. É dia de São
Pedro?, o dia chique? Já não sei. A multidão ferve rodando em torno de si,
como se toda a feira fosse um enorme carrocel. Mas a noite recua um pouco,
as sombras começam onde já ali se não lembram.
- Não viu a Sofia?
Não, Ana, não vi. Já não a vejo há muito, quero dizer... Pois: encontro-a
ocasionalmente, ela passa à minha beira; mas só poderia vê-la de frente.
Nunca mais voltou ao Alto, mas ainda se lá ouvem os seus cantos de
desvairo... A última vez que a vi foi num banco secreto do jardim. Estava
com o Carolino.
Vou no rasto desta massa de gente que alastra por toda a feira. É uma
gente que sabe como a fraternidade da pele encoraja o que é da pele, os
músculos, a garganta, amplia a parte mecânica de um homem: a alegria, a que
é da rua, fortifica-se nesse encorajamento. Um ou outro afirma-a a altos
berros para que ele próprio a ouça, experimenta-a para a saber, como se
experimenta um risco, atira-se a ela para que os outros verifiquem que afinal
ela existe.
Passo junto dos circos, há bichas de gente à procura de bilhetes. Hei-de lá
ir também. Gosto dos palhaços como de quem me põe à prova a urgência do
que sinto: os palhaços recusam-me o que eu devo recusar talvez... Gosto dos
trapezistas como de quem se liberta, das lantejoulas, dos dourados, como das
tréguas da ilusão que não quer ser mais do que isso.
- Se vir a Sofia, diga-lhe que estamos no Café Luso.
Outra vez Ana e o seu rancho. Mas quem falou agora foi Alfredo. E de
súbito, com uma violência irrespondível, eu lembrei-me de um telefo-nema
de há dias. Eu estava no Liceu, num intervalo de exames:
- Só você é responsável. Só você.
Quem falou? A tanta coisa, aliás, eu podia ligar aquele aviso absurdo, de
um terrorismo incipiente. Ponho-me a correr a feira numa fúria. Barracas de
tiro, carrocéis, bichas para os circos, esplanadas. Vou mesmo ao jardim, vou
à zona secreta dos bancos de azulejo. Um rumor de vento agita toda a
convulsão do Rossio, afasta-a, balança-a em reflexos de metal.
Venho de novo à feira, ouso estupidamente alguns telefonemas a que
ninguém responde - estupidamente, porque eu sinto a estupidez do meu
alarme, que a mim próprio receio confessar. Não que tema que se esboce a
sua confirmação mas tão-só por me atingir como alarme. Para que insistir na
minha inquietação e na sua narrativa como quem quer retardar um efeito
teatral? Na realidade, no dia seguinte, e com uma clareza sem sombras, como
a desse sol de Junho, Sofia apareceu num caminho que parte de junto do
Chafariz de El-Rei, assassinada a punhal.

Enfim, vou-me embora. Houve um concurso para Faro e fui classifi-cado.


Voltarei ainda, decerto, para o julgamento, porque não devem dispensar o
meu testemunho ou o meu sacrifício. Alfredo declarou-me que o Chico me
considerava responsável pelo crime de Carolino. Aceito a responsabilidade
de tudo, porque aceito a responsabilidade da minha vida. Mas à minha vida
não a alterarei. Só em face do meu dever (que o não é, porque é só a minha
voz) eu me salvo ou me condeno. Se o meu dever é um crime, é um crime
inocente. O homem perdeu o seu lugar de encontro mútuo, de
reconhecimento mútuo, para que o dever seja uma responsabilidade comum e
indivisa. Uma vida não chega para nos reconhecermos irmãos. Que fazer,
porém, se eu sei que uma fraternidade só pode construir-se numa evidência
de raízes e o dever só existe na inaceitação, quero dizer, na submerssão ao
que está fora de nós e Aquilo de que falo está dentro de mim, sou eu... Se
algum crime houve em mim, foi só o de ter nascido.
Aluguei casa em Fáro, remeti para lá quase todas as minhas coisas. O
Manuel Pateta encarregou-se de tudo.
- Já não volta para Évora, senhor engenheiro?
Pago-lhe por tabela alta. Ele desbarreta-se várias vezes, rojando pelo chão
os pobres olhos borrachos.
- Hei-de vir ainda para arrumar o que falta.
Venho em Setembro, como da primeira vez. Tinha serviço de exames, mas
o reitor dispensou-me como das orais em Julho. Vou ao Liceu despedir-me
do bom homem. Encontro-me com ele na sala 8, como há um ano. E, como
há um ano, olho pela janela o sol arrefecido, brilhando nas medas de palha,
nas terras lavradas de longe em longe, o vento varrendo as areias do parque,
sacudindo as folhas mortas das árvores. Nos fios que passam em frente das
janelas, de novo as andorinhas se agrupam em cachos, de penas eriçadas,
meditando longamente na grande migração. Adeus, reitor. Até um dia, até
sempre. Levo nos meus olhos, para a vida inteira, estes claustros, este
silêncio, estas ruínas, estas vozes milenárias que se ouvem ainda nas ruas,
esta vasta solidão da planície em que o homem se sente ainda,
angustiadamente, o senhor da criação...
Pela última vez, durmo na casa do Alto. É uma noite sem lua mas com um
céu vivo de estrelas. Mas a minha atenção prende-se à cidade, à planície. Para
os lados da estrada de Viana descubro um espectáculo extraordinário que me
alvoroça, que me fascina: numa vasta extensão de terreno, um incêndio lavra
interminavelmente, iluminando a noite. É uma queimada, suponho, o
incêndio do restolho para a renovação da terra. Alinhadas pelos sulcos, as
chamas avançam como um flagelo inexorável. E aos meus olhos saqueados é
como se uma cidade ardesse, uma cidade fantástica, aberta de quarteirões, de
praças, de sonhos. Cidade, minha cidade... Que a terra tenha razão sobre ti,
que essa força que mal sei te absorva, te revele em cinzas, tire delas outra
fecundação e outro ignorado começo - que me importa? A minha vida é a
vida, só existe o que me sou: não se imagina quem se não é...
Acendo um cigarro, fico-me a olhar o incêndio.
Lembra-me imagens da guerra, de cidades bombardeadas. Alguém deve ir
pegando o fogo por sectores, estabelecendo linhas de chamas que o vento vai
impelindo. O campo arde vastamente, como uma destruição universal. Quase
ouço o crepitar das chamas como o fervor final de uma inundação. Sinto-me
só e nu, escapado ao desastre. Mas esta nudez que eu algum dia julguei
possivelmente coberta pela compreensão dos outros, esta redução extrema às
minhas raizes, esta solidão inicial de quem não pode esquecer a sua pobre
condição é o sinal humilde e amigo de que à vida que me deram a não
repudiei, de que cuidei dela, a não perdi, a levo comigo nesta viagem breve, a
aceito ao meu olhar de fraternidade e perdão... A noite avança, a minha
cidade arde sempre. Vou fundar outra noutro lado. Mas não sabia eu que ela
devia arder. Acaso será possível construir uma cidade como a imagino, a
Cidade do Homem? Acaso não dura ela em mim, no meu sonho, apenas
porque a penso sem conse-quências, a imagino, a não vivo, lhe não exijo
responsabilidades? Não o sei, não o sei...
Mas o que sei é que o homem deve construir o seu reino, achar o seu lugar
na verdade da vida, da terra, dos astros, o que sei é que a morte não deve ter
razão contra a vida nem os deuses voltar a tê-la contra os homens, o que sei é
que esta evidência inicial nos espera no fim de todas as conquistas para que o
ciclo se feche - o ciclo, a viagem mais perfeita. Não me pergunteis como
consegui-lo, não me pergunteis. O que é evidente aparece. Mas nestas noites
de insónia em que me vou perscru-tando, neste esforço natural como o da
terra, em que me vou revelando, eu pude ver, em instantes de fulgor, o que
me era, o que me cumpria, o destino que me gravara. E ver é já conquistar,
possuir. O terreno é bom, o terreno é este. Não será tempo ainda de construir
a minha cidade. Mas é já tempo de saber que se deve construir... Talvez a tua
música, Cristina, ajude a mover as pedras; como certa lira de outrora... Eu a
sonho, pelo menos, como o ar respirável de um dia, aberto às alturas de um
triunfo apaziguado, como a alegria dominadora e sem tumulto de quem chega
ao alto de uma montanha...
Ao contrário do que esperava, não fui notificado para o julgamento do
Carolino. Da minha culpa, aliás, quem poderia decidir além dele, de mim, de
nós, dos que sabem a linguagem que é ignorada pela lei? Sigo o processo
pelos jornais, aqui, nesta casa que aluguei na rampa de Santo António, frente
à ria onde os poentes apodrecem. Há quem proponha um exame psiquiátrico
ao pobre Bexiguinha. Nas suas declarações há zonas obscuras como pegos, os
homens que as registam, que as examinam, hesitam, contornam-nas, à
procura do caminho interrompido.
“Ela fazia pouco de mim, eu gostava muito dela, muito, muito. Eu matava-
a e ela depois ficava a descansar, que é que valia matá-la? Ela descansava e
quem sofria era eu. Mas depois pensei: Ela é uma coisa extraordinária, ela é
muito grande, ela diz eu e quando diz eu é uma força enorme, uma maravilha
extraordinária. Se eu a matasse, está bem, ela ficaria a descansar, mas eu
reduzia-lhe a nada aquilo que era grande, ela, ela. E ela era tão bela e quando
me amava ela era grande como ela, porque ela era tudo isso e eu reduzi a
nada tudo isso. E eu continuo vivo, continuo a ser grande, ela já não é nada.
Mas tenho pena - oh, ela é que teve a culpa. Sinto-me orgulhoso da minha
força, mas estou triste.”
Entendo a tua loucura, meu bom moço, a tua perplexidade diante do poder
que te nasceu nas mãos.
Mas como não aprendeste que é mais forte criar uma flor (um parafuso...)
do que destruir um império? O tempo e o amor... Sei o milagre da vida, por
isso a morte me humilha. Tu chamaste a ti a força da humilhação. Mas um
tirano só é grande aos olhos do cobarde. Tenho pena de ti...
Quanto tempo ainda? Um ano e outro ano e outros anos. Minha mãe
morreu numa noite de Novembro, precisamente na véspera de Tomás ser pai
pela décima vez. Não fui à aldeia, soube tudo lá longe, ao rumor dos ventos
do mar. Faro é uma cidade aberta, sem muralhas nem cúpulas. Mas o meu
mundo reconhece-se na laguna das águas mortas, na aragem que sopra do
lado de lá da ilha.
Por isso talvez alguém mais sabia ali a minha linguagem final, a que aflora
num susto a aparição do silêncio, a que sagra e anuncia... Casei, adoeci,
retirei-me do ensino.
Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de fim de
Verão entra pela varanda, lava o soalho numa pureza irreal, anterior à minha
humanidade e onde, no entanto, sinto presente uma parte de mim. O céu é
húmido e fresco como uma nudez, o ar satura-se ainda desse aroma genesíaco
que as chuvadas ergueram da poeira do Estio. É bom estar aqui, neste
abandono, todo aberto a estas vozes de indício, a este trémulo aviso de uma
verdade primordial. Instante perfeito da totalidade presente, aureolando tudo
o que me é degradação...
Dou a face inteira à inundação da lua, que me escorre por este corpo
perecível, o trespassa do seu fluído de eternidade, o transmigra ao país da
legenda. Um grande halo de grandes olhos abertos suspende-se raiado à
anunciação da evidência. Sei e não temo: será o temor só dos outros, para os
outros, como são deles as palavras? Sei, não talvez como quem conquistou
mas como quem se despoja: a minha verdade é o que me sobeja de tudo.
Quantos anos ainda à espera? Que caminhos desertos ou de estalagens à
espera? Mas o tempo não existe senão no instante em que estou. Que me é
todo o passado senão o que posso ver nele do que me sinto, me sonho, me
alegro ou me sucumbo? Que me é todo o futuro senão o que agora me
projecto? O meu futuro é este instante desértico e apaziguado. Lembro-me da
infância, do que me ofendeu ou sorriu: alguma coisa veio daí e sou eu ainda
agora, ofendido ou risonho: a vida do homem é cada instante - eternidade
onde tudo se reabsorve, que não cresce nem envelhece -, centro de irradiação
para o sem fim de outrora e de amanhã. O tempo não passa por mim: é de
mim que ele parte, sou eu sendo, vibrando. Como imaginar o futuro? Sou
agora irremediável como a absurdez de uma pedra, como uma obstinação. O
que o sonho mal é um sonho, porque o espero violentamente, o desejo na
experiência do meu corpo, das minhas vísceras – como deve ser realizável o
pão à fome de quem nunca o teve. Mas dos desvarios que o meu aviso suscita
como um erro de cálculo ou de manobra, da secura mecânica das horas que o
esqueceram na execução dos gestos, do terror dos longos dias até ao repouso
final a que aspiro, da própria angústia que me torce à evidência da minha
condição - neste instante fugidio e apaziguado eu me esqueço à quietude
desta lua irreal sobre a terra realizada em dádiva e fertilidade, à memória de
uma inocência de outrora e para sempre reinventada em música a uma hora
gravada de cansaço entre uns dedos indefesos e uns cabelos louros e a luz
derradeira de um dia de Inverno, eu me esqueço ainda, ao anúncio de alguém
numa porta que se abre, e que me procura e me toma as mãos e as molda, à
luz da lua, na flor breve e miraculosa de uma profunda comunhão...

Évora, 3 de Julho de 1959

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