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Aparicao - Vergilio Ferreira
Aparicao - Vergilio Ferreira
Aparição
Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra
pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas
flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma
memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento,
há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a
espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a
face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita.
Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível. Nesta casa enorme
e deserta, nesta noite ofegante, neste silêncio de estalactites, a lua sabe a
minha voz primordial. Venho à varanda e debruço-me para a noite. Uma
aragem quente banha-me a face, os cães ladram ao longe desde o escuro das
quintas, fremem no ar os insectos nocturnos. Ah, o sol ilude e reconforta.
Esta cadeira e que me sento, a mesa, o cinzeiro de vidro, eram objectos
inertes, dominados, todos revelados às minhas mãos.
Eis que os trespassa agora este fluido inicial e uma presença estremece na
sua face de espectros... Mas dizer isto é tão absurdo! Sinto, sinto nas vísceras
a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma palavra que o diga
coalha-me logo em pedra. Nada mais há na vida do que o sentir original, aí
onde mal se instalam as palavras, como cinturões de ferro, aonde não chega o
comércio das ideias cunhadas que circulam, se guardam nas algibeiras. Eu te
odeio, meu irmão das palavras que já sabes um vocábulo para este alarme de
vísceras e dormes depois tranquilo e me apontas a cartilha onde tudo já vinha
escrito... E eu te digo que nada estava ainda escrito, porque é novo e fugaz e
invenção de cada hora o que nos vibra nos ossos e nos escorre de suor quando
se ergue à nossa face.
A mancha da lua fosforesce como o vapor de uma lenda. Um bafo quente
sobe dessa água, sagra-me de silêncio como um dedo na fronte. E outra vez
agora me deslumbra, em alarme, a presença iluminada de mim a mim
próprio, o eco longínquo das vozes que me trespassam. Como é difícil,
miraculoso, pensá-lo.
Quanta coisa aprendi e sei e está aí à minha disposição quando dela
preciso. Mas esta simples verdade de que estou vivo, me habito em evidência,
me sinto como um absoluto divino, esta certeza fulgurante de que ilumino o
mundo, de que há um fora que me vem de dentro, me implanta na vida
necessariamente, esta totalização de mim a mim próprio que me não deixa
ver os meus olhos, pensar o meu pensamento, porque ela é esses meus olhos
e esse meu pensamento, esta verdade que me queima quando vejo o absurdo
da morte, se pretendo segurá-la em minhas mãos, revê-la nas horas do
esquecimento, foge-me como fumo, deixa-me embrutecido, raivoso de
surpresa e de ridículo... E, todavia, sei-o hoje, só há um problema para a vida,
que é o de saber, saber a minha condição, e de restaurar a partir daí a
plenitude e a autenticidade de tudo - da alegria, do heroísmo, da amargura, de
cada gesto. Ah, ter a evidência ácida do milagre que sou, de como
infinitamente é necessário que eu esteja vivo, e ver depois, em fulgor, que
tenho de morrer. A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o que me
cerca é de dentro de mim que a sei - não do olhar dos outros. Os astros, a
Terra, esta sala, são uma realidade, existem, mas é através de mim que se
instalam em vida: a minha morte é o nada de tudo. Como é possível.
Conheço-me o deus que recriou o mundo, o transformou, mora-me a
infinidade de quantos sonhos, ideias, memórias, realizei em mim um prodígio
de invenções, descobertas, que só eu sei, recriei à minha imagem tanta coisa
bela e inverosímil. E este mundo completo, amealhado com suor, com o
sangue que me aquece, um dia, um dia, - eu o sei até à vertigem - será o nada
absoluto, dos astros mortos, do silêncio. Mas tudo isto é quase falso, é quase
estúpido só de estar a pensá-lo, a dizê-lo, porque a sua evidência é um
milagre instantâneo.
A lua subiu ao céu quente, a sua água escorre-me agora pelo corpo. Lavo
nela as minhas mãos e é como se me purificasse num tempo anterior à vida,
num luminoso halo de coisas por nascerem. Súbito, neste silêncio mineral, a
porta da sala range e o vulto de minha mulher, o seu corpo franzino, esfuma-
se na sombra. Senta-se ao meu lado, estende os pés ao luar sem dizer nada: ao
fim de muitos anos aprendemos a verdade, na aparição da graça, num limiar
de presença, antes que sobre a Terra fosse pronunciada a primeira palavra.
Tomo as suas mãos nas minhas e no deslumbramento da noite abre se,
angustiada, a flor da comunhão...
I
Mas não foi fácil encontrarmo-nos. Eu próprio lhe telefonei daí a pouco e
acabámos por marcar o encontro para o dia seguinte no Arcada, sem que
Moura se lembrasse de que era uma terça-feira, ou seja, dia de mercado. Com
efeito, ao entrar no café, após o almoço, tive a surpresa de ver aquele vasto
túnel apinhado de gente. O corredor atravancava-se de negociantes, porque
era ali, entre bebidas, que se realizava o mercado da semana. A terça-feira era
dia de porcos, como soube mais tarde que lhe chamavam. E, por isso, quando
recordo esses dias distantes, a imagem que deles tenho é a de um ventre
glorioso digerindo poderosamente, preenchendo compactamente todo o
espaço do café... Achei a custo um lugar a um canto, à esquerda de quem
entra e onde viria a instalar-me para sempre. Em mesas postas para o almoço,
forasteiros mastigavam; e dir-se-iam eles tão naturalmente feitos para isso,
que mesmo sem mastigarem me pareciam mastigar; como certos carros
aerodinâmicos, mesmo parados, parecem largados a grandes velocidades...
Por entre a vozearia, a fumarada e o odor a corpos, tento localizar o doutor
Moura em quem tenha o olhar inquieto e procure também como eu. Canso-
me enfim e para ali fico, abandonado a cigarros e a olhos vãos.
Decerto o encontro falhara. Meu pai recomendara-me o Moura como um
apoio no deserto. E sei que lhe escrevera. Tinham sido colegas em Coimbra,
tinham ambos construído aí um passado, sobretudo através de uma discreta
boémia - essa que, por ser discreta, pode melhor depois preencher uma
memória. Meu pai contara-me que o homem tinha uma bela voz de tenor e
coadjuvava os amigos com serenatas nos flirts de ocasião. Bato um novo
cigarro, espero ainda. E de súbito vejo vir até perto de mim um sujeito gordo,
baixo, ensacado, de olhar inquieto pelas mesas.
Ergo-me, vou até ele. Fitámo-nos ambos um momento até acharmos o
nosso traço de união; e foi ele quem primeiro o descobriu:
- É o doutor Alberto Soares? Ora viva, viva. Então que tal de viagem?
Onde está instalado? Ora vamo-nos sentar um pouco. Isto hoje é mau dia,
mas nem me lembrei.
E sentámo-nos. Moura pediu o seu café e, talvez por reparar no meu fato
preto, evocou enfim o meu pai. Contei-lhe o desastre súbito da sua morte
(que ele soubera pelos jornais), mas era evidente que Moura se não sentia
muito impressionado. Tinha a sua alegria espontânea, firmada não sei em quê
– como aliás nunca soube. Depois falou da minha aldeia, da nossa casa, e ela
foi verdade mesmo ali, naquele ar grosso de fumo, de algazarra, de notas de
conto esfolhadas pelas mesas de negócio.
- Passámos lá há dois anos. Não: há três.
- Eu estava para fora.
- Eu sei. O Álvaro, o seu pai, disse-me. Mas a casa, a casa. Extraordinária.
Muito antiga, não é?
Velha casa. E eu sendo, aparecendo, criando-me através de ti e de mim.
Muito antiga? Havia uma data que eu descobrira no sobrado: 1761 ou 1767.
Algum velho mineiro a trouxera do Brasil. Um vasto jardim em frente, com
um grande alpendre ao lado, um pinhal descendo oposto até à ribeira, e
adiante a montanha.
- Vai-lhe custar a adaptar-se - disse Moura. - Isto aqui é muito diferente.
Mas note: também tem a sua beleza. Quando eu vim foi o mesmo. Porque eu
não sou daqui. Mas casei em Évora e por cá fiquei. A mim diziam-me: O que
custa são os primeiros dez anos.
- Espero ir para o ano para Lisboa.
- Eu sei, quero dizer, calculo. O senhor não é um desconhecido. É muito
falado lá em casa. A minha Sofia, que também faz versos...
Sofia. à luz do meu Inverno, eis que te lembro no teu corpo esguio, no teu
olhar ácido de pecado...
Domingos de Primavera pelos campos, noites quentes de Verão no Alto de
São Bento, a planície banhada de uma lua enorme. E tu voltada para o céu,
cantando, cantando: Ai... Ai, ai, ai, ai Ouço nas vísceras o teu canto ardente,
iluminado de loucura. Os céus estremeciam à anunciação da tua divindade.
Os teus olhos vivos, Sofia, a tua face tão jovem tinham o mistério da vitória e
do desastre, da violência do sangue.
Canta! Que mais há na tua vida que o teu canto, a angústia do teu grito
contra os céus desabitados?...
- ...Também faz versos? - perguntei por fim.
- A minha Sofia? Se ela tivesse tanto jeito para o latim como tem para
isso...
- Latim?
- Dois anos reprovada na admissão a Direito, veja o meu amigo. Dois anos.
E, se calhar, vai-se ao ar também o terceiro.
Mas um moço de face redonda, um começo de calvície, um sorriso cortado
à navalha, de orelha a orelha, aproximou-se de nós, poisou a mão no ombro
do Dr. Moura:
- O Chico está melhor. Passei agora lá por casa.
- Ah, sim? Bom, então não preciso de ir lá já.
- Mas passe por lá logo. Ele diz que se sente melhor. E já fala outra vez em
políticas e em razão e em cultura, eu sei lá. Ontem estava macambúzio, ar
amodorrado.
- Um novo amigo: doutor...
- Alberto Soares.
- Alfredo Cerqueira. Como está o senhor doutor?
- Meu genro - disse ainda Moura.
- Marido de Sofia? - perguntei.
- De Ana. Tenho três filhas - esclareceu Moura, sorridente. - E desculpe...
Ora vamos a ver: sábado. Pode ir jantar connosco?
Fui. A casa ficava para as portas de Alconchel. No átrio havia um grande
pote de cobre. Subia-se uma larga escadaria de pedra, bordejada de uma fieira
de bilhas de barro que Moura coleccionava. Com grandes arcadas de velho
mosteiro, todo esse rés-do-chão se congelava com um frio mineral, uma
frescura de catacumbas. E eu o lembro agora, a esse frio, numa súbita
imagem de um estranho silêncio coalhado em abóbadas... A criadita que me
atendeu, toda armada de folhos, meteu-me num escritório, selado de
reposteiros. A casa era grande, mal se ouvia um rumor de passos ou de
portas. Até que o Dr. Moura apareceu, açodado. Estendeu-me os dois braços,
conduziu-me através de uma baralhada de salas até a uma espécie de
marquise, onde me esperavam já com aperitivos. Em frente havia um jardim,
cercado de um alto muro, onde a noite começava a germinar. Duas palmeiras
explodiam no céu como granadas. E ao longe, para lá do casario, a planície
azulava-se como horizonte marinho. Conheci então Madame, abundante
senhora, loura por antiguidade (devia ter cabelos brancos), ousada e astuciosa
por direito de mamã. Conheci a mulher do Cerqueira, Ana, Ana. Tinha
cabelos longos e lisos, face magra de energia e de ânsia, olhar vivo de
estoque... O lábio superior abria-se com a irregularidade de um dente. E
conheci-te, Cristina. Estavas com os teus sete anos, a tua saia azul de folhos,
o teu arzinho de menina grave. Nada dirias por então - e que tinhas tu a dizer?
Falarias dali a pouco, só depois do jantar. E de um modo tão extraordinário,
Cristina, que eu te ouço ainda agora como a voz mais perfeita de tudo quanto
me aconteceu, esse ano e outro ano, e todos os anos da vida...
Até que, como numa expectativa de teatro, apareceu Sofia. Tinha um
vestido branco, colado como borracha, e um corpo intenso e maleável. Uma
forte adstringência apertava-a contra si, endurecia-lhe o boleado das curvas
como duas maxilas cerradas.
A cinta fechada disparava-lhe os seios, uma luz inquieta iluminava-lhe os
olhos. E era assim como se uma descarga da terra a atravessasse toda, a
revoluteasse num duro arranque de ira... Apertei-lhe a mão com calor,
subitamente infeliz. A noite adormecia sobre a terra, cálida, tranquila, como
uma nudez saciada. Sofia, Madame Moura e Ana e Alfredo cercaram-me
dessas perguntas de nada com que se inicia um convívio. Não conhecia o
Alentejo? Nunca tinha ido a Évora? Ficaria por lá? Que ensinava eu?
Não, não fora nunca a Évora, não ficaria por lá, ensinava português e
latim...
- Latim, latim - exclamou Sofia, imensamente divertida por haver no
mundo, e ali ao pé, quem ensinasse tal coisa.
- Gostava de Letras, decidi-me pelo ensino - esclareci. - E como o latim
tinha futuro e me não dei mal com ele...
- Oh!, o latim... - exclamou Sofia ainda.
- Descanse que não serei um professor exemplar - prometi eu,
imediatamente, desculpando-me como de uma degradação. Aliás, acrescentei,
uma profissão não era para mim um bilhete de identidade. Poderia ficar na
aldeia, trabalhando a terra como o meu irmão Tomás. Mas havia o vício do
livro, do meu verso clandestino. Cumprido o dever burocrático, ficar-me-ia
tempo para o mais. Sim, sim escrevia o meu verso. Mas a arte não era para
mim um mundo da letra impressa, uma estúpida invenção de passatempo ou
de vaidade: era uma comunhão com a evidência, uma reencarnação na
verdade de origens - eu o sabia, eu o saberia sobretudo depois. Ana tinha uma
pergunta a fazer. Mas Alfredo interrompeu-a:
- Ó senhor doutor. O senhor doutor vai ver que o Alentejo... Eu tenho aí
uma herdade, havemos de lá ir. Em a gente aqui estando, digamos, dois anos,
dois anos! A gente quer lá outra coisa...
E sorria em volta com o seu sorriso repuxado, deliciosamente ingénuo,
quase imbecil. Mas a criadita vermelhusca, toda estalada em folhos brancos,
apareceu no terraço, anunciando o jantar.
Ana ficou a meu lado com a sua pergunta de há pouco. Havia nela a
violência de um prosélito recente ou em crise. Era em crise, boa Ana, como
em breve eu saberia. Sim, Ana. Essa tua inquietação, essa tua fúria
silogística, o desejo encarniçado de demonstrares, deram-me cedo a certeza
de que nada em ti estava seguro.
- Li dois livros seus - disse-me ela. – Publicou mais algum?
Não, não publicara, disse eu, centrado na atenção de todos.
- Que se passou em si do primeiro para o segundo? Dir-se-ia que o seu
deus ressuscitou também no terceiro dia.
- Não, não, minha filha - interrompeu Moura, pousando precipitadamente o
talher. - Hoje não me levas à discussão. Isto é comigo, sabe? - acrescentou
para mim.
- Julguei que fosse comigo.
- É comigo. Bem: eu sou religioso, acredito em Deus, em Cristo, no Papa,
no dogma, em tudo o que me ensinaram. Mesmo não tenho tempo para
pensar mais no assunto. Tenho um Deus para me tomar conta da vida e da
morte. Fico com o tempo livre para tomar eu conta dos doentes.
Ao meu outro lado estava Sofia. Interpunha breves perguntas, de olhos
baixos, erguia-os às vezes subitamente, fitando-me como um tiro. De uma
vez olhei Madame. ela envolvia-nos aos dois com malícia e tolerância.
Alfredo, docemente calvo, sorria para tudo, falava de novo das herdades,
perguntava-me se eu gostava de fruta, porque queria que eu provasse umas
laranjas que lá tinha e havia de me enviar à pensão. Estava eu no Machado?
Pois bem: no dia seguinte... não, daí a dois dias, havia de me remeter um
cabaz de laranjas. Como as preferia eu? Da Baía? Voltava-se para a cunhada.
- Diz lá tu, Sofiazinha querida, que tal as laranjas da Baía.
“Que gente, que gente”, pensava eu. Moura, lançado no jantar, parecia
distraído no prazer com que comia. Porque a sua boa disposição tinha a
sólida base de um estômago cumpridor. Imprevistamente, Ana regressou à
sua obsessão:
- Há uns versos no seu livro que me intrigam.
Dizem assim, mais ou menos:
Mas a visita à doente foi breve. Era uma casa fidalga perdida no
descampado. Espectros de um ou outro homem ou mulher olhavam-me no
carro parado, olhavam o silêncio em redor. Regressámos enfim pelo mesmo
caminho. Quando, porém, chegámos ao monte do semeador, saltou-nos à
frente um grupo de pessoas numa sarilhada de gritos, de imprecações, braços
no ar, braços apontados para uma loja. Moura saiu do carro e o magote de
gente seguiu-o. Fiquei só. Mas o médico regressava daí a pouco, pálido,
transtornado.
- Que aconteceu?
Ele não respondeu logo, conduzindo o carro aos tropeções. E só quando o
monte se não via já me declarou:
- O homem enforcou-se.
Senti-me embrutecido, atordoado em todo o corpo.
Só. Era espanto e fúria e terror. Era essa indizível e total suspensão em que
a absurda evidência nos esmaga pela absoluta certeza e absoluta
impossibilidade. Sei e recuso. Uma violência iluminada incha-me no cérebro,
estala-me o crânio como uma massa solar. Pensar, reflectir, como?, como?
Apenas vejo, apenas vejo, fascinado, imóvel.
Apanha-me todo e queima-me e endurece-me nas mãos enclavinhadas uma
surda intoxicação. Moura, a meu lado, nada diz. à luz obscura da tarde
parece-me que envelheceu. A gordura que lhe enchia a face feliz descai-lhe
agora para o pescoço em pregas flácidas. Os campos estendem-se a perder de
vista, o ar acende-se de um último clarão. Que fazemos nós na vida? Que
incrível pertinácia nos resolve numa ilusão toda a imensidade do milagre de
estar vivo? Não vale então nada, meu velho desconhecido, esse prodígio de
seres, em face de uma mão que não é já a de um semeador?
Tinha uma missão a executar, uma extraordinária notícia a transmitir.
Precisava urgentemente de fazer a conferência, de revolucionar o mundo.
Porque o mundo aparecia-me sob a forma de uma absurda estupidez. Era
necessário que todos os homens vivessem em estado de lucidez, se
libertassem das pedras, chegassem ao milagre de ver. Era absolutamente
necessário que a vida se iluminasse na evidência da morte. Viriam a chamar-
me mórbido, doentio. Porquê? Mais real do que o nascer era o morrer. Porque
quem nasce é ainda nada. Mas quem morre é o universo, é a pura necessidade
de ser. Um homem só é perfeito, só se realiza até aos seus limites, depois de a
morte o não poder surpreender. Não porque a tivesse decorado como um
gato-pingado, não porque a tivesse esquecido, mas por tê-la incorporado na
plenitude da vida. Sabia bem quanto era difícil já não digo esta aceitação
esclarecida mas até o ver o problema; sofrer o impacto da sua fulgurante
aparição. Eu próprio quantas vezes o esqueço! Quantas vezes me remordo em
desespero, porque nada vejo, nada vejo! A parte animal do homem, a parte
gorda, a que tem sono e quer dormir é brutalmente pesada.
Mas agora eu sei, eu vejo. Procuro por isso o Chico na sua repartição. Não
está: saiu para uma avaliação de prédios ou o exame de alguma construção.
Procuro-o no café depois das cinco: não está também. Vou enfim a sua casa.
Mora ao pé de São Francisco, numa casa que dá para o Jardim. Bato à porta:
iam ver se o senhor engenheiro estava. E ele aparece enfim, de roupão e um
cigarro entre os dentes. O quarto é grande e no rés-do-chão. Quando passam
carroças na calçada, o soalho estremece. Passam constantemente carroças,
mesmo a horas tardias. Ouço-as ainda agora, martelando toda a cidade,
percorrendo em fila as estradas da planície. Levam fardos de palha moída,
lenha para os fornos, azeite, louça de barro.
Na minha imagem distante, filtrada pelo tempo, unem-se à figuração de um
pelico, de um ventre e face gorda, de notas de conto esfolhadas nas mesas do
café à terça-feira, essas carroças rijas com machos e almocreves, martelando
a cidade de uma memória de terra e de estrume. Chico pergunta-me:
- Então que há, professor?
Tratava-me por professor, que era a fórmula mais certa para ele de uma
camaradagem tolerante. Eu tratava-o por Chico e às vezes por engenheiro.
- Pensei já na conferência - disse eu.
- Óptimo. Mas a coisa não vai ser fácil. Falei já com os senhores da
Harmonia, mas eles não se entusiasmaram. De que vai você falar? De
cortiça? De adubos? Não vai. Bom, nesse caso está tramado.
- Vou falar de uma coisa nova, de uma descoberta extraordinária.
- Descoberta? Então não é para a Harmonia: é para a Academia das
Ciências.
Eu fumava, nervoso. Um candeeiro estampava a luz na secretária, dissolvia
o quarto em penumbra. Sentia-me possuído da minha evidência e mal reparei
assim na ironia do engenheiro. Queria falar, tinha de falar.
- A minha descoberta destina-se a toda a gente. Nem é uma descoberta.
Quero dizer: é a descoberta de uma aprendizagem.
O engenheiro recostou-se na cadeira como um advogado que se informa ao
atender um cliente. Eu estava numa situação de inferioridade e o que desejava
não era uma tolerância mas uma comunhão. De súbito, porém, bateram à
porta. O engenheiro mandou entrar e quem apareceu foi um moço meu aluno.
Mostrou-se embaraçado com a minha presença, prometeu sair logo.
- Podes ficar - disse o engenheiro. - O doutor dá licença. É meu primo -
acrescentou para mim.
Não dera ainda tal licença. Mas concordei. Era o Carolino, meu aluno de
Literatura, moço bisonho, com a cara crivada de espinhas e a quem por isso
os colegas chamavam o Bexiguinha.
- Lá passei no Redondo. O teu pai não estava - declarou o engenheiro ao
rapaz. - Mas estava a tua mãe... Não acreditou lá muito nessa história de mais
livros. Mas mandou o dinheiro.
E passou notas ao rapaz, que as guardou em silêncio, corando fortemente.
O engenheiro acendeu novo cigarro, recostou-se outra vez:
- Mas diga então, professor.
Não, amigo. Não é para essa tua fleuma abundante que eu tenho voz.
Procura! O rasto da tua radiação divina, o lume secreto da tua aparição, onde
está? Onde o perdeste, amigo? Em que recesso do teu ar monolítico? Trago o
eco perdido do ermo de ti próprio. E tu, pobre Bexiguinha de olhos alagados
de estupefacção? És tu só então que me estás ouvindo? Mas de que falo eu,
afinal? De que nada tão brutal de fúria e solidão? Descobri as raízes da minha
vida, a flagrância do que sou. E falo, falo. O entusiasmo incendeia-me, as
minhas palavras são já quase só vibração. Mas só talvez assim estejam certas,
como um ferro em brasa que nos atinge não pelo ferro que é.
- A descoberta que proponho é bem difícil - insisti eu. - Não lhe contei
ainda o caso do homem que se enforcou?
- Contou-me o Moura - disse Chico.
- Que foi? Que foi? - perguntou o Bexiguinha, a voz fina e cantada da sua
terra e que assim o aquecia como a uma criança.
- Encontrámos um homem há dias, quando o doutor Moura ia ver um
doente. O homem queixava-se de que já não tinha uma boa mão para semear.
à volta, quando passámos outra vez pelo monte, o homem tinha-se enforcado.
Bexiguinha abriu os olhos e a boca.
- É preciso vencer esta surpresa que nestes casos nos esmaga. Ajustar a
vida à morte. Achar e ver a harmonia de ambas. Mas achá-la depois de
sabermos bem o que é uma e outra, depois de nos encandearmos na sua
iluminação. Sabia acaso o homem o milagre que destruía? Mas eu sei.
- Como se sabe, senhor doutor? - perguntou-me o Carolino na sua voz
ridícula, que tanto me desmanchava.
E de repente, em face do interesse do rapazinho, não dito em palavras mas
expresso na sua avidez, de novo me empolgou a fúria de revelar. Virei-me
para o Bexiguinha, falei só para ele. E perguntei:
- Porque é que, no silêncio da noite, nos assusta falar em voz alta? Nunca
fizeste essa experiência?
- Nunca fiz, senhor doutor - respondeu ele no seu tom de falsete.
Era preciso fazê-la. Mergulhados no silêncio nocturno, sentimo-nos não
existir. O que existe é como que o absoluto do mundo, a presença aguda das
coisas. O universo aguarda a vinda do primeiro homem. E subitamente
gritamos: “Eu estou vivo, EU SOU.” E falamos connosco, fazemo-nos
perguntas. Sobe-nos então à garganta uma surpresa de terror: “Quem sou eu?
Quem está aqui comigo?” Dá vertigens. É como se nos aparecesse um
fantasma e estivesse dentro de nós e fosse alguém a mais e visse pelos nossos
olhos e falasse pela nossa boca. Só os doidos falam sozinhos, porque não têm
medo. O mundo para eles não existe: só existe a sua loucura. Por isso nós, se
falamos, nos sentimos doidos, separados subitamente do mundo. O que existe
então não é o quarto onde estamos, os livros, a noite; o que existe é este
vulcão brutal que sai de nós, o jacto do deus que nos habita, esta
monstruosidade que nos adormecia dentro.
Mas de súbito o telefone tocou. Chico ergueu-se pesadamente, foi atender.
- Como está? Sim... Não, não... Pois... Os alicer... Pois... Os alicer... Não,
eu já lhe tinha dito. Os alicerces é que ficaram mal.
Pousou o telefone, voltou-se para mim:
- Mas dizia você, professor...
Não, quadrado homem de ferro e de cimento. Não me entendes, não te
entendo. Falo para ti, Bexiguinha.
- Há uma outra experiência - disse eu. - Uma vez, quando era miúdo...
Contei. Nós estávamos sentados na varanda da casa, voltada a oriente.
Tomávamos o fresco, o dia fora abrasador. Detrás da serra a lua ia em breve
aparecer e nós esperávamo-la quase em silêncio. Só meu pai me repetia a
história dos astros, que eu guardava na memória: Antares, Altair, Deneb,
gigantes vermelhas, órbitas no grande vazio dos espaços. A lua veio enfim.
Eu sentara-me no chão, mas apetecera-me deitar-me ao comprido para ver
melhor as estrelas. E minha mãe mandou-me ao quarto procurar a manta e a
almofada dos nossos sonos no tempo. A porta estava aberta, a lua entrava por
uma das janelas. Procurei a manta e a almofada numa cadeira, no canto onde
minha mãe as arrumava. Subitamente, porém, quando ia a erguer-me, eu vi
que estava alguém mais no quarto. Dei um berro, larguei tudo, estatelei-me
no corredor. Aos meus gritos acudiu minha mãe, meu pai, meus irmãos, as
criadas, a tia Dulce. E ali, à face de todos, declarei:
- Está um ladrão no meu quarto.
A minha mãe arrebatou o candeeiro a uma criada e fomos todos atrás dela.
Mas, iluminado o quarto, examinados os recantos, o ladrão não apareceu.
- Oh, a imaginação desta criança! - exclamou minha mãe.
Sermão sobre a minha imaginação. Meu pai aproveitou a oportunidade
para atacar o malefício das historietas que nos contava a velha tia Dulce.
Aliás, quem mais as escutava era precisamente eu, não tanto então, durante a
minha infância, como mais tarde, quando vinha a férias e desentulhava do
sótão, das lojas, dos cantos das arrumações, velhos vestígios de outrora -
jornais, fotografias, algumas bem recentes, pois já eu figurava nelas, mas que
para mim tinham já a distância ilimitada do passado.
Subitamente, meu pai teve uma ideia:
- Onde é que viste o ladrão?
- Ali.
- Põe-te lá onde estavas. Olha agora em frente.
Olhei. Quem estava diante de mim era eu próprio, reflectido no grande
espelho do guarda-fatos. Meu pai pôs-me a mão na cabeça com a sua
protecção.
Minha mãe voltou a lamentar a minha fantasia. E o meu irmão Evaristo fez
rir toda a gente, porque se pôs diante do espelho a fingir medo:
- Um ladrão! Olha um ladrão!
Regressámos à varanda, tia Dulce regressou à grande sala batida do luar e a
cujas janelas rezava as suas contas. A lua vogava agora em pleno céu. No
grande silêncio, os ralos e os grilos frisavam a noite de gritos. No ar pairavam
ainda as crepitações do calor, com uma memória de cigarras estalando à luz
do sol... Eu, porém, relembrava o meu susto à súbita presença de alguém que
agora sabia ser eu. À hora de deitar meu pai ordenou-me:
- Tu vais-te deitar sozinho. Tu és um homem.
Desde sempre, dormíamos cada irmão em seu quarto. Cumpri o dever de
ser homem e deitei-me sozinho, tendo o cuidado de não olhar para o guarda-
fatos. Mas no outro dia, assim que me levantei, coloquei-me no sítio donde
me vira ao espelho e olhei. Diante de mim estava uma pessoa que me fitava
com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava.
Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse
alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara. Pela primeira vez
eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser vivo que até então
vivera comigo na absoluta indiferença de apenas ser e em que agora
descobria qualquer coisa mas, que me excedia e me metia medo. Quantas
vezes mais tarde eu repetiria a experiência no desejo de fixar essa aparição
fulminante de mim a mim próprio, essa entidade misteriosa que eu era e
agora absolutamente se me anunciava.
Calei-me enfim. Uma carroça retardatária atroou toda a calçada. Pelos
vidros das janelas via a massa nocturna do Jardim, imaginava o busto de
Florbela, colocado ali há pouco tempo, numa manhã clandestina, agora
meditando sobre o seu pesadelo. Chico dormitava ao eco das minhas
palavras. Carolino tinha agora a boca aberta, todo petrificado. Por fim o
engenheiro falou:
- Tudo isso, professor, é muito grave.
- Grave como?
- Grave. O que você propõe é pura e simplesmente o regresso à pedra
lascada...
- Lascada?
- ...porque o homem sabe que existe já desde então.
- É falso. E que o soubesse? A verdade é que o não sabe hoje. Tenho a
certeza.
Chico endireitou-se, fez peito. Era tremendo a fazer peito. Porque tudo se
me deslocava para uma questão de músculos.
- Vivemos numa época formidável - disse ele. – A única verdade a
conquistar é a de que todos os homens têm direito a comer.
- Quando é que afirmei que o homem deve passar fome? Mas, se em todas
as épocas se tivesse só pensado na melhoria económica, hoje não seríamos
homens: seríamos apenas máquinas. O meu humanismo não quer apenas um
bocado de pão; quer uma consciência e uma plenitude.
Bexiguinha olhava-nos, ora a um ora a outro, como num jogo de pingue-
pongue. Chico interpelou-o:
- Tu que pensas?
O moço estremeceu, abriu mais os olhos, num raio de loucura:
- Eu acho bem, eu... Eu já tinha pensado. Às vezes, lá em casa, ponho-me a
pensar: o que é que sentirá uma galinha?
- Uma galinha? - perguntou o engenheiro.
- Sim. Uma galinha. Penso assim: Se eu fosse galinha? E o que o senhor
doutor contou, isso do espelho, também já tenho pensado. A gente às vezes
brincava a fazer caretas ao espelho. às vezes fazia uma coisa que não devia
fazer. E depois chegava ao espelho, fazia caretas e era mesmo como se me
estivesse a ralhar a mim próprio. Depois ficava melhor. Mas falar alto para
mim nunca falei.
Ficámos todos embaraçados. Bexiguinha olhou-nos, estupefacto do nosso
embaraço e talvez do seu.
Até que o engenheiro se abriu todo em gargalhada para restabelecer a
normalidade:
- Com que então, Carolino, uma galinha...
- Eu não sei porque é que te ris. A gente pensa: Se eu fosse um cão? Se eu
fosse uma galinha? Uma galinha tem um olho para cada lado, por exemplo, e
tem aquela coisa dura que é o bico. E depois a galinha dorme empoleirada
num pau e não cai.
- Bem, bem. Temos galinha que chegue. Trata mas é de não gastares o
dinheiro dos livros em paródia. E esquece a galinha. Pensa, por exemplo, na
vaca, para variar.
- Mas a vaca também é um bicho esquisito.
Eu estava atónito. Porque sentia em Carolino, através do que havia nele de
estranho, uma inquietante separação de si, não sei se para um encontro lúcido
consigo, se para uma união de loucura. Precisava de conversar com o pobre
Bexiguinha. Ele não era decerto um louco. O modo de falar era trôpego,
ridículo no seu esganiçado de falsete, e isso é que sobretudo perturbava. Mas
o telefone retiniu de novo. Chico foi atender.
- ...Não, não me esqueci. Atrasei-me só um pouco. Tive visitas. Ainda cá
estão... O professor e o Carolino. Sim... Até já.
E para nós:
- Com a história da galinha, esqueci-me de que tenho galinha em casa dos
Cerqueiras.
- Então vão sendo horas - lembrei eu, levantando-me.
- Vão sendo horas - concordou Chico, erguendo-se também.
Carolino, vexado a sangue, com as espinhas mais visíveis, saudou o primo
brevemente e saiu comigo. Estava uma noite nítida, com estrelas de vidro. No
largo deserto, à luz dos candeeiros, a Igreja de São Francisco erguia a sua
massa negra entre as fachadas brancas dos prédios. E as janelas iluminadas na
pequena colina sugeriam um presépio à minha memória de Inverno.
- Onde moras tu, Carolino?
- Na Rua da Mouraria.
- Vou contigo. Damos uma volta aqui por baixo.
Gostava de percorrer as ruas silenciosas, emaranhadas como uma
alucinação. Numa ou noutra janela armava-se ainda o pau com o fio da roupa
branca. Das tabernas, com meias-portas fechadas, vinha um eco sujo de luz
fosca e de sarro.
- O senhor doutor acha que o que eu disse era assim para rir? - perguntou-
me subitamente o Bexiguinha.
- Bem, Carolino; nós temos muito que conversar. O que disseste não é nada
uma tolice. Quando era miúdo senti uma coisa parecida com um cão. E com
um gato. E com outros bichos. Descobri neles o começo de uma pessoa. O
cão chamava-se Mondego. O António matou-o.
- Quem era o António?
- Um criado.
Percorríamos o labirinto de ruas em todos os sentidos. Mercearias escuras
como grutas com uma luzinha ao fundo, antros de carvoeiros, interiores de
casas iluminadas para lá das cortinas, namoros oblíquos de esquina - toda
aquela zona da cidade se cruzava de segredo e de suspeita.
- Também fiz outra experiência, senhor doutor.
- Que experiência?
- Bem... Não sei como explicar. É assim: mastigar as palavras.
- Mastigar as palavras?
- Bem... É assim: a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, estrelas ou
qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E depois,
pedra já não quer dizer nada.
Como, Carolino? Sabes então já a fragilidade das palavras, acaso o milagre
de um encontro através delas connosco e com os outros? E saberás o que há
em ti, o que te vive, e as palavras ignoram?
- Quantos anos tens tu?
- Dezassete.
- Gostas de fazer versos, de escrever?
- Nunca fiz versos, nunca escrevi. Gosto é de pensar.
- Tu percebeste o que eu queria dizer?
- Percebi tudo, tudo, tudo. Vou pensar muito nisso.
Fazer assim: pôr-me bem no centro de mim e ver-me, sentir-me bem de
dentro para fora, descobrir a pessoa que está em mim.
Afinal deixei o Bexiguinha na Praça do Giraldo. Eu tinha ainda de ir ao
Nazaré antes que a livraria fechasse.
VII
“Anna soror, que me suspensam insomnia terrent”. Quis novus hic nostris
successit sedibus hospes.”
Mas subitamente parou, sorriu-me outra vez, beijou-me devagar nos olhos,
quase com devoção:
- Meu querido assassino...
- Mas hospes não significa...
- Meu bom assassino...
VIII
Regresso a férias pela primeira vez, depois que o meu pai morreu. Natal.
Possivelmente, não haverá ceia este ano. Minha mãe vive só no vasto
casarão, Evaristo, provavelmente, consoará com os sogros, na Covi-lhã. Mas
que não venha ele nem o Tomás nem a ranchada das crianças. Para mim não
faz diferença: estou eu e aquilo que me povoa. A evidência da vida não é a
imediata realidade mas o que a transcende e estremece na memória. A minha
memória está cheia. Da janela do comboio olho a montanha ao longe, branca
de espaço, olho as matas de pinheiros, o chão trágico de pedras. Tento
reconhecer aí o que é vivo e relembra, o que dura e aparece nos instantes do
alarme. Fecho os olhos, raivoso, e busco e busco a verdade inicial, a que sabe
a minha presença no mundo, o que eu sou, a música irredutível que às vezes
me visita. Ah, o Natal não é de nunca, porque nunca foi do presente. A
alegria que procuro é de um outrora absoluto, desde antes da infância, do eco
que me transcende do passado ao futuro, me vibra com o som de uma
harmonia que não sei.
Espera-me na estação o António com a carroça.. – Há um Overdand na
casa, velho carro de perna alta, que só o Tomás sabe guiar. Mas não me
desagrada viajar assim. Instalo-me no banco, de manta aos joelhos. O criado
traz um rolo de notícias para me ir abrindo pela viagem. Mas eu tenho tanta
coisa para mim... Ponho-lhe a mão no ombro:
- Velho António! Deixa-me pensar.
Pela estrada fora, aberta entre a neve, os guizos do cavalo retinem
alegremente. Uma claridade baça desce do céu imóvel com a promessa de
mais neve. E para um olival distante gente escura canta. Fecho os olhos
ainda, e escuto. É uma música antiga, da idade da terra, da idade do destino
dos homens: Da amargura funda como os séculos, dos biliões de sonhos
consumidos pelas eras, ela vem até mim, essa a canção de nada, abrindo no ar
sobre a solidão do Inverno, com a mensagem de uma noite perene.
Caminhamos agora por uma recta extensa. Passam à nossa beira camponeses
escuros, um ou outro pedinte de viagem com a face das misérias bíblicas. Ao
fundo, barrando o horizonte, ergue-se a montanha, que recua, vagarosa,
diante de nós, como para nos atrair à sua verdade de génese. E, suspenso
sobre ela, unido ao cântico dos homens, que já não ouço, eis que se me abre
um coral longínquo, eco de que paz triunfal numa manhã solene, esperança
sem fim, esperança eterna? Messias. Haendel. Behold the Lamb of God that
taketh away the sin of the world.
E é como se através da multidão dos séculos eu ouvisse o tropear de todos
os povos da terra caminhando comigo, cantando o sonho da sua amargura
milenária. Gente estropiada, escarros de humilhação, a fome, e o remorso, e o
cansaço, e a loucura que emerge como um incêndio na noite, e a lepra, e a
angústia da interrogação, velhos da idade do sofri-mento, gente que espera,
gente que sonha... De que abismos esta mensa-gem? A montanha vibra na sua
massa branca ao apelo da ansiedade. Vozes de longe, cantando, cantando.
Marcha sem fim, ó coro da desgraça de sempre! Que força absurda vos ergue
para a esperança do que não há? Surely He hath borne our griefs, and carried
our sorrows!
Como o sabeis? Como o sabeis? Ah, a vossa dor é a medida da eterni-dade.
Mas a esperança renasce-vos sob as mesmas cinzas e a mesma ruína... Ei-los
cantando como doidos para a distância do céu nublado. Mas vós acreditais
que uma estrela nascerá por detrás das nuvens...
O coro morre ao longe entre o silêncio das fragas.
E quem avança para a montanha e para a mão que dela se ergue sou eu só.
Esperança de nada, só relembra agora a névoa da música irreal, onde de
mim?, em que encontro impossível com a paz e a plenitude.
Chegamos enfim a casa, o tinir alegre dos guizos por todo o pátio. Mas não
vejo ninguém. Há um silêncio quase tão audível como o de quando o
comboio pára nos apeadeiros pelo meio da noite.
Entro em casa e é o mesmo silêncio pelos salões abandonados. Final-mente
aparece uma criada. Perguntei por minha mãe, ela leva-me ao seu quarto
Sentada na cama, um xaile pelos ombros, minha mãe abraça-me numa
aparente indiferença. Mas que tinha? Porque me não avisara? Dissera sempre
que estava bem de saúde!
- Estou bem - confirmou. - Senti-me hoje cansada, apeteceu-me ficar na
cama.
- É preciso avisar o Tomás!
- Estou bem. Levanto-me daqui a pouco. Amanhã parece que vamos
consoar com ele. Falou-me nisso, pelo menos. O Evaristo não vem.
Torcia nas mãos desocupadas uma franja do xaile, erguia às vezes os seus
olhos espessos, que emergiam de uma distância de brumas, arras-tando
consigo um peso imenso de cansaço, de desilusão e de bondade.
- Mas veio cá um médico?
- Não estou doente.
E, com efeito, pela tarde levantou-se. Mas veio logo para a braseira (que
preferia ao fogão) e aí se ficou, na sua cadeira, revolvendo as cinzas, alheada:
Mal tinha perguntas a fazer-me, o que era extraordinário, porque eu era agora
mais filho do que qualquer dos outros, visto ser solteiro, porque vinha de
longe e porque ela estava só. Ou talvez que por isso mesmo ela tivesse
aprendido a linguagem do silêncio, essa em que as palavras são a névoa do
alheamento, da meditação do nada, e em que as palavras em voz alta são da
pessoa de fora como as de um intruso. Ao jantar, porém, Quis saber da
minha vida e eu contei-lhe e eu disse-lhe do Alentejo e da planície, do Dr.
Moura, que ela conhecia, das aulas, dos professores. Minha mãe ouvia-me,
sorria, como se descansasse, já à hora da morte, sobre o meu destino.
- Estás magro - disse, no entanto.
- Sempre fui magro.
- Sim. Mas estás magro.
Boa velha, que tens? Soa a tua voz a uma voz de nada. Casa deserta, os
filhos dispersos, o marido morto. E a tia Dulce e as criadas de outrora. Já sei
que não estás doente, e para que é precisa a doença? A doença é um pretexto,
tu não precisas de pretextos.
Subitamente alarmado, eu disse:
- E se tu viesses comigo?
Ela sorriu quase com pena. Estendeu a mão sobre a mesa, apertou a minha
em silêncio. Mas pouco depois deitou-se, eu fiquei só, à braseira. Em breve,
porém, toda a casa mergulhava em silêncio. Fui para o quarto, abri a janela
para a noite. O céu limpara, era agora um imenso lago escuro onde uma lua
branca boiava. Toda selada de neve, a montanha brilha até aos píncaros mais
distantes, flutua levemente num vago halo azul. Ressoa brevemente o
murmúrio da ribeira, do ar imperceptível, do silêncio dos grandes espaços
livres, uma adstringência recorta a sombra dos pinhais, geometriza a noite em
linhas de aço... Fecho a janela, fico a olhar por trás dos vidros. E parece-me
subitamente que o dia não renascerá jamais, que a verdade da vida só ali se
cumpre para sempre, na secreta imobilidade das coisas, na pureza lunar de
uma neve nocturna.
Deito-me enfim, mas não fecho as portadas da janela.
A lua desce da serra, entra pela vidraça, derramando-se pelo soalho em
coágulos de gelatina. Por uma noite assim, há cerca de vinte anos... Por
vezes, tento reconquistar-me desde o mais remoto passado. E, embora
reconheça que nada explica nada, há pontos de referência que se me erguem
como marcos geodésicos e me fixam o mapa da vida. Sabe-me bem
relembrar. A vida amplia-se-me até limites mais distantes do que ela, e eu
apareço aí como quem a vive mas apenas se descobre submerso nela, ou sua
pura testemunha. Não falei ainda do meu cão Mondego?
Era uma tarde de Junho, regressávamos os três irmãos da escola. A certa
altura da estrada, saímos para um caminho entre campos de cultura. Revejo
essa tarde à claridade lunar. Passam carros na estrada, uma poeira quente
doura as árvores das bermas, o sol brilha obliquamente na folhagem. Ouço
ainda uma voz que sobe das leiras regadas. É uma voz anónima como o
espírito da terra. E é que, a dada altura, reparo que atrás de nós vinha u cão
lazarento. Evaristo apedrejou-o, o cão ganiu e afastou-se. Mas algum tempo
depois, Tomás reparou que o cão nos seguia outra vez. Farejava, pois, o dono
na sua inquietação de cão livre. Evaristo procurava já outra pedra,
praguejando, o cão fugira, olhando de lado, pressentindo o perigo. Mas a
submissão do cão deu-me pena e a importância de toda a pessoa que tem
pena.
- Mondego!
Dei-lhe um nome, o cão olhou-me de longe, imóvel, com o seu olhar triste
e ressentido de velhice.
- Mondego! Venha aqui!
Não se mexeu. Mas, assim que recomeçámos a andar, o cão seguiu-nos os
passos. Ao portão, porém hesitou: sabia, como todos os cães, que a
propriedade privada existe... Então encorajei-o, Tomás encorajou-o. Mon-
dego olhava-nos, a avaliar das nossas tenções. E, enfim, entrou. Fui bus-car-
lhe de comer, eu gostava tanto de ter um cão. Tia Dulce, severa, não me
aprovou: associava os cães à gente ordinária, aos pastores, caseiros, à gente
nómada, ciganos, oleiros e caldeireiros ambulantes, que os traziam presos aos
eixos dos carros. Minha mãe aceitava-o, mas na rua, no quintal. O cão ficou.
O António fez-lhe a casota num só dia, com a ajuda do meu entusiasmo. Pôs-
se-lhe palha, uma tigela à porta e, para lhe dilatar a área de liberdade, esticou-
se um ramo até ao galinheiro onde o cão deslizava a argola da corrente. Mas
o cão não utilizava essa folga. Aninhava-se à porta, como à espera da morte,
animando-se apenas com a minha presença. Porque eu vinha com frequência
até ele e falava-lhe e o cão erguia os olhos para mim com uma sabedoria
compadecida. Estabe-leceu-se assim uma comunicação entre nós por uma
certa qualidade de presença, de realidade íntima, de pessoas. Todos os bichos
que eu obser-vara até então eram puros objectos mecânicos, como os grilos,
os ralos, as louva-a-deus; ou matéria, lama com movimento, como os vermes,
as rãs, os sapos; e os que eram já vida, como os pássaros, os bois, mal tinham
estabelecido comigo uma convivência que lhes revelasse, se a tivessem, a
individualidade. Sempre a vida me fascinou, sim. Mas nas vibráteis lagar-
tixas, cujas caudas cortadas remexem ainda frenéticas, nas vívidas doni-nhas,
nos ratos estrepitosos, nos pássaros, eu não sentia senão confusa-mente uma
forma total de vida, a mesma força universal repartida pelos bichos, esse
modo de ser em que o começo e o fim não são um limite mas elos de uma
continuidade. Ora no cão eu pude sentir obscuramente uma pessoa. Quando
distinguia os meus passos, alvoroçava-se, ladrava com a sua voz rouca, e, ao
aproximar-me, erguia-se, agitava a cauda, acabava por se deitar, com o
focinho sobre as patas estendidas, olhos semicer-rados, sentindo-se bem com
a minha companhia silenciosa. Fazia-o erguer-se, dava-lhe ordens, ele
obedecia sem entu-siasmo. Mas, se não podia fazer força, podia
perfeitamente conversar, entender-me. Eu falava-lhe, ele abria os olhos
profundos. Tinha a sua personalidade defi-nida, com simpatias e antipatias, o
conhecimento do que se passava à sua volta, as intenções dos que se
abeiravam dele.
Ora um dia, precisamente, descobri meu pai e o criado conversando ao pé
do cão e visivelmente sobre ele. Mondego adoecera, o pêlo rareava em
clareiras leprosas, os olhos bordavam-se-lhe de escorrências, vomitava
frequentemente. Deram-lhe drogas, mas o pobre não melhorou. Era uma tarde
de Inverno, perto do Natal, a montanha cobria-se de neve, como agora a via
para lá da janela. Quando eu me aproximei, meu pai e o criado
interromperam-se. Mas o cão deu-me a notícia, ladrando, rouco, na direcção
dos dois, olhando-me depois com amargura e humildade.
- Estava eu a dizer ao António que o cão não passa este Inverno - declarou
meu pai. - Para ele era uma sorte se morresse.
- Não morre! - disse eu, aflito.
Mas Tomás aproximara-se também:
- Que é que tu esperas do cão? Viveu, tem de morrer.
Não havia ali, porém, uma acusação. Havia só o reconhecimento de uma
evidência serena. Mas justamente para mim o que era evidente não era a
morte, era a vida. Como podia o cão morrer? Como podia morrer a sua
pessoa?
Caíra um nevão mais forte e Mondego, com o frio, mal saía da casota.
Espreitava ao buraco, não comia e eu não tinha já dúvida de que ele iria
morrer. Assim, pelas manhãs eu corria logo ao quintal, como se a vida do cão
dependesse da minha pressa.
- Morre, mas leva tempo - disse um dia o pai.
Na noite de Natal fomos à missa do galo. Era uma noite perfeita, como a de
agora, com uma lua limpa no céu, estrelas vivas coroando a terra. A neve
brilhava na montanha, os sinos dobravam para a noite. De nossa casa, só o
meu pai não ia à missa. A mulher do António segurava um lampião para ir
decifrando os poços de lama que os transeuntes abriam na neve e a lua nem
sempre iluminava. Ao longe, nos caminhos da serra, outras luzes brilhavam,
no rasto da esperança, convergindo para a igreja.
Subitamente, porém, quando transpúnhamos o portão, tive o choque de um
alarme. A casota do cão ficava a um canto do quintal, perto do alpendre onde
se arrumavam os bois. Admiti bruscamente que o cão tivesse morrido. E,
abandonando o grupo, fui sozinho até ao fundo do jardim. à luz da lua,
espreitei para a casota, chamei o cão. Mondego não respondeu. Meti a mão
dentro - o cão não estava. Presumi, absurdamente, que tivesse rebentado a
corrente, se tivesse aninhado no alpendre. Fui para lá, mergulhei para um
lado e outro no escuro, chamei: Mondego! Nada. Mas eis que, ao voltar-me
para sair, eu vi o cão, enfim: suspenso de uma trave, enforcado no arame,
Mondego recortava-se contra o céu, iluminado de lua e de estrelas. Dominei-
me, não gritei. E corri para o grupo, que voltava atrás a procurar-me.
Desculpei-me como pude e segui para a igreja, chorando duramente:
quando Cristo nascia entre cânticos e luzes, Mondego balançava de uma trave
o seu corpo leproso, banhado de luar...
No dia seguinte quiseram iludir-me: o cão teria aparecido morto à porta da
casota. Não reagi. Levantei-me apenas e fui eu enterrar o animal, para que
fosse amortalhado com ternura, para que a última voz da terra a falar-lhe
fosse uma voz de aliança.
Já não vejo a lua, que subiu mais no céu. Mas a face da montanha, voltada
para mim, ilumina-se agora toda, branca e solene. E nesta imóvel radiação do
silêncio, nesta vasta suspensão do tempo, a morte do Mondego irmana-se à
de meu pai, dissolve-se num imenso apazigua-mento. Como um olhar
gravado de cansaço, a lua vela o ossuário da terra, a profunda surdez que me
submerge...
XII
Mas o que o pai de Sofia me não dissera disse-mo o reitor. Com efeito,
logo no primeiro dia de aulas, ou logo num dos primeiros, mandou-me aviso
de que me queria falar. Procurei-o à tarde, mas na reitoria só estava o
perdigueiro, enroscado a um canto, consumindo o seu tédio. Esperei à porta
da secretaria, olhando o claustro já despovoado, os últimos raios de sol que
douravam o perfil da frontaria. O homem veio enfim de qualquer sala
longínqua, insólito na solidão das arcarias. Fez-me entrar à frente, indicou-me
um sofá:
- A... Eu mandei-o chamar... a...
Depois sorriu, para que eu me sentisse melhor. Mas eu nunca me senti mal,
reitor. Tu eras um ancião e no teu ar largo e pesado perdiam-se, como num
mar, todos os ímpetos do mundo. Fala, bom homem. Eu te escuto ainda
agora:
- É preciso cuidado, todos temos inimigos. Ora vieram-me dizer que você
dava lições.
- Lições?
- Sim. à filha do Moura.
- Sofia? Mas... Não são lições. Ajudo-a no latim.
- Pois é... pois é... De qualquer maneira, são lições particulares. E a lei, já
vê, a lei é clara. Não dê lições. Está bem, uma dúvida de vez em quando, uma
pergunta que ela lhe faça... Mas já vê: lições regulares! Duas vezes por
semana, não era?
- Sim, realmente, duas vezes. Mas gratuitas. Eu não dava propriamente
lições... É extraordinário como estas coisas se sabem logo.
Temos inimigos, todos temos inimigos, explicava ainda o bom homem, de
olhos baixos, beiço estendido. Todos temos inimigos, era preciso cuidado
com os inimigos. Como soubera ele? Era fácil: recebera uma carta anónima,
perguntara ao Moura, e o Moura (que é um belo rapaz) natural-mente
confirmou logo.
Saí embaraçado de fúria e de surpresa. Quem fora o canalha? Como o
soubera? Mas não te agites: Sofia, de qualquer modo não quereria mais
lições. A tarde alonga-se em silêncio - olha-a, escuta-a. Estás só. É bom
estares só. Ao alto da rampa suspendo-me, disperso. O largo está vazio,
debruço-me das grades, vou pela planície de olhos perdidos, até à linha aguda
da serra azul e longínqua. As searas abrem-se em promessa à aparição das
sombras. Talhões ainda despidos alisam-se, macios. Casas avulsas recolhem-
se ao primeiro sinal da noite. Um apelo doce de uma paz longínqua fala-me
onde me esqueço, imperceptivelmente, insidiosa-mente. E é já quase com
violência que me ponho a andar ao acaso pelas ruas. Vou pela Rua do
Colégio, tento prender-me das casas à beira, olho por outras ruas, que descem
a pique, com muros de quintais, palmeiras abrindo pelo céu, apontando ao
longe súbitos trechos de planura que me lembram uma praia, uma ria de
povoações marinhas. Há uma casa à direita, ao alto de um jardim, com uma
fachada de azulejos azuis, um terraço com balaustrada. Tem um olhar de
horizontes como quem chega a um mirante. Do portão de ferro, que dá para a
rua, entre duas colunas, sobe uma escadaria para um parque de ciprestes e
limoeiros. Uma outra casa adiante, com um brasão, abre-se de arcarias, num
jardim traçado pela curva da rua. Contorno-o, olho-o. Meto pelo labirinto das
ruas ao pé da Sé. Há uma a pique, penosa como uma velha penitência. Paro a
meio, ergo os olhos para a massa escura da catedral, o alinhamento dos
contra-fortes, a renda de corda, lavrada a mãos grossas, pelas rosáceas, pelas
ameias, a ascensão, até às flechas, de uma força entroncada, vinda do fundo
da terra, escorrendo ainda o seu negrume de raízes... Dos frisos imbricados
milhafres atiram gritos para o silêncio; por cima dos coruchéus, no vasto céu
azul, uma nuvem isolada vai passando devagar.
No entanto, o meu corpo não se engana. Eis que, depois de vaguear pelas
ruas e becos, esta humilhação secreta de ossos e de vísceras, esta cólera
sangrenta, este choro oculto e desgraçado de baba e solidão, este urro
amordaçado se exprimem de uma só vez quando estou de novo na Praça, ao
cimo da rua de Sofia. Desço apressado como se com receio de que a urgência
me abandone. Aperto o botão, não ouço a campainha: terá tocado? Agora
espero; agora amedronto-me, tenho quase pena de mim. Mas o trinco estala e
Lucrécia aparece. E, sem me deixar falar, explica imediatamente que:
- A menina Sofia está a dar lição.
Mas eu não to perguntei, Lucrécia! Eu venho é visitar os Senhores.
- Então faça favor de subir.
Mas espera: a dar lição? Quem lhe dá lição agora? Lucrécia não responde,
mas eu também não chego a perguntar. Hesito ainda junto ao bojudo pote de
cobre que centra todo o átrio. Subo enfim a larga esca-daria de granito,
bordada das bilhas de barro que, Moura coleccionava. Terá ele já bilhas da
Beira? Nunca lho perguntei, mas deve ter, os cântaros da Beira nada têm de
especial. Lucrécia abre-me a sala de visitas, que é também o escritório, e ali
me deixa no silêncio de carpetes e reposteiros. É um silêncio esponjoso,
selado a mofo, que me afoga a boca, os olhos, os ouvidos.
Passa com estrépito uma carroça na rua: ouço-a num rumor amor-tecido
em sucessivas pastas de algodão... Que faço eu aqui? Sinto-me mais presente
a mim, mas de uma presença mole, gomosa, aturdida de estofos. Ouço passos
no corredor, Madame vem aí enfim. Mas os passos perdem-se de novo, lá
para dentro. Que vais tu dizer-lhe? Naturalmente, vens trazer cumprimentos.
Supõe que te fala de Sofia, evidentemente fala-te de Sofia. Sê calmo, sê em
evidência como a vida, o caso de Sofia é bem claro, houve a carta, o reitor, e
há tanta coisa por cima e à volta e para além... Mas eis Madame à porta (não
lhe ouvi os passos), loura, risonha e abundante. Senta-se e é como se se
sentasse sobre a vida. Como estava eu?, quando tinha chegado? - eu já viera
ali a casa...
- Vim a horas inconvenientes, não apresentei cumprimentos...
Madame sorri, pára, atira-me olhares clandestinos, pousa os olhos no
regaço, volta a fitar-me, mas fixa-nos com um olhar amplo onde caibo eu,
alguém mais, a vida toda, que ela já vê soberanamente em conjunto. E eu
sentia-me quase bem, desaparecido aí, na sua protecção, na sua tolerân-cia,
no seu ar cimeiro. Ou será que tudo isso, boa Madame, é o desprezo pela
minha insignificância, este meu ar tímido, consumido em magreza, em olhos
estonteados? Porque tu sabes, desde o teu trato mundano, batido no teu corpo,
nos teus prazeres secretos (como será a tua submis-são no prazer?), nas
nódoas dos teus desgostos, nas tuas mentiras, na mecânica endurecida da tua
convivência, tu sabes que a aventura de Sofia é um pormenor sem
importância, excepto no protocolo correntio; no rumor fácil das palavras
convencionais, tão sem importância como a nulidade de um pobre professor,
de um jovem magro, assustadiço, não alisado pelo uso e em cujas arestas é
fácil prender as mãos. E se não é assim, se há uma consciência na aventura de
Sofia e na minha, que fiquemos com ela - tu o pensarás, Madame - e que a
aproveites ane-xando-a ao teu mundo de conveniência.
- Essa questão das lições... - Diz, Madame! Essa questão...
- ... Vocês podiam continuar como até aqui, que ninguém sabia nada.
- Mas como se soube?
Como se soube, Madame? Acaso imaginas quem me terá denunciado?
- ... Poderia tê-lo feito alguém muito da casa.
- Quem?
Eu não sei, Madame. Supõe que foi o Alfredo, ou Ana, ou o Chico, ou a
própria Sofia.
- ...Porque a gente fala com A ou B à confiança, não pensa que A ou B diz
a C ou D e assim por diante. Aliás, que mil razões profundas para isso e que
tu não sabes, Madame, nem eu?
- Portanto, o senhor doutor também poderia ter falado.
Toca, Cristina. Ouço-te ao longo da porta entreaberta, ao longo dos
corredores - que vens tu fazer à nossa conversa? O dia morreu cedo através
destes cortinados, destes reposteiros, o teu piano é a voz desta hora, do meu
cansaço.
- Sim, minha senhora, eu podia ter falado. Mas não falei.
- Eu chamo a Sofia.
Lucrécia apareceu toda vermelha, foi abaixo, voltou - Sofia tinha saído.
- De resto - disse eu -, Sofia já tem professor.
- Que professor? O Carolino?
- O Bexiguinha?
- Quem é o Bexiguinha?
- Os rapazes chamam Bexiguinha ao Carolino. Ele tem aquelas borbu-lhas,
chamam-lhe o Bexiguinha.
- Mas o Carolino... Não. Que ideia! – disse Madame. - O rapaz é do
Redondo, a Sofia esteve lá nas férias, tenho lá uma irmã. O Carolino
prontificou-se a estudar com ela. Mas ele é, coitado...
E calcule, desistiu do liceu, vai como externo a exames. Que pode saber
ele?
Toca, Cristina. Suspenso da tua música, ouço.
Devo ter erguido a mão, a interromper Madame. Ela consente, Madame
sorri, quero eu ir ouvir?
- Sim.
Vamos pé ante pé, o teu piano enche o deserto da casa, as abóbadas, a
escadaria, as sombras dos corredores. É a sala de outrora, de um outrora que
já não sei - onde de mim?, em que hora de paz ou de agonia, de plenitude ou
de choro, lembrada agora, evocada agora com o seu sinal de origens para lá
da vida e da morte, agora, neste rumor de Inverno e de grandes ventos? A
porta está aberta, eu sustenho Madame para não interromper. De costas, a
cabeleira loura de Cristina desce-lhe pelos ombros. Tem uma camisola azul
de malha. Em frente, aberto na estante do piano, um grande livro de música.
Madame entra cautelosa, eu fico à porta um instante. Decerto Cristina ouviu-
nos, mas não se interrompe. Ou talvez não tenha ouvido, e eu sinto que seria
bom que não nos ouvisse, a nós, à nossa grosseria, às nossas manhas de
animais em disputa, à parte de nós manufacturada pela vida. Entro também na
sala, instalo-me num sofá, de modo a ver a face de Cristina. Do alto de uma
janela, à esquerda do piano, desce a última claridade da tarde. E é para mim
uma aparição essa alegria que me ignora e sorri da luz para Cristina, para os
objectos na sala. Toca ainda, Cristina. E que estarás tu tocando? Bach?
Mozart? Não sei. Sei apenas que é belo ouvir-te nesta hora breve de Inverno,
neste silêncio fechado como uma pérola. Um halo vaporoso estremece à tua
volta e eu tenho vontade de chorar. Que tu sejas grande, Cristina. E bela. E
invencível. Que te cubra, te envolva o dom divino que não sei e evoco à
memória de um coral majestoso no centro do qual te vejo como no milagre de
uma aparição. Escrevo pela noite e sofro. Onde estás tu e a tua música?
Cristina... Se tu viesses! Até à minha fadiga...
Direita, as mãos dadas à frente, com a tua rugazinha de seriedade, uma
revoada de brancura a envolver-te, cantando-te... Sê viva sempre, Cristina. Sê
grande e bela. Deuses! Porque a traístes? Eu te guardo agora como um perene
nascimento, como a memória sufocante de uma verdade inacessível.
Cristina terminou enfim. Abro-lhe os braços, ela vem para mim de olhos
baixos, ergue-os depois e sorri tolerante.
- Sabes que tocaste muito bem? - digo-lhe, depois de também sorrir.
- Não foi muito bem, não. A minha professora diz que eu tenho de tocar
mais depressa.
- Mas ela não pode - disse Madame. - Os dedos ainda não chegam.
- Pois é. As oitavas não posso. E, mesmo os pianos e forte, a minha
professora diz que também não estão muito bem.
- Tem de estar um dia - digo-lhe. - Há-de estar tudo um dia muito bem.
Espero ouvir ainda o teu primeiro concerto.
Ela fita-me de lado, desconfiada, faz depois um momo de aborreci-mento,
como se eu estivesse a fazer troça.
E a minha vida recomeçou, cronometrada a aulas, a toques de sineta, a
longos silêncios de cigarro no quarto da pensão, a vagabundagem pela
cidade, sobretudo às horas da tarde. Tomava lições de condução e em breve
teria a carta, porque de há muito sabia a teoria (desde que um dia, há muitos
anos, meu pai me explicara o mecanismo das alavancas) e porque tinha, na
opinião do instrutor, decidida vocação para o volante. Foi todavia um período
desagradável: a cidade renascia-me sob o signo da mecânica, com ruas
apertadas, cruzamentos enviesados, cotovelos em ângulo recto. A rede das
ruas esboçava-se-me em movimentos instintivos, mas ainda conscientes, dos
meus membros, apelava para o jeito das mãos na rotação do volante ou dos
pés na manobra dos pedais, aparecia-me aos olhos na decifração das placas
que regularizam o trânsito. Uma rua estreita e distorcida não era uma voz de
tempo e de silêncio - era um comando aos reflexos de pés e mãos.
Pela manhã, os ruídos da cidade criavam-me os sinais com que ainda a
relembro. Estrépito de carroças, batendo a ferragem nas calçadas, a corneta
do azeiteiro, toque de ferrinhos do caldeireiro ambulante; pregões do
vendedor de queijo meia-cura, queijo, do comprador de peles de coelho ou de
lebre, do vendedor de mel, água-mel e louça - ó cidade estranha, cidade
velha, portas entreabertas para pátios seculares com velhos criados de lavoura
de blusas de xadrez, com as pontas atadas à frente, campaniços de pelico
vindos das herdades, cidade milenária dormindo o sono da planície, entre os
restos deixados pelas praças e povos que vieram, se cruzaram, partiram.
Nestas noites de vigília ressoam-me à memória as horas das igrejas, vibram-
me até ao anúncio indistinto do meu alarme, rolam pelo descampado sob a
eternidade do céu. No limiar de uma porta da Rua da Selaria, por uma tarde
de chuva, um cão tirita ainda, de focinho apontado para a sua janela alta, à
espera de que a abram e lhe atirem um osso...
Não vi Sofia durante longo tempo. Entretanto tirei a carta, comprei carro e
aluguei a casa de São Bento. Mas não me mudei logo, porque era necessário
decidir várias questões prévias (mulher da arrumação, refeições na cidade,
compra de alguma mobília). Um dia, porém, recebi um bilhete de Sofia:
podia eu estar em certa hora no Museu? Fui. Sofia estava já no pequeno
claustro, estudando, dobrada com interesse, a inscrição de um cipo funerário:
- Ouça, doutor. Você, que sabe latim, diga lá o que é que isto quer dizer.
Como se nada houvesse entre nós. Tentei ler a inscrição. Mas nesse
instante uma avalancha de turistas invadia o Museu. Eram estrangeiros,
decerto ingleses, pela tralha de aparelhos que traziam ao ombro e pelo ar
infantil, branco e rosado, dos cavalheiros, mesmo idosos (como pela face
avelhãtada das mulheres, mesmo jovens). Espalharam-se pelo claustro,
desorientados, até que um cicerone veio tomar conta deles.
- Se saíssemos? - propus a Sofia.
- Para onde?
- Para onde... Bom: antes de mais: que me queria você?
Ela fitou-me com o seu olhar cintilante. E falou.
Mas o que me dizia vi bem que ficava à superfície
do que era mais grave.
- O Alfredo quer que a gente vá no domingo almoçar à Sobreira. Mas teve
receio de o convidar.
- Receio? A mim?
- Você já leu o Eterno Marido, de Dostoievski.
- Mas receio porquê?
- Pavel Pavlovitch esqueceu-se de interpor ou o Stepane ou o Veltchaninov
entre Natália e um deles.
- Não sei o que quer dizer. Sei que Ana é uma mulher extraordinária.
Mas a vaga de turistas regressava das salas do rés-do-chão.
- Se saíssemos? - perguntei de novo. - Podíamos... É verdade: você não
quer experimentar o meu carro?
Ela cerrou os olhos em deliberação profunda:
- Sim.
Descemos as escadas da Sé, perdemo-nos por vielas até à garagem perto do
jardim. Julguei que Sofia preferisse esperar-me na rua: acom-panhou-me e
instalou-se logo no carro. Na estrada de Reguengos, pouco adiante do desvio
para Viana, havia um eucaliptal atravessado por um caminho que ligava com
a estrada. Foi Sofia quem sugeriu esse sítio, depois de pensar em vários
outros: a albufeira, o riacho na estrada das Alcáçovas, os sobreiros ao alto de
uma rampa da estrada para o Redondo, a ponte, mais adiante, na mesma
estrada de Reguengos. Atento à condução, aos olhares de quem cruzávamos,
eu não falava. E Sofia, absorta, não falava também. O sol de Inverno
iluminava a planície, já toda verdejante e a perder de vista; as árvores das
bermas, em fileiras ininterruptas, entestavam em cunha à velocidade do carro.
Passámos o desvio para Viana, breve a mata de eucaliptos surgia à nossa
esquerda.
Abrandei a marcha à espera do caminho. Sofia pôs-me a mão no braço:
- É aqui.
Era um caminho escavado, com cortes bruscos que sacudiam o carro.
Parámos enfim numa clareira e aí ficámos algum tempo em silêncio, sem nos
movermos. A minha atenção desprendia-se do carro. E naquele súbito
descampado, com o aroma intenso de Sofia ao pé de mim, as suas formas
quentes entre o casaco aberto, a sua face tenra e branca, o seu olhar oblíquo
de pecado, inchava-me de cólera o corpo todo. E brusca-mente as minhas
mãos ficaram cheias da sua massa, os dentes esta-laram-me como à aparição
de um raio. Sofia, porém, impassível, aguardava sem pressas que eu me visse
só e reparasse que mais alguém estava a ver-me - ela precisamente. E eu me
vi, ridículo, numa espécie de degradação sem cúmplices. Saí do carro, atirei
com a porta e afastei-me, acendendo um cigarro. Quando voltei, já sereno,
Sofia fumava também no seu jeito de pegar no cigarro a dedos breves,
soprando o fumo por um fio de lábios. Sentei-me a seu lado, vago e sério.
- Por quem me toma você? - perguntou-me ela enfim.
- Eu sei o que quero. Eu sei.
- Que se passou nestas férias? não tenho o direito de saber?
- Evidentemente que não. Mas eu conto, eu conto. Foi para isso que vim,
para contar. Conta, Sofia. Para lá dos eucaliptos, na estrada de pedra, o rumor
dos carros cresce como um susto, ergue-se ameaçador, desaparece com o seu
pânico. Podes contar, Sofia, estou calmo e há ainda sol nas árvores.
- Só uma vez você foi grande. E eu penso: você não era isso, você meteu-se
numa ideia como quem se mete numa bicha que por acaso tem pouca gente.
Ou como quem se embebedou.
- Como? Como?
- Mas eu estava feita, doutor. Só me faltava apalavra. Você sabia a palavra.
- Que tem que fazer Carolino na sua vida?
- O Carolino é um homem como qualquer outro. E é novo. Além disso tem
ideias. Também sabe valorizar até o que não tem valor. Mas é
extraordinariamente tímido. Bom, há várias formas de timidez, quero dizer,
várias razões para o ser. Mas a dele é a daqueles para quem um pecado é
mesmo um pecado, uma sedução terrível, e que defendem portanto a
inocência que detestam ou que amam com um amor infeliz. Dirá você:
dominar uma inocência é próprio do homem. Pois é. Mas eu também gosto.
Toda a mulher é um homem não realizado - não é o que vocês pensam Aliás,
dominar uma inocência é talvez uma fraqueza que quer imitar a força. Não é
isso mais próprio da mulher?
- Pobre Bexiguinha - murmurei, tentando valorizar a minha derrota com a
compaixão.
- Mas você também é um tímido! - riu Sofia. - E, depois, ele falava muito
de si. Admira-o ou admirava-o. E eu pensei: assim, também o tenho a ele. Ele
é você.
- Porque mente? - perguntei.
- Mas que é a mentira? O que digo talvez não fosse verdade noutra altura.
Mas é-o agora, porque o digo. Se o digo, achei bem que o dissesse. Logo, é
verdade em mim, agora.
- Coitado do Bexiguinha...
- Que estupidez, doutor! Que estupidez em si!
Carolino disse-me: “Que bonita você é.” Imagine a violência que o
dominava para ele o dizer. Nós estávamos no fundo do quintal dele, a minha
tia tinha ido visitar-lhe os pais. Havia ali um pavilhão com trepa-deiras secas.
A sala tem janelas ao sol. A um canto havia um sofá. Ele chorou, porque foi
tudo muito mais forte do que supunha. Lembra-me um tio que já morreu. Era
um segundo-tio que tomava rapé. Uma vez um primo meu pediu-lhe uma
pitada. À primeira tentativa, o pobre moço desatou a espirrar e passou assim a
espirrar toda a tarde. Meu tio disse-lhe: “Que rapaz feliz! Ainda espirras...”
- Como você é cruel!
- Oh, não me elogie, não gosto que me elogiem. Só eu é que gosto de me
elogiar.
Então tive uma revelação. E, olhando Sofia longamente, pesadamente,
perguntei:
- Quem é que me denunciou ao reitor?
- Mas fui eu, naturalmente.
- Com uma carta anónima!
- Tive de lhe fazer ver que outras pessoas da cidade já sabiam. Só assim
dava resultado.
XVI
E eis que me instalo enfim na minha casa do Alto. E Tomado o desvio para
São Bento, sobe-se depois aos moinhos: a casa fica ao lado direito. Uma
vizinha trata-me dos arrumos, tomo na cidade quase sempre as refeições,
mesmo as ligeiras, que, todavia, por vezes eu próprio preparo. No pátio em
frente há um toldo de glicínias que começam a florir, e, debaixo, bancos de
madeira apodrecendo. Sob os beirais da casa há sempre um frémito de asas:
as primeiras andorinhas. Ao lado, para lá de um caminho rústico, um alto
pano de velho muro abre-se em ruínas, mostrando no interior as pedras
brancas de sombra. Atrás há um quintal semeado que não arrendei e onde
crescem favas novas, uma mesa de pedra e bancos junto à casa para os
grandes calores de Verão. Para longe, ondulam linhas brandas de colinas,
salpicadas de casas brancas, donde sobem vozes anónimas de gente, cânticos
de galos que vibram no ar com um sinal antigo de terras solitárias. Fixo três
grandes pinheiros de vasta copa redonda, não longe dali, a cuja sombra eu me
iria estender nas tardes de grande sol. Mas o que eu sobretudo gostava de
olhar era a cidade. E eu a revejo agora do meio da minha noite, plácida e
branca, cercada de infinitude. Instala-se na colina, cisma para a lonjura, onde
me abismo também, veste de branco a acumulação dos séculos como de um
luar de morte. O espaço esvazia-se até ao limiar da memória, onde alastra o
meu cansaço, o afago quente de um choro, o aceno de sinais que se
correspondem como ecos de um labirinto. Num oblíquo aviso afloro o que
estremece sob os gestos enfim apaziguados. Évora, Évora. Para o meio da
planície, uma inesperada toalha de água de represa lembra ao longe os poços
do deserto. Uma ou outra casa branca, perdida na planura, descansa-me os
olhos de vertigem da distância. Quedo-me longo tempo ao meu mirante,
evoco, no vasto céu, o eco de um coral alentejano, essa voz para o deserto
donde nunca se responde...
Fecho a janela enfim, regresso à minha presença. Que busco na minha
solidão? Chico acusa-me. Ana também, talvez. A massa de amigos com que
fui fraternizando através da vida despreza-me com náusea. E, no entanto,
nenhum deles tem uma resposta que aniquile o que me fascina. Para que
serve, para quê? Mas do para quê sei muito pouco, porque sei de mais: para
ser homem. Porque só se é homem assumindo tudo o que fale em nós. Chico
pensa na utilidade prática. Mas, se através dos tempos o homem pensasse
apenas na utilidade prática, hoje não seria um homem, seria um parafuso. De
resto, os utilitários estão lutando contra si: conquistada a base prática,
liquidados, em hipótese, os problemas de bem-estar, forçada toda a azáfama
ao silêncio, eis que as flores da solidão, da asfixia, brotarão com a sua
virulência clandestina da miséria do homem: a vida estará então toda ela por
conquistar, desde o limiar das origens.
No arrumo da casa há mil coisas a fazer: caixotes por abrir, livros a pôr no
lugar. Tomo os instrumentos de trabalho, ponho-me a martelar, pregando,
despregando. Os livros pelo chão inquietam-me: têm o ar desgraçado de um
stock de alfarrabista. Elevo-os à sua dignidade, perfilando-os nas estantes,
irmanando-os na sua comunhão silenciosa.
Subitamente, no meio da confusão da livralhada, descubro o álbum da tia
Dulce. Estou cansado e sento-me. É um álbum velho, pesado como o tempo.
A capa arredonda-se em almofada, com uma dama antiga, em tons verdes e
brancos, segurando no regaço um leque fechado. Cinta instantânea, seios
pequenos, um olhar enviesado de galanteio clandes-tino. As folhas cartonadas
só se passam devagar; e em cada face de folha, só um ou dois retratos. Vida
efémera. Tão breve. E aí, o sonho invencível da solidez, de uma unicidade
eterna. Retrato de grupo há só um. Mas as figuras não estão centradas para
um ponto único, não nos olham nem se olham, altivas na sua independência.
Viram-se para a esquerda e para a direita, para o alto, para a frente, num
desafio arrogante. Cerro os olhos e sei de novo que toda esta gente morreu.
Mas o que mais me perturba é pensar que o rasto dessa gente está suspenso
de mim. Porque eu tenho ainda uma pequena notícia da sua vida, o eco
apagado do que foi a massa complexa do seu ser e sentir. Tia Dulce contou-
me. E foi como se ela própria se dobrasse à piedade por essa gente
desaparecida e quisesse que alguma coisa perdurasse. Mas de muitos retratos
já nada sei. São esses que eu fito com mais angústia. Têm olhos espantados
ou risonhos ou sérios. Que medos, que sonhos, que virtudes lhes inventaram a
vida em eternidade? Mas vós estais mortos e ninguém vos julga e ninguém
vos ouve. Que sei, porém, de vós outros, meus amigos? Tu, por exemplo, de
colarinhos à Lincolnsim, eu te lembro na voz da tia Dulce. Eras “muito
respeitado”. E tu, boa moça, de peito armado em folhos e cordões? Eras filha
de... Já não sei. Mas não casaste, tia Dulce o disse. Das tuas vigílias, do teu
suor de insónia, do teu choro nocturno, eu te invento à minha aflição
compadecida. Frágeis fios destas imagens amarelecidas, conver-gindo para
mim, para a minha memória cansada, presos do futuro por uma breve
referência, uma nota, uma etiqueta. Terei um filho talvez. Eu lhe contarei o
que sei de vós. Mas ele o esquecerá talvez, ou o filho do meu filho, ou o filho
do filho do meu filho. Então aparecereis num recanto do sótão, absurdos,
incríveis, inquietantes, com uma face a falar ainda, como o olhar de um cão
que nos fita, nos procura, e que o silêncio de permeio e que um vidro de
permeio separam irremediavelmente de nós. Mas agora ainda estais vivos,
ainda alguém, eu, aqui, silencioso nesta casa solitária, vos liga à vida que
freme para lá destes muros na Primavera anunciada, nas primeiras andorinhas
que me buscam o beiral, na planície aberta de esperança.
Sede vivos neste instante infinitesimal em que vos fito e vos sei um nada
do vosso convulso e rico e inverosímil milagre.
Fecho o álbum, acendo um cigarro. Para lá da janela atinjo a linha azul do
horizonte que se desvanece na tarde. Penso, penso. Não, não penso: procuro.
Outra vez, outra vez. Não, não quero “saber”, sei já há tanto tempo... Mas
nenhum saber conserva a força que estala no que é aparição. Porque o
escrevo de novo? A verdade é que nada mais me importa. E, todavia, um
estranho absurdo me ameaça: quero saber, ter, e uma aparição não se tem,
porque não seria aparecer, seria estar, seria petrificar-se. Queria que a
evidência me ficasse fulminante, aguda, com a sua sufocação, e aí, na
angústia, eu criasse a minha vida, a reformasse. Mas uma reforma, uma
regulamentação é já do lado de fora. Quem é fiel a uma certeza e a pode ver
quando lhe apetece? A fidelidade é então só teimosia ou cedência à parte
convencional da “nobreza de carácter”, da “honradez”. Não é isso, não é isso
que eu quero. Em que iluminação eu acredito quando falo em nome dela e a
imponho a Ana, aos outros? Falo de cor - a iluminação é então a minha noite
de secura.
Por isso, quando ela volta, eu me abro à sua devassa, à acidez da sua
presença. Por isso eu a recebo ainda agora e falo dela e me aqueço e queimo
ao seu lume. Não escrevo para ninguém, talvez, talvez: e escreverei sequer
para mim. O que me arrasta ao longo destas noites, que, tal como esse outrora
de que falo, se aquietam já em deserto, o que me excita a escrever é o desejo
de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que
me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na
própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser,
escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.
Fecho o álbum, acendo um cigarro. E, como tantas outras vezes, de novo
me assalta a presença obcecante de mim próprio, esta terrível presença, esta
coisa, isto que mora comigo, que é brutalmente vivo, independente, que
desaparece, que volta, num jogo de reflexos em que me vejo, me perscruto,
me sinto eu, e breve me foge e está apenas sendo o mundo em roda, estas
paredes,. estes livros. Fixar bem, apanhar em flagrante esta realidade
medonha que emerge de mim, me estonteia, se me some. Fixá-la a essa luz
subtil, não a esquecer, mergulhar até onde sou, para que nada de mim se
perca no que hei-de decidir; sentir, ser no mundo, para que eu saiba bem o
que há a salvar, o que está condenado, para que a construção que vier brote
desde as raízes. Canso-me, insisto, canso-me. Um acto de presença não se
define, não cabe nas palavras, SOU. Jacto de mim próprio, intimidade
comigo, eu, pessoa que é em mim, absurda necessidade de ser, intensidade
absoluta no limiar da minha aparição em mim, esta coisa, esta coisa que sou
eu, esta indivi-dualidade que não quero apenas ver de fora como num espelho
mas sentir, ver no seu próprio estar sendo, este irredutível e necessário e
absurdo clarão que sou eu iluminando e iluminando-me, esta categórica
afirmação de ser que não consegue imaginar o ter nascido, porque o que eu
sou não tem limite no puro acto de estar sendo, esta evidência que me aterra
quando um raio da sua luz emerge da espessura que me cobre. E estas mãos,
estes pés que “são meus” não são meus, porque eu sou-os a eles, mas também
estou neles, porque eu vivo-os, são a minha pessoa e todavia vejo-os também
de cima, de fora, como a caneta com que vou escrevendo...
Eu o disse, o repeti a Ana quando um dia me veio visitar. Eu a calei no
silêncio da sua submissão até onde ela me começava a ouvir e estremecia
também no cigarro febril, nos olhos cerrados até à sua procura e à sua
angústia. Eu o disse e repeti a Sofia quando uma noite, sozinha, veio no carro
do pai e se sentou à minha mesa e bebeu pela noite fora. Porque me
procuraste, Sofia? Repeli-te, a princípio, não sei porquê. Talvez porque nada
do que eras tu me fora prometido, talvez por renascer uma voz de justiça
entre nós ambos e que eu escutava ainda, com uns ouvidos justos ou injustos,
não sei. Mas qualquer eco de desespero vibrava ainda em mim, vinha ainda e
sempre talvez, porque é possível que só aí eu esteja certo e a evidência que
me queima seja a procura ou a expressão disso que sou e me recuso. Assim te
atravessei por fim da minha loucura ou da minha raiva, esse gosto furioso de
vencer em ti o que em ti resistia ou me alucinava. Tu, uma pessoa inteira, tão
flagrante, tão vibrante no teu contorno, no tom da tua voz insidiosa, nos teus
gestos estriados de vício. Um segredo de ti me fascina - tocá-lo, vencer-te,
vencer-me, saldar num urro toda esta aflição. Eis-me escrevendo como louco,
aos tropeções nas palavras, enrodilhado, contraditório talvez, a boca
amaldiçoada de secura, um frio íntimo nos ossos, um arrepio no ventre.
Sofia... Saíste já alta noite, vim ver-te descer a colina, correr ao longo da
estrada no rasto de uma pequena luz. A paz não está em nós, não está a minha
em ti, não está em mim a tua. Mas tu queres amar o teu próprio desespero
como uma embriaguez, eu sonho a plenitude de umas mãos dadas com a vida.
Talvez, porém, que para lá da minha verdade que procuro esteja a tua
loucura. Não quero pensar agora - agora não. O luar verde de Março sobe no
horizonte da minha noite de vigília, esta noite infinita em que escrevo. Olho-
o pela janela na montanha e uma alegria profundamente triste embacia-me o
olhar. Minha mulher dorme. Tremo de pensar que o sossego que às vezes me
visita esteja só na sua bênção; na paz que irradia do seu silêncio. Estarei só e
condenado? O reino da vida está cheio ainda do rasto dos deuses, como num
país velho perdura a memória dos senhores antigos e expulsos. Mas o homem
nasceu - nasceu agora da sua própria miséria e eu sonho com o dia em que a
vida fique cheia do seu rasto de homem, tão certo e evidente e tranquilo como
a luz da tarde de um dia quente de Junho...
XVIII
Mas não o pude saber tão cedo. Ana não mo dissera ou não soubera dizer.
Chico e eu, aliás, evitávamos encontrar-nos, ou só eu o evitaria, desejando
esse propósito para os dois, a fim de me tranquilizar. Não tinha medo de
discutir, de afirmar a minha verdade: sentia só, como com Ana, que duas
verdades vividas não podem talvez estabelecer um diálogo... Não tinha medo
e, todavia... Tinha eu afinal uma verdade e não apenas uma dúvida? Ter-se-ia
até apagado em mim a fascinação de quem precisamente se mostra inteiro,
seguro de si, embora, para a minha suspeita, essa inteireza seja só
publicitária? De qualquer modo, não nos vimos tão cedo. De resto, as férias
vinham aí e eu sonhava-as ardentemente para sossegar, fugir: dos outros, da
desordem violenta nas minhas relações.
Mas um domingo de manhã Chico bateu-me à porta.
Veio cedo, trazia no rosto musculado e cor de azeite o rasto de uma insónia
total. Era um domingo bonito, cheio de sinos ao longe. O sol vivo
aproveitava qualquer frincha para me invadir a casa. Chico bateu à porta com
violência, a violência categórica de quem vem por ordem da justiça. E foi
essa ideia absurda que me assaltou, a ideia de que uma autoridade qualquer
me vinha condenar. Vesti o roupão, fui abrir. E ao ver o engenheiro, tentei
um sorriso, uma palavra fácil que legalizasse tudo:
- Você? Tão cedo? Que ventos o trouxeram? Mas nem há vento afinal...
Ele não respondeu e entrou abruptamente como um polícia. Eu fiquei atrás,
fechei a porta. Vim encontrá-lo já na sala, de pé, junto às janelas.
Fulminantemente pensei que alguma coisa muito grave se passara de
véspera, talvez na reunião de sábado que se costumava fazer, em alguma
sessão do Comité, a que nunca assisti, mas que eu sabia funcionar em casa de
Ana, do médico Saldanha, do advogado Nogueira, no quarto do próprio
Chico. Quando cheguei a Évora, pôs-se a hipótese de eu ser integrado nessa
pequena sociedade secreta. Mas logo se viu que eu não tinha interesse, que eu
era mesmo o inimigo. Aliás, o Comité não existia: dava apenas a
oportunidade de uma conversa livre, de uma leitura e comentário de papéis
clandestinos, de um revigoramento de esperanças para o futuro político do
País, esperanças boas para um fim-de-semana e uma noite tranquila. De resto,
o nome de Comité de Salvação fora Alfredo quem o inventara, num dia
excepcional, e os outros adoptaram-no. (Chico dizia que fora a única
invenção de Alfredo em toda a sua vida e que ficara estafado para o resto dos
seus dias.)
- Venho aqui apenas perguntar-lhe se você tenciona voltar para Évora no
próximo ano.
Como? Ah, não! Era o cúmulo.
- O meu caro amigo está equivocado. Eu não me integro em nenhuma
hierarquia. Eu não tenho satisfações a dar a ninguém.
- Tem!
- Perdão. O meu amigo vem a minha casa, instala-se numa autoridade que
eu nunca lhe dei.
- Posso dizer na rua o que tenho a dizer aqui.
Era evidente que algo de grave ocorrera nos sonhos do sujeito. Era
evidente que eu servia de pretexto a um desforço, um desabafo. Tentei
serenar. Chico, aliás, num confronto físico, impunha-me reflexão: baixo,
duro, plasmado em bronze, tinha uma lenda agressiva de músculo e de rixa
que eu conhecia.
Olhei ao lado, instintivamente, à busca de uma defesa: uma cadeira, uma
jarra, uma pá de braseira... Optei por me sentar e acender um cigarro.
- Sente-se, Chico. Conversemos um pouco.
- Quero só que me responda.
- Ouça: a ideia de não voltar tem-me assaltado com frequência. Mas você,
com essa imposição, incita-me a reconsiderar. Quero resolver sem vexame.
Sem vexame muito visível.
- Reconhece, portanto, que não é oportuno voltar.
- Talvez. Mas não pelas suas razões. Reconheço pelas minhas.
Ele acabou por se sentar, fitando brutamente a sua inquietação.
Lembrei-me do Carolino: a loucura era acessível a todo o homem, era do
destino de todos: chamamos loucos apenas aos que não regressam dela...
- Você sabe a que extremo Ana chegou? - perguntou-me.
- Sei. Tentei já fazê-la reflectir. Inútil.
- Reflectir? Mas ela repete-o a você, ela diz exactamente as suas palavras.
- Não estou apaixonado por Ana. Ana não está apaixonada por mim.
- Não falo disso!
- Ainda bem...
- Não falo disso! Falo da sua mixórdia irracionalista, dos seus sofismas, da
sua perversão.
Ergo-me, abro as janelas. Para a cidade ao longe, para a planície verde,
uma paz solene de sol e plenitude abre-se, expande-se, como um triunfo
anunciado. Abril da luz, da festa primordial, da reinvenção do início, como te
lembro, como me dóis!
Regresso ao meu lugar, acendo novo cigarro:
- Tem a certeza de que não é irracional?
- Eu? Irracional?
- Toda a ideia vivida é do sangue, não do cérebro. Não há ideias
estritamente racionais. Nem sequer talvez na tabuada.
- Não pretenda enrolar-me, meu amigo. Sou pesado. Não é fácil
manobrarem-me.
Mas ninguém manobrava ninguém: apenas poderia operar a revelação.
Olho-me, Ana, não tenho culpa de nada. Os teus demónios são teus.
- Ana reconheceu-se. Eu fui só um espectador.
- Mas eu sei que, se o espectador desaparecer, ela se descobrirá diferente.
Diferente...
E um instante, uma onda de fraqueza pareceu-me quebrá-lo, a onda
solitária do próprio silêncio final. Deixei-o render-se totalmente a si mesmo,
talvez para que eu tivesse um pouco de razão, me sentisse onde não fosse o
réu que treme e se humilha. Mas Chico reagiu:
- Tudo o que se passa nela é absurdo. Absurdo como a estupidez. Absurdo.
- Ana viu. Foi ela que mo disse. Tentei reconduzi-la: não era aquilo, não
era aquilo... Ana regressou. Nunca sonhei regressar.
Chico pôs-se em pé. Um momento pareceu-me ir ainda falar. Mas susteve-
se. E nem sequer se despediu.
Abriu a porta, bateu-a secamente, desandou para a cidade.
XXII
Conduzo o carro, parto para férias. Não irei à aldeia senão um ou dois dias
- apetece-me andar.
Não tenho projectos, não procuro nada, excepto estar só, eu só, soldado à
máquina, nesta pura fuga de vertigem, nesta fuga de nada, nesta quente
sedução de esquecer. Estradas abertas, campos abertos, a alegria à minha
volta, evidente, natural como a luz do céu. O carro gira vertiginosamente, o
motor zumbe como uma obsessão, espectros de casas, gentes à beira da
estrada, outros carros que se cruzam com o meu num mundo reinventado à
alucinação. Mas eu estou calmo e leve como quem transforma um risco num
jogo. Dos restos do que passou, dos pedaços em que me quebrei, de tudo o
que bateu à minha porta, à pessoa que me habita, a memória sobe, purifica-se,
aquieta-se à minha volta, penetra-me o sangue, estabelece-se em harmonia,
como se fosse de amanhã, como se fosse já de agora que a revivo à luz da
noite. Atravesso Lisboa, tomo a estrada de Sintra - que maldição pesa sobre a
assunção do nosso destino?, sobre o nosso confronto connosco mesmos?,
sobre a evidência da nossa condição? Será que é sagrado e intocável o nosso
signo animal?
Árvores nas bermas, bosques, fontes, frigus opacum, o céu é azul como o
sorriso que aflora ao meu olhar, ao meu corpo purificado dos despojos do
cansaço. Sintra é um túnel de sombra como uma igreja. Abrando a marcha,
não porque o trânsito me obrigue mas porque a hora se grava de uma paz
solene de grandes árvores com raios de ouro entre a folhagem, os troncos,
com um halo de sossego em toda a terra. Não paro, tomo à direita a estrada
de Mafra, vou andando até que a noite me recolha. O sol desce para os lados
do mar, rasa o campo aberto que vou atravessando, Que esperas tu da vida?
Vê como os teus sonhos se resolvem nos outros em... Mas são actos
definitivos, não se iludem, não se iludem.
Duvidar é cómodo, interrogar-se é cómodo. Sei o que quero, sei o que
sonho. Que fazes para o atingir?
Mafra. Sentado em monumento, entroncado em monumento, branco,
gordo, há um abade que cheira a suor de um minuete de grandes damas,
confessionário, perucas empoadas, uma plebe inumerável, coxos, lepro-sos,
festa do Corpus Christi, imagens-síntese ao sol da brisa marítima. Que fazes
para o atingir? Não sei, não sei. Reconheço-me na evidência última da minha
condição - saber é já conquistar. Mil razões e factos me trabalham a saúde e
um dia vejo-me doente. Mil remédios me trabalham a doença e um dia
reconheço-me saudável. Toma o teu remédio, doente. Toma o teu remédio.
Qual remédio? Não o sei.
Como quem se despe de todos os artifícios, eis-me nu à minha face. A vida
é curta - tanto tempo só para isto, para me desnudar. Um dia virão os
mensageiros da Grande Reconquista, agora é cedo, a vida é curta.
Um dia virão os arautos do Grande Dia e lançarão aos ombros nus do
homem a verdade da alegria. Ou a própria terra e o próprio sol inventarão à
nudez o calor vindo do sangue.
Torres Vedras, na Praia da Areia Branca há uma pensão que avança até ao
mar, o sol tomba em majestade, eu, aqui, ao mirante do Ocidente, sinto-me
bem. As ondas rolam em espuma o embalo do meu terror. Fico à janela do
meu vazio, disperso ao rumor da solidão marinha. Nasce no céu, ao meu
olhar saqueado, a primeira estrela, que mal espero. Levo-a comigo para o
meu sono, para que a noite me não fique desprotegida. E durmo, durmo. O
mar recolhe a minha inquietação, balanceia-a, reconhece-a em espuma
branca...
Porque o conto agora, nesta noite de Abril? A Páscoa vem aí como outrora,
a encosta baixa da montanha lava-se da água errante que transborda das
nascentes, cobre-se de verdura e de flores que nasceram para o sonho de
ninguém, para o meu olhar fortuito, talvez, e estão certas como esta hora
absurda de alegria que ninguém conquistou, que é alegria por ser da verdade
para isso. Que fazes para atingir o teu sonho? Não o sei. Um dia virão os
núncios da Grande Reconquista. Quando for a hora para isso.
Aceito o mar e o seu reconforto, sigo a orla marítima, vou com os ventos
de viagem. São Martinho, Nazaré, subo ao alto das falésias, os mareantes de
outrora... Que ilusão! A busca indefinida é do destino do homem. Sim. Mas
outra busca, depois desta. A minha procura é a primeira, a que está antes de
todas, a que encontre para este corpo mortal, esta luz vivíssima e mortal, o
seu lugar ignorado num universo que se cumpre, com ventos e águas e serras,
desertos e planetas e Vénus e Marte e estrelas, Antares, Deneb, Altair - meu
velho pai - e galáxias e milhões de anos-luz e o infinito que submerge e
aturde. Silêncio. No vasto ressoar das águas verdes, aqui, do alto da falésia,
do limite da inquietação, quando nada mais resta do que partir, aqui, frente
aos ventos salgados, frente à montanha muda, lavada ao perfume angustiante
da germinação, ouço-te ainda Cristina. Fica um pouco. Até que o sorriso me
reconheça e me sagre. Leiria, Figueira, Aveiro, Porto. Praia de Âncora, -
esgota-se-me pelo caminho o que é de mais em mim, o que é excessivo para a
pequena entrevista que comigo marquei, Praia de Âncora, há uma mata para
os passos retardados, os últimos que restam da agitação, há um mar sentido a
nórdico, a mim, que venho do Sul.
Depois ziguezagueio em busca das capelas românicas, lembro-me desde as
aulas de História de Arte, vi uma à beira da estrada - a de Bravães -, procuro
outras, São Pedro de Rates, Ferreira, Roriz, ó mãos desajeitadas, trôpegas de
medo e de uma brutal humanidade inchando nos músculos informes, nas
faces broncas de pasmo, e a flor e a flor delicada tentando romper através
dessa grossura ancestral, da pele tanada a calos e a invernos seculares. De
Amarante a Vila Real, a serra do Marão ressoa à hora original do meu
destino, do mundo inicial da minha aparição, aberto a terrores de grandes
córregos, de vastas superfícies nuas, de silêncios suspensos de nevoeiros.
Desço enfim à minha aldeia - o tempo mudou. Um vento árido varre as areias
da estrada, mas a terra alegra-se à festa da Primavera. Minha mãe estranho-a.
A ausência dos filhos, do marido, criou-lhe já um mundo habitável, mundo
sereno na própria solidão. O seu olhar espesso de sonho mas vivo de ânsia, de
sorriso longínquo, envelhece agora numa quase severidade entre rugas de
pedra, imóvel. Agita-se pela casa, que centra ao seu mando, ordena a sua vida
para a morte, sem que a morte, porém, tenha voz nos seus domínios. Uma
voz que se ouça. Tenho o quarto arranjado como se eu fosse esperado, mas eu
venho de improviso.
Pergunto-lhe pela saúde, ela sorri: Bem. Reconheço-a fechada como se um
muro a rodeasse e fico de fora olhando. De que segredos se resolve uma
vida? De que pressões, escolhos, sacrifícios? Reintegraste-te toda, boa
mulher. Que podem sonhar-se em eco as palavras que te disser? Somos a
mesma carne, o mesmo calor de sangue, dizem-me que me pareço contigo, no
olhar ao menos, no olhar: estamos sós e definitivos aqui à face um do outro...
Erro pela aldeia – imagem do velho recomeço, da depuração da morte que o
tempo acumulou. O leite que bebo sabe às giestas floridas, os cordeiros
mamam a alegria nas tetas das mães, estremecem até às caudas de prazer - o
prazer irmão da angústia (rasgados à faca pelos vendedores, que os apertam
entre as pernas, os sangram para uma tigela, os despem em carne quente e
vermelha para a festa pascal). Cheira a loureiro nos velhos muros, as camélias
de plástico abrem pelos jardins, sobre as leiras revolvidas à plantação das
batatas, o cuco marca o eco da alegria irradiante. Não vejo o Tomás, não vejo
o Evaristo, sei que com a hora nova nasceu ao Tomás mais um filho. Mas é o
sétimo e quase me esqueço assim de que é realmente um primeiro, porque é
sempre um primeiro cada homem que nasce. De resto, parto em breve - e
minha mãe não estranha: mesmo presente, é como se eu fosse ausente,
porque a ausência assumida, assimilada à velha ordem, é o mundo dela, ou
parece. Páscoa da convivência, da alegria que já fala de janela a janela, tecida
ao sol já cálido nas visitas do prior, Páscoa da Natureza, da confraternização
com ela, a olhos alegrados em flores e águas libertas, demora-te um pouco
ainda, fica um pouco ainda ao apelo da minha plenitude... Ah, que a tua
absurda verdade fosse a minha razão cheia quando a quisesse; e que a tua
verdade natural fosse a minha verdade ignorada, tão ignorada e viva que,
quando eu a quisesse provar, as razões fossem de mais...
Mas na marcha para o Sul tudo me está esperando.
Os factos que me fizeram, me estruturaram, rebentam pelos caminhos
desertos, aguardam-me como ciladas.
Há alguma coisa então em mim que é daqui? O que eu sou é então também
deste pó que me vai cobrindo o carro novo, o fato novo?
XXIII