sinalizava o início de mais um dia de trabalho para Ande, que saiu cedo em direção ao curral, logo após tomar seu café da manhã. O sol estava nascendo, o horizonte se mostrava alaranjado. O galo cantou. Ande havia começado a despejar as sacas de milho para as galinhas quando avistou um movimento estranho na vila, logo correu em direção à Praça da Taverna, local que representava o centro do vilarejo em que moravam. - Antônio? O que aconteceu? – Exclamou ele, se aproximando do guarda que vigiava os arredores da vila. - Parece que tem um baita de um monstro de aproximando pelo Leste, aquele grupo de mercadores que viu. – Ele aponta em direção a um grupo de pessoas ao redor de uma caravana. Pareciam vender tecidos e temperos. - Preciso avisar meu avô, muito cuidado, Antônio! – Ele se despede com alguns tapinhas no ombro e dispara em direção a fazenda. Se aproximando do portão, ele vê pela janela de sua casa, Triz havia acordado e provavelmente estava esquentando água para o café. Ao chegar na casa, ele dá algumas batidas na porta, tira suas botas e entra na cozinha. - Bom dia, Triz, meu avô acordou? – Pergunta ele enquanto caminha em direção aos quartos. Ela esfrega os olhos, ainda sonolentos. - Creio que sim, ele deve ter ido lá no celeiro, preparar os cavalos para a viagem. - Certo, termina logo seu café, encontraram outro Kaiju se aproximando pelo Leste. Eu não peguei muito informação, quando soube já vim aqui avisar vocês. - Como assim?! Ele é muito perigoso?!! – Ela arregala os olhos na direção de Ande. - Não vi ainda, daqui a pouco eu vou arrumar minhas coisas e vou partir para ver se eu acho ele, não consigo só esperar ele chegar no vilarejo - Pode avisar seu avô, eu arrumo nossas coisas. - Valeu Triz, te vejo daqui a pouco então, até. – Diz ele enquanto calça, novamente, suas botas. Em direção ao celeiro, ele pôde avistar seu avô ao longe, alimentando os cavalos com algumas sacas de feno. O velhinho, ao avistar o garoto, acenou para ele. Ande acenou de volta. - Vô, alguns mercadores viram um Kaiju caminhando em direção a vila, ele deve chegar ainda hoje. Eu e a Triz vamos tentar impedir ele antes de qualquer coisa. – Ande estava ofegante. - Ande? Tudo bem com você? – Ele bota as mãos nos ombros de Ande – Você está vermelho! - Relaxa vô, eu só corri muito. Quando puder, se abriga em casa, por favor. - Certo, vocês vão conseguir, sempre conseguem. - Assim eu espero. Ande retornou para a sua casa com dois cavalos – Mandioca, um cavalo branco com crina marrom, e Brigadeiro, um equino marrom com crina bege, dentre os dois o mais robusto. - e encontrou Triz esperando-o na porta, com duas bolsas de couro preto, grandes e cheias de coisas. A frente de uma das bolsas, havia uma aljava cheia de flechas e seu arco de madeira Real, que havia ganhado aos seus sete anos, presente de seu avô. Ambos partiram em direção a vila, encontraram-se com mais alguns guardas que seguiriam com eles para tentar impedir a fera, aproximadamente um grupo de cinco, contando com Ande e Triz. De lá, pegaram a Estrada do Mar – que possuía o nome por passar através de um campo de flores bioluminescentes - a única que seguia em direção ao Leste e após uma cavalgada de aproximadamente seis horas, puderam avistar uma silhueta - Uma baita de uma silhueta – em um campo plano, com vegetação rasteira, bem longe de qualquer floresta. Os cavalos pararam, talvez do medo causado pelo barulho proveniente das fortes pisadas que a fera dava a cada passo. À medida que o monstro se aproximava, podia-se ver o corpo colossal formado de carne e ossos, talvez provenientes das vítimas que ele havia feito pelo caminho. Esse era daqueles Kaijus frágeis que consumiam suas vítimas e usavam os corpos delas para se proteger. Após sentir a presença dos caçadores, aproximadamente a uns 100 metros dele, a abominação de carne soltou um grito ensurdecedor, que espantou a maioria dos cavalos, fazendo-os voltar pelo caminho de que vieram. Isso deixou os caçadores à mercê de sua própria força para saírem vivos daquela batalha. Logo após o grito, a fera deu sua primeira investida, e correu em uma velocidade absurda na direção dos caçadores. A perna daquele monstro equivalia ao tamanho de uma pessoa, pôde- se ver isso após ele esmagar brutalmente um dos membros do grupo e consumi-lo com sua perna. Essa morte foi o suficiente para eles perceberem a situação que se meteram: Eles vão morrer. A aberração parou um momento após ceifar a vida de um inocente, talvez estivesse consumindo-o, não dava para saber. Só o que se via era aquela coisa gosmenta parada ou paralisada. Um dos guardas havia congelado e o outro corrido em direção a vila, o medo havia tomado conta de todos, inclusive de Ande, que estava em pé, encarando olho a olho a fera, que parecia esperar por algo. Um estouro se ouve, a primeira magia a ser conjurada na batalha: Uma bolha de fogo escaldante, que perfura o peitoral do monstro, evaporando completamente parte da aberração que cai de maneira desleixada no chão, manchando-o com seu lodo vermelho. - Ande! Ande, presta atenção em mim! – Ela dá alguns tapas na capa do camponês – Moleque, acorda! Não é hora de ficar de luto! - M-mas ele... m-mato... – No meio do medo, da angústia e do desespero, a única frase lógica que ele pôde montar na sua cabeça nem sequer foi proferida corretamente pela sua boca. Suas mãos tremiam. – Triz... eu não sabia que ele era tão forte. - Você é mais, você precisa ser mais forte. Agora levanta e pega teu arco de volta, você lembra de algum feitiço que eu te ensinei? - Acho q-que.... - Reponde garoto! Luto agora não cola! – Ela dá um tapa consideravelmente forte na cara de Ande. – Essa aberração se levanta logo, logo.... - Lembro, lembro que você me ensinou um feitiço mestiço de água e fogo. - O Thunder Molniya? - Acho que esse é o nome... – Sua frase foi interrompida por mais um urro que, dessa vez, atirou estilhaços de ossos para todos os lados. Os caçadores de afastaram. - Já acha que pode lutar, garoto? - Acho que sim, Triz. Consegui me recuperar um pouco - Acho que tenho um plano então. – Ela cochichou brevemente no ouvido dele. A aberração vomitou um pedaço de carne na direção deles, aquela carniça parecia quente, muito quente. Ande conseguiu desviar com facilidade, mas Triz esbarrou em um tronco derrubado e tropeçou, parando no mesmo local. A carniça se aproximou de Triz. - Que plano idiota é esse, garota!? – Ele puxa a feiticeira pela perna. – Se não fosse por mim, você teria virado “Triz assada”. - Haha muito engraçado, agora corre logo para aquela árvore que o plano de verdade ainda nem começou. – Ela aponta em direção a uma árvore solitária na vastidão dos campos planos. - Deixa comigo, mas você vai ter que distrair ele. – Ele corre em direção à árvore sem ao menos ouvir uma resposta. – Ei, seu gosmentinho, olha essa carne fresca aqui para você! – Ela dava tapas fortes no seu peito, provocando a besta. - Que obsceno, Triz! - Não é nesse sentido, seu pamonha! A besta vira sua visão para Triz, e novamente investe em sua direção, como uma bola de canhão banhada em sangue. Por pouco a feiticeira se esquiva. - Flaming Oblako! – Uma nuvem flamejante se forma ao redor da feiticeira. – Gosta de fogo, senhor cadáveres? A criatura grita novamente, todo seu braço é evaporado pelas chamas. Mais estilhaços são lançados, um deles acerta a barriga de Triz, que berra de dor. – SEU DESGRAÇADO!!!! – Ela cospe um pouco de sangue. - Triz!? Isso definitivamente não estava no plano!! - Solta logo esses raios, pirralho! - Thunder Molniya! – Raios são disparados na forma de sangue da criatura, que apesar de fazerem efeito não impediram de a criatura morder a cabeça de Triz – Pelo amor de Deus, usa suas chamas, sei lá! - Eu não... consigo.... – A gosma vermelha passou a entrar pela garganta de Triz, impedindo-a de falar e, consequentemente, de conjurar feitiços. Por um momento, Ande, já em cima da árvore, pensou que esse era o fim, sua amiga conhecida a pouco tempo iria morrer naquele momento, tudo culpa dele, aquele fraco, incompetente. Talvez miserável fosse a palavra que ele poderia usar. O desespero, o medo, a angústia haviam feito que o pobre garoto apenas desistisse, o único movimento possível naquela situação era correr, e correr bem longe. Quando estava prestes a pular dali de cima e correr como se sua vida dependesse disso – e realmente dependia – ele escutou... - Seu.... arco... raio. – Triz havia balbuciado, quase que completamente consumida pela monstruosidade de sangue que a puxava cada vez mais para dentro de si. Ele pensou por uma fração de segundo: “Como assim fugir? Eu estou maluco? Tem uma vida bem na minha frente, por que eu poderia achar que minha vida deveria ser poupada e essa ceifada? Eu sou tão importante assim?”. A resposta era óbvia: não. Ele estava bem longe de ser importante, talvez dentre todos aqueles que partiram em direção à fera com o objetivo de caçá- la, ele fosse o mais supérfluo, descartável e, novamente, miserável. “Mas talvez... os miseráveis possam fazer algo também? Apesar de fracos, ainda tem ossos e músculos, possuem cordas vocais, podem andar, correr ou bater, assim como os fortes. Eu acho que a linha que separa esses dois extremos é bem tênue, no fim, todos são seres humanos, todos podem fazer algo. Ser fraco não é uma desculpa.” Ande agarrou firmemente seu arco, puxou uma flecha de ponta dourada de sua aljava e preparou o tiro na direção da aberração. - Seu desgraçado, inútil, imprestável! Faz alguma coisa, seu merda incapaz!! – Ele berra para si memso, tão alto quanto a fera, e dispara o arco, com tamanha maestria. – Zhalkiy Thunder na sua cara, sua monstruosidade! Algo completamente inesperado ocorreu, a flecha foi disparada normalmente pelo seu arco, mas algo estava diferente, a flecha tremia e piscava em amarelo, pequenos raios circundavam toda a madeira, e sua ponta dourada brilhava mais ainda. Logo ao encostar no lodo avermelhado, a flecha começou a mudar sua trajetória, entrando por um lado e saindo pelo outro, repetindo esse processo cada vez mais, os raios queimavam e evaporavam cada parte do sangue da fera, era como se ela estivesse sendo alvejada de flechas em chamas por todos os lados, mesmo que apenas uma houvesse sido atirada. Era algo... teleguiado? Talvez um chicote brilhante? Não se sabe com isso ocorreu, mas um novo feitiço havia sido criado: O Trovão Miserável. O monstro foi reduzido a uma poça de sangue com alguns ossos em cima, e Triz pôde finalmente voltar a respirar. - ANDE SEU DESGRAÇADO – Gritou Triz, após dar a maior puxada de ar que ela havia dado em sua vida – Moleque, você não sabe o quanto eu te amo. - Eu acho que eu vou... – Ande desmaia caindo de maduro da árvore em que estava posicionado. Havia sangue escorrendo de seus olhos, ouvidos, nariz e boca. - Cruzes, eu jurei que ia morrer. Agora sobre você, acho que se esforçou demais por hoje, mocinho. – Triz carrega Ande nas costas e solta um longo assovio. Brigadeiro surge de trás de uma pedra e se aproxima dos dois. - Ei, guarda, acompanha a gente andando você também, ficar travado aí não vai ajudar em nada. – Diz ela olhando para um dos caçadores, ainda paralisado. - E-eu? Cer-certo! – O guarda se levanta e, tremendo, acompanha os dois na viagem em direção a vila. Era definitivamente algo a se recordar, um ataque a ser gravado. Dias depois, Ande começou a transcrever seu feitiço para o papel, trabalho esse que durou três meses. Registrou-o para próximas gerações em um grande livro de capa lilás, o Livro das Escritas Andianas, que pouco tempo depois foi abençoado pelos elementos, e se tornou uma Relíquia.