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REID, W. Stanford. Calvino e sua influência no mundo ocidental.

São
Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 12-14

O CALVINISMO COMO UMA FORÇA CULTURAL

Calvino foi um patrono dos modernos direitos humanos. Em seu


pensamento, ele antecipou a moderna forma republicana de governo. Contribuiu
para a moderna compreensão da relação entre lei natural e lei positiva. Ao lado dos
movimentos sociais e políticos de seu tempo, compreendeu plenamente que a
origem do estado nacional moderno, o surgimento do comércio burguês
internacional, o desenvolvimento da classe burguesa e a vasta expansão do mercado
monetário exigiam uma nova avaliação da proibição de empréstimo de dinheiro a
juro. Além disso, Calvino levantou-se contra os abusos do poder, em seu tempo, e
debateu o problema do direito à revolta.

O impacto de Calvino e do Calvinismo sobre a moderna cultura ocidental


está bem documentado. Reconhece-se que esta influência foi grande. Calvino e o
Calvinismo ocuparam seu lugar entre as maiores forças que moldaram nossa
moderna sociedade ocidental.

É importante descrever estas influências do ponto de vista histórico. Qual


foi a influência do Calvinismo? Até onde, precisamente, se estendeu essa influência?
Contudo, para avaliar o Calvinismo como uma força cultural, propriamente, é
preciso descer a um nível mais profundo de questionamento. Que é que, no
Calvinismo, determina a forma peculiar pela qual ele se relaciona com a cultura?
Qual é o caráter distintivo que ele imprime à cultura? Nestes aspectos, em que difere
ele de outros movimentos protestantes? Sem levantar questões como estas,
dificilmente alguém tem condições de inquirir significativamente em que extensão
ocorreu sua influência'.

Ninguém deve supor que a atitude de Calvino para com aquilo que é
humano e para com aquilo que pertence à realização humana não tem necessidade
de correção. No entanto, sua atitude positiva para com esses valores é inerente ao
seu pensamento e têm profundas implicações para aqueles que se consideram
Calvinistas. Isto contribui para a compreensão do modo pelo qual o Calvinismo atua
como uma força cultural.

Para Calvino, diferentemente do que ocorria com outros líderes da Reforma,


não existe dicotomia básica entre o Evangelho e o mundo, entre o Evangelho e a
cultura. Ao mesmo tempo, ele não aceitava simplesmente, sem crítica, as realizações
do gênio humano. Sua atitude exigia que tais realizações fossem analisadas quanto
às razões que as inspiravam, pois deviam estar sujeitas aos preceitos de Cristo
desacompanhada da influência que ele exerceu sobre a nossa cultura ocidental. Ao
invés disto, indagamos que é que, no Calvinismo, determinou o caráter desta
influência. Por que o Calvinismo teve uma atitude positiva para com a cultura e foi
capaz de fazer contribuições culturais construtivas? Porque, em verdade, esta
atitude positiva pertence ao verdadeiro gênio do Calvinismo, tanto que o Calvinismo
teve em mira não só a reforma na doutrina, na vida individual e na vida da Igreja,
mas também a transformação de toda a cultura, em nome de Cristo.

Ao responder a estas indagações, podemos, por conveniência, organizar


nossos pensamentos em torno de quatro pontos principais: 1. No Calvinismo não há
dicotomia entre Cristianismo e Cultura; 2. Por causa de sua maneira penetrante de
entender a doutrina da criação, a universalidade da revelação divina e o lugar da lei,
é impossível ao Calvinismo — e observe-se a importância de manter-se intacta a
doutrina bíblica da relação Criador-criatura — pensar em termos de uma simples e
incondicional distinção entre as esferas de atividade divina e humana; 3. Toda a vida,
inclusive a cultura, é teonômica, isto é, tem sentido somente quando está sujeita a
Deus e à Sua lei; 4. O poder do Deus- criador-soberano abrange também o curso da
história, de modo que se pode discernir a revelação de Deus também naquilo que
pertence mais imediatamente à cultura ou, seja, à atividade formadora do homem.

Atitude Positiva do Calvinismo para com a Cultura

Calvino expressou sua gratidão a Deus, porque Deus, ao mesmo tempo em


que trouxe à luz o Evangelho em sua pureza, trouxe à existência também o
renascimento das humanidades2. Foi Guilherme Budê que, ao tempo de Calvino,
procurou introduzir na França um panorama da cultura humanística surgida na
Renascença Italiana. Promoveu o gosto pelas artes liberais (bonae litterae) em
contraposição aos estudos que preparavam o indivíduo para ganhar a vida
(Teologia, Lei = Direito, Medicina'). Calvino concordou resolutamente com Budê em
que as artes liberais eram essenciais à formação do homem, ao desenvolvimento de
sua humanidade. De fato, encontramos em Calvino acentuado gosto pelas artes
liberais e interesse em instruir-se nelas, de modo que nada fica ele a dever aos
humanistas seus contemporâneos. Não são necessárias muitas palavras, disse ele,
para expressar quão cara nos é a aquisição das artes liberais4.

Também para com a retórica e as ciências naturais, Calvino teve uma atitude
positiva. A influência dos princípios da retórica, sobre seu método teológico, pode
ser constatada. Na introdução de seu Comentário às Cartas aos Tessalonicenses,
Calvino reconhece que deve sua cultura humanística e seu método de ensino
(discendi rationem) ao bem conhecido humanista Maturin Cordier. Como a
retórica, as ciências naturais são dons de Deus, criados por Ele para o uso da
humanidade5. A fonte última da verdadeira ciência da natureza não é outra senão o
Espírito Santo1’. Contudo, Calvino foi inflexível oponente da pseudociência da
astrologia, que gozava de grande prestígio em seu tempo, tanto quanto goza em
nossos dias . O clima espiritual no qual Lutero se desenvolveu, foi o do misticismo
do final da Idade Média. Diferentemente de Calvino e Melanchton, Lutero
permaneceu muito tempo incólume às influências do Renascimento da Cultura
humanística de seu tempo. Em contrapartida, Calvino cedo se dedicou aos estudos
humanísticos. Como teste de sua competência, de sua erudição humanística, ele
escreveu seu famoso comentário sobre o De Clementia, de Sêneca*. Educado pelos
humanistas e autorizados eruditos de seu tempo — Pierre de llítoile e Andrea Alciati
—, bem versado na filosofia da cultura clássica, e ele mesmo reconhecido como um
erudito humanista, Calvino revelou, através de toda a sua vida, domínio da cultura
contemporânea e profundo interesse no seu desenvolvimento. Ele continuou a
demonstrar empenho em relaçào à humanidade do homem e em relaçào àquelas
boas dádivas de Deus — que incluíam a arte e a música — e que eram capazes de
contribuir para o seu desenvolvimento1'.

É um erro supor que o duradouro interesse de Calvino pelos estudos


humanísticos e pelo desenvolvimento cultural do homem fosse um simples
remanescente do tempo que precedeu sua conversão à fé evangélica. Sua
preocupação para com os estudos humanísticos e para com aquilo que diz respeito
ao que é humano está muito inseparavelmente ligado ao seu modo global de pensar,
para permitir uma tal interpretação. De fato, num sentido que precisa ser bem
definido e cuidadosamente preservado de má compreensão, Calvino pode ser
chamado de “humanista10”. Através de toda a sua vida, ele teve um profundo
compromisso para com aquilo que é humano.

De fato, Calvino criticou mordazmente àqueles cujo humanismo fazia supor


que eles se tinham firmado contra a soberania de Deus, contra a Palavra de Deus,
contra a depravação do homem e contra as doutrinas da graça. Aos vinte e sete anos,
na famosa carta que serve de introdução à sua Institutio Religionis Christianae (=
Instituição da Religião Cristã), ele fala abertamente contra o humanismo que não
leva em conta a doutrina evangélica11. Mais do que contra um humanista cristão
como Budé, Calvino ataca aqueles humanistas que fazem a apoteose do ser
humano12 e pensam que a realização daquilo que é humano pode ser alcançada
somente na presumida independência de Deus e de Sua revelação. Ele mesmo, como
um humanista, rejeitou aquilo que era o coração da idéia de personalidade do
Renascimento, a idéia de que o homem é a fonte criadora de seus próprios valores
e, portanto, no fundo, incapaz de pecar1'. Se os estudos humanísticos eram caros a
Calvino pelo fato de favorecerem o desenvolvimento das virtudes humanas, se as
ciências devessem ser cultivadas como dons de Deus, os humanistas deviam opor-
se àqueles que pensavam que as artes e as ciências podiam ser empregadas como se
fossem suficientes em si mesmas. Era estranho à mente de Calvino o pensamento de
que as artes e as ciências podiam estar livres da religião (non debere distrahi a
religione scientia)14.

Ninguém deve supor que a atitude de Calvino para com aquilo que é
humano e para com aquilo que pertence à realização humana não tem necessidade
de correção. No entanto, sua atitude positiva para com esses valores é inerente ao
seu pensamento e têm profundas implicações para aqueles que se consideram
Calvinistas. Isto contribui para a compreensão do modo pelo qual o Calvinismo atua
como uma força cultural.

Para Calvino, diferentemente do que ocorria com outros líderes da Reforma,


não existe dicotomia básica entre o Evangelho e o mundo, entre o Evangelho e a
cultura. Ao mesmo tempo, ele não aceitava simplesmente, sem critica, as realizações
do gênio humano. Sua atitude exigia que tais realizações fossem analisadas quanto
às razões que as inspiravam, pois deviam estar sujeitas aos preceitos de Cristo.

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