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ENZO Nr.

2
a ut-a ut

TRAVERSO
Melancolia de Esquerda :
Marxis mo, História e Memória
ENZO TRAVERSO
A melancolia de esquerda _ _ _ __ _ _ _ __
Marxismo, História e Memória

tradução _ André Bezamat


preparação _ Líg1a Azevedo
revisão _ Silvia Massimini Felix, Fernanda Alvares
edição_ Maria Emília Bender
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INTRODUÇÃO:
Passados assombrados desprovidos de utopias ____

Na luta secular entre o socialismo e a barbárie, a harháríe


J?,anha de longe. Entramos no século XXI com hem menos es-
perança do que nossos ancestrais no início do século passado.
Daniel Bensa·id,Jeanne, de 5tuerre lasse (1991)

VIRADA HISTÓRICA

Em 1967, reconstruindo a longa trajetória das recorrentes men-


ções à sentença de Cícero «historia magistra vitae» [história, mestra
da vida], Reinhart Koselleck demonstrou seu esgotamento no fun
do século xv1n, quando a ideia moderna de progresso tomou o lu-
gar da antiga visão da história cíclica. O passado deixou de ser visto
como um enorme reservatório de onde os seres humanos podiam
resgatar lições morais e políticas. Desde a Revolução Francesa, ele
teve que ser reinventado, em vez de reconstituído. A mente hu-
mana, observou Koselleck, citando Tocqueville, vagava na escu-
ridão, e as lições da história se tornavam misteriosas e inúteis. 1 O

_ Jti i11 l1 arr K())e ll cck, «// i,·f()f/c/ l\lJ,,~iSll i/ Vit i1 l': Tl,c l )i-;-,o lu rÍl.)11 l,) r rhc
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1
e
p 29
.~ 28

final do século xx. no enranro. parecia ter reabilitado a ma.,,,ma rilhada do fim de um ciclo. de uma época e. afinal. de um secu-
de Cícero. A democracia liberal tomou a fonna de uma teodiceia , · d o e disrupcivo . a queda
lo.~ Por causa de seu cararer mespera . do
secular que, epílogo de um século de violencia. incorporou
Muro de Berlim loao ganhou uma dimensão de de \·irada
110 ei,e11t o.
b b , .
as lições do totalitarismo. De um lado. historiadores apontavam . carando no\·os cenanos.
de época que exce d ia suas causas. escan . . ,
as inúmeras mudanças ocorridas numa era turbulenta: de o utro. de súbito projetando o planeta em uma constelação imprens1vel.
filósofos anunciavam o «fim da história». O hegelismo otimista Como rodo grande evento político. alterou a percepção do passa-
2
de Fukuyama foi criticado a torto e a direito. mas o mundo que do e gerou :ma nova imaginação histórica. O colapso do socia-
emergiu do final da Guerra Fria e do colapso do comunismo era lismo de Estado promoveu uma onda de enrusiasmo e. por pouco
assustadoramente uniforme. O neoliberalismo assumiu o protago- tempo, grandes expectativas de uma possível democracia socialis-
nismo; nunca, desde a Reforma. uma única ideologia havia esta- ta. Muito rapidamente, porém. as pessoas foram percebendo que
belecido hegemonia cão completa, de alcance cão globaP 0 que havia de faro ocorrido fora o desaparecimento absoluto de
O ano de 1989 representa uma ruptura, um 1110111e11t1"11 que roda uma representação do século x:x. A esquerda - essa imen-
encerra uma época e introduz outra. O sucesso internacional da sidão de correntes que incluía várias tendências anàscaliniscas -
obra de Eric Hobsbawm, A era dos extre111os (1994) , reside, ames foi se sencindo cada vez mais desconfortável. Chrisca Wolf. a es-
de mais nada, em sua capacidade de inserir dentro de uma pers- critora dissidente mais famosa da antiga República Democrática
pectiva histórica mais ampla a percepção cada vez mais compar- Alemã. descreveu essa estranha sensação no texto aurobiográfico
Sradt der E11y_el [A cidade dos anjos]: ela se senàa uma órtâ espiri-
No,.1 Ynrk: C l1 lumb1.1 Ln nn,1 f\ Prn, ~(II J-1 . pp. 20 - -t~. (1:d. br.h.: h 11 ,.,, tual, exilada de um país que já não existia." Jumo à história 06.cial.
/"''·"',/º <'. , 111/11 l1J11 1·"1 "• ' l //, // ///1 ,i 1/ /l.1 /(111/10 / IIS /1 IIJ(1h . - l r.t,l.J L1L' W 11111.1 jl «monumental» mas já desacreditada. do comunismo. haYia uma
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e .1. , 10 t t :111L'1ro.
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19~9 , . .. lt llL o t r J\f( lf\ , . i\ ,111,,11.il / 11 11 , , , f. ' c 1.1,1
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30

. h.1sconca
narrativa , • d·mcei·ence · criada pela Revolução de Outub ro,
- N era cataclísmica de cran-
Antigo Regime e a Restauraçao. essa . . d ão
na qua] outros evenros haviam sido inseridos,
. da Guerra Civ•I1
sição, uma nova forma de soberania baseada na ideia e n~ç es
Espanhola à Revolução Cubana e ª Ma'.o d~ 6~· S~~u.ndo essa
veio à tona e, por um breve momento, acabou com os regi~
v1.sao,
- o secu
, lo xx experimenrara
- uma hgaçao sunb1ot1ca entre
L · dade de escamemos rora
dinásticos europeus, em que uma soCie
barbárie e revolução. Passado o choque de novembro de 1989,
substituída por uma sociedade de indivíduos. Palavras trocaram
no encanto. essa narrativa desmoronou. van-ida pelos escombros . , · mo um «co-
de significado, uma nova concepção da h istona co
do Muro de Berlim. A dialética do século xx foi enterrada. Ern
letivo único», incluindo tanto um «conjunto de evenc~s», q_u an-
vez de liberar mais energias revolucionárias. o 6m do socialis- . s1grn
. •ficati·va (um tipo de «ciência h1stonca»),
co uma narrativa
mo de Estado acabou por frear a trajetória histórica do próprio enfim aanhou forma.ó O conceito de Sattelzeít nos ajuda a en-
socialismo. A inreira história do comunismo foi reduzida a sua tender:s transformações do mundo contemporâneo? Podemos
dimensão totalitária, que por sua vez parecia ser uma memória supor que, guardadas as devidas proporções, os anos que vão do
coletiva. passível de ser rransmirida. É lógico que cal narrativa não final da década de 70 até o Onze de Setembro de 2001 testemu-
foi inventada em 1989: ela existia desde 1917. mas agora se tor- nharam uma transição cujo resultado foi uma mudança radical
nara uma consciência histórica compartilhada. uma representação de nossos paradigmas, de nossa paisagem política e inceleccual.
dominante e inconteste do passado. Após ter adentrado o século Em outras palavras, a queda do Muro de Berlim simboliza uma
xx como uma promessa de libertação, o comunismo dele saiu transição na qual velhas e novas formas emergiram juncas. Não
como um símbolo de alienação e opressão. As imagens da de- foi o mero reaparecimento da velha retórica anticomunista. Ao
molição do Muro de Berlim, a posteriori, parecem a antítese de longo desse quarto de século, mercado e concorrência - os pi-
0 11111bro, de Eisenstein: o filme da revolução fora definitivamente
«rebobinado». Na verdade, quando o socialismo de Estado ruiu, a
esperança no comunismo já havia se exting uido. Em 1989, a su- (i llemh.m Klht'lleck. • Einle1runµ •. ln: [31ll'1"i'<rn. Orw: Cu!'sZE, \X/erner:
Ko,F1 LFL K . llcmh.m (Org).). Cucl11r/11,· Cru11,lb1y_n//1 H1.,·1,>nsclie., L ·.u/.:111;
perposição do socialismo de Estado e do comunismo gerou uma
.:::111 pol,u.,, /c-.,0.:::1,dm ,\pr,,c/11 111 De 11clili1111I. ':>rurrgarr: Klert- CúttJ. 1972. p.
narrativa que subsum1·a 1 . , . d 1 - . d X\'. 'í , ·.. '- . 1. V er r,1mlJL;111 G:1bnel Morzkin, .. C)n rhe N L,m1n or· H1,ronc.1l
. . a mrona a revo uçao na cacegona e
torahransmo. (l )1,)rnnnn uir,·: llt'111h.1rr Ko)elleck·s Cmmrucnon l)t' rhe '.:iam:'lze1t ,_ em
Reinhart Koselleck d fi . C 1111nh1a1,>11., 1, 1 t/11 / /i,101 }' o/ C,11cc1;1.- l (n. 2. 2(Hl5). pp. 1-+5-5~. Sobre ,l
e nm como Saaelz eít - «um cempo enwrgencia Lle um novo concc1ro de hMón.\. cf Kmelleck, , Gc5ch1chre.
suspenso», tempo de passacrem , d H1\r,ine. t'lll Cnch1c/11l11-/1e Cm11dh1:<J.11/}c. np. c1r. . pp. 393- 7 17. v. 2.
b - o peno o entre a crise do
32
33

lares do vocabulário neoliberal - se tornar;im os fundan


• • , 1entos
• , •• • e

«naturais >> das sociedades pos- rotal1ra1 ias. C olon1zarain e espe ranças . Mas isso não se deu nas chamadac; revo luçõec; de
. nossa
imamnação e moldaram um novo hah,tus antropo lógico r ve lud o . Pelo contrári o: elas frmcraram os c;o nhm e parali saram a
t, ' (azen-
do com gue os novos valores de uma emergente «conduta de produção cultural. Tão logo foi eleito prec; idente da Re públ ica

vida » [LcbellSfi.ilmmo], se comparados ao velho ascetismo Tcheca, um brilhante e nsaísta e escritor como Vaclav Havei -;e
· ~ pro-
testanre de uma burauesia eticamente orientada - conr tornou a cópia pálida, triste. de um estadista 0 C1dental qualq uer.
t, n0 nne a
Os escritores da Alemanha Oriental eram extremam e nte c ria-
clássica descrição feira por Max Weber-, pareçam um vestí io
tivos e perspicazes quando , mesmo su focados pelo aparato de
g
arqueológico.7 Essa é a moldura política e epistêmica do novo
controle da Stasi , criavam romances alegóricos que ec;timulavam
século gue o fim da Guerra Fria iniciou .
a arte de ler nas entre linhas . Nada comparável a isso surg-iu após
Em 1989. as revoluções de veludo pareciam remontar a
a guinada, o Wende. Na Polô nia, a virada de 1989 e ngendrou
1789, passando por cima de dois séculos de luta por socialismo.
uma onda nacionalista, e as mortes de Jack Kuron e Krizcof
Liberdade e representação política eram seus únicos J10 nzon-
·
Kieslowski puseram fim a um período de criação e crítica cultu-
ces, em consonáncia com um modelo de liberalismo cl,ass1co:· ral. Em vez de se projetarem no futuro , essas revoluções criaram
1789
. _ em oposição
. a 1793 e a 1917' ou mesmo 1776 em opo- sociedades obcecadas pelo passado. Por roda a Europa Central
s1çao a 1789 (liberdade contra igualdade) . 8 Historicamente, re- museus e instituições públicas foram erigidos para resgatar o
voluçõ.es se~~r~ foram usinas de utopias; elas não só forjavam passado nacional seq uestrado pelo comunismo soviético.
novos imagmanos e novas ideias, como afloravam expectativas Mais recentemente , as revoluções árabes de 2011 logo atin-
giram o mesmo impasse. Antes que as g uerras civis fratricidas na
Líbia e na Síria as interrompessem, elas depuse ram dois ditado-
-: _ ~ ;m,J-.t Jescrm va d ,
;):.,_ •.i -j - -J---~~
res odiados na Tunísia e no Egito, porém não souberam como
(,j - -ic:r '. l . . es~c1 muc anç:a 11sronca. ver Pierre J)ardor e'
. u J . t"m
í r n· , . \
ne
\n · ' 11 ' 1)' o/ 111 IA • 11
J ' v,ior r, : U 11 !li( f,;eol ,ha,i/ ,\oClt'i)' lidar com a falta deles . Suas memórias eram constitu ídas de fra-
- ..,_e. <..r· _71 1-11

cassos: socialismo, pan- arabismo , terceiro mundismo , além de


\ ::,-t' ,,., ,. d-,i m1c,a do por F. . . ,-
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! •1rr, /< . J/ . N' ,ançois -urer em fnrnnrn i11 1, 1/ic fundamentalismo islâmico (o que não inspirava as gerações mais
'' 1 n,. · ut.t York· C 3111 b11-·d r ,
b1d .. f , ;, ~ ,I . _· ge Univer'.) iry Press, l9 íí l) lEd.
. 1
1 \llOiil•IO 1-ruM rt T· j d novas) . Com uma auto-organização admirável , cais re voluções
C1111 b·n. \ d ) p" /, ;, , · iac · e Luiz M:iryues e Manha
1 e Tcrr1 19>-i tJj
1<, u/1 ,! ,, . Tlit· u '· az . ·' · VL·J. ~rcven Kapbn , em h,n '//'t li mostraram completa falta de liderança e pareciam d esorientadas
L' 11 /,., (/I · f-t ,11rf j-, 1 71 1
D'\ eh r, f!rt ,, i r)S)r>,. ' u ·, 17S9- /()d9 (l eh aca : Cornell em termos estratégicos, mas se us limites n ão escavam em seus
34 • 35

'd . . corcas sociais: eram limites de nossa ep


, ..
11 eres ou mesmo nas n , ' 0

1
- ,'mentas
ca. Essas revo uçoes e mO\1 de massas carreo-am
0 0 f:
ardo elas reivindicavam reconhecimento das diferenças de gênero e
dos fracassos das revoluções do século xx, um enorme peso gu igualdade de direitos; no âmbito da esquerda, houve uma crítica
, . e
paralisou qualquer imaginação L_irop~ca. ao paradigma de virilidade que moldou uma concepção militar
Essa transformação histórica mev1tavelmente afetou o ferni . . de revolução herdada do socialismo do século x1x e reforçada
·
rusmo. Na~o obstante O feminismo revolucionário ter guesr·tona . . pelos bolcheviques durante a guerra civil russa; entre as mulhe-
do vários pressuposros do socialismo clássico - em especial sua res, criou-se uma nova consciência subjetiva. É esse ensemble de
idenri6cacão
, implícita do universalismo com uma visão e u~
experiências e práticas que faz falta desde o fim da revolução fe -
capacidade de agir (aiency) masculina - . cais pressupostos eOll} .... minista. O colapso comunista foi acompanhado - ou melhor,
partilhavam a ideia de uma emancipação projetada para O futuro. precedido - do esgotamento das lutas feministas e das utopias,
O feminismo enfatizava um conceito de revolução calcado na do qual derivou uma peculiar espécie de melancolia. Como a
liberação global que transcendia gualguer luta de classe, visando esquerda, e dentro dela, o feminismo lamentou sua perda, uma
uma rotai reconfiguração das relações entre os g êneros. Ele rede- perda que combina o fim do sonho de um futuro liberado e as
6niu o comunismo como uma sociedade de iguais em gue nao - experiências já encerradas de uma transformação prática. Na
era pós-Guerra Fria, as democracias liberais e as sociedades de
a~enas as classes seriam abolidas, mas também os privilégios de
mercado proclamam a vitória do feminismo com a realização da
genero, de modo gue a igualdade implicava o reconhecimento
igualdade jurídica e a conquista da autodeterminação individual
de diferenças. Seu imaginário utópico anunciava um mundo em
(a saga da busi11ess 1110111en) . O fim das utopias feministas engen-
que o ~arencesc~, a divisão sexual de trabalho e a relação públi-
drou uma variedade de «políticas de identidade» regressivas e. na
co e pnvado senam reconfigurados por completo. No alvorecer universidade, o recrudescimento do estudo de gênero. Não obs-
do Feminismo, revolução • 1· b, . .
soCJa 15tª tam em s1gn1.ficava revolução tante suas evidentes conquistas acadêmicas. sexo e raça já não são
sexual, hm da alienaç·ão .l . ~ . .
'd · corpora e real1zaçao de dese10s repn- vistos como marcas de uma opressão histórica (conn~ a qual
1111 os o . 1ismo 0
· sona · ni'ío r J
l · · ' epresenrava apenas a mudança radi- feminismo havia lutado) e se tornaram categ0tias atemporais. hi-
ca na estrutura social, mas l, . ~ .
posc.íricas - Rosi Braidorri as define 11merafisicas)) - ." adaptadas
.
de viver As J tam )etn a cnaçao de novas maneiras
e . . ,
. . utas rem1111sn . . . d
como ,, . 's eram mu1r:1s vezes expenmenra :is
. praticas emancipatóri· " . -
h<rnrnvarn ,L gue anrecipavam o tucuro e pre-
n ' uma cornunidad l"b . . .
e I errada. Na sooedade cap1raltsr:i.
37
36

a um reconhecimento «comoditizado» da alreridade do gênero. gico evento gue, durante uma sangrenta guerra civil, criou uma
Como diz Wendy Brown. o gênero se tornou «algo gue se pode ditadura autoritária logo transformada numa forma de totalitaris-
moldar, multiplicar, problematizar. ressignificar. metamorfosear, mo. Ao mesmo tempo, ao acender uma chama de esperança de
ridicularizar, resistir. imitar, regular. . . mas não emancipar». 10 emancipação, a Revolução Russa mobilizou milhões de homens e
mulheres ao redor do mundo. A trajetória do comunismo soviéti-
co - sua ascensão, seu apogeu ao fim da Segunda Guerra Mundial
O FIM DAS UTOPIAS e seu declínio - moldou profundamente a história do século xx.
O século XXI, por sua vez, começa com o colapso dessa utopia. 12
Portanto, o século xx, nasce como um tempo moldado por um François Furet elaborou essa conclusão no final de O pas-
eclipse geral das utopias. Essa é uma diferença profunda em relação sado de uma ilusão, com uma «resignação» ao capitalismo que
aos dois séculos anteriores. Na entrada do século x1x, a Revolução muitos observadores se regozijaram em enfatizar: «A ideia de

Francesa definiu o horizonte de uma nova era em que política, outra sociedade se tornou quase impossível de ser concebida,
e hoje ninguém oferece qualquer pisca ou consegue formular
cultura e sociedade foram profundamente transformadas. O ano
minimamente um novo conceito. E aqui estamos, condenados
de 1789 criou um novo conceito de revolução - não mais uma
a viver no mundo como ele é». 13 Embora não compartilhasse a
rotação, conforme seu conceito astronômico original, e sim uma
satisfação do teórico gaulês, o filósofo marxista Frederic Jameson
ruptura e uma inovação radical - 11 e lançou as bases para o adven-
formulou um diagnóstico semelhante, observando que é mais
to do socialismo, que se desenvolveu com o avanço da sociedade
faci l imaginar o fim do mundo do que O fim do capitalismo. 1-1
industrial. Ao demolir a ordem dinástica europeia - o «persisten-
re» Antigo Regime - , a Primeira Guerra Mundial inaugurou 0
século xx ' mas de se u catac1ismo
· cam b em
, se ongmou
• • a Revo1uça-o - - -- - - - - -
i' M · 1· . 11 1 1· - - -- - --
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Russa. Ourubro de 1917 foi logo recebido como um grande e rrá- ,Hodm, f l url1I• Ne " , 1-l·.1ven: Y,1Ie Ll11 1ver,1rv · Press. 2 il(l(). ·' ·

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39

A utopia de um modelo diferente de sociedade é vista c


. . . . . . orno UllJ
pengoso deseJO de coraliransmo. Resumindo, a virada do séc O filósofo alemão Ernst Bloch distinguia os quiméricos so-
._ d . , . uJo
coincidiu com uma trans1çao o «pnnc1p10 esperança» ar nhos prometeicos que assombram a imaginação de sociedades
«princípio responsa b1·1·d
1 a e».
· , · esperança» · p . ª 0
d 15 O «prmc1p10 históricas impossibilitadas de realizá- los (as utopias abstratas e
inspirou
as lutas do século passado, de Petrogrado em 191 7 a M , compensatórias, como as máquinas voadoras imaginadas duran-
anagua
em 1979, passando por Barcelona em 1936 e Paris e p te o Renascimento) das esperanças antecipatórias que inspiram
raga ellJ
1968. Também assombrou momentos terríveis e encor · uma transformação revolucionária do presente (as utopias con-
ªJou mo-
vimentos de resistência ao nazismo. O «princípio res .. cretas, como o socialismo do século xx) . 17 Hoje constatamos o
ponsa 61Ji_
dade» surgiu quando o futuro ficou turvo, guando d desaparecimento daqueles e a metamorfose destas. De um lado,
nos emas
conta de que as revoluções geraram monstros rerrív · sob diferentes formatos , da ficção científica aos estudos ecoló-
. . . eis, guando a
ecologia nos consc1ennzou dos perigos gue ameaç l gicos, as distopias de um futuro de pesadelo, feito de catástrofe
amo p aneta e
começamos a pensar que tipo de mundo guerem d . , . ambiental, substituíram o sonho de uma humanidade livre -
_ os e1xa1 para as
geraço~s futuras. Com base no mesmo par conceitua] elaborado visto como uma perigosa miragem da era do totalitarismo - e
por Remharr Koselleck, poderíamos formular esse d· , . confinaram a imaginação social dentro dos limites estreitos do
d · 1agnost1co
presente. De outro, as utopias concretas de uma emancipação
a segumre maneira: o comunismo não e' .
. _ ma1s um ponto de
mterseçao entre «um espa o d , . A • coletiva se transformaram em pulsões individuais prisioneiras
. ç e expenenc1a» e um «horizonte de
expecranvas». tó A expectativa d do mercado. Após ter dispensado «a corrente quente » da eman-
eia tomou e d esapareceu , enquanto a experiên- cipação coletiva, o neoliberalismo introduziu a «corrente fria»
a rorma e um monte de rumas.
,
d~ razão econômica; as utopias são destruídas por sua prívatiza-
çao em um mundo rei ficado . 18
1-; E
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. .
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U11 1vcrnry Pre~s, 201 J . PP· 1_20 _
()[ I ( li 1' l I l'
º/J'"· 1) ur 11am : 1)uk e
. • 11· rir .. PP- 2.=iK - 9.
40 41

Segundo Koselleck, é o presente qu e co nfere signi.hcado ao


,
do mercado de capitais, uma epoca d e pe rm.anente aceleração -
passado. Ao mesmo tempo, é o passado gu e oferece aos atores
K 11 k _ sem uma «es-
da história um arsenal de experiências com as guais eles poden, tornando emprestado as palavras d e ose ec . . 1
, .
trutura prognóstica».20 Ha vmte anos, a qu eda do soCiahsmo rea
formular as próprias expectativas. Em outras palavras, passado e
. - , · e por um momento
futuro interagem, unidos por um liame simbiótico. Em vez de paralisou e censurou a imagmaçao ucopica, h
, · d
suscitou novas visões escato log1cas o capitalismo como « o-
dois continentes rigorosamente separados, estão conectados por
rizonte insuperável» das sociedades humanas. Ess_a fase acabou ,
uma relação dinâmica e criativa. No início do século xx,, essa
.
mas não surgtram • Assim ' «present1smo» se torna
novas utopias.
dialética do tempo histórico parece estar com os dias contados. As
um tempo suspenso entre um passado que não se pode superar
utopias do século passado sumiram . deixando um presente carre-
~ quer passar»21
e um futuro negado, entre um «passa d o que nao
gado de memórias, mas incapaz de se pr~jetar no futuro . Não há
e
e um ruturo qu e na~o pode ser inventado ou previsto (exceto em
um «horizonte de expectativa » visível. A utopia parece ser uma
termos de catástrofe) .
categoria do passado - um futuro imaginado em um tempo gue
Em tempos recentes, «presentismo» se tornou, longe de um
já se foi - porque já não pertence ao presente de nossas socieda-
diagnóstico histórico, uma espécie de manifesto para alg~ms
des assombradas pelo passado. A própria histó ria parece ser uma
pensadores de esquerda. Um deles é o historiador da arte (antigo
paisagem de ru ínas, um legado vivo de dor e sofrimento.
situacionista) T. J. Clark, que , alegando certo nieczscheanismo
Alguns historiadores, como François Harrog, caracterizam 0 ou reformismo desiludido, propõe uma política realista que re-
regime de historicidade gue emergiu nos anos 1990 como pre- nunciaria a qualquer utopia. «N ão haverá futuro », ele asseve-
sentúmo: um presente diluído e expandido que absorve e dissol- ra, «apenas um presente em que a esquerda (sempre aguerrida e
ve em si tanto o passado guamo o futuro. O «presentismo» tem 19
marginalizada, sempre - orgulhosamente - algo do passado) se
uma dupla dimensão. Por um lado, é o passado reHicado por esforça para juntar 'o material para a sociedade' que Nietzsche
uma indústria cultural gue destrói toda experiência transmitida; pensava haver desaparecido da face da Terra. E isso não é qu ie-
por outro, é o futuro abolido pela era do neoliberalismo: não a
1
< rirania dos relógios» descrita por Nobert Elias, mas a ditadura
2() Kl)\ell t>ck (< H isrory, H1sro n es. and Formal Ti me Scructu res,, . F1 1/111 t .'
/ >,1s f , l)p. cir.. p. 9:') .
J9 frJn1\)h
1 1-- h rr),r R 1/ - -- - I 2 1_ De :icordo com a fa rnosa for mula cun hada por Ern ~r N oite duranrc
, . l _ ' l ~- (/il//c ·' (, 11.•ftl{'(/{t . I'r/,i /1{/Sfll t' ('/ t x p l'rtC//ff:;' / li
i 111!'. l -1 1h: \ e111l. .:U113. pp. 119-27. a His1or1 L ·rslrl'il alemã dos an,)S l 9t1 0.
43
42

. _ para a política - uma esquerda que P d


rismo, mas msrruçoes . . 0 e . d . 1 havia dominado o
frenre ».22 D1anre de tal assertiva, quase d . o modelo do capitalismo m ustna que 1 . ,
encarar o mun d de
e
° . .
. . nrre O reconhecimento da situação obie .
e, sep , - 6 Ih flexível , móve e insta-
século xx. A introduçao de um tra a o . . . eti ão
saparece a rronrena e . . , J tiva
. d ·fu - de modelos ind1v1dua1s de comp ç
. _ , d ta como desrmo mexoravel da esguerd vel , assim comoª i sao d' . . d ociabilidade
e a res1gnaçao a erro . . a. . fi tra ic1onais e s
, endrou um novo t1po de desilusão. Ap, entre assalariados, mmou ormas d - a
osecu 1o xx1 eng . os 0 l"d riedade. O advento de novas formas de pro uçao e
mundo» anunciado por Max Weber há th •
e so 1 a f' b • enorme
«desencanto com O ·• 1a1s
mudança do antigo sistema de grandes a ncas com A -
, uando ele definiu a modernidade como u
de um secu1o, 9 llla concentração de força de trabalho teve importantes cons~~uenl
. da pela razão instrumental , testemunhamos
era desumamza u111 . por um lado afetou intensamente a esquerda crad1c1ona ,
trazido pelo fracasso de suas alternativas E oas: ' · 1
novo desenca nto · sse colocando em xeque sua identidade política e soCia _; por o~tr~,
. • tórico resulta de uma dialética paralisada: em vez d
impasse 111s ~ . . _ a desarticulou o sistema de memória da esquerda, cuja contmu~-
negação da negação - a rranscendenc1a soCiahsta do capitalis- dade fora irremediavelmente rompida. A esquerda europeia
mo conforme a ideia hegeliana (e marxiana) de A14l1ebung - , abandonou o palco e se retirou para os bastidores.
assistimos à intensificação e à extensão do capitalismo por meio Ao mesmo tempo, a década de 1990 foi marcada pela crise do
do extermínio de seus inimigos. A esperança blochiana do por- tradicional «sistema de partidos». Partidos políticos de massa -
vir do ser humano - o «ainda não» [noclt 11íc'11] - é abandonada que sempre foram o modelo dominante da vida política após a
23
em favor de um eterno presente. Como se sabe, o fracasso do Segunda Guerra Mundial e cujo paradigma era justamente os par-
socialismo real não é a única fonte dessa mudança histórica. A tidos de esquerda (tanto comunistas quanto social-democratas) -
utopia socialista era indissociável da memória dos trabalhado- desapareceram ou entraram em declínio. Compreendendo cen-
1
res, uma memória gue desapareceu ao longo da última década. tenas de milhares, algumas vezes até mesmo milhões de membros
A queda do comunismo coincidiu com o fim do fordismo , ou profundamente arraigados nas sociedades civis, eles haviam sido
um vetor fundamental na formação e na transmissão de uma
memória política coletiva. Os novos «partidos-ônibus» que os
::1::1_ T. J. Ct1rk. • . for :i Ll'fr w1rh no Furure ». em Nl'11 ' LC'ji l<c1•u·11• substituíram são máquinas eleitorais sem fortes identidades polí-
7
-+ (ltll2 ). p. ?S. scguidn rela 1nd,~pem:ível crír1ca de Susan · Warkins. ticas. Socialmente em frangalhos, a memória de classe desapare-
JJn,)cnr, ,m ; .'\ Reply· ro T. /. Clark . em .\'ui' Le/i l<.c1 i('II ' 7-+ (.:201.:2), PP·
1
7 7- 11 1_?, . ceu num contexto onde os trabalhadores haviam perdido qual-
quer visibilidade pública; ela se tornou uma espécie de memó ria
Thomp~on. op. rn .. I'· l :i.
44 ; @cdt tw t

45
1
11 11:irr:ma". n u seja. uma mc,núri:i velada (as,im como a n1r, , .
. llo rin
dn l·ln loc u1 sro 110 pús- Sc~1111cfa ( ;11crr:1). e :1 l'StJu crda e ur0 . capítul o reservado à m e m ó ria do continente, ao qual deu
' pe,a 11111

pl·rdt·11 t:lllro sua base snci:il quanro su:1 c11l rur:1. Ao frac·iss . .. o d() 11111 títul o emblem ático: «A casa dos m o rtos». 25
St)cialisllln n.-:il sc1ru111
~
-sc um:i ot<.·nsi\':1 idt•olúl2;1c1
,
dC' co,i ~·r 1.Va- Essa e mpatia com as vítimas ilumina o sécul o xx com urn a
l h)rt SlllO . 11:Jt) uni balanço csrr:1rt;gin) cfa csqucrd:i. lu z nova , introduzindo na histó ria um personagem que, não
A obsessàt) pdo passado lJlll' vem lllnld:mdo n osso re mpo re- o bstante sua o niprese nça, sempre pe rm aneceu nas sombras.
sul r:i dl) cdipsr d:1s u rnpi:1, : é inev,r:ível l) lll' um mundo sem Conseq ue nte m e nte, o passado se assemelha à paisagem con-
llíl)pias :1c1bc nl/1:mdl) para rr:ís. A emcrge nci:i da m e m ória templada pelo Anj o da Histó ria de Be nj ami n: um am o nto ado
110
csp:lÇt) ptíblin) d:is sociedadt'S l)Cidenrais é conseq uê n cia des- de ru ínas que cresce até o céu . Po ré m, o novo Zcit)!.eist é o exato

s:1 mud:111ç:1. Enrr:imns 110 século xx1 sem nenlu1ma revolução. o posro do messianismo judaico-alemão d o filósofo: não existe
um ,<tempo-agora» Uctz tzcit] ressoando n o passado pa ra realizar
scm :1 rn111:1d:1 d:1 l:3:isrillha ou do Palinn de In vern o . m as rive-
as esperanças dos d e rrotados e garantir sua red e nção.~º A m emó-
llh)S um choque. um ,·r.,-,11~ 110 Onze de Sere mbro
ht)fft'THfo
' ria d o g ulag apagou a da revolução; a memó ria d o H o locausto
Ct)lll l)S :1r:1ques :b Tt)m:'S Geme:1.s e ,tn Pentágono. disseminan-
suplantou a do antifascismo; a m e m ó ria da escravidão e clipsou
dt) l) /1t)fft)r. 11:'in :i esperanp. Desprov ido de s e u horizonre de
a d o anticolonialismo: a recordação das vítimas parece n ão p o -
expecr:1ri,·a. t' século xx, nos aparece em retrospecto co m o uma
de r coexistir com a lembrança d e suas esperanças, de suas lu-
períodl) de guerras e gen()cídios. Uma figura o urrora discrera
ras passadas, de suas conquistas e derrotas. V ários observadores
e modesr:1 :1gora esrá sob os holofores: a l'Ítíma.2 ~ N a maioria esc reve ram , a ntes m esm o da d écad a d e 1990 , que, mais uma
d:is ,·ezes de fonna anô nima e silenciosa, as víti mas invadem o vez, vivíamos «a m eia-noite d o século ». Segundo o historiado r
pódio e domin;u11 nossa visão d:1 hisróri:1. Graças à influência eà
qualidade de suas obras lirerárias. as vícim as dos campos de con-
:2r; T,lll y jlldr. / >,1.,111 ·.ir I H 1., 1,,1 )'o/ / · 11 ,,,1, \111i IV-h l trndrc>,. Pl' ngulll
cenrr.1r~10 nazisr~is e dos gulags sraliniscas se transformaram nos
)11113. 1111 . xn:2 :u . lFd. b1.1s . n ,, ~ 11 l 111 1 /11, , ,,,-, , /.i L1t1<•t1" ,lc·.,,I< 1v--1_::,.
grandes ícones desce século de vítim as. Captando esse Zl'itgeist, 11.1d. dt' ,l m é llubemi (.)'\hc:1. \,1<1 il,llllo. ( \ 1111p.111h1.1 d.1, Lcn.1,. :2(lll XI.
Tony Judr concluiu seu afresco da Europa do pós-guerra com 1
r, \V.ilrl'1 lk11_1,1 m 111 , , (. )11 rlw (. ·rnH:q ir ut HN,111 ln : l:11 AN L>.
l lm\'.11d. _1 1NN ING,. M1 ch.1l·l W . (Oq,..;,,) . .\'t'l,·<1c,I l l 11 1111~ ,. C.unb11dge:
l·l.m .mi U111,·l·r,1r, t>re,, 2tl0.1-<i. -l \'. \' 1. pp. YJ 2 1 N3 . íE,l. hr::i~ ..
1t'\l'' "1h rc n cn11t e1rn de 111,r,ln.1>· ln: _ __ . Uh,,,~, ,1t,//11,/.i.,. Tr.1d. de
\ , · -\111~, rr, \\ ·,•\ 1 )rL T' l · ,1 ,,f 1/,1 11 u11 (Jrl1.1u C't>rndl
\ c 1g1t1 P:lll lú ll\l11.11H·r X cri. \:w P.1uln Bra~d1l·n,c. :2U t.:l.
l 'l'\ t'l'>lt\ Pit•,,. ,2 101
:na-, §;
46 47

mexicano Adolfo Gilly, a ofensiva neoliberal renrou «erradicar a


Em sua obra póstuma History: T/,c Last Thinxs Before the Last
ideia do socialismo da menre e dos sonhos dos seres humanos•.1,
[H isrória: As pen ú\cimas coisas] (1969), Sigfried Kracau~r p~o-
A virada de J989 produziu um embare enrre hisrória e llle-
p()S a metáfora do exílio para descrever a trajetória_ do h1stona-
mória, fundindo dois conceitos que os esrudiosos. de Maurice
d0r. Para ele, o historiador é, assim como um exilado ou um
Halbwachs a Paul Ricoeur e Aleida Assmann. separar.i. 111 rigo- - · /.28 Ele se encon-
<<estranho)) [Fre11ulc], uma fi gura extratemtona
rosamente ao longo do século xx. <(Memó ria hisrórica )> existe: é tra dividido entre dois mundos: aquele em que vive e aquele
a memória de um passado que parece encerrado em dehnitivo e que tenta explorar. Isso porque, apesar de seus esforços para ter
que já enrrou para a hisrória. Em ourras pabn-as. ela resuka do acesso ao universo mental dos atores do passado, suas ferramen-
choque enrre memória e história que molda nossa e:xisrência. uma ras analíticas e categorias hermenêuticas são formuladas em seu
bifurcação enrre diferences temporalidades. o espelho de um pas- próprio tempo. Esse hiato temporal possibilita canto armadilhas
sado que, enquanto conrinu:i a viver em nossa menre. já esd ar- - em primeiro lugar. o anacronismo - quanto vantagens, uma
quivado. A hisrória escrir:i do século xx se equilibra enrre as duas vez que permite uma explicação retrospectiva livre das amarras
remporalidades. Por um lado, seus arores lograram - na condição culturais, políticas e também psicológicas pertencentes ao con-
de resremu11has - um status de fonre para os hisroriadores; por cexco em que os sujeitos da história agem. É justo desse hiato que
ourro, os esrudiosos se debrnçaram sobre quesrões que vira e mexe as narrativas e representações históricas do passado se originam.
inrerrogam as experiências gue as resremunhas viveram, desesta- A metáfora do exílio é sem sombra de dúvida frutífera - o exílio
bilizando o status gue lhes foi conterido. Livros como A rm dos conrinua sendo uma das experiências mais fascinantes da história
· • do m·l'"'1·
1·.rtfl'1110,· •, .,Se · HObS6-,l\Vm, e () J)f13S,l dO t /t' U111f1 /·11/SflO,
·ra EOC - inrelecrual moderna-, porém, hoje é preciso que seja nuançada.
do conservador

F1"".. 11 ç.ois
· Furer. sao
- em mu1ros , das,
· aspectos :mnpo Historiadores do século xx - em especial os historiadores de es-
mas suas inre'11re""ço·
"' ~. , . 1o xx sao
,,5 do secu - e1va
. das de recordaçoes
- querda que investigam a história do comunismo e da revolução

· nierem a, obra um tom aurobiogránco.


qut1 muit:L, rezes co ( e - são «exilados)) e «resremunhas», uma vez que é profundo seu

)~ \ 1q!; lll tl l K1 .1t.1 II L' I /111 1,,, y /'l1t 1 .i , t J'/1111~, B,J,,,, ti,, / "·'' (.)l i.!,
,ll' 11.1111 ( hk . 11 1, l l\l l' ll.-1 11111 \l l' IIII\ iv\.11 ku, \\ IL' l\\' t l l)l):-, \'11 ~) 1 v ~- 1
1.1111lw 111 lo l'U I :-!, \1 111111L· I I lil· \11 .111 µ.L'I ' L' lll J'/1, ..,,,, 1 ,/, ,~ )' ,,, ( , , ,,, ~ \1111111, I
(( l1µ ,!,· I< 11 Wolt! . N,,, 1 Y 111k l t 1'1' l 11L'\\, [ Lh ll) . l'I' [tl2 X
48
49

envolvimento com o objeto de seus es tudos. Eles não expl


. • . º~rn
um passado remoro e desconhecido, e o desa fi o está J.usto e as revoltas antiburocráticas nos países que «na verdade viviam
em se
distanciar dos eventos recentes de seu passado uma expe .· ~ . o socialismo de faro», e as revoluções anti- imperialistas que se
' · 11encia
gue muitos deles viveram e que ainda lh es assombra a vida . Sua espalharam pelo Terceiro Mundo.30 Entre a Revolução C ubana
relação empática com os arares do passado corre o pern1 ,, (1959) e o fim da guerra no Vietnã (1975), essa visão parecia
nnente
risco de ser perturbada por inesperados mome ntos d e «"r e
ser, mais que um esquema abstrato ou doutrinador, uma descri-
< ansre-
ção objetiva da realidade. O Maio de 68 foi o clímax de uma
rência» - no sentido psicanalítico do termo - gue extrapolam
onda de movimentos radicais que chacoalhou muitos países na
os limites do trabalho, despertando experiências e a subjetivida-
Europa Ocidental, desde o «outono quente» italiano, em 1969,
de do pesguisador. 21) Em outras palavras, vivemos num tempo
até a Revolução dos Cravos em Portugal, em 1974, e o fim do
que os historiadores escrevem a história da m e m ó ria, enguanro
fra nquismo na Espanha, em 1975. Na Tchecoslováquia, a pri-
as sociedades civis seguem com a memó ria ainda viva de um mavera de Praga (1968) criou uma fissura visível no interior do
passado histórico. Porranto, a exploração do multiforme planeta poder soviético, ameaçando contagiar outros países «realmente
da cu/rura de esquerda leva a um exercício de crítica melancóli- socialistas». N a América Latina, muitos movimentos de guerri-
ca, num precário equilíbrio entre história e memória. lhas se seguiram - a maioria com consequências trágicas - à ex-
periência cubana, porém, até o golpe do general chileno Augusto
Pinochet, em 1973, o socialismo era uma opção para o amanhã,
TRÊS SETORES DA REVOLUÇÃO não se projetava num futuro vago e remoto. Na Ásia, os viet-
congues infligiram uma derrota histórica ao domínio imperial

Uma visão corrente da esquerda radical das décadas de 1960 e americano. Um sentimento de crescente convergência entre es-
1970 descrevia a revolução mundial como um processo espraiado sas experiências de revolta, algo como uma sintonia entre os «três
setores da revolução mundial», plasmou a fundo a juventude de
em três «secares>> distintos mas corre/aros. Um pensador marxisra
então, transformando a ideia e a prática de revolução. Talvez pela
de então, 0 econornisra belga Ernsr Mande/, examinou as /iga-
çôes dia/éricas en rre· os movime • 1iscas
· ntos anncap1ra
• · d o o c1c
· len ce'
."\11 L.1 11 \ r M .1 11Lk l lfrl'ol1111 ,,11o1ry ,\ /, 11·., •1, 111 T,1il.i)'· Lond rl',: N C'\\ LC'fr
Book , , 1<J7<). [ !:d. h r.1,.: () 111, 11 \ , ~ 111,, n ,,,,/ Ili 10 11,11I <' ,1/ 11<1I T ra LI. J é \,V .d tl'ns, r
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l!tr/ ,\fc // /() /,)' )
I /111)
n. /. I (Jt) 2 PP· 3 <> =, =,
i ês 51

- 50

. . . na história tenha surgido uma cultura popula l


primeira vez . ,. r g ob mo norte- americano era corriqueira no movimento antiguer-
. I 'm de ideologias e textos polmcos, moldou 111 ai
que, muito a e ro a ra." Mobilizou-se a memória para lutar contra os verdugos do
, · as filmes penteados e roupas. N a Itália urna ti,
ces, mus1c , , . . ' ~
cah<tÇao presente, não para homenagear as vítimas do passado. Em sua
do movimento Lotta Connnua, escrita em 1971 por Pino M .
intervenção, Sartre qualificou as táticas antiguerrilha como um
a «L'ora del fucile» [A hora do fuzil]. Baseada na l asi,
e11amav tne od· , genocídio coral », e Günrher Anders, um filósofo judeu que ha-
de ,Eve ofDesrcuccion», de P. F. Sloan e Barry Mcguire (l 9
·C 1 ,· 65)
'ª via se exilado nos Escadas Unidos, propôs que os julgamentos de
essa famosa canção pacmsta cone amava a msurreição e descrev·1' Nuremberg fossem transferidos para a Cracóvia, local carregado
· ' · que estava «exp1o d'm dO ' de A ngola,ª
um mun dO revo1uc10nano
I I a de simbolismo." No Ocidente, assim como no Terceiro Mundo,
Pa Iestina». Apos enumerar os paises que estavam testemunl memórias de guerra seriam então integradas ao engajamento
.LI A ,. L . 1ando
revo lras - as guern us na menca arma, as greves na Polôn· político do presente. Bem observou Michael Rorhberg, citan-
. . ~
e as msurre1çoes .
nos guetos americanos - , a canção fi na1IZava
· 'ª do Aimé Césaire: ocorreu uma espécie de «efeito bumerangue»
com uma pergunta retórica: «E então: do que mais voce" precisa . (un choc en retour). 34 Na Europa, a luta contra o imperialismo se
companheiro, para entender que já soou a hora do fuzil? ».31 ' alinhou à continuidade dos movimentos de resistência; no Sul, o
Durantes esses «anos de briga de rua» de verniz uto' PICO,
· a me-
mória não era um objeto de culto _ ela era incorp ora da a essas
.luras. Auschwitz
. desempenhou
. . um papel· signi•fic ae·1vo no enga- 32_ Jean - Paul Sartre: Arl ecrc El kb 1m- Sarcrc . ( ) 11 Cc11oci1 Íc- .--1 S111t1111 ,ir y
o/ r!H' C:11idc11Cl' //l!I Í riu· j 111('< 11 11·111s o( thc !11ra 11a 11011,il f L1r Cmuc_, Tnb 1,11ul.
Jamento anticolomal de muitos ativistas e intelectua1·s í'.rranceses. lfo,tnn : Beacn n. 1%8 : J oh n 1)utFer (Org .) . .-l(t1 111.sl rl,c C rtllll o/ Stfcwe:
Durante a Guerra do Vietnã, os julgamentos de Nuremberg se /Jro((w/i11ys o( rl,c k 11.,.,cl !111t r11,11 1011,,I l! t1r C 11111cs Tn lm11!1I. N l)\ a York :
converteram
. em modelo para o T n'buna1 Russel , que em 1967 Llerrrand Ru,,el Peacc Frn1ncLuion . l 96~ .
33_ Ver lkrtho l Mnlden, «Ge no zid 111 V1etnam : 1908 ai, Schüsse lere ia nr -;
reuniu em Estocolmo muitos. mte. 1ectua1s. proeminentes - de
in Jer Gbbal isierung de<; Hl)locw sc- cliskur,c~". em flí ll ll'l' ll dc J')o8> t:·, 11
Jean-Paul
W. Sartre a Isaac
· Deutc11er, de Noam Chomsky a Peter Johr 1111s gloh,t~(l'scl,iclt1licl1N Pl'r.,pcklll'l' (O rg . de Jens Ka-;rn c r e D av 1LI
e1ss - no intuito de denu nCiar
. os cnmes
. Mayer. Viena: Mandclbaurn . 2Utl 8), pp . SJ - 97 .
de guerra ameri-
eanos . A com paraçao
~ entre a violência naz1'sta e o imperia1is-
3-1 _ Michael Roch~erg. 1'vl 11 /i id1ra ri1)11,,I ,\l1·111ory R.1111 1,11bc ,1111; i!it
/-!o/01111 1,1 111 rlll'. A.,ul' o/ I )c1,)/t)11 i-"" 11/ 1·cJ 11 . •Sc·11
, 1';)1·lJ
1, " t1 t-.L,rL
1.. J'- r ,, . . 1U nt·VL' rq·r v .1) rt:'ss .
2Utl9. cap . 3: A1mé C ésa irc, [)i_, (0 111Sl' 0 11 C olo 11i,i/ 1s 111 . N ov:i y (wk : [\~ o nr hl,
I,cv1cw Pre~,. 2U()() , [Ed. bras.: I )isrn rsu ,c>hrc () ( ti! OlllLl l 1'11
l, . /(1 , -rl"llJ
, .1. l j,,'- i,\, t1 l ~ I ,).
,a rcez H\)111 cm. Fl,)ria nópt )] is : Letras Cometrtp ,)L\IH:~:t \ . 107 s].
l)ic,po11 í\'rl l' l1l '< . . __
· \\" w .111u <;1c'1em emor.ia.com/ lnr;1dcltucile
- .hrm >.
52
v ?í síi?êií~ 58
53

nazismo era visro - desde o Dismrso sohrc o colo11ialismo d A·


- ' e 1111 · sa época à Hirlc1j11y,c11rl [Juventude hitlerista].
37
A re pressã~ d~ s
Césain:' (1950) - como uma torma d e impe rialismo radical. e
anos de «briga de rua» também foi uma maneira de expiaçao
Enrreranto, aconreceu uma mudança considerável n
os anos perpetrada por uma geração que repudiava sua experiê ncia e
1980. A onda revoluci o nária reve seu epíloo-o em Mana'
gua. em º preferia abraçar carreiras públicas ou em outras instituiçõ es po-
julho de 1979, quando também ocorreu a traumática d
esco- derosas. Após o naufrágio da revolução mundial , o s «crês seto-
berra dos campos de exre nnínio no Camboja. Na Eu
. ropa. 0 res» se tornaram campos de três diferences memórias de vítimas,
Holocausto cristalizara a essê ncia da memória coletiva O
· an- crês lugares distintos de luto.
tifascismo havia sido marginalizado em rememorações públicas
e suas vítimas começaram a ocupar o palco de uma nova paisa-
gem da memória. O legado do passado j á não seria interpretado TRÊS MEMÓRIAS
como uma coleção de experiências de lutas, tomando-se mais
um sentimento de dever na defesa dos direitos humanos. De re- Como disse Dan Diner, observar a comemoração da vitória
pente, três décadas de Guerra Fria foram removidas da memória de Oiro de Maio de 1945 é um instrumento interessante para
coletiva. Na França, o Maio de 68 acabou sendo mera mudança explorar a transformação da paisagem da memória no começo
cultural , um ripo de carnaval em gue. ao disputarem um jooo do século xx1. 38 Promulgado feriado nacional em muitos países,
1 . o
revo ucionário, os jovens desbancaram o gaullismo para dares- a efeméride não tem o mesmo significado para o Ocidente,
paço às modernas formas de liberalismo e individualismo .35 Na a Europa Oriental e o norte da África. A Europa Ocidental
Itália e na Alemanha, os anos 1970 são considerados os anos celebra a rendição incondicional do Terceiro Reich diante das
de chumbo · l )• d uranre o s quais a revolra de uma
_ . (' /li 111· rfI p1011110
Forças Aliadas corno um evento de libertação, o início de uma
geraçao foi reduzid·1 ' · d 1mensão
, a uma un1ca · de rerrorismo.30 Na
Alemanha ' passou
· 'a ser
- • ti.·1v1a
· J comparar a esquerda radica
· Jd
es- .17 En tre ()li trn~, GfoL Aly, 1 111,l, 1 /-:. ,111111/ /Yos. 1111 11 11,11cr Hlu/,: :::11rn,-/.:
(1 r;mUi.m: h ,chcr, 2(1tn-:) .
1. X D:111 1)111n. C:c1;1'11!,111.'.!1 C, ·,l,,r/11111,_,, L'be, ( ,' i ·/111111;_ 1111,/ 11 ,,-( ·u 11 ,,
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·'º Vrr l •Hl\,111111 De Lu n


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'· irni, i, ,1
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1'1 1j,1<1 . h ' lrrnll'll1. .21 1l)lJ).
54

55
er:1 de paz, liberdade, democracia e recon ·1· -
cr raçao do e .
nrnre que se envolvera em canros cnnRir) e.. . . onrr-
. "• ' , . < s li arncrdas. Co mo (um dr seus tr:iços mais defi nidores :ité os :inos 1940). Todos
o p,1ss.1r do tempo, os propnos ;i/emiies •id .· . llJ
us países d:i Europ:i conti nental estavam envolvidos nessa mu-
• . • e 111a111 :1 essa . -
do p:1ssado, aba11dona11do suas :llltin-as /)erce) .- '" "'. vrsao dança. não só a França, país que concentra a maior comunidade
. . ~ 1ÇOts. que vr:1111 113
darnra dn Terceiro Rereli uma ven:ron /n .· J _j udaic:i f()ra da Rüssi:i. mas também a Alemanha, onde a ime-
H'i v·w1 ) J, . 1 . . . 1 1t-- • llJt 1011:i , seguid:i da
/ • , . t l ,I so Jer:1111:1 11ac1ona e e epois d·i f . _ 1 raçifo com :i comunidade judaica dos anos pré-guerr:i foi rom-
• • . . . ' · ' • e ,v,san ° 0 país e111
l 1()IS brados 111,mrgos. Em /985 ,10 fizer ui d. pida radicalrnenre. De fo rma um tanto paradoxal, o luga r do
, , ·.;· • . , . . . , , , 11 ,scurso. Richard
\.tlll Wt /Z,l( kt r, ;111rr<ro pres,de11tt' eh H , , ,. . Holocausto em nossas representações d:i história parece avu ltar
. . ti . • l p11n 1rc.1 Federal d3
Alemanha, dt'h11111 n Oiro de M:iin com) 1 .. J .
:'i medida que o passado se rorna cada vez mais remoro. C laro,
_ . e uni " Ul,l ue lrbera-
L'Ssa te ndência não é irreversível, e as coisas podem mudar com
ç-.1 0 )); Vlllft' :rnos mais rardt'. o ch:1 11 ct'lt'r ( 'er/1 " . J S -J .. J
. .· ' ,tlu ~ e iouer par-
a morte do ülrimo sobrevivente dos campos de concentração
rrtrp()ll, an lado dt' /:1cques Chinc Tom· 111 • e~
. • ' ·
Vlad,11'.ir Purin, das lll)lllt' llage ns :1n dcst'mb:1rque
nas pra,as da Norn1:111di:1em <ide junho de 1944 A . d -
dl:
, u Jir. ,eorne Bush e
Ali.1dos I
n:izisras. Aré agora, no entanto, pode-se dizer que domina a
memóri:i do Ocidente - na Europa e nos Estados Unidos - ,
. • , /· • • .1 opo, por onde o Holocausto se transformou em algo corno urna «religião
p.11r1: ~ .1 Alt-111:111/1:1, de 11111 «parrioris!llt) CcH1sriru cin11al •>enrai- civil» (ou seja, uma crença secular que, segundo Rousseau, ser-
zado forrc111cnrt' 11 .1 11 .1 • ., · . I I . .
• • 11 .1nv;1 t.Klt t'llt:l tor.1 r:irihc1da de uma ve para unificar uma comunidade).J11 O Holocausto permite a
Vt'Z pnr rt )das.
sacr:ilização dos valores Fundamentais das democracias liberais
Nt'ssc cnnre:xro .1 111 , . , .· J 1_1 l
· •• t mo, 1:1 cio ,o ocrnsrn desempenh:i opa- - pluralismo, tolerância e direitos humanos - , nua defesa se
pel de um ;I 11,11.,.,111 • 1 -. 1 E . ,
' ' ""!1''''"< 1
1;1. sse ít' IW!lle110 mais ou mem>s
revesre de uma li turgia secular de recordação.
lú't' lltt' - po<lerntlS cbr:í-ln 11 0 in ício dos :mos / 9RO - concluiu Seria equi vocado confundir memória coletiva e a religião ci-
um pmr<-'ssn dt' rt' . ·d - . vil do ge nocídio dos j udeus: a primeira é a presença do passado
, .· . · · LOI açan t/llt' passou por diferenrt's erapas.
l rrrnt>1m, hcHJVt' o .1·1~ .. 1 ,
• . ~ t IH lt) tos anos do pos-guerr:i; depois, a
,lll lllt's ia dos 'llllls 190() . I" . '\(J l \ •1(· 1 Nm•t< k. /'/, / /,,/,,, 111.1 1 111 1111( 11, 111 I 1/, N ,11 .1 , ,, 1 k l l ,H 1~~ltrn 11
· · · t' Y70 - provoc1da pelo surgm1enro
d;1lllt'lllt)rh dt)S . j, . 1 - /\ 11'/1111 l (J()(J l' I' li 10.~ 1J. \ , ,liH· 11u,1H c 1t1H lc 1 1cl1 g 1 11ll11 d l l' I [ 1nil1 n
. • · Jllt t li~ t' pt' o .1dvemo de uma nova geraçio-, / ,(' t ll il c
1
/ , ,/111 , 1 1
,111.I /~ , l1~1, 111( 1 111H t r111 1. 1 1 IIH t r1 >11 l 111 11 t 1,rr\ 1>1t' ' '· 1 (1llc ,)
e h11al111t'llft' .1 l)hs- ., ~ ~. \ ,li 11 11,, 1,1( •111 , 11, l ri H l il ti 1' l 11 1,t1 ,.li ,, dI r l' 1
. · es)iJo Pt' 1a nwmóri:1 dos tílrimos v rnre ,uios. 1 111t · , 11t li 1,1 1111 ll ll 1t 1 1 ( e dt 1 .111 1

Aplh um 101111n n , .· 1 1 -... 3 1, , 111 111 1.1l ll ,, \ l'I I J,11) 1\'I l t \ \ ' N .11 l i) \ 111.11 , lt 1 ' "· ' ' ,/ ,, ""' 111.I ' (, 111,,, )
. , . t- r t IH>( t) l t' rcprt>ss:fo. <) Holocausro reromou · 11 ,!,, ( ,/, ,/i,i/ l~•c (1 d.1tk•lh .1. 1c rnpk l1 11 nc1 ,11 1 1'1 ,'" 21111,,)
., 1,pt'rhrrt' t' lll 11 111 .1 . 1 . . . •· _
• u, tura t'11rope1a e11hm /ivn~ do a11rrssemins

57

no mundo de hoje: a segunda. uma polírica de re


presenra •
educação e homenagem. Enraizada na formação de urn Çao, do Terceiro Reich . A memória da RDA (assim como a do anti-
ciénci,1 rransnacional hisrórica, a religião civil do H la cons. fascismo) precisava ser eliminada.~''
. o ocau st0
ad\·ém dos esforços pedagógicos do Estado. Den d Na era das vítimas, o Holocausto se torna o paradigma da
E . l . ·1 - d tro a União
urope1a. e a renra cnar a 1usao e uma comu n1·dade su memória ocidenral, o pilar sobre o qual a recordação de outras
nacional erguida sobre valores éticos: uma apa A • pra.
• formas recentes ou mais amigas de violência e crimes deveriam
renc1a v1nu
gue convenienremenre esconde o enorme vác d osa ser construídas. Surge, assim, a tendência a reduzir a história a
d . . . - fu d d d uo emocrárico um confronto binário entre vítimas e carrascos - um movi-
e uma msnru1çao n a a, e acordo com os termos de
projeto . . I fra cassado. em uma eco
. conmruc10na . d seu mento que não concerne apenas a lembranças de genocídios,
.. nom,a e merca-
do ,,alramente compennva>1, na gual a única sob . mas também a evenros totalmente diferences, como a Guerra
. I . , eran1a suprana- Civil Espanhola. Passados trinca anos, depois de uma aucoin-
Ciona efenva e representada pelo Banco Central.
Aigida transição «amnésica» para a democracia, baseada no
Assim como roda religião civil, a memór1·a do
Holocausro chamado pacto do esquecimento (pacto de olvido), os fantasmas
rem suas ambiguidades. Na Alemanl1a a e . - d
. . , naçao e um me- do franquismo estão de volta.41 O medo de recair na violência
mona/ dedicado aos judeus assassinados (H0 I -
_ ocau.,t Malmma~ gerou a repressão do passado - uma repressão que não foi im-
no coraçao de Berlim corroborou uma mud .d . , .
d' - h· , . ança I enttrana de posta nem cocal, mas efetiva -, que acompanhou o advento da
rmensoes JStoncas. Os crimes do nazismo sem d , .d
' ·d uv1 a perten- democracia. Hoje, dentro da democracia sólida em que uma
cem a , entidade alemã, do mesmo modo que a Rec
A1,nt [ rorma ou a nova geração foi formada, a integração europeia da Espanha
'.Jr< ª""{~ Iluminismo]. A AI h . , _
eman a Jª nao se cre um corpo
A

I . , . tomou também uma dimensão memorial com algumas con-


co envo ern1co e se tornou . ,
. d uma comunidade poltrica na gual sequências paradoxais. Nos anos recentes, historiadores se de-
o nmo o sangue e do solO e . b . ,
•- d ro, su stitu1do por uma moderna
v1sao a cidadania. Ao mesm 0
H / tempo, ao «dever de lembrar» o
o ocausro seguiu-se .
51st ,.
da R , . uma emanca destruição dos vestígios -l 11_ Pcter Rc,chcl. t ·, ·,.~,11 \~1·11/,t'i/ , ÍJ1•11·,1/11,~ 111(~ 111 / ) ,.,,,, l,l,11111 l)"
, epu 61 rca Democrática AI - d ·1",n 11,1111I,.,._,, 1~ '"(~ 111 11 rlc, ,\ 'S - 1)1/-:1,1111r "º" /C)./5 ln., /1, 11 1, . Mu11 l(jll l' ' (. '. H
RepúbJ· ( . ' ema. A emolição do Palácio da llt'l k. 20117; ll ég111e llnb111. /3/'I /111 i/1,11111, ·1, . Pam: 'ir,,d,, 2ll\lll.
ica seguida pela re st -
contrasta I con ruçao do Castelo de Hoezollern) J 1_ Vcr. cm parnru l.u. \,brtl\ Juli.í, • M,·111011.1, hh[t)1 1.1 v pnl ltl l ,t ele u 11
, e aramente com a 5 -
nagogas J . , . ' re rauraçao metódica das antigas si- p.1,ad,, lk· '~II L'í Ll \ d1cr.1rur,111. l' lll "'11·111,111 / rlc I,1 c1·,ll'n 11 ) ' 111
t
/ l 1111(/111 ~ //Jtl
._ 'e os cem1renos1·ude d , , . (O, g. de 'i,11Ho\ _lul,.1. M.,d,.,. l .1u1u,, 1111c1), 11p. l :i- 2o.
1
use e todos os s1tios de memonas

-
59
58

. , eia da Guerra Civil e reconstituírani 43


bruçaram sobre a v101en . . , . «sequestro» que separou a Europa eentra I d o Ocidente·· sua'
, dos e a ideologia da v1olenc1a entre 1936
suas formas, seus meto ,. verdadeira «liberação» só veio em 1989. lsso explica os violentos
.d ·fi d e quantificando as vmmas de ambos 0
e J 939, , entr can ° s confrontos em Tallinn no verão de 2006, quando os estonianos
) I •,ncira vez a história dos campos de concentra-
1ªdos. e a prr ' . . se estranharam com os russos por causa de um monumento de-
_ 1 'F . r01· invesciaada e descnta com ngor. No debate
çao oe ranco n · t, . ' . dicado à memória dos soldados do Exército Vermelho. Para os
, . .- esse
pu 61 ,co, por e111 , •· ' rrabalho 1mporranre
_ ljlle eluncla
. o n:issado
r- . .. russos, era uma homenagem à Guerra Patriótica; para a maioria
- • d" , uc suri··un
11:10 1111pf' , 1· · . '
interpreraçoes
. nas quais a kmbranra l dos estonianos, simbolizava décadas de opressão.
44

das vítimas acaba eclipsando o signihcadn da histl,ri:-i. Segundo Hoje. nos países que ficaram sob a égide soviética, o passado
essa perspectiva. o conAiro enrre dt'lll()cracia t' fasci smo - era ~ revisitado quase exclusivamente sob o prisma do nacionalis-
assim que se percebia a (.;uerra CiYil Esp:rnlll)b na Eurnpa nos mo. Na Polônia, o Instituto Nacional de Lembrança foi criado
anos 19.10 - se rorna urm sequJncia de crimes cc,nrr:1 :i hu- em 1998, e, postulando uma substancial continuidade entre a
manidade. Alguns historiadores chegam a rerr.u:i-b Cl)lllo um ocupação nazista e a dominação soviética, presta tributo à his-
«genocídio» rotai, uma irrupç:i() de Yiúlenn :i onde só haYia car- tória do século xx como um longo martírio nacio nal e uma
rascos e víri mas: 1" noite totalitária. Visão similar de história nacional inspira a
N:1 Eurnpa ürienral, por ourro lado. o hm da Segunda Casa do Terror em Budapeste, um museu dedicado a ilustrar a
Gut>rra Mundial não foi celebrado como um momento de li- «luca contra os dois sistemas mais cruéis do século xx», que por

ber;1ç:fo. N:1 Unifo Soviéric:i - t' n:i Rússia de h~je -. o ani- sorte terminou com «a vitória das forças da liberdade e da in-
dependência». Em Kiev, em 2006 o Parlamento aprovou uma
vers:írio d;i rendição :1lt'm:1 foi lembradc, como o rriunfo da
lei que definia a coletivização soviética da agricultura, assim
•<Gr:rnde Gut>rr:1 Parrióric:J1 Enrrer:inrn. nos países ocupados
1•

como a carestia de 1930, como ,<genocídio do povo ucrania-


pe!L) Exército Vernwlho essa dara indica a rrJnsição de uma
no». Apresentando-se como representantes de nações-vítimas,
hm dn pesaddo nazista coin·
L)rupaç;h, t'Str.mgeira pt)r nurra. O
cidiu com l' começo da kmg-a nr,ire de hibernação soviética, um
-li ~1,1.rn Ku 11 dn,1 , ,. L'1Jn-1,lcm k1d111\"lt'
· r ,''LI \ •1 r,·,,,, 1· ,
, ,..,L L 1t
\
Ll'
\'E- urnpc
L, 11r1.iJ ,. L, 1>, /, 11 1 7. t 1>1U . PI' ,-22. -
11 1.11 1.11u Lhu1, lirn kt,. Tlw l , ,,,'l)t)\ ml , l ,t 1\ k n1c)i·, .
1: 11 1,1, 11/l. l l)
1\1.\ll l l l )\ 17 .
60 --
61

, da Europa Central rese rvam um P


os governos dos paises ªPel J outro lado, a União Europeia
ória do Holocausto, gue aparece e0 conqui stado res otom anos. l o r . , . 1
maroinal para a mem tno . . d ilitarismo humamtan o ao gua
0
obstáculo ao completo reconhecim descobriu as vJrtudes e um m 6 d .
um concorrente, um ento .d , I to Bom ar ear c1-
e. tos Esse contraste é paradoxal , uma vez qu a memória oferecia um formt ave pretex · , . d
de seus sornmen · ._ eo edimir as v1t1mas os
, . d • deus se deu J.usto nessa reg1ao do contin dades sérvias passou a ser um d ever para r .
extermm10 os JU en- . d Acordo de Mumque
gulags, para não repetir erros como o o
te: ro1 a que a grande maioria das vítimas viveu , foi lá que os
c . I'
. . S d Jürgen Habermas, as
em setembro de 1938 e s1m1 1ares . egun o .
.
nazistas •~r~tn milhares de ..,
Cfln "
guetos e campos de concentraça'O,
bombas da Otan foram um sinal providencial do advento de um
Os novos membros da União Europeia com frequência pare- 46
kantiano direito cosmopolita.
cem considerar O Holocausto um objeto de luto diplomático. No norte da África, a efeméride de 9 de maio de 1945 evoca
Exumando uma imagem forjada por Heinrich Heine no intui- outros eventos. Naquele dia, forças coloniais francesas abriram
to de descrever a conversão dos judeus na Alemanha do século foo-o contra milhares e milhares de nacionalistas argelinos, que ,
::,
x1x, Tony Judt apresentou essa condolência tocante como um celebrando a derrota do nazismo nas ruas de Setif, se recusaram
«passaporte europeu », ou seja, o preço a se pagar para ter res- a deixar de lado suas bandeiras. Repressões militares se espalha-
peitabilidade e mostrar sensibilidade no que diz respeito aos ram por cidades e vilarejos, e o conflito só foi ter fim com mais
45
direitos humanos. demonstrações de força , que obrigaram os indígenes argelinos a
Durante os anos 1990, a guerra na Iugoslávia foi um pomo se submeter às autoridades coloniais, ajoelhando-se perante o
de interseção entre as memórias do Ocidente e do Oriente. O estandarte francês . O rescaldo do massacre foi de 15 mil ou 40
fim da Guerra Fria, dez anos após a morre de Tito, produziu mil mortos, conforme se consultem fontes francesas ou arge-
uma explosão de nacionalismos gue reativaram a memória da linas.47 Setif foi o início de uma onda de violência e repressão
Segunda Guerra Mundial , com seus inúmeros massacres, e mo- militar nas colônias francesas , em especial em Madagascar, onde
bilizaram os mitos ligados à história dos Bálcãs, feita de domi- uma insurreição foi estancada brutalmente em 194 7. Em maio

nação imperial. Na Croácia, os nacionalistas sérvios enfrenta·


ram os fantasmas de Ante Pavelic, e em Kosovo os símbolos dos
-!<i J Lirgrn H:.ibern1a,, «1Je, cia l,r:1r un d 1-lum :llli tar». Oie Li' // 1~- 29 abr.
1999, pp. o- 7.
-1 7_ \obre \J rif vn Y v"' ~, 'I ,L,.i , 1u1 s
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JuJ.flp(1r p»,,,.
63
62

de 2005, quando os representantes das poté ncias ocident 1.5


ESPECTROS
lebravam o aniversário do fim ª _ Ce-
. da Segund a Guerra M und1al 0
presidente argelino Abdel Az1z Boucle fika pediu ohcialrn ' Em J 959, Theodor W . Adorno denunciou a amnésia gue,
.e. . d S . f. 1e ente o
reconhecimento da carnmcina e . e tl , qua incando-a de Q g favorecida por uma utilização hipócrita da noção de «atualiza-
nocídio>, e exigindo reparações da fran ça . e- ção do passado)) (Aufarbeitung der Ver&angenheít), tomava conta
Com isso, celebrar a vitória de 8 de maio d e 1945 e' d da Alemanha Ocidental (e da Europa). Essa formulação «alta-
, . . - con e¾!
memonas entremeadas. Sob o ponto d e vista de um oc1•denul, m ente suspeita)), ele explicou , não significava necessariamente
de um oriental ou de um<1 perspectiva pós-colonial · a 111ston . .2 «atualizar a sério o passado, ou seja, por meio de uma consciên-
do século xx assum e diferences
, . aspectos.
. As n arrati
' v",,S 111StOnQi
. ,. cia lúcida que desconstrói o poder de um suposto passado fas-
entrelaçadas por essa eFemendc diverge m . m es m o levando el!i cinante)). Ao contrário, significava «fechar os livros do passado
48
e, se possível, até mesmo removê-lo da memória». Mais de
, . que rodas suas reaçôes são ativadas j)e la· exi
conta , ·ste' nc1a
· d e unu
cinquenta anos depois, a mesma amnésia afeta as culturas, nas
v1rnna
_ , . o que no caso é o maior indício dago
do passado, I ba11.a-

guais dimensões inteiras do passado - antifascismo, anticolo-
çao
_ das
_ memorias no come c·o
r do séc ulo xx, . C, la< ro , as m emorus

nialismo, feminismo , socialismo e revolução - são enterradas
. ca.~ ou in cnrni)a rívei ·s • e seu
nao. sao monolíri - . 111 0 podem.
pi ura 11s
sob a retórica oficial do «dever da memória».
abnr espaço.~ fecundos de coexisrê · 11ci·1• J1"•• r" "!e' 111 d e 1'd enn.da-
" ,,
Nessa paisagem de luto, o legado das lucas de liberação se tor-
'.l.es .nacio nais e culrurais fi.,chadas. Até agora
, e .
, p o re' m , seus rocos nou quase invisível, assumindo uma forma espectral. Como ex-
e!,srmros
• ·. - Holoc-rnst .
' · 0 • comurn .5 mo, ro 1onialismo - ilustram ,
plica a psicanálise, espectros têm existência póstuma, assombram
rendenc1a em tirar «liçõcs , . oa
J I·11srona
.. , . » concorrentes, em vez de
nossas lembranças de experiências que supomos concluídas,
cnmplernenrarcs.
b .. A 1nernon.i
. . , ·•
g 1obal do 1111c10
. , . do sec , ulo xx1 es·
exauridas, arquivadas. Habitam nossa mente como figuras vindas
. , em de, so
.oça. uma paisag . fnmenros
· , ·
fragmentados. Novas espe· do passado, espíritos redivivos, eté reos, separados de nossa vida
r,111ç,1
. . ªº
~ rnlenvas ainda r1- surgiram
• . •
nn honzonte .
. A melancolia corpórea. Esboçando uma espécie de tipologia espectral, Giorgio
co11t111ua
, no ar co rno o 5e r1t1menro
. dom inanre de um mundo
, , dO f
dqut ca rrega O pes.i ardn dt' seu passado, e segue caminhan·
o .sem um norre ' ·sem um. fururn . discern íve l ,O Ocidente,
0 -IX llwod,>1 , W . /\do,110, ,,Tlic Ml'tllilJ<T , ::, ( )1l -r,
w {) J-k111" 1rtlll"11
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rl 1l' l' :1q .. , ,·111 ( , 111 1, ,t! /\·/ (>tfr/_\ fll 1,n,c11110 11 ' 1111/ c··• ,r (·I11 1' t>u· /-'· (,,N-., nv,1 Ynn-,
' d·~
1
~e tor . . · u. : os ':uni gos .,. · ·
«tres se rores» de revolu ção mun ( ulu111b 1.1 U 111 vt'r,1ry l're,\ , lNX) , 11· XV.
J ·
n.1r,1111 trf's ce rran , . J ' , . •
ie s uc memorias teridas.
-, fWJ?l:tt:lr#II
65
64

Agamben chama a atenção para um tipo peculiar de espectro, as


que rondam a Europa hoje não são as revoluções do futuro , mas
«larvas», gue «não vivem sozinhas, mas se obstinam em procurar
49
as revoluções fracassadas do passado.
os homens de cuja má consciência foram geradas». O scalinisrno
Podemos sempre nos sentir melhor pelo faro de que ~s re~o-
gerou essa espécie de espectros «larvais». Ao conrrá1io de ou. luções não são nunca «pontuais», de que vêm quando nmgue~
tras épocas de restauração, como a França p ós- 18-+8 ou mesmo as espera. O escritor italiano Erri De Luca provocou comenta-
pós- comuna de 1871 , a virada de 1989 não podia oferecer aos rios escandalizados em 2013, quando comparou o legado das
vencidos nada além de memórias desbguradas do socialismo, rebeliões dos anos 1970 ao trágico destino de Eurídice, a ninfa
uma caricatura totalitária de uma sociedade emancipada. Não só da justiça na mitologia grega: Eurídice não pôde ser salva por
a memória prognóstica do socialismo fora paralisada , mas O pró- seu amado esposo, Orfeu, que para liberá-la desceu n o Hades, o
prio luro da derrota fora censurado. As vítimas de violê ncias e de reino dos m ortos.51 Por meio dessa alegoria, Erri De Luca des-
genocídios ocupam a memória pública. eng uanro as experiências creve os anos 1970 como uma década invadida por um «Orfeu
revolucionárias assombram nossas representações do século xx coletivo» que, tendo se apaixonado pela justiça, empunhou
como espectros «larvais>>. Seus arores derrocados jazem à espera as armas para conquistá- la. É sintomático que, à diferença d e
- Ja' nao
de rede nçao. - sao
- espectros gue anunciam uma «presença Marx, ele não compare a revolução a um ataque ao p araíso, mas
que está por vir», como para Burke em 1790 e Marx em 1847. a uma descida aos ínferos. A conquista do paraíso e a v iagem
Revelam, antes, observava Derrida vime anos atrás «a persistên- ao Hades são os polos de uma transição que descrevi acima,
cia de um presente passado, o retomo de um mo~o do qual o da utopia à memória, do futuro ao passado. A melanco lia de
e.~forço do luto I d· J - ' esquerda n ão significa o abandono da ideia d e socialismo ou da
nun 1ª nao consegue se liberar». so Os fantasmas
esperança de um futuro melhor; significa repensar o socialismo
numa época em que sua memória está perdida, escondida, es-
..jl) (
l( \ \f<> J ()
,., ,1
n, t· 6
1111 l'll U ) l' - . ., quecida, e precisa ser redimida. Essa melancolia n ão significa o
.i\111nng \,~ ,. :--· · ll r ll' '>h .111d J >i:--ad, ant:we, ot Livin~
, • rl l ft'r, . j 11" I . ::-> ,
Prt'"- '!li 1 , · - · .\ u, 111 1 • '>r:mtorll: \r.rnf()ríl Un1vcrs1~ luto de uma utopia perdida, mas um esforço e m repensar um
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1-1 n, 11onre· o t t ,pt' líro,. l n • - · -\ 11, /, :: • 1 1.1tl. de J ) ;iv1 />l' ~~oa . Belo
· "lllft'll flC.i ..?!1l-t]
/111a11<1, 11>11,t!. Trad . de A11 :H n :in;1 \kinnc r. ll10 de _J ,ll1l'1rn : lzelunie-l )umar:í
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1 Ed hr;'-.: l·,1ir(l1,,h 1· ,\1/, , l111t m ,111,,,1,t!. Londrc,: l{uurled,Tt'. 1<)9~ . P· j(l l. 51 Erri de Luca. " Notiz,c su Eundice". // 1vl,111i/es1 1>, 7 nnv . 20 13.
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67

pn~jcrl) revolucionârio em uma era n~o. revol_ucionária . É assi1n


unu lllt'l:111cnlia ternnda. que, como dma Jud1rh Butler, in11)/j um a pulsão de morte transformada em ódio de si. Mas o ativis-
. . d 52 r- ca
n <,deiro rranstnrmador da per a». mo gay gue, em circunstâncias tão trágicas, reagiu contra essa
Um dos exemplos mais significarivos de elaboração do lur pulsão de morte - em cerca medida comparável ao colapso do
. ~ . 1 ' o
que, em vez de paralisar a açao. a esmnu a a :-tutorreAexão e, comunismo - era insepa ráve l da dor e do luto. Ao invés de
- d . . a
fugir da melancolia, o movimento a canalizou na direção de
conscienriz,1çfo. siio as reaçoes os anv1stas gays ;1s consequên.
ci:1s disruprivas da aids. uma pandemia cuja eclosão coincide um trabalho fecundo de reconstrução, criando centros médicos,
com o tim do comunismo. Em 1989, Douo-las Crimp obs ervou garantindo cuidados psicológicos, defendendo direitos recém-
t>
que. longe de espalhar passividade e favorecer o recoll11· -conquistados e estruturand o roda uma rede de associações. O
~ menro
numa esfera privada de dor. esse rrauma inspirou u 1n.,e, 11 ova rror- Act Up foi o resultado de uma melancolia política fecunda . O
significado dessa experiência. observa Douglas Crirnp. poderia
ma
.
de mi/idncia. nascida do Juro. um arivismo otie
1
e,X~~M ,
ser resumido numa fórmula gue espelha bem o espírito deste
torça da melancolia e da perda. Para muitos -1c1·,,1·5 r.,s gays que
, , < e <I
livro: «Militância, é claro, mas luto t:imbérn: luto e militància>,.53
rmam com um permanenre sentimento de ""ba11d ono, sa ben-
do que em breve morreriam compartilhando o mesmo destino
daqueles pelos gua 15·, · . t· ·
' emao so nam. essa melancolia incitava o
empenl10 civil e a -1ç· M · •,
. ' ' ao. urtas vmmas eram jovens e osso-
brev1renres se senria111 . . 1105 1. . . -
. . · sozm , mporenres. privados de seus
amigos mais caros e de s . . . J • .
. eus ,muoos. A vrda deles mudou. Eles
m•eram que rernnsrruir . ..
. um,1 comunidade destru ída. reinvenrar
a amizade, os prazeres e . . ..- . . .
,is pi.incas sexuais. enguanro se sennalll
esmaga dos por ameaças e 10 . d d . . .
. . .
0 ~ esngmanza,,,, M ·
ea os por um ambrenre hosnl que
·
rc:>rn · 1· . .
"
11
• urros· hc . para 11·sa dos pelo medo e 1n-
· ,ir,un ·
,1 iz,1r.1111 o esrio· . .
"1-illla na fo1·1 11 ,,-, ue
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sennmenro de cu Ipa, ClJ111
C 2018 EDITORA ÁYIN!:
i ' i:"(j,çjc,st>H''llti!'(I :nii:

ISBN o-g 65 O]o.JO 41 B

PAPEL Pofen Bofd 90 gr.


IMPRESSÃO Arre.~ Gráficas formaro
ENZO TRAYERSO (1957) é um dos maiores especialistas em história política
e intelectual do século XX. Após o doutorado na École des Hautes Études
en Sciences Sociales (EHESS) de Paris, foi professor de cíêncía política na
Universidade de Picardie em Amiens. Atualmente é professor na Universidade
Cornell, em lthaca (Nova York).

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