Você está na página 1de 152

'mttbrtbm " " b 'O . . . . . . ' S'.to ••._ _..

' Ir " "w'" "'_

Edimilson de Almeida Pereira


Núbia Pereira de Magalhães Gomes

ARDIS
DA IMAGEM
Exclusão étnica e violência nos
discursos da cultura brasileira
Copyright © 2001 by Edimilson de Almeida Pereira
. Todos os direitos reservados
Coordenação
Maria Mazarello Rodrigues

Composição eletrônica
Tânia Maria dos Passos Silva
Capa
Antônio Sérgio Moreira
Imagemda Capa: Guardiã
(técnica mista sobre tela, 1997)
Coleção: Ashe Yá Ojú àrum
Babalorixa: Marcelo Martins de Oxumaré

Pereira, Edimilson de Almeida. 1963-


P436a Ardis da imagem: exclusão étnica e violência nos dis-
cursos da cultura brasileira / Edimilson de Almeida Perei-
ra, NúbiaPereira de Magalhães Gomes. - Belo Horizonte:
Mazza Edições, Editora PUCMinas, 2001.
304p. : 37i1.; 21 cm.
1. Sociologia - relações sociais I. Gomes. Núbia Pereira
de Magalhães II. Título.

CDD301
CDU 301.16

Proibida a reprodução toial ou parcial.


Os inftatores serãoprocessados na[arma da lei. À Prisca. companheira lis;
Geraldo e Iraci Pereira, meus pais
Editora PUCMinas
Av. Dom losé Gaspar, 500 - Coração Eucarístico Maria Mazarello, Ricardo Aleixo e
30535-610 Belo Horizonte, MG - Fone: (31) 3319-4271 Leda Martins, espelhos órfícos
Fax: (31) 3319-4129
Lídia Avelar Estanislau/pela
Bmaíkproexespucmínas.br
diginidade com que combateu,
Mazza Edições Ltda. sempre-viva
Rua Bragança, 101- B. Pompeia - Telefax: (31) 3481-0591
30280-410 Belo Horizonte - MG Às pessoas de serenidade maior
Esmail: edmazzaêig.corn.br que a violência.

• ') ....... CP ,; 1 ;; ..

"Quem foi que disse,
que a gente não é gente?"
Solano Trindade

f#SC.C! 'AU4P 1P ii .. - 4 « •
Lセ
,I,
='A •
Agradecemos às professoras das redes municipal- esta-
dual e particular de ensino de Minas Gerais pela colabora-
ção no registro dos discursos da violência em nossas escolas;
aos alunos, por aceitarem a tarefa de conhecer - para supe-
rar - as nossas práticas de exclusão social. Ao poeta Luís Sil-
va (Cuti) pelas informações e críticas em outras oportunida-
des. Aos professores José Luiz Ribeiro, Maria Lúcia Campa-
nha da Rocha Ribeiro, Maria Nazareth Soares Fonseca,Ma-
ria José Somerlate Barbosa, Steven White, Sérgio Roberto da
Costa, Luciana Teixeira, Nelma Próes, Walquíria C. AVale,
Telenia Hill, Aluizio Ramos Trinta e Laura Cavalcante
Padilha pelo carinho reflexivo.
SUMÁRIO

NOTA DO EDITOR 13

RETRATOS EM BRANCO E PRETO 15


O negro no imaginário cultural brasileiro 15

JOGOS DE Luz E SOMBRA 31

OBJETOS SUSPEITOS 38

UM TEMA, SEUS NOMES """"""'"'''''''''''''''''''''''''''''''' 38


MAPAS DE UMA LEITURA 53
ORIENTAÇÕES E FRONTEIRAS 59

PALAVRAS CONTRA A NOITE 68


ORIGENS DAS DIFERENÇAS 68
ALFABETO DA INTOLERÂNCIA 74
Escola sem paredes : 74
Ideologia dos abecês de negro 81
Modos de elaboração dos abecês 84
Sentido psicossocial dos abecês 89

.0._*' .. ; 4' ----e i."4,4. $ a iS • e. • • 00>'" '


. b·'bMn .,!tI " 'MM 7$'772' 55

MANUAL DE FACAS 107 ALÉM DE Luz E SOMBRA 241


AO MESMO ASSUNTO 107
PALAVRAS: FACAS SÓ LÂMINAS 117 ICONOGRAF1A 2S7

OF1C1NAS DE PALAVRAS-LÂMINAS 127 I - Negros Disciplinados 257


II - Poses para Negros 273
iャセ Negro Coisificado 278
A VIDA NOS ESTÚDIOS 133
IV- Negro 'é Moda 28S
O HOMEM INV1SÍVEL , 133
RETRATOS NO TEMPO 138 CRÉDITO DAS ILUSTRAÇÕES 289
Vida de negros nos estúdios 138
Vidas de negros fora dos estúdios 148 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÂFICAS 293

RETRATOS DO MESMO 157


ONTEM E HOJE IMAGENS RETOCADAS 157
O MESMO TRlSTE PÉRIPLO 160

UM NÂo É TODOS 180


UMA H1STÓRlA COM HISTÓRlAS 180
ESPELHOS PARA NEGROS E BRANCOS 183
Do escravo fugitivo aos top modeis 188
Negro-coisa, coisa ruim 195
Do escravo capturado ao cidadão"
II

suspeito 199
UM NEGRO NÂO É "OS NEGROS" 205

NEGROS VISTOS COMO NEGROS 211


O QUE HÁ PARA VER 211
O PENSAMENTO TATUADO 217
IMAGENS QUASE PRONTAS 226
NEGROS EM TON 5UR TON 235
NOTA DO EDITOR

Em 1979,depois de concluir o Mestrado em Linguística e Filologia


Românica (UFRJ), Núbia Pereim de Magalhães Gomes criou e coordenou
o Projeto Minas & Mineiros. Vinculado ao Departamento de Letras da
UF]F, nos anos seguintes o Projeto recebeu apoio da FAPEMIG (Funda-
ção de Amparo à Pesquisa do Estado de MG), Pró-Reitoria de Assuntos
Cornunitérioe/Ul'[P, INEP (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos),
Ministério da Cultura e CNPq. Em 1986, após concluir a graduação em
Letras na UFJF, Edímilson de Almeida Pereira foi convidado para com-
partilhar os trabalhos com Núbia. Nessa ocasião mapearam e redefiniram
os objetívos do Projeto.
Enfatizaram a pesquisa em áreas rurais e periferias urbanas,
com o intuito de documentar os vários aspectos das culturas popula-
res. Optaram por uma análise multidisciplinar dos eventos, combi-
nando enfoques procedentes da Antropologia, Sociologia, História e
Literatura. Interessaram-se por compreender a sistematicidade, a sig-
nificação e os processos de inter-relaçãc que delineiam as diferentes
faces das culturas populares. Levaram em conta o pressuposto de que
os bens materiais e simbólicos, os comportamentos e as elaborações
discursivas contribuem para visualizar as concepções de mundo que
os indivíduos e os grupos tornam relevantes para tecerem as represen-
tações de si mesmos e do outro. Dessas análises resultaram as obras:
Negras raízes mineiras: os Artutos (1988), Assimse benzeem Minas Gerais
(1989), Arturos: olhos do rosário (1990), Mundo encaixado: signijicaçõo da
cultura popular (1992), Do presépio à balança: representações sociais da vida
religiosa (1995).
Em 1994, Núbia iniciou a "viagem maior.t'Bdimilson seguiu
com os trabalhos, ciente das modificações que aconteceriam. Uma de-

i 13

a$lO • san; .. 4 "" n, , I


_ 57
rl 'MP" l'
sr , r 'lhe' ".no ,,7'7* 7'7 'Mr' 7 '.7 S' 17 57
-
las, já havia sido prevista pelos autores. Consistia na alteração do
nome Projeto Mínas & tãineíroe para uma referência mais ampla.
Edimilson ado tau o título Veredas Sociaisinspirado pelas provocações
da obra de Guimarães Rosa. Os autores sentiam a necessidade da
mudança porque a denominação anterior dava a entender que se tra-
tava de um estudo apenas regional. Porém, as análises mostraram que
era preciso considerar os eventos a partir do critério de comparações
entre as culturas, levando em conta os procedimentos adotados por
indivíduos e grupos em seus percursos de ínter-relações. Daí o empe-
nho dos pesquisadores para decifrar as veredas que modulam esses RETRATOS EM BRANCO E PRETO
percursos, partindo da ocorrência dos eventos em cornunidades Io-
cais e acompanhando seus desdobramentos no decorrer dos contatos
com diferentes ordens sociais. o negro no imaginário cultural brasileiro
Seguindo essa orientação, de 1995 em diante, Edimilson orga-
nizou quatro volumes. Várias reflexões deixadas por Núbia foram A relação entre cor e singularidade, percebida como
incorporadas aos livros, uma vez que mantiveram sua atualidade. um viés do processo de exclusão que se acentua com o forta-
Outras, no entanto, resultaram de estudos e leituras que o pesquisa- lecimento da tirania do dinheiro e da informação, na época
dor teve a oportunidade de realizar após 1994. As obras cc-produzi- atual, tem estado sempre presente na reflexão produzida por
das no período de (1995/2000) e as anteriores (1987/1992) são impor- teóricos como Paul Gilroy e Henry Louis Gates Jr. 1 No Brasil,
tantes porque confirmam a presença de Núbia como intelectual soli-
além das análises lúcidas de Milton Santos" sobre os proces-
dária, analista instigante dos fatos culturais e ser humano esplêndí-
sos de exclusão do negro, acelerados por uma globalização
do, no amplo sentido dessa expressão. Também porque estimulam
perversa (1999L outros teóricos como Muniz Sodré, princi-
Edimilson Pereira a redefinir caminhos para futuros trabalhos indivi-
palmente em sua obra Claros e escnros," e Lilia Moritz Schwarcz,
duais e a estender a rica experiência das cc-autorias. Os novos livros,
resultantes das colaborações com Núbia, são: Flor donãoesquecimento: em vários momentos," apontam caminhos para se discutirem
o cotidianona cultura popular (1992-2000), Os tambores estãofrios: heran- as relações entre cor e a absorção dos indivíduos pela socieda-
çacutíural e sincretismo religioso 110 ritual de Candombe (1993-2000), Ardis de, principalmente com relação ao mercado de trabalho, que
da imagem: exclusão étnica e violência nos discursos da cultura brasileira
(1994-2000) e Ouro Pretoda Palavra: narrativas de preceito (1998-2000).
Os ensaios de Núbia Gomes e Edimilson Pereira, desde o início, 1 Ver GILROY, Paul. Agaiust race: imagining politicai culture beyond the
não pretenderam apenas registrar eventos das culturas populares. Além colar Une. Cambridge/Massa chusets: The Belknap Press, 2000; GATES,
Henry Louis (Ed.). Black UteratureandLiterary TIJeory. New York/London:
disso, procuraram compreender as estratégias que os representantes Methuen, 1984.
das culturas populares articulam para se relacionarem entre si e com as 2 Ver SANTOS, Milton. Por lima outra globalização; do pensamento único セャ
outras forças da sociedade. consciência universal. Rio de Janeiro: Recorri, 2000;
3 SODRÉ, Muniz. Claros e escuros; identidade, povo e mídia no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 1999.
4 Cito da autora, principalmente, as reflexões contidas no livro O espetéculoe

das raças; cientistas, instituições e questão racial no-Brasil, 1870 -1930,51\0


Paulo: Companhia das Letras, 1993 e nos artigos "A questão racial no
Brasil", do livro Negras imagens, organizado por Lili" Moritz SCHWARCZ

15
14
ainda se modela por ressonâncias do sistema escravocrata. são que só consegue apreendê-lo como ameaça: o negro é mau,
A questão é bastante complexa quando se observa, que, num é selvagem, é feio. s O olhar da criança amedrontada, na esta-
mundo que se quer cada vez mais unificado, a história da ção de trem, dirige-se ao negro,. fixando-o numa imagem terrí-
"superioridade" de alguns e da "inferioridade" de outros vel: Mamãe, olha o negro. Eu tenho medo dele, ele vai me comer.9
continua a explicitar o valor de mercado da cor, tornada re- Na visão aterrorizada da criança, os estereótipos emer-
curso simbólico importante na competição pelo emprego.s gem com os sentidos difundidos por uma cultura, que só acei-
As novas tendências impostas pela globalização nos ta o negro assujeitado pelo trabalho servil. A descrição da cena,
fazem retomar as observações de Frantz Fanon sobre a pro- que ecoa sem cessar no livro de Fanou: Olha, um negro... ュ。セ
dução de imagens negativas sobre o negro. A reflexão de mãe, olha o negro! Estou com medo, nos mostra que a criança
Panon nos possibilita avaliar que, mesmo nos dias atuais, corrobora os predicados formulados pelo senso comum. Ao
no Brasil, Uma gama de preconceitos e de estereótipos ne- mesmo tempo, ao amparar-se no olhar/corpo da mãe, a cri-
ァセエゥカッウL em circulação, continua a reforçar idéias preconce- ança branca resguarda a sua identificação com o espaço a que
bidas sobre O outro, principalmente quando este outro per- pertencem todos os iguais a ela, todos os diferentes daquele
tence à maioria de negros e mestiços.s que ela vê cheia de terror. O negro, excluído do espaço com
Fanon considera que os preconceitos, principalmente que a criança se identifica, sô.se pode reconhecer no pavor da
os relacionados com a inserção do negro no modelo de socie- criança, que atualiza o processo de fragmentação que a socie-
dade pensado pelo sistema colonial, são decorrentes de uma dade legitima: um negro só pelenegra, só cabelo "ruim", só
história que o emoldurou como um objeto desprezível que feições de selvagem, só feiúra abjeta. A descrição de uma cena
era preciso expurgar do convívio social. O olhar da criança de rejeição explícita ao outro reinstala o processo de visibili-
branca dirigido ao negro antilhano, na célebre cena descrita dade/invisibilidade que o negro teve de enfrentar para sobre-
em Peau ncíre. masques blancs (Pele negra, máscaras brancas? viver num mundo que lhe é quase sempre hostil.
explicita o grau extremo da alienação de pessoa e a imobili- Panon procura desvendar as causas do horror ao ne-
zação da diferença em estereótipos de primitivismo e dege- gro e as razões da internalização desse sentimento pelo indi-
neração. O grito aterrorizado do menino: - Mamãe, um negro; víduo, que passa a se ver através do olhar do outro, que o
ele vai me fazer mal- exibe as imagens de negro que transitam discrimina, com um elenco de predicados que o ensinam a
no mundo configurado por fronteiras rígidas e por uma vi- odiar o que só ele tem, exatamente por セ・イ negro. Para os
indivíduos marcados pela cor rejeitada, a individualidade
torna-se um peso porque se aprende a odiar os atributos sig-
e Letícia Vidor de Souza REIS, São Paulo: Edusp, 1996, e ''Raça como nificados em seu corpo por um discurso estereotípico que jus-
negociação", no livro Brasil afro-brasileiro, organizado por Maria Nazareth tifica a discriminação. Por mais que, na cena, a mãe tente
Soares FONSECA, Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
50 artigo, "Despertar da consciência negra", de Dulce Maria Pereira, Presidente
da Fundação Palmares, publicado no Jornal do Brasil de27/11/00, P: 9, comen-
ta resultados de pesquisas recentes que demonstram ser o número de negros
desempregados muito maior que o de brancos. O artigo ainda apresenta Paris: 'Éditions du Seuil,1952. Neste prefácio, todas as referências são, no
dados que demonstram haver uma maior exclusão entre os indivíduos de entanto, da edição de 1975, da mesma Editora. A tradução de p<lssagens
pele escura numa sociedade que ainda se que'r modelo de democracia racial. do texto feita peja autora..
6Cf. Maria Nazareth Soares FONSECA. "Visibilidade e ocultação da diferen- 3Cf. o capítulo "L'éxperience vecue du Noír", Frantz FANON, Peaunoive,
ça". ln: - Brasil afro-brasileiro, Belo Horizonte: Autêntica, 2000. masques blance. Paris: Calíimard, 1975, p. 91.
7 A cena é descrita em: FANON, Prantz. Peall noír, masques blallcs,lere. Éd. 9 Fanon. Idem, ibidem, p.91-2.

16 17

l: i au Ji ai 4i ;o
4 "
, . • P4. ::U4 li
• i i 41 ii ç; ta il".' 4.
'Pr e: " r 'te' ,,)15 fi._ .n 'tore m " !PP'"
_ . 15 rtr.3 r. j7 !ln te

ressignificar as imagens que o menino assustado legitima, o


quando expurga de seu plano arquitetônico os indivíduos
olhar e o grito inundam a cena da vergonha e do desprezo
considerados diferentes do modelo de cidadão que a mesma
do indivíduo por si mesmo.
sociedade privilegia. Todavia, tais lugares são também mar-
Fanon alude à dificuldade do discriminado de desenvol- cados por preconceitos e estereótipos internalizados nos in-
ver um esquema corporal e demonstra que a rejeição impossi- divíduos que muitas vezes até justificam a força de repressão
bilita o negro de se ver como pessoa, exatamente porque sem- da sociedade. A fixação dos valores decorre, pois, do reforço
pre foi olhado como uma diferença incómoda e ameaçadora, das imagens ditadas pelo senso comum e da elaboração de
inscrita na cor de sua pele.'? E ao refletir sobre o deseja de mecanismos que possibilitam ao indivíduo responder ao im-
extirpar do corpo os predicados negativos que fazem do negro pulso de sobrevivência e à aprendizagem de estratégias que
um sujeito sempre em diferença, Fanon nos ajuda a compre-
possibilitam. a ele viver numa sociedade que o exclui. A ne-
ender a carga semântica que o termo negro continua a carre- cessidade de expurgar de si as imagens que o fazem visível
gar, mesmo após a extinção do tráfico negreiro, ainda que se como diferença ameaçadora impõe a alienação de si mesmo
deva considerar as sobrecargas de sentido advindas dos dife-
e a camuflagem de uma corporeidade significada sempre por
rentes lugares em que o termo é significado:
excesso de predicados ditos negativos. Assujeitando-se aos
mecanismos de adaptação e de controle, o negro procura al-
Quando me amam, dizem-me que isso é possível apesar da cançar uma outra imagem para o seu corpo, ilusória e
cor da minha pele; quando me detestam, ajuntam que não é por alucinatória, mas capaz de conviver, com perdas e danos,
causa da cor... Aqui e lá, sinto-me prisioneiro de um círculo
infernal". J1 com o regime de "falsa tolerância" característico da cultura
brasileira. Muitas vezes são esses indivíduos excluídos que
As observações de Frantz Panon sobre a fragmentação, ajudam a fortalecer os preconceitos contra os negros, princi-
o despedaçamento, o estado de despersonalização absoluta palmente contra aqueles que ameaçam as conciliações possí-
vivida pelo negro, os quais incidem no modo como o seu cor- veis, porque, mais críticos, não se mostram tão cordatos aos
po é aprisionado pelo olhar que o exclui, são importantes imperativos racistas e, por isso mesmo, transgridem os ・ウセ
para se perceber mais profundamente a questão do estereóti- quemas de fixação.
po e da fixação do significante pele/cultura que expõe o fato Os mecanismos de transgressão e fixação não referen-
de a raça/ cor mostrar-se como um signo não-erradicével da dam apenas as táticas e compromissos que o negro assume
diferença. É pertinente observar, a partir dessas reflexões so- diante do racismo; transparecem também no modo como o
bre a sociedade racista colonial, que a imobilização do negro negro aprendeu a se olhar a partir de significados e
em lugares determinados pela sociedade pode-se dar, ao predicados produzidos pela sociedade. A lucidez de Frantz
mesmo tempo, como fixação e transgressão. Fanon destaca o fato de a visibilidade do negro ter sido
Nas cidades modernas, as favelas são lugares em que o construída como signo de uma diferença negativa que inter-
negro, pelas próprias condições em que vive, poderia tomar- fere nas relações intersubjetivas. De alguma forma a
se consciente do processo cruel desenvolvido pela sociedade, compartimentação a que se refere o teórico antilhano, quando
discute o plano arquitetônico das cidades coloniais, continua
a fomentar hierarquias e divisões rígidas para alocar os ex-
10 "Onde quer que vá", dirá Panon, "o negro permanece um negro. Ibidem, cluídos e separá-los dos lugares ocupados pela minoria privi-
p.95. legiada" Nessa compartimentação, que a.prática de controle
lJ Tradução livre feita por mim, da edição, em francês, de 1975.
e vigilância vai tornando natural, os indivíduos são sempre
18 19
fixados numa cenografia e numa experiência corporal posi- alerta para o fato de a atribuição de valores negativos a deta-
tiva ou negativa, já que dependem do valor dos predicados lhes do corpo dos negros e mestiços induzir à formação de
culturalmente determinados. uma baixa auto-estima responsável pela disseminação sutil
Por isso, os mecanismos de fixação do negro numa so- da ideologia do branqueamento, que nos atinge a todos como
ciedade que o hostiliza referendam modelos de submissão e brasileiros. Porque, o cabelo crespo foi sempre considerado
de negação do corpo e ratificam urna visibilidade perversa, difícil, selvagem, mal agradecido a cremes e óleos, passou a
que é o reforço da invisibilidade do negro como pessoa. Mas ser considerado ruim, em oposição ao cabelo liso, macio, Sem-
há mecanismos que podem fortalecer a transgressão, ainda pré visto como bom. O cabelo bom é um fetiche entre a maio-
quando os estereótipos continuam a coibir o negro com amea- ria dos brasileiros, e, por isso, faz-se metonímia de um corpo
ça de exclusão. ideal, cuja cor branca é um pré-dado, "um predicado contín-
Essa reflexão sobre os mecanismos de visibilidade e gente e particular" (Costa, 1990, P: 4).
invisibilidade do excluído faz-se muito pertinente no Ardis Costa ressalta ainda os processos de exclusão vividos
da imagem, de Edimilson de Almeida Pereira. O livro, resul- pelo negro no Brasil, tomando como referência o modo como
tante de pesquisas feitas em co-autoria com Núbia Pereira de o corpo faz-se texto para a leitura dos mecanismos de aceita-
M. Gomes, nos ajuda a compreender a complexidade de ção e de repúdio ao diferente, produzidos pela sociedade
mecanismos que, na sociedade brasileira, retomam o valor brasileira. A desvalorização das ímagens de negro, fomenta-
de mercado da cor da pele, fortalecendo estereótipos negati- da por clichés assumidos pelo senso comum, mostra-se signi-
vos e inibindo, embora não destruindo inteiramente, as pos- ficativa para se discutir, como faz o psicanalista, "o fetichísmo
sibilidades de transgressão'. em que se assenta a ideologia racial" (COSTA, 1990, p. 4).
Edimilson Pereira, nesse sentido, é bastante lúcido quan- Os mesmos argumentos possibilitam acompanhar os senti-
do se refere aos modos como a mídia, na época atual, vem dos produzidos pelo olhar lançado sobre o negro e a circula-
reforçando formas' de estetízação do corpo do negro, ao mes- ção das "negras imagens", principalmente as que ー・イュ。ョ・セ
mo tempo que inibe o fortalecimento de um discurso político cem em espaços de predominância negra e mulata. Parado-
sobre os seus direitos como cidadão. A figura do atleta vence- xalmente, nesses lugares, o olhar sobre o negro, ao ser
dor e da mulata sensual é estimulante para explicitar pontos internalizado e verbalizado deixa perceber muitas vezes o
de sua argumentação. A mídia, parecendo reverter a signifi- acirramento de tensões que se mostram no modo como a
cação do corpo negro como peça ou coisa, na paisagem socio- população mais pobre endossa imagens depreciativas sobre
cultural do país, imobiliza os indivíduos em outras imagens e si mesma, porque também assume a opinião corrente de que
reforça a invisibilidade de todos aqueles - e estes são a maioria negro é marginal, mau caréter, ladrão, maconheiro, deso-
absoluta - que não se ajustam aos papéis legitimados. Nesse nesto, epítetos que traçam um circuito fechado, um círculo
cenário, o padrão de beleza privilegiado, repetido em excesso, de giz que aprisiona o indivíduo na cor de sua pele.
mostra-se incapaz de estimular a produção de novos significa- Esse mesmo olhar acentua determinados fatores pró-
dos indicadores de uma mudança mais radical. Por isso, a midia prios de grupos em que as tensões entre fortes e fracos se
continua a reforçar imagens estereotipadas, que veiculadas pela mostram numa espécie de "constelação do delírio", que in-
figura do negro serviçal, do fora-da-lei, do atleta, ou do objeto
erótico, em nada alteram o quadro de referências.
12 COSTA,
Jurandir Freire. "Da cor ao corpo: a violência do racismo". ln:
As reflexões produzidas por Pereira, de algum modo SOUZA, Neusa S21Dtos. Tomnr-ecJtegro. (1983). Rio de Janeiro: Graal, 1990.
retomam as observações de [urandir Freire Costa-s. quando P.1-16.

20 21

i 4 .... , .... ; 'i = IS es. :iCe • 4 :: 1d #e _ns. ..: lUU 4$ " 'UU: 4P..... .
mm

duz OS indivíduos a se comportarem de acordo com uma que .restaurem O exótico, ainda que parecendo rejeitá-lo. Essa
"orientação neurótica", porque incorporam imagens que fa- retomada do exótico atualiza certamente muitos dos elemen-
zem do corpo do indivíduo um corpo perseguidor," respon- tos que podem ser observados nas obras de fotógrafos que
sável pela rejeição que o indivíduo tem a si mesmo. O horror focalizaram, no período escravocrata, as atividades desen-
ao cabelo "ruim", ao nariz "chato", ao cheiro forte do corpo, volvidas pelos escravos, no Brasil. A preocupação com a com-
explica esse comportamento acentuado a partir do momento posição de cenas da vida brasileira em que o negro aparece
em que o indivíduo é assolado por uma amargura e uma dor como peça, como utensílio, como objeto de propriedade de
que se traduzem em ódio ao corpo negro, a marca de sua seu dono, mostra a interferência do fotógrafo que funciona
diferença. como um arranjador de cenas, como um cenógrafo que não
Quando se considera, como lucidamente o faz Pereira, desfigura a ordem social, antes mostra-se inteiramente a ela
que os preconceitos e estereótipos são tornados naturais e, integrado. Aliás, seu trabalho reescreve a ordem escravocrata
naturalizados, circulam mesmo em lugares em que a popu- com os detalhes que procuram captar os traços dos escravos,
lação é predominantemente negra e mestiça, entende-se por- amenizando, todavia, as marcas do trabalho servil e das se-
que a fixação de modelos impede a produção de estratégias vícias em seus corpos.
de fuga e de transgressão. A arguta reflexão do teórico nos Os retratos feitos por fotógrafos do porte de Christiano
ajuda a perceber que a naturalização das imagens de negro, [r., principalmente os incluídos numa "variada collecção e
repetidas em excesso em fixação negativa, reduz a possibili- tipos de pretos", eram produzidos, como mostra Pereiral sem
dade de se produzirem novos significados que garantam a ameaçar a ordem social branca, porque, transformados em
desestabilização de sentidos cristalizados. objeto de pura contemplação, apresentavam ao olhar do es-
Não é o que se percebe às vezes, quando a transgressão pectador o que ele queria ver como estereótipo do africano.
proposta pelas perjormances de grupos funks e de Hip-Hop, Os trajes e as escarificações. longe de identificarem os negros
oriundos de bairros periféricos de São Paulo e do Rio de [a- como pertencentes às suas tradições, reconfiguram os índi-
neiro. continua a ser descodificada, por significativa parcela ces de um exotismo desejado e consumido. Como acentua
de assustados espectadores, como incentívadora da violên- Pereira, as cartes são apresentadas ao público como testemu-
cia que tais manifestações denunciam? Incapazes de perce- nho do que os negros eram, isto é, objetos da paisagem e ob-
ber os significados produzidos pelos sons, pelas letras, pelos jetos de observação para o olhar curioso do espectador. Ne-
gestos, que compõem uma outra forma de representação so- las se escamoteia, entretanto, a real condição em que o escra-
cial assumida pelos jovens da periferia, os que vêem as gale- vo vivia, porque as fotos o despersonalizam para focalizar
ras como ameaça insistem em apreender as performances a sobretudo as atividades desempenhadas por ele.
partir de determinados predicados que sempre relacionam o Ainda hoje tenta-se reproduzir o cenário em que a re-
negro com a violência e a selvageria. presentação do exotismo era absorvida. De algum modo, pro-
Verifica-se, nesse olhar persecutório que a sociedade cura-se revalidar lugares comuns que também estão nas cartes
lança sobre as expressões, que fogem aos estereótipos da di- de visite elaboradas pelo fotógrafo Christiano [r, no Rio de
ferença radical, uma fixação em modelos de representações Janeiro da segunda metade do século passado. Esse mesmo
mecanismo que aloca nos retratos de escravos 'detalhes pró-
prios do exotismo também está presente nos modos como a
13 Aexpressão "corpo perseguidor" está no texto de [urandir Freire Costa sociedade atual começa a absorver as expressões culturais
(199ü) e serve para explicar a fantasia persecutória que induz o indivíduo
a ver o seu próprio corpo como foco permanente de ameaça e de dor. das galeras da periferia. Ao inscrever nas performances dos

22 23
jovens funkeiros e na denúncia feita, por elas, das políticas Todavia, é possível ler pelo avesso, as produções
sociais perversas que empurram cada vez mais uma grande discursivas que se querem controladas pelo valores que dis-
massa de excluídos para os morros e favelas os significantes seminam. Assim, em todos os casos em que o negro é exibido
do' exotismo, atenua-se a transgressão pretendida, isto é, na- por imagens-símbolo de uma diferença exótica ou transfor-
turalizam a rebeldia, transformando-a em novo estilo a ser mado em objeto de um discurso que o desconsidera enquan-
consumido. De certo modo, para serem assumidos pela socie- to cidadão, outros sentidos se constroem à revelia de quem
dade/ que os vigia, os freqüentadores dos bailes funks são tam- os produz. Como acentua Pereira, os negros escravos, nas
bém "fotografados" por um olhar que procura, não raras ve- carie de visite, imobilizados pelo olhar do fotógrafo, que os
zes, apenas apreender a coreografia dos performers e transforma em peça a serem exibidas aos colecionadores, tam-
naturalizá-la a partir de determinados significados. bém expõem o complexo processo de criação, elaborado pelo
Deve-se destacar, por isso, que o processo' de "glamou- fotógrafo no palco de ilusões em que se transforma o atelier.
rização" que já se evidenciava nas cartes de visite, está pre- Este mostra-se como o lugar de apaziguamento de conflitos,
sente nas imagens do negro-objeto, atleta, viril e altamente pois ali o negro é sempre tomado como escravo-índice, como
sexualizado, veiculadas pela mídia e mesmo na focalização pose numa realidade idealizada nos limites do estúdio. Mas,
das galeras de funkeiros, ainda que, nesse caso, muitas ve- ao mesmo tempo, é também o cenário em que a ilusão de
zes, ressigníficado em forma de demonização. Mesmo assim, eternidade contamina os negros, e os faz desejar ser diferen-
de maneira nem sempre sutil, procura-se ressignificar a trans- tes daquilo que são. Nas fotos, as roupas "exóticas" reforçam
gressão das galeras por uma estética que, aOS poucos vai sen- a ilusão de pertencimento a um lugar diferente daquele que
do assumida pelos jovens de classe média. Por um artifício os negros ocupavam na sociedade escravagista, como peças
típico, da ideologia da tolerância, a pose dos retratos de es- de uma engrenagem mercantilista. A realidade "mentirosa",
cravos reaparece no modo como as expressões de transgres- é certo, podia ser vislumbrada na aparência de muitas das
são são harmonizadas para aparecer nos programas de TV. escravas fotografadas como amas, desempenhando as fun-
Pode-se pensar, então, que a preferência pelo exótico, ções de mãe da criança, ou como pajens, que se parecem com
no caso da circulação das imagens de negro é um caminho as senhoras a quem pertenciam, e mesmo camuflada pela
bastante perverso porque sempre propõe uma visão gama de artifícios de que se vale o fotógrafo para apaziguar
descomprometida com a realidade. No caso das cartes de, vi- os conflitos sociais e culturais, que também acabavam sendo
site e dos anúncios que informam sobre a fuga de escravos, fotografados. Funcionando como uma escritura "visível", tais
como nos mostra Pereira, impõe-se uma imagem do negro retratos compõem uma retórica que se mostra como a face
sempre como objeto, como "um objeto ruim, que causa pre- significante da sociedade brasileira, exatamente porque apre-
juízos aos outros indivíduos". Do mesmo modo, como acen- ende os escravos pelo viés do exotismo.
tua Herschmann," quando a midia procura mostrar os gru- No caso das fotografias que estampam na midia atual
pos de funkeiros como "agentes da desordem e do caos", dis- os negros transformados em modelos, em artistas que bri-
semina os modos como determinados discursos veiculam as lham na TV, os recursos privilegiados também produzem efei-
imagens construídas pelo senso comum. Sem nenhum com- tos que apaziguam as "zonas de conflito", já que quase sem-
promisso com sua transgressão, diga-se de 'passagem. pre só se ressaltam os atributos de uma composição que imo-
biliza o negro na figura do atleta, do homem viril ou da mu-
14 HERSCHMANN, Mícael. O flllJk e o Hip-Hop invadem a cena: Rio de Janeiro:
lata sensual- eroticamente significados. Tais atitudes, como
Editora da UFR], 2000. nos mostra Pereira, ao justificarem os pressupostos da

24 25

* " - _04 .. • ,. . •
+SaM
" "
't te r' , e$l " tu ebMtr rintsH' si S.'.1 'fis ri. riS sr".,. " tn1 S

M l' trst 'P :f n t ' . 'P' UM " . ln (t.. I_S'. 'to

modernidade, que elege o novo como valor, ilustram a difi- A reflexão produzida por Pereira nos faz perceber que
essa imagem sedutora e ardilosa é encaminhada por um dis-
culdade de aceitação das diferenças tais como elas se fazem
curso utópico, que veicula argumentos sobre as possibilida-
diferença. Apesar desse incentivo ao novo e de seu caráter des de transformação dos "negros marginalizados de hoje
libertador, a propagação de discursos, que fortalecem o mito em cidadãos críticos do futuro", substituindo estereótipos por
da democracia racial brasileira, escamoteia o fato de que, como outros estereótipos. O discurso sobre o novo prevê a possibi-
nas fotografias de escravos, a transformação do negro em lidade de ascensão do negro, mas isso só se faz possível quan-
espetáculo de consumo fácil sonega os seus direitos de cida- do referendado por imagens de indivíduos bem-sucedidos
dão. Basta observar a pouca alteração nos dados estatísticos como atletas, artistas, líderes políticos, top modele, que parti-
que mostram o percentual de negros fora do mercado de tra- cularizam determinados predicados também tornados con-
balho e a insignificante visibilidade de negros na categoria tingentes e particulares. Paradoxalmente, todavia, esse mes-
"empregadores" - apenas 22% de negros, contra 76% de bran- mo discurso que faz eco aos estereótipos negativos sobre o
negro, pode também fortalecer e estimular determinadas ati-
cos -, como atesta o artigo de Dulce Pereira, no Jornal do Bra-
tudes que, embora utópicas, podem produzir efeitos de sen-
sil de 27/11/2000. Ou que se considere a violência que se tidos transgressores, capazes de ultrapassar o ponto de che-
abate de forma assustadora contra a população predominan- gada proposto de antemão.
temente negra e mestiça, muitas vezes advinde de oriundos É preciso, pois, estar atento, como nos adverte Pereira,
da própria população marginalizada. Ou, ainda, que se ob- para se reconhecerem os ardis que subjazem aos processos
serve a ineficácia de políticas públicas voltadas para o aten- de representação. Há que se atentar para o fato de as repre-
dimento da população mais pobre e, por isso, predominante- sentações transgressoras, estampadas na capa de grandes
mente negra e mestiça. revistas ou veiculadas pela mídia televisiva, evocarem anti-
Pereira nos mostra que a formulação do discurso do gas contradições. Por.isso, mesmo em transgressão, as repre-
novo, que vem sendo veiculado pela mídia, insiste em neutra- sentações ainda alimentam os preconceitos contra o negro,
lizar a discriminação racial violenta e os reais conflitos da quando destacam alguns indivíduos privilegiados que con-
população brasileira. Assim, paradoxalmente, a exposição de seguiram ultrapassar o alto percentual de negros entre a po-
pulação marginalizada, no Brasil.
rostos de negros e de mestiços bem-sucedidos acaba por fun-
Mais do que 11l.1nCa, diante de uma nova ordem social
cionar como as fotografias de escravos feitas no passado.
que nos é proposta pelas redes mundiais de financeirização e
Embora se procure retocar a face do país, marcando a ascen- comunicação, visando à aproximação maior e inevitável das
são de negros e de mestiços, limita-se a apenas substituir al- diferenças, faz-se mister observar, como nos adverte Pereira,
guns dos estereótipos arraigados por imagens ardilosas que as estratégias que propõem essa aproximação, para que se
neutralizam a violência da discriminação. Desse modo, o concretize, de fato, uma nova experiência de mundo, volta-
discurso visual produzido pela rnidia, que se desenvolve en- da para a dignidade humana.
tre a proposta de uma nova imagem do negro e o status quo,
que fornece recursos para estabelecer a imagem do negro
reificado, implica hábeis rearticulações da ideologia da de- Maria Nazareíli Soares Fonseca
mocracia racial. Ao se colocar na mídia o rosto e o corpo do PUCMinas - BeloHorizonte
novo negro, do negro que se afasta da população majoritária
dos espaços marginalizados, acaba por se assumir a opinião
de que black is beautijul, mas desde que seja igual ao que apa-
rece na tela da TV, logo diferente da maioria da população.

26 27
sI
n "srr ,. • P' ., ?>r ' P' l' tt $.c ti "PS' pt te 't'r tnni' 'O r" rt. te_h. . tI

JOGOS DE LUZ E SOMBRA


"Que somosnós entre os
incêndios destashoras (...)?"
Moacyr Félix)

Os fatos do cotidiano, em sua fugacidade, muitas ve-


zes, remetem a questões bastante complexas da sociedade. A
insinuação é válida, se observarmos que diante de certos co-
mentários ou imagens nos limitamos a uma atitude de indi-
ferença, pois, afinal de contas, pode ser que o assunto ou "o
problema" não diga respeito a nós, mas aos outros. Assim,
nos eximimos de responsabilidades, criando a conveniente
ilusão de que a sociedade se realiza com o bem-estar de al-
guns indivíduos ou grupos.
Contudo, a experiência social mostra o quanto nos dis-
tanciamos desse paraíso artificial, já que ao mesmo tempo
em que mudamos o curso do cotidiano, somos atingidos per
suas ondas. Somos, simultaneamente, ateres e espectadores
dos enredos mais freqüentes de nossas vidas. Tratamos aqui
de relacionar o sujeito à historicidade de suas experiências
mas, além disso, de perceber o dinamismo das forças simbó-
licas que animam essas experiências. Sob esse aspecto, é pos-
sível apreender nas ações cotidianas uma diversidade de re-
presentações e sentidos, que ultrapassam o seu aparente
pragmatismo.

I Moacyr Félix, "O grande som", ln: Em nome da uida, Rio de Janeiro, 1981, p. 53.

31
Ê sobre fatos do cotidiano que trata o nosso texto, ele de outro, as vozes que se levantaram contra esses preceitos.
mesmo sugerido como uma resposta a certas provocações A situação, no entanto, não pode ser reduzida a essa
diárias. Em linhas gerais, consideramos os processos de ex- dicotomia, principalmente quando as necessidades das rela-
clusão através dos quais são atribuídos lugares às pessoas e çôes cotidianas obrigam os indivíduos a estabelecerem diver-
às comunidades no conjunto da sociedade brasileira". Ou seja, sos tipos de alianças. Aí emergem as contradições que reve-
perseguimos a idéia de que as estratégias de exclusão nem lam brancos engajados na crítica à exclusão dos negros e
sempre se articulam como alijamento de indivíduos ou seg- negros assimilados pelas idéias de rejeição ao seu próprio gru-
mentos sociais, mas também como um modo de representá- I po étnico.
los que indica sua inclusão parcial numa ordem projetada
por grupos hegemônicos.
Ij Além dessa contradição, frequentemente apontada, te-
mos de ficar atentos para o fato de que a vivência cotidiana
Para explicitar nosso percurso, optamos pela 。ョ£セゥウ・ aguça os processos de exclusão na medida em que se diversi-
da I
exclusão por motivos étnicos, verificando de que maneira ela セG ficam e encontram canais para sua difusão. Ou seja, a exclu-
se manifesta "no discurso oral e no discurso visual através de são por motivos étnicos se desdobra também na exclusão de
I
"

conversas informais e da mídia impressa. Interessa-nos ob- valores culturais, de modelos fenotípicos, de estruturas de
servar, também, como esses dois discursos interagem e se apre- f pensamento, de formas de comportamento e de bens materi-
I ais de um indivíduo ou de um gry.po. Por isso, a exclusão dos
sentam como recursos de comunicação compartilhados pe- I negros, que ocorre porque são negros, repercute sobre os de-
los segmentos que excluem e pelos que são excluídos. Em
outros termos, 'isso demonstra que a aceitação dos discursos
como fatos cotidianos dificulta o exercício da autocrítica, o
I
1
mais elementos a eles relacionados.
Junto disso, se entendemos a exclusão COmo prática de-
q'ue poderia levar à descober:a セ。 カゥ_セ↑Nョ」ゥ。 e da exclusão I corrente de uma elaboração ideológica, teremos de conside-
ocultas sob as teias das experiências diérías. rar os canais que permitem o escoamento dos discursos
Poucos se dão conta da tensão subjacente às expres- excludentes. A mídia impressa, nesse ponto, constitui um su-
sões do tipo "ele é um negro até educado", "ela é negra mas porte com muitos recursos, decorrentes das múltiplas aplica-
tem o cabelo bom" ou às imagens de mulatas expostas nas ções atribuídas à palavra e à imagem. Os jornais e as revistas
de maior circulação, por exemplo, apostam na combinação
capas de revistas e de homens negros m?rtos nas _イゥュ・ イセウ
de linguagem coloquial e produção visual sofisticada no in-
páginas dos jornais. De modo geral, tu.do iセso tem SIdo consi-
tuito de atrair os seus leitores. Isso indica que esses veículos,
derado como palavras e imagens habituais e se torna quase
ao mesmo tempo em que interferem nas opiniões e compor-
impossível pensar em outras maneiras de perceber as popu-
tamentos dos leitores, também se aperfeiçoam como supor-
lações negras. Nesse sentido, os negros aparecem aos olhos tes de comunícação.s
da sociedade - estão, portanto, incluídos nela -r, de uma ma-
Estamos, por fim, imersos no jogo de luz e sombras da
neira que corrói os ideais de sujeito e 」ゥ、。セッ desejados pela
convivência cotidiana, onde a prática da exclusão étnica se
mesma sociedade, estando, portanto, excluidos dela.
evidencia e os elementos envolvidos na elaboração, difusão,
É importante notar que esse cenário se dese.rU:0u sobre
aceitação ou crítica aos discursos dessa prática se mesclam e
as linhas da formação histórica da sociedade brasileira e que,
portanto, implica Um confronto de orientações ideológicas.
De um lado, as lideranças que articularam a lmagem de um
país branco ou mestiço com restrições às influências negras; 2 Melvin L. de Pleur, Teorias da ccnnunicaçie demassa, Rio de Janeiro, 1971, p. 29.

32 -i 33
i
1:
"Wl
.- " .. ., L J 4 '>" ;; 4 • ii ao.".; q ;•• GIG ;. ,
• ••• ' UI tt' l' • no rrrbs? 1m". 7br '1' __

Ainda uma vez, no jogo de luz e sombras do cotidiano,


se diluem. Em vista disso, as relações se estabelecem median- os atares vivem a tensão de terem que iluminar um ou outro
te um clima de supeitas e os atores desse enredo são, de algu- dentre os sentidos possíveis dos discursos. A partir dai,
ma forma, tocados pelas contradições de uma sociedade uma nova ambivalência pode ser divisada, já que o ato de
multiétnica que tem investido pouco numa ética de valorização iluminar um sentido implica lançar sombras sobre outros sen-
da diferença. tidos, que permanecem latentes. Se a opção por um sentido e
A busca das sínteses estimula uma vivência cotidiana não por outro já constitui um procedimento ideológico, ain-
em que sujeitos situados fora do padrão de uma identidade da é necessário levar em conta que as noções de sentido equi-
se tornam suspeitos. Por isso, a suspeita se constitui como vocado ou sentido pertinente também se articulam com base
categoria social ambívalente, ora voltada para os interesses em certas disposições ideológicas.
de grupos dominantes, ora aberta como um critério de crítica Por isso, destacamos a importância do papel que a mídia
à exclusão. impressa desempenha nos jogos de luz e sombra do cotidia-
No primeiro caso, o perfil identitário de um Brasil no. Além da expectativa que capta a reduplicação da ideolo-
embranquecido, patriarcal, de classes média e alta coloca sob gia de certos segmentos sociais em jornais e revistas, é inte-
suspeita o Brasil do "desvio" representado por negros, índios, ressante analisar como o discurso de exclusão étnica desses
mestiços, homossexuais e pobres - isto para nos atermos somen- veículos se torna objeto de consumo dos próprios excluídos.
te aos aspectos de etnia, gênero e condição econômica. No se- Consideramos aqui. a hipótese da falta de opções dos excluí-
gundo' caso, a suspeita consiste num recurso de autocrítica, que dos negros, apesar do mercado editorial brasileiro ser bas-
tante diversificado. Além disso, é relevante discutir porque
permite desconfiar do perfil identitário apresentado como sen-
os negros brasileiros, mesmo quando têm opções para reali-
do "o valor" da sociedade brasileira. Além disso, o ato de sus-
zar seus discursos na mídia impressa, tomam por referência
peitar questiona a prática que exclui as diferenças apenas por- o modelo que os exclui.
que se articulam como outras identidades e interroga os senti- Nesse caso, não se trata de satanizar a mfdia impressa,
dos dos discursos que tentam impor sua hegemonia. pura e simplesmente, mas de verificar que sentidos da mídia
Adotamos a segunda perspectiva da suspeita para ana- têm sido iluminados pelos produtores e leitores de jornais e
lisar a exclusão étnica, pois entendemos que assim é possível revistas. Como essas operações se desdobram no cotidiano -
fazer a crítica aos discursos estabelecidos, tecer nossa basta observar o interesse das pessoas que se acercam das
autocrítica e expor nossa interpretação à crítica de outros bancas de jornais, buscando e trocando informações -, julga-
analistas. Não pretendemos redigir um discurso de condena- mos pertinente analisar como as opiniões de senso comum
ção da palavra ou da imagem mas, cientes da limitação do são manipuladas para delinear certas representações dos
recorte, optamos por analisar o modo como esses instrumen- negros brasileiros. Nossa análise pretende verificar como a
tos se tornam, simultaneamente, o meio e a mensagem da midia, percebida como veículo de informação coletiva, idea-
exclusão étnica." Ou seja, como a palavra e a imagem tradu- liza e expande os conceitos que as pessoas compartilham no
zem o sentido da exclusão na medida em que são, também, a dia-a-dia, embora os indivíduos exprimam esses conceitos
prática da exclusão, como exemplificam frases do tipo "negro como propriedade particular."
não é gente" ou imagens de negros comparados a doenças.
セ As piadas ou frases sobre negros podem ser elaboradas por um indivíduo,
mas a tendência é de se tornarem parte de um repertório coleüvo. Mas,
isso não impede que as piadas ou frases já pertencentes ao repertório
3Yer Marshall Macluhan, Os meios de connmícação, São Paulo, 1971, Pi 21.
35
34
A ênfase na mfdia impressa decorre do percurso histó- A par do que foi dito, Ardis da imagem - exclusão étnica
rico que orienta nossas reflexões. Partimos dos periódicos do
século XIX para chegar aos contemporâneos na expectativa
,
セ e violência nos discursos da cultura brasileira se apresenta como
uma notícia sobre o cotidiano, portanto, como evento histó-
de compreender como as imagens impressas reduplicam os II rico, cujos sentidos não se esgotam em si mesmos. A notícia,
preconceitos contra os negros já evidenciados no discurso
, aqui, é informação acerca de determinada realidade, mas se
oral. Esse percurso nos ajuda a perceber um painel social em I trata de notícia interpretada segundo um certo ponto de vis-
que a imagem dos negros veio sendo administrada com a
intenção de realçá-los como imagens de sentidos estabeleci-
dos a priori. Portanto, a visibilidade das populações negras
i !
ta do redator. Por se tratar de assunto relevante, esperamos
contribuir para um debate interessado, que mapeie a forma-
ção de opiniões voltadas para a dignidade humana e para os
não pode serpensada apenas sob o ponto de vista estético. É
necessário considerar as implicações políticas desse fato, pois
a ênfase no caráter negativo dos negros aponta o seu supos-
II sujeitos que têm direito a ela.

to despreparo para as funções estratégicas da sociedade, bem


como justifica a necessidade de outros segmentos assumirem
essas funções por eles.'
I,I
Nossa análise pretende ser uma contribuição aos estu- ,
dos acerca das relações de poder que passam do espaço pri- I
vado para o espaço público, tendo a midia - especificamente
a impressa - como canal de difusão e, também, como 1
materialização de certas orientações ideológicas. I
°
Assim, as notícias sobre escravo que fugiu, no século
I
XIX, ou sobre a trajetória da mulata de sucesso, na atualida- i
de, indicam a transmutação de 'eventos do espaço privado
(do senhor e da família, respectivamente) em eventos de do-
II
mínio público, uma vez que se tornam alvos de interesse de
diferentes tipos de leitores. Dentre as questões a serem consi-
lI,
deradas, nesses casos, estão o apelo à sociedade para empe- :i
nhar-se' na discussão sobre uma ética de atuação da mídia e I
a possibilidade de a mídia impressa vir a consituir-se como
tribunal público - uma vez que atua na informação, na inter-
I
I
pretação dos fatos e na formação de opiniões."

coletivo sejam exibidas como propriedades de um sujeito. Isso está sujacente


Iセ
"

à expectativa criada em torno de alguém que se anuncia, ou é anunciado"


I
como "especialista" em piadas, de negros e, acrescentando, de mulheres,
I

judeus, homossexuais, portugueses.
5 Sobre a administração da visibilidade na mídia ver John B. Thompson, A.
mídía e a modernidade, Petrópolis, 1998,p. 12l.
6 Melvin L. de Fleur, op. cit., 1971, p. 196.

36 37

.",#, •• -g;.- «- -i.- r' ..« .4 4, ,..= -. --- -''''4'' _" i. ..'-, " LU
0>, 4& lU ;0.0; ii
Q. • • CP

. " 's tttt'd.... S' t _1 d
' ; " } 'W" mo , " -_"m,,' '$ 'm 57 '$ .m'.=__ .

m
tt- soas no corpo, na maneira como pensam, agem e exprimem
seus desejos. Se o discurso dominante enfatiza, através da
er mídia, a participação exemplar de todas as etnias em even-
tos coletivos como o carnaval ou uma partida de futebol, por
outro lado, não há como dissimular a agressão física e moral
da polícia contra um negro, apenas por considerá-lo suspei-
to durante uma blitz.8
Nos cantatas individuais, o sujeito negro se depara di-
OBJETOS SUSPEITOS retamente com a razão porque é discriminado, na medida
em que ser negro é a condição sine qua non para que as atitu-
des dos outros indivíduos em relação a ele sejam de receio e
"e os que não são eles que são sãos e os que não são
todos os que são mas não acham que são como os outros que distanciamento. Vale lembrar as análises de Frantz Fanon
se entendam que se expliquem que se cuidem que se" acerca do fato de que a despersonalização vivida pelo negro
decorre, em grande parte, do modo como o seu corpo é apri-
Ricardo Aleixo de Brito' sionado pelos olhares que o excluem."
Esses olhares revelam, simultaneamente, um medo e
UM TEMA, SEUS NOMES um desejo em relação ao negro na medida em que o perce-
bem como a diferença a ser evitada e como a provocação
o cenário das relações étnicas no Brasil apresenta um para a tessitura de outros liames históricos, sociais e 。ヲ・エセカッウN
grau de violência comparável aos regimes mais drásticos de Essa dupla percepção é articulada como trama SOCIal e
apartheíd, embora a sociedade insista em minimizar as con- interpessoal, o que nos leva a considerar o fato de que ela
seqüências dessa e de outras práticas de exclusão. Do pon- interfere não só nos modos como o negro é olhado pelo Ou-
to de vista coletivo. tem-se sustentado o ideal de um Brasil tro, mas também na maneira como os negros olham para si
em que os diferentes grupos convivem numa situação de mesmos.
relativa estabilidade. As divergências por motivos étnicos Mas, essa ambivalência é desfeita quando os cantatas
são tratadas como fatos esporádicos, que tendem a ser dilu- individuais ocorrem num momento competitivo; nessas oca-
ídos em meio às questões de ordem econômica e política. siões, as ideologias tendem a se tornar elementos de negocia-
Por isso, o discurso dominante insiste em afirmar que so- ção ou de imposição que contribuem para delinear o lugar
mos um país de ricos e pobres, mais do que um outro país dos indivíduos no jogo social. No momento competitivo as
em que pessoas de diferentes origens étnicas se debatem em ideologias de exclusão são apresentadas sem eufemismos e,
busca da ascensão social. no tocante às questões étnicas, mostram que os sujeitos ne-
Do ponto de vista dos indivíduos, no entanto, a
dramaticidade das relações é evidente pois a exclusão por
motivos étnicos constitui um fato concreto, que atinge as pes-
8Sobre o receio dos negros frente às forças policiais ver Hédio Silva [r.,
"Crónica da culpa anunciada", ln: Oliveira, Dijaci David de (org.). Acordo
medo, Brasília/ Goiânia, 1998,P. 83-85.
"Ricardo Aleixo de Brito "Brancos" ln: Heloísa Buarque de Hollanda (org.), "ver Frantz Fanon, Pele negra, máscaras broncos, Rio de Janeiro, 1983. Homi
Esses poetas: nme antologia dosanos 90, Rio de Janeiro, 1998, p. 267. K. Bhabha retoma a discussão desse tema em O local da cultura, Belo Hori-
zonte, 1998, p. 73.
38
39
gros e não-negros colocam em risco apossibilidede de sua
pela presença do Outro. As ações de quem assume o centro
interação se não se dispõem a respeitar-se mutuamente. À
do enredo transitam nos limites do .cômico - que desautoriza
proporção que falta o respeito mútuo, instaura-se a lingua- o Outro empregando a tética de expô-lo ao ridículo - e do
gem da violência e através dela os indivíduos marcam seus
trágico - que aposta em sua eliminação mediante a aplicação
espaços de sobrevivência, estabelecendo e reduplicando li-
da violência.
nhas de valores que indicam os contornos de grupos
O aspecto prático dessas possibilidades se exprime no
hegemõnicos e subalternos. Em geral.essa violência se
repertório de piadas, frases e caricaturas que a sociedade assi-
exterioriza nos microespaços da sociedade, tais como esco-
mila como sendo a representação do Outro. Veja-se a repre-
las, saguões de hotéis e edifícios, em casas de espetéculos,
sentação negativa dos negros brasileiros a partir de un: :ecor-
ônibus, hospitais, ou seja, nos locais onde os indivíduos se
te baseado no cômico para desautorizar a sua condição de
encontram parél, entretecer as redes de convivência social.
pessoa e de sujeito social. Nesse caso, GーイッセオZ。MウL・ realçar os
No presente estudo, a pesquisa empírica é o ponto de aspectos do negro boçal, ingênuo e sem inteligência, que pode
partida para delinear a exclusão étnica como um drama que ser manipulado como objeto. Por outro lado, tem-se a ー・イセ
restringe os processos de inter-relações sociais. Ao tratá-la pectiva trágica em que a representação do negr.o - [a
como um drama, consideramos o sentido que esse termo apre-
desautorizada pela exposição ao ridículo - é ・ウエ。「ャZセ セ・
senta no campo estético para tentar compreender através dele modo a justificar o seu exílio das instâncias sociais privilegia-
as intervenções que os atares sociais fazem a partir de um
das. Nesse ponto, percebe-se o interesse em L、・ュッョウセ。イ que o
script que estimula as práticas de exclusão. A exclusão, como negro constitui um elemento de 、・ウ セオゥャセョッ na sociedade. O
drama, nos leva a considerar dois fatores centrais: a partici-
que justifica as ações repressoras アNオセ ャdcQ、・セ sobre ele ..
.pação dos atares e a configuração de um processo comuni-
O discurso que os atares SOCIaIS orgamzam a partir das
cativo que evidenciam.a exclusão como um processo social-
possibilidades cômicas e trágicas da exclusão configura um
mente articulado.
processo comunicativo, em que excluídos, e agentes-da-e,::-
É interessante pensar o drama como elaboração comu- clusão se confrontam diretamente. O discurso e a açao
nicativa essencialmente teatral, cujas possibilidades de repre- excludente adquirem relevância na ュ・、ゥセ em que se tor-
sentação de situações trágicas e cômicas se concretizam me- nam prática social, daí a necessidade de-abrir car::unhos para
diante a participação dos atores sociais, Daí a importância o seu florescimento. Em outros termos, a exclusao faz parte
do diálogo para estabelecer a ambiência dramática, pois é de uma lógica de poder e, ao manifestar-se, revela a ュ£アオセᆳ
através dele que os atores se relacionam para debater sobre
na do poder à qual ー・イエ ョセ・N mGBZゥエ。セ セ・コ ウL o 。エセ de ・ク」セオNiイ
os sentidos que pretendem revelar e ocultar simultaneamen- pode parecer discurso e açao do 'individuo, mas e ョセ」・ウ。ッ
te. Além disso, a tensão ocasionada pela diversidade de sen- inquirir quais são as instituições de poder que エ 。 セ 「 ・ ュ falam
tidos que se pode atribuir ao mundo, cria o estado perma-
através do indivíduo. Esse fato é interessante pOIS nos leva a
nente de luta pelo domínio da comunicação: o atar dra-
considerar a exclusão como uma articulação social que, em-
mático, mesmo em silêncio, é um sujeito que convida à co- bora possa ocorrer 'nos limites das relações interpessoais, tam-
municação, pois a sua atuação implica a elaboração de enre-
bém as ultrapassa. _. .
dos que interferem no desenho das relações interpessoais e
O processo comunicativo da exc1usao impl ica o
intergrupais.
envolvimento dos atares individualmente e, ao mesmo tem-
O drama da exclusão conta com atares sociais que. te- po, das instituições e grupos aos quais pertencem, セッ「 esse
cem seus discursos fi luz da sedução e do medo despertados ponto de vista, o drama da exclusão pode ser considerado
40 41

.. ... .... 4 .... . .,: 41 '444>4"""' •• li'" 4# h li ii E4


to
,. t _.' dr t t' ,.m' '. . e. O. kM .r tfn.e. "t. "

como elaboração ideológica que se realiza dentro de uma pessoais da auxiliar de pesquisa, já que a mesma não teve a
sociedade competitiva. Os indivíduos e os grupos estabele- intenção de transformar seu depoimento em fonte de investi-
cem representações de si mesmos e do Outro mediante um gação; por outro, observamos que suas opiniões pertencem a
repertório de valores delineados hierarquicamente. Ou seja, um conjunto mais amplo, ou seja, constituem uma elabora-
,
a definição das representações ocorre a partir do momento 0', ção discursiva que identifica o modo como certos grupos
em que o desejo de ser o centro (Eu e Nós) e não a periferia sociais representam os negros. Percebe-se, muitas vezes, que
(Outro e Eles) evidencia o confronto entre os atares sociais. o indivíduo reduplica a ideologia de seu grupo e, mesmo quan-
O que é dito sobre o Eu (como síntese da identidade) e do reconhece a violência que a caracteriza, se vê impedido
sobre o Outro (como crítica à diferença) constitui uma par- de elaborar um discurso de contestação.
cela de um processo comunicativo maior ligado às estratégi-
as políticas, económicas, culturais e que é apresentado à so- "você não imagina o preconceito que tenho! E até que me
ciedade como um fato resolvido. Porém, como se trata de um esforço pra não ter, mas é difícil, cresci. com várias pessoas de
processo, é interessante observar a atuação dos atores sociais minha familia falando horrores sobre os negros na minha frente.
e os canais que empregam ao transmitirem os discursos que Bobagens, eu sei..
mapeiam as relações de exclusão. Para o tema que investiga- Você pode imaginar a loucura que é ter alunos pretos, ver
mos, temos como atares os negros e os brancos, e como ca- os outros alunos com gozações o tempo todo e ter que recriminá-
nais as instituições e os meios de comunicação. A partir des- los, enquanto, por dentro, eu própria os discrimino. Acho Hセ・ョィッ
certeza, aliás) que é por isso que falo, falo e de nada adianta!
ses elementos podemos perceber o esboço de um cenário em Cheguei a pedir, no início do ano, que não me dessem エオイュセウ
que as relações de exclusão por motivos étnicos se desenvol- com pretos, que não sei lidar com o problema... e eu tento não
vem de maneira tensa e violenta. ser racista, jurei!Mas é inútil. Outro dia, fui fazer concurso do
A título de exemplo, vejamos esse quadro dramático Pitágoras, em B.H. e quando encontrei minha sala, bati com o
olho numa pretinha. Pensei: coitada, que coragem, está
na escola - local que, na contramão de suas funções
perdendo tempo... e quando ela levantou, vi que estava grávida,
socializantes, tem se caracterizado como instância de ocor- aí pensei: nossa, vai pôr mais um prá sofrer no mundo, que
rência da exclusão. O enredo tem como cenário a escola (es- coragem! Porque os negros sofrem demais, pelo menos por aqui,
paço institucionalizado), como atores a professora (que ex- é uma loucura."
prime as opiniões de seu grupo familiar) e o aluno (que Professora B.
busca na instituição os recursos para confrontar-se com a Dívinópolís, MG, 23-11-1986
exclusão). A escola e a professora, em geral, se posicionam
no centro da trama, obtendo, com isso, a autorização para
representar os alunos como habitantes da periferia.
o relato da professora B. faz parte do cotidiano de
muitas escolas brasileiras, embora permaneça o pacto de si-
O depoimento a seguir procede da pesquisa que reali- lêncio que leva a instituição e os excluídos a evitarem o deba-
zamos, desde 1979, para reunir imagens, piadas e frases so- te aberto sobre o terna." Os confrontos entre os atores e a
bre negros a serem analisadas no decorrer deste estudo. O existência de uma ideologia de exclusão na escola aponta para
depoimento foi registrado em correspondência pessoal envi-
ada ao pesquisador por uma professora de escola municipal,
em Divinópolis, Minas Gerais, que colaborou com o levanta-
mento de informações sobre a discriminação contra os ne- "Sobre as relações de discriminação estabelecidas pela escola e pela socieda-
de, ver Nilma Líno Gomes, A mulher negra qllevi deperto, Belo Horizonte,
gros. Por um lado, julgamos pertinente resguardar os dados 1995, p. 68.
42 43
uma sociedade cuja prática de exclusão vem se constituindo transforma em cenário onde os negros e outros segmentos
como Um dos eixos de sua organização. No relato' da profes- são tratados de maneira hostil. Esse drama, resultante da ela-
sora B. encontramos os recursos que a sociedade, em geral, boração ideológica e da prática de exclusão, pode ser obser-
emprega para excluir os negros: a primeira atitude é vado corno processo comunicativo que revela algumas das
desqualificar os negros: a expressão "uma pretinha" revela a tensões da sociedade brasileira. É portanto, como uma forma
intenção de identificar os negros de forma pejorativa, consi- de comunicação que desejamos analisar a exclusão por moti-
derando-os como elementos à parte da sociedade. Em segui- vos étnicos. Para tanto, é necessário pensá-la cama um as-
da, afirma-se o privilégio daqueles que elaboram o discurso pecto relacionado à formação social brasileira, e que adquire
de discriminação: a escola e o corpo docente se tornam novas configurações à medida em que a própria sociedade
irradiadores de uma visão de mundo etnocêntrica, que resul- amplia sua capacidade para articular e divulgar suas ideo-
ta na exclusão daqueles não identificados com o padrão étni- logias.
co-cultural dominante. Uma parcela considerável dos estudos a respeito dos
Cena semelhante se desenrola nos meios de comunica- negros brasileiros vem se detendo sobre os aspectos de seu
ção. Tal como a escola, eles evidenciam a exclusão como a patrimônio cultural ou de sua marginalidade decorrente
prática social cotidiana que atinge os negros. A exclusão por da exclusão étnica e social. No entanto, poucas investiga-
motivos étnicos passa a ocupar também a moderna rede de ções abordam os mecanismos utilizados para tecer ideologi-
comunicações internacionais, além dos veículos já conheci- as que atuam no cotidiano e contribuem para a exclusão dos
dos - como jornais, revistas e emissoras de televisão. A Internet, negros. Tem sido habitual analisar aquilo que é dito ou feito
por exemplo, tem permitido aos indivíduos e grupos trans-. contra os negros brasileiros, isto é, o resultado final de um
mitirem as ideologias de exclusão numa velocidade maior que esquema maior em que os motivos de exclusão são arranja-
a dos outros meios. A dificuldade de estabelecer uma orien- dos. Em outros termos, analisa-se fragmentos da exclusão -
tação ética para o uso desse tipo de meios cria situações gra- o discurso ou a prática -', mas não se leva em conta a cena
ves, na medida em que a rede adotada por instituições como dramática da qual eles fazem parte, incluindo os atares soci-
a universidade oferece aos usuários individuais recursos para ais, os espaços que ocupam., os meios de comunicação que
que divulguem seus discursos de exclusão. Veja-se os casos empregam e, sobretudo, as teias do pensamento e do imagi-
em que estudantes utilizam a rede de suas instituições para nário acerca da exclusão presentes na formação e no desen-
veicular propagandas contra negros e homossexuais ou volvimento da sociedade brasileira.
para fazer a apologia da violência.!' O crescente processo de mundialização dos enredos
Uma vez mais, o espaço do cotidiano - representado sociais tem sugerido a possibilidade de pensar as relações ét-
pela escola, a universidade e os meios de comunicação セ se nicas nos âmbitos local e internacional, simultaneamente. Isso
se considerarmos que o combate às diferentes formas de ex-
clusão não constitui a necessidade de um grupo, mas dos
cidadãos e sociedades comprometidos com a defesa dos di-
II Ver a denúncia contra o discente da Universidade: Federal de]uiz de Fora, reitos humanos. A compreensão das relações étnicas no âm-
acusado de usar a rede da instifuiçâo para difundir mensagens contra bito local depende também do entendimento daquilo que
negros e homossexuais. "Fim da sindicância: UFJF responsabiliza aluno
por racismo", ln: Tribuna deMinas,Juiz de Fora, "Cidade", Quarta-feira, 13 ocorre em outras sociedades, pois a exclusão, ao fazer viti-
de agosto de 1997, p. 1. mas individuais, vitimiza os seres humanos como um todo e
44 45

セ ". 4 a =Nセ $
BM Bセ M M BA AB G
ri'!t S' t'

$ r,/'...
,
j;
....-----------
7 n z p ".'"
557' ?S7

revela Como diferentes sociedades se assemelham nos esque- r: riais, revistas e televisão, em grande parte do tempo se ocu-
mas de produção da violência. 12 pam da transmissão de modelos culturais que excluem de
A análise do drama da exclusão no Brasil é também suas instâncias de produção escalas consideráveis do públi-
セュ。 エ・ョセ。エゥカセ de compreender como as redes de comunica- co. Ou seja, a midia estabelece recortes da diversidade cultu-
çao l.ocaIS セ ínternacionaís contribuem para criticar ou di- ral brasileira e os apresenta como se fossem o centro e mode-
fundir os discursos e práticas discriminatórias. Para tanto é lo de uma cultura brasileira. Nesse acervo de recortes, rara-
fundamen.tal que possamos conhecer as especificidades das mente são privilegiados os aspectos da cultura brasileira re-
redes locais. através das quais a sociedade brasileira organi- lacionados aos negros; quando isso ocorre, como já frisamos,
zou o seu processo comunicativo de exclusão dos negros, é de maneira estereotipada."
, セZオュL。 カャウセエ。 ao século XIX deparamos com várias pu- Vale chamar a atenção para a complexidade que envol-
「ィ」セ￧ッ ウ P イョ。Qsヲー。セアオゥョウL revistas) que foram incorpora- ve a tessitura do estereótipo pois, como alerta Horni Bhabha,
das a vida de certa faixa das populações urbanas e rurais. A ele "é uma forma de conhecimento e identificação que vacila
chegada 、・ウセ。 publicações nas áreas rurais - em geral para entre o que está sempre 'no lugar', já conhecido, e algo que
grupos, restntos de intelectuais, políticos e outros mandatári- deve ser ansiosamente repetido"." É dessa oscilação que nas-
os locais - e sua presença cada Vez mais constante nas áreas ce a força do estereótipo, infiltrado nos jogos sociais como "um
urbanas demonstra a formação do hábito de o indivíduo se modo arnbivalente de conhecimento e poder" .15
、・ヲイッセエ。L di,ariamente, com as representações elaboradas a No caso específico dos negros brasileiros, a elaboração
respeíto de SI mesmo e do Outro, de estereótipos resulta de uma articulação que os situa den-
A nO,ssa 。ゥセ impressa tem-se constituído como espa- tro e fora da sociedade, de acordo com as conveniências dos
￧セ de amblVal:ncla para a representação dos negros, na' me- grupos mais influentes. Os negros se tornam uma representa-
d.Ida em que nao os toma como agentes sociais _ daí a ausên- ção conhecida e desconhecida, na medida em que o estereóti-
CIa de negros em muitas das páginas editadas セ ou os apre- po informa à sociedade que eles são o agente negativo, mas a
s:nta segundo:rm recorte estigmatizado - veja-se a reitera- deixa em suspense por não lhe revelar as outras faces que os
çao de estereótipos de negros atletas, artistas ou marginais. negros podem assumir, Na tentativa de preencher as lacu-
Isso decorre do processo histórico-social brasileiro que confi- nas dessa ambivalência, sociedade e indivíduos se empenham
gurou, desde as suas origens, vários esquemas de exclusão na reiteração dos estereótipos como se fosse uma estratégia
de grupos menos favorecidos, destacando entre eles os ne- para justificar o processo histórico baseado nas práticas de
gros e seus descendentes. Meios de comunicação como jor- exclusão e para sustentar um sentido de verdade para esse
mesmo processo.
nA .. Em vista disso, a relação entre as elaborações discursivas
au:encla ou a representação estereotipada dos negros em livros e periódi- e os meios de comunicação se reveste de grande importância
cos e ・クセューャッ de uma 9uestão que. pode ser melhor compreendida se
levan;,os em cont.a 。セ s.?cledades locais e a sua inserção no quadro mundial.
pois, através das primeíres.sujeíto e sociedade exercitam
Essa e _uma contribuição para a busca de soluções dos processos locais de
・ク」ャセウoL na expectati:va de que seus efeitos alcancem repercussões exter-
nas. セ interessante verificar como sociedades distintas, a brasileira e a norte-
13 Sobre as contradições da mídía impressa no tratamento das questões étni-
amencare, セZ セ・ー。イ ュ co.m a アセ・ウエ ̄ッ dos negros e sua representação nos
livros e periódicos. cas ver Fernando Costa da Conceição, "Qual a cor da imprensa", ln: Díjaci
C . "TI M' .Ver Nílma .Lmo , ' op. cito , 1997,p.,
.Gomes 67, K'irs t en A .
David de Oliveira et ai (org.), A cor do medo, Brasília, 1998, P: 155.
onover, ,1e lss.mgFac,esln Childrcn s Tales: Absence ofblacks ín pictl.lre
books coincides wíth racial conflicts", lN: Tlw Christian Science Monitor 14 Horní K; Bhabha, op. cito 1998, p.IOI.
Boston, Massachusetts, Tuesdav, Aprill, 1997. ' "Idem p.103.
46 47
sua competência para manipular as ideologias com que ヲエ_イ￧。Mセーイ。ァュ£エゥ」。 que revela nos sujeitos o desejo de in-
desenham os estereótipos e, através dos segundos, bus-
cam difundir o, discurso que, uma vez compartilhado,
1:0 terfenr :nundo "de forma a dirigi-lo para seus propósi-
tos, dominá-lo ou, na medida em que se torna impossível
lhes garante a legitimação. Cumpre frisar que essa rela- ajustar-se a e l e . " 1 6 , '
ção não é mecânica, Ou seja, as elaborações discursivas e . No tocante aos negros, percebe-se a existência de uma
os meios de comunicação podem atuar em direção opos- ッョセエ。￧ ̄ ide':.lógica dominante que estimula a construção
ta, estabelecendo a crítica dos estereótipos e propondo de representações baseadas no sentido conservador do senso
estratégias para superá-los. comum. Os negros são representados de maneira estereoti-
No momento, abordaremos o lado dessa relação que pada 」ッセ se isto fosse tuna verdade dada a priori e aceita
reforça os procedimentos de exclusão, isto é, absorven- セ・ャ。 sociedade como justificativa para admitir que a inferic-
do, reformulando e difundindo estereótipos que situam ridade dos negros parece ser incontestável. O aspecto conser-
os negros à margem da sociedade brasileira. Trata-se de vador do senso comum restringe as possibilidades de contes-
um percurso que visa observar a montagem dos discur- tar os estereótipos sociais, pois lhes atribui um caráter de fato
sos de exclusão para, a partir daí, vislumbrar uma análi- ョセエオイ。ャN Em outras palavras, as ideologias dominantes, atra-
se teórica 'que seja, também, uma reação política ao ves do senso COmum, fazem com que um fato socialmente
determinismo presente nas maneiras de representar os 」_ョセエ オ■、 adquira status de fato natural. Na prática, isso
negros brasileiros. significa dízer que a exclusão por motivos étnicos está basea-
A mídia, embora não seja a sociedade, se apresenta da na orientação ideológica que faz parecer natural-um fato
como 'fruto da sociedade e nos permite observar que vá- criado a partir de ゥョエセイ・ウ de determinados grupos e divul-
rios aspectos da representação dos negros, antes de che- gado como verdade inerente à própria sociedade.
garem aos meios de comunicação de massa, já estavam .Por outro lado, o senso comum sugere aberturas que
organizados e repercutiam no interior dos' grupos soci- permitem contestar a idéia de aceitação do mundo como ele
ais. Nesse sentido, é pertinente notar que o imaginário é ou parece ser. Através dessas aberturas, os 'atares sociais e
acerca dos negros teve, e-tem, o seu terreno fértil no sen- ッセ セイオッウ ー「セ・ュ interferir na construção de seus espaços de
so comum que orienta, de um modo geral, a vida dos vivênciaPor ISSO, os sentidos do mundo Se tornam variáveis
indivíduos e dos grupos. Por isso, como veremos no de- articuladas a partir das relações entre identidade e alteridade
correr deste estudo, é possível rastrear a conivência en- alteridade, cuja maior conseqüência consiste no empenho dos
tre a mídia e o público no processo de exclusão dos ne- atares sociais para realizarem a afirmação ou a crítica dos
gros, uma vez que a primeira cria novos estereótipos mas valores que os orienta.
também reitera antigos estereótipos difundidos no coti- As elites brasileiras, por exemplo, utilizaram as aber-
diano da população brasileira. turas セッ sens? COmum para desenhar imagens dos negros da
O senso comum permeia as relações sociais, atuan- maneira que JUlgaram conveniente para atender aos seus in-
do como elemento definidor da busca de sentido para a teresses: Assim sendo, afirmaram sua ideologia de identida-
vida em sociedade e, no dizer de Clifford Ceertz, pode de medl.ante a desautorização do Outro-negro como possível
ser compreendido a partir de dois eixos: inicialmente referencial de uma identidade nacional. O ponto ferino des-
como I/simples aceitação do mundo, dos seus objetos e
dos processos exatamente como se apresentam, como
parecem ser". Noutra perspectiva, o senso comum é uma rs Clifford Ceertz, A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, 1989, p. 127.

48
ェセ
49

_______________________.",t
la "u, 1# #4422i
IS
• =; .e
"
sa situação セ アセ・L セ[。 passagem do negro bom escravo para o
negro ,mau cidadão. . o,syróprios negros e descendentes foram ralou de uma resistência social a ser resgatada. Aí se incluem os
seduzidos ーセャ。 ーosウセ「ャィ、。 ・ de interpretarem a si mesmos de paradigmas dos negros de países como a Nigéria e o Benin (que
form,a negativa, 。sセャュ como estava proposto nos periódicos sugerem o reencontro da África-Mãe através das matrizes re-
、ッセョ。、ッセ pelas elítes econômícas e intelectuais do país. Em ligiosas iorubés), a Jamaica (que é tomada corno referência de
」ッョエiセー。イィ、 L as aberturas do senso comum constituem um liberdade construída através da arte, especialmente a música) e
desaÚ? para アオセ os brasileiros encontrem meios de criticar os os Estados Unidos (que demonstram a possibilidade de conquista
estereotipas e, simultaneamente, delinear representações em de direitos através dos movimentos civis).
que os, セ・ァイッウ

II
sejam reconhecidos como sujeitos sociais. A adoção desses paradigmas apresenta resultados ime-
_ E Importante frisar que o senso COmum por si mesmo diatos nos comportamentos, quando os negros locais - ape-
nao atua como Nヲッセエ・ de representações negativas ou positivas sar de possuírem laços históricos profundos que os vinculam
dos negros brasileiros. A manipulação que os diferentes segmen- aos negros de outros países - se limitam a reproduzir os as-
tos SOCIaIS fazem do potencial do senso comum para alimen- pectos que a mídia divulga, Em vista disso, verifica-se que os
tar セ construção de sentidos é que sustenta as práticas de ex- modos de agir e pensar dos negros brasileiros se explicita como
、セャ。ッ contra negros, nordestinos, mulheres, homossexuais, ai- I uma brico/age de valores que necessitam de um período para
_MセエicosL etc. Mas" como o senso comum parece não possuir su- se conectarem às estruturas da nova realidade social. Nesse
j・ャセッZ
praticas d,e セクャオウ ̄ッ
que o manipulam, a sociedade aceita como natural as
セオ・ são veiculadas atravésdalinguagem
I intervalo, o que se percebe é a tentativa de os negros brasilei-
ros afirmarem suas identidades mediante a adoção de traços
verbal, Hィャウエッョ。セL chistes. piadas, frases feitas) e da lingua- de outros negros que também procuram estabelecer perfis de
gem VIsual Hセ。ョ」エオイウL fotografias, filmes). identidade em seus contextos específicos.
. Os melas de comunicação de massa, de acordo com os Se levarmos em'conta a interferência dos contextos no
mteresses dos grupos dirigentes, utilizam o aspecto ccnser- estabelecimento dos perfis identitérios, teremos de relativizar
vador do ウセョ ッ セッュオ e, quando veiculam os estereótipos o princípio que preconiza uma identidade global entre os
de. nef?ros, Liセ・、ャ。エュョ se justificam, afirmando de ma- negros, cuja possibilidade se revelou através de um espírito
neira iュセィ」Qエ。L セオ estão apenas reduplicando as práticas ,
de solidariedade universal, tal como nos versos de Agostinho
q,ue a SOCIedade matste em aceitar cama jogos de humor. As- Neto (AngoJa,1922-1979):
siセL os セ・ァイッウ das.piadas e frases feitas reaparecem nos jor-
nars, revistas e セュャウッイ。 de televisão, em geral para reafir- "A ti, negro qualquer
fi,ar os valores sintetizados nos estereótipos do negro fora da meu irmão do mesmo sangue
lei, da mulata sensual ou do atleta bem sucedido. - Eu saúdo!
.. セ ュ 。 alternativa a esse padrão são proposições de iden- (.)
tificação dos negros brasileiros com negros situados em ou-
エセッウ 」ッョセ・クエッウ セッ」ゥ。 ウN Nota-se um esforço para que as condi- Esta é a hora de juntos marcharmos
çoes locais de VIda dos negros brasileiros sejam substituídas p corajosamente
outras, consideradas como símbolos de uma identidade 」オャセ
para o mundo de todos
os homens" Qセ

17Clóvis Moura, O negro, de bom escravo a mal! cidadão? Rio de Janeiro 1977
ーNャセ " ,
18 Agostinho Neto, "Saudação", ln: Sagrada Esperança, São Paulo, 1985, P: 47-8.
50
51
Por outro lado, o reconhecimento das diferenças til' na lógica de que os modelos vindos do exterior ultrapas-
contextuais relativiza a criação dos perfis de identidade. Isto sam, em valor, os sentidos das experiências locais.
é, não basta ser negro para pertencer a uma comunidade de Evidentemente, não estamos considerando apenas os
irmãos com mesmos interesses. A interpretação da identida- caracteres alienadores da mídia ou do senso comum. Numa
de como fato que se constrói nas tramas da história obriga à perspectiva dialética, é preciso observá-los também como ele-
relativização dos laços de pertencimento, ou seja, ao lado da mentos através dos quais é possível elaborar estratégias de
semelhança étnica é necessário considerar outros fatores só- defesa da cidadania e de promoção da justiça social. Ou, aín-
cio político-económicos que aproximam ou distanciam os da, como elementos dotados de plasticidade suficiente para
negros. Eis o que nos mostra a poética de Solano Trindade refletir a diversidade identitária que se desenha nos rostos da
(Brasil, 1908-1974), sociedade brasileira.
A análise proposta neste estudo investigará as relações
"Negros que escravizam entre senso comum e meios de comunicação na tentativa de
e vendem negros na Afrlca
não são meus irmãos apreender as representações dos negros brasileiros resul-
tantes desse encontro. Nossa reflexão não é necessariamente
Negros senhores na América sobre a ausência dos negros na mídia, mas sobre a existência
a serviço do capital de uma linha de pensamento que exclui os negros da socie-
não são meus irmãos
dade brasileira em função da maneira como os representa.
Negros opressores Por isso, a partir da vivência cotidiana - através da qual os
em qualquer parte do mundo fatos de exclusão se mostram concretamente - procurare-
não são meus irmãos mos perceber a teia de argumentos que fazem do Brasil uma
Só os negros oprimidos sociedade excludente e violenta, apesar dos idílios que des-
escravizados crevem sua índole pacífica e ordeira.
em luta por liberdade
são meus irmãos
MAPAS DE UMA LEITURA
Para estes tenho um poema
grande como o Nilo".19
A análise do discurso da exclusão por motivos étnicos,
em suas vertentes verbal e visual, tem para nós uma dupla
Os meios de comunicação, na medida em que atuam justificativa. Primeiro, porque a investigação se desenvolve
no processo de representação das identidades, têm oferecido como complemento de pesquisas que realizamos anteriormen-
aos negros brasileiros a oportunidade contraditória de serem te acerca da experiência social de populações negras brasilei-
outros セ e não eles mesmos. Para tanto, não estimulam o de- ras." Abordamos a organização social de grupos economi-
bate acerca do ret'ativismo identitério mas, ao contrário, lan-
çam mão do aspecto conservador do senso comum ao ínves-

ao Gomes & Pereira, Negras raízes mineiras: os Ar/liras, J. Fora, 1988i "Isolados
negros, desolados remanescentes", ln: táunâo encaixado: significação da cu/-
tllra popular, Belo Horizonte, 1992; "Os tambores estão frios: herança cul-
19 SolanoTrindade, "Negros", ln: Tem gente comfome e outros poemas, Rio de tural e sincretismo religioso no ritual de Candombe", Juiz de Fora, inédito,
Janeiro, 1988, p. 15. 1996-2000.

52 53
· h_' '.Hh 't 'Mm rtn :I,.

camente menos favorecidos, habitantes de áreas rurais ou em partidos voltados para a defesa de direitos das classes
periferias urbanas, que encontram na vivência do sagrado menos privilegiadas).
um fator de constituição da identidade. Porém, essa identidade é confrontada pelos discursos
_ O discurso do sagrado nos permitiu verificar a preocu-
,'1 excludentes elaborados por outros grupos, não negros ou de
,i,
paçao das comunidades em afirmar sua identidade ao tomar { tendências políticas não populares. Além disso, há que se
como referência as heranças dos antepassados. Mas, na me- f pensar a identidade como um traço flutuante, cujas repre-
di.da en; que se pensa o discurso celebrativo como parte da sentações podem variar de um grupo étnico para outro e
tela social - portanto, afeito às disputas que envolvem a dentro de um mesmo grupo étnico. Assim sendo, a identida-
busca pela hegemonia simbólica e também política - tor- de absoluta sugerida pela ortodoxia do sagrado ou da ideo-
na-se possível detectar em sua tessitura elementos que evi- logia política tende a ser interrogada por outras identidades
denciam os conflitos de natureza étnica, politica, social e eco- decorrentes das maneiras específicas como os grupos de ne-
ョ￴セ」。N Muitas vezes, o discurso sagrado emitido pelas co- gros brasileiros experimentam o sagrado ou a política.
murudades de negros brasileiros se apresenta como formula- Uma segunda justificativa para a análise dos discursos
ção orgulhosa da identidade, mas também se deixa atraves- de exclusão por motivos étnicos decorre da necessidade de
sar pela visão excludente de discursos elaborados por outros ampliar os debates acerca das chamadas heranças culturais
grupos. Nesse caso, o discurso sagrado se revela como pro- afro-brasileiras, a fim de compreender como as relações coti-
dução social que se exprime a partir de lugares e sujeitos his- dianas - permeadas pela influência dos meios de comunica-
toricamente envolvidos em processos de interação e conflito, ção de massa - se constituem pressionadas pela violência e a
apesar de remeter os devotos para instâncias da experiência intimidação. Nesse contexto de envolvimentos afetivos, dispu-
transcendente." tas no mercado de trabalho, entretenimentos, opções ideoló-
. As Zャ。セッイ￧￵・ウ discursivas que acentuam a exclusão por gicas, etc., a cor "constitui um recurso símbõhco'?" que in-
motivos étnicos, tanto quanto aquelas que acentuam o caré- terfere nas possibilidades de o sujeito ser mais ou menos acei-
エ・セ do sagrado, solicitam オ セ tipo de análise abrangente, Ou to. É seguro que não tocamos num aspecto inédito das rela-
seja:. ッセ ュセ、ッウ de construção das identidades dos negros ções étnicas no Brasil, Mas, o que nos intriga, é justamente
brasileiros incluem suas experiências simbólicas com a reli- sua constante atualidade e os embaraços que se erguem no
gião ou a arte, por exemplo, e bem como suas experiências momento de encontrar novos ângulos para interpretá-lo.
histórica? relacionadas ao corpo e à cor de sua pele. Aqui, vigora, em geral, o traço conservador do senso comum,
Portanto, nas estratégias de singularização"> dos afro- isto é, como sociedade sabemos da exclusão motivada por
brasileiros se desenham num horizonte de contradições. Isto fatores étnicos, mas insistimos em admitir que é difícil olhar
é: a afirmação de uma identidade se torna possível mediante de frente esse tipo específico de discriminação. Nesse caso, a
a adoção da vertente ortodoxa do sagrado (quando o sujeito conclusão consiste em associar a exclusão por motivos étni-
se defíné como n:gro em virtude de sua práxis religiosa liga- cos à exclusão social e económica,
セ。 ao Candomble ou ao Congado) ou de Uma ideologia polí- No entanto, a leitura das vivências cotidianas revela
tíca (quando o sujeito se,diz negro em função de sua militância que, além da discriminação socioeconômica, também ocorre
a discriminação por motivos étnicos. Isso, paralelamente a

<1 Gomes & Pereira, Mundo encaixado, 1992, p. 3S


aa Muniz Sodré, C/aros e escuros, Rio de Janeiro, 1999, p.lO.. 23 Idem, op. cit.,p.197.

54 55
um processo contemporâneo- de "banalização" da problemá- (m;uucipal e estadual) e privado. Muitas vezes, os discentes in-
tica das "estratégias de singularização e 'Soberania' dos ウ・ョセ ュ a pesquisa entre as atividades didáticas em ocasiões セウᆳ
afrodescendentes" operada pela mfdia e pelo mercado.ê' Por pecfficas, como o 13 de maio (Dia da Abolição da Escravatura)
isso, nossa metodologia de pesquisa voltou-se para a ou o 20 de n?vembro (Dia Nacional da Consciência Negra ).
pesquisa de campo, a fim de registrar parte do discurso ver- Parte expressiva dos levantamentos ocorreu em 1988, ano em
bal e visual que, diariamente, serve como instrumento de que se comemorou o Centenário de Abolição da Escravatura.
confronto entre as pessoas que constituem o quadr o Esses ュッセョ ウL ao ocuparem maior espaço na mídía,
multiétnico da população brasileira. repercutem nas atividades pedagógicas, motivando alunos e
A medida que acentuamos a visibilidade dessa forma professores
. para os temas considerados polémicos ' Por iss セ・ '
de exclusão," apostamos nas possibilidades de estabelecer importante observar - para dimensionar criticamente セ a in-
outra prática social, atenta à necessidade do diálogo entre os terfe.rência da mídia no processo ensino-aprendizagem,.. na
diversos grupos definidos, segundo suas particularidades de medida em que junto com uma pauta de temas também são
etnia, gênero, faixa etária ou condição socioeconômica. ッヲセイ・」ゥ、ッウ discursos de diferentes tendências. Durante a -pes-
Mediante as justificativas, delineamos o objetivo cen- アuisセL .em 1988, verificamos que os temas acerca dos negros
tral da abordagem, que consiste em evidenciar como as rela- brasileiros ganhou espaço nas escolas à proporção que mere-
ções entre discurso oral e discurso visual têm sido articula- 」・イセュ algum destaque em programas de televisão, jornais e
das para compor imagens estereotipadas dos negros brasilei- revistas. Em muitos casos, as edições impressas funcionaram
ros. Em torno desse objetivo, traçamos outros que se como motivadores para atividades realizadas em sala de aula.
complementam e ampliam nosso campo de investigação, Sen- No entanto, cessados os momentos de celebração cívi-
do assim, nos empenhamos e11,1; analisar a atuação da midia ca, reencontramos a dificuldade para abordar o tema da 'Vio-
impressa diante das tensões diárias motivadas por questões lência causada por razões étnicas. Para seguir a pesquisa,
étnicas; demonstrar como os vínculosentre "senso comum e 」ッセ。ュッウ com o emp:nho pessoal de vários docentes, negros
mídia podem ser manipulados para construir os discursos de ・[ョセッ セ・ァイッウN Em venas escolas, o tema mereceu atenção es-
exclusão; e, por fim, apontar a estratégia de mascaramento porádica, ao passo que, em outras, o envolvimento pessoal
que encobre ii exclusão étnica veiculada por textos e" imagens dos docentes contribuiu para a abertura de discussões sobre
alusivos aos negros brasileiros. outros temas considerados polêmicos, como o flagelo das dro-
Para levantarmos o corpus do discurso de exclusão, con- ?a,s, a ・クーイゥ↑ョ」セ。 'da sexualidade, a violência familiar, os ーイ・セ
sideramos as etapas da pesquisa de campo e da pesquisa bi- JUIZOS do alcoolIsmo, a ameaça da Aids etc.
bliográfica. A primeira incluiu o registro do discurso verbal :i .A. ッ ̄￧。セゥ」 イ。ー de jovens e adolescentes na pesquisa nos
representado por frases feitas e piadas sobre negros, que apa-
recem tanto na versão oral quanto na escrita. Realizamos essa I!I
permítíu atmgír diferentes espaços sociais: as informações
foram colhidas no interior das escolas, nas residências, nos
etapa no período de 1979 a 1994, em cerca de 223 municípi- ] clubes, locais de trabalho e lazer. Portanto, as vozes que eco-
os do Estado de Minas Gerais. A coleta de dados contou com I 。ュLョセ frases de negr?s pertenc,em a ゥセQ、カ■オッウ pobres da
o auxílio de professores e alunos das redes de ensino público I periferia urbana e de areas rurais, e a indivíduos de classe
I média e alta de várias cidades.
I A pesquisa pretendeu, inicialmente, realizar o registro
24 Ibidem, P: 10 e 258. í amplo dessa produção discursiva, por isso, não levou em con-
25 Dijaci David de Ollveíra, "A cor do medo: o medo da cor", ln: Oliveira, op. !
,! ta a tradução dos fatos empíricos em dados estatísticos. É se-
cit., 1998, p. 37.
I
56 I 57
II
.. " .... 0;' 4 4; :.;; ". ow;c.l ii,""", .as:; • 4 4 Ui .;; ; .. L '$'"
· .. • I,. ., I t
_ r7R 'h 'rS ti " S?

guro que essa tradução contribuiria para ampliar a vísíbílída- Não tivemos a pretensão de exaurir o levantamento do
de d_os elementos arrolados, mas, isso não invalida nOSSa pre- discurso visual, mas de analisar certas estruturas visuais que
エセョウ。ッ de estabelecer o mapeamento do imaginário de violên- remetem à ideologia de exclusão articulada através do dis-
CIa que se concretiza numa prática social de teor semelhante. curso oral. Portanto, não é a quantidade de imagens que nos
A ウ・セ、。 Zエセー。 da coleta de dados foi direcionada para interessa, mas a orientação ideológica que nos permite 'Vis-
as fontes 「i ィッァイ。ヲゥ」 セL nas 3uais buscamos referências _ que lumbrar em imagens aparentemente diferentes um mesmo
」ッュ・ョセ。イ・ュッウ ,nas ッョ・セエ。￧ッ・ウ e fronteiras teóricas - e repre- sentido ideológico, Por um lado, isso indica que a plasticidade
sentações do dIsc:urso visual acerca dos negros brasileiros, Li- do discurso oral e do discurso visual tem sido empregada
イオエセュッウ a ー・ウアuQsセ sobre o 、ゥウセオイッ visual à midía impressa. raramente, quando se trata de representar os indivíduos ne-
イZ・ィカ セッM ウ nas Imagens de Jornais e revistas por duas ra- gros; por outro lado, demonstra aquilo que Muniz Sodré iden-
zoes: pnmelro,. porque o ウセイァゥュ・ョエッ desse tipo de registro no tifica como "a continuidade da rejeição à alteridade simboli-
Brasil esteve diretamente ligado ao discurso verbal tal como zada pela fenotipia escura" 27 I

veremos nos anúncios セ・ escravos fugidos (século XIX) ・ セ que Tendo como referência esse quadro da vida cotidiana -
o. texto 」ッョZ・セエ カ。 as Imagens. Segundo, porque o discurso concretizada em representações do negro através da palavra
v:sual na セ 、 ゥ 。 impressa tem merecido menos atenção que o e da imagem impressa - procuraremos evidenciar e discutir
discurso Visual proposto pela televisão, o cinema e mais re- a hipótese de que a sociedade brasileira é perpassada por
」・ョエュセN_ カ■セ・ッャ N,o entanto, é preciso estar atento para Ii uma lógica de exclusão étnica e social que, fundamentada
nossa エイ。、i￧。セ Visual divulgada através de inúmeros periôdi- no aspecto conservador do senso comum, vem sendo reitera-
C?S, セ、ウ・ o seculo passado: as charges e caricaturas, em espe- da no decorrer de nossa formação histórica e sociaL A exclu-
cial, funcionaram e funcionam até hoje como recursos de são aqui aludida não. se apresenta como novidade, mas nos
análise crítica da sociedade brasileira, ao mesmo tempo em interessa o fato de que ela se realiza na medida em que
que reproduziram seus preconceitos e formas de exclusão.é nasce do modo como a representação dos negros brasileiros
$ C?lhamos セッュ 。エ・セ￧ ̄ッ o registro fotográfico de negros acentua a sua marginalização, em vez de contestá-la.
セイ。ウiQ・ イos em fins do seculo passado, na expectativa de veri-
ficar se a mudança do suporte técnico na produção da ima-
gem - ou seja, a substituição ou a convivência do desenho ORIENTAÇÕES E FRONTEIRAS
com os processos físico-químicos - foi acompanhada ou não
de mudanças no esquema ideológico de representação da
Sob a legenda da exclusão étnica se revelam e se ocul-
população ne9"ra. Vale ,observar que a alteração de suportes
pode, ser イ・ャセ」 oョ。、 a セョエ・イウ de ordem política, econôrru- I tarn, em constantes cruzamentos, questões que reclamam
f diferentes formulações de análise, Embora as análises pos-
」セ e Ideol6g1.ca que ・sャィュセャ。イ ュ a transformação dos perió- I,
dICOS em meIOS de maior CIrculação e de maior credibilidade sam ser organizadas a partir de certas opções metodológicas,
é a própria natureza da realidade social da exclusão que con-
junto ao público, fatos que Se tornavam possíveis mediante a j vida as linhas de análise para o diálogo e a confrontação,
reprodução em série da fotografia e do seu apelo realista.
Falar sobre essa exclusão implica tocar simultaneamente no
indivíduo e no grupo, expondo suas feridas mais Íntimas e

RVvゥ」・ZLエセs。ャ ・ウL "Crispim do Amaral", ln: Emanoel Araújo (org), A mão afro-
bresiíeíra, 1988, p. 163-174. "Momz Sodré, op. ctt., 1999, P: 258.

58 59
suas máscaras mais superficiais. O dentro e o fora, o antigo e Por isso, entendemos as orientações, por um lado, como
o novo, o pessoal e o coletivo, o real e o sobrenatural - tudo, fronteiras em estado de tensão, isto é, preferimos mapear li-
enfim, que diz respeito à configuração da idéia de sujeito e nhas teóricas que se cruzam diante de um objeto, como a ex-
grupo como agentes da vida política, dos meios de produção clusão, que a partir de freqüentes mutações aprisiona os indi-
e das elaborações simbólicas estremece sob a barbárie pensa- víduos e os grupos sob antigas máscaras. Por outro lado, 。ーッウセ
da da exclusão étnica. tamos na possibilidade de que as provocações teóricas nos le-
A leitura dos aspectos da exclusão étnica sugere uma vem a ver os elementos que foram alvos da exclusão como
mirada crítica sobre os recursos utilizados na interpretação, novos argumentos de crítica à exclusão e de afirmação de iden-
uma vez que o discurso tende a se constituir, ele próprio, tidade dos excluídos. Ou seja, trata-se de observar como a vio-
empecilho aos significados que pretende desvelar. Diante de lência do discurso oral e visual pode se constituir como ponto
uma realidade complexa como a exclusão, observamos a アオ・セ de partida para a articulação de outras formas de representa-
da do didatismo tantas vezes desejado na elaboração da aná- ção dos negros brasileiros, bem como de outros segmentos tam-
Use, embora nós e outras pessoas continuemos a esperar o bém excluídos."
discurso evidente que nos ajude a compreender as misérias Para a abordagem do discurso de exclusão étnica, opta-
cotidianas. mos por trabalhar em três direções, privilegiando as suas im-
Se considerarmos que as diferenças étnicas podem ser plicações pessoais e coletivas, as linhas de sua constituição como
"reelaboradas, engendradas ou codificadas" como um pro- ! valor cultural e seus efeitos COmo produto de confronto entre
cedimento social 28, teremos de levar em conta a necessidade
de realizar uma análise aberta quese admita como questio-
namento da realidade e de si mesma. Ou seja, a análise, mes-
I! grupos sociais. As orientações teóricas em vista são, portanto,
a psicanálise, a antropologia e a análise do discurso.
Como salientamos, essas orientações oferecem recursos para
mo quando se propõe como um discurso autorizado para i que possamos contemplar o discurso de exclusão sob diferentes
contestar a exclusão, precisa estar atenta ao fato de que é ii
ângulos, com a finalidade de compreender sua organização no
I
gerada, também, sob as condições sociais que fundamentam 1 contexto amplo da experiência social dos indivíduos.
,I
a exclusão. Portanto, não há análise isenta de contradições,
I Assim sendo, buscamos nos estudos de Freud acerca
quando se trata de elaborar interpretação de fenômeno tão I
:: do chiste o suporte da psicanálise para observar as relações
abrangente e contraditório como a exclusão étnica. ;
entre o imaginário individual e o ゥュセァョ£イッ coletivo no in-
Nesse caso, propomos uma análise que contemple a
exclusão sob diversos ângulos.
Desejamos ressaltar que as elaborações discursivas, ao
mesmo tempo em que participam das contradições sociais - セY Angela Y. Davis em E/ues, legaciesand blackfeminism, New York, 1998, p.
e se exprimam como contradições, apesar dos esforços de xvií, observa: "ln the contemporarv períod, wich is marked by a popular
recognition of the politlcalization of sexuality, the blues constitute an
autocrítica para minimizá-las - se apresentam como instru- exceptionally rich site for feminist investigation." Vale frisar ainda o fato
mentos para sua interpretação. de que eventos culturais como o samba, a capoeira e o blues, antes perse-
guidos, se tornaram canais para afirmação de identidades negras. Mas, há
que se questionar também as relações desses eventos com os mass midio,
através de um processo emque a "aceitação" dos valores excluídos impli-
ca o seu afastamento das comunidades onde se desenvolveram. Apesar
28 Sobre a reelaboração social das diferenças raciais, ver Octávio Ianni, Escm- de paradoxal, tem-se uma nova forma de exclusão construída a partir de
vidiio e mcismo, São Paulo, 1988, p. 72. . um certo modo de inclusão.

60 61

,,;a .. tiS2;{2 4# $4 ,ce $40$ ii Qj ;;=;0 • oa. ... , CP


"eM rb ir' ·h.... " ptrr; r

tuito de estabelecer representações do Eu e do Outro." É in- indivíduos reunidos em sociedade, de modo que falam tanto
teressante frisar que tais representações se articulam em con- pelo sujeito quanto pelo grupo a que ー・イエ ョ」セN ,
textos sociais competitivos, podendo revelar os modos pelos Nesse caso, a exclusão operada atraves dos discursos
quais os discursos se tornam elementos importantes nos pro- ,
'I
indica um certo modelo de sociedade que, simultaneamente,
cessos de exclusão por motivos de etnia, de gênero, de con-
I'1, legitima tal procedimento excludente. Em .vista 、ゥセウッLG as fra-
dição econômica ou ideológica, Além disso, por esse cami- ses- feitas e as imagens ganham autonorrua, multiplicam-se,
nho é possível observar como indivíduos e grupos manipu- I formam novas combinações com novos sentidos e passam a
1
lam os símbolos, a fim de marcarem os contornos de suas I
,+ ser percebidas como parte de um ゥュ。ァ ョ£セゥッ 」ッャセエゥカ L ,ainda
identidades e, conseqüentemente, os contornos da diferença i que 'sua manifestação concreta ocorra através .dos indivíduos.
representado pelo Outro, ! Mesmo que uma pessoa agrida a outra por meio de uma frase-
t
De acordo com a perspectiva psicanalítica, o chiste t, feita ou de uma imagem discriminatória, a tendência é ゥョエ・セᆳ
apresenta várias conotações, Dentre elas, consideramos aque- pretar tal atitude pessoal como イ・、セーャゥ」セ￧ ッN de valores coleti-
la que o define como "algo cômico de um ponto de vista sub- !I vos. 'Em outras palavras, o campo ímagmano a que recorre o
jetivo", isto é, "algo que nós produzimos, que se liga à nossa I agente da exclusão passa a representar um modelo para a
atitude como tal e diante de que mantemos sempre uma I organização da vida social. Em vista disso, mudanças na base

i
relação de sujeito, nunca de objeto, nem mesmo objeto vo- material da sociedade - como a ascensão cconorruca dos ne-
luntário"." Esse sentido cômico e de ordem subjetiva pre- gros> não são suficientes -para evitar a exclusão por motivos
sente nos chistes pode ser detectado no discurso oral étnicos, já que no imaginário coletivo e individual ーイ・カ。ャセ」・ a
exemplificado pelas frases-feitas ou poemas tradicionais) acer- j estratégia de afirmação das identidades não negras mediante
ca dos negros brasileiros e ressurge no discurso visual atra- j a desqualificação dos perfis identitários dos ョ・ァセッウN ,,
vés de veículos como jornais e revistas. Através da análise do discurso verbal e VIsual verifica-
Por outro lado, o domínio das regras psicológicas que remos os mecanismos que a mídia impressa e as pessoas em-
atuam nos chistes. frases feitas e imagens de exclusão resulta pregam no intuito de desenhar a exclusão dos ne,gros brasi-
de uma elaboração cultural, Ou seja, a construção da identi- leiros com base em motivos étnicos e socioeconôrrucos. Nossa
dade e da alteridade se exprime como evento cultural, carac- セ・ョ￧ ̄ッ está voltada para "as várias instâncias 7n:
que o sig-
terizando-se, por isso mesmo, como empreendimento de sujei- júficado da mensagem é negociado'Y com o objetivo de ana-
tos voltados para determinados objetivos. Sob esse aspecto, os Iisar o roteiro percorrido pelo mesmo desde ,o ag 7nte
recursos da antropologia nos permitem pensar as organiza- , enunciador até os diferentes interlocutores. Em VIsta dISSO,
ções sociais em termos da relação dos valores simbólicos com a [ somos levados a nos interessar pelos "modos de representa-
realidade, bem como da relação entre aquilo que os indivíduos ção da alteridade't" e da identidade, na medida em que suas
pensam como expressão de si mesmos e da sociedade em que
vivem." Portanto, a exclusão através do discurso oral e do
discurso visual se apresenta como um evento articulado por
I, articulações revelam muito das estratégias que os, ァイオーセウ
ciais utilizam para delinear os seus processos de inclusão ou
de exclusão.
so-

:lOSigmund Freud, Os c!listes e sim vetcçõo como inconsciente, Rio de Janeiro, 1977. 33 Maria Cláudia Coelho et al., "Das fronteiras da teoria da comunicação:
uma (in)disciplina criativa ", ln: José Luiz Braga et ali,(org.), A encenação dos
31 Idem, p.Z8.
sentidos, Rio de Janeiro, 1995, p.29.
32Clifford Geertz, op.cit., 1989 34 Homi K.Bhabha, op. cit., 1998, P: 107.

62 63
Os significadosda mensagemsobre os negros atraves- gros, homossexuais, mendigos ou imigrantes é praxe que a repre-
sam diversas etapas, interagindo com vários elementos. den- sentação construída através dos discursos seja recebida como a li

tro os quais o tipo' de veículo midiético (jornal, rádio, televi- identidade" desses grupos. Assim, os sujeitos inseridos nesses gru-
são}, de enunciador (jornalista, .cientista social, cidadão co- pos são contactados a partir da base de suspeita que os margina-
mum) e de receptor (comunidades de periferia, grupos de liza, ou seja, cria-se um sentido a priori que implica na imediata
intelectuais, estudantes). No tocante às representações do desconfiança e na conseqüente adoção de medidas repressivas
negro brasileiro, é importante ressaltar que os discursos arti- em relação àqueles categorizados como os Outros.
culados por esses elementos ocorre a partir de um aparato Diante disso, é pertinente indagar sobre as identidades
ideológico em que as heranças estereotipadas do escravismo possíveis que são silenciadas na vivência diária das pessoas e,
se confrontam com as atuais perspectivas de crítica à exclu- até que ponto, a identidade assumida como sendo "a verdadei-
são. Além' disso, os manipuladores desse aparato agem de ra" constitui uma capitulação de um grupo diante das pres-
。」セイ、ッ com os lugares que ocupam na sociedade:assirn. sen- sões exercidas por outro segmento social. No caso específico
do, jornalistas, artistas, políticos, intelectuais:. público セ ュ dos negros brasileiros, investigar as alternativas para a elabo-
geral interagem durante o percurs? セ・ constr.uçao de ウ・ョエセ、_ ração de perfis identitérios é tão importante quanto compre-
p.ara as identidades do negro brasileiro, .medlante as ーosiセᆳ ender os mecanismos que levam à construção de representa-
lidades de reiterar ou criticar os procedImentos de exclusão., ções que os colocam na faixa de exclusão étnica e social.
No entanto, as negociações em tomo dos sentidos veicu- Nossa abordagem enfoca '0 segundo aspecto, mas su-
lados através dos discursos oral e visual revelam que o processo bentende que a crítica aos modelos estabelecidos, por um lado,
de produção de sentidos é um campo ao mesmo tempo aberto e sugere roteiros para a busca de outros perfis de identidade,
fechado, no qual as contradições se aBresentam como fato pai- , por outro, se recusa a ser uma cartilha que ensina a identida-
pãvel. Muitas vezes, por conta das contradições, os agentes do.s i de aos sujeitos. Tal como os sentidos dos discursos, que de-
discursos ao elaborarem a crítica da exclusão atuam de manei- correm de intenso processo de negociações, também as iden-
ra que apenas contribui para reconfigurar o antigo ・セアオ ュ。 de tidades merecem ser pensadas como realidades dinâmicas.
exclusão. Isso demonstra a complexidade das negociaçoes que Para tanto, delineamos as fronteiras teóricas na inten-
envolvem os sentidos das mensagens, cuja conseqüência [media- ção de observar os elementos que contribuem para desenhar

ta é a possibilidade de エイ。ョウヲッュセ 0_ processo. de ・ャLセ「イ。￧ ̄ッ certo perfil de identidade dos negros brasileiros, a partir de
discursiva num "processo de fabricação da realidade . um certo modo de representá-los. Por se tratar de uma investida
Ao enfatizarmos a presença dos discursos oral e visual interdisciplinar (envolvendo a psicanálise, a antropologia e a
na escola, no trabalho, na casa e na rua estamos consideran- análise do discurso), aceitamos o risco de sermos óbvios para
do os lugares do cotidiano onde as pessoas. se confrontam alguns leitores e herméticos para outros. Ou, como no comen-
dlretamente com as representações 、ッセ 、ゥヲ・イ セエ・ウN ウ・ァセ Lョ ッウ tário de Anthony Applah dirigindo-se ao leitor, "quando me
sociais. Aí, nesses lugares essenciais a expenencla hlsto n c.a constatar ignorando o que você [ulga importante, ou enten-
dos indivíduos, encontramos as representações que são, mui- dendo mala que você entendeu corretamente, lembre-se de
tas vezes, antecipações da provável existência セッ」ゥ。ャ das pes- que ninguém, nos dias atuais, é capaz de abranger todas essas
soas. No que diz respeito aos grupos de excluidos como ne- áreas com igual competência, e de que isso não torna menos
válida a tentativa" ."

35 Maria Cláudia Coelho ct al., op. cit., p. 29. 36 Kwame Anthony Appinh, Na casa de mel!pai, Rio de Janeiro, 1997, p. 15.

64 65

• • Q._ $ u: a4 $1 • 4"(4 es.*=,,,c;,


.. " ri t. . ." " It' 05'2 ar • $ U rEns SZ7'7C77' " r PSP! •

pectiva sem, contudo, impor um novo modelo de イ・ーセョᆳ


Ao contrário de ser uma escusa para defender nossas tação. Ao contrário, discutimos as possibilidades de sentidos
reflexões das leituras críticas, apostamos na tentativa de aná- que podem alimentar os conceitos de representação.
lise interdisciplinar para expor o discurso às diferentes for- Em síntese, a análise voltou-se para os discursos que
mas de inquirição. A análise, aqui, é antes de tudo provoca- sustentam a exclusão, considerando-os como parte de um
ção ao diálogo, principalmente por estarmos diante de um processo de exclusão. Sublinhamos o caréter social desse fe-
tema que, apesar de provocador, muitas vezes inibe as inici- nômeno, cujas conseqüências podem ser observadas concre-
ativas das principais vítimas, ou seja, os excluídos. tamente na experiência cotidiana de negros e não negros.
A fim de atingir esse objetivo. subdividimos o texto em Nesse drama diário, a mídin desempenha papel decisivo pois,
etapas que abordam a constituição da ideologia de exclusão na medida em que reproduz ou critica os discursos de ex-
através. do discurso oral (frases-feitas e poemas tradicionais) clusão, tanto aquece os conflitos quanto as expectativas de
e do discurso visual (fotografias e desenhos divulgados na solucioná-los.
T
mídia impressa). No capítulo 2, "Palavras contra a noite", ;:
enfocamos a representação do negro nos poemas tradicio-
nais conhecidos como abecês, enfatizando os modos de
legitimação de sentidos que são articulados nas relações dos
indivíduos entre si e destes com o grupo social. No capítulo
3, "Manual de facas", 'prosseguimos com a análise do discur-
so oral, para destacar também o processo de legitimação de
sentidos, mas tomando como objeto as frases-feitas,
A partir do capítulo 4, "A vida nos estúdios", passa-
mos a considerar a inter-relação entre discurso oral e discur-
so visual, tendo como referência as fotografias de escravos
no Rio de Janeiro do século XIX realizadas por Christiano Jr.
Verificamos, nesse ponto, de que maneira o discurso visual
reduplicou o sentido da representação dos negros presente
no discurso da tradição oral.
Em seguida, nos capítulos 6 ("Retratos do mesmo) e 7
("Um não é todos") procuramos evidenciar a saturação de
um certo modelo de representação dos negros brasileiros,
como se em nenhum momento tivesse sido necessário fazer
a crítica da passagem do suporte oral para o suporte visual.
Isto é, deparamos com uma espécie de consenso nos meios
de comunicação que levou à aceitação da mudança de su-
portes do discurso como um acontecimento autónomo, desli-
gado dos contetídos do discurso a ser veiculado. Bastou, por-
tanto, alterar os suportes e manter o conteúdo da antiga re-
presentação designada para os negros. O capítulo final, "Ne-
gros vistos como negros", pretende ser uma crítica a essa pers-
67
66
A interação que aproxima grupos ou indivíduos e os
conflitos que os distanciam decorrem, em parte, dos valo-
res que vigoram nas relações sociais e são expressos atra-
vés dos vários discursos. Estes demonstram que em torno
de questões corno o gênero, a etnia, a situação econômica
e a disposição geográfica se desdobram nos acontecimen-
tos que dão forma ao corpo de uma certa sociedade.
A análise do discurso permite medir a temperatura
PALAVRAS CONTRA A NOITE das relações em que os representantes de cada categoria,
colocados diante de si mesmos e de outras categorias, se
revelam a partir daquilo que vivem nas teias daquilo que
"Porque se inventam palavras falam. O discurso que mulheres e homens, negros e bran-
que furam como punhal?" cos, pobres e ricos, habitantes do campo e da cidade arti-
Carlos Drummonâ de Andrade 37 culam a respeito um do outro - dentro de suas categorias _
já tem por base diferentes pontos de vista que viabilizam a
formação de uma realidade de discursos polissêmicos.
ORIGENS DAS DIFERENÇAS O intercruzamento de categorias amplia a rede de
discursos e demonstra como a posição do indivíduo ou do
o caréter multiétnico da sociedade brasileira pode ser grupo varia na sociedade. Em termos de Brasil, o conflito
rastreado nos modos como os recursos da ャ■ョァセ。 são 。イZ ッセ entre discurso patriarcal e discurso feminino de contesta-
priados pelos grupos com o objetivo de produz1!, C?ffiUmCa- ção criou diferentes possibilidades de mudança de lugar
ção acerca de si mesmos e dos outros. Essa atívidade de do homem e da mulher na sociedade. As conseqüências
enunciação oferece um retrato das イセャ。 ￵・ウ qU,e most:am os históricas desse conflito têm apontado um processo de as-
indivíduos e os grupos situados nos Imutes da mteração e do censão da mulher em relação ao mundo fechado do
patriarcalismo:
conflito social.
A análise da enunciação evidencia do que estão falan-
do os sujeitos; de que maneira, como falan:' se posicionam "tanto no Brasil, como em outros países, as atitudes sobre o
papel da mulher sofreram modificações nas Últimas décadas,
em função daquilo de que estão falando e, finalmente, como acompanhando as modificações ocorridas nos comportamentos
posicionam o Outro dentro de seus discursos. ,C,om isso, po- relacionados aos papéis sexuais, sendo tais mudanças de
demos mapear os caminhos que os ァイオーッセ SOClalS ー ・ イ 」 ッ イ セ ・ ュ atitudes mais pronunciadas no que se refere às oportunidades
na afirmação de suas identidades na medida em que atribu- iguais de emprego e educação para ambos os sexos e menos
pronunciadas no que se refere à divisão igualitária de
em valores a si mesmos e aos outros. responsabilidades dentro do lar, entre os sexos." 38

37Carlos Drummond de Andrade, "Gesto e palavra", ln: Obra completa, Rio 38 Maria Cristina Ferreira, Revista de Ciências Hllmmws/UGF, Rio de Janeiro,
de Janeiro, 1992, P' 565-566. 1999,p. 99.
ii
68 -I
69

M セL ; .... •• lQi
_ 43
4 ;2 2 4U IS aa" • • iA': 40 "$
"
, "*1'
·I".
Porém, quando o gênero se intercruza com a categoria Estamos considerando a cultura popular tal corno se
étnica observa-se que os rumos do processo acima sofrem al- apresenta em áreas rurais, onde a população socialmente
terações, já que a questão consiste em saber por que se tem desprivilegiada preserva e modifica saberes Bセョ、。 ッウ na
tuna expectativa mais otimista para a ascensão da mulher historicidade, na experiência acumulada - também ela - por
branca do que para a mulher negra. Esse exemplo é uma gerações de antepassados que aprenderam o mundo fora do
variante, talvez das mais conhecidas, que indica o quanto a paradigma da sabedoria erudita" Y Esse ュ_、・Nャセ 、セ cultura
elaboração e difusão do discurso é relevante para a compre- popular é caracterizado como um sistema slgn!frcati:o - fru-
ensão dos papéis sociais. Para avaliar isso, basta especular to de representações simbólicas geradas na açao social - アセ・
acerca dos desejos que alimentam as mulheres ao confronta- se coloca como um modelo alternativo aos da cultura erudita
rem o discurso patriarcal: as brancas ricas estarão alinhadas ou da cultura de massas.
com as negras pobres? Negras e brancas levam em conta suas Na cultura popular das áreas rurais o disc,:-rso セイゥ・ョエ。ᆳ
trajetórias peculiares no fluxo da história brasileira? O pas- do pelo senso comum dificulta a identificação imediata do
sado de senhoras e escravas moldou diferentemente o imagi- sujeito enunciador, pois se apresenta à sociedade como BLZセ。
nário de brancas e negras? espécie de patrimônio gerado 」ッャ・エゥカセ ョエ・N Mas, a análise
Dados como esses passam para a formulação ideoló- das entrelinhas nos acena com a possibilidade de ver de que
gica do discurso e se espelham em situações que tornam a maneira essa voz coletiva pode ser, também, um meio para a
semelhança de gênero um fato insuficiente para que mu- expressão de vozes individualizadas. .
lheres - ou homens - negras e brancas pensem, falem e atu- Utilizaremos o conceito de senso comum na perspecti-
em de modo idêntico na sociedade. A afinidade de gênero va adotada pela antropologia interpretativa de Clifford
garante um ponto de cantata, mas não resolve por si só os Geertz. Segundo o antropólogo norte-americano, セ senso co-
dilemas advindes das outras categorias a que pertencem mum é um elemento definidor de busca de sentido para a
mulheres e homens. vida humana e pode ser compreendido a partir de dois ・ゥクセウZ
primeiro, como "simples aceitação do mundo, dos seus obje-
Os discursos tendem a reter nas entrelinhas essas dife-
tos, e dos processos exatamente como se apresentam, como
renças e são elas que sugerem os matizes de identidades dos
parecem ser" (aspecto conservador); seg:rndo, como força
grupos numa sociedade multiétnica. Ê nas entrelinhas que
pragmática que revela nos sujeitos um deseJO,d.e atuar ウセ「 ・ o
percebemos como a reivindicação das mulheres sobre o di-
mundo "de forma a dirigi-lo para seus propósitos, dominá-lo
reito de gestão do próprio corpo pode ser tecida em discursos ou, na medida em que se tornar impossível, ajustar-se a ele"
que as unem no objetivo, mas as distanciam na maneira de
(aspecto transformador)." . _
alcançá-lo. A opção pela gravidez é um fato entre mulheres
As ideologias discriminatórias se apóiam em 。ヲQセ。￧ッZウ
com níveis de escolaridade e posição social privilegiadas, ao
absolutas que são impostas ao grupo às custas da fragilização
passo que para mulheres pobres e com menos escolaridade a
da auto-estima dos discriminados. Essa imposição, às vezes, é
escolha, muitas vezes, está submetida a programas arbitrári-
sustentada pelo lado conservador do senso comum e se expri-
os de esterilização em massa.
Por isso, é relevante compreender as entrelinhas do dis-
curso étnico formulado nos domínios da cultura popular -
segundo noções do senso comum - e divulgado através de 39 Sobre o conceito de cultura popular como modelo cultural alternativo, ver
Gomes & Pereira, op.dt, 1992, p.74.
suportes como a oralidade ou a midia impressa.
40 CE. Lセエイ・ g op. cit., 1989, p. 127.
70 71
me nas relações sociais Como uma verdade que assim é ou assim No bイ。セゥャL os abecês se tornaram populares, abordan-
parece ser. No rep.ertório oral da cultura popular brasileira cons- do temas variados: histórias de cangaceiros, de bois fugíti-
ta a lenda da origem das três raças. A narrativa, conforme vere- vos, de 「。エセャィ。ウ famosas, os prazeres e desprazeres da ca-
mos a seguir, é partilhada por muitos grupos e faz parecer natu- chaça, as biografias dos santos e as características dos ne-
rais a inferioridade e a marginalização dos negros. gros. Vio-Ieiros e repentistas. entre outros, ajudaram a di-
カオャセ。イ os abecê.s cantando-os em praça pública.Aré mesmo
"Todos os homens nasceram pretos, e Nosso Senhor, no ritual d.e Polia de Reis os abecês de negros surgiram para
ouvindo a queixa, mandou que fossem lavar num.poço. Aqueles ュ。セ」 イ o instante de entretenimento dos devotos junto à
que encontraram a água limpa, saíram brancos. A água mais
toldada deu os mulatos e gente de cor mais carregada. Os negros lapinha. No município de ]equitibá/ MG, na parte lúdica
chegaram por fim e só encontraram água escura e rara. Tiveram da Folia,
apenas ocasião de molhar as palmas dos pés e das mãos. São as
únicas que se tornaram brancas. É uma estória popular." 41 "Quando os reis fazem brincadeiras para distrair os
presentes, é セッウエオュN・ que os representantes Gaspar e Baltazar,
A transmissão da lenda de geração para geração, através brancos, recIteD:l para Melchior o piskin do negro, que é uma
forma de pasquul1 denominada ABC." ·1.1
da oralidade ou da escrita, tende a confirmar um tipo de "ver-
dade" que é alimentada pelo lado conservador do senso comum.
Em termos de elaboração de um discurso étnico, em muitos ca- _ A reelaboração dessa forma literária envolve sua pro-
sos o senso comum tem funcionado como legitimador da ウuー・セ duçao como texto escrito e sua difusão preferencialmente
rioridade de um grupo e da inferioridade do outro. 。エQB Lカセウ do N」。セエ_ ou da declamação. Além disso, mudanças
Esse modo de produção do discurso pode ser observa- fonéticas, sm,tahcas e ortográficas indicam que grau restri- °
do na forma literária conhecida como abecê encontrada no to de escolaridade das pessoas menos favorecidas contribuiu
repertório da cultura popular. O estudo dos abecês permite para trazer o abecê da esfera erudita para a popular.
comentar, entre outras coisas, a apropriação e a reelaboração As 'pesquisas de campo sobre cultura popular que te-
que os representantes da cultura popular fazem de um ele- mos realizado demonstram que os abecês abordam o negro
mento procedente da cultura erudita, de acordo com a lógica conservadora do senso comum, Nos-
Os abecês são constituídos por versos de rimas simples s,o.objetivo é anal!sar os abecês de negro, procurando iden-
em quadras, sextilhas ou septilhas e iniciados pelas letras do tificar alguns meros de construção do discurso racista que
alfabeto. Segundo Câmara Cascudo, as origens antigas dos ー・イGー。セウ a so:iedade brasileira e se apresenta como fato que
abecês atestam sua ligação com a cultura erudita. Em 393, .1 asstnt e ou aSSIm parece ser, Nesse jogo de discursos é impor-
I
Santo Agostinho compôs um poema contra os donatistas, Com tante perceber a face de cada jogador, a fim de compreen-
I"
;;
vinte estrofes em ordem alfabética, intitulado Peaímue conta dermos até que ponto o ato lúdico não é senão uma más-
partem donati (ou Psalmus abecedarius). Autores importantes i'I cara para ocultar angústias e desejos de quem é discrimina-
,
coma Juan deI Encina e Lope de Vega (Espanha) e Luís de do e de quem discrimina.
Camões (Portugal) também escreveram abecês poéticos." Quanto à metodologia, apresentaremos dois exemplos
de abecês de negro recolhidos em f'esquisa de campo, em
I
i
11 Luís da Câmara Cascudo, Dicionário do folclore brasileiro, Belo Horizonte, I
,;
1984, p. 523." ,I
42Luís da Câmara Cascudo, op. cií., p.1-2. I
I 13 Gomes & Pereira, Do presépio à balança, Belo Horizonte, 1995, P: 86.
I

72
:i
73

.=.,. h
- 4 4
/,j*, •
mセョ。ウG.erais l para então analisarmos seu sentido o Os meios de comunicação de massa como a televisão e
セ ャcッウ 」ャ。QN Do ponto de vista sociológico abordaremos o
ISCUrso dos abecês apoiados no conceito de d d II
os periódicos manipulam e veiculam essa artilharia de pre-
refe . lid d /I merea o e conceitos sem considerar as susceptibilidades de uma popu-
d rencia
. 1 a e proposto por Geraldo N
unes. Do ponto
: VIsta pSicológico, buscaremos suporte teórico nas refie- lação multíétnica no país. É interessante analisar o conteúdo
xoes セ・ Freud acerca dos chistes e sua relação com o in- racista de vários programas humorísticos de produção naci-
conSClente. 44 onal, muitos dos quais são exibidos em horário nobre da te-
levisão. Os jornais, por um lado, divulgam matérias de de-
núncia do racismo, por outro, abrem espaço para discursos
ALFABETO DA INTOLERÂNCIA marcados pelo preconceito."
As manifestações da cultura popular citadas anterior-
Escola sem paredes mente desempenham papel semelhante ao da televisão ou
dos jornais, colocando as pessoas em cantata direto com o
Temos registrado a presença de abecés de discurso racista. Em ambos os casos, há que se investigar os
áreas . b negro em laços de conivência que permitem a formação e divulgação
d rurais
. . e ur anas. Em geralI esse discurso e S téa aSSOCI-
,
a o a. ウ・、セ カQエ。 lúdicas (narrativas, piadas, desafios, batu- desse discurso, bem como a possibilidade de formação e in-
ques) e religiosos (Folia de Reis) da cultura popular. terferência dos discursos de oposição a ele.
Entre os enunciadores dos abecés identificamos pesso- Nossa análise enfocaré especificamente os abecês de
as de grupos menos favorecidos negras e não negras que negro e suas implicações a partir do meio social em que são
ャセ、ッ de outras セ。ゥウ privilegiadas, vêem os abecês como セQZ divulgados, ou seja, a cultura popular nas áreas rurais. Os
típo de ・ョエイュセッN As pesquisas que realizamos em cen- exemplos nos permitirão analisar a orientação ideológica que
エセッウ ur?anos maiores nos permitiram detectar uma freqüên- os fundamenta, o seu modo de elaboração discursiva e o seu
ela mais acentuada das piadas de negros em detrimento d sentido psicossocial."
uso da forma específica dos abecês. Nas áreas rurais as pia-
das エ。ュセ←N !oram registradas, mas parece que sua :nargem
de presrígto e menor do que a dos abecés.

、セ L・ウセッャ。
Nas cidades, as piadas são difundidas entre estudantes
das セZ、 ウ pública e privada e, a julgar por nossas
4, Ver as imagens estereotipadas do negro em programas de grande audiên-
cia como "Os Trapalhões" (Rede Globo) e "A Praça é Nossa" (SBT).
jornal O Globo, na mesma data de 08/12/97, publicou uma matéria que
°
pt opnas expenencías, em reuniões e festas - independente- condenava o racismo ("Relatório da OEA diz que Brasil' desrespeita os
mente 、セ セャ。ウ ・ social - onde não é raro que se apresentem direitos humanos e privilegia os ricos/ Documento já entregue a FH afir-
os especialistas em piadas de negro de mulher d t ma que país é racista e lento na reforma agrária." - O País, p. 5) e outra, em
' d ' d " e por ugu- que o racismo aparecia dissimulado como simples repertório de um gru-
es, e JU eu, de japonês, de homossexual. po de humoristas ("Artilharia pesada de humor contra todos os alvos/
Turma do Casseta & Planeta lança novo livro com 300 piadas que soter-
ram qualquer tipo de idéia politicamente correta").
46 Para efeito de comparação ver abecê coletado por Leonardo Mota no
44 ャセZイ、¬ゥG Wセ「イ・ セ L'Sll.Z
noção セ・ merca.do de reíereoctetíded- cm aná- Maranhão e citado por Câmara Cascudo em Vaqueiros e cantadores, Porto
Rio de Janeiro 1995' pJo"'59 Blag'd"Ft ali (org.), A encenação dos sentidos, Alegre, 1939, p. 11-15. O abecê-1 está em Gomes & Pereira, op. cit., 1995, p.
e , ,. ,lgmun reud, op. cit., 1977.. 86-89. 0,flbecê-2 é inédito e consta do arquivo de nosso Projeto MinEIS &
Mineiros: pesquisa e análise interdisciplinar da cultura popular.
74
75
1 2 Gosta muito de Iordeza Foi uma pena que o castigo
quê possa, quê não possa Parasse de acontecer .
"Avia em outro tempo "Agora chegou a hora só qué fazenda fina Escravo virou mendigo
quando tinha imperado Da verdade eu falar e não qué fazenda grossa. Osso duro de roer!
não havia tanta desorde O branco é raça boa Afinal acaba todos Não trabalha, não quer nada
que os preto tinha sínhõ. E não nega seu lugar saltando cerca de roça. Só vive de aborrecer.
Mas o preto infelizmente
(Eu não queria abusar!)
Bacalhau era o remédio Home é que negai não é.
Não é raça nem é gente! Gostam muito de perfume
daqueles nego manhoso Ah! isso eu garanto.
Cheiro forte pra valer
que num qué tê paciência. Deus não tem nada com nego
Pra apagar azedume
Nego ョ セ Come gostoso. Bons tempos foram aqueles nego nada tem com santo.
Do cc de enlouquecer
Ainda podia tê bacalhau Quando havia escravidão Se eu está sentado
A gente comprava eles Passam creme, passam tudo
pra certos negro teimoso. E vem um nego eu num levanto.
Usam seda e veludo
Igual bicho de estimação
Com chicote na lavoura Para com o branco aparecer.
Cara de nego é terrível Ia nego casá com branca
Capinavam nosso chão onde eu não acho vantage
é coisa sem formosura.
Cantando de gratidão! do nego foi por feitiço
Todo nego não presta Hoje em dia é perigoso
só tem boa dentadura e da moça foi por bobage. Chegar perto de Um negrinho
foi conseguida por Deus Como foi nunca será Não esperava de havê Se a gente se descuidar
pra estragá a rapadura. Depois da abolição no mundo tanta corage. Nem que seja um bocadinho
Negro agora quer mandar A bolsa vaí evaporar
E fazer aparição jã estô certo de uma coisa: E o relógio, coitadinho
Devia se imaginá Sai na rua pra passear todo nego tem cara feia Some logo pelo ar.
e prestá bem atenção E por branco quer passar de dia veve dormino
pois ainda não se sabe Fingindo ter boa educação. de noite na roça alheia.
de onde veio essa nação: Imagina que tristeza
Queixo de cobra não besta
se é obra do capeta Para um branco de respeito
Daqui pra diante eu num sei na noite que nego passeia.
ai livusia do cão. Ter que aguentar esse povo
O que vai acontecer
Ter que viver desse jeito
Depois dessa tal lei Lembrei agora de uma coisa
Eu calculo mas nun sei Se escondendo a toda hora
Do preto tão livre ser: e está muito admirado
de que forma sucedeu: Fechando porta e terreiro
Subiram pro morro acima cabelo de nega preta
se é gerado da terra Pro nego ficar de fora.
Aprendendo a assaltar, nunca foi incastoado.
ou coisa que apareceu. A roubar e a matar. Ora! foi por ventura?
Saiu todo encolhido e enroscado.
Já vi gente discutindo
Fedorento eles são muito É voz do povo c é verdade Num abccê mais antigo
pois não deve repará. Que o vinho guarda o gosto Moramquenãotemquantidade Que negro antes era branco
Não há essência no mundo Da pipa onde ficou quem COm nego se envolve Até sofrer um castigo
que faça nego cheirá Nisso eu tenho muita fé: comete um grande pecado. Assim virou tição
por muito limpo que seja Negro veio da mata brava Tomá beijo de um nego Quando Deus entrou no meio
não há quem agüentá. Bicho era, bicho é. antes um tiro de revólve. E fez uma maldição.

76 77

セM⦅N , - . .MOfO
, , 4 ._ g", aa. 4 • .......N⦅セM M M M M⦅
.. " .•• • IAI
• •
... - °b••' 1m". nb"'_ rb 1m" l' 7 aS?? S$ 1M $. '7 " aetr 7 sr mrrm

Nego não tem boca, é lapa. Komo foi que aconteceu Usam os nego no mundo Paraíso com crioulo
Não temnariz, é fucím. Ninguém mais sabe contar fazê o papel de cão. Vira inferno, vira mal
Não tem ouvido, é buraco. Aquilo que sucedeu Tantos os nego quanto as nega O jeito é pir pra fora
Não tem cabeça, é cupim. Só dá para imaginar Vive namá intenção. Quem age igual animal
A negra no Paraíso Foi assim que aconteceu
Separe os nego das nega
Perdeu bem cedo o juízo E por causa da desordem
Oração de nego é cálculo. que acaba essa nação.
E começou a roubar. É que o negro empreteceu.
Barriga de nego é mala.
Casa de nego é senzala.
Desengano de nego é baía. Logo no prímeío dia Vi um nego se afogano. Que!' saber mais uma coisa
Dez maçãs ela roubou Que merda! Poluição! Que a ciência descobriu?
Pensei que eles acabasse Pensando que ninguém via Tenha que afogá o resto Branco é muito inteligente
e eu cumpria meu intento. Cinco frangos ela matou pra achá a solução. Na cabeça tem uma semente
Podia vir um ar mau Pôs tudo' numa sacola Que preto ainda nem viu
e conduzi eles no vento. Com muito jeito arrumou Negro é um tipo diferente
O mundo não tava cheio E pra casa levou. Xéiro não há vidro que chegue Da espécie rara TIZIU.
de tento nego nojento. nem chita pra vestido
todo preparo elas gasta Resta ainda descobrir
Mas o marido espertinho
Quero que eles me diga Também quis aproveitar e é dinheiro perdido. Se macacxo e se TIZIU
o nome da negrinha quando cresce. Foi chegando de mansinho Merece chicote e pela É o mesmo tipo de bicho
Gente branca chmna amoça E roubando devagar e ponta de laço comprido. Que no planeta surgiu
todo mundo já conhece. Muita lenha, muito ouro Pulando de galho em galho
Ela ajuntou caladinho Estatelando no chão
Razão eles nunca teve E escondeu noutro lugar Zoológico é lugá de nego. E andando de quatro mão!
pelas más ação que faz. Por que tanta admiração?
Na dança que eles vão Ou então éno inferno
Ninguém pode garantir Será que isso temjeiyo.
nunca termina em paz. o lugá de tanto cão.
A confusão que se armou Que existe solução?
Parece que são mandado E você não desconfia?
Quando a negra viu Adão Que TlZIU, macaco e homem
por ordem de satanás. Não caça seu rumo não?
E por ele se apaixonou Um dia serão irmãos?
Eva logo entrou no meio Eu por mim bem que duvido
Se preto passa pra crente
Num quebra-pau de terreiro Do milagre acontecer
não é por acaso não.
E a crioula dispensou. Ofereço esse bendito E estou pagando pra ver.
Ele qué tê o direito
de chamá branco de irmão, pelo delegado Caifás
para sê repartido
o paraíso tremeu. com o tenente satanés.
Tomara que a ciência
Também nego se casa? No meio da confusão Encontre outra solução
Pois nego já é marido? O crioulo quis brigar Quero que eles me diga E faça uma experiência
Tenho visto é nego furtá E pôr culpa no patrão se já chega ou se ainda qué mais De acabar com essa nação
e não tirá escondido. Mas Eva não deu conversa Rezando o credo em cruz Mandando os negros pro espaço
No meu pensamento Não quis saber de demora para me livrá dos nego Pra distrair osE.T.
nego não é garantido. E pôs a crioula pra fora para sempre amém Jesus!" Com uma caçada de laço

78 79
Um problema só existe Ypisilon é uma letra Ideologia dos abecês de negro
Que me deixa pensativo: Que crioulo não conhece
Sepoluímos o espaço Quando aprende a ler A análise da orientação ideológica dos abecês de negro
Mandando negro pra lá Ninca passa além do 5
chama nossa a tenção para a ordem social que alimenta a
E causando destruição Não tem letra, é garrancho
elaboração desse tipo de discurso. Para esse ponto, levare-
Será que por castigo Não aprende, logo esquece
O mundo nãi acaba não? E da escola se aborrece. mos em conta a proposta de Geraldo Nunes acerca da cons-
tituição de um mercado de referencialidado onde ocorrem
Vai ver que nossa sina Zê é Zê Prequeté interação e disputa entre os discursos.
É o negro suportar Crioilinho da Guiné O discurso dos abecês de negro resulta de uma realida-
Pra limpar nossa latrina Teve um que valeu a pena de social em que negros e brancos contracenam em busca de
Ele ainda tem seu lugar Foi esse tal de Pelé! , afirmação de identidades que já não podem mais ser
Eserve pra força bruta Que sabido que ele é!
delineadas, se não se levar em conta os seus enredos de
Para pesos carregar Sómulher branca ele quer!
interação e conflitos étnicos, políticos, económicos e cultu-
Lavar, varrer e passar. Ofereço esse bendito rais. Os abecês, porque surgem envolvidos por e com esses
Xi! esqueci de uma coisa Com sincera devoção enredos, devem ser tratados não como discurso isolado, mas
Que eu devia me lembrar Esperando que algum dia Preto como um "processo discursivo" セャオュ。 ordem social permeada
Preto pensa que ser branco não seja ladrão." por outros processos discursivos."
É questão de descascar As relações entre os discursos na sociedade ocorrem a
Mas tem outra diferença: partir de um mercado que, segundo Geraldo Nunes, se cons-
É trocar a inteligência titui em espaço institucional, ou seja, "no lugar onde os dis-
Para um branco se tornar. cursos sociais se interpenetram, se influenciam e se
indeterminam"." A Constituição Brasileira é considerada um
espaço institucional já que é "formulada em função da pers-
pectiva social de um processo de interação entre os diversos
segmentos que compõem a sociedade.r?"
No caso dos abecês de negro o espaço institucional não
é tão definido em termos teóricos. Mas, em termos práticos, é
delineado como uma modalidade social em que a vivência
coletiva da religião, do lazer e do trabalho marca o espaço
onde os discursos se influenciam a partir das interpenetrações
e confrontações. É nesse espaço que em determinados mo-
mentos certos discursos "têm mais força e poder que outros
para impôr suas representações, suas referencialidedes e suas

47Geraldo Nunes, op. cit., p. 159.


"fdem, p.160,
19 Ibídem, p.160.

® 81

"'4;;4; .: .. ,# ii 41 « h •
,; li •
..
" . • pp '77

。セァオュ・ョエ￧￵ウGNBUP É no interior da religiosidade popular (que


disputa prestígtc com a Igreja institucionalizada e com ou- A imposição do discurso dos abecês pode ser medida
tras orientações religiosas), do entretenimento (que mescla o pelo fato de que negros e brancos o assimilaram como modo
sagrado e o profano) e da faina (que acentua a miséria dos de interpretação de uma realidade e o incorporaram a algu-
pobres em. prol do progresso dos ricos) que o discurso racista mas manifestações imp ortnntcs de seu patrtmônio
dos abecês se セュー￵・ aos negros e não negros. sociocultural. Nesse momento estão em destaque a eficiência
As relações de interaçãn e conflitos entre os discursos de um grupo social que articula e impõe os seus valores atra-
no dizer de Geraldo Nunes, Ocorrem de acordo com um ais- vés de um tipo de discurso e a aceitação do discurso
tema de regras saciais que rege "o intercâmbio de certas 'mer- discriminatório por parte dos discriminados.
cad.orias'_ 」ッョウエセオ■、。 pelas representações, predicações e AB regras do mercado de referencialídade - que valori-
d:sIgnaçoes venficado entre os diversos segmentos que com- zam o discurso dos grupos dominantes e restringem o dos
poern a estrutura de classes de uma sociedade". Com o auxí- dominados - são relativizadas no esquema de interações so-
lio dessa noção, chamada peloautor de mercado derefe- ciais. Isto é: o discurso de senhores brancos ricos se impõe de
rencialidade, podemos "observar os critérios de atribuição de maneira geral ao discurso de homens e mulheres negros ou
valor a estas 'mercadorias' em determinado pertodo.?» brancos pobres; o discurso de homens brancos pobres se im-
No mercado de referenctalidade dos abecês de negro se põe ao de negros pobres; o de homens brancos pobres se im-
イN・ャ。」ゥッョセ discursos que estabeleceram contornos significa- põe ao de mulheres negras e brancas pobres; o de homens
tivos da sociedade brasileira: de um lado, o discurso patriarcal negros pobres se impõe ao de mulheres negras pobres.
do Estado e セッウ senhores (representados por proprietários de É bom salientar que o mecanicismo não é uma caracte-
escravos e latifundiários), de outro, o discurso da Igreja (repre- rística do mercado de referencialidade: as relações entre os
sentado pelo 。ャセッウ prelados e reduplicado, ainda que parcial- discursos pressupõem uma realidade dialética em que
mente, pelo baixo clero). A aliança entre Estado e Igreja de- interação e conflito são faces necessárias para manter dina-
monstra que a busca da hegemonia política e religiosa estimu- micamente o jogo de produção de sentidos. Mas, em certos
lou a elaboração de um discurso conjunto, que se impôs como
modr:1ador 、セ lei e da ッイ、・セL ao mesmo tempo em que ーイ・ウ セ
,:
;
momentos - como o do regime escravista brasileiro - o mer-
cado diminui sua capacidade de distensão e tende a
vou áreas de interesse restrito de cada uma das instituições. 52 hierarquizar os discursos em demanda.
A orientação ideológica dos abecés indica uma visão de Observe-se que os abecês de negro são construidos a par-
mundo sedimentada em valores patriarcais identificados com tir do aspecto conservador do senso comum. Por isso, os este-
o ?"rupo 、ッュゥョセエ・ de senhores brancos, proprietários, apa- reótipos de inferioridade do negro, elaborados apriori, são uti-
drinhados pela instituição eclesiástica ligada ao Estado. Daí a lizados como elementos de organização do sentido imediato
alta cotação desse discurso num mercado de referencialidade do discurso; a tónica é criar uma ambiência social mecanicista,
que cotava em baixa os discursos de negros escravos ou liber- com negros maus e brancos bons.
tos, de mestiços pobres, de mulheres negras e brancas. Os abecês de negro apresentam uma inclinação humo-
rística que contribui para SUa identificação no mercado de
referencialidade. As conotações de chiste que perpassam os
5Olbidem, p.1GO. textos mantêm a agressividade de seu conteúdo, embora, em
Ibidem, p. 160-161
Sl função do humor, isso pareça ser veiculado em "tom de brin-
Z[Rh「セ M. Mattos de Castro, "Laços de família c direitos no final da escravi- cadeira". As implicações psicológicas desse. fato e sua interfe-
dao_, ln: LUIZ Felípe de Alencastro (org.), História daviria prioeân no Brasil-
2, São Paulo, 1997, p. 339. rência na realidade social nos levam a considerar as observa-
ções de Freud acerca da elaboração discursiva do chiste.
82
83
Modos de elaboração dos abecês Sintetizando as definições anteriores, percebemos que
em linhas gerais o chista se caracteriza pelo contraste de idéi-
Na análise do modo de elaboração dos abecês de negro as, o apelo ao nonsense, a brevidade da enunciação e a possi-
deve ser levada em consideração a ordem psicológica que oferece bilidade de promover o desconcerto ou o esclarecimento dos
envolvidos numa determinada situação.
recursos aos indivíduos para se situarem nas relações que envol-
vem a identidade e a alteridade. A ação de negros e brancos colo- Como produção verbal, o chiste revela a intervenção
de agentes sociais que o utilizam a fim de atingir certos obje-
cados uns diante dos outros está, em grande escala, representada
tivos. O chiste é uma atividade que visa derivar prazer dos
naquilo que falam de si mesmos e de uns sobre os outros..
processos mentais que se concretizam através de técnicas
O discurso verbal que chega à s.uperfície da socl:dade verbais. A possibilidade de ser um canal de acesso ao prazer
possui uma rede de elaboração que muitas vezes escapa a per- transforma o chiste em alvo de curiosidade e interesse. De-
cepção dos próprios agentes do 、ゥウ」セイッN Por isso, as イ・セク￵ウ corre daí o seu valor social na medida em que passa de uma
de Freud acerca da elaboração dos chistes e da sua relação com pessoa para outra, tecendo uma rede de enunciação. 56
o inconsciente vão nos permitir avaliar aspectos da montagem Quanto aos tipos, os chistes foram classificados por
dos ebecês de negro, tais como o uso do senso comum como Freud como inocentes (possuem um fim em si mesmos) ou
suporte de Significado e o raciocínio falho. 53 tendenciosos (servem a um fim, são irresistíveis e têm uma fonte
Após considerar a pouca 。エ・ョ￧ ̄セ 、・セゥ」。、 ao ・ウエセ、ッ de prazer além dos chistes inocentes).
do chiste, Freud confronta várias conc.ettuaçoes estabelecidas O chiste tendencioso pode ser subdividido em obsceno (tem
pelos estudiosos. Segundo Theodor liセpsL o objetivo de provocar o desnudamento) e hostil (tem por finali-
dade agredir, satirizar ou promover a defesa)." O chiste obsce-
"um chíste 'é algo c6mico de um ponto de vista no ou smut é caracterizado por uma ênfase verbal intencional-
inteiramente subjetívo', isto é, 'algo que nós produzimos, que se mente relacionada a fatos e relações sexuais. Segundo Freud,
liga a nossa atitude como tal, e diante de アオセ mantemos sempre
uma relação de sujeito, nunca de obje to. nem mesmo "O 'smut' é como que um desnudamento das pessoas,
voluntário'." 54 sexualmente diferentes, a quem é dirigido. Pela enunciação de
palavras obscenas a pessoa assediada é compelida a imaginar
Jean Paul Richter considera o chiste como Bィ。「ゥQ 、セ ・ a parte do corpo ou o procedimento em questão, ao mesmo tempo
de encontrar similaridades entre coisas dessemelhantes, Isto em que lhe é mostrado o que o assediarire, ele próprio, está
imaginando.vee
é descobrir similaridades escondidas." Por ッオエイセ lado,
Theodor Vischer o entende como "habilidade 、セ fundir. com O chiste hostil nos coloca diante da situação em que a
surpreendente rapidez, várias idéias de fato diversas umas "hostilidade brutal, proibida por lei, foi substituída pela
das outras tanto em seu conteúdo interno, como no nexo 」ッセ invectiva verbal.rw O chiste, nesse caso, é uma resposta à
aquilo a que pertencem." Vische.r ressalta que na ーイ_、セ￧。 repressão dos impulsos hostis do indivíduo ou da coletivida-
dos chistes sobressaem mais as diferenças do que as similari
dades entre os elementos errvo lvid
VIas.ss 55 Idem, p. 22-23.
56 Idem, p. 28.
57 Idem, p. 13, 116-117.
53Sigmund Freud, op. cit., p. 77-82. 53 Idem, p 118.
"Idem, p. 21. 59 Idem, p. 123

84 85

.. ti h t_4' .4.41 1.'4 , 14 • $$i 4144P &Wi4_ " '1.1 ;Ir


l ' ·· a Ui! Si • CA' eR': 44 ;" •
"
..

de e pode se voltar contra formas de limite representadas A lenda da origem das três raças explica a inferioridade
pela família, etnia ou nação. Os chistes agressivos se dirigem dos negros de um ponto de vista mítico, ou seja, de uma reve-
contra pessoas, raças ou instituições; os cínicos, contra a mo- lação feita pela divindade. A repetição da narrativa funciona
ral e a favor do carpe diem; e os céticos criticam a nossa pró- como um rito que confirma a narrativa primordial que, por
pria capacidade especulativa.s? sua vez, é confirmada por uma realidade social onde os ne-
Nos abecês de negro podemos detectar diversos elemen- gros aparecem em condições menos favorecidas. Os abecês
tos que constituem o chiste, a começar pelo valor social de geralmente partem da realidade social- do tempo em que os
que desfrutam. Por enquanto, vamos tomar valor social sem negros eram escravos - e algumas vezes apelam para o relato
levar em conta o aspecto moral que indica se o abecê é mítico-bíblico da maldição de Cem (vide abecê número 2). Em
racista ou não. O valor social aqui tem um sentido amplo, ambos os casos a inferioridade do negro é apresentada como
isto é, ilustra a competência do indivíduo ou do grupo para fato inexorável, ou seja, na História ou no Mito ele está fadado
articular um processo discursivo. Nesse sentido, negros e bran- a purgar sua culpa delatada pela cor da pele.
cos têm demonstrado competência na elaboração dos abecês.
Essas evidências são difundidas pelo senso comum em seu
haja vista a sofisticação dos exemplos que citamos. Posterior-
aspecto conservador, como vimos nos pressupostos de Geertz.
mente analisaremos as contradições inerentes a essa compe-
Assim, os abecês traduzem uma "simples aceitação do mundo,
tência discursiva.
dos seus objetos, e dos processos exatamente como se apresen-
Os abecês são percebidos como produção de um saber
tam, como parecem ser": cara de nego é terrível/homem é
/I
que exige habilidade daqueles que o utilizam como discurso,
pois em sua constituição é necessário combinar elementos que nego não é" (Abecê 1); "o preto não é raça nem é gente /
culturais e estrutura lingüfstica a fim de atingir determina- negro veio da mata brava bicho era, bicho é" (Abecê 2).
dos objetívos. Além disso, é importante delinear o ambiente Diríamos que o senso comum produz uma espécie de
social que possa "aceitar" a enunciação dos abecês. ideologia natural que representa as etnias hierarquicamente,
O domínio dessas operações é responsável pelo prestígio que apresentando-as de acordo com traços absolutos. Os exem-
alcança o enunciador dos ebecês. Em nossas pesquisas de campo plos acima, traduzem uma afirmação fechada: negros não
em Minas Gerais temos ouvido comentários a respeito de pessoas são pessoas. Pelo mesmo artifício são difundidos comentéri-
que sabem os abecês da primeira à última letra: o orgulho é tanto os do tipo: judeu é avarento, mulheres são inferiores aos ho-
daquele que faz o comentário quanto do Outro que é enaltecido. mens, nordestinos são subdesenvolvidos.
O valor social dos abecês é realçado quando tentamos No contexto social, onde as etnias interagem e diver-
percebê-los no mercado de referencialidade dos discursos. Nes- gem, o uso da ideologia do senso comum cria situações
se espaço sobressaem os discursos apoiados por fatores de or- estarrecedoras, na medida em que é reelaborada sob a forma
dem política e econômica (ou seja, de grupos privilegiados), mas de ideologia política. Surgem daí os guetos, os campos de
também aqueles tecnicamente bem-estruturados. Os abecês de concentração, as perseguições raciais, o ódio estimulado a
negros não fogem a esse pressuposto, de modo que devemos serviço de grupos privilegiados.
considerar dois aspectos técnicos em sua montagem: o uso do
senso comum como suporte de significado e o raciocínio falho. Na análise dos chistes, Freud observou que um raciocínio
lógico pode ser usado para "ocultar um ato de raciocínio falho
- a saber, um deslocamento do curso do pensamento." Em
"Tdem. p. 136.
função disso, o chíste pode estar a exibir "algum 'nonsenee' ou

86 87
estupidez".61 Essa é a técnica dos chistes absurdos, que apresen- mais 。セウオイ、 as referências aos negros, mais atrativos eles se tor-
tam algo estúpido e absurdo cujo sentido procede ela demons- nam. E o que demonstram a tradicional alusão à familiaridade
tração de algo que, seja também estúpido e absurdo.f entre negro e diabo (ambos rejeitados e marginais) e a fixação atual
Nos abecês de negro a técnica do absurdo é aplicada de do vinculo entre negro e ETs. (ambos estranhos e ameaçadores).
maneira menos complexa, mas nem por isso menos eficiente.
O absurdo é dado a priori pelo aspecto conservador do senso Sentido psicossocial dos abecês
comum - que admite valores absolutos sem questioná-los - e
atua a partir da aparente naturalidade de expressões como Enfatizamos anteriormente o valor social dos abecês em
"Nego não tem nada com Deus I Tanto os nego quanto as nega termos da competência individual ou coletiva para articular
vive na má intenção" (Abecê 1); "Hoje em dia é perigoso / um processo discursivo. Mas, não podemos nos esquecer que
Chegar perto de um negrinho / Se a gente se descuidar / Nem esse discurso faz parte de um mercado de referencialidade
que seja um bocadinho I A bolsa vai evaporar" (Abecê 2). onde disputa com outros o direito de precedência..
Os argumentos absurdos dos abecês retiram seus senti- A relação entre os discursos no mercado de
dos de outras asserções que não admitem relativizações, isto referencialidade Ocorre a partir dos sentidos, valor moral e
é, que são apresentadas como única possibilidade de sentido. representações que exibem como seus atributos de identida-
Assim, nas relações sociais, os atributos dos negros já estão de. Os atributos são delineados pela orientação ideológica
préestabelecidos e aquilo que está num negro estará obriga- que vincula um tipo de discurso 'ao grupo social que o elabo-
iI
toriamente em todos os outros: ra e a outros grupos que, porventura, venham a reproduzi-
I! lo. A orientação ideológica patriarcal e machista que presi-
Nego não tem nada com Dees > Nego/Nega malintencionados ;;;: de os abecês oferece estímulo para a construção de um dis-
Negros não têm religião Negros são imorais, sem caráter curso cujo sentido, legitimado por uma moral oscilante, flo-
resce nas representações estereotipadas do negro.
Um negrinho é, de antemão, um assaltante ',' Assim sendo, os abecês respondem a uma demanda
Negros são assaltantes e bandidos i,, discursiva que procura atender a certas expectativas, a um só
tempo, individuais e coletivas: sua elaboração revela a dicção
A eficiência do absurdo nos ebecês de negro decorre da de sujeitos racistas e de urna sociedade igualmente racista. Daí
falta de necessidade de estabelecer o questionamento dos ar- o sentido psicossocial que torna esse tipo de discurso um even-
gumentos apresentados. Há uma lógica de mínimo esforço to de alcance político, superando as análises despreocupadas
que estimulaa aceitação dos argumentos tal como são. As - ou intencionalmente despreocupadas セ que o relacionam a
custas da repetição sem crítica" o absurdo se impõe e se toma sedu- uma mera brincadeira. O caráter lúdico dos abecês faz parte
tor como uma alternativa às argumentações que passam de uma estratégia empregada para ocultar a sua sofisticada
freqüentementepelo crivo da dúvida e da crítica.Nos abecês quanto constituição, fato perceptível na trama que envolve o anoni-
mato da autoria e a cumplicidade sujeito/sociedade, a cadeia
de argumentos e as contradições do discurso.
61 Freud, op. cit., p. 73 . " _
62 Idem, p. 76-7. Um dos exemplos de chiste ab.s;:-rdo citado por fイ・オセ é: Nao
Anonimato e cumplicidade
nascer seria a melhor coisa para os mortais (...) O absurdo :sta em que O anonimato dos abecês não deveria despertar maio-
"Quem não tenha nascido não é, em absoluto, um mortal. nao havendo
para este nada de bom; nem de melhor." res atenções visto que outros tipos de discurso da cultura

88 89

... = :e .. .. ati ;a 4
••
popular também apresentam essa característica. É difícil iden- contestação em épocas de repressão ou de chantagem em
tificar uma autoria pessoal para cantos do Congado, dos situações de disputas de interesses. Em ambos os casos, o
Batuques, das Folias de Reis ou mesmo de narrativas - todos ii anonimato permite a propagação do discurso ao mesmo tem-
eles discursos reconhecidos em determinado circuito social. po em que o enunciador se coloca a salvo das argumentações
ii;j emitidas pelos seus receptores.
Mas nos abecês somos tocados pela especificidade do
conteúdo discursivo - o racismo - e pelas referências histó-
ricas de intolerância, exclusão e violência que o cercam. Nos セQ
j Os abecês de negro soam como discurso sedutor aos
ouvidos de uma sociedade ou indivíduo racistas que prefe-
outros discursos citados, a questão racial nem sempre é o セ .. rem não declarar isso abertamente e como discurso agressivo
ii
elemento central, podendo dividir espaço com questões do j aos que condenam a discriminação racial. Protegidos pelo
sagrado, dos jogos amorosos e do entretenimento. Nos I
;j
anonimato, os racistas - principalmente os não declarados -
abecês estas questões são chamadas à cena pelo apelo do lavam as mãos enquanto atingem seus objetivos. Como nin-
pensamento racista que se apropria delas a fim de ウ・ᄋ。ーイ・セ "セ guém se assume como o autor do discurso racista, cria-se
uma encenação teatral em que a sociedade fala - sem admiti-lo
sentar de forma sedutora, ou seja, o discurso da exclusão
étnica tanto se manifesta de maneira explícita quanto de 1 - enquanto o indivíduo fala e vice-versa.
maneira sutil, sob a máscara de discursos que invocam ou- j Os talentos do indivíduo e os recursos técnicos e artísti-
tros assuntos. l cos legitimados pela sociedade são postos a serviço dessa en-
Em geral, as pessoas não sabem citar os autores dos abecês.
Os textos que analisamos foram recolhidos em reuniões de I, cenação. Os enunciadores dos abecês de negro se destacam
individualmente lançando mão de recursos como a rima e a
Folias de Reis ou em casas de cantadores de batuque, conta- I cadeia de argumentos, que fazem parte do campo de experi-
dores de histórias ou rezadores. Conhecemos os "especialistas"
em propagar o discurso dos abecês, mas não os seus autores.
1 ência do grupo.
Os abecês que citamos apresentam rimas classificadas
Seguindo uma cadeia da tradição da cultura popular, os
"especialistas" afirmam ter aprendido os abecês de outra pes-
SOa, em geral mais antiga. O fato de mudarem um ou outro
I! pela teoria da versificação como pobres (ocorrem entre pala-
vras de mesma classe gramatical) e ricas (ocorrem entre pa-
lavras de classes gramaticais diferentes):
trecho da composição não implica a formação de novo abecê, 1
o que impede também a configuração de uma autoria pessoal. 1 Abecê 1 Abecê 2
Pelo que pudemos observar, as mulheres não são enunciadoras 1 manhoso/ gostoso(adjetivos) mandar /passear(verbos)

I
privilegiadas dos abecês de negro, o que nos leva a considerar espaço/laço (substantivos)
dentadura/rapadura (substantivos)
o peso dos componentes patriarcais e machistas que dão cor- inteligente/ diferente (adjetivos)
sucedeu/apodreceu (verbos)
po a esse discurso. A restrição às mulheres não é explícita, possa (verbo) - grossa (adjetivo) falar (verbo) -Jugar (substantivo)
mas implicitamente há uma aura de inibição que lhes causa santo (substantivo)-levanto (verbo) infelizmente (advérbio)-
constrangimento e contribui para preservar a exclusividade I não (advérbio) gente (substantivo)
masculina na construção desse discurso em particular, e do I irmão (substantivo) antigo (adjetivo)-
discurso social dominante, em geral.
O anonimato funciona como uma máscara através da
qual indivíduo ou grupo emitem suas opiniões que atiçam
I
:r
castigo (substantivo)

As rimas são um recurso técnico e artístico que facilitam


sentimentos de solidariedade ou discordância. É a a memorização de um discurso racista em: que "o negro pre-
ambivalência do anonimato que o torna um mecanismo de enche geralmente as funções correspondentes ao seu 'status'

90 91
social- ocupando os lugares 'inferiores' ."63 O vocabulário de zões que estimulam a conivência com a situação de violência
domínio público apresentado no abecê ajuda a fixar no imagi- gerada pelos ebecês de negro.
nário pessoal e coletivo a imagem em que a cultura e as pesso- Nesse discurso, a dificuldade para desmascarar a cum-
as negras são identificadas como elementos negativos. A rima plicidade e a conivência decorre de sua associação com o senso
é um recurso sedutor e é comum o interesse pela musicalidade comum, pois os abecês são apresentados como uma verdade
que ela alimenta. Contudo, a forma da rima não se desprende da tradição que vem sendo aceita porque assim é ou assim
do conteúdo racial, ainda que os enunciadores e os receptores parece ser. Em razão disso, os abecês devem ser considerados
procurem deixar de lado esse aspecto. um evento importante já que em sua tessitura se entrelaçam,
O abecê de negro é um discurso que demonstra maior se ocultam e se revelam situações de conflito da sociedade
carga satírica quando apresentado diante de uma platéia. Os brasileira.
enunciados são provocativas e na medida em que a platéia
participa da construção do retrato do negro - geralmente com Cadeia de argumentos
risos - maior se torna a cumplicidade entre enunciador e re-
ceptores. Ambos se identificam com um imaginário em torno A cadeia de argumentos é aberta pelo enunciador com
do negro que foi sendo elaborado e aceito simultaneamente a formulação de um princípio "pré-construído", ou seja, algo
pelo indivíduo e pela coletívidade. que é elaborado fora do discurso e levado até os interlocutores
A cumplicidade entre indivíduo e coletividade impede como uma verdade.w O pré-construído dos abecês é caracte-
que os abecês sejam percebidos como um ato de violência, ou rizado pelo esforço de demonstrar a desqualificação do ne-
seja, a possibilidade do riso diante desse discurso demonstra gro como um todo:
que existe uma ambiência homóloga entre quem o enuncia e
quem o recebe. Além disso, a mensagem que desqualifica o "Avia em outro tempo/ quando tinha lmperadô Z não havia
negro é contornada por um sentimento de fraternidade - i
::
tanta desorde que os preto tinha sínhõ" (Abecê 1)
determinado pela educação - que recomenda reprimir os ,I "Mas o preto infelizmente / (Eu não queria abusarf) / Não é
impulsos de destruição do Outro. Mas, a idéia do negro como :1
raça nem é gente" (Ab ecê 2)
inferior permanece - consciente ou inconscientemente - re- I
presentada nos abecês e justificada por urna sociedade que o O conteúdo racista desses pré-construídos é apresenta-
explorou como mão-de-obra escrava. do como uma verdade que deve ser preservada a bem da
Da cumplicidade passamos à conivência da sociedade sociedade. Em outras palavras, os abecês fazem a apologia
e dos indivíduos com o discurso racista dos abecês: ninguém da escravidão ao afirmarem que o negro sem senhor, portan-
quer se comprometer com a ruptura de uma tradição que セウ to livre, é causador de desordem, ou que o negro bom é o
próprios negros divulgam, ninguém deseja despertar o senti- negro submisso (Abecê 1), ou ainda, que Os brancos são su-
menta de inimizade entre negros e brancos, ninguém preten- periores e os negros inferiores (Abecê 2).65
de esconder o talento dos enunciadores dos abecês. ninguém
ousa cortar o ambiente de alegria e "bom humor" introdu-
zindo a agulha da crítica ao racismo. Enfim, há muitas ra- MTermo adaptado da disciplina "Análise do Discurso/ Teoria de Comuni-
cação - Perspectivas" ministrada pelo Prof. Dr. Geraldo Nunes no Curso
de Doutorado em Comunicação e Cultura - Eco-UFRJ, Facom-UFJF, 21/
63 Plorestan Fernandes, "O negro na tradição oral", O Estado deSilo Paulo, São 10/1997.
Paulo, 01/7/1943, p. 4 -5. 65Clóvis Moura, op. cit., 1977, p.l8.

92 93

;: 42 l$ ,,;pc = ='$$ 21 ;; II
-
o pré-construído da desqualificação é organizado em O campo de sentido dos abecês, piadas e jogos de adi-
etapas, menosprezando os traços físicos ("Cara de negro é ter- vinhações sobre o negro está demarcado pelos pré-
rível"), morais ("Todo nego não presta") e culturais ("Oração construídos. Estes, como vimos, partem de uma situação na
de nego é cálculo") do negro. A gradação do discurso racis- qual o negro parece ter uma condição humana; em segui-
ta é complementada por um sentido de intensificação. O ne- da, pelo processo da desqualificação, se deslocam para セ ュ
gro agredido em seu corpo, moral e cultura é, finalmente, sin- demonstração racista cujo objetivo é provar que negro nao e
tetizado como uma figura estranha à sociedade dos homens. ser humano em hora alguma.
A intolerância do racismo desumaniza o humano ("é obra do O Abecê 2 é uma atualização do número I, pois transfe-
capeta llivusia do cão I Home é que nego não é" Abecê 1). re parte das referências da área rural para a urbana. Outra
Essa técnica é também empregada nas piadas e jogos alteração é que estabelece já de início a 、・ウアオ。ャゥヲ」￧ ̄セ dos
de adivinhações que envolvem a desumanização do negro. traços morais do negro, superando a etapa da gradaça.o do
A previsibilidade das respostas está na idéia subjacente - físico para O moral. Na sequência do discurso, O :acIsmo
partilhada pelo senso comum e estimulada pela ideologia empareda o negro entre o passado e o pres:nte, reduzindo-o a
racista - que leva à identificação do negro com referenciais "bicho de estimação" e assaltante, respectivamente.
interpretados negativamente. Desse modo, se torna conse- Nesse abecê, o enunciador faz uma paródia do Livro
qüente que dentre os elementos aos quais o negro é compara- do Cêneeis reescrevendo a experiência da perda do paraíso
do estejam fezes e lixo (esquema de coisificação ou reificação). (estrofes de 10 a 16). O tema da queda - de grande influência
ou macaco e burro (esquema de animalização): na cultura popular, principalmente em função do reforço que
a catequese cristã fez dos valores イ・ー ウ・ョエ。セッウ ーセャ c.ulpa セ
"- Qual a diferença entre um preto e uma lata de merda? foi utilizado para alimentar ainda mais o iュセァ。ョッ que
-A lata."
impõe ao negro uma série de ?utras c;rlpas. asQセL セャ・ .é res-
"- Por que o caixão do preto tem duas alças? ponsabilizado pela perda do Eden, alem de ser discriminado
- Você já viu lata de lixo ter quatro alças?"
pela cor e transformado em coisa e animal.
"c-Qual o primo mais próximo dos pretos: os brancos ou A trama reescrita, segundo a imaginação do enun-
os macacos?
-cOs brancos, pois macacos eles já são." ciador, tem por modelo o texto bíblico, uma referência cujo
"- Por que é que preto tem muitos filhos? valor é legitimado pela sua aceitação social. Mas., como se
- Porque é a única coisa que burro sabe fazer." fosse um palímpsesto. podemos ler sob o texto 「■ ャセ」ッ ? enre-
do que descreve a relação tensa entre mucamas e sinhás, em-
o discurso racista que desumaniza o negro atua tam- pregadas domésticas e patroas. .
bém de maneira sutil ao atribuir-lhe uma espécie de "sub- Através de uma técnica sofisticada o enunciador tomou
humanidade", ou seja, caracteriza-o corno sub-gente que por modelo dois enred?s: o 「■ャゥ」セ e セ da sociedade brasileir.a
interage com a sociedade beneficiando-a, mas que é logo ba- escravista e pós-escravIsta. No prImelrO buscou suporte ーセャ
nida para o limbo da coisificação. cológico a fim de criar uma justificativa para aexclusao
do negro. Isto é, o homem negro e a ュオャィセイ セ・ァイ。Gーゥカュ
"-Quando é que negro vai à escola? (gente) a humanidade do paraíso por isso são díscríminados. O racio-
-Quando constrói o prédio." (mão-de-obra) cínio que se aplica, em geral à mulher, 」オセー。ョ、ッM。ーッイ essa
"c-Quando é que preto sobe na vida? (gente) perda foi reelaborado para atingir especificamente um gr.u-
- Quando o barraco explode." (objeto) po étnico; A eficácia e o efeito destrutivo do pensamento racis-
94 95
ta são demonstrados em sua flexibilidade para incorporar aゥセ、。 para セ ウエゥヲ 」。イ a inferioridade do negro, o dis-
argumentos de. auto-reforço e em sua rigidez para curso racista se apoia em falsas proposições científicas: "Quer
desqualificar suas vítimas. saber de uma coisa/ Que a ciência descobriu? / Branco é muito
NQ segundo enredo o enunciador encontrou suporte ゥイセNエ・ャゥァ ョエ・O セ。 cab.eça セュ uma sementei Que preto nem
social na relação entre negros e brancos confrontados no I VIU/ Negro e um tipo diferente Z Da espécie rara TIZIU".
ambiente familiar e de trabalho. Na hierarquia das casas- Sendo' um pré-construído, esse argumento não se interessa
grandes; dominada pela mão dos senhores, havia um espaço
complexo de cumplicidade e exercício de poder. Na relação
entre sinhás e escravos domésticos se desenhava um jogo de
Ii pela veracidade das afirmações. Interessa-se, isto sim, em fa-
zer ー。イ・セZN カ・イ、。セゥ_
do pela idéia de objetividads da ciência. Aliás, esse não é um
.um enunciado falso que está protegi-

ocultar e revelar a intimidade da casa-grande. 66 A cumplici- caminho novo percorrido pelos pensadores racistas: o
dade estava no conhecimento que a sociedade tinha desse セイLZゥョウュッ セッゥ。ャ e a エセッイゥ。 da evolução circularam nos pe-
jogo, embora o mantivesse sob controle, principalmente atra- ョセ、Qcッセ 「イセウ ャ・ イッウ 、セLウ・」オャッ passado contribuindo para "ex-
vés da punição dos escravos." O escravo estava na casa, mas plicar cientificamente a inferioridade do negro.?"
não deveria ultrapassar certas fronteiras para alimentar o O circuito do discurso racista dos abecês é fechado com
desejo de se tornar um da casa. a utilização da religião como fonte de argumentos, soman-
Com o final da escravidão, os negros continuaram de- do-se aos recursos psicológicos (apelo ao imaginário'coleti-
sempenhando diversas funções domésticas e experimenta- :'0),. ウッセゥャL￳_」 (emprego de referentes extraídos da experi-
ram também no novo contexto a exploração de sua capaci- encra histórica dos grupos e indivíduos) e científicos (convo-
dade produtiva." As mulheres negras, em muitos casos, pas- cação da objetividade como antídoto contra dúvidas sobre fi
saram do domínio das sinhás para o das patroas modernas: verdade afirmada).
o desrespeito aos seus direitos trabalhistas e os conflitos na Nos abecês, a セゥウ ̄ッ maniqueísta da religião associa o
hora dos acertos salariais transformaram o trabalho de em- negro ao Mal/Satanas e o branco ao Bem/Deus. Esse pré-
pregada doméstica em extensão do "cativeiro femíníno.'?" construído funda raízes em longa tradição cultural do oci-
Em resumo, o discurso do Abecêz aponta para uma dente e se renova na medida em que é empregado nas articu-
atualização de argumentos racistas, que associam aspectos lações do discurso racista contemporáne.çvt
do senso comum ao "talento" de enunciadores contemporâ- No contexto da cultura popular a religião funciona
neos. Areelaboração do enredo bíblico à luz do enredo histó- como lente através da qual indivíduo e grupo realizam a in-
rico-social ampliou o aspecto lúdico do ebecê, ao mesmo tem- terpretação do mundo. A ação de entes exemplares - santos,
po em que intensificou a discriminação com a dupla justifi- espíritos dos mortos, beatos セ se torna um espelho onde os
cativa psicológica e social.

66 l-lebe M. Mattos, "Laços de família e direitos no final da escravidão", ln: te no Brasil. Contudo, os silêncios de nossas ciências sociais podem ser
Luiz Felipe de Alencastro (org.). op. cit., 1997, P: 361. revela.dores de um セイッ」・ウ de ocultação de aspectos indesejáveis de nos-
67 Leila Mezan Algranti, "Famílias e vida doméstica".' セョZ Lau:a de Mello e sa ウッ」ャ・_。、セN Em tais Casos, em geral, ou fazemos de conta que o proble-
Souza (org.), História da vida privada 110 Brasil! Cotidiano e VIda pnvada na ma mexíste, Ignorando-o mediante a recusa a estudá-lo, ou o circunscreve-
América Portuguesa, São Paulo, 1997, P: 129. mos anedoticamente nas fronteiras das conversações ligeiras e superficiais."
68 Gomes & Pereira, op. clt., 1988,.p. 60. "Gomes & Pereira, op. cit., 1988, p. 49.
69 De acordo com a crítica de Zaíra Ary Farias, Domesticidade, cativeiro[eníni- 1JSobre a negatividade da cor negra e sua associação com o Mal ver Câmara
noi, Rio de Janeiro, 1983, P: 7, o estudo da situação da empregada domés- C?s.cudo, DicionfÍrio deFolclore, 1984, P: 291-292; Hans Biedermann, Dicio-
tica "não constitui urna questão central da produção sociológica domlnan- nano Ilustrado desímbolos, São Paulo, 1993, p. 311-312.

96

....._-------_._--
97

BGM セM セBM
" . . .04' 4 li
セBN M M ...M M セ ---
devotos se miram para organizar suas vidas. O discurso da município de [equitibé registramos o caso isolado de Nélson
religião é considerado também uma fonte legitimadora de ' Carvalho da Silva (Nélson de Jacó'), mestre de Folia de Reis,
valores para aqueles que o tomam como fundador do mun- Lセ


qué escreveu e canta uma Resposta ao ABC do Negro.74 Outras
do sobrenatural c do mundo social." iniciativas foram. observadas em comunidades negras, como
Os enunciadores dos abecês se valem desse prestígio
quando buscam na religião a justificativa para a demonização i as de Lagoa da Trindade Uequitibá/MG) e Mato do Tição
Uaboticatubas/MG), onde a narrativa da chegada dos Reis
do negro. Os abecês são encerrados com uma alusão aos ben-
、NゥエッセL cantos セ・ャゥァ ッウ usados no acompanhamento de pro-
1, Magos à lapinha foi reelaborada a fim de demonstrar que o
negro não é inferior ao branco."
cissoes e, mais antigamente, nas visitas do Santíssimo." Os ':ti

I!
benditos, muito conhecidos entre os representantes da cultura Contradições dos abecês
popular, invocam a Deus e aos santos a proteção para os de-
votos. Mas, nos abecês, o enunciador inverte o significado dos A elaboração do discurso dos abecês não deixa dúvi-
bendito.s, solicitando o extermínio dos negros às forças sobre- das quanto à sua sofisticação. Os argumentos são baseados
em valores considerados importantes, tais como o talento
naturais ou reiterando, de modo determinista, a sua j pessoal dos enunciadores, a ciência e a religião. Além disso,
marginalidade: ]
1 os recursos da linguagem são colocados a serviço da ideo-
"Ofereço esse bendito "Ofereço esse bendito t logia discriminatória para atender as expectativas dos
pelo delegado Caifás Com sincera devoção !· enunciadores. Tem-se, portanto, forma e conteúdo sendo
para sê repartido
com o tenente satanãs.
Esperando que algum dia
Preto num seja ladrão." I manipulados para divulgar a imagem absoluta e não-dialética
do negro como ser inferior.
(... )

I
(Abecêã) Mas, nas entrelinhas do discurso racista encontramos
pontos que minam o seu caráter fechado e revelam, no sofri-
Rezano o credo em cruz
pra me livrá dos nego !t mento da discriminação, a humanidade que se tentou retirar
para sempre amém Jesus!"
! dos negros. Consideremos os tópicos: o drama e a comicidade
(Abecê 1)
I1 nos abecês; a afirmação do negro através da negação; o ne-

A análise da cadeia de argumentos dos abecês, ainda


que limitada, revelou que esse discurso se impôs no mercado
I gro contra e a favor de si mesmo.
Os abecês de negro são apresentados como atividade
lúdica, com ênfase no aspecto cômico. A intenção dos
de referencialidade com larga faixa de aceitação. O quadro se
torna mais desafiador se considerarmos as piadas, jogos de
adivinhação e narrativas que seguem a mesma linha ideológi-
ca dos abecês. Pelo menos até o momento, não verificamos a
elaboração vigorosa de um discurso anti-abecês de negro. No
!
I
:t
enunciadores é partilhar com a platéia o riso decorrente das
comparações absurdas em que o negro é envolvido.Os abecês,
assim como os chistes tendenciosos, servem a um fim. Como
constatamos, discriminam o negro e afirmam a superioridade

1
nGomes & Pereira, op. cit., 1992, P: 85-92.
II "Ibidem, 1Q95, p. 90.
75 Idem, 1995, P: 84 -85. Outras narrativas enfatizam a idealização do negro,
geralmente através do processo de santificação. Exemplo clássico desse
"Jdero, Do presépio à balança: representações sociais da vida religiosa, Belo Hori- ,, processo é a história do "Negrinho do Pastoreio" (Augusto Meyer, Guia
zonte, 1995, p. 258. dofolclore g'aÚcllO, Rio de Janeiro, 1975).

98 99
do branco usando para isso os recursos do humor. A contra- lo'. O negro desumanizado pelos processos da coisificação e
dição começa ase delinear quando observamos ,que o con- ,i ammalização leva a sociedade a pensar na contra-imagem
teúdo dramático do conflito entre negros e brancos é apre- 'I do negro, cuja humanidade não foi extinta, ainda que tenha
sentado e recebido como produção cômica. Os risos provo- I
de ser provada dia-a-dia. No discurso dos abecês está
cados pelo discurso racista estão permeados de sadismo e 'I
subjacente o sentido de que a coisificação e a animalização
perversidade, embora os interlocutores não percebam ou não 11
só podem incidir sobre aquele que não é nem coisa nem ani-
queiram perceber isso. 'I mal irracional.
I'
A leitura atenta dos abecês ajuda a compreender como ;1 Por outro lado, a discriminação sugere a idéia
eles passam da sugestão do riso para o escarnecimento, carac- ,I perturbadora de que os grupos e os indivíduos demonizam e
terizando a sua natureza agressiva. Como observou Freud, o excluem o Outro porque o temem ou não desenvolveram sua
chiste tendencioso de caráter hostil tem várias funções: reage I
íl
competência para compreender a diferença. Como se pode
contra os limites impostos ao indivíduo e substitui os impulsos II notar, no modelo social brasileiro não são gratuitas as associa-
violentos pela invectiva verbal. Nos abecês o branco reage con-
tra o negro que ele considera seu limite; e as palavras "que I ções dos negros e das mulheres com as figuras demonizadas."
O negro e a mulher representam a diferença no hori-
furam como punhal" substituem o impulso de agredir fisica-
mente o Outro, já que a lei proíbe essa atitude.
Nesse drama, em que muitas pessoas vêem motivo de
セ I
zonte da sociedade branca e machista. O fato de serem ex-
cluídos ou incluídos nesse modelo demonstra que interferem
na definição do perfil dessa sociedade. A exclusão de ambos
riso, a omissão da sexualidade masculina e a exploração da nos coloca diante do conhecido retrato da sociedade
sexualidade feminina indica o efeito destrutivo do racismo.
Para Freud o smut é uma outra vertente do chiste tendencio-
so e se caracteriza pelas insinuações principalmente a respeito
da sexualidade feminina. Embora o estereótipo do vigor sexual
t
i'
segregacionista e violenta; a inclusão nos faz desejar a socie-
dade equânime, com competência para entender e respeitar
a diversidade.
As contradições citadas acima ocorrem no espaço da
do homem negro seja de domínio público, os abecês e piadas de relação entre negro e branco. Para efeito de compreensão,
negro não trabalham com a força da sexualidade masculina. vamos chamá-la de relação externa já que a diferença étni-
As mulheres, no entanto, servem de motivo para os smuts, onde ca é o ponto de partida para os conflitos estabelecidos. Além
funcionam como remédio para homens impotentes. dessa relação há uma outra, que chamaremos de interna, e
Sendo a sexualidade masculina atíve, seria de se supor que se exprime na conivência do negro com o discurso que
que os abecês e as piadas incidissem sobre o homem negro, mes- o discrimina. Em termas psicanalíticos, tem-se o enredo em
mo realçando o estereótipo da comparação negro / animal que "na construção de Ego branco, a primeira regra básica
copulador. Mas como o pleno exercício da sexualidade mascu- "que ao negro se impõe é a negação, o expurgo de qualquer
lina é socialmente bom e desejável (vide os contornos patriar- 'mancha negra'.":"
cais da sociedade brasileira), não convém realçar esse traço nos
negros o que, afinal de contas, lhes concederia um atributo de
7ÓS obre a demonízação do feminino na cultura popular ver Núbia Gomes,
superioridade. Como para as mulheres negras ou brancas a "As degredadas filhas de Eva", ln: Revista Convivium, São Paulo, 1988, p.
manifestação da sexualidade é atributo negativo, as mulatas 369;Câmara Cascudo, op. cit., 1984, p.511-512. Sobre o par homem bom/
sensuais são utilizadas como objeto nos discursos racistas. mulher má que fundamenta as benzeções de inflamação de mamas ou de
ii engasgamento, ver Gomes & Pereira, Assim se benzeem Minas Gerais, Belo
Em outra contradição, os abecês promovem a afirma- i Horizonte/Juiz de Fora, 1989, p. 56.
ção do negro a partir do momento em que se propõem a negá- 77Neusa Santos Souza, Tornar-se negro, Rio de Janeiro, 1983, p. 34.
,
100 :1

T。■^ ゥセ Zイᅪャ ェ セ J
101
- -- .. ..'.. ...
" =p 44.4$ l$I 4S S1 4$ la $$4$ 55 4' tll 41 O" 51 • 44 • , ..
Quando um negro enuncia um abecê de negro está au- menta para se libertar, mais se vê enredado. Talvez, por
tomaticamente discursando contra si mesmo. Nesse caso, há isso, os enunciadores prefiram falar os abecês e não falar sobre
pelo menos duas possibilidades a serem consideradas: a do os abecês.
negr? アセ・ rej:ita a. si mesmo e a do negro que não se rejeita. Mas, como a contradição é nutriente do racismo, eis que
O pnmerro nao se Importa se está falando de si mesmo, pois negá-lo é uma forma de afirmar a sua significação. Prova disso
na verdade se sente um Outro. Não leva em consideração , são os abecês de negro セ ponte entre a cultura erudita e a ーッオセ
se o 」セ。ュ de. r:egro, pois sua opção está protegida por lar - que revelam a presença insidiosa do racismo numa sode-
uma mascara narcisísta que o impede de ouvir as críticas. Se dade que se autoproclama como tolerante e democrática."
o abecê, como o chiste tendencioso hostil, funciona como um A análise dos abecês de negro é importante porque nos
meio de defesa contra os limites impostos, o negro que rejeita permite compreender algumas orientações ideológicas que
a si mesmo se impõe como seu próprio limite. Portanto, a perpassam a formulação dos discursos no cotidiano da soei-
agressão para superá-lo implica a autodestruição. , edade brasileira; nos coloca em contato direto com um even-
No contexto em que os abecês foram イ・」ッャィゥ、セウL há ne- to típico de uma sociedade multiétnica; e nos apresenta o
gros que não rejeitam a si mesmos e, no entanto, divulgam cenário tenso onde as relações multiétnicas revelam situa-
esse discurso. A justificativa para essa atívidade, segundo ções de interação e conflito.
alguns, procede da necessidade de manter uma tradição cul- Procuramos aliar a abordagem teórica à pesquisa de
tural. A preocupação dos enunciadores, ao que parece, não campo - roteiro que temos tentado aperfeiçoar com base em
se prende tanto ao conteúdo dos abecês, mas ao fato de que trabalhos que publicamos anteriormente. Para a análise de
algum antepassado os utilizou e os transmitiu como heran- eventos da cultura popular julgamos relevante a citação dos
ça. Esse enunciador desloca a interpretação do valor dos dados etnográficos a fim de tomar mais perceptível o mapa
abecês, privilegiando o seu caréter de patrimônio cultural e da abordagem teórica. A experiência tem nos mostrado que
não de conteúdo ideológico racista. a cultura popular, embora esteja presente em grande parte
No modelo de cultura popular dos abecês a noção de de nosso cotidiano, nem sempre é apreendida com a preci-
patrirl1ônio cultural reflete, ao mesmo tempo, um lado con- são de detalhes que merece.
servador e outro dinâmico. O enunciador que não rejeita a si Verificamos isso no que diz respeito aos abecês: em ァ・セ
mesmo contribui para a difusão do racismo ao repetir a mes- rel, aparecem nos livros de folclore arrolados em extensas
ma fórmula aprendida de seus antecessores (conservadorismo). f
'(
listas de eventos. Não se percebe esforços para estabelecer a
Porém, a mudança dos contextos sociais (fim da escravidão, contextualização e a inter-relação entre esses eventos, ou
expectativa de ascensão social da população negra, ação efi-
caz de militantes políticos, intercâmbio com outras áreas afe-
tadas pelos conflitos étnicos) tem contribuído para a busca de
outros sentidos nos abecês de negros (dinamismo), tal como a
í
I
J
mesmo para identificar com maior precisão seus agentes e
meios de elaboração. Sob o crivo de conceitos como tradição
e criação anónima, os abecês, piadas e narrativas de negro

explicitação da violência das relações étnicas no Brasil. !i 7SSegundo o jurista Hédio Silva jr., pesquisador da rue/sp, "Nasociedade
Contudo, os dois tipos de enunciadores negros estão'
sujeitos a um processo de alienação, pois o riso que promo- i brasileira há a tendência a minimizar o conflito racial. O delegado se recusa
a reconhecer o crime racial, que na maioria das vezes é desqualificado e vira
vem não é necessariamente autocrítica. Ao contrário, sua
intenção é destrutiva. O discurso racista dos abecês se asse-
melha a uma teia de aranha: quanto mais o sujeito se movi-
l
I
crime contra a honra. "ln: "Brasil precisa aprimorar leis antí-racísmo" I Jor-
nal O Tempo, Belo Horizonte, Magazine/B1equitllde, 14/01/1998, P: 8. Ver
também a reportagem de Lena Frias, "O racismo comprovado em núme-
ros", Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, Sexta-feira, 12/05/2000, "Brasil", P: 5.
102 103
I

são citados como produto finalizado e não como processo


I adequar a um modelo segregacionista, que a agrada, mas
discursivo em que as atuações de indivíduo e grupo contri- I que moralmente não é bem aceito, No intervalo dessa con-
buem para exposição das contradições sociais, i tradição, a sociedade brasileira adquiriu a perversa habi-
Os abecês de negro não são um evento isolado. Na me- ,I lidade para fazer a mediação entre a presença do racismo e a
sua aceitação como fato lúdico.
dida em que- os apreendemos como fato social, observamos i
que se trata de um processo discursivo que interage com ou- I Nesse ponto é que podemos perceber o discurso dos
tros processos discursivas, Num parentesco mais imediato, abecês como uma forma de poder. Eles são portadores de
pertencem ao universo das piadas, jogos de adivinhação e I uma ideologia que interfere no modo como as pessoas inter-
narrativas de negro: Mas, como processo discursivo, podem
interagir tom os discursos tecidos em torno da religião, da
política, da economia, da arte. Os abecês são uma forma de
II pretam o mundo, Os abecês explicam que negros e brancos
dividem espaços sociais de acordo com uma hierarquia que
menospreza uns em benefício de outros. É com esse alfabeto
discurso do homem sobre o homem, portanto, tocar neles sig- j que a sociedade-escola ensina a discriminação, a intolerân-
nifica soar o conjunto de cordas que os envolve, e vice-versa. II cia e a violência.
No mercado de referencialidade, os abecês de negro são ,:j\ No contexto da cultura popular os enunciadores dos
representados como uma elaboração de discurso em que se abecês desfrutam de prestígio diante de seus interlocutores.
destacam dois elementos: a orientação ideológica e o exercício Esse poder de fazer rir é também 9 poder de segregar. Por
do poder. A orientação ideológica dos abecês demonstra que isso, o que está em causa não é apenas a palavra que consti-
não são elaborados ao acaso, No Brasil, os espíritos ingénuos- tui os abecês, mas também o tipo de comportamento e atitu-
ou intencionalmente ingênuos - costumam frisar a inexistência de que eles estabelecem como horizonte para os indivíduos e
de uma política institucionalizada de segregação racial. O os grupos,
apartheid da África do Sul foi sempre citado como exemplo de Na cultura popular os abecês são uma tradição que os
uma situação discriminatória que a nossa sociedade rejeita. O negros cultivam e que se volta contra eles mesmos. Mas os
estudo dos abecês, na entanto, mostra outra situação crítica abecês extrapolam os limites da cultura popular, pois como
em que a inexistência de uma política institucionalizada do orientação ideológica racista participam de um espectro
apartheid não impede a formulação de uma ideologia racista amplo de discursos discriminatórios. Hoje somos obrigados a
de segregação. pensar no risco de uma cumplicidade em âmbito globalizado,
A ação insidiosa dos abecês é bastante eficaz, pois aten- que torna os enunciadores de abecês muito próximos dos
de aos interesses de grupos racistas ao mesmo tempo em que navegantes racistas da rede da Internet. Isso porque a divul-
a sociedade insiste em aceitá-lo apenas como entretenimen- gação das ideologias de segregação através dos suportes de
to. Uma sociedade injusta como a brasileira, prefere fugir a comunicação (oralidade ou Internet) já constitui, por si só,
essa responsabilidade: a legislação condena o racismo, mas uma preparação de terreno que pode levar à frutificação de
não os seus agentes. Além disso, insiste na propaganda sobre ações destrutivas.
uma harmonia social e étnica que arrasta suas vítimas para Quanto aos abecês e piadas de negro isso não tem sido
debaixo do tapete. considerado. Não se trata de assumir sem crítica a posição
A orientação ideológica' dos abecês revela uma socie- do politicamente correto, voltando-nos contra a possibilida-
dade contraditória, onde o racismo se desenvolve porque a de de satirizar aspectos da realidade social. Já há muito o
sociedade não conhece a si mesma e é incapaz de compreen- humor e a sátira são empregados como armas contra a me-
der' suas próprias feridas, ou porque a sociedade prefere se diocridade, o autoritarismo e a injustiça. Mas, em elaboração

104 105
discursiva como a que analisamos, o humor e a sátira estão a
serviço da mediocridade, do autoritarismo e da injustiça. E
tal discurso se impõe num mercado que sabe vendê-lo e
comprá-lo como fonte de poder.
A contribuição da análise do discurso é relevante no
momento em que o investimento nas relações multiétnicas se
propõe a ser uma resposta às tentativas de segregação. Atra-
vés dessa análise podemos avaliar de que maneira as mu-
danças dos valores nas relações entre as etnias se reflete na MANUAL DE FACAS
atualização ou na contestação dos discursos racistas.
A perspectiva de efetívação de uma sociedade glo- "Não gosto de palavra costumada."
balizada não nos leva a descartar a permanência das-diversi- Manoel de Barros ;9
dades políticas, económicas, culturais e, conseqüentemente,
ideológicas, No contexto de apelo à globalização e de preser-
vação de tradições se desenha um mercado de referencialidade AO MESMO ASSUNTO
em que as questões étnicas têm lugar destacado, Por isso, as
sociedades que se organizam a partir das relações mul-
tiétnicas se vêem diante da necessidade de rastrear o históri- . A análise dos processos de enunciação r:os ー・イュゥエZセ
co das ideologias de segregação a fim de reconhecer e neu- mapear as orientações ideológicas que permel am as prátí-
tralizar suas novas configurações. cas de indvíduos e grupos no tocante à demarcação de ウ・セ
As palavras que se erguem contra a noite são também ciedade Por isso tornam-se relevantes as di-
espaços na 50 . ' 1" Iam as
aquelas que podem se levantar contra a tarde e o dia, Essa é ferentes formas de enunciação, uma vez que de mel, .
uma das lições dos abecês de negro. Por outro lado, há pala- estratégias de legitimação e de rejeição das pratlcas
vras que se organizam em defesa da noite, do dia, do crepús- excl'uclerrtes. . If
culo/ da tarde, da aurora, Ou, dizendo de outra maneira, a Os discursos de exclusão atuam de maneira espect ica
análise do discurso nos estimula a entender os processos no momento de desqualificar este ou aquele ァイオセッ embo.:a
discursivas que se alimentam de diferentes orientações ideo- pareçam diluir-se na diversidade de temas do cotidiano. São
lógicas, Por isso, os discursos não são como folhas ao vento e discursos intencionalmente elaborados, アオセ contam com o
na experiência social nos permitem avaliar o quê e quem so- estímulo do senso comum para serem aplicados nas イ・ャセM
mos a partir daquilo que falamos, " e íntergrupais.
ções ínterpessoeis ' de modo que sua..constí-
tuição e repercussão atingem simultanearr:-ente o SUJ:lto e .a
sua comunidade.Assim, é pertinente investigar o sentído PS1-
cossodal dos discursos de exclusão; para tantoconta:nos
t com o aperte teórico de Freud acerca da relação dos chistes
!
I
I
!
,i 79 Manoel de Barros, Livro sobre nada, Rio de Janeiro, 1996, P: 71.
107
106
com o inconsciente e do conceito de "mercado de erente de "racismo cordial'?" e negligenciar o envolvimento
referencialidade" proposto por Geraldo Nunes." , das ciências humanas com aquilo que mais a envolve: as ex-
Ao enfocarmos as frases sobre negros seguimos a orien- periências sociais dos indivíduos.
tação metodológica da análise dos abecês, já que os seus Por isso, ressaltamos as razões que nos levaram a lidar
enunciadores' pertencem ao mesmo contexto social: são pesso- diretamente com os textos das frases. Antes de tudo, trata-se
as negras e não negras de grupos menos favorecidos e grupos de discurso divulgado através da tradição oral, de pichações
privilegiados. A recolha das frases foi feita junto às popula- 'em .lugares públicos ou de obras com diferentes objetivos."
ções rurais de diversas regiões de Minas; nas áreas urbanas Não estamos diante de um discurso desconhecido mas, ao
ocorreu em escolas de Ensino Fundamental e Médio e institui- contrário, bastante difundido na sociedade brasileira, seja nos
ções de ensino superior. Em ambas as áreas foram considera- meios populares ou acadêmicos.
dos representantes de faixas etárias variadas e de diferentes O fato de citarmos esse discurso não tem o objetivo de
níveis socioeconômicos. Esse contexto social, por suavez, como reforçar seus pressupostos ideológicos, mas de verificar seus
afirmamos, foi delineado no período da pesquisa situado en- mecanismos de constituição e de interferência na sociedade.
tre 1979 e 1998, Contudo, não estamos isentos de ver essa pretensão
minimizada diante dos olhos que buscam uma lista a mais
Buscamos as frases nas experiências cotidianas, ins-
de munição discriminatória e mesmo porque reconhecemos
tância em que surgem como produção de sentido naturali-
as fraturas da palavra que empregámos em nosso discurso.
zada. Assim como os abecês, as frases pertencem a uma A ambivalência é característica inerente ao verbo, na medi-
realidade social complexa em que negros e brancos da em que, neste caso, ele nos permite analisar e denunciar a
interagem enquanto procuram a afirmação de suas identi- discriminação, mas ao preço de também fixar um modelo
dades, A ínteração implica a vivência' de conflitos e concili- para o discurso discriminador.
ações que se desenvolvem no horizonte de outros processos No entanto, para que possamos avaliar a materialidade
discursivas também de interesse para negros e brancos. As da ação inscrita nas frases de negro, é necessário tratar dire-
frases dialogam com as questões econômicas, religiosas e tamente com o discurso discriminador, pois só tocando sua
políticas, de modo a reduplícã-las em sua própria constitui- lâmina é possível evidenciar Sua violência e a falácia da de-
ção a partir de uma perspectiva que desqualifica o indiví- mocracia racial que lhe garante oxigênío para manter-se e
duo e a coletividade negra. renovar-se.
O estudo do repertório de frases, abecês e piadas de A difusão das frases é mais eficiente do que a dos abecês:
negros nos impõe um sério problema: como analisar, com- isso pode ser explicado através de alguns aspectos formais.
preender e denunciar a ideologia racista dessas produções Os abecês seguem Um padrão em que se destacam o empre-
sem contribuir para sua maior divulgação? Não há como go das rimas e a manutenção de uma certa unidade das es-
descrever seus mecanismos de criação e difusão sem citar trofes. Esses aspectos inibem os enunciadores com menos
exemplos ou recorrer a paráfrases. Por outro lado, não anali-
sar essas elaborações discursivas é sustentar a situação inco-
SlCleusa Turra & Gustavo Venturi, Racismo cordial, São Paulo, 1995, p.l3.
82 Apublicação de discursos sobre negros pode ser verificada em diferentes
セLMセG

tipos de obras. Por exemplo: estudo de Manuel Diégues Jr. em Literatura


OOFreud, op. cit., 1977;Geraldo Nunes, ln: José Luiz Braga etal. (org.),op. cir., popular em verso, Belo Horizonte, 1986,p. 159;e Almanaque [asseta Popular,
1995, p. 159. Rio de Janeiro, Ed. Núcleo 3, ano I, número 2,1986, p. 12-13

108 109
ィ。「ゥャセ、・L ao mesmo tempo em que impõem um modelo. Evidente- A partir de exemplos como os anteriores pretendemos
mente ISSO não significa uma determinação, mas a prática mostra que enfatizar nas frases a possibilidade de ação que propõem à
nem t?dos se dispõem a manusear os abccês, tanto que os seus medida que são comunicadas. Todas, sem exceçâo, partem
enunc:adores .chegam a gozar de prestígio nos grupos a que perten-
cem. Sao considerados "especialistas" nesse tipo de composição. de um pré-construído em que se tem como certa a inferiori-
As frases, por sua vez, apresentam formas relativamente sim- dade dos negros. As afirmações equivalem a orações abso-
ples. Podem ser concisas ou extensas, privilegiando a prosa. Quando lutas, do ponto de vista gramatical e também ideológico; as
ャセョ￧。ュ ュ ̄セ da rima utiliznrn estrofes mais comuns como as quadras. perguntas e os diálogos induzem a respostas dlscrimtnedores
Em geral, sao propostas sob as formas de: 1; já esperadas; as quadras confirmam o senso comum de que
I. "os negros são um problema"; as narrativas deixam mar-
a) afirmações diretas: gens para a imaginação do narrador, desde que o resultado
Bpイ・エセ parado é supeito, andando é marginal, correndo é final comprove a ideologia da inferioridade dos negros.
ladrão."
"Branco manda brasa, preto mande cinza," Em função da flexibilidade formal, as frases podem ser
tomadas como expressão mais ágil da orientação ideológica
b) perguntas seguidas de resposta: presente nos abecês, ou seja, aquela que indica uma visão de
"- Por que o preto é preto? mundo sedimentada em valores patriarcais identificados com
- Porque quando a mãe dele o teve, o teve no escuro." grupos dominantes e reduplicados por representantes de gru-
pos menos favorecidos,
c) diálogos com perguntas e respostas:
As frases exprimem a ideologia e as ações de indivídu-
"- yocê sabe quais os grupos de negros que vieram da
Africa para o Brasil? os e grupos que agridem outros indivíduos e grupos de ma-
- Sei, sim. São os gula-gula e os bentos. neira anti-social e racista. Tal como os abecês, elas se relacio-
- Qual é a diferença entre eles? nam à rede de experiências simbólicas dos grupos e dos indi-
- Os gula-gula são os negros bonzinhos, que fazem o que víduos que as traduzem em realizações concretas." A reali-
a gente quer. Os bantos são esses negros que querem zação das frases implica seu reconhecimento social como um
fazer o que eles querem." tipo de discurso entre outros, colocado fi serviço de determi-
nados interesses. O sentido psicossocial das frases decorre do
d) quadras ou quartetos: fato de se relacionarem às experiências simbólicas que se con-
"Lá vem um negro
Com OUlOS de gralha cretizam historicamente num grupo delineado por valores
Arreda negro culturais, políticos e econômicos. Ao atenderem às deman-
Não me atrapalha" das discursivas da coletividade e dos indivíduos, as frases se
constituem como elementos dramáticos que tornam visíveis
e) narrativas: os limites de violência que afetam a ambos.
"Tinha um preto muito rico, exibido que só ele. Possuía O campo de linguagem verbal representado pelas frases
uma mansão enorme. Havia um branco que tinha giriza de negros, assim cama os abecês, expõe a face violenta da soci-
deste preto. Foi à casa dele e de piche pintou em seu muro:
- Aqui mora um preto. edade brasileira. Aí são desenhadas concepções ideológicas
O preto para desacatá-lo: que se concretizam em procedimentos marcados pela intole-
-Mas é rico.
O branco para acabar com ele escreveu:
-s Mas é preto." 83 Freud, op.' cit., p.77-82
110
111
rância. As frases podem ser pensadas a partir das noções de descendentes. Isso pode ser observado no fato de os abecês
modelo de e modelo para indicadas por Clifford Ceertz no to- as piadas e as frases de negros serem considerados cama ele-
cante aos modos de organização social." mentos lúdicos -numa evidente tentativa de subtrair ao lúdico
Adaptando essas noções ao tema em análise, é perti- sua complexidade de sentidos.
nente considerar que as frases e os abecês de negros - tendo O lúdico no discurso contra negros é tratado como cria-
sido gerados pelos indivíduos reunidos em sociedade - cul- ção discursiva de efeito mínimo, cuja carga de sentidos ex-
minam por expressar tanto os indivíduos quanto a socieda- plode no ato da enunciação e não reverbera em outras ins-
de. Nesse caso, as frases e os ebecês constituem um modelo de tâncias. Quer dizer, ri-se dos abecês, piadas e frases como
sociedade racista e violenta, em cujo elenco de excluídos se ato contínuo à sua enunciação. Mas, é justamente a catarse
atribui um peso considerável aos indivíduos negros e seus proporcionada pelo riso que deveria gerar indagações mais
descendentes. agudas. Quem ri de quem? Por que a sensação de diverti-
Como parte de elaboração da ideologia discriminatória, mento ou de alívio decorrente do enunciado chistoso? Como
as frases adquirem autonomia no campo imaginário, multi- reagem aqueles tomados Como alvo do chiste?
plicam-se através de novas combinações e da atualização de A partir da compreensão do lúdico como atividade es-
sentidos. No percurso de fazer-se e refazer-se contínuos, es- sencial da organização social 85, somos levados a considerá-
ses elementos do imaginário (modelo de) tendem a ser lo como instância de proposição de sentidos e de confronta-
naturalizados, tornando-se , por isso, modelo para a organi- ções. O caráter lúdico das frases de negros decorre de seu
zação da vida social. pertencimento a uma lógica em que a comunicação se apre-
O cotidiano da sociedade brasileira exibe, com diferen- senta como realidade emblemática para definir quem vence
tes intensidades, os modelos de discriminação racial desenha- e quem perde nas inter-relações sociais.
dos no imaginário. Contudo, a dimensão agora é a da prática . As frases constituem um processo de comunicação em
social, aquela em que os confrontos não podem ser adiados: os meio a outros processos de comunicação. São, portanto, ela-
ateres surgem, uns diante dos outros, lançando mão de estra- borações discursivas que ultrapassam a esfera do imaginário
tégias sociais adequadas para a defesa de' seus interesses. e deságuam na realidade social cama produções intencionais.
A cena social é de embates, conforme a indicação do Para avaliar a intensidade de suas repercussões, é interes-
modelo de ação sugerido pelas frases de negros. No entanto, sante considerar o "campo de circulação" onde são produ-
por que essa violência é freqüentemente esvaziada pelo Z1tdas, as b em como os atares envolvidos nessa fábrica de re-
contra-discurso da cordialidade brasileira, evitando-se a presentações sociais.
abordagem das tensões características das sociedades O campo de circulação das frases é complexo, na medi-
multiétnicas? da em que se trata da sociedade brasileira considerada dos
Percebemos, nesse caso específico, que a eficácia do pontos de vista diacrônico e sincrónico. As frases possuem
modelo para a sustentação de uma sociedade discriminatória uma trajetória que remonta aos primórdios da sociedade bra-
se concentra, sobretudo, na manipulação do modelo de dis- sileira. A chegada de negros ao país para atender ao regime
criminação que a orienta. Isto é, no controle da produção de .' escravista implicou a elaboração de discursos acerca destes.
sentidos que permeia o imaginário acerca dos negros e seus

85Johan Huízinga, HOlllo íudens, São Paulo, 1980, p. 12.


S4Geel'tz, op. cit, 1989. $6 Muniz Sodrá, A verdade seduzida, Rio de Janeiro, 1988, p. 9.

112 113
Es.se. aspecto histórico-social é decisivo para indicar o campo Isso decorre do fato de que a regra central do jogo -

II
original de produção e circulação dos discursos envolvendo negro deve ser agredido, branco deve se divertir - exprime
os negros e seus descendentes. apenas uma face de seus sentidos. Tal regra, compartilhada
Pela diacronia, observamos que aquilo que se disse so- na superfície das relações sociais, é aplicada de outra manei-
bre os negros foi dito a partir de circunstâncias que os redu- ra nos labirintos da prática da discriminação. O jogador prin-
ziam à condição de diferença inferiorizada em relação aos cipal - enunciador do discurso - embora seja conhecido, ra-
demais atares sociais." Do ponto de vista da sincronia, veri- ramente é apontado diretamente. A vítima - objeto do dis-
ficamos que os discursos discriminatórios ora retomam fra- curso - embora seja diretamente apontada, muitas vezes in-
ses consideradas tradicionais ("Negro não nasce, aparece"), siste, ela mesma, em reproduzir o discurso de autoagressão.
ora utilizam temas contemporâneos para elaborá-las (uQual O que se nota é a tessitura de uma rede de conivência
a diferença entre a Aids e o preto? - A Aids evolui."). entre agressor e vítima, em geral legitimada por uma or-
O campo de elaboração e circulação das frases é, Per- dem social em que as orientações ideológicas são utilizadas
tanto, o campo histórico-social em que se constituíram e des- para encobrir a gravidade das tensões." Em função disso,
dobram as relações interpessoaís e lntergrupaís no Brasil. O o racismo numa democracia racial - que soa como algo pa-
modo como se interpreta ou como se ignora essa elaboração radoxal e inconcebível - vem, no entanto, sendo aceito
discursiva é, decididamente, uma questão de natureza ideoló- como uma naturalização do imponderável ou configura-
gica. Interpretá-las como discurso racista tem como conse- ção possível do jogo. Jogo em que interfere a ideologia do
qüência mínima a demonstração do pacto de perversidade e dominante, permitindo-lhe lançar os dados e construir o
antí-cidedania que preside as relações Sociais brasileiras. discurso sobre os resultados obtidos. A manipulação dos
Divulgá-las como "brincadeira" ou jogo inocente demonstra a resultados - sempre lembrando os aspectos diacrônicos e
maleabilidade das ideologias na construção de significados, sincrônicos que os modulam - tem possibilitado a elabora-
na medida em que por trás das "brincadeiras" inventadas para ção de discursos que exprimem a perversidade das relações
divertimento podem haver "idéias que servem a funcionamen- sociais no Brasil. Exemplo disso, é a constatação de que en-
tos estratégicos no interior das relações soctaís"." tre nós prevalece um "racismo cordial" em que o indivíduo,
Na cena social, os atares envolvidos pela ideologia que mesmo tendo preconceito contra negros, afirma o contrá-
define as frases como jogo desempenham seus papéis de rio. Desse modo, defende-se do ônus de ser acusado como
maneira ambivalente - isto é, procuram ocultar suas identi- racista ao mesmo tempo em que encontra uma sociedade
dades de agressor e vítima justamente quando participam conivente com esse tipo de atitude.
das contendas. Apesar dessa ambivalênoía dos ateres, os Sob o enunciado do "racismo cordial" parecem ter sido
resultados da discriminação são evidentes na realidade, in- resolvidas as contradições mais graves, como se a partir da
sistindo na fórmula de que negros valem menos e brancos síntese no domínio do discurso se pudesse organizar outra
valem mais. síntese na prática social. Ou, como se o modelo de "racismo
cordial" servisse de modelo para a constituição de uma socie-
dade de "racismo cordial".

87Sobre a questão da imagem que brancos faziam de negros no período


cscravísta ver Lilian M. Schwarcz, Retrato cm branco e negro, São Paulo,
1987, p.11-17. S9Cf. M. Sodré, op. cit., 1988, p. 95, "a ideologia exerce uma força contínua
sSM. Sod ré, op. cit., 1988, p. 7. dene,!?açãO ou de apagamento das ambivalências no processo humano de
troca.
114
115
Mas, na medida em que as frases de negro e Sua ide- PALAVRAS: FACAS SÓ LÂMINAS
ologia racista se articulam como forma de comunicação
entre outras formas de comunicação, não há como pensá- O deslocamento dos negros para a condição de coisa é fato
las como meras abstrações que resultam em fatos concre- pertinente ao desenvolvimento da economia mercantil em que
tos. Não podemos esquecer que as frases são enunciados o cativo era ":ransformado em um ser inorgânico, à imagem
concretamente veiculados com o auxílio da palavra. A das mercadorias que o geravamv.w A reificação dos negros
palavra que flui na oralidade do canto ou da fala, e tam- elaborada no domínio da linguagem verbal se estabeleceu tam-
bém na escrita em textos de jornais, revistas ou nos grafi- bém como forma de agir em relação aos negros e seus descen-
tes de lugares públicos. 、セョエ・ウL isto é, o enunciado se converteu em ação que desapro-
A materialidade da palavra não exclui as abstrações pna um ser humano de seus atributos humanos.
dos conceitos subjacentes a ela, e também não inibe a per- As frases COnstruídas a partir dessa orientação ideoló-
cepção de que os conceitos se tornam realização material, gica セッウエイ。ュ a exacerbação da violência contra os negros,
sensível na realidade social. De outro modo, as frases de ne- reduzindo-os à condição de coisa e depois coisa ruim. O que
gros são elaborações discursivas alimentadas, simultaneamen- se observa é que a prática social aguça o alcance do discurso
te, pelas manipulações ideológicas do imaginário e da discriminatório, na medida em que os indivíduos são coloca-
concretização, em atas, daquilo que foi pensado. Aquilo que dos frente a frente em situações de defesa de seus interesses.
é falado através das frases já é, em si mesmo, uma ação de A violência do racismo brasileiro se mostra de maneira
resultados discriminatórios. Ou seja, entre intenção e gesto inequívoca à medida que percebemos os grandes esforços em-
existe uma estreita ponte que relaciona o imaginário à reali- preendidos para rechaçá-lo. Se de um lado conta-se a produ-
dade, e více-versa. O enunciador do discurso, de alguma ção ideológica de certos setores da ínteííigenteia nacional e da
maneira, está comprometido com as ações que ele pode de- mídta ativados para desenhar o perfil de um país tolerante
sencadear. É nesse sentido, que as frases, abecês e piadas de acerca das diferenças étnicas, por outro, tem-se o senso co-
negros convertidos em palavra-ação ou discurso-atitude colo- mum que alimenta a repetição de fórmulas de apelo emocio-
cam por terra o 'desejo de entendê-los corno jogo inocente, nal através das quais se tenta minimizar a agressividade dos
sem maldades ou segundas intenções. fatos. Assim, fórmulas do tipo "não sou racista, até tenho
A fim de analisarmos as elaborações discursivas das um primo negro" ou "não sou contra negros, mas preferiria
frases de negros, tomaremos alguns exemplos recolhidos em que minha filha não se casasse com um deles" - que possuem
pesquisa de campo. Chamamos a atenção para o fato de que alto grau de rendimento funcional, sendo adaptáveis a dife-
enunciar as frases é um ato social relacionado a outros atas ,1 rentes contextos de tensão - podem ser contestadas por ser-
sociais, tais Como o de estar presente a uma roda de amigos, virem como artifício para ocultar situações cotidianas de
o de presenciar um episódio cotidiano, o de demonstrar um
argumento etc. i agressão contra os negros e seus descendentes.
Eis o que se pode observar nas frases a seguir:
Para situar o alcance discriminador das frases,' vamos
considerá-las a partir de quatro perspectivas: deslocamen-
to do tópico negro/gente para o tópico negro/coisa ruim;
!

"Preto é primo primeiro do capeta."
"Preto tem cheiro de bosta."
deslocamento do tópico negro/ gente para o tópico negro/
animal; negro como subgente na escala SOcial; negro como
1
raça inferior.
i.n
""
gOClaude Meillassoux, Antropologia da escravIdão, Rio de jElneil'o, 1995, p. 227.
I,
116 117

_ _. . ._$#,,,',104)('
41= = _- - - $A -3th
- 46_
-ti "mi"""as.
"'_ cOJa
____
,-ii:':"
ii _
";'1<"1112I2I'.iI. , _ " "$U' 'aua;; ....-4 ,- -44- - - - -_ _セ
41 j )ti U4d " 444 lo
"SÓ n80 pego preto na 11180 porque só pego em bosta "- Qual o método que Deus usou para criar o negro?
quando estou descuidado." - Xerox."
"Só não sou racista porque preto não é raça."
"Preto, só sapato e meia, mesmo assim eu piso nele."
o conteúdo das frezes citadas não deixa margens a dú-
vidas quanto à existência de um discurso e de uma conse-
"Se vêm três homens, eles falam que vêm dois homens qüente prática de discriminação racial na sociedade brasilei-
e um negro." ra. O discurso insiste na reificação do negro, ampliando o
"Preto é fada "ou" tinha que ser preto." processo de degradação ao identificá-lo com coisas
"Conserve sua cidade limpa: mate um negro por dia." sabidamente ruins. Em síntese, o discurso reduplica as teses
do período escravísta, mas dotando-a de novas significações.
"Eu gosto tanto de preto, pena que a gente não possa Ou seja, o negro não é pessoa ("não é raça" ou "ser negro
comprar mais."
não é ser homem"), mas coisa do tipo: primo do capeta,
"Preto é igual papel higiênico, ou está no rolo, ou está excremento, sapato/meia, lixo, objeto que se compra, papel
na merda." higiênico, peça com defeito (vqueímada"). kichute.
"Preto não da à luz, dá curto-circuito." Como prova da atualização do discurso racista, tem-se
o negro identificado a aspectos recentes da sociedade, tais
"O preto pisou na merda e, espantado, falou: - É, estou
derretendo." como o uso das drogas (reprimidas pelas autoridades) e o
xerox (técnica de fotocópia até há pouco tempo restrita ao
"c-Qual a diferença entre um preto e uma lata de merda preto e branco). O negro reificado na imagem das drogas é
(ou de lixo)? novamente agredido ser fora da lei, marginal. Na outra ima-
- A lata." gem, o negro-xerox é reduzido à condição de cópia precária,
"_ Por que o caixãodo preto tem duas alças? destituído de identidade própria.
- Você já viu lata de lixo ter quatro alças?" No deslocamento do tópico negro/gente para o tópico ne-
"_ Por que o caixão do preto tem vários furinhos? gro/animal, a técnica da fórmula anterior é aplicada para re-
- Para os vermes vomitarem." tirar o negro da esfera biológica em que o homem é tomado
como animal racional para confiná-lo às instâncias dos ani-
"_ O que Deus falou quando criou o segundo preto? mais considerados inferiores.

Il
- Chiii.; Queimou de novo."

"- Por que preto não morre afogado? "Se eu gostasse de preto punha urubu para chocar."
- Já viu bosta afundar?" "Se preto fosse gente urubu era astronauta."
"- O que significa um caminhão cheio de preto? 1 "T odo preto é igual lombriga, se sair da merda morre."
- Matéria-prima para kichute." I"
; "-. Quando é que preto visita a família?
'.1
"- Uma mulher preta quando estava grávida foi presa - Quando vai ao zôo e visita a jaula dos macacos."
pela polícia. Sabe por quê? fi_Por que é que preto tem muitos filhos?
- Porte de drogas." - Porque é a única coisa que burro sabe fazer."
118 119
i
"- Qual a diferença entre uma preta grávida e um pneu i A comprovação desse círculo de fogo em torno do ne-
gro se exprime no conjunto de frases em que ele é considerado
furado?
I
"

- Nenhuma, ambos estão esperando macaco." I como subgente na escalasocial. Nesse ponto, o discurso racista
não recorre às etapas de comparação e de assimilação que
JI_ Qual a musa da raça negra?
levam a concluir que o negro é coisa ruim ou animal e, por
- A Xita." fim, nãohumano. A agressão é direta, na medida em que as
"- Quais são as três definições de um preto em cima afirmações negam taxativamente ao negro o etatus de ser
de um prédio? humano.
- Se-voar é urubu, se agarrar é macaco, se cair é bosta."
"Preto só fica importante quando está sendo procu-
" Qual o primo mais próximo dos pretos? Os bran- rado pela polícia."
cos ou os macacos?
Os brancos, pois macacos eles já são." "Preto calado já está errado, parado é suspeito, correndo é
ladrão."
o.: Qual o cartão de apresentação de um preto?
"Preto quando não suja na entrada, suja na saída."
- Um cacho de bananas."
o.: Por que o preto não erra? "Preto e árvore só dá galho."
- Porque errar é humano." "Achar preto é fácil, difícil é achar um direito."
"Cuidado, negão, a Lei Áurea foi assinada a lápis."
O processo de animalização consiste na reiteração de "Preto é que nem cachimbo, só leva fumo."
comparações enraizadas no senso comum, em que o negro
é assimilado a macaco, burro, verme (lombriga). O que se "Preto não pensa porque se pensar fede."
observa na montagem das frases é a manipulação raciona- "Branco tem veia poética, preto tem varizes."
lizada do senso comum, com a finalidade de criar um con-
"Em preta não se bate com a mão e sim com pedaço de
senso acerca da inferioridade dos negros. O discurso racis-
pau."
ta ignora as demonstrações científicas que situam o ser hu-
mano próximo de outros animais no grande panorama das "- Quando preto é bonito?
cadeias biológicas. Assim, as relações de espécie identificadas - Quando chega atrasado ao serviço (ou em casa) e o
entre humanos e primatas é rejeitada, na medida em que o chefe (ou mulher) diz:
discurso racista produz outra realidade, com outros valo- Bonito, hein!"
res a fim de manter a assimilação entre negros e macacos "- Por que os pretos dos EUA são melhores que os do
como fato negativo Brasil?
O percurso de reificação e de animalização do negro é - Porque estão bem longe."
iniciado e concluído de acordo com uma fórmula do tipo pré-
"- Quando preto sobe na vida?
construído, isto é, o discurso afirma que antes de tudo e ao
- Quando anda de elevador."
fim de tudo o negro "não é humano", Por não ser humano
ele é coisificado e animalizado; por ser coisificado e <: Quanto preto vai à escola?
animalizado o negro não é humano. - Quando está trabalhando de servente na construção."

120 121
"- Sabe por que que preto é preto? "bitos ("negro só vai à escola para construí-la", IJé negro por-
- Porque em cima do morro a água não chega." que é pobre, mora no marta e não toma banho").
As propostas racistas dessas frases são enunciadas em
o ambiente social é evocado para dar sentido às afir- tom de ironia, como se a intenção fosse a de promover o
ュ。￧セ・ウ que reduzem o negro à condição de subgente, evi- "divertimento". Ao que tudo indica a estratégia tem sido
denciando as teias de conivência que sustentam realidades eficaz, ptiis a naturalização do riso diante desses enuncia-
paradoxais :omo a セッ
de. ヲイ。セ・ウ
"racismo cordial". Nesse repertório
sao combinados elementos da reificação e da
t
y.
dos, na maioria das vezes, anestesia o discernimento e o
espírito crítico dos envolvidos. É interessante observar que
animalização, mas a ênfase recai sobre a intenção de deslo- essas frases possuem fios do mesmo tecido social que as acei-
car o negro do conjunto social, de modo a considerá-lo como ta e, em outros casos, rejeita. Os cenários e as tramas fazem
figura estranha à própria sociedade. parte do cotidiano brasileiro, como podemos perceber pelas
A estratégia dos pré-construídos é empregada "larga- referências aos espaços públicos (a sessão de trabalho, a es-
mente como se estes fossem proposições de "verdades" sabidas cola) ou privados (a casa), e também aos atores (policiais,
patrões, esposas).
por todos, inclusive pelos negros. E aqui se observa uma con-
tradição aproveitada pelos agentes do discurso dis-
criminador: o negro é considerado não-humano para servir
I Como podemos ver, é na familiaridade do cotidiano que
a violência se instaura, excluindo o negro dos cenários, das
tramas e da qualidade de atar. A discriminação de ordem
de tema à formulação das frases, mas deve readquirir status
de ser humano para que, entendendo o discurso agressivo social tende a relativizar a interferência dos fatores étnicos
se " co I oque no seu lugar" de subgente. Daí as alusões à vida' ou raciais, aspecto que, segundo alguns analistas, é mais per-
cotidiana em que as características morais do negro são, de tinente ao quadro das relações sociais brasileiras. Por essa
。セエ・ュ ̄ッL colocadas sob suspeitas, tanto por parte da polf- via ーイッ」オイ。セウ・ ir além da crítica à discriminação centrada
CIa quanto dos outros indivíduos ("negro é ladrão", "negro em fatores raciais para considerar o problema sob a ー・イウ」セ
não é direito", "só dá galho"). tiva socioeconômica em que os fatos relacionados à classe
Além disso, os , pré-construídos assinalam a condição superam os de instância racial, de modo que "a cor é (...)
social instável dos negros, ameaçados pelas leis (escritas a sinônimo de baixa condição social". 91
lápis)que deveriam protegê-los. Em vista disso.a mar- Do nosso ponto de vista, a análise com ênfase no as-
ginalidade a que está relegado o homem negro o expõe mais pecto racial ou no aspecto sócio-econômico tende a abordar
freqüentemente às misérias sociais ( "leva fumo") e abre ca- parcialmente as questões suscitadas pelos discursos de ação
minho para a ação do discurso racista. A violência que se discriminatória na sociedade brasileira. Isso porque não é per-
exprime na linguagem ("preto não tem veia poética") se es- tinente considerar que as noções de raça ou modelo sócio-
praia também para as relações interpessoais ("em preta se econômico sejam realidades articuladas fora da cultura, como
bate com pedaço de pau"). parece ocorrer no caso de serem citadas isoladamente como
As frases agridem o negro por este não corresponder a causas da marginalização dos negros.
certos padrões de beleza ("quando é que preto é bonito?). Além Na crítica às restrições impostas pelo conceito de "raça",
disso, expurgam-no da convivência social ("os negros dos KwameAnthony Appiah observa que "onde a raça atua (...),
E.UA são melhores porque estão longe), ridicularizam seus
anseios de ascensão social ("só sobe na vida ao andar de ele- 91 Floresten Fernandes & Roger Bastide, Brancos c ne,.ç;ros em SãoPau/o, São
vador), menosprezam sua capacidade de trabalho e seus há- Paulo, 1959, p.ISO.

122
1
,
"
123
ela atua como uma espécie de metáfora da cultura; e só o faz exemplo, a de ser mulato e não negro, rico e não pobre, da
ao preço de biologizar aquilo que é cultura, a ideologia". 92 cidade e não da periferia, escolarizado e não .analfabeto etc.
Se trabalharmos as noções de raça e modelo socioeconômico Essa linha de argumentação é adotada nas frases que
como produções culturais, portanto, como elaborações ideo- agentes nãonegros organizam para agredir negros: em
lógicas, talvez possamos compreender um certo convívio en- suma, brancos pensam e agem para marcar posição de di-
tre rigidez e plasticidade que caracteriza os discursos ferença em relação a negros, afirmando-se como centro da
discriminatórios em análise. política, da economia, da cultura. Numa perspectiva mais
As situações de deslocamento do negro vistas anterior- ampla, tem-se que brancos e negros são depositários de ide-
mente - de gente para coisa, de gente para animal, culminan- ologias que delineiam a noção de raça a ser aplicada num
do com sua desumanização - não se nutrem apenas de 。ウー・」セ contexto ou noutro.
tos biológicos oriundos da noção de raça, nem somente de um Mesmo se levarmos em conta que "não existem raças
modelo socioeconômico que torna "negros" todos os pobres, humanas" num sentido biológico, 93 na realidade esse. princí-
Antes de tudo, a discriminação por um e outro motivo se dá pio é tomado como factual e funciona para coordenar as inter-
em termos de formulação ideológica, ou seja, ocorre como a relações sociais. Isso está demonstrado em frases que afir-
construção de sentidos para aquilo que se entende como "raça" U mam o conceito biológico de raça e, mais especificamente do
e aquilo que se entende como "pobre, portanto, negro", I negro como raça inferior.
A funcionalidade das noções de raça e modelo socío-
"Preto só é branco quando nasce."
econômico lhes garante o emprego na formulação dos dis-
cursos discriminatórios. São noções que se prestam para ini- a.: Por que o negro tem a palma da mão branca e a
ciar e fechar situações de conflito, pois são propostas como palma do pé branca?
verdades absolutas. O que está dentro de seus campos de - Porque quando Deus mandou todos entrar na água O
sentidos é válido, o que contesta esses campos é considerado preto só colocou a palma da mão e a palma do pé."
sem valor e sem sentido, Assim, brancos discriminam negros "- Por que é que preto é preto e branco é branco?
porque não são brancos; ricos discriminampobres porque não - Porque branco não é preto."
são ricos. Na combinatória negros/pobres a discriminação se
dá pelo fato de estes não serem nem brancos nem ricos. "Três negrinhos estavam no deserto e apareceu-lhes um
É preciso atentar para o traço de elaboração ideológica gênio e lhes disse:
que é, ao mesmo tempo, ação sobre os indivíduos. Nesse pro- - Cada um de vocês tem o direito de fazer um pedido.
cesso, verificamos como as noções de raça e modelo sócio- O primeiro pensou e disse:
econômico são manipulados em função de diferentes inte-
resses. Se um negro discrimina outro negro terá de conside-
rar que a noção de raça é insuficiente para diferenciá-lo do
outro a quem agride. A discriminação pode ocorrer se o
agressor manipula o sentido de raça, ideologicamente, e evoca
I - Eu quero ficar branco.
O gênio fez ele ficar branco. O segundo pensou e disse:
- Eu também quero ficar branco.
O gênio fez ele ficar branco. E o terceiro, que esta-
va quase morrendo de rir, fez o seu pedido:
outras noções culturais para compor seu perfil racial. Por - Eu quero que eles fiquem pretos novamente."

92 Kwame Anthony Appiah, op.cit., 1997, P: 75 93 Idem, op. cit., p. 66-75


i
1M Qセ

""''''''.04f' 4" ,-"''"''"'--''''''''''''''''".- .....


MセBGA

Esses enunciados foram articulados a partir de traços mos de produção de .discursos, ações e realidades que vão
biológicos, mais notadamente a cor da pele. São esses traços, atingir de maneiras múltiplas e específicas negros, mulheres,
aceitos como características raciais, que definem as expecta- homossexuais, velhos, crianças, imigrantes.
tivas dos brancos em relação aos negros ("branco não é ne-
gro) e dos negros em relação a si mesmos, quando desejam
tornar-se brancos e vêem esse desejo frustrado (veja-se a nar- OFICINAS DE PALAVRAS-LÂMINAS
rativa dos três negrinhos).
As frases discriminatórias apelam para a noção de raça Na análise dos mecanismos de produção das frases de
para sugerir a nostalgia dos negros em relação aos brancos: as
marcas desse sentimento estão estampadas nas palmas das mãos
I negros nos deparamos com uma realidade brasileira que ofe-
receu elementos para que o discurso discriminatório soasse com
e dos pés. São traços biológicos como esses, fisicamente visíveis legitimação, seja apoiando-se em dados da ciência evolutiva
como os cabelos ou a forma do corpo, que as frases empregam recorrentes no final do século XIX, 94 ou em ditos populares do
para difundir a ideologia de raça melhor e raça pior. tipo "Para português, negro e burro, três pês: pão para comer,
A utilização desse argumento de base racial na vida co- . pau para trablh
pano para vestir, a ar. "95
tidiana justifica o fato de aplicarmos a expressão discrimina- A prática social brasileira, em relação ao negro, s:mpre
ção racial, embora partilhemos das crítica feitas à noção de
foi de desconfiança: do escravo se esperava a produçao e a
raça. Em situação de conflito, não temos como ignorar a natu-
obediência, mas considerando a possibilidade de que uma e
reza dessa munição disparada contra os discriminados, cau-
outra viessem a ser perturbadas pelas ondas da revolta".Nes-
sande-lhes danos e constrangimentos. Esse quadro demonstra
que a enunciação e a ação desse discurso são complexas, sen- se ritmo de confiar-se ,ao negro desconfiando dele, a socieda-
do constituídas por uma rigidez que reitera conceitos índe- de brasileira se inclinou para o princípio de que a cultura e a
pendentemente de sua comprovação, e por uma plasticidade palavra de negro eram "coisas" menores. Superiores eram a
que adota o nonsense como uma forma de verdade. cultura e a palavra dos homens achegados ao poder, bem
Teoricamente podemos até optar por não levar em con- como os veículos de difusão influenciados por eles, sobretu-
ta a noção de raça, mas na prática social essa noção é atuante do a imprensa, a Igreja e a escola.
e não tem sido modificada (rigidez) apesar das análises que A sociedade brasileira se constituiu como oficina ge-
mostram sua inconsistência. Além disso, o nonsense de várias radora do discurso discriminatório, ao mesmo tempo em
das frases citadas é ideologicamente estimulado para gerar que nos fornece materiais para criticá-lo estando セッ int:ri-
novos enunciados discriminadores, evidenciando a plasticidade ar da oficina. Essa amb ivalência promove situações
de um discurso que interfere na vida social. conflitantes em que as frases se tornam espelho do modo
A pergunta que se impõe nesse momento é: que mapa como o processo comunicativo, ideologicamente orientado,
esse discurso-ação tem como referência para manter-se efi- gera enunciadores ambivalentes e anestesia o senso de
ciente, mesmo diante das análises que denunciam a bar- autocrítica da sociedade.
baridade de seus efeitos na sociedade? A resposta, talvez,
resida no fato de que - quando tratamos da imposição da
noção de raça para discriminar negros - estejamos tra-
9 4 Lilia
Moritz Schwarca, op. cit., p. 23.
tando de algo mais que uma questão relacionada aos ne- 95 AntonioCandido, "Literatura-Sociologia: a análise de O Cortiço de Aluísio
gros. Ao que nos parece, estamos tratando dos mecanis- Azevedo", Rio de Janeiro, 1976, p.29

126 127
i cial sugere ao interlocutor duas atitudes, mas apenas uma

A ambivalência se exprime, por um lado, quando os
enunciadores empregam as frases com "naturalidade", es- resposta, isto é, ou o interrogado responde de imediato à per-
quecendo o longo percurso social que as legitimou com base
em: relações de violência e desigualdade. Por outro, quando
reagem com 'estranhamento ao serem criticados por prática
I
!
gunta ou é instruído por aquele que o interpela, caso não
conheça a resposta. Para ambas atitudes, o roteiro de senti-
dos oferece como resposta a desqualificação do negro.
de discriminação. Ê interessante notar que a estrutura dialógica desse tipo
No primeiro caso, o discurso discriminatório é encober- de frase pressupõe um cenário social onde os atares se movi-
mentam de acordo 11m script dinâmico, que permite identifi-
to por táticas ideológicas que enfatizam o oposto, ou seja, a
car um percurso de formação do enredo, paralelamente à pos-
existência de urna nação exemplar no tocante à convivência
sibilidade de fazer-lhe atualizações. Mesmo que alguns atares
entre grupos distintos. Isso é demonstrado na superfície da
não se dêem conta do percurso de formação do discurso
vida social através da presença de negros e brancos dividin-
discriminatório - como frisamos anteriormente - e o atuali-
do espaços na publicidade ou nos setores de trabalho. Con-
zem, vale considerar que esse procedimento se realiza sobre as
tudo, a divisão de espaços é irregular, com acentuado prejuí- marcas do processo histórico. Exemplo disso, é a forma de
zo da presença de negros que, diante do público, são reduzi- palimpsesto de algumas frases em que o enunciado recente
dos à condição de minoria. Essa vem a ser a perspectiva que (sobre a Aids) encobre outro anterior (sobre o câncer):
situa as frases corno "brincadeira", quando, de fato, suas con-
seqüências são tão sérias quanto drásticas para as popula- "- Qual a diferença entre o negro e a Aids?
ções discriminadas. - A Aids evolui e o negro não."
No segundo caso, o estranhamento à crítica do conteú-
do discriminatório das frases se explica pelo fato de pertence- N _ Qual a diferença entre o negro e o câncer?
rem ao leque de discursos voltados contra mulheres, homosse- - O câncer evolui e o negro não."
xuais, velhos, imigrantes - como se estes também não fossem
discriminadores e violentos. Os enunciadores que fazem reta- o mesmo esquema ocorre quando o enunciado especí-
liações à crítica contra as frases defendem-se com argumen- fico contra negros recobre um provérbio conhecido ou um
tos do tipo umas isso não é racismo, não falamos contra ne- enunciado contra mulheres:
"TOS. Falamos do mesmo jeito das mulheres ..." A questão é
que, em geral, o enunciador do discurso discriminatório se colo- "Preto que ri por último ri atrasado."
ca como centro do processo comunicativo, impondo-lhe as dire- (Quem ri por último ri melhor)
ções que julgar mais pertinentes aos seus interesses. Prevalece, "O que mata de repente é vento pelas costas e preto pela
uma vez mais, a manipulação ideológica do non sense, isto é, o frente."
discriminador discrimina, mas alega que não teve essa intenção. (O que mata de repente é vento pelas costas e sogra
A disposição de autocrítica da sociedade diante das fra- pela frente)
ses de negro é anestesiada em função do emprego do recurso
cotidiano da conversa. Isso é mais perceptível nas frases que Esse procedimento amplia o processo comunicativo da
empregam diálogos, através dos quais os enunciadores tro- conversa cotidiana, ao manter a antiga forma de um enun-
cam informações a respeito de uma realidade que lhes é co- ciado e criar outra baseada na anterior, mas diferente dela.
mum. O saber compartilhado acerca dos negros possui um A manipulação ideológica desse procedimento resulta. na
roteiro de sentidos estabelecido, de modo que a pergunta ini- naturalização das frases de negro, fazendo com que .seJilm

128 129
---------------------..,.
incorporadas à sociedade brasileira através de um caminho , ções como essa a análise do discurso também é contestada
legitimado, isto é, como se fossem parte de um repertório em sua dimensão de exercício puramente teórico.
compartilhado. Prova disso é que os discursos discriminatórios
A gravidade do tema e suas implicações levam a análi-
contra negros e grupos como mulheres, homossexuais, imi-
se do discurso a se apresentar na arena dos conflitos sociais
grantes têm sido contestados e ainda assim circulam aberta-
assumindo, também, a perspectiva de discurso-ação. Isso
mente na sociedade.
ocorre na medida em que a análise do edifício discursivo não
A violência contra negros e seus descendentes é prati-
cada de maneira ostensiva, mas o mecanismo que a promove se esgota nas fases de sua desmontagem e interpretação.
se apresenta protegido por subterfúgios gerados na oficina Outra fase, a da recepção da análise tensiona suas preten-
da própria sociedade. Diante disso, o que se observa são os sões de distanciamento, especialmente em casos corno o dos
laços de conivência social com a discriminação, evidencian- discursos discriminatórios, Os apelos em prol da justiça soci-
do a eficácia do terrorismo ideológico na elaboração dos dis- al chamam historicamente a análise do discurso a desempe-
cursos de segregação. nhar um tipo de ação moral que, a julgar pela complexidade
Ao analisarmos o potencial de ação inscrito no discur- dos conflitos sociais, ainda se faz necessária,
so racista procuramos efetuar a crítica à sua legitimação so- Evidentemente toda opção por urna ação moral impli-
cial. Por um lado, a legitimação ocorre na aceitação do dis- ca o risco da emissão de juízos de valor. Mas a realidade
curso racista coroo um entre outros discursos, "naturalmen- oferecida pelos discursos de segregação é de uma moralidade
te" inseridos na cultura brasileira; por outro lado, através da perversa, criando verdades absolutas a fim de justificar suas
postura vacilante que a sociedade brasileira tem adotado no práticas de violência. A análise do discurso, nessa circuns-
tocante às questões de justiça racial 96 pois, na maioria da tância, é duplamente pressionada: de um lado para ignorar
vezes, hesita em aplicar as leis que punem o racismo, embora a investigação dos discursos, levando-se em conta que as rá-
o considere como crime. pidas transformações contemporâneas exibem, cada vez mais,
É nesse tipo de fratura da ordem social que investem os a ruptura das dicotomias que orientaram a análises nos anos
agentes da discriminação, ao perceberem que a fragilidade dos da guerra fria. De outro lado, a análise do discurso mantém
meios de defesa da cidadania estimulam a proliferação das sua pertinência, pois questões fora do âmbito da guerra fria
formas de violência. No caso da sociedade brasileira, essa fratura ainda exigem interpretação comprometida com certos valo-
é histórica e pode ser acompanhada pela trajetória de discursos res. Eis o caso dos discursos discriminatórios: não há como
discriminatórios como os abecês, as piadas e as frases de negros. analisar à distância os seus conteúdos sem denunciar sua
Eles têmsido atualizados. aproveitando-se das novas circunstân- interferência nefasta na sociedade.
cias em que a ordem social se mostra impotente ou desinteressa-
Como já dissemos, a análise teórica não tem evitado as
da para empenhar-se na defesa dos direitos humanos.
conseqüências dos discursos discriminatórios, No entanto, é
Em vista disso, a análise do discurso contribui para com- como ação moral que a análise teórica pode se aliar a outras
preendermos as orientações ideológicas que dão sentido aos práticas de crítica à discriminação, criando condições para
discursos discriminatórios, ao mesmo tempo em que os iden-
compreendermos os modos de articulação dos discursos
tifica como um modo de ação. Vale ressaltar que em situa-
agressivos. Eis o que procuramos fazer em relação às frases
de negro. com a pretensão de verificar as orientações ideoló-
gicas que as fundamentam, o vocabulário que empregam e,
"Ver crítica de Come] West à postura da "América branca" em relação aos
negros, ln: Qrtestiio de raça, São Paulo, 1994, p. 19.
finalmente, os mecanismos que garantem sua permanência e
atualização na sociedade brasileira. .
130
131
É fato que iniciamos um percurso crítico mas, desde
agora, é possível vislumbrar os desdobramentos desse tipo
de discurso. Se considerarmos que ele não é apenas uma rea-
lização verbal e, sim, que a realização verbal é uma das for-
mas da elaboração ideológica discriminatória, teremos de
atentar para as outras formas de veiculação dessa ideologia
envolvendo os negros, tais como as imagens produzidas e
divulgadas através da rnidia.
Mas, por ora, é importante o exame das frases de negro,
já que nos levam a percorrer os caminhos de uma certa tradi-
ção cultural. Vale a tentativa de identificação dos atores e dos
A VIDA NOS ESTÚDIOS
enredos que interpretam a fim de observar o quê e como a socie-
dade brasileira fala acerca dos negros. Já numa análise inicial,
"Tendo a imagem, especialmente a fotografia, servido como
se torna evidente que quanto mais as frases insistem no dis- um dos suportes ideais utilizado pela classe dominante para a
curso que exila o negro da sociedade brasileira, mais esse dis- propagação de sua ideologia, torna-se, sem dúvida, um
curso afirma a presença dos negros como constituintes de nos- instrumento particularmente importante para que se venha, em
sa sociedade. A partir disso, tem-se o desafio de compreender sentido inverso, captar comoforam elaboradas estas ideologias."
que tipos de relações interpessoais e ゥョエ・イセオー。ウ são セ ァ。セゥᆳ
Sofia O/szewski Filha 97
zadas para desenhar o perfil de uma SOCIedade multiétnica
em que, ideologicamente, as contradições das atitudes se
espelham nas contradições dos discursos. HOMEM INVISÍVEL

Em 1947, o escritor Ralph Ellison publicou The invisible


man, obra na qual denunciava as condições desfavoráveis
dos negros na sociedade norte-americana. Os negros - que
haviam contribuído e continuavam a contribuir para o de-

I senvolvimento sociopolitico-cultural da nação - permane-


ciam, no entanto, excluídos das esferas de decisão da vida


.
', .:
::

II'F
nacional. Esse fato foi identificado e representado por Ellison
na imagem do homem invisível.
No Brasil, tem sido freqüente o emprego da imagem
homem invisível para denunciar a marginalização de nossas
populações negras. A presença rarefeita dos negros nos meios
de comunicação de massa vem sendo interpretada por mili-
tantes políticos, intelectuais e artistas como uma espécie de

"Sofia Olszewski Filha. A fotografia e o negro nacidade do Salvador 1840-1914,


Salvador 1989, p. 12.

132 133
apagamento intencional da imagem do negro na sociedade É importante considerarmos as representações do ne-
b:asileira. Em conseqüência dessa invisibilidade, as popula- gro numa sociedade multiétnica como ação política ligada à
çoes negras tendem, segundo estes analistas, a reforçar sua transmissão de preceitos ideológicos de segmentos dominan-
baixa estima e os índices de sua exclusão social. Por' isso, o tes ou menos favorecidos. Isso impõe a análise da tensão como
empenho de tornar o negro visível na sociedade tem sido uma força inerente aos cantatas entre grupos que se autodefinem
das formas encontradas por entidades e cidadãos que se a partir da diferença reconhecida nos outros. O etnocentrismo
opõem à discriminação racial e social." nesses casos é assumido, simultaneamente, como forma de
O que o título da obra de Ellison propõe como proble- autodefesa (quando um grupo demarca as fronteiras de sua
ma a ser analisado não é apenas a visibilidade (ou represen- identidade) e de ataque (quando rejeita a existência da iden-
tação) rarefeita da imagem do negro na sociedade norte- tidade do Outro e lhe atribui o traço distintivo de uma dife-
americana, mas acima de tudo a maneira como essa repre- rença inferiorizada).
sentação foi elaborada de modo a resultar no efeito de A elaboração das imagens do Eu no Outro, nesse con-
invisibilidade daquele que era representado. texto de tensão, nos estimula a investigar os mecanismos ideo-
Para evidenciar sua análise do fato social, o autor se apóia lógicos que transformaram os negros, os índios das Américas,
numa construção lingüfstica que é simultaneamente uma cons- os habitantes das ilhas do Pacífico e os orientais num conjunto
trução visual. Essa construção visual adere à obra - e à sensi- de imagens capazes de alimentar a sedução e o medo no ima-
bilidade dos leitores - como se fosse uma fotografia, uma pln- ginário do homem branco ocidental.
tura ou um desenho daquele que só é visto em sua invisibilidade. Os viajantes estrangeiros que cruzaram as terras fora
A imagem-título propõe o reconhecimento do homem invisí- da Europa deixaram testemunhos contundentes dessa ten-
vel como uma representação permeada pelos significados do são. No Brasil, registras como os de Debret e Rugendas, na
homem que a sociedade só admite ver como invisível- ou seja, pintura, de Max Radiguet" e von Martius'?' , na literatura -
como não-cidadão. demonstram o misto de atração e receio pela diferença do
O apelo da imagem-título torna-se maior na medida Outro negro ou índio. Apesar da tensão, o desejo de estabe-
em que se dá a conhecer como uma imagem possível no イ・セ lecer. a imagem do Outro foi imperativo, ora para atender às
pertório de outras imagens possíveis. O não-estar do negro necessidades imediatas do registrar para conhecer e domi-
na imagem do homem invisível é uma forma de estar que se nar, ou para desenvolver a aprendizagem de configurações
baseia em meios específicos de produção. A questão é detec- estéticas.Diante disso, como sustentar que são invisíveis aque-
tar quais são os meios de produção, difusão e interpretação les em relação aos quais são nutridos sentimentos de atraçãc,
dessa outra imagem. Tal imagem é uma provocação à ordem repulsa ou indiferença?
de sentidos que homens negros e não-negros - situados em A invisibilidade, portanto, não deve ser analisada como
sociedades multiétnícas, mas cindidas por conflitos de natu- fato natural e dado a priori, mas como elaboração
reza étnica, política e econômica - têm como fonte de orien-
tação para seu estar-na-mundo.
99Yer comentários 11 obra de Max Radiguet Souvemírs de !'AmériqueEspagnole
(Paris, 1865), ln: Gilberto Freyre, O escravo 1105 anúncios de j'ornais brasileiros
%Scgundo Aroldo Macedo, em editorial da Revista Raça Brasil (1997 ano 2
do século XIX, São Paulo, 1979, P. 99.
n". QセLケ 4), "já em hora de ャ・カセョ。イ o véu da invisibilidade do n:gro 、セ 100 Segundo von Martius, a presença da "turba varíegade de negros" na

Brasil. O autor reforça essa opinião na entrevista "Raça Brasil levanta o cidade indicava ao viajante que ele se encontrava "num estranho conti-
カセオ da ゥョカウNェ「ャ、Lセ・ do negro", Jornal O Tempo, Belo Horizonte, "Maga- °
nente do mundo" - Brasil (ln: Francisco M. Paz, Na poética da História,
zme/ Blcquítude ,quarta-feira, 03/09/97, P. 8. Curitiba, ,1996, p. 239).

134 135
sociocultural que é apresentada à realidade como uma reali-
dade plena e naturaL O homem invisível é a parte ,visível de A crítica dos militantes políticos, intelectuais e artistas
uma teia de relações sociais que os indivíduos experimentam à invisibilidade do negro na midia é pertinente, se levarmos
e nem sempre apreendem em detalhes. em conta a desproporção entre a expressiva presença de ne-
.Os jornais brasileiros, desde o século passado, vêm fa- gros na sociedade brasileira e a sua freqüência restrita na
zendo diversas citações da imagem dos negros. Essas cita- midia. Por outro lado, a constatação de que os negros têm
ções são importantes, pois, nos permitem observar as ideo- sido representados na midia sugere a rearticulaçâo da críti-
logias dos grupos dominantes que as desenharam e as ma- ca à invisibilidade. O eixo da crítica pode ser deslocado na
neiras de os negros conviverem com sua imagem elaborada abordagem direta da invisibilidade (que vê apenas a ausên-
pelo Outro. cia da imagem do negro) para a análise da maneira como o
Detendo o olhar sobre os periódicos do século x.IX nos negro é representado (que investiga a ideologia responsável pela
deparamos com um tipo de desenho que funcionava como construção de uma imagem do negro que é, em síntese, a
uma espécie de logotipo e servia para denunciar os escravos negação de sua própria imagem).
fugidos. O desenho mostrava a imagem do negro ou negra Se a imagem é como Proteu - "pode ser tudo e seu
escravos em posição de caminhada, com tuna trouxa amar- contrãrto"!" - somos instigados a perguntar: por que ela é
rada a uma vara e apoiada nos ombros.t" montada de tal maneira em tal lugar e época, enfocando cer-
O modelo das cartes de visite foi divulgado no País pelos I, tos alvos, estando sob controle de certos agentes e sendo fixa-
fotógrafos da época. De acordo com Paulo César de Azeve- da sobre determinados suportes? Podemos nos deter em cer-
do e Maurício Lissovsky, elas são o resultado de um processo tas imagens para investigar seu modo de produção e os sig-
que permitiu "impressionar várias カセコ・ウ a mesma imagem nificados que derivam delas?
num só negativo. Inicialmente são retratos copiados numa Selecionamos como objeto de análise as cartes de visite de
única folha de papel fotográfico no formato de cartões de Christiano [r., fotógrafo radicado no Rio de Janeiro e depois
visita (...)". Exibiam; além, de retratos, paisagens e costumes em Buenos Aires, na segunda metade do século XIX.
dos povos. "Elas são predecessoras dos. cartões postais que Christiano [r., que faleceu em Assunção do Paraguai em 1902,
se tornariam moda no final do século passado.v'< legou-nos uma considerável série de fotografias de escravos
Esses desenhos e fotografias se caracterizam pela eco- negros.
nomia de informações ou pela repetição de um mesmo elenco Na edição de 1886 do Almana1c Laemmen (Rio de Janeiro),
de informações. Em função desses traços, se situam no limi- seção de "Notabilidades", o fotógrafo colocava à disposição do
te dos estereótipos do negro fora-da-lei (o escravo fugido, o público uma "Variada collecçêo de costumes e typos de pretos,
bandido procurado pela polícia) ou do negro submetido ii',
cousa muito propria para quem se retira para a Europa."!"
às regras estéticas europeizantes (os retratos de família, as A análise das fotografias de Christiano [r. faz parte dos
cartes de visite). estudos que temos realizado acerca dos processos de preser-
j', vação e transformação de heranças culturais bantos na socie-
dade brasileira. Um dos temas que abordamos é a elaboração
das representações de populações negras a partir de suas
101 Gilberto Freyre, op. cit., 1979, p. 4-5.
Paulo César de Azevedo e Maurício Líssovsky (org.), "O fotógrafo
102
Christiano [r.", ln: Escravos brasi leiros do século XIX nafotografia de Cvíeuono
,
ii lOSMartine Jaly, Introdução à. análise da imagem, Campinas, 1996, p. 27
Jr., São Paulo, 1988, P' ix.
l04Azevedo e Lissovsky, op. cit., 1988, P: viii.
136
137
elaboração de uma teoria da comunicação através da imagem
prát!cas イ・ャゥァ _ウセ Nャos Por isso, o nosso interesse pelas foto- se torna interessante a análise do modo como esse contraste se
grafléls. de cィZャウエゥセョッ Jr., セ。ウ quais nos deparamos com agen-
desdobrou no registro e na difusão da imagem do negro. É
tes e circunstâncias particulares que propõem a elaboração
válido, ainda, discutir de que maneira essas imagens produzi-
de determinadas imagens dos negros brasileiros.
das situaram o negro "dentro" do universo fotográfico como
Nosso objetivo é conhecer esses agentes e circunstâncias a
objeto representado, e o mantiveram "fora" da ordem social
fim de analisar o セイZャ_ッ social onde as imagens do negro po-
dem ganhar uma visibilidade de fato ou uma visibilidade estereo- privilegiada ao reiterar sua condição de escravo.
tipada que tende a ser interpretada como invisibilidade. Para As fotografias de negros escravos realizadas em estú-
tanto, ーイP」ZNオイ。 ・セッウ sustentar a hipótese mencionada de que a dio se caracterizaram pela montagem da cena em que os ー・イ[セ
reelaboraçao da imagem do homem invisível- através do exer- sonagens surgiam como se estivessem desempenhando suas
cício interpretativo - pode contribuir para a construção de ou- atividades diárias. As vendedoras de frutas, os carregadores
tras imagens que possibilitem a compreensão do mundo como e o barbeiro "mostravam" em estúdio a maneira como se con-
mosaico de imagens semanticamente dinâmicas. duziam no cotidiano. Porém, a fotografia limita nosso acesso
Como destinatários das cartes de visite de Christiano [r., aos cheiros, aos toques, ao burburinho da comunicação que
estamos cientes de que ninguém "penetra o sentido de uma aproximava os negros entre si e os demarcava como diferen-
ヲッエ ァイ。ヲセ sem arriscar-se ao confronto entre o real guarda- ça na comunicação do mundo de senhores brancos. A au-
セッ pela Imagem e o real do leitor-intérpretev.tw As fotogra- sência desses elementos adverte para a distância que se defi-
fias. como textos de uma época, falam sobre essa época e niu entre o cotidiano dos negros em ação e o registro de sua
suas relações com o presente, ou sobre as relações entre a imagem no espaço idealizado da íotografia.!'"
imagem do negro de ontem com a do negro de hoje. Do pon- A imagem revelada na fotografia de escravos é verossi-
to de vista do leitor-intérprete, buscaremos decifrar as outras mil, pois assemelha-se e quase se confunde com o recorte da
significações que "a naturalidade aparentev'w das fotografi- realidade que procurou representar. As caries de visite., além
as de negros velou enquanto revelava certas significações. de objetos de diversão e lazer, se tornaram depositárias de
informações que nos permitem ver, conhecer e interpretar
uma parte daquilo que foi registrado como sendo a realidade
RETRATOS NO TEMPO brasileira num determinado tempo e espaço.w
A fotografia surgiu no contexto da sociedade industri-
Vida de negros nos estúdios al e pode ser vista também como parte do aprimoramento
técnico estimulado no decorrer do século passado. Mas, ao
As imagens produzidas por Christiano [r. fazem parte contrário de outros bens que se tornaram apenas produtos
de um acervo no qual contrastam as técnicas modernas de da sociedade capitalista, a fotografia transitou da condição
registro de informações (a fotografia) e o arcaísmo do objeto de bem resultante da industrialização para a de elemento
retratado (aspectos da sociedade escravista brasileira). Para a deflagrador de movimentos na ordem social.

10.\ Gomes e Pereira, op. cit., 1988 e Ar/liras: olhos do rosário, Belo Horizonte,
1990.
lOS VerAzevedo e Lissovsky, op. cit., 1988, fotografias números 16 a 23, 36-
106 Muniz Sodré, "A sombra do retrato", ln: Azevedo e Lissovsky (org.). op. 37,42 a 45, 49 a 51 e 66.
cit., 1988, P: xviii.
109 Martine'[oly, op. cit., 1996, p.19
lO? Martine [oly, 1996, op. cit., p. 43.

139
138
Na linha das mudanças trazidas pelas técnicas foto- contar a partir de então com o instantâneo da fotografia. O
gráficas é importante ressaltar a relutância das pessoas em espírito investigador alimentou, em parte, a realização da
trocar os retratos a óleo pela fotografia. Para os primeiros, o fotografia como meio de registro de hábitos e costumes de
gosto dos usuários teceu um sentido aristocrático na pers- diferentes grupos culturais. Por outro lado, a fotografia -
pectiva social (já que as famílias e indivíduos abastados é que símbolo de uma civilização branca e industrializada - foi
possuíam condições de arcar com as despesas de um retrato sendo legitimada como processo que permitia olhar e regís-
sob encomenda) e artística (uma vez que cada retrato era , trar uma certa imagem do Outro contemplado.
realçado como obra em que o cliente se valia do talento do A fotografia se revela, em suas origens, como técnica
artista para satisfazer expectativas particularesj.l'" A foto- de produção da imagem sobre a qual incidem os interesses
grafia foi vista durante longo tempo como fruto da técnica dos interpretantes que desejam atribuir-lhe algum sentido.
industrial, ou seja, como processo em que o fotógrafo estaria Os interesses do fotógrafo, sua capacidade de deslocar os
impedido de lançar mão dos recursos da subjetividade pre- pesados equipamentos, os equipamentos em si e até o papel
sentes no trabalho do pintor. que servia de suporte para a imagem são conseqüências da
O atrito em torno dos meios de elaboração da imagem sociedade industrializada. As funções que esses elementos
atingiu os seus produtores: se ao pintor era aplicada a desempenham no curso de realização da fotografia decor-
categorização de artista, ao fotógrafo se impunha um tipo rem de sua ligação intrínseca com um determinado modelo
de classificação indefinida pois, não sendo artista, se aparen- de organização social. As imagens produzidas evocarão ne-
tava a um novo tipo de operário, isto é, a um produtor da cessariamente essas instâncias, fato que se torna relevante
imagem que não se enquadrava nos moldes tradicionais dos para os negros registrados por Christieno [r., já que estavam
adeptos da pintura ou do desenho. alijados ou colocados em condições de inferioridade na orga-
No contexto de formação e desenvolvimento das ciên- nização social do escravismo.
cias humanas, e paralelamente à prática da fotografia, de- A sociedade brasileira, apesar de não reproduzir as mes-
sencadeou-se o interesse pelo registro das culturas situadas mas características da sociedade industrial do século XIX, indi-
fora da Europa. A interpretação desses regístros permitiria, ca que trabalhos como os de Christiano jr. são orientados pela
segundo a orientação etnocêntrica da maioria das análises, a lógica do modelo externo. Ao anunciar suas cartes de visite,
fixação da imagem do europeu civilizado, a fim de diferenciá- Christiano [r. atua como uma espécie de etnógrafo ávido por
lo dos outros homens considerados nãocivilizados. As ciên- levar aos seus pares a imagem de um outro grupo humano.
cias humanas, em especial a etnografia e a antropologia, con- Anteriormente ao advento da fotografia, os diários, as
tribuíram para a inserção da técnica da fotografia no univer- pinturas e os desenhos desempenhavam a função de regis-
so da investigação científica. Além dos croquis, desenhos a trar e difundir a imagem daquele que era colocado como alvo
lápis ou bico de pena e as pinturas, os estudiosos podiam da observação. A diferença do Outro, entendida pelo obser-
vador privilegiado como falta de civilização - portanto, como
ameaça - estimulou a fixação de sua imagem como algo exó-
lIOA linguagem da fotografia provocou polémicas no final do século de XIX, tico a ser exibido num espetéculo de variedades. Nessas cir-
considerado, até então, como reduto da linguagem da pintura. Sobre o
prestígio da pintura nesse período, ver Arnold Hauser, História social da
cunstâncias é que os negros fotografados por Christiano [r.
litemtum e da arte, vol. II, 1982, P: 1055.No Brasil, vários chargistas registra- foram incluídos numa "Variada collecção e typos de pretos".
ram os sustos da população diante do fotógrafo e de seu maquinátio: ver o Tem razão Manuela Carneiro da Cunha quando co-
.arttgo de Ana Maria Mauad, "Imagem e auto-imagem do Segundo Reina-
do", ln: Luiz Pelipe de Alencastrc (arg.)., op. cit., 1997, P: 192-3. menta que o trabalho fotográfico de Christiano [r. "registra o

140 141
negro como generalidade, despersonalizando-o", ao
enfatizar as atividades e não as pessoas.!" O agravante, se-
o perfil agrário e escravocrata da sociedade brasileira
realçava, por contraste, o significado das técnicas de produ-
gundo a autora, estava no fato de que as fotografias dos
senhores eram doadas aos seus pares como cartões de vísi- ção da imagem fotográfica, associando-as a um tipo de socie-
dade de perfil urbano e industrial. A fotografia tem a marca
ta, ao passo que as dos escravos negros eram vendidas a es-
tranhos como cartões postais. da modernidade que Christiano [r. faz questão de apresentar
ao seu público: trata-se de um sinal de investimento na
Atualmente reconhece-se que na relação entre senho-
res e escravos nem sempre preponderava a rigidez da legis- melhoria da qualidade de seus serviços e da tentativa de supe-
rar os concorrentes no mesmo ramo. Eis um testemunho:
lação, urna vez que essas relações eram atravessadas por
mediações que garantiam ao escravo espaço suficiente para
"Ultimamente [C.Jr.] recebeu um perfeito machinismo que
a sustentação de seu estatuto de pessoa. Esses espaços sur- tira doze retratos de uma só vez, talvez o único que exista
giam como fruto de negociações, mais ou menos explícitas, nesta capital."
que revelavam senhores e escravos cama atores envolvidos
numa densa trama social. Daí a relevância dos atuais estu-
dos sobre a formação e permanência de famílias escravas, (...) Um magnífico aparelho solar está montado
fato que evidencia a dinâmica de reorganização e de inter- com proporções de fazer retratos em tamanho
natural: de pé ou sentado, e logo que se acabe o
ferência da subjetividade dos negros em ambientes de ad- primeiro retrato será exposto e se ennunciarã o
versidade. l12 lugar." 114
No entanto, não devemos desconsiderar a eficácia da
legislação escrevista e dos critérios de valor que ajuddaram
a imprimir no senso comum no tocante à população negra. A fotografia, vista a princípio como técnica ameaçado-
A didática da legislação escravista contribuiu para que a ra da inventividade do artista, ganhou legitimidade como sím-
imagem do negro-objeto pudesse ser aprendida como fato bolo do mundo moderno, das cidades em crescimento, da カ・セ
natural, mais tarde consolidado como fato social. Essa lógi- locidade e do consumo. Para nós, legitimou-se como técnica
ca racista sustentou como sendo natural a condição do ne- moderna capaz de registrar aspectos de uma sociedade não
gro-objeto na fotografia e cultural o modo de entendê-lo tão moderna, ainda apoiada no trabalho compulsório.
como inferior nas relações sociais.!" Por isso, os anúncios O enredo da representação do negro no Brasil se de-
dos "typos de pretos" feitos por Christiano jr. não choca- senrola de maneira viciosa nesse cenário. Para urna socieda-
vam o público, para quem as fotografias apresentavam a de não moderna que desejava se afirmar corno tal - sobretu-
elaboração cultural daquilo que todos aprenderam natural- do quando a afirmação se tornava útil para atrair a simpatia
mente: os negros não eram pessoas ou, se o eram, pelo me- de governos, como o da Inglaterra, interessados no fim do
nos aos olhos da sociedade até aquele momento haviam per- tráfico de escravos e na abertura de mercados consumidores
manecido invisíveis. criou-se a situação que demandava a formação de ideologias
capazes de manter unidas, sob pressão, as diferenças sociais
IIIAzevedo e Ltssovsky. op. cit., 1988, p. xxiii. e étnicas do País.
1J2YerMariolo Florentino, A paz lUIS senzalas, Rio de Janeiro, 1997,
113 Sobre o aprendizado natura! da relação entre a realidade e a imagem,
ver Marfine Ioly, op.cit., 1996, p. 43.
114Azevedoe Lissovsky, op. cit., 1988, P: vííi.
142
143
Tornou-se necessário forjar um modo de promover a possível supor que também não eram sujeitos para fabrica-
imagem do negro .como forma de aproximar o Brasil das por- rem, eles mesmos, um outro corpo para a pose. Os interesses
tas da modernidade européia, mas sem que com isso o mesmo comerciais demonstrados pela prática da venda das cartes
negro atingisse o status de cidadão para arranhar o rosto da de visite nos levam a pensar na interferência do fotógrafo na
sociedade escravista vigente. Um preconceito indisfarçável, montagem da pose, ou seja, da imagem dos negros. A mon-
revestidó de aparente tolerância, veio a ser o parceiro das tagem da pose - mais do que um detalhe técnico para en-
maneiras estereotipadas de representar a imagem do negro na contrar um melhor ângulo de visão ou aproveitar a
imprensa e nas artes nacionais. luminosidade - revela implicitamente a tentativa de construir
A obra de Christiano [r. ilustra um tipo de "saída" des- um sentido para a fotografia. A pose de um senhor de escra-
se impasse, ao fotografar o escravo negro numa situação con- vos diz muito de seu poder e influência, ao passo que a de
trolada: o fotógrafo possui o olhar e a ideologia que orientam seus escravos pode reafirmar esse poder ao serem menciona-
a maneira de ressaltar ou minimizar certos aspectos na ima- dos num segundo plano da foto.
gem do retratado. Os negros das cartes de visite são imagens No trabalho de Christiano Jr., o proprietário do estúdio
idealizadas de uma realidade bem mais complexa; eles estão e das poses realizou o registro de "typos de pretos" sem ame-
apresentados como objetos de um tempo que se deseja man- açar a ordem social branca com uma deliberada humanização
ter intacto. São assim como as paisagens de um passeio a dos negros. Os fotografados são maís escravos e índices do
outras terras que as retinas e sentimentos imprimem na foto- que pessoas e símbolos, do ponto de vista social e estético, res-
grafia para que não se percam. pectivamente.
O fotógrafo captou os negros em estúdio, tentando re- O escravo-índice 'está congelado na foto. É com essa
produzir a sua presença e visibilidade no cotidiano. Porém, o expectativa que a sociedade racista o contempla, mini-
modo de apreensão e divulgação dessas imagens é fruto de mizando as ondas afetivas que se agitam sob os corpos imo-
uma elaboração ideológica que, contraditoriamente, exime a bilizados nas poses. A natureza indéxica dessa imagem é con-
sociedade da culpa de não ver os seus negros e informa que servadora e determina que o escravo, também um negro, seja
os mesmos não constituem elos relevantes na ordem social reapresentado à sociedade como um estereótipo, ou seja, como
dominante. um negro em versão simplificada.
Essa elaboração ideológica está evidenciada na adoção O fato de os negros usarem trajes característicos de seus
da pose para realizar as fotografias. Segundo Barthes. na ambientes culturais (fotos 1, 2, 3, 4) e de exibirem escanações
pose o sujeito fabrica um outro corpo, metamorfoseia-se em que identificam seus grupos de origem (fotos 5, 6) não é garan-
imajrem.!" A imagem da pose se torna pesada, permanece tia de sua identidade, desde que a imagem estereotipada nos
imóvel desde a origem e assim se mantém, obstinada, duran- condicionea ver apenas e sempre isto nos negros. Os negros
te o processo de realização da fotografia. dessas imagens correm o risco de não serem eles mesmos:
A pergunta inevitável é: nos registras de Christiano [r. habitantes da casa da fotografia, montados em poses segundo o
os negros são eles mesmos? Considerando o fato indicial de desejo alheio, confirmam sua condição social de objeto.
que os negros, sendo escravos, não eram sujeitos sociais é O negro-símbolo constitui uma realidade latente nas
fotografias de Christiano [r .. Por um lado, em virtude de sua
desqualificação social estabelecida pela legislação
escravista; por outro, em face da eleição das imagens do
115Roland Barthes, A câmara clara, Rio de Janeiro, 1984, p. 22. branco e do índio como símbolos de identidade nacional.

144 145
o branco livre e o índio - em tese preterido como mão-de- te pelas orientações historiográficas. Fazemos isso movidos
obra por causa do tráfico de africanos - incorporaram, pelas expectativas existenciais que, porventura, marcaram
em diferentes momentos, o espírito da nacionalidade. Tor- nossos ancestrais, naquele momento, para além do que as
naram-se agentes portadores de sentido no imaginário suas poses parecem revelar.
nacional. Esse sentido resultou de uma interação social que Ao contemplarmos as fotos não é difícil perceber a dis-
apontava para os benefícios centrados na imagem do eu- tância que se desenhava entre a pose - que poderia ser repeti-
ropeu civilizador (navegante ou desbravador intrépidos) da mecanicamente - e os estados de ânimo das pessoas em
ou do índio heróico (filho da natureza e combatente dos cada instante diferente de preparação das poses. São as nuances
inimigos de sua liberdadej.!" de sensações sugeridas por esses instantes que estimulam a
A imagem do negro-símbolo, contudo, não emergiu na produção de sentidos para fotos como essas. Elas, que em cer-
arte brasileira do século passado: na literatura ou nos regis- ta medida são fruto da moda, estabeleceram relações sin-
tras fotográficos foram compostas cenas em que raramente tagrnáticas com outros períodos históricos.
se pode observá-lo como agente privilegiado.!" O valor sim- O trabalho de Christiano Jr. navega por essas duas mar-
bólico da imagem decorre da possibilidade de ser ela inter- gens. A princípio, o fotógrafo nos dá a ver aquilo que a moda
pretação - e não mera reprodução - do real, bem como ーイッセ de seu tempo inspirava: o escravo-índice, a pose, a realidade
ponente de transformação do real. É preciso surpreender o idealizada nos limites do estúdio. Mesmo as fotos (7, 8, 9) reali-
negro-símbolo como subjetividade inerente àqueles que se tor- zadas fora do estúdio indicam que na mudança do espaço
naram alvos do fotógrafo, que se sustentaram como seres interno para o externo foi mantida a técnica de construir a
humanos através da organização da vida familiar, artística e pose em meio às paisagens com poucos elementos.
religiosa em meio às pressões da situação de escravos.tw A foto 10 revela na pose o congelamento dos gestos de
A fotografia também possui um grau de subjetividade dois homens tocando tambores para que o fotógrafo pudesse
que a ilumina quando é exposta ao nosso olhar. Como num captá-los como se estivessem realmente executando as suas
espetéculo, a subjetividade permite que reencontremos nos- funções. Os olhos fixos dos instrumentistas denunciam sua
sa memória individual e do grupo seguindo as trilhas de uma separação do cortejo de reis e rainhas (foto 11) ao qual deve-
suposta memória daquele que foi fotografado.!'" riam estar dinamicamente relacionados.
Ao entrarmos num possível registro de memória dos Noutra margem, surpreendemos as fotografias de
negros fotografados, entramos em nossa própria memó- Christiano [r. dialogando com públicos e ideologias de dife-
ria, viva e desperta. Ao pensar sobre o que estariam pen- rentes períodos da história. Isso é possível graças à perenida-
sando os negros das fotos desenvolvemos nossos pensamen- de que a fotografia impõe àquilo que registra. Por mais pre-
tos, em parte guiados pela subjetividade da emoção, em ー。イセ cária que essa perenidade possa parecer, ela representa a ins-
tância de superação da morte imediata e a criação de expec-
'v'Olga de J. Santos e Marilena Vianna, O negro na literatura de cordel, Rio de tativas que nos permitem reencontrar a realidade fotografa-
Janeiro, 1989, p. 14-15. da noutro tempo e espaço.
' v Segundo Domicio Proença Filho, "A trajetória do negro na literatura
brasileira não escapa ao tratamento marginalizador que, desde as instân-
cias fundadoras, marca a etnia no processo de construção da nossa socie- por uma coleção de fotografias, escreve: "Vejo sete cavaleiros/ em suas
dade", ln: Revista doIPHAN, n'' 25, Rio de Janeiro, 1977, p. 159. selas e silhões/ (n.) / Eles nos convidam/ a percorrer este mundo/ (n.) /
'uver Robert Slenes, Na senzala lIIHa flor, Campinas, 1994. Só agora reparo:/ Vai-me gui<'lndo Brás Martins da Costa, / sutillatinista,
119 Roland Barthes, op. cit., 1984, p. 20. Ver o poema "Imagem, terra, memó- fotógrafo, amador,/ repórter certeiro.,' preservador da vida em movi-
ria" em que o poeta Carlos Drummond de Andrade, deixando-se guiar mento." セ ln: Farewell, Rio de Janeiro, 1996, p. 63-66.

146 147
I
A fotografia é herdeira de uma perenidade medida, que
depende da resistência do suporte e dos elementos químicos
utilizados em sua produção, bem como de nosso interesse e
ii Desse modo, olhar as fotografias de Christiano [r. não é
somente olhar o passado, mas o futuro dos negros que posa-
ram nos estúdios. Além de servirem como cartões postais para
capacidade para olhar a fotografia como fonte renovável de I deleite de colecionadores ou curiosos, que outras repercussões
significados. Além de nos revelar algo, a fotografia nos esti- têm imagens? As experiências de vida dos negros não podem
mula' a dizer algo que possa ser revelado por meio da imagem. ter desaparecido. na disciplina das poses. O mais certo é que
Através daquilo que "não viu" - porque se dispôs a ver 'tenham se transformado em imagens que não estão em pri-
determinados aspectos da realidade - Christiano [r. nos deu meiro plano, mas, que lançam um desafio ao nosso olhar.
a ver, a partir da contemporaneidade, outros caracteres que Na busca da linguagem para definir a experiência do
delineiam os sentidos de vida da população afro-brasileira. bíuee, Duke Ellington afirmou que ele "é sempre cantado por
As histórias de vida anteriores a cada pose dos escravos de- uma terceira pessoa, aquela que não está ali.". A canção seria

I
vem estimular nossa atenção para entender a vida imagina- acionnda não pelo par de amantes, "mas por um terceiro que
da (da pose) e a vida real (subentendida na emoção dos fo- os arrasta e fascina."!" Esse terceiro elemento ausente repre-
tografados) como contrapontos necessários para termos aces- senta uma presença essencial para manter o ritmo do bluee,
so aos modos como uma sociedade constrói imagens dos ho- bem como a intensificação dramática e lúdica de suas letras.
mens, uns considerados visíveis e outros, invisíveis. O blues existe por causa dessa tensão: a da ausência que pro-
põe à sensibilidade uma outra forma de presença. Muniz Sodré
Vidas de negros fora dos estúdios observa que essa é a metáfora para a sincopa, a batida que
falta, que incita "0 ouvinte a preencher o tempo vazio com a
marcação corporal - palmas, meneios, balanços, dançav.!"
Estudos recentes têm apontado uma presença signifi-
cativa da população negra nos espaços urbanos do Brasil As fotos de Chrístiano Ir. nos levam a pensar nas mu-
do século passado. no As fotografias de estúdio captaram lheres, homens, velhos e crianças que estão ausentes, mas
parte dàs redes de relacionamento que se .desenvolviam nes- presentes, nas imagens acabadas. O vazio provocado pela
ses espaços, pois isolaram o escravo negro num cenário pre- vida que não foi registrada na pose, e que pulsa como outra
parado apriori. Nos casos em que aparece mais de um escra- realidade possível, tensiona a superfície da imagem. A subje-
vo na mesma foto, ainda assim prevalece a idéia de monta- tividade dos negros esteve vigiada por um modus vivendi ca-
gem que nos ajuda a compreender os sentidos de época pre- racterístico da 'sociedade escrevista, tal como seus corpos
sentes nessas imagens. direcionados para o trabalho ou a exploração sexual.
A perenidade da fotografia projeta seus sentidos de Mas, assim como a síncopa chama o corpo para a vida
época e a repercussão desses sentidos ocorre a partir do con- no samba, a subjetividade vigiada das fotos nos convoca para
fronto com as ideologias e os gostos que não são necessaria- os lugares inumeráveis das sensações. Não se trata de olhar
mente idênticos aos do período de origem da foto. O tempo para os negros como escravos, mas para os escravos naquilo
exila a foto de sua origem e a oferece aos espectadores de que possuem de seres humanos relacionados às suas origens
outro tempo. étnicas e culturais. Se o fotógrafo viu "typos de pretos" em

120 Luiz Felipe de Alencastro, "Vida privada e ordem privada no Império",


ln: Aleneastro (org.), op. cit., 1997, P: 28.
I 12l Muniz Sodré, Samba,o dono do corpo, Rio de Janeiro, 1979, P: 17.
122Idem, op. cit., 1979, p. 17.

148 149
Mセ
conformidade com os valores de sua época, nós contemporâ-
externos, como vestimentas ou escariaçôes nos rostos. Porém,
neos podemos ver pessoas privadas de suas liberdades e ex-
é minimizada pela uniformização de atividades que podem
postas como objetos à curiosidade pública.
caber a um escravo: aguadeiro, ama, carregador, açouguei-
Na foto 12, a mãe posa com o filho às costas e a bandeja ro, cesteiro.
de trabalho à cabeça. É difícil perceber a expressão facial da Isso gerou uma situação de conflito nos modos de 。ーイ・セ
mãe, já que foi registrada de perfil. Seu rosto é um traço enig- <sentação da imagem do negro brasileiro. Ele foi, de início, o
mático contra a parede, como nas pinturas egípcias. O rosto
estranho na vida da nação, e mesmo quando se tornou um
da criança, no entanto, revela a curiosidade infantil mesclada
dos elos essenciais de sua construção social continuou a ser
ao receio diante do desconhecido (o fotógrafo? o mundo"). Na representado como o Outro. A sociedade dominante fez con-
foto 13, outra mulher carrega o filho. Seu rosto de perfil, está- cessões trazendo o negro para "dentro" do mundo branco,
tico, contrasta com o movimento facial da criança que enruga
adaptando-o à imobilidade da pose e da tentativa de preser-
a testa e abre os olhos numa expressão de susto.
vação dos valores patriarcais e escravistas. Desse modo, a
As fotos montadas não escondem de todo uma realida- sociedade poderia se sentir em paz, pois à sua maneira esta-
de em que mãe-filho-trabalho-insegurança se convertem em va dando visibilidade aos negros: vestidos como brancos,
temas da vida em família de negros pobres. Os filhos de mães aquietados como mulheres brancas ou brancos pobres eles
escravas tinham seu tempo de afeto disputado pela imposi- deveriam dispor-se a ser menos negros.
ção do trabalho à mãe, fato que ganhará novos contornos no Os negros que, porventura, se mexessem na hora da
Brasil da fase industrializada. As mães negras não têm se- fotografia (ou movessem a estrutura social) rompiam os li-
nhores, mas patrões nas fábricas; para garantir o emprego é mites da benevolência senhorial. Numa fotografia realiza-
necessário deixar os filhos aos cuidados de irmãos mais ve- da por Militão Augusto de Azevedo, em 1870, percebemos
lhos, vizinhos ou mesmo sozinhos em casa. O imaginário de o quanto a emergência da subjetividade do negro na ima-
separação entre mães negras e seus filhos está desenhado de gem poderia perturbar o equilíbrio da ideologia dominante.
forma sutil nas fotos, contrastando com o imaginária de uma Na extrema direita do retrato (foto 16), "o homem de bran-
família de negros centrados nas práticas religiosas (Candom- co se mexeu: estragou a foto da ordem escravista progra-
blé e Congado), festivas (carnaval) ou de resistência mada pelo seu senhorv.w
(quilombos). Os movimentos imprevistos dos negros nas fotos são ín-
Esse imaginário do medo nas cartee de visite é referen- dices da vida que se desdobrava para além da idealização
dado por uma longa seqüência de rostos sem sorriso. À exce- da imagem. Na foto 11, Christiano Ir. registrou um cortejo de
ção das fotos 14 e 15, em que a jovem mulher e o jovem da reis e rainhas acompanhado dos tocadores de tambores. A cena
mineração esboçam leves sorrisos, deparamos com rostos fe- em ambiente aberto mostra um grupo de quinze pessoas em
chados, sisudos, como a reproduzir a expressão adotada ー・セ diferentes poses. De uma das pessoas, à direita da foto, vemos
los senhores. Interessante é que dentre as queixas feitas con- apenas as mãos justapostas e parte da saia rodada.
tra os negros muitas diziam respeito ao seu gosto por festas, Para além da pose, a vida pulsa com a evocação de
e celebrações. Situações, enfim, propícias para manifestação elementos importantes na constituição de certa identidade
da alegria e do riso.
As fotos, uma vez mais, nos fazem pensar sobre o ne-
! li
cultural afro-brasileira.Quatrodoshomens são instrumentistas,

gro desenhado pela sociedade dominante. A multiplicidade


étnica é demonstrada nas fotografias através de elementos
I
li 123 Luiz Pelipe de Alencastro, "Vida privada e ordem privada no Império",
op. cit., 1977, p. 19.
150 セ 151
ij
1
:1
responsáveis pela música sagrada que faz dançar o corpo e a
l devoção dos negros e descendentes de negros pobres, a ーイ・セ
alma; distinguem-se com clareza quatro mulheres e três ho- i sença dos instrumentos de percussão evidenciam que certa
visão de mundo implícita na foto do século passado ainda
mens coroados; um homem ao fundo porta uma espécie de
bastão e -guarda as coroas; finalmente, tem-se o homem da
frente e à esquerda, aparentando ser embaixador dó grupo.
Todos estão -vestidos com elegância, embora permaneçam
I orienta procedimentos de alguns grupos contemporâneos. É
provável que devotos de Nossa Senhora do Rosário de hoje
possam ver as pessoas da foto como seus ancestrais: há uma
linha de identidade que os liga no modo de tocar os tambo-
descalços; fator demonstrativo de sua condição de escravos. res, de acompanhar os reis e as rainhas, de rezar dançando.
A cena ilustra parte das festas de coroação de reis e rai- Fotografias como as de Marcelo Pereira (ver Iconografia
nhas, que ocorreram com frequência no Brasil. Para os repre- 17 e 18) flagram na festa de Congado dos Arturos, em Con-
sentantes do regime escravista, os ritos de coroação eram tagem/MG, imagens que indicam uma similaridade de for-
ambivalentes: por um lado acirravam rivalidades entre os gru- ma e conteúdo com a foto de Christiano Jr,126 Formalmente
pos africanos aqui radicados, pois reafirmavam suas diferen- as imagens mostram reis e rainhas acompanhados por ou-
ças do continente de origem; por outro, permitiam a perigosa tras pessoas: a realeza é o centro de uma vivência sustenta-
aproximação de pessoas igualadas pelo sofrimento. da pela hierarquia e pela relação com os ancestrais. Reis e
Os negros envolvidos nas coroações reconheciam seu rainhas são descendentes no sagrado e pela sua ー・イウ カ・イ。ョセ
caráter sagrado, daí o respeito e o espírito festivo com que se ça devem trabalhar para deixar herdeiros de sua maneira de
dedicavam às cerimônias. Veja-se que o cuidado com a roupa vlver.!" As mãos das mulheres (veja-se Christiano Ir. /11 e
indica a ocasião em que os cativos invertiam sua condição e Marcelo Pereira /17) estão sobrepostas junto ao ventre; reis e
cingiam vestes de nobreza. Para os negros qu: イ・エッュ。カセュ o rainhas procuram se agrupar aos pares; as roupas se carac-
curso da história dos antepassados, ai coroaçao era mais do terizam pelo esmero (ainda que feitas com materiais simples).
que a pantomima permitida pelos senhores. A significação Quanto aos conteúdos, sentimos que a solenidade das
desse evento foi ampliada quando, em diversas localidades, pessoas se exprime nas expressões faciais e na precisão dos
criou-se o costume de alforriar os reis coroados do ano. 124 gestos. Os olhares são penetrantes, parecem contemplar ou-
As coroações, segundo Arthur Ramos, 'continham sobre- tra realidade recriada no momento do sagrado, Nos traba-
vivências políticas de grupos bentos, visíveis numa orgar:uzaçã? lhos dos dois fotógrafos não houve apenas o registro de uma
clânica que se disseminou entre ranchos, clubes e 」ッセヲイ。ウ re,li- cena, mas a apreensão de um modo de sentir, de acreditar
giosas.!" Nessas oportunidades, os negros ::espondiam a SOCle- nas divindades e de se situar no mundo que constitui a tradi-
dade escravista com procedimentos que os SItuavam no contexto ção de um segmento da população afro-brasileira.
de sua ordem social de origem. As coroações possuíam valor sim- Os negros retratados sabiam e sabem as diferenças entre
bólico, pois reis e rainhas representavam o eixo de criaçã? セ・ o cotidiano e o espaço do ritual de coroação. Mas isso não signi-
uma família ampliada em que todos se toma:am responsav.els fica que o cotidiano e o ritual estejam separados; o diálogo entre
pelo reconhecimento e preservação da mem6na dos encestraís.
eles é evidenciado pela necessidade que EIS pessoas têm. de dis-
As evocações culturais da foto 11 ainda fazem parte do
tinguir suas ações: É durante o ritual que os negros - antes es-
roteiro existencial das festas de Congado em estados como
cravos, hoje indivíduos pobres - tentam superar as precarieda-
Minas Gerais. A solenidade dos reis e rainhas coroados, a
des do dia-a-dia: através da vivência dos valores simbólicos o

124 Gomes e Pereira, op. cit., 1988, p.l83. 126Gomes e Pereira, op. cit., Belo Horizonte, 1990, p. 38-60.
125 Ver Arthur Ramos, As culturas negras, Rio de Janeiro, s/d, p. 180 eAs 127Leda Maria Martins, Afrografías da memória, São Paulo, 1997, p. 32-42.
clt/tliras negras 110 Novo MUl1do, 1979, p. 233.
153
152
grupo procura ウ。ョセイ também os problemas de ordem prática
que ambos só eram reconhecidos uns diante dos outros. Por
como segurança, alimentação, afirmação de poder.
outro lado, através da negociação em que os envolvidos nes-
O acervo fotográfico de Christíano Ir. aguarda a visita de
sa trama vislumbravam esquemas alternativos de organiza-
outros- olhares para revelar-se como imagem do passado que
ção da sociedade, ainda que não pudessem ou não quises-
r:ulsa no ーイZウセエ・N A ambivaiência de sentidos do acervo ques-
sem alcançá-los.
tíona [I coercncia dos debates atuais em torno da representação
Na rota da violência, senhores e escravos se defronta-
da população afro-brasileira. A fotografia elaborada como do-
vam simbolicamente na fotografia. A imagem dos primeiros
cumento セ・ época, segundo uma orientação ideológica, além
de cumprir essa função pode ser apreendida como metáfora era partilhada entre os semelhantes corria gesto de cívilide-
capaz de nutrir sentidos não previstos em sua origem. dei a dos segundos, tal como eles próprios, era peça a ser
vendida. Na rota da negociação, as poses registravam a con-
Isso P?rece estar subjacente às imagens dos negros das
firmação de um poder político e estético senhorial e de uma
」セイ ・Z de VIsite. Cada foto é u,ma metáfora provocando a sen-
adequação da imagem dos negros a padrões que acentua-
sibilidade contemporânea. E preciso ver os escravos e suas
vam, mais do que diminuíam, sua exclusão social.
atividades e também os seres sociais que vão urdindo uma
história .sil:nciada pelas forças dominantes. E, desde que a A elaboração da imagem está relacionada aos recursos
fotografia e uma forma de perenização do instante muitos e suportes técnicos empregados. As imagens da pintura, da
instantes de vida dos negros ultrapassaram a morte'da pose fotografia, do computador e da televisão são portas de aces-
ーセイ。 se apresentar em nuances que a pesquisa, a imagina- so a contextos sociais diferenciados, nos quais as mudanças
çao e o afeto dos contemporâneos permitem compreender. tecnológicas apresentam novas superfícies - concretas ou vir-
As fotografias de Christíano jr. estimulam análises dos tuais - para a fixação da imagem. Mais do que mudanças de
p:'ocessos de. ・ャセ「ッイ。￧ ̄ e divulgação das imagens da popula- base material ou tecnológica, isso indica mudanças nos mo-
ç.ao 。セッM「イウャ・N As cartes de visite estão impregnadas de sen- dos de pensar a elaboração da imagem. A possibilidade de
tidos ligados a um contexto em que os negros possuíam o valor optar entre a foto em preto e branco no século passado e a
que a sociedade patriarcal, branca e escravista lhes conferia. imagem digitalizada de hoje significa a possibilidade de apre-
ender o mundo de uma ou de outra maneira.
A fotografia - caracterizada como representação sensí-
vel, portanto, estética do mundo - contribui para a formação O resultado dessa opção transparece na imagem do mun-
de concepções estéticas que podem ampliar ou reduzir a re- do que criamos. O mundo de Christiano [r. emerge em preto e
levância daquilo que registra. Nas cortes de visite a represen- branco para dizer quando e como negros e brancos se arranha-
tação estética セ ウ negros tende a reduzir sua importância vam na cena social brasileira. Naquele momento a ideologia do
como seres SOCIaIS para realçar o seu estatuto de mercadoria. homem invisível teve na fotografia o seu meio de difusão.
O escravo-ícone está legitimado pela moldura de uma socie- Mas, os suportes técnicos, assim como as ideologias não
dade em que senhores e escravos se relacionavam em meio a precisam ser tratados como elementos acabados e defendi-
cidadãos libertos. dos das mudanças. Pelo contrário, os suportes técnicos são
Apesar das diferenças entre esses segmentos, a vida eficientes na medida em que são alterados através de aper-
cotidiana demonstra os laços que estabeleciam entre si. Por feiçoamentos que garantam sua sobrevivência. Se o trabalho
セュNャ。、ッL セエイ。カ←ウ da violência que gerava maneiras perversas de Christiano Jr. contribuiu para traçar a imagem do homem
de interação entre exploradores e explorados na medida em invisível também nos deu a ver perspectivas de superação
desse estereótipo. Os suportes técnicos usados falam de uma
154
155
vida que está para além deles, mas que só através deles che-
gou até nós. Isso demonstra que o olhar é mais do que um ato
físico. É, em grande parte, uma elaboração ideológica que
constrói e reconstrói os sentidos das imagens.
Numa sociedade como a brasileira, que tem nós canta-
tas multiétnicos uma de suas bases de sustentação, é im-
prescindível o exercício interpretativo dos processos de pro-
dução das imagens. Na do homem invisível vivem e se mobi-
lizam mulheres, homens, velhos, crianças, homossexuais, en-
fim, pessoas e cidadãos negros que contestam essa forma ne- RETRATOS DO MESMO
gativa de serem observados. O desafio consiste em dinami-
zar essa vivência como elaboração ideológica que oriente a
produção das imagens dos afro-brasileiros e proponha, sob "Mas, que importatudo isso?! Qual é a corda minha forma, do
outros ângulos, o modo de conhecer-lhes as histórias coleti- meusentir? Qual é a corda tempestade dedilacerações quemeabala?
vas e pessoais. Quala dosmeussonhose gritos? Qual a dosmeusdesejos e febre?"
As fotografias de Christiano Jr. retornam à luz, como
provocação às ideologias contemporâneas, cobrando de seus Cruz e Souza m
agentes argúcia para olhar o passado e suas implicações com
o presente e o futuro. Suas fotografias indagam: ainda nos
olhamos como ícones ou avançamos para a riqueza semânti- ONTEM E HOJE: IMAGENS RETOCADAS
ca do símbolo? Nós, negros e nãonegros, congelamos nossas
reflexões em poses intolerantes ou permitimos que se deixem A iconografia sobre os negros no Brasil apresenta di-
tocar pela densidade da vida? versas formas, entre elas, o cliché do escravo fugitivo .publi-
A elaboração das imagens do negro brasileiro assume cada em anúncios de jornais do século XIX, as pinturas de
hoje um caráter mais amplo. A questão, em princípio restrita artistas como Debret e Rugendas, e as fotografias das cartes
a uma etnia, diz respeito a todo cidadão, pois se trata de de visites impressas por profissionais como Christino Jr. 129
pensar sobre o modo como outros grupos marginalizados Nessas representações, os negros são retratados como obje-
aparecem diante do público. A imagem é, portanto, parte tos, reduplicando a condição a que estavam relegados na
integrante de uma linguagem social que constrói ou sociedade escravista. Mesmo após a abolição prevaleceram
desconstrói realidades. Daí o seu peso estético, político e eco- essas representações, contribuindo para a formação de uma
nômico num mercado que, se não negocia homens aberta- espécie de tradição iconográfica dos negros brasileiros.
mente, como no período escravista, continua a feri-los por
negociar seus desejos.

12SCruz e Souza, "Emparedado", ln: Obra completa: poesia e prosa, Rio de


Janeiro, 1961, p. 659.
129 Gilberto Freyre, op. cit., 1979; Azevedo & Lissovsky, op.cit., 1988; Sofia
Olszewsky, op. cit., 1989.

156 157
qualidades do outro. A concentração dos poderes' econômico
Neste capítulo pretendemos avaliar a tentativa de rup-
tura dessa tradição, considerando publicações contemporâ- e político nas mãos de grupos brancos interferiu 'decisivamen-
neas que se propõem como contrapontos à lógica de reíficação te no jogo de produção e divulgação das representações, de
dos negros. Em função disso, tais publicações enfatizam a maneira que, em geral, prevalece a sua caracterização como
nc.cessidade de divulgar uma nova imagem dos negros brasi- elemento positivo e a dos negros como elemento negativo.
Ieiros, destacando sua diferença em relação ao padrão Esses fatos ilustram a dificuldade de aceitação das dife-
iconográfico divulgado desde o período escravista. renças, apesar do discurso de tolerância racial que perpassa a
Além disso, nossa intenção é analisar a produção das sociedade brasileira. Em função disso, as imagens dos negros na
novas imagens como uma elaboração discursiva e, como tal, mídia contemporânea se revestem de maior importância, pois
atravessada por orientações ideológicas. Se, por um lado, a através delas é possível verificar até que ponto as mudanças na
nova imgem do negro explicita uma ideologia de contestação, sociedade estão respaldadas ou não pelos discursos visuais re-
por outro, é necessário verificar até que ponto essa contesta- centes. E ainda, oferecem oportunidades para que se possa de-
ção é também perturbada pela orientação ideológica dos gru セ bater as contradições que permeiam a nova imagem do negro.
pos dominantes. Desse modo, nossa reflexão se concentra Como se pode notar, nossas análises incidem sobre a
sobre dois aspectos da construção de uma nova imagem dos representação visual com o objetivo de compreender os me-
negros: primeiro, sobre o significado atribuído à noção do noro, canismos de sua produção. Tal procedimento é uma provoca-
desde que podemos ter em mente a inserção desse conceito ção à maneira habitual da sociedade receber as imagens ela-
nos domínios do pensamento da modernidade; segundo, banidas em seu interior. Quase sempre as atenções são desvi-
sobre o resultado dessa ideologia na formação de um discur- adas para os sentidos que aparecem à superfície da imagem,
so visual estampado em veículos de grande circulação. DO como se ela, por si mesma, exprimisse as noções de valor e as
Antes de comentar os aspectos acima, é interessante ob- linhas de comportamento da maioria dos indivíduos. Por isso,
servar que as representações dos negros brasileiros fazem par- o clichê do escravo fugitivo セ com Os pertences às costas - e a
te da realidade cotidiana, na qual se travam embates de natu- imagem da mulata sensual são aceitos como fatos na-
reza étnica e ideológica relacionados à formação da sociedade turais.como se desde sempre os negros estivessem destinados
brasileira. O recorte contemporâneo para analisar a proposta a assumir essas formas de representação.
de uma nova imagem para os negros implica o reconhecimen- No entanto, a estrutura profunda das imagens revela
to de uma experiência histórica caracterizada pelos conflitos. um intrincado jogo de orientações ideológicas. É o que se
Em outras palavras, os modos que negros e brancos en- percebe na articulação das imagens do escravo fugitivo e da
contraram para representar a si mesmos e uns aos Outros mulata sensual, quando ambos são destituídos de seus atri-
decorrem das estratégias que adotaram para ocupar os di- butos humanos e representados de maneira reificada. O es-
versos espaços da sociedade. Daí- a presença das representa-
cravo como máquina de produção e a mulata como objeto de
ções estereotipadas que demonstram a preocupação de um
prazer masculino são representações elaboradas segundo
grupo étnico de realçar suas qualidades em detrimento das
orientações ideológicas de matriz patriarcal e capitalista. A
divulgação dessas representações tende a ocultar outras pos-
síveis formas de representação dos negros, na medida em que
iso Revista MIIJ?cheie, ッゥセ .de j。ョ・ゥイセL 21/051988, ano Sô.nümero 1.883 _ capa
e p. 4-8; r・カャウエセ Veja, セQP de Janeiro, 11/05/1988, ano 20, numero 19- capa se impõem como modelo e buscam a conivência do público.
e p. 20-43; Revista Veja, 24/06/1998, ano 31, número 25 - capa e p. 98-107i Porém, como toda elaboração discursiva, a produção
Rev!sta Black People, Rio 、セ Janeiro, edição 10, ano 3, número 4, capai do discurso visual sobre os negros também entremostra suas
Revista Raça Brasil, ano 2, numero 13, capa.

158 159
contradições. A afirmação de uma modalidade visual dos A busca do novo é um projeto que deseja levar o negro
negros implica a necessária exclusão de outras modalidades. brasileiro a tornar-se ciente de si mesmo. Entretanto, o pre-
É em busca, dessas outras modalidades que parte a orienta- sente continua exibindo as marcas da discriminação o que
ção ideológica que aspira à elaboração da nova imagem do faz com que o negro brasileiro livre e ciente de si seja apre-
negro brasileiro. A fim de analisarmos esse processo - que sentado como aquele que ainda não é. O discurso, nesse caso,
implica a crítica aos papéis desempenhados por negros e bran- navega nas vertentes da modernidade: o sentido da mudan-
cos na sociedade - levaremos em conta a influência que o ça é dado, o futuro será melhor já que a militância no presen-
conceito do novo exerceu, e exerce, sobre o pensamento mo- te é uma determinação com chances de sucesso graças ao
derno. Posteriormente, faremos a análise da nova imagem engajamento dos militantes. O engajamento de intelectuais
para o negro divulgada como matéria de capa em cinco re- na militância anti-racismo implica a elaboração de um dis-
vistas de grande circulação, no período de 1988 a 1998. curso em que a vitória sobre o racismo representa a vitória
do homem. Mas, na medida em que a sociedade racista bra-
sileira vem se opondo a esse projeto de liberdade tem cabido,
o MESMO TRISTE PÉRIPLO em parte, aos intelectuais e artistas o papel de produtores do
novo. Esse novo emergente - ou seja, a sociedade sem racis-
Na vertente utópica do pensamento moderno Kant, mo, com equanimidade na distribuição das riquezas, com
Hegel e Marx delineiam um caminho de esperança a partir da extensão da cidadania aos menos favorecidos - é reivindica-
tensão entre passado e futuro, o que nos coloca diante da pos- do como o possível do homem verdadeiro. Os negros brasilei-
sibilidade de entender a transformação como o novo capaz ros, por isso, não devem temer o futuro no qual virão a ocu-
de solucionar as ameaças de crise. Sob esse aspecto, a par posições que hoje, como no passado, a sociedade racista
modernidade elege o novo como valor e as ações do sujeito são lhes impede de alcançar.
direcionadas para a busca da consciência de si: é preciso mu- A interferência do discurso de militância gerado nas
dar o que foi para que o sujeito possa ter direito ao que virá. fontes do pensamento utópico da modernidade não é mais
No que diz respeito ao tempo, o sujeito da modernidade intensa entre nós porque se depara com uma estrutura de
o apreende como perspectiva de superar aquilo que ainda se rejeição por parte da mídia e das classes dominantes. A ten-
é. Daí que a missão do filósofo consiste em pensar e apreen- dência desse discurso é de natureza profética, o que lhe con-
der a emergência do possível- aqui identificado com o novo- fere grande poder de apelo. A estratégia para silenciá-lo é,
e trabalhar para que ele se realize. O engajamento do filósofo em geral sutil, constituindo-se de sabotagens que visam a
se exprime como esforço para promover a m,:dança, já アオセ o colocá-lo em descrédito junto à população.
sujeito moderno vê o presente corno a limitação que é preCiSO
Ao que parece, a estratégia tem funcionado pois o dis-
ser superada. Por isso, o novo assume um caráter libertador
curso costuma soar estranho aos próprios negros brasileiros
e mobiliza o sujeito em sua direção.!"
desprivilegiados, embora aponte para a realização daquilo
que eles desejam. Nesse quadro, merece atenção o fato de
que a estratégia de enfraquecimento do discurso de militância
131 Cf.
Paulo Vaz, "Globalização e experiência de tempo" ln: Signos plurais: é extraída de um dos seus pontos de força: o apelo à tradi-
midia, arte, cotidiano na globalização, São Paulo, 1997, 103: Bセ
co:csensual
descrever a Modernidade como a época da história. Uma pnmell'a ques- ção. Para combater a violência racial é coerente que o discur-
tão a ser trabalhada é, portanto, que relação com o presente tornou possí- 50 de militância tome a tradição afro-brasileira como
vel uma historicidade aos homens modernos. referencial de valorização dos negros. A ambivalência se tor-
160 161
na palpável quando a tradição é reduzida à noção de raça, 'exclusividade dos negros, mas pertence a uma perspectiva social
fazendo com que numa sociedade multiétnica o discurso se que tem o novo como um valor destacado. Talvez, por isso, as
caracterize pelo afrocentrismo. Em parte, é por isso que os estratégias de reconhecimento do novo negro, da nova mulher e
racistas encontram farto material para acusar o discurso antí- do novo consumidor apresentem alguns aspectos semelhantes.
racista de racismo às avessas e faz com que os negros brasi- Os três segmentos - cada um à sua maneira - represen-
leiros simpáticos à diversidade se sintam excluídos pelo ex- .tam setores marginalizados no sistema de forças da sociedade
cesso de centralização desse discurso. brasileira. O discurso do novo, no entanto, enfatiza a mudan-
O carãter multiétnico de nossa sociedade coloca em xe- ça desse quadro. Dos três segmentos, o do consumidor parece
que os discursos etnocêntricos mesmo quando se impõem, como obter resultados mais visíveis, na medida em que é reconheci-
foi o caso do eurocentrismo. As contestações são inevitáveis, do como peça-chave para o funcionamento do mercado capi-
ora sob a forma organizada de discursos de intelectuais e ar- talista. O novo consumidor ultrapassa a antiga relação que o
tistas, ora sob a constante elaboração discursiva dos meios situava apenas como elo final da cadeia de produção. O perfil
populares. O problema não reside isoladamente na necessida- do novo consumidor procura revelar um sujeito com senso
de de elaborar a contestação ao etnocentrismo. mas sobretudo crítico e competência para dialogar com os componentes das
na dificuldade de divulgar essa contestação. cadeias de produção e difusão dos bens de consumo.
A apresentação do discurso do novo passa, necessaria- O segmento das mulheres - apesar das contradições que
mente, pela via utópica, uma vez que se trata de confrontar afetam os discursos sobre sua inserção no mercado de traba-
uma realidade dada com outra que se abre para os projetas lho e seus vínculos com a vida familiar - tem avançado na
de transformação. Nesse sentido, pode-se dizer que o discur- contestação dos valores impostos pela sociedade patriarcal.
50 de elaboração da nova imagem do negro brasileiro se sus- Isso significa dizer que o discurso da nova mulher inclui a
tenta com argumentos de tendência utópica. Em seu conjun- conquista de direitos no mercado de trabalho, bem como a
to, esses argumentos dizem respeito a duas faces de raciocí- manutenção do respeito aos seus caracteres particulares re-
nio que se complementam: a negação do status quo e a cons- lacionados à feminilidade, à organização da família e à par-
trução de outra imagem para o negro. ticipação, nos setores políticos, económicos e culturais.l"
O discurso do novo - para negar o status quo e, conse- O segmento dos negros também vem ganhando espaços
qüentemente, a imagem do negro que ele estimula - se orga- na sociedade brasileira, mas tem de adotar procedimentos es-
niza como elemento de confrontação a fim de não compactuar pecíficos. O primeiro deles consiste em reconstruir para os ne-
com as fórmulas discursivas que reíficavam o negro brasilei- gros a condição de pessoa que lhes foi retirada no período
ro. Por isso, o discurso do novo se constitui como prática escravista. Esse passo é importante, pois as conseqüências do
social que abrange o trabalho, a família, a escola, os meios processo de reificaçâo se estendem desde o passado até os
de comunicação - todos, enfim, considerados como a reali- dias atuais. O segundo procedimento tem por objetivo caracte-
dade a ser transformada. rizar a existência e a prática do racismo na sociedade brasi-
A construção de outra imagem do negro brasileiro im- leira, historicamente saudada como exemplo de convivência
plica, contudo, a relação com a imagem elaborada pelo etatus entre os diferentes grupos étnicos.
quo, numa perspectiva que evidencia a sua rejeição. Por ou-
tro lado, se insere entre outros discursos sobre o novo veicu-
132 Segundo Gilles Lipovestky, "a terceira mulher é dona de seu corpo c,
lados pela mídia, tais como o da nova mulher ou do novo portanto, de seu futuro," lN: Ascânio Salemc, "Um retrato da 'terceira
consumidor. Como se percebe, o discurso do novo não é uma mulher'", O Globol tvíunâo. Rio de Janeiro, Domíngo, 28/12/97, p.37.

162 163
o discurso visual, que estamos considerando para análi- que transforma os negros marginalizados de hoje em cida-
se, se desenvolve.a partir da relação entre a proposta de uma dãos críticos do futuro. Para realizar essa passagem, o proje-
°
nova imagem do negro e status quo que forneceu recursos to utópico destaca a necessidade de os negros acreditarem
para estabelecer a imagem do negro reificado. Essa relação em suas capacidades pessoais, investindo em si mesmos e
implica rejeitar e, ao mesmo tempo, adotar aspectos da antiga confrontando as restrições impostas pelas atitudes discri-
imagem. Para compreender essa contradição é necessário ob- minatórias. Em geral, para constituir esse argumento; o dis-
°
servar que discurso da nova imagem do negro circula atra- curso da nova imagem vem acompanhado de depoimentos
vés dos meios de comunicação de massa, tornando-se, por isso, relativos à história de vida do povo negro. Observa-se a opo-
acessível a um público extenso, formado por diferentes grupos sição estabelecida entre o negro de antes (anônimo, margi-
de etnias, gêneros e faixas socioeconômicas. nalizedo étnica, política e economicamente) e o negro que
O projeto de construção de uma nova imagem dos ne- virá-a-ser (reconhecido, em melhor condição financeira, inte-
gros pode ser apreendido como elaboração ideológica que ragindo com indivíduos de classes sociais diferenciadas).
interage com outras formulações ideológicas; alimentando um Para flexibilizar a rigidez desse protótipo, a nova ima-
campo de tensões sociais. Em outras palavras, não se trat.a gem destaca também a ação do negro bem-sucedido que luta
somente de construir e afirmar uma nova imagem mas, SI- para não perder os vínculos com as pessoas de seu universo
multaneamente, de reconhecer quais são os defensores e os social de origem. Procura-se demonstrar que esse novo ne-
adversários dessa nova imagem e de que maneira ela sugere gro, ciente das dificuldades que enfrentou, retorna às origens
algo realmente novo ou apenas reveste com a capa do novo para auxiliar os semelhantes que não conseguiram ou não
as antigas representações. puderam fazer o mesmo percurso que ele. 133
No momento, não pretendemos analisar as linhas de A formulação do discurso do novo tem gerado um tipo
recepção do discurso visual que realçá o ーイセェ・Nエ de nova セ 。ᆳ de situação em que a negação de certos estereótipos se dá a
gem dos negros brasileiros. Como etapa InICIal da análise, partir de outros estereótipos. Isso ocorre na medida em que o
desejamos entender a formulação desse discurso, levando ・ セ material ideológico empregado para confrontar o status qLIO
conta que ele tenta rejeitar o discurso, visual do ョ・ァセッ rei- procede, muitas vezes, dos meios de formação e difusão per-
ficado, tal como ocorreu nos anúncios de escravos fugidos e tencentes ao próprio etatus quo. É interessante observar que
nas carfes de visites. A nova imagem trabalha no intuito de o pensamento patriarcal e mercantilista que fundamentou a
ultrapassar a reificação (negro objeto), 'propondo-s.e a イ・エセᆳ elaboração do negro objeto reaparece, também, no pensa-
tar o ser social (negro cidadão) em atividades relacionadas a 'menta da burguesia capitalista brasileira. Evidentemente
sua realização pessoal e à do grupo ao qual pertence. não se trata de uma transposição ipsis literis, mas de uma
A retórica da nova imagem estimula a afirmação 、セウ negociação entre o patriarcalismo decadente e a nova bur-
capacidades individuais dos negros, considerando. as contn- guesia em ascensão, que tem como resultado a manutenção
buições que estes deram à formação e desenvolvimento da de uma ordem social profundamente hierarquizada.'>
sociedade brasileira. Para superar a antiga imagem do negro
objeto - manipulado pelo poder escravista e limitado em suas
aspirações pessoais - ーイッ」オ。Mセ・ e.nfatizar a ゥュセァ・ do ne-" 133Revista Raça Brasil, Rio de Janeiro, ano 4, número 29: "Famosos e genero-
gro cidadão, senhor de seus ーイッ ョセウ empreendimentos, que sos", 1999, p. 3441.
assume posições de combate ao racismo. BlJoão Luís Ribeiro Fragoso, Homens de grossa aventura, Rio de Janeiro, 1992
demonstra as relações entre as formas de acumulação de capital e o mode-
A afirmação do sucesso pessoal é uma evidência do lo social escravísta. O autor chama a atenção para a existência no período
discurso utópico através do qual se lança mão do argumento colonial "de um mercado doméstico e de uma elite residente de negocian-

164 165

M⦅Nセ
A relação proporcional senhor: escravo / patrão: operário 'atleta e pelo negro-artista - personagens consonantes com a
aponta para uma mudança de nomeação dos atares, da mol- ordem social burguesa e capitalista.
dura de valores e de formas de produção econômica da socie- Numa perspectiva estrutural, verifica-se que o pro-
dade. Indica também que as negociações entre os atares se cesso de reificação não foi alterado de maneira profunda.
resolvem dentro de parâmetros políticos diferenciados: no Porém, o modo de relacionamento com O processo modifi-
primeiro caso entre homens livres e escravos, no segundo entre cou-se. Apesar da contradição, nota-se uma tendência que
homens livres. Em cada parâmetro, os atares submetidos lan- sustenta a reificação como fato negativo, embora admita um
çam mão de métodos específicos, como a formação de tipo de reificação como estratégia de crítica social.
quilombos para escravos fugidos e de sindicatos para traba- O negro objeto do escravismo - reificação negativa -
lhadores organizados, respectivamente. foi constituído como discurso de afirmação de uma socieda-
A especificidade das negociações articuladas em decor- de que insistiu na hierarquização do trabalho e das relações
rência das diferentes molduras sociais (sociedade escravísta e étnicas a fim de restringir as ações de negros, índios, mesti-
sociedade de homens livres) não invalida a possibilidade de ços e pobres em geral. A elite brasileira privilegiou a ascen-
que os modos de distribuição de poder, atrelados a uma or- dência branca dos indivíduos, bem como sua condição de
dem hierárquica, sejam prolongados sem sofrer alterações sujeitos favorecidos política e economicamente. A contra-
drásticas. Veja-se que o operário subordinado às regras da partida da visibilidade atribuída a esses sujeitos foi a restri-
exploração capitalista, numa perspectiva estrutural, representa ção das intervenções sociais de outros grupos étnicos, em es-
o duplo do escravo submetido à lógica de exploração do regi- pedal dos negros e seus descendentes.
me escravista. Cada um desses atares - dentro de sua moldura Por outro lado, o discurso sobre o novo explora os este-
social - foi reduzido à condição de objeto para ser manipula- reótipos - reificação como crítica social.> como estratégia de
do em nome de sistemas políticos e ordens socioeconômicas afirmação da auto-estima dos negros. Nesse aspecto, a ima-
específicas. gem do novo negro se restringe aos negros bem-sucedidos
A contradição do discurso do novo emerge no instante como atletas, artistas, líderes políticos, top modeís - enfim,
em que a crítica ao negro objeto - fruto do pensamento patriar- negros que ascendem ao padrão social da classe média ou
cal e depois capitalista - assimila recursos dessas mesmas linhas alta, apesar de suas origens sociais modestas.
de pensamento. De outro modo, podemos considerar que a pro- É interessante observar as contradições que atravessam o
dução de estereótipos - responsável pela antiga imagem do discurso do novo. A primeira surge na medida em que a
negro - tem sido confrontada com a produção de outros es- reificação é utilizada como argumento para evidenciar aspec-
tereótipos, agora interpretados como a nova imagem do ne- tos positivos dos negros. Em vista disso, a auto-estima e a iden-
gro. O negro objeto do período escravlsta representado pelo tidade dos negros se assentam sobre bases opostas às noções de
escravo fugitivo, pelo escravo-máquina-de-trabalho passa a auto-estima e identidade, isto é, na medida em que toda reifícação
ter como parceiro o negro objeto representado pelo negro- se constitui como processo de esvaziamento das qualidades
i definidoras do sujeito e de suas heranças socioculturais.
A segunda contradição se explicita quando o horizon-
tes assentada numa acumulação mercantil interna." (p. 253). Isso evidencia te de auto-estima e identidade dos negros esté.defínídc de
a relação entre pensamento escravista e mercantilista, petncercal e burguês, acordo com padrões préestabelecidos pela sociedade burguesa
respectivamente, permitindo a eção de um tipo de empresário "inserido em
uma realidade onde a acumulação mercantil aparece subordinada à
e capitalista. Mesmo que seja novo para os negros, esse pa-
recorrência de uma sociedade pré-capitalista." (Op. cit., p. 284). drão se configura como estereótipo pois enfatiza a importân-

166 167
ii
:1
;j
cia de uma representação singular para os negros, contras- ii, dade dos negros, principalmente se não estabelece a crítica das
tando com a ree Iidade onde os negros existem como 'I linhas de pensamento que lhe deram origem.
H
!1
pluralidade individual, coletiva, estética, ideológica etc. Apesar disso, o discurso de elaboração da nova ima-
Na terceira contradição, o discurso do novo contesta a gem não pode ser desprezado como fato de ressonância so-
imagem antiga do negro, considerando-a estereotipada, mas, cial, aceito entre vários segmentos da população negra e
simultaneamente, se constitui como um proponente de este- , nãonegra. Estamos diante de um discurso com orientações
reótipos. O aspecto mais complexo dessa 」ッョエイ。_ゥ￧セッL
entanto, se evidencia quando o novo nega a sua propna con-
11.0 ,
H
ideológicas explícitas - o que já evidencia uma prática social
importante - e, além disso, diante da aplicação desse discur-
dição de estereótipo e tenta se impor como proposta de trens- so - o que demonstra o aguçamento da prática social onde o
formação. Por isso, ele assume um caráter de verdade que se dito é o vivido e ambos se justificam como experiências coe-
procura legitimar através de uma estratégia de イ・ー エセ￧ ̄ッ - rentes e necessárias. Em síntese, o discurso do novo indica o
técnica empregada na elaboração dos antigos estereótipos. que os negros podem ser. Ao aceitar esse horizonte, os ne-
Assim, contra os antigos slogans "negro de alma bran- gros lhe atribuem o sentido de um projeto de vida pessoal e
ca", "negro, se não suja na entrada suja na saída" e "negro coletiva. Tem-se, portanto, a proposta da utopia que estimu-
do cabelo duro" são apresentados, corno proposta do nova, la os negros a buscarem a ascensão social, exibindo-lhes o
os slogans "negro é lindo", "o negro que chegou lá (venceu as
barreiras sociais)" e "negro tem auto-estima". A esses enun- I painel de possibilidades consideradas mais relevantes, isto é,
o caminho em que a ascensão passa pelo desejo de tornar-se
ciados juntam-se argumentos como: "os negros :,ão apare- atleta, artista ou top model.
ciam de forma positiva na mídia, mas agora tem espaço O projeto da nova imagem - como os projetas utópicos,
como atletas e artistas. Veja-se a aceitação pública de negros f em geral - abre perspectivas para o sujeito em relação ao seu
como Pelé, Milton Nascimento e Zezé Mota ...", São argumen- passado, pois o incita a procurar no futuro uma situação me-
tos gerais, divulgados como voz consensual, que procura lhor do que a vivida anteriormente. Mas, por outro lado, res-
minimizar as contradições do novo. tringe as perspectivas em relação ao futuro, pois estabelece o
A reiteração desses slogans e argumentos tem c.omo 」ッセ ponto de chegada para o percurso realizado pelo sujeito. Isso
sequência O esvaziamento セ・ seu イZッセ・ョ」ゥ。ャ de セ・ョィセッウL POlS implica perceber o futuro como tempo de um sentido já deli-
os transforma em referências genencas que nao atingem o neado, o que, em outras palavras, reduz o alcance da experi-
cerne das questões complexas que enunciam. Além disso, ência de cantatas com outros sentidos aberta para o sujeito
retira-lhes a dinamicidade que os situa como "uma" possibi- quando este contestou o sentido absoluto representado pelo
lidade social entre outras, a ser relacionada aos negros bra- passado.
sileiros e os impõe como um valor genérico que identifica to- Segundo a rota utópica da nova imagem, o futuro do
dos os negros. De acordo com essa perspectiva do novo, ser sujeito negro está delineado por um conjunto de valores e
negro significa sentir-se belo, alcançar sucesso pessoal e gos- procedimentos que espelham a sociedade burguesa e capita-
tar de si mesmo. lista. É pertinente pensar esse ponto de chegada como "uma
Contudo, do ponto de vista das inter-relações ウッ」ゥ。セL es- セ opção" de projeto utópico para os negros marginalizados.
ses traços isoladamente não garantem uma articulação de Iden- Porém, não se pode olvidar dois fatos relevantes: primeiro, trata-
tidade que permita ao sujeito conquistar posições estratégi,:as se de "uma opção" para o futuro dos negros que se identifi-
no jogo social. Isso indica que o novo pode torna::-se エ。セ「・ cam com essa linha de pensamento, e não va opção ideal" que I
uma força que condiciona o processo de elaboraçao de ídentí- atenda aos desejos de todos os negros. Segundo, o horizonte

168 169
burguês e. capitalista vislumbrado como opção utópica é, em 'como é o caso da Revista Black People - também se defrontam
larga medida, o horizonte que no passado e no presente ofere- com as dificuldades de rejeitar as ideologias opressoras e, ao
ceu elementos para a marginalização dos negros. mesmo tempo, estabelecerem uma orientação ideológica al-
Essa contradição, portanto, esvazia a radicalidade do ternativa. Um exemplo é a tentativa de criticar o estereótipo
discurso sobre a nova imagem do negro brasileiro e nos leva da mulher como objeto de desejo através da proposição de
a questioná-la sob dois ângulos: um que revela a falência do outro estereótipo, isto é, o do "homem fetíche'l.!"
novo como utopia, e outro que o situa como evento relativo Diante das contradições suscitadas pelo discurso da
na realidade social. nova imagem do negro brasileiro, é interessante buscar na
. A falência do novo como projeto utópico pode ser entre- representação visual os efeitos dessas contradições. O apelo
vista no resultado que se espera para a luta de contestação dos das representações visuais, muitas vezes, amortece as ímpli-
cações ideológicas que fundaram a imagem mas, nem por
antig?s estereótipos: Ao ヲセコ・イ do modelo burguês e capitalista
o ィッイセコNョエ・ de utopia, o discurso sobre a nova imagem do ne- isso, tais implicações deixam de atuar na constituição dos
gro dissimula o aspecto conservador que está em sua base de sentidos da imagem. Para realizar a análise desses aspectos
levaremos em conta as imagens de negros estampadas nas
s:lstentação. Isto é, o novo se deixa influenciar pelas insinua-
capas das Revistas Manchete (1988) e Veja (1998); Veja (1988)
çoes de um modelo excludente e individualista, que se estabe-
e Black People (s/d) e, finalmente, Raça Brasil (1997).
leceu a partir da, ィゥ・イ。セアオコ￧ ̄ッ social do trabalho e do capi-
tal. Portanto, a orientação burguesa e capitalista do novo aponta Os dados analisados cobrem o período de uma década,
pa:a,o fato de que alguns negros poderão atingir O horizonte As publicações foram agrupadas de modo a levarmos em
utópico se se adequarem às condições que lhes permitam tor- conta o tipo de postura ideológica que identifica a reiteração
nar-se atletas, artistas, empresários. O novo, nesse caso res- de estereótipos e que mostra a fratura do discurso sobre a
エセョァ・ o ー・イ」セョエオ。ャ de indivíduos considerados aptos à 。セ」・ョᆳ nova imagem do negro brasileiro,
sao numa sociedade em que a maioria da população sobrevive A presença destacada de negros em capas de revistas
em condições precárias.. de circulação nacional não é fato tão recente. No entanto,
Por conta disso, há que se indagar sobre o valor absolu- verifica-se que essa presença sempre foi restrita a determina-
t? do novo. セ・ ele não está isento de apropriar-se de caracterís- dos agentes negros, especialmente os atletas, A imagem mais
ticas dos antigos modelos sociais, torna-se necessário pensá-lo constante, sem dúvida, é a de Pelé. Nos últimos anos perce-
como um valor relativo. A nova imagem do negro brasileiro, be-se uma lenta mudança, com a inserção de imagens de
portanto, não é "a imagem" dos negros como pretendemex- negros em revistas de esportes e modas, realçando a expecta-
pressar publicações direcionadas à população negra. Tal é o tiva de ascensão social proporcionada pelas profissões de atle-
exemplo da Revista Raça Brasil, que em seu slogan _ nA Revis- ta e top model.
ta dos, negros brasileiros"- procura traduzir a idéia de que a A ausência de estudos estatísticos sobre esse fenômeno
nova 1.magem representa "o projeto" capaz de atender às ・クセ dificulta a emissão de opiniões mais agudas. Contudo, é pos-
pectattves da população negra como um todo, ' sível detectar uma tendência editorial que reserva certos es-
Não se trata aqui de criticar gratuitamente uma ou ou- paços para a imagem dos negros de modo que não se afirma
tra ーセ「ャゥ」。￧ ̄ッ mas, acima de tudo, de tentar compreender a existência da discriminação mas também não se admite a
as ッセャ・ョエ。￧￵ウ ideológicas que elas contestam ou ajudam a
confirmar. Outras publicações voltadas para a população
ョ・ァイセ - em que pese a preocupação política mais evidente, 135Matéria de capa da Revista BlackPeople, Tio de Janeiro, edição 8, número 2.

170 171
participação efetiva dos negros como produtores de sentido o ョセァイッ ,exposto na imagem é, antes de tudo, um sujeito sub-
através de suas imagens. Atento a esse procedimento Muniz metido as regras de composição do produtor da imagem. O
Sodrê comenta: ' ponto comum entre as revistas direcionadas para o público
negro スrセ￧。 Brasil e Black People) e as outras, direcionadas a
"Há 'algo. aí que se poderia chamar de know-how norte- um público sem especificação étnica (Manchete e Veja) é a
americano na gestão da imagem empresarial: reserva-se um ,elaboração de uma imagem de negros bem-sucedidos, recor-
lugar único para uma 'colored'. à maneira do sistema de
tados no オセゥカ・イウッ dos atletas, artistas, políticos e top models.
quotas, produzindo-se um simulacro profissional de
democracia racial."!" _ Essa Imag;rr: se constitui de poses que reiteram um P'"
drao_ de 'p0se,.s típicas da aristocracia e da burguesia em as-
」・ョウセッL Isto e, procura-se ressaltar um conjunto de sujeitos
. . セウ。 ーイ・ウョ￧セ permitida dos negros ocorre em espaços
disciplinados pelo interesse empresarial, que leva em conta fi r:umdos em torno de um sujeito mais destacado. Veja-se a
possibilidade de o público aceitar ou rejeitar o discurso vi- Flg_ura .19: ao redor de Pelé (atleta de renome indiscutível)
sual apresentado. A imagem do novo negro - considerado estao dispostos os artistas (Zezé Mota e Djavan), a represen-
em sua boa aparência e mostrado como exemplo de sucesso エ。セ ・ dos Nョ・ァイセウ na vida política (Benedita da Silva) e a ex-
pessoal- possui um campo de sentido delineado pelo espaço MISS Brasil, Deise Nunes. A forma dessa foto apresenta níti-
que lhe é destinado. Nesse caso, podemos tomar como refe- da semelhança com as fotografias em que se destacava a
rência a argumentação de Foucault ao ressaltar o fato de que grande família articulada à volta do chefe patriarcal ou do
」ッュ・イセゥ。ョエ・ bem-sucedido com os frutos de seu trabalho.t'"
a "disciplina organiza um espaço analítico't.F" Em suma, o
lugar dos negros nas capas de revistas é disciplinar, isto é, E interessante lembrar que o discurso sobre a nova ima-
indica quem é o negro de acordo com um ponto de vista que gem do negro possui um conteúdo utópico, ou seja, indica o
pretende se tornar modelo. modelo de imagem que os negros podem desejar, depois de
O sinal mais evidente dessa estratégia é o processo de romperem com os estereótipos antigos. Daí decorrem, como
construção da pose que, no dizer de Barthes. é o elemento afirmamos anteriormente, o seu traço de conservadorismo
responsável pela fundação da "natureza da Potogrefía.:"w (que r,:itera o ュッセ・ャ burguês e capitalista de imagem) e de
A pose é, em si mesma, uma proposição de sentido na medi- exclusao .(que evidencia a possibilidade de apenas alguns
da em se opta pelo destaque de um ou outro aspecto do sujei- negros atingirem o ápice da imagem utópica).
to fotografado. Além disso, a pose é composta pelo jogo de A 。ョ£セゥウ・ das capas das Revistas Manchete/1988 (Pigu-
luzes e formas que constituem a fotografia, aspectos que re- ra 19) e VeJa/1998 (Figura 20) explicita de modo contun-
velam uma linha de sentido, em detrimento de outras que dent.e esses aspectos. A disposição de pose das duas capas é

II
permanecem em potencial. praticamente a mesma, mas a Revista Veja acrescenta um
A imagem do novo negro resulta da produção de um detalhe, isto é, uma capa dupla que permite mostrar um nú-
mero maior de pessoas negras. Esse detalhe é relevante, uma
texto visual, que seleciona e combina elementos a fim de 。ーイ・セ I vez que a intenção da matéria é demonstrar o aumento do
sentar ao público um determinado sentido. Em função disso,
número de negros que, segundo o texto da capa, passaram
"do preconceito ao sucesso". Apesar desse traço novo na pro-
136 Muniz Sodré, "Sobre lmprensa negra", ln LU11ll1Ja, JUlZ de Fora, UFJF/
Pacom, 1998, p.32.
m Michel Foucault, Vigia,. e punir, Petrópolis, 1983, p. 131.
13BRoland Barthes, op. cit., 1984, p. 117.
iI "'p,," a foto típka da família patriarcal ver Ana M,,,, Mauad, "Imagem e auto-
nnagcm do Segundo Reinado", ln: Alcncastro (org.), op. cit., 1977, p. 20?

172 173

_ _'1\'_ _ _ _......,;,il,.is_:s
ii I$4iQP i$ C. h S;4" PC=4 $i ai se:aa; 'Si "#;; 4
-----J

"
gramação gráfica, a capa da Revista insiste no esquema de , vfduo central e circundantes, mas apelam para outra forma
apresentar um sujeito centralizado, tendo à sua volta outros modelar, ou seja, aquela empregada pelos serviços de inves-
representantes bem sucedidos. tigação policial. As capas, tal como os quadros de identifica-
A comparação entre as capas sugere uma ampliação ção da polícia, exibem vários rostos, em tamanho caracterís-
da participação dos negros nos espaços da grande mfdia: em tico de 3X4. Nos dois casos, a estrutura principal de sentido
1988, a Manchete oferece ao público a imagem de cinco ne- , se organiza a partir da necessidade de realizar algum tipo de
gros que atingiram o sucesso, ao passo que a Veja teve de identificação. A polícia apresenta um quadro de rostos com
fazer capa dupla para exibir, dez anos depois, outros 17 ne- o objetivo de oferecer condições a determinado sujeito para
gros bem-situados socialmente. identificar um criminoso ou um supeito de crime. A série de
Contudo, a nova imagem do negro não escapa às suas imagens destaca aspectos que singularizam o suspeito, de
contradições. Uma vez mais o horizonte utópico está marcado, modo a propor uma espécie de história do indivíduo através
demonstrando que a linha de ascensão social permanece: de sua imagem. Ao observar a série de rostos, a vítima reali-
delineada pelas mesmas atívidades. Num período de dez anos, za uma arqueologia de traços físicos e psicológicos do Outro,
verifica-se que os negros que desejam ser bem-sucedidos conti- cuja condição de suspeito está determinada a priori pelo es-
nuamtendo que optar pelas mesmas atívidades: a Manchete traz
paço disciplinar em que se encontra.
o atleta (Pelé). a atriz/ cantora (Zezé Mota), o cantor (Djavan),
a modelo (Deíse Nunes), a líder política (Benedita da Silva). As capas da Veja e da Black People insinuam uma estru-
A Veja reitera esse paradigma com os atletas (Pipo- tura de sentido semelhante, retirando, é claro, a condição de
ca e Marta/basquete; Dinei, Marcellnho, Capitão e Cléber/ suspeito que recai sobre o indivíduo representado nos qua-
futebol), as atrtzes (Zezé Mota, Camila Pitanga, Cinthya Ra- dros de identificação policial. O aspecto da identificação, sim,
quel: Taís Araújo), o ator (Norton Nascimento), os cantores predomina no conjunto de imagens das revistas. A Veja mes-
(Netinho, Chrigor, Luís Carlos), eis modelos (Deise Nunes e cla personagens conhecidos do grande público - novamente
Sacramento) e o desembargador (Gilberto Fernandes). os protótipos do atleta (Pelé, Didi), da atriz (Zezé Mota), do
Observando os dois quadros, apenas as atividades de atar (Grande Otelo) e do cantor (Gilberto Gil) - com imagens
liderança política (deputada federal) e de justiça (desem- dos cidadãos comuns, que podem ser identificados por ou-
bargador) parecem soar como algo "novo" em meio à repe- tras atividades profissionais (o policial, o operário), faixas
tição de atívídades reservadas como horizonte utópico dos etárias (os idosos e os jovens) e gêneros (mulheres e homens).
negros em ascensão social. Nas duas edições, o que chama a Essa composição problematiza o estereótipo de uma
atenção não é a repetição dos mesmos rostos, mas da mesma nova imagem proposta como utopia centrada apenas em
estrutura de sentido que circunscreve a idéia da nova ima- uma estrutura de sentido.ou seja, do horizonte burguês e
gem a determinados aspectos da vida social. Os 'retratos do capi-talista. Antes, exibe o contraste que se estabelece entre
mesmo esquema de sentido excluem os negros que não se esse horizonte de negros bem sucedidos - mas em menor
identificam com essa proposta de nova imagem. Em outras número- e o de negros situados em condições sociais
palavras, excluem a maior parte da população brasileira, desfavorecidas - estes, sim, em maior número. Q" contraste
negra e não negra, pois o espaço das atividades indicadas se amplia à medida em que o propósito da identificação de-
como horizonte utópico é restrito e seletívo. monstra uma diversidade de imagens dos negros brasilei-
As edições das Revistas Veja e BlackPeople (Figuras 21 e ros, ao contrário da unidade pretendida pelo projeto utópi-
22, respectivamente) evitam a forma da fotografia com indi- co da nova imagem.
174 175
I
A Black People reitera o princípio da identificação de
uma imagem do negro que se sustenta a partir do espaço em I gro: uma raça ou uma cor? e "Diadema: a violência nossa de
cada dia". Os dois assuntos suscitam uma análise crítica da
que é apresentada. Isto é, a nova imagem possui um sentido
baseado no fato de ocupar o espaço específico de uma publi-
cação para negros. O leitor negro da revista procura nela os
assuntos que o afetam diretamente. daí a necessidade de iden-
I realidade brasileira, pois dizem respeito aos esquemas de
hierarquização do poder político e econômico que interfe-
rem nas possibilidades de participação. dos cidadãos negros
e nãonegros na vida do País. Apesar da complexidade, que
:1 demanda grande espaço para discussão, os temas estão su-
tificar-se também com as imagens que ela veicula. Por seu I
lado, a publicação procura atender a essa demanda e exibe I bordinados à proposta da nova imagem, que domina ampla-
um quadro de rostos que revelam uma certa padronização mente o espaço da capa.
para o perfil do negro desejado. Essa é a estratégia adotada pela Raça Brasil na edição
Ao contrério da capa da Veja, a Black People não mostra a
mescla de negros famosos e anónimos. Aposta na apresentação
de negros que circulam fora da grande mídia, "fato que os colo-
t comemorativa de seu primeiro ano de publicação (Figura 23).
O espaço disciplinar da capa delineia a apresentação da nova
imagem, cuja forma fotográfica retoma aquela do sujeito cen-
ca, teoricamente, mais próximos dos cidadãos negros comuns. tral e seus circundantes. Reaparece a estrutura de sentido
Mas, como frisamos anteriormente, a pose - tanto quanto- o con- que privilegia certas atividades como horizonte utópico: a
junto da fotografia - resulta de um processo de elaboração atriz ao centro (Zezé Mota), os demais artistas (Camila
discursiva, de tal maneira que os negros apresentados como ci- Pitanga, Isabel Pillardis, Taís Araújo, Milton Gonçalves) e os
dadãos COmuns são, na verdade, uma proposta utópica daqui- íop medeie (Luzia Avelar, João Gomes, Erika Rosa).
lo que os negros brasileiros podem vir-a-ser. A estrutura de sentido revela a mesma idéia de um con-
É importante notar que os vinte 'rostos são nítidos - ao junto de negros - nove apresentados na capa - alegres e bem-
contrário da capa da Veja, onde as letras escondem várias sucedidos que são apresentados como exemplos para todos os
expressões faciais - como se pretendessem evidenciar o Per- negros brasileiros. Tal perspectiva é reforçada pela série de ma-
fil do negro caracterizado pela beleza, juventude e alegria. térias anunciadas no rodapé da capa, destacando-se, entre elas,
Além disso, os rostos femininos e masculinos estão dispostos as seguintes: liA luta pela terra nos quilombos", "Aumente sua
de maneira alternada - exceto na terceira linha horizontal, auto-estima", "Emagreça até 6 quilos com a dieta dos pontos".
em que aparecem dois rostos femininos seguidos. Essa dispo- A primeira matéria sugere um assunto relevante para
sição sugere um equilíbrio ideológico que reivindica os mes- a compreensão dos processos de resistência dos ancestrais
mos direitos para homens e mulheres. negros, mas é, imediatamente suplantada pelo reforço do
A elaboração da nova imagem nesse caso desvia, em par- discurso de auto-estima. A sequência das matérias demons-
te, do padrão burguês e capitalista proposto pela Manchete/198B tra uma inter-relação semântica de modo que a construção
e pela Veja/ 1998. Contudo, está ameaçado de se tornar tam- da auto-estima está relacionada à adoção dos padrões de
bém um modelo excludente ao investir nos aspectos da juven- comportamento da sociedade burguesa. O horizonte utópi-
tude, alegria e beleza como pilares da auto-estima. Esses recur- co, portanto, está previamente demarcado. É evidente que
sos colocam em xeque a utopia da nova imagem, uma vez que Lセ ele pode atender às expectativas de determinados segmentos
foram explorados pelos discursos que geraram o estereótipo do da população negra brasileira, mas na condição de discurso
negro "sempre alegre," apesar de suas dificuldades. utópico, ele extrapola esses limites e se propõe como "o dis-
Vale observar o contraste entre a nova imagem sugerida curso" da identidade, tal como evidencia o slogan da publi-
e os temas que serão abordados nas matérias da Revista:Ne- cação (liA revista dos negros brasileiros"),

176 177
A 。ョセャゥ・ do projeto de elaboração da nova imagem do gros no passado. No entanto, essa euforia pelo futuro, mui-
negro brasileiro evidencia uma dupla reiteração: a da estru- tas vezes, esconde armadilhas - como vimos - que tornam o
エオセ。 セ・ produção d: sentidos - que contesta os estereótipos discurso do novo tão relativo quanto o antigo discurso de
。セi ・ウ da ・ャ。セッイ。￧ ッ de outros estereótipos - e a das refe- reíficação.
rencras pessoais ." que sempre coloca diante do público as A questão que então se coloca é: existem possibilidades
ュ・セ。ウ personalidades do meio esportivo ou artístico. Nos- de vislumbrar outros horizontes para outras imagens dos
sa ャイZエセョ￧ ̄ não セ estabelecer críticas pessoais, ainda que a negros brasileiros, além do horizonte do novo constituído com
ー。イエQセi￧ッ social dos indivíduos revele suas orientações
ídeolôgicas. セ。 ッ que torna pertinente a análise de suas cp- a matéria-prima do pensamento burguês e capitalista? En-
çoes e estrategtas de atuação. Nosso objetivo foi compreen- tendemos que as contradições inerentes ao discurso do novo,
der a articulação da estrutura de produção de sentidos para por si mesmas, representam um estímulo à busca desses ou-
a nova Imagem セッ negro brasileiro, questão que, como vi- tros horizontes. Isso indica a ampliação dos debates em tor-
mos, envolveu sistematicamente a trajetária de indivíduos no da relações étnicas no Brasil, de modo a considerá-las tam-
destacados na vida social. bém como elemento central dos processos de organização da
. Não insistimos nas referências pessoais como realidade sociedade. Não se trata, portanto, de um "problema" de ne-
Isolada, mas como componente de um processo a partir do gros ou de brancos, mas de uma realidade social, cuja di-
qual se 1?ode identificar uma estrutura de produção de senti- mensão étnica é atravessada por implicações políticas, eco-
、ッセN m。ャセ do que saber do sucesso pessoal dos esportistas ou nômicas e ideológicas.
ar,tlstas, tívemos セ preocupação de investigar a maneira atra- Além dos debates acerca dos aspectos físicos dos ne-
ves da アセャ。 a so,:ledade organizou campos de sentido e espa- gros, o discurso sobre o novo incita à análise dos processos
ços de divulgação que estimulam os negros a desempenhar i de representação dos grupos e indivíduos, o que permite dis-
sempre as mesmas funções.

ra como N・ャ。「ッイセ￧。ッ
Nesse contex_to,.o 、ゥウセオッ da nova imagem se configu-
ideológica que se propõe a romper a
i
'I.
cutir as práticas sociais a partir das orientações ideológicas
que as constituem. Em suma, torna-se necessário detectar as
estruturas de produção de sentido que contribuem para com-
hegemonia do discurso de reificação dos negros brasileiros. preendermos a realidade dessa ou daquela maneira.
Apesar de sua intenção transformadora, o discurso do novo
se ergue a partir das linhas de pensamento que discrimina- No contexto contemporâneo, onde mil vozes se cru-
ram os negros, evidenciando, com isso uma série de contra- zam em diferentes processos de afirmação de identidade, a
di!õ.es: Mas a complexidade dessas contradições tem sido questão sobre as identidades dos negros brasileiros parece
minimizada na medida em que o conteúdo utópico do dis- não se resolver mais com uma receita pronta. Antes, ela se
curso do novo sugere aos indivíduos uma reserva de expec- impõe como horizontes que desafiam a capacidade de or-
tativas favoráveis no futuro. Assim, interessa ao público sa- ganização dos grupos sociais, bem como a perspicácia da-
ber o que ele pode vir-a-ser, num esquema de apelo que faz queles que assumem a tarefa de veicular os discursos de
do passado uma mola de impulsão em direção ao futuro. afirmação de identidade. Em função disso, a realidade das
. O ?iscurso do .novo não propõe que se esqueça セ passa- relações étnicas - com suas implicações políticas, econômi-
do., セウエッ e certo: mas Investe no campo de possibilidades que o cas e ideológicas セ se apresenta também mima dimensão
sujeito pode VIslumbrar a partir do futuro. Daí o seu caráter comunicacional, indicando que é pertinente investigar as
ッエゥュ セエ。 e mesmo profético, que incita à construção de uma interferências da midia nos processos de elabcraçãc de iden-
::
nova imagem para opor-se àquela imagem reiflcada dos ne- tidades individuais e coletivas.
178 179
do negro brasileiro. Os espaços dessas representações são res-
tritos - se levada em conta a porcentagem de negros e seus
descendentes entre a população - e se caracterizam pela
reduplicação de estereótipos delineados historicamente. As-
sim, nos deparamos com representações geradas segundo
ideologias dominantes, que reduzem o negro às condições de
marginalidade social. 1012
No presente capítulo, realçamos a análise de alguns dos
mecanismos que atuam na produção das representações do
UM NÃO É TODOS negro na esfera pública. Levaremos em conta o percurso his-
tórico dessas representações divulgadas através de periódi-
cos e outros meios de fixação da imagem (fotografias e catá-
logos) nos séculos XIX e Xx, Dos periódicos do século passa-
"Ao responsável por isso, quem quer que seja, mando dizer do destacaremos a iconografia que ilustrava os anúncios de
que tenho um sexo e umnorne que é mais que um púcaro de fogo" fuga de escravos e as cartes de visites do fotógrafo Christiano
Ferreira Gullat 1411 [r. As referências contemporâneas procedem da Revista Raça
Brasil e de catálogos de vendas de produtos médicos.l"
Nossa hipótese é a de que as representações públicas
UMA HISTÓRIA COM HISTÓRIAS do negro não sofreram modificações expressivas no período
considerado, apesar de terem ocorrido substantivas mudan-
As representações do negro no imaginário brasileiro ças político-sociais no País, tais como a substituição do Impé-
percorrem um caminho que inclui a passagem dessas repre- rio pela República e a abolição do regime escravista.
sentações do domínio privado - com a participação de agen- Michel Foucault em As palavras e as coisas aponta os
aspectos de crise da representação, que decorre do distan-
tes da esfera familiar - para o público - através de agentes
ciamento entre a representação e a realidade a ser represen-
como a imprensa, as instituições religiosas e educacionais.
tada. Ao analisar o quadro "As meninas" de Velásquez; o
Na esfera familiar percebemos que a população, de um
autor observa que a representação "intenta, com efeito, re-
modo geral, tem sido empenhada na fixação e divulgação de
presentar-se a si mesma com todos os seus elementos" 144,
certas representações do negro, na maioria das vezes carac-
elidindo, desse modo, o sujeito inicial que deveria tornar visí-
terizadas por algum traço desviante. As heranças advíndas
vel na tela do pintor.
do passado escravista geraram em muitas famílias de negros
o desejo de apurar o sangue mediante a aceitação da ideolo-
gia de branqueamento.':"
142 Sobre a historicidade dos estereótipos ver Lilia Morltz Schwarcz, op. cit.,
Na esfera pública observamos a retraçãc da imprensai
das instituições religiosas e educacionais para atuar no senti- I 1987, p. 15

I
143 Para os anúncios de escravos consideramos Lilia M. Schwarcz, op. cit.:
do de criar significações alternativas para as representações Gilberto Freyre. op. cit.,1979. Para as cartes de visites ver Azevedo &
Líseovsky (orgs.j.op. cito 1988. Para o século XX: Revista Raça Brasil, São
Paulo, 1997, ,\110 2, números 13, 14 e 15; Histárias das copas do IJl1l11do, edição
HO Ferreira Gullar, Dentro da noite veloz, Rio de Janeiro,l979, P: 103. especial patrocinada pela indústria de medicamentos Glaxo, s/do
iu Neusa Santos Souza, op. cit., 1983, p. 28. 144 Michel Foucault, As palavras eas coisas, Lisboa, s/d., p.33.

180 181
Poucault observa também que, em fins do século XVIII, Novamente essa crise não tangenciou as representa-
o pensamento de Adam Smith, dos primeiros filólogos e de ções do negro brasileiro, uma vez que o poder de auto-
Lamarck interferiu nas formas de compreensão da represen- referencialidade está subordinado ao princípio da represen-
tação. Desse período em diante, ela "perdeu o poder de fun- tação que usa o negro como objeto - ou sujeito - indispensé-
dar a partir de si mesma, no seu desenrolar e pelo jogo que fi vel. Isso pode ser observado no fato de que a expectativa em
duplica a si mesma, os nexos que uniam os seus diversos ele- -relação ao negro representado se desenvolve dentro de um
mentos. "145 repertório restrito - ou de estereótipos - , acusando a pouca
As reflexões de Foucault nos permitem pensar em, pelo permeabilidade dessa representação às interpretações ideo-
menos, duas instâncias de crise da representação. A primeira, lógicas. Ou, por outro lado, denuncia a permeabilidade des-
perceptível na análise do quadro de Velásquez, nos coloca di- sa representação a uma Única linha de interpretação ideoló-
ante da possibilidade de a representação afastar-se daquilo que, gica, que impõe imagens absolutas do negro brasileiro.
até então, tínhamos tomado como sujeito. A representação, Em vista disso, torna-se relevante compreender o per-
ao tornar-se auto-referencial, mostra a crise do antigo sistema curso histórico através do qual as representações do negro se
em que o sujeito era essencial para que a representação existis- cristalizaram e se mantiveram, aparentemente intocadas,
se. Tem-se, portanto, a relativização do poder de interferência apesar da crise que afetou o sistema de representações no
do sujeito na constituição da representação. ocidente. Por outro lado, se vivemos um período de larga di-
Mas essa crise da representação parece não ter atingi- fusão das imagens, é necessário observar, como Baudrillard,
do as formas de representação do negro brasileiro, na medi- que"a ditadura das imagens é uma ditadura irónica."!" Ou
da em que ele - reduzido à condição de objeto - continuou a seja, se as representações do negro na rrúdia reduplicam os
ser indispensável para a produção de sua representação. estereótipos antigos, há que se perguntar até que ponto se
Veremos o porquê desse fato durante a análise comparativa trata de uma simples reiteração ou de um outro processo de
das representações do negro nos séculos XIX e XX. saturação das imagens sob o qual se ocultam e se revelam
A outra instância de. crise da representação, decorren- novos significados sociais.
te da perda de poder para fundar os nexos de união entre
seus elementos, nos leva a considerar sua vulnerabilidade
diante das fontes ideológicas que atuam na sociedade. A re- ESPELHOS PARA NEGROS E BRANCOS
presentação é permeável às interpretações ideológicas que
estimulam mutações de seus sentidos, ainda que ela insista Uma visita ao século XIX nos coloca diante de um va-
na coesão de sua auto-referencialidade. Em outras palavras, riado quadro de representações impressas que se incorpora-
a representação é, por força de sua constituição, um proces- ram à vida de certa faixa das populações rurais e urbanas. A
so comunicativo que provoca os outros processos comunica- chegada de periódicos até as áreas rurais - em geral para o
tivos da sociedade, bem como se mostra sensível às provoca·. manuseio de grupos restritos de intelectuais, políticos e man-
ções que recebe deles. Desse modo, a representação não é a datários - e a sua crescente aceitação junto aos leitores urba-
comunicação resolvida, mas séries de comunicações que se nos contribuíram para a formação, lenta mas sólida; do há-
inter-relacionam na dinâmica social. bito de os indivíduos se depararem dia-a-dia com as repre-
sentações elaboradas a respeito de si mesmos e dos outros.

H5ldem, op. cit., p. 314.


146 Jean Baudrillard, A arteda desaparição, Rio de Janeiro, 1997, p. lOS.
182 183
Em relação aos negros, a mídia se mostrou, desde essa
época, como espaço de ambivalência. Nas páginas de jornais
e revistas os negros aparecem recortados segundo o olhar
i
,
"
iconografia do escravo fugitivo, com seus pertences às costas
- típica do século XIX. Num primeiro momento, essa imagem
expressa o desejo de uma sociedade ávida por determinar suas
discriminador da sociedade, ou seja, não ocupam os espaços linhas de valores, delineando os limites de quem atuava no
considerados "nobres" mas, em contraposição, aparecem com papel de sujeito - os senhores - e de quem deveria submeter-se
frequência naqueles outros espaços de marginalidade onde ao papel de objeto - os negros cativos.
eram anunciados os escravos para compra e venda, e se dava No entanto, essa imagem do negro fugitivo passou a ser
notícia de suas fugas e crimes. Fora desse espaço, o negro uma constante no imaginário nacional, mesmo quando se tra-
era abordado como objeto de curiosidade científica e subme- tava de representar o negro livre. A questão que se coloca,
tido às análises que frisavam o caráter de sua inferioridade então, é bastante complexa. Por um lado, é possível conside-
cultural e racial.!" rar que essa representação não é mais compatível com a socie-
Nesse sentido, a presença da imagem do negro na midia dade posterior à abolição, pois ocorreram mudanças que eli-
deve ser pensada em termos de quantidade e de qualidade. minaram, teoricamente, os papéis de senhores e escravos. Por
As representações dos negros se tornaram fato cotidiano em outro lado, a continuidade dessa representação denuncia a
periódicos e revistas do passado, levando de certa maneira a fragilidade das transformações que se deram na passagem do
urna saturação dessa presença. Tanto assim, que o público regime escravista para a sociedade .de homens livres.
leitor brasileiro deixou de experimentar o espanto ou a sur- A saturação das representações do negro congelou a
presa diante das imagens de um negro algemado pelas auto- abertura de outros possíveis campos de sentidos, de tal modo
ridades, ou de um negro morto em via pública, ou de uma que a reiteração do mesmo sentido favorece duas ordens de
mulata exibindo o corpo com largo sorriso. observação crítica: uma sobre as relações entre negros e bran-
Essas imagens parecem naturalizadas, corno se existis- cos na sociedade, outra sobre a ausência da crise na repre-
sem desde sempre no imaginário nacional: o negro objeto se sentação dos negros.
constituiu como a forma de representação mais divulgada A sociedade brasileira mudou a superfície das relações
entre nós. Diante disso, a reflexão de Baudrillard acerca da entre negros e brancos, mas não alterou drasticamente os
exposição obsessiva do corpo pode nos fornecer alguns ele- mecanismos de produção de sentidos acerca dessas relações.
mentos interessantes.Segundo o autor de A arte da desaparição, Assim, negros e brancos vivem em regime de falsa tolerân-
"depois da orgia e da liberação de todos os desejos passamos

,
cia, sendo limitados em seu desejo de estabelecer o diálogo a
para o transexual (...) Transexual no sentido de que isso nada partir do respeito às diferenças. Em termos étnicos, somos
tem a ver com a ilusão do desejo, mas com a hiper-realidade urna sociedade que sobrevive às custas de "desculpas" ou de
da ímagem."'" eufemismos: os negros são "morenos," os brancos ajudam
A presença do negro na midia nacional tem se caracteri- "seus afilhados de cor;" na mídia, sempre que há grupos de
zado pela saturação de uma certa forma de representação que, I
, pessoas em um comercial, pode-se notar a presença de "um"
sendo repetida em excesso, se mostra incapaz de estimular a negro e "um" asiático, numa espécie de justificativa de nos-
geração de novos sentidos. Como exemplo, podemos tomar a sa realidade multiétnica. Tais mecanismos, bastante sutis,
servem para amortecer as discussões em torno da ausência
dos negros nas reprcscntnções, ao mesmo tempo que reite-
ram a expectativa de que negros são representados como
147 Gomes & Pereira, op. cit., 1988, P: 42-54.
148 Baudrillard,op. cit., 1997, p.106. I exceção ou minoria.

BヲセC
185
184

"' u ...... ; ....7 4S CP ii Q$ P: daq; lU" 41 4: '10'" . , " 414 pu.. 4i


"
..
, ,
É interessante notar que a crise da representação não imagens do escravo fugitivo aos top セZ・、ッュ ッセL ウ 。オエセ ne?"ro
afetou os modos de representar os negros na medida em que como coisa ruim e do escravo capturado ao cidadão suspeito.
a sociedade, como vimos, também não completou os proces- É pertinente levar em conta as conexões ideológicas que essas
sos de transformação das relações sociais e étnicas. A satura-
representações mantêm entre si, na medida em que revelam a
ção da' representação leva ao inevitável esvaziamento dos
moldura social que as criou e lhes deu sustentação.
sentidos daquilo que é representado, pois impede o diálogo
Não pretendemos realizar apenas uma leitura compa-
com outros possíveis apelos de sentidos. A reiteração do mes-
rativa das imagens do passado e do presente mas, acima de
mo leva ao seu desgaste, gerando o impasse de uma repre-
sentação que limita o diálogo da comunicação de estimulá- tudo, analisar de que modo a representação do negro se cons-
lo. Assim sendo, o vazio de sentido da representação do tituiu ao longo da organização social brasileira. Interessa-nos
negro coincidiu com. a percepção que a sociedade tinha do observar essa representação corno uma forma de elaboração
negro como coisa ou objeto. A representação afirmava o sen- :; discursiva - nesse caso, de natureza visual- que envolve ques-
tido do negro objeto, paralelamente à afirmação de sua tões de ordem política, econômica e cultural. Do ponto de
invisibilidade como ser social. No século XIX, isso pode ser vista político se trata de saber porque os negros têm seus di-
atestado pela produção iconográfica conhecida como cartes reitos de cidadania agredidos numa sociedade que se
de visites - em que os negros retratados eram alienados como autodefine como democrática, mas que insiste em representá-
souvenirs - e pela prática dos periódicos que anunciavam los corno objetcs.!" Do ponto de vista económico é ョ・」ウセ£ᆳ
compra e venda de negros na mesma página onde se anunci- rio analisar de que maneira os negros passam a ser avalia-
ava compra e venda de outros objetos.t'" dos como faixa atrativa de consumidores e como isso se refle-
Para nós, é pertinente observar de que maneira esse " te em sua representaç,ão através da mfdia."" Do ーッョセ セ・
histórico de representação dos negros encontra ressonân- vista cultural se impõe a discussão acerca da apropnaçao
cia na sociedade brasileira contemporânea. Através de uma que os meios de comunicação de ュ。セウ fazem de manifes_ta-
arqueo-logia do imaginário podemos constatar que as no- ções comunitárias até então gerenciadas pelas populaçoes
vas técnicas da mídia reduplicam, muitas vezes, os padrões consideradas periféricas.P?
observados na representação dos negros no passado. A con-
frontação dessas representações é válida na medida em que 15GÉ valido questionar a posição do Estado brasileiro que hesi.ta em tratar a
se converte numa provocação para a análise dos discursos questão étnica como tema fundamental de nossa ordem so.cla!, ao.mesmo
que permeiam as relações sociais. Em termos de representa- tempo em que assume o compromisso de 」ッ_L「。エセ ᄋ ? raclsn;o セj。ョエ・ da
comunidade internacional. Ver Décimo Relatório Penodlco. ッカセエ。A・r ᆳョセカ ッc⦅。
ção visual, é necessário que estar atento para o fato de que ção íntenuuiouci sobre a Eliminação deTodas as Formas de セャウ」ョュ。ッ Racwl,
nem sempre aquilo que se vê é realmente aquilo que a re- Ministério da Justiça e Ministério das Relações ExtenoreaBrasílía, 1996;
presentação desejar fazer significar. Portanto, a presença Brasil, gênero c raça, Ministério do Trabalho, Brasília, 1998. .
151 Ver a insistência das reportagens que enfatizam o negro como faixa de
de negros na mídia tanto pode indicar a democratização
consumidores em crescimento: Milton Luiz, "Pesquisa descobre o ョ・セャGo
das relações étnicas e sociais, quanto a manutenção de an- como segmento consumidor", Belo Horizonte, Jornal O Tempo/ Magaz:ne,
tigas formas de discriminação. qltartajeira, 23/12/98, p. 5; Daniel" Ribeiro, "A classe média negra", Revista
Veja, ano 32, número 33, edição 1611, 18 de agosto de 1999, p. 62-69'.
Para efeito de interpretação, consideraremos três situa-
1.,2 É inevitável a retomada dos debates em torno do Carnaval organizado.
ções em que o negro é representado como objeto, ou seja, nas como indústria para turistas e sua relação com o trabalho de ー・ウセ。 da

119 Azevedo & Lissovsky, op. cit., 1988; Gomes & Pereira, op. cít., 1988, p. 43.
, comunidade. Outro aspecto <I ser analisado é o interesse de agêncías de
turismo peles circuitos de festas religiosas do interior, como a Congada, e
. a produção de artesanato.
186
187
セ 。セ£ャゥウZN、 イ・ーセウョエ。￧ ̄ッ visual dos negros brasileiros um suporte humano do escravo, mas como um objeto com a
na mídia implica tambem a análise de outros campos de senti- logomarca do proprietário.
dos que ャセ・ servem de moldura. Isso elege a representação Nos periódicos a representação do escravo - por conse-
o
con: um Importante elemento que reflete as contradições da guinte do homem negro e da mulher negra - se dava a partir
sociedade emrelação aos negros e seus descendentes:' da tentativa de reproduzir essa realidade. Como o escravo
, estava reduzido à condição de objeto. segundo as prescri-
ções do regime escravísta, era essa a realidade transposta para
Do escravo fugitivo aos top models a representação que se "oferecia como uma repetição: teatro
da vida ou espelho do mundo't.t"
A イ・Zーウョエ。￧ ̄セ
do escravo fugitivo que carregava seus Outra tética de representação pode ser observada nas
エZ・イセ ョ」・ウ
as costas f01 bastante difundida nos periódicos bra- curtes de visite elaboradas pelo fotógrafo Christiano [r., no
sileiros do séc;tlo XIX Hfセァオイ。ウ 24 e 25). A representação era Rio de Janeiro da segunda metade do século passado (Pígu-
exposta a partir de um clichê que evidenciava o homem ou a ra 26). A representação do negro na fotografia procura tra-
m:u-her, negros, ora apoiados num bastão, ora retendo-o nas zer a realidade para dentro do estúdio, mas trata-se de uma
maos. A mulher aparece com uma trouxa à cabeça e o ho- realidade controlada pelo realizador das cartes de visite. A
mem transporta a trouxa amarrada na ponta de uma vara respeito disso, Muruz Sodré observa que "levado ao estúdio,
que está apoiada .sobre o Seu ombro. Ambos estão represen- constrangido à codificação da pose - portanto a imobilizar-
tados como se estívessem em movimento. se em gestos de significação pré-marcada pela etiqueta de
um olhar europeizante -, o indivíduo negro se retrata sem a
Em geral, a imagem era acompanhada de um texto no
exibição conflagratória de seu cotidiano". 154
セオ。ャN eram especificados o nome do proprietário, as 」ゥイセᆳ
O cliché do escravo fugitivo e as cartes de visite possuí-
tancl.as da fuga, o endereço onde o fugitivo deveria ser de.
VOlVIdo, o valor da recompensa, as habilidades, bem como os am funções específicas. O primeiro pretendia denunciar o
defeitos físicos e morais do escravo. Os sinais físicos revela- escravo que desafiara as leis do regime, contribuindo para
vam os agentes que interferiam sobre o COlpO do escravo, tais
recuperar um bem de produção do proprietário. As
cartes
eram oferecidas ao público como eovvenire. conforme anún-
セッュN セウ traumas decorrentes de doenças, de mutilações
impingidas pelos escravos a si mesmos ou pelos proprietários cio publicado no Almenak Laemmert, de 1866. Nessa oca-
sião, Christiano [r. anunciava sua "Variada collecção de
através de castigos e marcas de posse.
costumes e typos de pretos, cousa muito propria para quem
É importante observar que o escravo era portador de se retira para a Europa.v.I" O que aguça nossa senso crítico
um corpo com várias inscrições. No momento não discutire-
mos as estratégias adoradas pelos escravos a fim de exercita"
I diante dessas representações é o modo como são articula-

I
das as suas relações com a realidade. Ambas pretendem ser a
rem o próprio corpol burlando a vigilância para vivenciar realidade, ou pelo menos uma extensão similar da realidade,
suas experiências de sexualidade, afeto e celebração. Como apesar de estarem codificadas em espaços e linguagens dife-
estamos N。ョ ャゥウ。ョセッ o processo de representação do negro
como objeto, nos interessa ver no corpo do escravo as inseri-
ções Z・ゥエセウ pelos agentes dominantes. O senhor podia impri-
rrur sinais no corpo do escravo, marcando-o como animal ou 153 Foucault, op. cit., sI d, P' 34.
ュ£アオセョ de trabalho, com o fito de garantir publicamente o 154 Muniz Sodré Apud Azevedo e Líssovsky, op. cit., 1988, p. xx.
seu direito de posse. O corpo escrito era exibido não como 155 Azevedo e Lissovsky, op. cit., 1988, P: viii.

lSS 189
tr 7'7''7 'Fr!tttt7E '7''7 "Mm srmntr l'
" r1r Ti,,?, 7
- .!O .. --'--
o -·.·• • ッ セ •• · , , · _ · _

rentes da realidade que representam: o desenho e a página I! Mas é justamente aí que nasce a maior contradição da
de jornal- a fotografia e o cartão, respectivamente. representação do negro na contemporaneidade, pois man-
O cliché e as cartes são apresentados ao público corno I tém os estereótipos do passado sem levar em conta as trans-
formações da sociedade. Como frisamos anteriormente, a
sendo aquilo que os negros são, isto é, objetos presentes no
cotidiano reduplicados como objetos de observação nos questão tem um peso ideológico considerável, pois se trata
desenhos e nas fotografias. Os negros - tanto na realidade do de saber se ainda não foi possível gerar um novo discurso
cotidiano quanto na representação dessa realidade - são con-
siderados como meios para que a sociedade se organize e de-
1セ visual que aponte para outras formas de representação do
negro, ou se essa representação estereotipada é intencional-
senvolva. A dupla condição de objeto dos negros se configu- mente mantida por agentes do modelo social dominante.
ra, portanto, como um processo histórico de saturação da Diante do anúncio da Parmalat vive-se o desafio de bus-
representação que dificulta a compreensão dos negros a par- car os sentidos para uma representação que apela para a per-
tir de outros campos de produção de sentidos. cepção do novo, embora esteja articulada sobre velhos
Os desdobramentos desse processo podem ser verifica- paradigmas. A excelente qualidade gráfica chama a atenção
dos em publicações contemporâneas que se declaram inte- para o contraste entre corpos negros e brancos, apresentados
ressadas em propor outras representações para os negros de modo invertido, pois ora a mulher é negra e o homem bran-
brasileiros. Nas Figuras 27, 28 e 29 - publicadas na Revista co, ora a mulher é branca e o homem negro. O anúncio sugere
Raça Brasil 156 - temos a representação do negro estabelecida algo mais que a beleza física dos top models, ressaltando-lhes a
a partir de uma desejada relação de igualdade com o branco simpatia e o sorriso de cumplicidade, que se estendem tam-
o gesto do abraço e a largueza dos sorrisos estimulam a leitu- bém para o observador. Num dos anúncios (Figura 28), tem-
ra da representação como um quadro caracterizado pela so- se o sorriso frontal da jovem mulher, enquanto o homem ne-
lidariedade. Contudo, a representação não se restringe ao gro, de costas, cria um clima de suspense em relação à sua
campo étnico, uma vez que se estabeleceu mediada pela re- provável expressão facial. Nos três anúncios há um equilíbrio
lação de gêneros, pela sensualidade e pelo assédio do mer- entre força e delicadeza, em acordo com os outros paralelismos
ctumdising de dois produtos (café e leite da Parmalat) . negro/branco, mulher/homem, café/leite.
Nas três seqüências é preciso considerar a representa- A solidariedade étnica do anúncio se apóia sobre o
ção do negro diante do branco, e também as representações modelo de solidariedade de gêneros. Os casais aparecem di-
da mulher e do homem dispostos numa perspectiva em que ante do público desfrutando um momento de intimidade, de
sua sensualidade está a serviço da divulgação de uma men- modo que as cisões entre masculino e feminino são anuladas
sagem comercial. As associações de sentido da representa- em prol da atmosfera aconchegante do ambiente privado ao
ção se apóiam na realidade, tal como a construção do cllchê qual se aplica bem a idéia de um "encontro". A representa-
do escravo fugitivo ou das cartes de visites. Ê evidente que ção de gêneros reduplica o quadro ideal da felicidade a dois
outros componentes de sentido são incorporados à represen- que, por sua vez, reforça a pertinência do encontro entre o
tação contemporânea, tais como a reprodução da imagem café e o leite do anunciante.
numa escala de massa (superior à dos clichês e das cartes) e o A sensualidade do anúncio é sugerida através de efei-
desenvolvimento das relações numa sociedade capitalista e tos discretos e bem dimensionados. A representação explicita
não mais escravocrata. o contraste entre os grupos étnicos e o explora através de
detalhes como a demonstração de que os corpos se encai-
156 Revista Raça Brasil, Ano 2, Números 13, 14 e 15. xam com leveza e movimento (Figuras 27 e 29) e de que a

190 191
ゥョエュ、セ・ entre os corpos se dá através do toque delicado e tos que deveriam ajudar a vender. Esse aspecto demonstra
tenso (FIgura 28). Os corpos que se tocam aparecem em meia que pessoa e coisa são representadas sob a mesma condição
foto, sobre 。ー£ァセ。L dando-nos uma visão parcial da nudez. de produtos expostos para o consumo. O texto que acompa-
Os top models não exibem trejeitos exóticos nos olhares ou nha as imagens - tal como nos anúncios de fugitivos do sécu-
nos sorrisos; pelo contrário, os sorrisos e os olhares sugerem lo XIX - confirma o processo de reificação da pessoa.
uma cumplicidade fina e discreta. Contudo, o objetivo da
nudez parcial é criar no observador o desejo pela nudez to- "Chegou o Café
Parmalat.
tal. O anúncio realiza o despertar desse desejo, tal como se O café à altura
propõe a fazer com O encontro entre o leite e o café. O obser- do nosso leite."
vador é sugestionado a buscar o complemento da nudez e
também do sabor que emana dos produtos anunciados. o texto evidencia os conflitos de vaiares que perpassam
Enfim, nota-se que a encenação do encontro de etnias e as relações entre etnias e gêneros. Estar "à altura" de algum
de セ↑ョ・イッウL mediado pela sensualidade, tem por finalidade outro paradigma pressupõe um estado de tensão entre as dife-
atrair o observador - agora visado díretamenta como consu- renças que são comparadas. As outras marcas de café (note-
midor - para as vantagens e os prazeres do produto Parmalat. se que as letras maiúsculas do "Café Parrnalat" procuram des-
Nesse enredo visual, negros e brancos, homens e mulheres tacar a excelência do produto), até então disponíveis no mer-
são representados em função de dois produtos - o café e o cada, "não estavam à altura" do leite da marca do anuncian-
leite - que, historicamente configuram as tensões de relacio- te. Ao traduzir essa tensão para a relação entre café e leite, o
namento entre os dois grupos étnicos. A predominância de anúncio convoca a referência de um modelo social que realça
negros ou de brancos interfere na configuração das relações as qualidades dos brancos e apregoa os defeitos dos negros, e
que privilegia o poder patriarcal em detrimento da atuação
sociais, tal como a predominância de café ou leite determina
o sabor e o aspecto visual da bebida.O anúncio ativa princí-
" das mulheres. A força desse apelo simbólico pode ser sinteti-
pios de tensão e os minimiza através da proposição de "en- zada pela expressão: as outras marcas/ os negros/ as mulhe-
contros" ideais em que as diferenças entre negros e brancos, res, finalmente, foram elevados altura da marca Parmalat/
à

homens e mulheres podem ser dissolvidas como as diferen- dos brancos/ dos homens.
ças entre leite e café no processo de mistura. A associação com as questões étnicas ocorre em virtu-
Contudo, a base desse novo discurso "politicamente de do acervo histórico-social brasileiro fortemente impregna-
correto" é constituída por antigos paradigmas de reificaçâo do pela ideologia que considera os negros inferiores e alar-
dos negros brasileiros. O texto que acompanha as imagens é deia o projeto de elevá-los " à altura" dos brancos. A esse
sintomático, pois que traz de volta à cena os anúncios de propósito, é interessante observar que expressões do tipo
escravos fugitivos. Os conteúdos das mensagens não são os
mesmos, porém, a técnica de exposição dos conteúdos é se-
melhante. O cliché do escravo fugitivo indicava seu traço de
I "preto de alma branca" e "ela é negra, mas tem os traços
finos" revelam a ideologia que só admite o negro cama pes-
soa na medida em que ele assimila os valores brancos.
objeto que era imediatamente reforçado no texto do anún- No ato de comparação entre objetos, o anúncio redu-
cio:. a imagem do objeto se fazia acompanhar pelo discurso plica a representação do negro também como objeto, apesar
verbal sobre o objeto. de tentar chamar a atenção para a igualdade entre dois pro-
As imagens de negros e brancos no anúncio da Parmalat dutos de uma mesma marca. Isso ocorre porque o conjunto
foram dispostas paralelamente às características dos produ- do anúncio - imagem e texto - está atravessado por elemen-
193
192
, i
, [LᄋァZセゥA
z;uo ii "Gi '$ .&"." ;_ag5 $bit lJ': ., ; '4 • as ..
-
tos ideológicos que apontam para as estratégias de conquista Negro-coisa, coisa ruim
do público consumidor e para a tentativa de harmonizar
conflitos entre etnias e gêneros. Mas, coma o objetivo final se A representação do negro como objeto implica a apli-
relaciona à divulgação do produto, tem-se a predominância cação de juízos de valor que desqualificam a pessoa como
de um esquema de proporções que acentua a reificação de sujeito social. A reificação desqualifica a pessoa, mas ao
negros e brancos, homens e mulheres.
transformá-la em objeto ressalta as qualidades que a tornam
A representação do negro como objeto pode ocorrer de um objeto interessante para os agentes da discriminação. Esse
maneira explícita (como nos clichés de fugitivos ou nas carseo, raciocínio pode ser observado nos anúncios comentados an-
ou de maneira implícita (como no anúncio da Parmalat). A
teriormente. O fugitivo era considerado um objeto de traba-
comparação entre as duas situações demonstra que a repre-
lho dotado de qualidades que permitiam o funcionamento
sentação do negro-objeto implica uma elaboração ideológica
do sistema escravlsta, ao passo que o negro coísífícado como
que conta, em grande escala, com a conivência dos grupos
constituintes da sociedade. Se acompanharmos a trajetória um bom produto (café "à altura") atende aos apelos de mer-
desse modelo de representação, vamos perceber que ele se cado da economia capitalista.
manteve praticamente inalterável, apesar das inúmeras trans- A complexidade desse raciocínio se evidencia quando a
formações que afetaram a sociedade brasileira. Nota-se que reificação ressalta osdefeitos do negro e, justamente, esses as-
esse modelo sempre foi empregado por grupos dominantes- pectos negativos é que são tomados pelos agentes da díscrimi-
que alimentam os estereótipos da mulata sensual ou do ne- nação como elementos aproveitáveis. Essa aparente contradi-
gro-máquina-de-trabalho セ e pela própria população negra ção, no entanto, é parte da elaboração ideológica que coloca o
que, de maneira contraditória, usa o estereótipo da mulata racismo a serviço dos interesses da economia capitalista.
para fugir ao anonimato ou se rende à impossibilidade de
Vejamos o anúncio do medicamento Betnevral, publi-
ultrapassar o circuito de mão-de-obra menos qualificada.
cado numa edição especial patrocinada pela indústria far-
Ao insistirmos ョ。セ conexões entre o passado e a
macêutica Glaxo.O volume de oito páginas, com capa e
contemporaneidade não estamos apostando em nenhum tipo
contracapa, não traz referências bibliográficas, tais como lo-
de ataviemo histórico para justificar a manutenção da ima-
gem do negro como objeto. De outro modo, estamos procu- cal, ano, editora, autor e numeração das páginas. A edição
rando compreender as ideologias que são articuladas para recebeu o título de "História das Copas do Mundo: antece-
desenhar o perfil de uma sociedade em que a representação dentes". A capa exibe a imagem da Copa Jules Rimet, que
de negros, mulheres, imigrantes e trabalhadores como obje- ficou em posse definitiva do Brasil a partir da conquista do
tos não é um fato natural, mas decorre de um projeto de cons- tricampeonato mundial no México, em 1970, A contracapa
trução social. Isso se torna evidente ao observarmos que a expõe o anúncio do antibiótico Ceporexín, da Glaxo.
representação do negro como objeto possui variações que po- O texto comenta os esforços de dirigentes esportivos eu-
dem ser aplicadas em diversos contextos, de modo que as ropeus para implantarem a disputa do campeonato mundial,
diferenças de aspectos visuais não alterem o conteúdo da
resume aspectos da chegada do futebol ao Brasil e apresenta
reificação. Assim, o negro que é representado como objeto
urna listá de todas as copas realizadas. A última da .Iista é a
de consumo (máquina de trabalho, souvenir ou um produto/
café "à altura") também é representado como objeto ruim, 11' Copa do Mundo, na Argentina em 1978.' Isso nos oferece
que causa prejuízos aos outros indivíduos. pistas quanto ao período da publicação, que pode ter ocorrido

194 195
entre a competição de 1978 e a seguinte, em 1982, na Espanha. cio do Ceporan: as imagens do hospital e do consultório, em
De todo modo, há elementos suficientes para atestar que se preto e branco, destacam a harmonia entre médico e pacien-
trata de uma publicação relativamente recente. te, num ambiente higienizado e seguro. A representação do
O volume 'apresenta 12 superfícies disponíveis para a futebol apela para imagens conhecidas do público: a Taça
impressão de textos e imagens. Oito páginas estão ocupadas Jules Rímet, lances e personagens bem-sucedidos indicam a
com textos e imagens sobre a história do futebol. Quatro pé- trajetórta de desafio e vitórias dessa modalidade esportiva.
ginas trazem anúncios de medicamentos da Glaxo: Ceporan Aqueles que se identificam com o futebol de certo modo se
(contra infecções agudas), Betnevral (contra dor e inflama- vêem representados naquelas imagens.
ção), Betnesol (corticoterapia ststêmica para os pacientes di- Frisamos os detalhes dos anúncios para chegar à análi-
fíceis: cardíacos, hipertensos ...) e Ceporexin (contra infecção). se da representação do negro como coisa ruim. O conjunto
O anúncio de Ceporan mostra duas imagens: a de um da publicação associa os medicamentos a situações positi-
vas: a harmonia do hospital e do consultório (Ceporan), o
paciente que recebe o atendimento cuidadoso num leito de
equilíbrio das formas geométricas (Betnesol), a sutileza e o
hospital e a de um médico que conversa corri seu paciente no
colorido da borboleta (Ceporexin). A questão que se coloca é:
consultório. Esse conjunto é acompanhado pelo slogan do
por que o Betnevral é o único medicamento associado a uma
medicamento: "A segurança hospitalar transferida ao con-
versão negativa do negro?
sultório". O Betnesol é acompanhado por imagens geométri-
cas de uma taça (para a versão em comprimidos solúveis) e A princípio a imagem dos "dois jogadores tem um ca-
de uma ampola (para a versão injetável). O Ceporexin, indi- réter positivo, pois faz pensar nos vários atletas negros bem-
cado para idosos, recém-nascidos, cria.nças e gestantes é iden- sucedidos nesse esporte. É inevitável não recordar nomes
tificado pela imagem de uma borboleta colorida. como Leônidas da Silva (o "Diamante Negro") ou Edson
Arantes do Nascimento (o "Pelé"). Mas, reparando nos jo-
A página do Betnevral é encimada pelo slogan "Uma
gadores do anúncio, percebe-se que são representados como
dupla indesejável". Abaixo segue-se o 、・セィッ 、セ dois ェッァセᆳ figuras grotescas, com traços físicos desproporcionais, so-
dores de futebol, negros, robustos e com fisionomias agressl- bressaindo-se o excesso da musculatura. Um dos atletas,
vaso Abaixo dos desenhos, outro slogan: "Dor e inflamação". apesar de estático, parece esboçar uma ação de ataque. O
A composição química e a aplicação do medicamento vêm a outro está em franca posição de ataque, erguendo uma das
seguir, informando que o mesmo "Elimina simultaneamente pernas à frente e mostrando agressivamente as travas de
Dor e Inflamação Mioesqueléticas." (Figura 30) suas chuteiras.
Temos que considerar o fato de estarmos diante de um.a O truculento jogador da esquerda exibe a tatuagem de
série de representações: da indústria farmacêutica e sua efi- uma âncora no braço esquerdo, um anel e uma medalha no
ciência; do sistema de saúde moderno; do futebol como ・セᆳ peito. Esses elementos são signos estereotipados: a tatuagem
porte de preferência nacional. A イ・_セZウエ。￧ ̄ッ da indústrl.a da âncora remete para o imaginário de marinheiros desre-
cumpre o papel de demonstrar a eficiência de uma deterrru- grados e arruaceiros, o anel e a medalha indicam uma osten-
nada empresa no competitivo mercado das indústrias far-. tação exagerada de ornamentos. O jogador da direita tem
macêuticas. Os slogans e as imagens atestam a competência uma das mãos cerradas e a expressão pesada de quem se
da Glaxo e sua possibilidade de transmitir tranqüilidade aos empenha numa luta.
usuários de seus produtos. A representação do sistema de Os uniformes estão colados aos corpos dos atletas, au-
saúde é evidenciada de maneira sutil, especialmente no anún- mentando o efeito de sua massa muscular. As chuteiras têm
!j
196 ii
197
i
-A P 4. :; " ·4 4# 40 ,= 4 .. • "4
4 4 ,• •i:"t.-
$
__
:=s 4tt .'$!i" __
cc; " .4AAb04
- 41 ii oso . _= ,.1
travas pontiagudas, o que lhes confere um aspecto de artefa- disposição pode ser observada nos documentos elaborados
to contundente. Os negros do anúncio receberam os núme- pelas autoridades, que demonstravam sua preocupação com
ros 3 e 4, correspondentes às posições defensivas, de acordo o controle da população negra. As incursões militares contra
com o estilo tradicional de numeração dos uniformes e de os quilombos. as ações de captura dos capitães-da-mato, as
determinação das funções dos atletas na equipe. No ambien- recompensas oferecidas aos delatores de cativos fugidos e os
te futebolístico, é comum a presença de indivíduos de maior castigos públicos foram práticas cotidianas, que acentuaram
compleição física e de menos habilidade nas posições defen- o enredo de conflitos e que levaram o Estado a assumir o
sives, embora isso não deva ser tomado como regra. papel de protetor em oposição à ameaça de negros, pobres
Esses detalhes são importantes para evidenciar a repre- e errantes.!"
sentação do negro como coisa ruim. O anúncio apela para o Em vista disso, o aparato oficial- exemplificado princi-
imaginário do futebol- conhecido do grande público - mas re- palmente pelas forças policiais - manifestou, desde o período
alça os traços negativos dos negros nesse esporte. Os defensores colonial, a predisposição de mirar os negros segundo a ôríca
são transformados em agressores e associados a duas coisas ru- da suspeita. Os negros cativos eram percebidos como agen-
ins, a dor e a inflamação. Além disso, reaparece o estereótipo do tes potenciais de rebeldia e, mesmo livres, continuavam a re-
negro reduzido à força física, tal como na representação que presentar possibilidades de ruptura da ordem, seja através
associava os escravos a uma máquina de trabalho. de atritos ou da exibição pública de costumes - como a
De fato, os atletas da imagem não são atletas, pois fo- vivência religiosa - distintos do modelo europeizado impor-
ram submetidos ao mesmo processo de reificação dos negros tado para a colônia.
no anúncio do Café Parmalat. A diferença é que o anúncio A atitude de suspeita perpassa, ainda hoje, o discur-
do café sugere uma atmosfera de solidariedade étnica para so oral, tal como verificamos na expressão "negro, se não
afirmar a excelência de dois produtos da mesma empresa, suja na entrada, suja na saída". Em outros termos, a forma-
enquanto o anúncio do Betnevral transforma os negros em ção social brasileira incorporou o princípio de culpa anteci-
coisas ruins para justificar. a qualidade do medicamento que pada dos negros, numa espécie de consenso que justifica a
'os combate. Nesse caso, a reificação atinge o ápice da condenação a priori das pessoas negras. Assim sendo, a so-
agressividade, pois desqualifica a pessoa, identifica-a com ciedade e os indivíduos se movem em relação aos negros a
alguma coisa ruim e faz com que essa situação gere benefíci- partir de um repertório de situações tipificadas como de
os para o agente discriminador. suspeição. De modo particular, a ação da polícia no tocan-
te aos negros se desenvolve como ação do Estado, desempe-
nhada por indivíduos autorizados, mas nem por isso iden-
Do escravo capturado ao fi cidadão" suspeito tificados com a diversidade étnica da população a quem
deveria oferecer segurança. Prova disso, são as incursões
policiais orientadas por uma situação típica de suspeição,
As medidas repressivas do período escravista foram ar-
ticuladas para sustentar um certo padrão de ordem social,
mediante o controle exercido sobre a população de cativos,
libertos e pobres em geral. Os negros, embora constituíssem a 157 Sobre a vigilância imposta aos negros através de documentos oficiais, ver
grande parte das forças produtivas, foram considerados como Alda Maria Palhares Campolina et ali. (orgs.), Escravidão emMinas cemíe,
Belo Horizonte, 1988, p. 33, 39, 41, 46, 47; e Humberto F. Machado, Escra-
transgressores de fato ou em potencial da legalidade. Essa vos, senhores e cafê, Niterói, 1993, p. 71-77.

198 199
ou seja, aquela em que aparecem" quatro crioulos dentro
de um carro",158 a altivez do capitão-do-n:ato e a aparente sujeição do fugiti-
,:
Frisamos a importância que as
imagens 。、アセゥイ・ュ no li
vo. De modo geral, a Imagem sugere a capitulação do
transgressor que, além de estar amarrado, é obrigado a ca-
processo de representação social dos negros, pois trazem em n
si muito dos esquemas de valores que a sociedade elege para
a sua organização. Assim sendo, a predisposição que consi-
dera os. negros como suspeitos em potencial surge estampa-
l
n
u
ii
minhar com os ombros arqueados.
_ Porém, sob o ponto de vista do dominado, a representa-
çao evoca elementos de feição trágica, que resultam do fracasso
da nas Imagens que permeiam a vida cotidiana. No século ,"I セ。 tentativa セ・ ・セ」_ー。イ ao cativeiro. O retomo à senzala signi-
passado, além dos desenhos de escravos fugitivos publicados II ヲゥセ カ。 o castigo fISICO e o aumento da vigilância, aspectos que
dificultavam novos projetas de fuga. Além disso, o índice trégi-

!
nos periódicos, é necessário observar as pinturas que contri-
buíram corri. verdadeiras reportagens sobre a presença dos co se revela na ruptura dos laços de solidariedade étnica na
negros em diversos espaços da sociedade brasileira. Para nossa medida em que os capitães-do-mato, muitas vezes, eram recru-
análise, vamos considerar o quadro de Rugendas, intitulado tados entre h0:n;tens ウセイァ・ョ セッ mulatos. Nesse sentido, os papéis
"Capitão-do-mato" (Figura 30) e editado no volume Voyage i
"

iI
dos negros no SIStemaSOCIal VIgente eetavam influen-ciados tam-
pittoresque dans íe Brésil.1S9 i1 bém, pela possíbílidede de adquirir alguma forma de poder, ainda
;1
Nesse quadro - tal como em outros, que flagraram fes- ii que o acesso ao poder significasse uma aliança com o sistema e
tas ou punições aos escravos'< - o autor evidencia uma ima- 11 a conseqüente repressão dos negros. pelos próprios negros.

,i
g.em pública dos negros, de modo a complementar o repertó- Os traços do quadro de Rugendas são reveladores do
no de cenas que retrataram o interior de residências ou ウ・ョセ processo de mudança político-social que culminou com a
abolição do escravismo, mas que não resultou em alterações
za1as. ret So. b a oStitca doo SIstema
si domi
ominante
\ ' .
a imagem do ・ウセ ij no tratamento preconceituoso dispensado à população' ne-
cravo subjugado pela capitão-do-mato se fixou como a re- h
" gra. Muitas imagens contemporâneas ainda funcionam como

i
presentação pública e acabada do negro transgressor. Daí, a
ênfase no seu constrangimento físico e moral, explicitado atra- trib.unal, que, atribui セッウ negros uma culpabilidade a priori. O
vés das cordas que o prendem e da diferença de altura entre n:a1s ァイ。カL・セ e que as Imagens decorrem da predisposição so-
a ordem (o capitão-do-rnatomontadoa cavalo) e o trans- cial contraria aos negros, expressa em discursos como as fra-
gressor (arrastado a pé e semidesnudo). II ses feitas e os abecês analisados nos capítulos anteriores.
Ainda sob o ponto de vista dominante, a representação '. Prova disso, é a fotografia de Luiz Morier, publicada na
edição do Jornal do Brasil de 29 de setembro de 1982 (Figura 31).
evoca elementos de feição épica, que resultam do embate entre
A foto/mostra, em primeiro plano, um policial militar, que segu-
o agente da ordem e o transgressor. Ao final da contenda,
ra uma corda à qual estão atados pelo pescoço sete homens
tem-se a consagração do poder dominante, tal como revelam
negros. Diante d? imagem, que tem por título "Batida policial
nos morros do Rio de Janeiro", o professor Fernando Costa da
Conceição nos イ・セ エ・ "à ilustração feita por Jean Baptiste Debret,
15R Ver a crítica a esse procedimento feita por Hédio Silva [r. em "Crôruca da
o mtegrante da rrussão francesa no Brasil, séculos atrás, na qual
culpa antecipada", ln: Dijaci Davi de Oliveira et ali (orgs.),op. cit., 1998,p.71.
159Maurice Rugendas, Voaygepiltoresquc dans le Brésíi, Paris: Engelmann, 1835
um grupo de negros aparece amarrado também pelo pescoço
Apud Alda Maria Palhares Campolina et ali (orgs.). op. cit., 1988, P: 43. com uma corda, sob a vigilância da guarda."!"
16QCi1mpolinfl et ali (orgs.), op. cito, 1988,Rugendas. punições públicas, P: 40,-
Festa de Nossa Senhora do Rosário, P' 74.
161 Idem, Rugendas: negros novos, p. 136. 162Pernando Costa da Conceição, "Qual a corda imprensa?", ln: Dijaci David
de Oliveira et ali (orgs.), op. cit., 1998, p.l53.
200
201
As referências a Rugendas e a Debret são pertinentes, se ramente orientou o comportamento da polícia no episódio
levarmos em conta que as mudanças político-sociais - capazes registrado por Luiz Morier - perpassa o discurso oral; como
de afetar os meios de produção ou as formas de governo - bem ilustra a expressão "Branco correndo é atleta, preto cor-
nem sempre se refletem nos modos de representação das rela- rendo é bandido".
ções entre grupos ou indivíduos. Por isso, as representações Mas é necessário entender a ação policial corno parte
do negro subjugado do período escravista ainda ecoam nas de um enredo maior, isto é, de um Estado que invoca os di-
representações do negro contemporâneo. reitos de cidadania para seus integrantes, embora não esteja
A foto de Luiz Morier evoca os elementos épicos detec- empenhado ou não possua meios para defender esses direi-
tados no quadro de Rugendas. Sob a perspectiva dominante, tos. A conseqüência é o drama de uma sociedade em que
os negros da periferia, como os escravos fugidos, represen- alguns indivíduos são considerados mais cidadãos do que
tam a face perigosa da sociedade. Por isso, contra eles se er- outros. Ou, por outro ângulo, resta para negros, pobres, nor-
gue a força do Estado que tem na polícia o agente de restau- destinos, homossexuais, idosos, crianças e mulheres a condi-
ração da ordem. O policial militar da foto, assim como o ca- ção de cidadãos de segunda categoria.
pitão-da-mato, controla as ações dos capturados; exibe o As representações de negros, especificamente, através
uniforme do sistema diante de personagens semidesnudos do discurso visual nos ajudam a compreender esse fato. O
ou mal vestidos. negro-cidadão é ainda um projeto a ser realizado, uma vez
Por outro lado, a foto exibe a feição trágica dos negros que expressões irónicas como "cidadão de cor" - empregada
cabisbaixos, humilhados pelo agente da ordem. Nesse caso nos meios policiais e pela população -, explicitam a ausência
específico, os detidos não tinham sequer o feed back que o ・ウセ do respeito social devido a todas pessoas. O esvaziamento do
cravo podia clamar para si, ou seja, de alguém que se rebelou sentido da palavra cidadão e o desrespeito aos direitos da
cidadania abrem caminhos para ações repressoras, que tra-
contra o sistema. Dentre os sete homens amarrados, verifi-
cou-se, mais tarde, que "não havia nenhum 'marginal.v'< É tam da mesma maneira inocentes e criminosos.
importante observar que as atitudes contemporâneas em rela- As representações visuais do escravo capturado e do
ção aos negros reduplica padrões de um esquema que, ウ・ァオョセ "cidadão" suspeito, tanto quanto o discurso oral, produzem
do se afirma, passou do modelo escravocrata para a sociedade efeitos ambivalentes em termos de significação. Por um lado,
de cidadãos livres. reforçam o estereótipo que parte da suspeita para condenar
As práticas cotidianas, no entanto, revelam outra si- o indivíduo negro; por outro, denunciam essa prática
tuação. O senso comum fornece aos indivíduos o argumento discriminatória. A questão consiste em saber qual dos senti-
que condena os negros independentemente de se comprovar dos a sociedade e os meios de comunicação têm privilegiado,
o seu envolvimento ou não em atividades ilegais. O argu· pois trata-se de uma opção ideológica, cujas conseqüências
menta consiste em representar os negros como suspeitos em são a restrição dos direitos à liberdade ou, ao contrário, a
potencial, ou seja, se não cometeram um delito, é provável aposta num projeto de sociedade democrática.
que venham a cometê-lo. Essa tese determinista - que segu- Os exemplos analisados nos tópicos anteriores ilustram
situaçõés cotidianas 'em que os negros se vêem e são vistos
através dos veículos de comunicação. É válido observar que
as alterações ocorridas nesses veículos - em termos de aper-
li1.l lde nõ, p. 153. feiçoamento técnico e de renovação de linguagens - não im-
202 203
plicaram numa mudança substancial da representação dos ii
com a idéia de "uma" realidade, de modo que a representa-
negros. A permanência do modelo de reificação nos leva a ," ção adquiriu a identidade daquilo que representava e vice-
pensar se os negros continuam na mesma condição de obje- versa. Esse ponto de vista impediu que se levasse em conta o
tos - o que parece ser a possibilidade imediata - ou se outra
,, fato de que a "representação do negro" não expressa o que
"
perspectiva de análise pode ser levantada para demonstrar
as fraturas inerentes a esse modelo.
l セ
"
,
os negros são, mas expõe uma concepção - forjada sob os
influxos da discriminação - que se tenta impor como a reali-
As representações do negro como objeto foram Prcpcs- 1.' dade do que os negros são.
ii
tas pela sociedade e para a sociedade, tendo-se em conta o Essa fratura na montagem da representação evidencia,
seu funcionamento como espelho onde os grupos podem se
i pelo menos, dois traços importantes: a capacidade das for-
reconhecer ou não. Nesse processo, tem sido mais prático para "セ ças dominantes para manipularem o valor dos discursos, na
medida em que impõem a representação como sendo "a rea-
os brancos perceberem sua diferença em relação aos negros.
Mas, para os negros, o drama é complexo, pois se trata de セ lidade" e não "uma realidade" entre outras maneiras de cons-
M tituição da realidade; e a necessidade de considerarmos di-
rejeitar a si mesmo mediante um modelo de representação !l
:; ferentes perspectivas de realidade para proceder a uma anã-
que lhes foi imposto. Os negros que assimilam a reificação
lise crítica das representações que se propõem a exprimi-las.
contribuem para o seu enraizamento social e psicológico e Desse modo, podemos analisar a representação como elabo-
alimentam a ideologia de que ser negro é ser-não-pessoa. Essa ração discursiva, portanto, situada num campo de discursos
representação mais pobre do negro-coisa favorece os méto- que interagem ou se confrontam.
dos que marginalizam e descaracterizam os grupos e indiví- Para essa reflexão, é interessante observar o caminho
duos a fim de sustentar esquemas de espoliação política, eco- percorrido por Foucault na análise do quadro "Isto não é um
nômica e social. cachimbo", de René Magritte. O autor nota que a primeira
Por outro lado, é necessário levantar a proposta de que versão da obra, de 1926, mostra um cachimbo bem desenha-
as representações do negro-coisa - como um espelho - são do e, em cima, a menção "Isto não é um cachimbo". A se-
passíveis de contestação, na medida em que podem sugerir gunda versão tem os mesmos elementos da primeira, mas
imagens invertidas. Em outras palavras, o que a história so-
cial tem afirmado como representação dos negros brasileiros "em vez de se encontrarem justapostos num espaço in-
deve ser analisado num campo extenso, onde outras repre- °
diferente, sem limite nem especificação, texto e a figura estão
sentações existem como possibilidades. Contudo, antes de colocados no interior de uma moldura; ela própria está pousada
sobre um cavalete, e este, por sua vez, sobre as tábuas bem
buscar essas possibilidades, é pertinente observar até que visíveis do assoalho. Em cima um cachimbo exatamente igual
ponto a representação do negro como objeto é, também, uma ao que se encontra desenhado no quadro, mas muito maior. "16-1
negação de si mesma e da realidade que representa.
Foucault analisa as possibilidades de relações entre as
imagens do cachimbo e a frase que as acompanha, destacan-
UM NEGRO NÃO É "OS NEGROS" do o traço desconcertante dessas relações. Afinal; a imagem é
verdadeira e a frase falsa? Ou a frase é verdadeira e a imagem
A representação do negro-objeto nos anúncios e nas
cartes foi proposta como uma realidade fiel de outra realida-
de. Diante disso, a sociedade brasileira se limitou a trabalhar 1M Foucault, Isto não é um cachimbo, Rio de Janeiro, 1988, P: 11-12.

204 205

.i 44' $#24; '4.'. , qP a&Q$1 ".i:;" '14 4 4$ !tu !S "ai as ACp", A 4$ a"&Ql 4.4 aA!tu.. " • 4$ 41 4 ...,
'PC! n ri rtr'1S trrbn " ,. tlr Sb771' " uur
イLセNZ m .'
1,--.1

)<

falsa? Tudo parece óbvio nessa representação e, no entanto, , セッイ


isso, raramente as pessoas são tocadas por repre-
não há mais certeza para afirmar categoricamente que ela dá ウ・ョエ。￧セ・ウ 」ッセ
os anúncios ou as cartes. O que é uma repre-
conta dos elementos aos quais se refere. A imagem e o texto sentaçao orientada ideologicamente passa a ser percebido
foram atingidos no centro de sua totalidade e se propõem ao como um fato natural. A partir daí, tem-se o cenário para a
observador como enigma que contesta as evidências de uma manutenção do distanciamento da consciência, isto é, pou-
representação elaborada como espelho da realidade, cos ousam romper o pacto de silêncio tecido em torno da
É essa sensação de desconcerto que julgamos possível violência que afeta os negros brasileiros. A presença diária
experimentar diante da representação do negro como obje- do.s negros nos meios de comunicação é percebida COmo a
to, desde que se considere esta representação como uma ela- evidenciação de Sua inferioridade (negros-objetos) ou como
boração relativa de um tipo de discurso. Nesse caso, textos condescendência da mídia que lhes permite ocupar determi-
que seguem os anúncios e divulgam as cartes de visites são nados espaços.
coniventes com a imagem do negro objeto; a menção textual . ,No entanto, se nos apropriarmos da experiência de
se torna um elemento legitimador do sentido de reificaçâo mセァヲQエ ・Lーッセ・ョZッウ tomar texto e imagem como elementos re-
sugerido pela imagem. lativos. paSSIveIS de sofrerem um choque em sua autoridade
Na representação do negro como objeto nos depara- de representação, A proposta, portanto, é contradizer o tex-
mos com a situação inversa àquela da obra de Magritte, em to da reificação mediante a menção de que o negro represen-
que o texto e a imagem se desautorizam mutuamente a se- tado na imagem não é "os negros".
rem interpretados como sentidos absolutos, Aliás, o próprio É necessário avaliar que entre o indivíduo negro situa-
Magntte nos fornece pistas para reinterpretar a imagem do do na História e a representação desse indivíduo num cam-
negro objeto, se considerarmos sua proposta de que uma "ima- P? 、ゥウ」セオイ Lゥカッ da História se estabelecem linhas de diálogo e
gem não deve ser confundida com um aspecto do mundo divergência. Numa abordagem esquemática, é ponderável
nem com alguma coisa de tangível." 165 ー・ョセ。イ que entre a realidade e-a representação se estabelece
Se admitimos que a representação decorre de um pro- um Jogo de passagem de sentidos do 1 ao 2. Isto é, a realida-
cesso de construção social, é pertinente acreditar que os seus de e a representação da realidade não pertencem ao mesmo
sentidos estão impregnados pelos enfrentamentos ideológi- modo de articulação discursiva, na medida em que não se
cos presentes na sociedade. A representação e a aceitação do pode apreendê-las da mesma maneira. Uma não é exatamente
negro como objeto demonstram uma das faces possíveis dos a outra, embora o jogo que produza o sentido de ambas as
sentidos atribuídos aos negros. Essa face セ associada a outros obrigue a se manterem em estado de inter-relação.
fatores de ordem política e económica que acentuam a ex- Assim, é possível perceber a representação como senti-
clusão das populações negras - grassou como aforma domi- do セL ou seja, cO,mo a rearticulação do sentido 1 que é a
nante na sociedade brasileira. De certo modo, sua divulga- realidade. A realidade, portanto, se infiltra na representação
ção sistemática e coordenada - através dos meios de comuni- mas esta se expõe como elaboração discursiva relativamente
cação, de instituições religiosas e de ensino セ se afirmou na autônoma. ,Por outro lado, a realidade como sentido 2 pode
vida cotidiana como uma realidade natural. se c?ractenzar pela reapropriação de sentidos propostos a
partir da- representação,
Nesse caso, é interessante verificar cerno as noções de
165 Mngritte,Apud Foucau1t, op. cit., 1988 - prefácio à exposição do pintor, valor エ 。 ュ セ ← se_ torna,m relativizadas, uma vez que realida-
Dallas, 1961, citado na orelha do livro, de e representação se Inter-relacionam e se distinguem urna

206 207
da outra e com apelos de sentidos diferenciados. Isso é o que e as cartee, tal como a frase do quadro de Magritte. alimenta
sugere Magritte ao afirmar que a "imagem de um pão com uma dupla situação, ou seja, nega o staius de similaridade
geléia não é alguma coisa comestível e, inversamente, tomar entre realidade e representação e afirma a relativa autono-
um pão com geléia e expô-lo num salão de pintura não muda mia que preside a relação entre ambas.
em nada seu aspecto efetivo".166 Se ouvirmos o outro texto que acompanha os anúncios e
Não-estamos realizando um exercício retórico, mas uma as caries, observaremos que ele rompe o panorama de reifícação
prospecção dos sentidos silenciados que também fazem ー。イセ imposto ao negro. Esse outro discurso - que se alimenta das
te da representação. Ou seja, o negro que reagiu contra a ações de resistência e negociação articuladas pelas populações
relfícação e engendrou processos de negociação ao longo da negras, em diversos momentos da sociedade brasileira - nega
formação social brasileira não se identifica literalmente com o status de similaridade entre a realidade e a representação (o
a representação do negro objeto divulgado nos anúncios e negro que resiste à opressão social não se vê retratado no ne-
nas caries, 167 gro que é vendido como um produto) e afirma a relativa auto-
O dispositivo de passagem de sentidos foi manipulado nomia entre ambas (fato demonstrado através do dispositivo
pela ideologia dominante determinando que o negro-objeto de passagem .dos sentidos do 1 ao 2 e vice-versa).
da representação (sentido 2) reduplicava o negro-objeto da O texto que afirma a reificação e o outro texto silenciado
realidade (sentido 1). Ou ainda, que o negro-objeto da reali- que a nega transmitem suas tensões para as imagens do ne-
dade (sentido 1) era apenas retratado no negro-objeto da re- gro. Desse modo, na mesma imagem da reíficação é possível
presentação (sentido 2). A divulgação maciça do negro-obje- vislumbrar o princípio de uma contra-imagem. Isto é, nas ima-
to (sentido 2), ao longo do tempo, tornou-se a referência para gens do negro-máquina-de-trabalho, do negro-souvenir, do
compreender os negros, sem sequer levar em conta seus pro- negro-produto, do negro-coisa-ruim estão instaladas as for-
cessos de resistência e de construção de identidade social (ou- j mas substanciais do negro-pessoa e cidadão social. Isso ocorre
tra possibilidade do sentido 1). ir na medida em que o processo de reificação tem que partir da
Diante disso, os sentidos da realidade e da representa- セG negação do caráter humano e social do indivíduo para se arti-
ção da realidade se dispõem como construções sociais e não
como a naturalização de um sentido dado a priori. A face
desafiante dessa perspectiva está no fato de que a afirmação
de um sentido é também a possibilidade de sua negação. Se o
!
t
I
cular. Em razão disso, negar a identidade social do indivíduo
para reifícé-lo é ter admitido, a priori, a sua identidade social.
Estamos diante de duas elaborações de sentido que se
inter-relacionam: a da imagem e texto de reificação, e a da
q u adr o de Mazritte mostrou a fratura entre o cachimbo .e a i
contra-imagem e texto silenciado que negam a reificação su-

I
o
representação cachimbo, é pertinente considerar que existe gerindo outros sentidos para a percepção dos negros. A pri-
também uma fratura entre o negro-objeto dos anúncios e das
caries e os demais negros brasileiros.
, meira elaboração vem se impondo na sociedade brasileira
\
II
como um fato naturalizado e pronto; a segunda é campo
Além do texto que legitima o negro-objeto, tem-se a pos- onde latejam possibilidades de entender o negro fora da
i:
sibilidade de redigir outra menção que desautorize a ima- reificação, mas também novas formas de reificá-Io apesar da
,i
gem. O "outro texto" silenciado que acompanha os anúncios intenção de não fazê-lo (para este último caso, recordamos o
iI anúncio da Parmalat veiculado na Revista Raça Brasil).
f É necessário perceber a representação do negro no
QセVm。ァイゥエ ・L Apud Foucault, op. cít., 1988.
âmbito da crise detectada por Foucault. Por um lado, a crise
157Ver Maria M. Machado, O p/ano e o pânico, Rio de Janeiro, 1994, p. 91. decorre da auto-referencialídade da representação - mini-

208 209

. . ., 4 ; 240 " eP CP 44 44= 4.24". • iP 411 1• • = , • o. #U$ 4M2 4 ,= 41 "4' "24 q 44" CZ P 0.=
- ....
mizando a interferência do sujeito a ser representado - e, por
outro, da perda de poder para articular os elementos constitu-
intes de si mesma. Assim sendo, a insistência na representa-
ção do negro de acordo com um único parâmetro evidencia o
empenho de tendências ideológicas conservadoras mas, si-
multaneamente, exige o surgimento de outras tendências que
estabeleçam a crítica e a superação desse cenário.
Se entendemos a representação COmo construção so-
cial, temos de levar em conta o fato de que uma de suas ca-
racterísticas é O apelo aos diálogos. As manipulações ideoló- NEGROS VISTOS COMO NEGROS
gicas que impõem representações absolutas privam os indi-
víduos e a sociedade do relacionamento com as diferenças,
gerando um circuito de exclusão e violência. Portanto, a crí- "Verde que te quiero verde.
tica aos modelos de representação é um procedimento com Verde víento. Verdes ramas."
implicações estéticas e políticas. Trata-se de discutir até que Federico Carda Lorca 168
ponto o privilégio de certos modelos têm como conseqüência
a restrição dos direitos de grupos ou indivíduos situados fora
dos modelos eleitos. o QUE HÁ PARA VER
Ao considerar os anúncios e as cartes de visites procura-
mos mapear a construção de um modelo de representação ab- No presente capítulo pretendemos analisar o fato de
soluta, em que o negro foi reduzido à condição de objeto. Além alguns negros brasileiros utilizarem a estetização do corpo,
disso, tivemos a intenção de demonstrar o percurso histórico segundo modelos de origem africana, como estratégia de cons-
desse modelo, de modo a reforçar a hipótese de que as orienta- trução de identidade e ocupação de espaços sociais. As rei-
ções ideológicas dos grupos 'interferem na elaboração dos dis- vindicações de direitos levadas a termo pela população ne-
cursos, nesse acaso, dos discursos visuais sobre os negros. gra brasileira, com as contradições inerentes aos movímen-
Não nos dispusemos a propor modelos alternativos de tos sociais, têm alterado os modos de relacionamento do ne-
representação, mas a chamar a atenção para o fato de que gro com o Outro e consigo mesmo.
eles podem nascer na medida em que se compreende o fun- As relações com o Outro estão mediadas pelas possibi-
cionamento dos modelos impostos. Só é possível mudar lidades de ser igual ao Outro ou distinto dele. Para o negro,
aquilo que se conhece buscando-se a diferença em relação ser o que o Outro deseja é abdicar de si mesma, enquanto
ao estabelecido. Como pudemos verificar, os mecanismos distinguir-se do Outro é abrir caminho para a configuração
de representação do negro como objeto são sutis e dificul- de uma identidade própria. Em quaisquer dos casos, tem-se
a experiência do conflito estimulado a partir de um referencial
tam a percepção de suas contradições. Daí a necessidade
externo, o Outro.
de percorrer suas etapas de organização e seus meios de
No relacionamento do negro consigo mesmo, o eixo do
difusão, bem como as atitudes assumidas pelos indivíduos
conflito se interioriza, pois se trata de perguntar em que me-
e pela sociedade diante deles.

168 Federico Garcia Lorca, "Romance sonambulo", ln: Obra poética completa,
Brasília, 1996, p. 358.
210
211
didaexiste consonância ou dissonância entre a identidade das fronteiras dos modelos estéticos, excluindo as formas que
do sujeito antes e depois de aderir à estética de um corpo não eram considera:Ias adequadas à ideologia burguesa e ao
afro. Em geral trabalha-se na perspectiva de que o negro セ seu padrão estético. E certo, devemos mencionar iniciativas que
com seu corpo histórico e cotidiano セ não é visível na socie- seguiram outras orientações, tais como os empreendimentos de
dade, o que caracterizaria a ausência de sua identidade. Po- artistas das vanguardas que, no decorrer do século XX, busca-
rém, ao assumir uma estética corporal afro, sua visibilidade ram na arte negra outros referenciais estéticos, No entanto, es-
se evidenciaria, credenciando-o a disputar um espaço social sas ações se situaram como ilhas em meio às pressões do merca-
já que possui uma nova identidade. do de arte, nitidamente cooptado pelo pensamento burguês.
Esses aspectos evidenciam a mobilidade das formas de A repercussão dessa linha de percepção do estético na
representação dos indivíduos e dos grupos sociais, bem como sociedade brasileira nos interessa na medida em que no sécu-
a competitividade que leva à legitimação ou à exclusão des- lo XIX se aliou, também, a um pensamento de base patriar-
sas formas. Por isso, é necessário considerar as orientações cal. Já nos meandros do regime escravista é possível detectar
ideológicas que atravessam a produção de imagens de indi- a imposição da ideologia mercantilista e sua posterior afeta-
víduos e grupos. ção burguesa de acúmulo de bens e abordagem utilitária do

A expansão mercantilista dos séculos XV e XVI edu- corpo. Assim sendo, os corpos-escravos foram tratados como
cou um olhar que diferenciava corpos de senhores e escra- bens geradores de lucros, disponíveis para a compra e a ven-
vos, de brancos e negros. O pensamento burguês, tendo como da, bem como para' a exploração sexual dos senhores. A ex-
referência essa distinção, contribuiu para a noção moderna pressão do pensamento patriarcal se faz sentir de maneira
do corpo como propriedade individual e estimulou a forma- contraditória na relação escravo-senhor, pois a ética reco-
ção de categorias para ordenar a leitura do corpo conforme menda o apadrinhamento do outro corpo manipulado, em-
o poder de interferência da classe e do indivíduo. Paralela- bora a estética de descendentes mestiços significasse a ruptu-
mente à ascensão da ideologia burguesa, observa-se que os ra do padrão estético da casa-grande.
desdobramentos da Revolução Industrial tornaram visíveis Para sustentar essa situação, o pensamento patriarcal
os corpos-operários, consumidos na faina cotidiana, contras- criou margens sociais para conter a tensão gerada pela con-
tando-os com os corpos-burgueses bem-sucedidos, limpos e vivência entre padrões estéticos distintos. A esse propósito,
perfumados. vale considerar os agregados mestiços ou os negros da casa
que eram apresentados nas fotografias das famílias brancas
Esse quadro mostra como o caráter estético que deli-
dominantes.t'" Nessa situação, o pensamento patriarcal man-
neou a imagem do corpo esteve subordinado às orientações tinha sob controle as provocações surgidas com a possíbilí-
da ideologia burguesa. A autonomia do estético cedeu lugar dade de se romper o padrão estético dominante em prol da
à dependência do ético, este sim, tomado como referencial ascensão de outro padrão estético representado por negros e
para estabelecer os campos de sentido do estético. Por conta mestiços, Fotografias do grupo familiar revelam que o pa-
disso, o.estético passou a ser visto como elemento secundário drão estético dominante era preservado, na medida em que
nos processos de elaboração discursiva, já que a priori se con- 1 era defendido por esse aparato ideológico. Daí o fato de as
siderava a ideologia que o sustentava. ,.I
Em outras palavras, passou a ser estético aquilo que, do !
!
:.:
ponto de vista ético, poderia contribuir para a configuração 169 Ana Maria Mauad, "Imagem e auto-imagem do Segundo Reinado", In:
de um discurso social. Na prática, isso significou o enrijecimento セ
( Luiz Felipe de Alencastro (org.). op. cit., 1997, p. 207.

212
1 213
I

iU aai
!
j1Ó. i
ti td'
1_, '7 sr 1P.,:
'Jl'
KII' ,#\'
?Z 7tar" tl •
tI te 71: dr. lt ti d_. is' • '"'!!'

7,
,
,
pessoas brancas ocuparem o centro da foto e as negras as ' [セiG dem, tal como o corpo dos negros. Os corpos negros recebe-
extremidades (Fig. 33). ", ram .uma marca estética ambígua - tanto foram valorizados
Dos pontos de vista estético e ético, os negros estão nas para o trabalho ou exploração sexual- quanto foram despre-
margens da fotografia, tanto quanto ocupam as margens da zados em função do preconceito racial e social. A estética atri-
sociedade. Isso implica dizer que o processo ideológico de buída ao feminino é também de caráter ambíguo, pois ao res-
diferenciação dos corpos tem como desdobramento a dife- saltar suas qualidades maternas e eróticas transformou-o em
renciação dos espaços a serem ocupados, Os corpos negros- objeto de afirmação da estética masculina, branca, escravista.
reduzidos à condição de objeto pela ideologia patriarcal e Se' o corpo negro foi reduzido à estética do negro-má-
escravista - foram categorizados como modelo estético se- quina, da negra-ama-de-leite ou da mulata-objeto-erôtico,
cundário sendo, por causa disso, empurrados para os ・ウー。セ também o corpo feminino foi restrito à estética da mulher-
ços sociais desprivilegiados, tais como a senzala, as periferias li
,< -
mãe ou da mulher-objeto-erótico. No caso específico das
urbanas e as colunas policiais dos periódicos. Os corpos bran- mulheres negras e mestiças se combinaram a estética
cos - sustentados como modelo estético dominante - se inte- construída a partir da interiorização de suas origens étnicas
graram aos espaços privilegiados da casa-grande e das colu- e também de gênero.
nas sociais, No interior dessa moldura social é que negros e mulhe-
A demarcação de padrões estéticos segundo interesses res articulam suas estratégias de ocupação de espaços, de
ideológicos presidiu também a relação entre gêneros. O olhar modo especial nos meios de comunicação. Até o momento,
patriarcal sobre o corpo feminino resultou na elaboração e negros e mulheres têm sido apresentados de acordo com o
imposição de um padrão estético em que se percebe a inten- padrão estético que a ética patriarcal elaborou. Para tanto,
ção de estabelecer o controle sobre a mulher. Na sociedade basta observar o processo de reificaçãc que atinge mulheres
patriarcal, branca e escravista, o padrão estético dominante e negros quando suas representações na mídia são utilizadas
ressalta a importância do masculino nãonegro, reduzindo os para vender produtos e não para evidenciar-lhes os aspectos
espaços de negros e mestiços (segundo um critério étnico), de de agentes sociais.
mulheres (segundo um critério de gênero) e de mulheres ne- A presença estereotipada do negro brasileiro nos meios
gras e mestiças (segundo os critérios étnico e de gênero), de comunicação é tão acentuada que os próprios negros se
A interferência de fatores éticos para delinear o perfil esforçam para não se identificarem com esse padrão estético.
estético da mulher atua na sociedade brasileira desde o pe- As justificativas para esse procedimento da mídia são, entre
ríodo colonial. O "processo de adestramento" que estabele- outras:o racismo dos publicitários e dos clientes das agências
ceu o padrão estético feminino foi acionado por diferentes de propaganda; a baixa aceitação das imagens do negro brasí-
formas de elaboração discursiva: uma "sobre padrões ideais leiro; a falta de empenho dos negros para disputarem essa fai-
de comportamento" - com a participação de moralistas, pre- xa do mercado de trabalho como publicitários ou top models.
gadores e confessores - e outra, com a aquiescência médica, Tais justificativas enfocam os fatos a partir de suas con-
"sobre o funcionamento do corpo feminino".'?" seqüências - isto é, os negros são excluídos セ evitando anali-
Na medida em que a mulher era um corpo distinto da- sar as forças ideológicas que alimentam a criação desses fa-
quele referendado pelo padrão estético e pela orientação ética tos. A estética de negro objeto e mulher objeto não 'é um dado
patriarcal, ela foi percebida como ameaça potencial a essa 01'- a priori, mas, ao contrário, decorre de um processo social que
a estabelece e sustenta, Os meios de comunicação de massa,
170 Mary DeI Priore, Ao sul do corpo, Rio de Janeiro, 1993, p. 26-27. em grande parte, reduplicam as articulações ideológicas que
214 215
da seguinte maneira: é possível para a sociedade brasileira pro-
na sociedade brasileira têm se caracterizado por uma pre-
duzir outros paradigmas estéticos dos negros com ênfase no
ponderância. do poder masculino, antes patriarcal, e atual-
mente também capitalista, estético, além das limitações préestabelecidas pelos fatores éti-
cos e ideológicos? Ou, para aguçar a provocação: é possível
Por isso! a mídia oferece aos negros a estética estereoti-
pensar uma representação social do negro a partir do próprio
pada do negro serviçal, fora-da-lei, esportista ou objeto eróti-
negro como valor estético?
co. Além disso, oferece a estética do negro brasileiro que - em
busca de suas origens - tem de se identificar com o negro
americano, jamaicano ou africano (preferencialmente com o
porte altivo dos nigerianos). Esse padrão estético sugere a o PENSAMENTO TATUADO
exclusão de outras imagens de negros, na medida em que
indaga: qual brasileiro deseja ter o perfil do negro angolano A transformação do corpo em objeto do conhecimento
tem a ver, certamente, com a situação central que o homem
ou moçambicano, ambos assolados pela miséria social de
estabeleceu para si mesmo no domínio da produção do pen-
países afetados pela guerra?
samento. Os procedimentos para desvelar o corpo numa pers-
Esse quadro nos remete à conhecida relação entre Prós- pectiva biológica ou para interrogá-lo numa perspectiva
pero e Calíban, mas com um aspecto particular. Se a primei- ontológica têm sido evidenciados como exercícios que se re-
ra interpretação mostra a capacidade de Caliban para se lacionam à vida social, ou seja, aquilo que se sabe e se deseja
apropriar da linguagem de seu opressor para usá-la como saber sobre o corpo ultrapassa os limites da ciência e da filo-
instrumento de ataque, numa outra perspectiva há que se sofia para converter-se em informação que a sociedade bus-
considerar até que ponto Próspero permite que Caliban re- ca com avidez.
belde seja o Caliban rebelde."! O corpo humano constituiu, desde sempre, uma
Aplicando o raciocínio à questão que analisamos, vale interface privilegiada para a veiculação de discursos. O apren-
indagar até que ponto os padrões estéticos assumidos pelos dizado de suas funções biológicas contribuiu para a compre-
negros têm sido exatamente aqueles permitidos pelo padrão ensão de que ele se integrava a um sistema de relações
estético dominante. Observe-se que os meios de comunica- estabelecidas pelos seres vivos entre si e com o meio ambiente
ção ofertam aos negros a oportunidade contraditória para em que se situavam. Ao mesmo tempo, o corpo teve seus
serem outros - e não eles mesmos - I de acordo com um elen- caracteres de natureza transformados, na medida em que
co de possibilidades préestabelecidas. incidiram sobre ele significados de ordem cultural. Em dife-
rentes épocas, o ser humano, individualmente ou em grupo,
Dentro desse panorama de imposição de modelos so-
se entregou à tarefa de inscrever no corpo as marcas de suas
ciaisfo da classe média consumista), psicológicos (o do ne-
identidades e de seus valores através de tatuagens, es-
gro bem-sucedido) e estéticos (o do homem negro com cor-
coriações, vestímentas ou ornamentos. ln Nosso interesse, no
po atlético e da mulata sensual) é que se propõe o desafio
momento, não se volta exatamente para as formas de inscri-
para a elaboração de outros perfis estéticos para as popula-
ção projetadas no corpo, mas para o modo como a inscrição
ções negras no Brasil. A questão pode ser formulada, então,

l12Sobre os aspectos formais da ornamentação ver 1.C. F1Ügel,A psicologia


17) Fredric [ameson, Transformações da imagem na pós-modernidade, Rio de Ja- das rtnrpas, São Paulo, 1966, p. 33.
neiro, 1994, p. 116.
217
216
k' ri = '....... - ti ri .. ... I' "'_ dO .. "
- , ...,

de mensagens no corpo nos leva a perceber os agentes que se tlfícarmos nele as elaborações ideológicas acerca das rela-
tornam privilegiados ao transformá-lo numa interface para ções entre gêneros, grupos étnicos, modelos econômicos. ori-
a elaboração de discursos e sua conseqüente difusão. entações políticas e dicções estéticas,
O corpo é intrinsecamente um lllgar social, na medida em O corpo é, em sua realidade física, uma forma de co-
que as resoluções acerca dele e ele próprio se tomam visíveis a municação que evidencia e vela os modos de ínteração en-
partir dos seus vinculas com a sociedade. No cerne desses vín- tre homens e mulheres, enfatizando os jogos de sedução, es-
culos está o jogo do corpo que é revelado pela sociedade, ao tranhamento, afeição ou violência, É também no corpo que
mesmo tempo em que a revela. Isso evidencia o fato de que o os homens comunicam seu pertencimento a grupos étnicos
corpo e a sociedade participam do mesmo dornínio de elabora- distintos, bem como os conflitos decorrentes dessas distin-
ção de pensamento que elege o humano como referencial. Daí a ções. Na estrutura física do corpo pode-se ler concretamente
perspectiva antropomórfica que orienta a linguagem utilizada as conseqüências de modelos econõmicos que produzem a
para analisar estes dois elementos e que nos permite falar com miséria ou o bem-estar dos indivíduos: as feridas, os olores
relativa tranqüilidadeem "corpo social", quando se trata de agradáveis ou desagradáveis, a vestimenta rota ou elegante
investigar as relações coletivas dos homens, são verbos de uma comunicação acerca do processo de ex-
Se for contemplado como lugar social, o corpo mantém clusão ou de inserção dos indivíduos na sociedade.ln
e ultrapassa o sentido biológico que a princípio o identifica, e A dimensão política do corpo se exprime através das
adquire O estatuto de realidade orgânica, afetada pelos pro- legislações que garantem ao cidadão os direitos de ir e vir, de
cessos histórico-sociais. Em conseqüência disso, toma-se vetar trabalhar e morar dignamente em oposição aos procedimen-
de representações que se estendem além das ciências biológi- tos autoritários que cerceiam fisicamente o indivíduo. Por fim,
cas. A partir desse ponto, o corpo apreendido também pelo as dicções estéticas do ccrpv delineiam as formas socialmen-
olhar filosófico se inscreve na esfera da realidade para qual o te mais ou menos aceitas como o ideal de beleza, ao mesmo
homem produz sentidos com o intuito de reconhecer seu lu- tempo em que ressaltam as tensões entre o corpo natural jus-
gar na própria realidade, bem como para vislumbrar as ins- tificado pelas teorias biológicas da evolução e os corpos hí-

I
tâncias metafísicas em que ,o corpo pode ser acolhido pelas bridos - como os cyborgs - que são moldados pelas novas
articulações da linguagem e do pensamento. tecnologias.!"
O corpo que a linguagem e o pensamento apreendem O corpo, entendido como interface de diferentes dis-
abre-se como espiral de signos, cujas conexões instauram a cursos sociais, nos leva a considerar os corpos femininos e
possibilidade de pensar o corpo como instância de comuni-

I
masculinos, negros e brancos, pobres e ricos, naturais e híbri-
cação, sendo o enunciado e a interface por onde os enuncia- dos como instâncias comunicativas. Em conseqüência disso,
dos se entrecruzem e circulam. Nessa perspectiva, é interes- reencontramos no corpo o dilema inerente ao processo de
sante considerar a produção de sentidos que se destina à di- comunicação, isto é, na medida em que a comunicação

I
vulgação através do corpo, bem como a análise dos discursos explicita a interação entre indivíduos e grupos ela também
que são tecidos a respeito dos discursos que o corpo veicula cria lugares de tensão que obliteram as possibilidades do en-
como informação. ,
O corpo se dispõe no campo da comunicação como uma t
interface genérica para a elaboração de discursos e se revela,
simultaneamente, como interface de discursos específicos. O
corpo torna palpável os discursos das múltiplas realidades
I 173 Sobre a análise da exclusão como "processo" social ver Robert Castel et
al., A desigualdade e a questão social, São Paulo, 1997.
174 Donna J. Harawny. 5hnians, c!Jborgs, and womcl1: the renvomnon of nature,

sociais e as exprime como particularidade, ao ponto de iden- If New Ynrk, 1991, ーNQUPセ

218 219
tendimento. O processo de comunicação é abertura para o po negro tem sido escrito por outros agentes sociais, além
Outro e defesa contra o Outro, pois se revela também como dos próprios negros. Esse fato ocorre também com corpos
resultado de uma lógica social competitiva. de outras etnias mas, em relação aos negros, chama a aten-
Assim sendo, o corpo como processo de comunicação é ção o caráter de saturação dessa modalidade de discurso
resultado de elaborações sociais relacionadas aos ambientes escrito no corpo.
de competição que envolvem os indivíduos e os grupos. Cons- , Adotamos a metáfora do corpo tatuado para discutir o
truir sentidos que constituem o corpo-comunicação é uma ta- processo de elaboração de discursos considerando que eles
refa dilemática, pois implica considerá-lo cama elemento ー。ウセ resultam dos mecanismos de pensamento - responsáveis pe-
sível de diferenciações que denotam as dificuldades do ser las tessituras ideológicas - e da vivência dos discursos que
humano para pensar o Outro como parte de si e, ainda, para revela a materialização das tessituras ideológicas. Assim sen-
pensar a si mesmo como Outro. Eis, portanto, o paradoxo do do, o corpo tatuado constitui a instância material de certas
corpo, na medida em que o consideramos como processo de produções ideológicas, ou seja, aquilo que se pensa sobre o
comunicação que desvela certos campos de sentidos, ao mes- mundo e os indivíduos pode tornar-se palpável na superfície
mo tempo em que vela o aparecimentos de outros. do corpo.
Como vimos, o corpo constitui uma interface para di- As diferentes ideologias tecidas pelo pensamento tatua-
versas elaborações discursivas, fato que assegura sua carac- ram os corpos de diferentes maneiras, acentuando as
terística de elemento comunicativo. Por outro lado, pudemos dissociações surgidas à proporção que o humanismo ressaltou
observar que os discursos específicos também utilizam o cor- o nascimento dos corpos humanos e olvidou "o nascimento
po como interface, nesse caso, evidenciando os conflitos soei- conjunto da 'não-humanidade' das coisas, dos objetos ou das
ais em torno de questões de gênero, etnia, condição sócio- bestas."!" Em relação aos corpos humanos, outras dissociações
econômica e valores estéticos. foram alimentadas pelo etnocentrismo e pela supremacia po-
Adiante procuraremos analisar de que maneira os dis- lítico-econômica de certos grupos sociais, culminando' com o
cursos sobre etnia perpassam o corpo e estabelecem linhas controle de corpos de negros, mulheres e estrangeiros sob a
de interação ou conflito entre os indivíduos. É seguro que os alegação de não corresponderem a um padrão de corpo raci-
discursos sobre etnia são organizados, também, com base nas onalmente elaborado para o mundo ocidental.!"
questões de gênero, condição socioeconômica e padrão esté- No que diz respeito ao corpo pensado sob o ponto de
tico. A junção desses elementos podem contribuir para a ela- vista étnico, cumpre ressaltar a pretensão de diferenciar um
boração de discursos de afirmação ou rejeição de determina- corpoinais próximo da natureza de outro corpo identificado
dos segmentos sociais, demonstrando que a comunicação com a cultura. Essa dicotomia se articulou como pensamen-
através do corpo se constitui como processo dialético. to que tatuou os corpos negros com signos de não-humani-
Nossa intenção, por agora, se volta para a análise do dade em oposição aos corpos brancos que foram relaciona-
estereótipo de exclusão que incide sobre os indivíduos negros dos aos signos de pureza e elevação moral. Na prática essa
e que faz valer a representação de negros como sinônimc dicotomia não se sustenta, uma vez que os limites da nature-

de inferioridade étnica, baixa condição sócioeconômica e o;· za no corpo podem ser delineados pelas interpretações cul-
ausência de padrão estético. Esse aspecto é interessante na
'I ,
medida em que o corpo negro tem sido utilizado, historica-
mente, como interface para elaborações discursivas que セ
I 175 BrunoLatour, Jamais fomos modernos, Rio de Janeiro, 1994, p. 19.
,I
anunciam sua própria rejeição. Em outras palavras, o cor-
! J76Mary del Priore, op. rit., 1993, p.124.

220 1 221

.,=: $"3 li ,# .>.. = 41 d$ .. , " " ' ....u" ." "A'"'' BセL[ N • ,= ,..,= TI OH 4= '.=1= 014 =. " • lO ""'
MセN
turais e que a visão de um corpo culturalmente elaborado Outro que haviam eleito como habitantes da margem social. A
implica a inclusão de seus atributos de natureza. No-primei- 'hfbridização dos corpos revelou que natureza e cultura atuam
ro caso, as interpretações culturais avaliam a incidência da na definição dos corpos negros e brancos, bem como do próprio
natureza no corpo com base em articulações ideológicas que homem como ser do pensamento e do desejo.
estabelecem o Outro como representante do corpo selvagem;
Diante disso, SOmos levados a inquirir sobre a apresen-
no segundo caso, a natureza do corpo pode se exprimir na
.fação do corpo como interface de discursos que se relacio-
intensidade sexual da gravidez, em torno da qual a cultura
:. nem dentro de um esquema de poder que orienta a forma-
desenvolveu discursos e imagens de extremo apelo metafísico.
': ção de discursos silenciados e de discursos que alcançam a
No entanto, a dicotomia que relaciona o corpo ora à
visibilidade social. Segundo os discursos gerados do ponto
natureza, ora à cultura se impôs como uma forma de pensá-
lo. Desse modo, o pensamento produziu corpos negros e bran- de vista étnico, desde o projeto das conquistas ultramarinas
cos numa estreita relação com os conceitos de exclusão e . os corpos negros têm sido submetidos à condição de silêncio
inclusão social- respectivamento.w Para os corpos negros, no que diz respeito à elaboração do discurso sobre si mes-
que foram situados na esfera da natureza, elaborou-se o dis- mos. Em contrapartida, se ouve em alto e bom tom os discur-
curso da exclusão, ao mesmo tempo que para os corpos bran- sos acerca da natureza que predomina nos corpos negros,
cos, situados na esfera da cultura, distinguiu-se o discurso distanciando-os, conseqüentemente do mundo da cultura.
da inclusão na vida social. As evidências dessa linha de pensamento na experiência
As relações sociais estabelecidas em acordo com essa histórica brasileira podem ser observadas nas relações sociais e
linha de pensamento têm caracterizado o modo de interpre- nos meios de comunicação. Dos periódicos da época colonial
tar os corpos negros e brancos, criando, em geral, enredos aos recursos da mídia contemporânea encontramos um mesmo
que ressaltam a contradição da dicotomia acima. Os conta-
esquema de representação dos corpos negros. Do ponto de vis-
tos entre negros e brancos se tornaram mais freqüentes a partir
ta formal nota-se que o corpo negro reproduz os valores vigen-
do projeto europeu de colonização, iniciado em fins do sécu-
lo XIV. A crescente expansão em direção ao continente efrl- tes em sua época: tem-se, portanto, desde o corpo do escravo
cano e o posterior transporte de populações negras para o fugitivo exibido principalmente em jornais do século XIX até os
Novo Mundo demonstraram, desde cedo, que a dicotomia corpos da mulata sensual, do negão viril ou do atleta vencedor,
do corpo-natureza versus o corpo-cultura só se sustentaria divulgados através dos meios de comunicação modernos.
como elaboração ideológica para justificar a produção de O corpo, nesse caso, é literalmente a interface de uma
mão-de-obra escrava. modalidade discursiva que se difunde através da escrita, da
A contradição decorreu do fato de que, enquanto se imagem, do som e do movimento. O corpo multimídia é apre-
acentuava a ideologia do corpo-natureza dos negros, simulta- sentado como resultado de uma linha de pensamento que
neamente se observava a busca desse corpo como possibilidade realça a exclusão dos corpos negros da esfera da cultura, na
de realização do desejo. Evidentemente os representantes do
medida em que enfatiza neles os aspectos da sexualidade e
corpo-cultura eram desaconselhados dessa prática, mas se viam
do instinto como atributos da natureza.
culturalmente atraídos para a necessidade de dialogar com o A saturação dos atributos de natureza do corpo negro
gera uma situação ambivalente no tocante à produção de
177

222
Em rclacâo no corpo que (1 pensamento produz ver Paulo Voz, "Corpo e
risco", Rio de janeiro, mtmeogcefedo. P: 2.
II sentido. Por um lado, o pensamento que restringe o corpo
negro ao domfnío da natureza também o exclui do domínio

223
I
da cultura e da saciedade organizada; isso foi utilizado
J
! -lho e a sexualidade são transformados em elementos de va-
como argumento para justificara exploração da força de lor meramente biológico.
trabalho e da libido, como demonstram os estereótipos do Por outro lado, são raros os momentos em que o corpo
negro que é forte como um animal de carga e da mulata que negro surge como interface de atividades da produção inte-
incendeia os' desejos masculinos. Por outro lado, a satura- lectual. Mesmo a produção artística associada ao corpo ne-
gro, geralmente, é apresentada como fruto hereditário, dimi-
ção de referência aos atributos de natureza do corpo leva
nuindo, com isso, a possibilidade de interpretar a tradição
ao esgotamento de seu sentido, pois ao expô-lo excessiva-
como resultado de elaboração cultural. A expressão típica
mente como natureza acaba por restringir o desejo de empregada pela mídia nessas ocasiões se refere ao corpo em
desvendá-lo até mesmo como natureza.'?" A conseqüência sua dimensão de natureza, ou seja, afirma-se que a tradição
imediata disso é a elaboração de outra modalidade discursiva - que deveria ser vista como produto de elaboração cultural
que substitui o corpo negro como natureza pelo corpo ne- - se manifesta no corpo contemporâneo porque "está no san-
gro como objeto. Em ambos os casos, o que se observa é a gue". Essa expressão - que exclui a perspectiva de elabora-
organização de um conjunto de discursos que exprime atra- ção cultural da tradição e-a restringe aos domínios da heran-
vés do corpo a não-humanidade dos negros. ça biológica - possui um percurso histórico. Não podemos
O corpo.sendoa interface desse discurso de desu- esquecer que a mesma referência ao traço biológico do ウ。Nョセ
manização, interage com outras interfaces, ampliando o al- gue foi empregado para classificar negros e judeus na SOC1e-
cance da mensagem que aliena os indivíduos negros. De ma- dade brasileira: eles, cujos corpos foram ideologicamente iden-
neira contraditória- quanto mais os negros surgem na mídía, tificados como portadores "de sangue infectaI/um, foram por
menos se afirma um discurso de diferença em relação ao dis- esse mesmo motivo excluídos de vários setores da vida social.
curso quê os caracteriza como elos perdidos da natureza ou Ao nos determos especificamente no corpo negro como
como objetos produzidos pela sociedade de consumo. interface dos discursos de exclusão, tivemos a intenção de
Nesse caso, a fusão entre pensamento de exclusão e demonstrar uma das faces de um jogo mais complexo. Ou-
tecnologia sustenta um simulacro de realidade que se impõe tros corpos e outras linhas de pensamento se entrecruzam
como realidade, isto é, os negros passam a ser aquilo que se no processo histórico colocando diante de nós uma extensa
diz sobre eles através de seus corpos. Ao contrário do cyborg rede de inter-relações sociais, políticas e cconômicas. Um dos
- que é apresentado à sociedade como anunciador do fim da fios dessa rede, com largo alcance social, é tecido a partir dos
fronteira entre natureza e cultura'" セ o corpo negro reapare- vínculos estabelecidos entre a produção do pensamento e os
ce com frequência para reafirmar essa fronteira, pois o que meios empregados para divulgá-lo. O pensamento de exclu-
se observa são corpos no exercício das atívldades de sobrevi- são aqui analisado tem como um de suas interfaces justa-
vência como o trabalho e a procriação. Daí a imagem de cor- mente os indivíduos que exclui, ou seja, os corpos de negros e
pos suados, mutilados numa evidente alteração de sentido negras. Sobre essa interface atuaram os ideólo.gos de ?ru'p0s
das atividades de sobrevivência, na medida em que o traba- dominantes e, na contemporaneidade, tambem os tecrucos
responsáveis pelo funcionamento dos meios de comunicação.

178 Sobre a saturação e "a liberação de todos os desejos" como agente de


esvaziamento do sentido ver Jean Baudrillard, A arie da desaparição, Rio de 180S obreas regras de inclusão e exclusão nas iイュ。ョ、 セ・ウ !eligi?s.as no bイセウゥャ
Ianeíro, 1997, p. 106. do século XVIII ver Fritz Teixeira de Saljes, As asoocteçoes rc/lglOsas 110 cícío
179 Donna J. Haraway. op- cit., 1991,.p. 152. do ouro, Belo Horizonte, 1963.

224 225
to .. te
ed se. 11 Ir
t
",. :7 a:,,, BGセ I'
セT
"cP
, セoBL
","
'''' '
"E' "71' 50' '> 'Sr • m' . 'tert' Mm' " c t t.. , .. " ....

セウ ャュ sendo, a interfa?e do corpo negro passa pela media- modernidade da lógica capitalista, isto é, prevalece a imposi-
çao dos m?dernos equipamentos de Impressão gráfica e dos ção de perfis estéticos segundo as orientações de uma ética
apurados SIstemas de produção audiovisual. dominante.
Além da questão tecnológica - que merece atenção por- Entenda-se, não pretendemos substancializar os mode-
que, ・セ⦅Zイ・ outros aspectos, multiplica através da mfdía os los da ética patriarcal ou da ética capitalista, de modo a acre-
estereótipos do corpo negro ligado exclusivamente à nature- ditar que todas as formas de relações sociais no Brasil sejam
za - _セエイ。 questão importante se nos apresenta, esta de or- decorrentes delas. Mas, é importante frisar que a aproxima-
dem ・セャ_。N Ou seja, como analisar as linhas de pensamento ção desses dois modelos se deu em momentos decisivos para
que utlltz_am a tecnologia para reafirmar antigos esquemas o delineamento de um certo esquema de ordem social que,
、セ :xclusa.o ュッエャ[。セッウ por diferenças de etnia, gênero, COn- embora não seja absoluto, ocupa os principais canais de de-
dição socioeconõmíca ou padrão estético. cisão política e organização econômica do País. l S1 Além dis-
..A percepção do corpo como interface para os discursos so, se o patriarcalismo e o capitalismo, por um lado, forjam
SOCiaIS atualiza as discussões acerca dos novos espaços a uma tipologia de vida social, por outro, se mostram flexíveis
serem Nッ」オーセ、_ウ pelo sujeito na sociedade contemporânea. para negociar aberturas que representam, simultaneamente,
Os antlgos limites demarcados pela moral, característicos de a possibilidade de se sustentarem como modelos de éticas
uma sociedade de vigilância, vão sendo gradualmente con- influentes na sociedade.
testados pela ausência de limites inaugurada com as refie- Portanto, é interessante considerar as conseqüencias do
xôes autocríticas da contemporaneidade. O corpo, portanto, diálogo entre ética patriarcal e ética capitalista, na medida em
se apresenta como um desafio à reflexão teórica pois, por Um que a chamada grande mídia explora as orientações ideológi-
lado reproduz antigas modalidades discursivas, por outro, cas e estéticas desse encontro, no sentido de restringir as opor-
se abre as novas configurações de sentido resultantes das tunidades de produção de perfis estéticos alternativos. É em
transformações do próprio corpo. relação a esse cenário que podemos verificar as contradições
dos negros brasileiros quando utilizam a lógica da grande
mídia como estratégia para ocupar espaços sociais. Aqui é
IMAGENS QUASE PRONTAS possível adaptar a reflexão de jameson, quando se nota que
os negros (Caliban) são o que são na mídia porque a mídia
A ênfase nos elementos éticos gerou padrões estéticos (Próspero) permite que eles sejam dessa ou daquela maneira.
do negro brasileiro aos quais é necessário fazer referência se
se pretendo pensar paradigmas alternativos. A ética patriar-
ca! redUZIU a importância dos aspectos estéticos para alimentar João Luís Ribeiro Fragoso, op. cit., 1992, P: 258-9, parte expressiva dos
181 Cf.
homens ricos no período colonial fizeram da atividade mercantil a fonte de
a imagem セッ negro-objeto. O interessante nesse fato é que os sua r-iqueza. No entanto, as fortunas de proprietários rurais - inseridos no
negros, muitas vezes, reduplicam essa imagem sem, no en- modelo da ética patriarcal - também estiveram associadas 11 especulação
tanto, arranhá-la com as perspectivas de novos sentidos. capitalista, como observa Sheila Siqueira de Castro Faria," Fortuna e famíiia
em Bnnanal no século XIX", ln: Hebe M. Maltas de Castro et ali (orgs),
Isso ocorre na medida em que a sociedade brasileira Resgate: lima janela para o oitocentos, Rio de Janeiro, 1995, p. 71. Segundo a
セ ̄ッ tem demonstrado interesse suficiente para estimular autora, "Os maiores empresários dos oitocentos foram, quase sempre, 'fa-
ュエ・イM ャセ￧￵・ウN entre. os diferentes grupos e suas respectivas zendeiros-capitalistas', pois associavam à atividade de fazendeiro negócios
°
elaborações discursivas. O que se observa é aperfeiçoamen- comerciais e financeiros (empréstimos a juros)." A influência económica dos
"fazendeiros-capitalistas" se desdobrava em poder político, com a obtenção
to de uma lógica patriarcal que permeia a apregoada de títulos de nobreza e controle de redutos políticos.
226
227
Por essa razão, o fato importante que é a elaboração de P'" modalidade profissional. Porém, não basta a herança
blicações voltadas para o debate acerca de perfis não estere- fenotípica para garantir à mulher a profissão de mulata. É
otipados deis negros - vide as Revistas Ebony, nos Estados necessário que a herança feno típica seja reconfigurada ideo-
Unidos, Raça Brasil e Black People, no Brasil- se vê ameaçado logicamente, recebendo especificações que caracterizam o
pela possibilidade de ser um discurso a mais que se adapta às "ser mulata", tais Como ser artista ou top model e tornar-se
regras do mercado editorial e, conseqüentemente, dos mode- um produto de exibição pública.
los identitários dominantes. O exercício da profissão mulata está imbricado com a
Em vista disso, a estratégia de ocupação de espaço - definição do produto mulata oferecido aos observadores. A
resultante de um padrão estético moldado a priori por uma embalagem do produto desempenha papel fundamental em
ética dominante - implica uma relativa ocupação de espaço sua divulgação. O exemplo mais característico decorre da as-
social. Se entendemos que a ocupação de espaço passa por sociação do produto mulata a um agente que a divulga. Foi
uma transformação do quadro de produção discursiva vigen- através do rótulo do divulgador que as mulatas do Sargentelli
te, verificamos que a reduplicação da estética do negro-objeto se tomaram conhecidas no Brasil e no exterior. O investimen-
reforça o antigo paradigma ético e estético, bem como inibe o to recente e mais sofisticado é o da mulata Globeleza (Figura
surgimento de novos paradigmas éticos e estéticos. 34), que se constituiu como um fenômeno publicitârio.!" A
Em muitos casos, a estética que os negros brasileiros ascensão do produto mulata restringe a área de significado da
assumem como resposta à estética do status quo é a mesma identidade pessoal. de modo que a mulher assume o nome do
do status quo, tanto assim que vem sendo assimilada pela so- divulgador (Sargentellí. TV Globo) em detrimento de sua no-
ciedade sem graves abalos. Consideremos para análise os meação própria (o grande público não sabe os nomes das
exemplos da "profissão/ produtofmulata, do negão viril e mulatas do Sargentelli e frequentemente trata por Globeleza a
cidadã nascida "Valéria Conceição dos Santos").
do negro atleta/atleta vencedor.
A análise da estética da mulata demonstra que a ética
A exploração da mulata como representação estética do do capitalismo articula as noções de "profissão" e "produto
feminino oculta traços fundamentais da identidade das mu- mulata" para atender às novas demandas do mercado con-
lheres negras brasileiras. A imposição da estética da mulata sumidor e, para isso, sustenta a ética patriarcal que reduz os
reifica a mulher, impondo-lhe um caráter de coisa absoluta - direitos da mulher sobre si mesma. A mulata se torna pro-
mulata -'- desenraizada dos processos culturais de interação e priedade do agente divulgador, passando a ser identifi.cada
conflito que lhe deram origem. Além disso, reduplica uma pelo aposto que revela a identidade desse agente. A aliena-
segmentação oriunda do período escravista que opõe a estéti- ção da identidade da mulher, nesse caso, ocorre através da
ca da mulata-prazer à estética da negra-trabalho. dupla personalidade que assume: como mulher-sujeito ela é
A imagem padronizada da mulata tem sido ァイ。セ desconhecida do público, no entanto, como mulata-produto
dativamente deslocada do seu universo sociocultural para é amplamente desejada.
ganhar autonomia como produto elaborado. O procedimen- Eis o que se pode notar na matéria sobre a mulata
to da mfdia consiste em investir na idéia do "ser mulata" Globeleza publicada pela Revista Raça Brasil": "Fora da
como "profissão"- isto é, atividade regida pela lógica do ca- telinha, vestida COm jeans e camiseta, o mulherão que vemos
pital/trabalho - e como "produto" - ou seja, objeto a ser con- na TV tem só 1,60 metro, mas as formas exuberantes estão
sumido no mercado de bens simbólicos da comunicação. As-
sim como os indivíduos sobrevivem de Suas profissões, a Homero, "Valéria Valenssa -que beleza", Raça Brasil,São Paulo, ano
lS2Rit21
mulata é integrada ao mercado como portadora de uma nova 2, número 6, pp. 40-47.

228 229

; Pi iia;44 • 44 4a .W $i '_ _ i 41$$4.


------------
presentes e bem dístribuídas",183 A identificação da mulh A contradição diz respeito ao segundo aspecto. A ética
"fo.ra d a t セ [ilnh" - er,
a nao revela a mulher-sujeito mas a mulher- capitalista mantém a ética patriarcal que alardeia a predomi-
ッ「ャセ L pOIS os referenciais de identificação são retirados da nância masculina, no entanto, a estética do negão viril pressu-
eS,tetIca_ da Globeleza. Trata-se, portanto, de uma estética de põe que o masculino dominante tenha de ser o negro. A ques-
alrenaçao, na medida em que a mulher não é reconhecida tão é: como admitir por dominante o negro que foi reduzido à
pelas, ウセ。 características de agente social, mas é reduzida à condição de objeto.pelo regime escravista?
condíção de fórmula "consagrada como Clobeleza".'> Porém, uma análise mais detida revela a capacidade
, . A ética 、セ capitalismo também atua na elaboração da da ética capitalista para gerenciar suas próprias contradi-
estética do negao viril, pois se preocupa em oferecê-lo ao ções. A estética que exalta a virilidade se apropria do negão
mercado como um ーイッセオエ Z "o negão-sensação também pode como imagem "da moda", ou seja, passa a utilizá-la como
ser encontrado, aos quilos. nos bailes charme - não por acaso instrumento que confirma a reificação do corpo negro. Em
uma ヲN・「イセ na cidade." 185 Tal como a mulher-sujeito que é função disso, a ética capitalista estabelece parâmetros para a
red.uzlda a mulata-produto, o homem-sujeito também é ofe- estética do negão viril, tal como faz para o produto mulata.
recido ao público como negão viril, um produto da moda, Essa estética privilegia o negão com corte de cabelo "batido,
アオセ aparece em destaque nos espaços de maior apelo dos colado na cabeça", que usa "cordão de ouro no peito", ouve
meIOS de. comunicaç.ão <!'ig. 35). セウ・ fato é relevante, pois "pagode, funk e charme."!"
、セュッョウエャセN a domesttcaçao da antiga imagem do negro ban- Um fato, no entanto, evidencia a rigidez da ética patri-
dido, !requent.ador das colunas policiais. O negão viril está arcal, mesmo quando é apropriada pela ética capitalista. Trata-
revestido esteticamente de modo a não significar ameaça para se da nomeação daqueles que representam a estética do negão
o observado- mas, ao contrário, para oferecer-se a ele como viril. Ao contrário da mulata que é identificada diretamente pelo
objeto de desejo. rótulo de seu divulgador, existem duas categorias de negão vi-
A ética capitalista, que vende a estética do negão viril ril: uma que identifica o sujeito (formada por artistas da música,
tem 、セ se 、・ウセ「イ。N para resolver uma contradição: por オ セ televisão ou profissionais do esporte) e outra que anula a identi-
lado, e necessarto cnar o desejo e atender à demanda de um dade do sujeito através da reíficação (formada por fre-
mercado ávido por produtos; por outro, é imperativo susten- qüentadores de bailes de funk e charme, por policiais e seguran-
tar a ética patriarcal. O primeiro aspecto tem sido solucionado ças, enfim, pelo homem negro que está fora da mfdia).
セエヲ￳ャカ←ウ L、セ c:escente apelo à sexualidade COmo objeto de dese- Dessa maneira, a ética capitalista defende seus interes-
JO. A ヲゥャセ。 I.nveste numa linguagem sexualizada aplicando-a ses assumindo urna espécie de solidariedade de gênero, pois
aos mais dIferentes produtos, seja um automóvel, um reifica o negão viril e ainda permite uma fresta por onde ele
・セ イ 、ッュ←ウエャ」ッ ou o corpo humano. Em vista disso, o negão vislumbra sua identidade de homem. No entanto, a fresta é
;lnl,e apresentado numa linguagem duplamente sexualizada, Um concessão de Próspero a Calíban, já que a identidade do
isto e, a que envolve os produtos e a que envolve o corpo. negro é vislumbrada segundo os paradigmas estabelecidos por
um agente dominante. De fato, essa fresta tem sentidos que re-
forçam a ética capitalista e sua aliada patriarcal: por um lado
183 Idem, p. 42.
jsセ lbidem, p. 42.
18; Ricardo lゥョ」セL "O apogeu do negão", O Dia, Rio de Janeiro, 08/12/96.
Caderno DOl1lllJgo, p. I. 186Idem, p.'].
230
231
ilude o negão viril fazendo-o supor que está -de posse de sua liA carreira de corredor nem sempre esteve garantida para
identidade, por outro reafirma a predominância do homem so- Ronaldo. Ainfância pobre e o gosto pelo esporte fizeram com
bre a mulher; em geral, e sobre a mulata, em particular. que se arriscasse em peneiras de futebol- chegou a treinar no
Através da estética do atleta negro a ética capitalista Descoberto Futebol Clube - seu time do coração até hoje. Sem
apoio para desenvolver seus dotes, o garoto chegou também a
demonstra sua capacidade para elaborar e alterar os discur- tentar a sorte como costureiro e com a enxada, que só pode
sos. As estéticas da mulata e do negão viril indicam uma preo- largar em 1988. A vontade de vencer e o biotipo favorável são,
cupação em apropriar-se da identidade do Outro. Por isso, segundo Henrique [Henrique Viana, seu primeiro técnico], a
reifica-se o sujeito que é considerado um oponente e se divul- essência do talento de Ronaldo." 187
ga sua imagem reificada. Isso é empregado como argumento
para justificar a superioridade de um grupo étnico-social so- A narrativa de vida do homem vencedor possui os re-
bre o outro, com evidentes vantagens para aquele que detém cortes do típico romance burguês, isto é, demonstra a con-
os recursos políticos e econômicos. frontação entre o desejo do indivíduo e as dificuldades im-
postas à realização desse desejo. Para atingir seus objetivos,
A estética do atleta negro apresenta uma elaboração pe-
o sujeito se entrega à superação dos obstáculos criados pelo
culiar. Trata-se de divulgar a imagem do indivíduo vencedor,
mundo e também pelas suas próprias limitações. Em outras
embora não haja empenho em situar o homem negro nessa con-
palavras, tem-se o herói burguês que se transforma em
dição bem-sucedida. Muitas vezes, no entanto, a realidade dos paradigma ao término de sua trajetórie vitoriosa. Além dis-
fatos não permite que se troque a imagem de um atleta negro so, é preciso considerar que o fim do percurso marca tam-
vencedor pela imagem de outro atleta não-negro. Se a sccíeda- bém a transmutação do antigo sujeito - ainda hesitante - em
de foi conivente com o ocultamento da identidade da mulata e, um novo sujeito vencedor.
em certa medida, do negão viril, não ウセ pode esperar que ela
Vale frisar, que pensamos aqui no herói burguês
faça o mesmo quando está em causa a identidade do atleta que,
canónico, isto é, aquele que se caracteriza como sujeito pro-
ao vencer, encarna o espírito da nação bem-sucedida.
blemático em um mundo de contradições. Para esse herói de
O meio esportivo brasileiro apresenta vários exemplos caráter humano, portanto, a superação dos empecilhos im-
dessa situação, bastando citar as vidas de "Pelé" I Edson plica o reconhecimento de que o sentido pleno da vida já não
Arantes do Nascimento (futebol), "João do Pulo" I João Carlos é uma possibilidade imediata, embora permaneça como obje-
Arantes (atletismo) e, mais recentemente, "Ronaldinho" / to de aspiração do sujeito.l" O herói burguês, que já não pode
Ronaldo da Costa (atletismo). ser convertido em divindade, experimenta a situação caracte-
A ética capitalista que reifica a mulata e o negão viril rística, sim, de um anti-herói, ou seja, do sujeito cuja pujança
não se arrisca a reíficer .o homem vencedor, ainda que ele se exprime de maneira fragmentária. Ao superar os obstécu-
tenha uma identidade negra. A estética a ser elaborada para
ele enfoca outros aspectos de sua identidade, como por exem-
plo, a capacidade para superar os obstáculos. Nesse sentido,
187"0 melhor do mundo" íomct do Brasil, Rio de Janeiro, Segunda-feira,
não se considera a questão étnica, dando-se ênfase à sua tra-
21/09/98, Caderno Esportes, p. L
jetória dos ambientes sociais pobres até o reconhecimento ISSO romance, entendido como lugar do discurso do herói burguês, de acordo
público por causa das façanhas esportivas. Ê O que observa- com Lukãcs, "é a epopéia de um tempo em que a totalidade extensiva da
mos na matéria sobre o atleta Ronaldo da Costa, vencedor vida não éjá dada de maneira imediata, de um tempo para o qual a imanência
da Maratona de Berlim (Figuras 36 e 37): do sentido à vida se tornou problema mas que, apesar de tudo, não cessou
de aspirar à totalidade.", ln: Teoria do romance, Lisboa, s/d, p. 61.
232
233
b' bM' :I tu
'r rim 7 pp,

•u.a"> uns $' t ,.


" 7"• •'
. Uc'r·" ....

los, o sujeito exibe sua capacidade mas, de imediato, é subme- "O brasileiro Ronaldo da Costa, 28 anos venceu ontem a
r: Maratona de Berlime quebrou o recorde mundial da prova (...)
tido a novas provas, submetendo-se aos riscos do fracasso. Daí, O atleta mineiro correu os 42,2 quilómetros em zhômín..."lS9
a efemeridade de seu heroísmo, celebrado como vitória em cujo
cerne se desdobram as possibilidades da derrota,
i:' A estética do atleta vencedor, portanto, corresponde a
ii
Esses princípios estão presentes na estética do atleta ne- um perfil de identidade que não contempla as questões étni-
gro, em geral, meninos pobres elevados à condição heróica, cas, embora estas questões sejam consideradas em outras opor-
que pode permanecer enquanto permanecem suas capaci- , tunidades para reificar os negros brasileiros. Na medida em
dades para acumular resultados positivos. É interessante notar " que reduplicam as estéticas elaboradas pela ética capitalista e
jl
que o elogio recai sobre Suas capacidades de superação, en-
.,[ patriarcal, os negros afirmam o status quo de sua reificação e
quanto as dificuldades surgidas por causa de suas origens desestimulam os intentos de elaborar estéticas alternativas.
Talvez a dificuldade para concretizar essas estéticas constitua
étnicas são sutilmente encobertas. Para a ética capitalista é
um dos obstáculos, o que não impede, no entanto, que se pro-
útil que se tenha a estética do vencedor, porém destituída da
cure travar um embate teórico com as estéticas dominantes.
identidade do homem negro. Procura-se, assim, manter o
Partindo do princípio de que as estéticas da mulata, do
esquema de exclusão do negro, porém, usufruindo das con-
negão viril e do atleta vencedor - bem como outras estéticas -
tribuições que ele oferece à sociedade.
decorrem de processos sociais, podemos considerar que
Consideramos que a estética do atleta negro não se com. estamos diante de algumas das possibilidades estéticas do
pleta, isto é, revela-se como imagem quase pronta. Ela é ape- negro brasileiro. Os perfis atuantes na sociedade são tam-
nas uma etapa para a estética do atleta vencedor que passa a bém imagens quase prontas, por isso é pertinente pensar em
ser identificado por suas características de herói nacional ou suas contrapartidas que permanecem na marginalidade.
local. O primeiro índice dessa mudança é a apropriação da Após o panorama das estéticas do negro elaboradas a
identidade do negro, mas sob um outro prisma: o atleta ven- partir da ética capitalista e patriarcal, podemos retomar a
cedor possui um nome - ao contrário da mulata e do negão provocação feita anteriormente sobre a possibilidade de pen-
viril. Porém, como se trata de um sujeito negro em final de sar uma representação social do negro, considerando o pró-
jornada, ele adquire "outro" nome. Um nome que explicita a prio negro como valor estético.
intimidade entre a ética capitalista e o atleta, como se perce-
be na matéria sobre Ronaldo da Costa. A mídia se refere "ao
garoto", à sua "infância pobre" e à sua mãe "Dona Efigênia", NEGROS EM TON SUR TON
demonstrando conhecer os elementos afetivos que marcam a
sua vida.
Em geral, a primeira impressão sobre o estético pressu-
Tem-se, dessa maneira, a preparação para o nascimen- põe tratar-se de um conhecimento que nasce das experiências
to de um outro sujeito, menos negro e mais identificado COm sensíveis, ou seja, como ato de estesia que se esgota em si mes-
outras questões. Por isso, o atleta vencedor se torna conheci- mo. No entanto, uma visão mais aguda aponta para a percep-
do não tanto por seu nome de origem, mas pelo outro nome ção do e:,tético como forma de conhecimento relacionada às
que a ética capitalista impôs ao criar a estética do vencedor.
Pelé, João do Pulo e Ronaldinho incorporam o espírito do herói
coletivo, de alcance nacional ou local, como se pode observar "Ronaldc recordista mundial" - primeira página do íomel do Brasil, Rio
189 é

na maneira pela qual a mídia os identifica: de Janeiro, 21/09/98.

234 235
questões éticas e políticas. A elaboração dos perfis estéticos do Essa perspectiva nos leva a considerar que sujeito é so-
negro brasileiro demonstra isso, na medida que se 'apóia em licitado diante de um homem ou de uma mulher negros e
fontes éticas e políticas para delinear os limites de inclusão e que processo de subjetivação é ativado nesse encontro. Se o
exclusão dos indivíduos na sociedade. sujeito que observa é negro ou nãonegro há que se perguntar
Se, por um lado, não é pertinente considerar o estético sobre suas habilidades para pensar o Outro contemplado sem
como conhecimento superficial, por outro, há que se consi- se deixar prender pela estética elaborada a priori pela ética
derar a necessidade de não submetê-lo exclusivamente às capitalista. A ênfase no estético cria a possibilidade de verifi-
determinações éticas e políticas, tal como ocorreu na confi- car que tipo de conhecimento o sujeito observador pode ela-
guração dos perfis do negro vistos anteriormente. O estético borar acerca de si mesmo e do Outro, se o Outro for um
possui implicações ético-políticas, mas também se orienta em negro. Além disso, abre espaço para refletir sobre o conheci-
direção a uma autonomia que lhe permite inter-relacionar-se mento gerado acerca do Outro-negro se o sujeito observador
com outros campos de conhecimento. for um negro pobre ou um negro rico, um branco pobre ou
Se é possível construir uma estética relacionada ao modo um branco rico.
de ser negro no Brasil partindo-se de pressupostos éticos e A provocação feita pelo estético incide sobre nossa com-
políticos, é interessante também pensar um modo de ser ne- petência para conhecer os negros brasileiros a partir deles
gro sem instrumentalizar esse padrão estético. A ética capi- mesmos, isto é, de sua existência sensível na história, mas sem
talista elaborou a estética do negro que atende às demandas depender única e exclusivamente dos sentidos que os leitores
de mercado e ao mesmo tempo mantém a marginalidade da história lhes atribuíram. Em síntese: é possível pensar os
político-social dos negros. Os negros, por sua vez, ou redu- negros brasileiros a partir de um sentido diferente daquele
plicam esse padrão, ou elaboram a estética que evidencia sua fornecido pela estética da mulata, do negão viril ou do atleta
identidade com o objetivo de confrontar a estética da ética vencedor?
capitalista - vale destacar, como exemplo, a estética do ne- Se nos apropriarmos da proposta de Marcuse, segun-
gro militante, que valoriza suas origens culturais e denuncia do a qual a experiência artística é um processo que perfaz.
o racismo na sociedade. Em ambos os casos, o estético está a um trajeto entre sujeitos, é pertinente considerar que a ex-
serviço de uma ética e é valorizado em função dessa depen- periência de conhecimento dos negros brasileiros também é
dência aos apelos éticos. um trajeto que os sujeitos podem fazer em liberdade.t" Para
Em relação aos grupos étnicos, há que se pensar a pos- tanto, em termos de etnia, negros, brancos, amarelos e mes-
sibilidade de o estético atuar como representação de ima- tiços precisam estar como sujeitos uns diante dos outros e
gens que dão acesso ao conhecimento do mundo. Nesse caso, abertos à aprendizagem dos sentidos do mundo como cam-
o estético é também um elemento ético, porém, sem estar po de possibilidades. Assim, negros não têm que ser apenas
pré-direcionado para dar sentido a uma causa já definida. mulata, negão viril ou atleta vencedor tal como impõe a éti-
O ético do estético pode voltar-se para si mesmo, permitindo ca capitalista. Para além dessas formas enraizadas como
ao sujeito estabelecer relações consigo mesmo, compreenden- estereótipos, outras esperam para se realizarem como lin-
do-se como identidade permeada pelas alteridades.J'" guagem verbal e visual.

Sobre a relação do ser consigo mesmo ver Paul Rlcoeur, O si mesmo como
190

Oulro, Campinas, 1991.

236 237

-'. ..•• .f..."' ..... ·iWOli'f..-....... =""#.q ia 'Ai' 4. ia a_ • • 4=4,


r

.. w • = r
" 'ta. h" ,. tt " '" mi
'1 t •

Essa dimensão do estético implica o desejo, e também a 'cíais. Por um lado, a reifícação pode ser entendida como es-
competência, para nos depararmos com o cotidiano a partir tratégia, dinâmica e maleável, adotada por grupos
do que ele nos propõe como diferença. Em termos práticos, hegemônicos. Sua articulação consiste em atribuir lugares aos
significa dizer que a estética estereotipada dos negros brasi- demais grupos sociais, de modo que esses lugares pareçam
leiros pode ser observada como produção restritiva de uma integrar todos os grupos, embora, na verdade, confirmem as
realidade étnico-social mais complexa. O que se define como .faces de uma elite dirigente paralalemente à exclusão de ou-
negros é também uma provocação para compreender aquilo tros segmentos. Sob esse aspecto, a mídia constitui um ins-
que os negros são e não percebemos, também para aquilo trumento dessa estratégia de direção do processo social, ou
que os negros podem ser. seja, os negros ocupam os lugares que se espera que eles ocu-
Pare tanto, é necessário considerar no estético uma pem, tal como vimos nas imagens da mulata sensual, do negão
conotação política que lhe é inerente e se revela na possibili- viril ou atleta vencedor.
dade de atribuição de sentidos ao mundo, contra toda e qual- Por outro lado, a heroicização dos negros contesta a
quer forma de reducionismo promovido a priori pelas inter- reificação para disputar com o predomínio da estética branca os
ferências ideológicas. Isso implica dizer que o estético não se espaços da sociedade. No entanto, a ênfase na heroicização como
limita a ser um corpo desnudo sobre o qual se impõem as estratégia de oposição corre o risco de se tornar somente um
vestes ideológicas. Mais que isso, ele se constitui como um mecanismo de negação do sistema dominante, sem atentar
processo de compreensão da realidade, tanto quanto as ou- para outras possibilidades de representação dos negros.
tras elaborações ideológicas empregadas pelos indivíduos e Nossa especulação procura considerar, além dessas es-
os grupos. tratégias, uma outra via em que o estético seja em si mesmo
Uma mirada estética em relação aos negros brasileiros uma proposição política. Ou seja, em que o ser negro seja
nos desafia a apreender as camadas de sentidos que habitam percebido como um sentido inerente ao sujeito, que tenha a
essa categorização. Isto é, o negro é o negro como uma pro- representação de um substantivo e não de um adjetivo. Em
posição de sentido que se apresenta à sociedade sem que, termos práticos, trata-se de estabelecer o convívio com uma
para isso, tenha de estar submetida à ideologia dominante elaboração discursiva em que as identidades do ser negro
que o reiflca, ou à ideologia da militância política negra que sejam contempladas a partir de sua diversidade, consideran-
o idealiza. No primeiro caso, a perspectiva de ser negro está do, inclusive, a possibilidade de pensá-lo além das constru-
subjugada pela ideologia que reduz o sujeito à condição de ções ideológicas préestabelecidas.
objeto (mulata, negão viril, atleta vencedor); no segundo, a O sentido estético do ser negro, nessa perspectiva, inter-
perspectiva de ser negro está submetida aos processos que fere na realidade como um campo a ser preenchido a partir
exacerbam a auto-estima de modo que o sujeito, para pen- das experiências dos sujeitos negros e não-negros. Instaura-se
sar-se como negro, tem de se assumir como lindo e herói (veja-se uma convivência baseada na liberdade e no risco, na medida
aqui a reiteração das ideologias do "black is beautiful" ou da iden- em que os sujeitos se contemplam mutuamente e se lançam no
tificação com um modelo heróico como Zumbi dos Palmares). mesmo jogo de descoberta do Outro e de si mesmos. Desse
As confrontações ideológicas no campo social demons- modo, o ser-negro e o não-ser-negro se apresentam como um
tram a pertinência dessas elaborações que enfatizam o peso devir, oferecendo opções de sentido aos sentidos já estabeleci-
político das posturas étnicas assumidas pelos indivíduos. Tais dos pelas estéticas da reificação e da heroicização.
elaborações implicam a ação dos grupos e indivíduos no to- De outra maneira, pode-se dizer que o sentido estético
cante às estratégicas que adotam para ocupar espaços so- do ser negro se volta para o Outro nãonegro e para o pró-
238 239
prio negro como um desafio à construção das identidade so-
ciais, realçando uma conexão entre a singularidade - que
realça a jornada do sujeito no mundo - e o devir coletivo -
onde se relacionam as realizações individuais e as expectati-
vas de organização social dos grupos.
Por-isso, o sentido estético em que o negro é percebido
como categoria substantiva do sujeito se apresenta como al-
ternativa às estéticas da reificação e da heroicização. Daí, o
seu aspecto dissonante e provocador em face da necessidade
que possuem os grupos de se identificarem - e também se ALÉM DE LUZ E SOMBRA
protegerem - com os recursos das estéticas préestabelecidas.
A dimensão estética do negro o expõe como realidade "olhos são mais dados
indagadora e não apenas como resposta a uma circunstân- a segredos"
cia da realidade, tal como ocorre nas estéticas de reificação e
de heroicização. Portanto, o sentido estético não pretende Paulo Leminsd m
evidenciar os pedis da mulata, do negão, do atleta, ou do
militante político. Pretende, sim, ser uma categoria de pensa-
mento que atue na realidade de maneira prospectiva, isto é, A elaboração de representações do negro brasileiro no
propondo uma permanente investigação dos valores e for- discurso oral e no discurso visual relaciona-se aos embates
mas que podem ser arrolados nos discursos de construção de de uma sociedade multiétnica, na qual os negros foram iden-
identidades. tificados a priori como agentes subalternos. No entanto, a
análise dos discursos demonstra que a exclusão inclui e ul-
trapassa os motivos étnicos, interagindo num processo social
abrangente. Ou seja, a exclusão por motivos étnicos ocorre
associada às questões políticas, econômicas e culturais reve-
lando situações cotidianas de violência.
As exclusões são praticadas como dicotomias que sepa-
ram ricos e pobres, negros e brancos, 'homens e mulheres, ho-
mossexuais e heterossexuais etc mas, além disso, são elabora-
das como formas comunicativas que se apóiam em contradi-
ções para criar os perfis dos excluídos. Isso quer dizer que a
exclusão é prática e representação, refletindo-se em compor-
tamentos e ideologias que se alimentam mutuamente. Por isso,
a análise da exclusão por motivos étnicos é mais aguda se pen-
sada em relação às demais questões da sociedade, de modo

192 Paulo Lenúnski, "Datilografando este texto", ln: O ex-estranho, São Paulo,
. 1996, p. 48.

セo セQ

:; JS 41 " ta '441 i#A #4 .. as :a a: II Jt "S4i 441:;: " 4$ .. " .... u .. . . . ii _ 4#


· r.=t tt 'bmt t b , '" mi u ar ,u ,
7
" 'h at..
7 OU 77 pt' r
. . .r.tt
"
que a crítica não se restrinja à prática excludente mas se es- Esse percurso se explicita à medida que o cre.scimento
tenda aos esquemas de representação da exclusão.
das populações, o aumento dos ョ■カZゥセ de ・ウセッャ。ョ、 ・L N。
As representações dos grupos sociais na mídia se rela- complexificação das problemáticas SOCIaIS desafiaram a セ、Q。
cionam aos suportes técnicos e às orientações ideológicas que impressa entre a segunda metade do セ←」オャ_ XIX e 。Lエオィ、セ
contribuem para a efetivação dos procedimentos de comuní- de. Senão vejamos: por um lado, os JornaIS de 」セイ。エ・ local,
C<lçiio. D<:,C considerar os suportes como parte da comunica- ou de condado, atenderam às demandas das SOCiedades eu-
ção evidencia o caráter da mídia como um produto vincula- ropéia e americana em processo inicial de ゥョ、セウエイ。ャコ￧ ̄L
do às transformações técnicas e ideológicas da sociedade. favorecendo o relacionamento entre a populaçao em cresci-
A mídia impressa exemplifica essa teia pois, do ponto mento e a cobertura jornalística dos fatos decorrentes dessa
de vista técnico nos permite estabelecer uma linha histórica realidade.t"
que apontou a necessidade de aperfeiçoamento dos supor- Por outro lado, o crescimento populacional e a acele-
tes, desde as pranchas de Gutemberg até as rotativas que ração dos processos de produção forçaram os periódicos lo-
imprimem em larga escala os jornais e revistas contemporâ- cais a mudarem suas estratégias sob o risco de desaparece-
neos. Do ponto de vista ideológico ョッエ。セウ・ a progressiva alte- rem. Em um modelo social voltado para a expansão de mer-
ração nos sistemas de gerenciamenro, implicando a passe- cados e de públicos era pertinente investir numa ゥZョ ーイ・セウ。
gem da administração de jornais e revistas como iniciativas de feição diversificada, cada vez mais presente em cャQセ u エッウ
individuais - em geral das elites econômicas associadas aos além da província ou do condado. O reflexo desse fenom:no
intelectuais'w - para a administração empresarial direcionada está na associação inevitável que se estabeleceu entre o Jor-
para interesses de grandes grupos de comunicação. Isso de. nal e a cidade, de modo que os centros urbanos, f?ram se
monstra o aumento da demanda pela Ütformação (que exige tornando irradiadores de acontecimentos e de notícias. , .
Há que se levar em conta também o ヲセエ_ d a mfdia
cada vez menos o amadorismo) e a complexificação das rela-
impressa inserir-se num modelo social que privilegiou as re-
7
ções ーッャ■エゥ」ッセ・ ョ￴ュゥ」。ウ mundiais (que leva à adoção de ーイッセ
postas estratégicas para estabelecer o controle dos meios de gras de mercado e revestiu os bens de 」ッセウオ de オセ。 aura
comunicação de massa}'?' fetichista estendendo esse procedimento as informações ela-
boradas acerca desses bens. As orientações ideológicas inter-
As representações dos negros na mfdia brasileira de- feriram nos modos de atribuição de sentido à realidade e aos
vem ser pensadas no contexto de crescente mundialização suportes que são utilizados para エイ。ョウヲッイュ£セャ。 em ョッエセ」ゥ。N⦅ A
da economia, da política, das ideologias e também das trans- configuração de ideologias distintas repercutíu em ーセ「ィ」。セッ・ウ
formações dos suportes da mídia impressa. Isso indica que a que revelam, por um lado, os conflitos de 」ャセウZL etrua e gene·
exclusão por motivos de etnia, classe ou gênero procede de ro: por outro, a flexibilidade dos suportes técnicos. , . .
certa orientação ideológica e é difundida através de suportes O que se depreende é que os 」ッョィセ、ウ da mídia im-
técnicos, o que nos leva a compreendg-j., como parte da for- pressa e de outras instâncias de comurucaçao - programas
mação e desenvolvimento dos processos de comunicação nas
sociedades ocidentais.

l%Melvin L. De Fleur, op. cit., 1971, P. 33. A relação entre o jornallocal


e o público pode ser ilustrada pelo caso do Ne'iV York 51tH, que セ。ュ・ᆳ
193 Sodré, op. cit., 1999, p. 243. çou a circular em 1833, e "dava ênfase às notfcías-locnís, às estonas de
m Dênis de Momes, Planeta Mídia, Campo Gr<lncle, 1998, p. 59. interesse humano, e apresentava reportagens sensacionais de fatos
surpreendentes. "
242
243
de radiodifusão, pronunciamentos parlamentares - são cons- suporte. Para desenvolver esse tipo de análise tornou-se
tituídos como discursos sociaist" e a partir dessa condição indispensável a realização da pesquisa de campo, a fim de
refletem ou rejeitam os sistemas de valores da ordem social obter das fontes orais os dados que evidenciam a linha de
em que se inserem. Evidentemente não há que se ver na mfdia conservadorismo presente nas representações do negro na
uma reiteração' mecânica da ordem social, mas antes um pro- midia impressa dos séculos XIX e Xx. Não se trata de buscar
cesso de negociação acerca dos aspectos a serem trabalhados a linearidade na passagem do conservadorismo atuante nos
como material de informação. discursos orais e nos discursos visuais, mas de compreender
Por isso, a informação chega ao público envolvida por as informações subliminares que demonstram as contradi-
um esquema devalores que permiteaos receptores deco- ções dessas duas modalidades discursivas.
dificarem a mensagem. No entanto, esse contrato estabeleci- A exclusão por motivos étnicos, verificada nas frases-
do entre mídia e público se inscreve como etapa de nego- feitas e imagens de jornais e revistas, é a ponta de um iceberg
ciação que indica quais sãoos sentidosa serem deco-dificados. que diz respeito a outros processos de exclusão. Dentre eles,
Essa negociação recoloca a questão da credibilidade da midia cita-se a exclusão de ordens cognitiva (que valoriza certos
sob outro prisma, na medida em que aquilo que a mídia modos de saber, a ciência por exemplo em detrimento de ou-
explicita como informação é uma seleção que destaca certos tros, como as experiências com o sagrado), afetiva (que
ângulos da informação, preterindo outros, cuja importância desconsidera a sensibilidade dos indivíduos pertencentes ao
poderia ser detectada por certos receptores e não por outros. modus vivendi distinto daquele tomado como referência socio-
É importante destacar que nesse caso não estamos lidan- cultural) e estética (que impõe modelos de equilíbrio, beleza e
do com a situação em que se define a confiabilidade ou a não harmonia mediante a desvalorização de outros modelos que
confiabilidade da mídía impressa. Esse é um problema ético, passam a ser tratados como exóticos ou não civilizados).
cuja aposta na conflabilidade é investimento da midia e, ao Na lógica de uma sociedade competitiva, a exclusão é
mesmo tempo, direito do público. A situação a que nos referi- utilizada como estratégia pelos grupos que procuram afir-
mos diz respeito à perspectiva de que a confiabilidade da núdia mar sua hegemonia, ou seja, o caminho para o poder se cons-
não é condição absoluta para garantir a exploração de todos os trói, muitas vezes, a partir da desqualificação dos oponentes.
sentidos de um fato social. O próprio termo núdia propõe o ca- Daí que, os processos de exclusão, cm geral, e a exclusão ét-
ráter relativo daquilo que é apresentado como o sentido do fato, nica, em particular, são articulados como mecanismos que
ou seja, ao atuar como médium entre o dado a ser informado e o interferem na distribuição do poder.
público, o jornal ou a revista interferem no sentido do ・セョエッ A montagem das representações do negro no discurso oral
selecionando e divulgando determinadas nuances de sentido. e no discurso visual demonstra esse fato. A impossibilidade de
Essas considerações são pertinentes para compreender- ignorar a presença dos negros na vida social brasileira foi con-
mos a construção das imagens do negro na sociedade brasilei-
tornada pelos segmentos dominantes através da elaboração de
ra, principalmente se levarmos em conta a questão de uso dos
formas discursivas que excluíram os negros a partir do modo
suportes para a difusão dos conteúdos ideológicos. Assim,
como foram representéldos. Os signos da visibilidade dos ne-
procuramos demonstrar de que maneira o suporte visual de
gros revelou-os como objetos num modelo social que valoriza
jornais e revistas se aproveitaram das イ・ー ウ・ョエ。セ￵・ウ negati-
nos indivíduos a sua qualificação de sujeito. Por conta disso,
vas do negro que, anteriormente, tiveram a oralidade como
esvazia-se a crítica sobre a ausência dos negros nos discursos da
tradição oral ou da mídia impressa, pois de fato se pode apreendê-
196Muniz Sodré, op. cit., 1999,-p.242. los nos diversos espaços abertos pela comunicação.
244 245

ZャlセGLサ[ " "

• opa " .. =AO 4i :;= IQ pc; "ii' 4" ti 4'=4' CP LP' $$: eu
'{o,
LU '$1 • 41 4aa;a" .sc; :=;; e c=. .....
.
" t br' !E7" m,.. 17 :2S17 7 ? . .' ... · . h. . . . . "_e. '... .. ..

ESS<l presença, ta] como foi construída configura-se por de nãonegros - ultrapassa o campo discursivo da tradição
um lado, como afirmação da visão dominante que faz con- oral para reencenar a exclusão étnica e social nas páginas de
cessões aos excluídos, por outro, como simulacro de inserção jornais e revistas contemporâneos. A mídia impressa, de
dos excluídos na esfera dos discursos sociais. No entanto, o modo geral, reduplicou a exclusão e realizou tentativas es-
simulacro é desmontável já que o discurso acerca do excluí- porádicas para criticá-la, o que revela um interesse parcial
do não significa necessariamente uma ação COntra os ーイッ」・ウセ pelo tema. Isso se explica na medida em que o controle dós
sos de exclusão, ou seja, estamos diante de Um jogo onde os órgãos de comunicação vieram se organizando sob o contro-
sentidos aparentes ocupam o lugar dos sentidos que são real- le das elites econômicas e intelectuais cujo pensamento se
mente importantes para se estabelecer a crítica da exclusão.
voltou, muitas vezes, para a ousadia empresarial e para um
Como uma prática social, o jogo leva os indivíduos e os gru-
tipo de liberalismo que não incluía o enfrentamento da reali-
pos a assumirem posições diante das possibilidades de cons-
dade multiétnica do país.
trução de sentidos. No que diz respeito à exclusão, isso signi-
fica dizer que há uma responsabilidade de indivíduos e ァイオセ Portanto, a omissão ou a denúncia esporádica da exclu-
pos na elaboração de discursos que legitimam ou criticam as são étnica desenhou o percurso dessa vertente da midia im-
atitudes de segregeção.!" O que está em causa na opção por pressa no Brasil. O aspecto mais agudo do simulacro se explicita
uma ou outra vertente é o tipo de vida social que se pretende quando a vertente da imprensa negra assume a função de ela-
organizar, indicando a possibilidade de instaurar a intole- borar uma nova imagem para os negros brasileiros. A orien-
rância ou o diálogo como elemento referencial das relações tação ideológica se associa à diversificação dos suportes, isto é,
entre as pessoas e as comunidades. a teia comunicativa se estende da oralidade para as páginas
A opção tem, portanto, um sentido político, pois eviden- impressas de jornais e revistas. A intenção de construir uma
cia a coerência ou as contradições do sujeito. Veja-se o caso da imagem diferente daquela veiculada na grande mídia justi-
população negra que também investiu nos sentidos aparentes, fica o discurso de auto-afirmação, cuja característica mais evi-
forjando como exemplo típico a tentativa de assimilar padrões dente é a valorização do negro corno sujeito social.
estéticos e sociais brancos, paralelamente à rejeição de um perfil Porém, o discurso da imprensa negra inseriu-se na so-
identitário próprio. Além dessa modalidade, a aceitação dos ciedade brasileira disputando espaço com os interesses de
sentidos aparentes ocorre de outra maneira menos perceptí- outros grupos. Por isso, a crítica da exclusão étnica e a tenta-
vel. Trata-se da situação criada pelo discurso que se propõe a tiva de inclusão na ordem social privilegiada constituíram-se
evidenciar uma nova representação do excluído, embora a idéia como demandas específicas numa ordem social permeada
do novo esteja amarrada às fontes que interferem na sociedade, por outras demandas. A conseqüência disso é que os discur-
demarcando os lugares de privilegiados e não privilegiados. sos da imprensa negra marcaram sua diferença em relação
Nesse ponto, verificamos que a violência dos abecês e aos demais discursos mas, ao mesmo tempo, se organizaram
frases sobre negros - considerados corno elaboração discursiva com apetrechos característicos da ordem social que se dispu-
seram a confrontar.
Qセ_ A atitude de desmontagem do simulacro implica um mergulho autocrítica Ao analisarmos as propostas de nova imagem para os
por parte do enunciador e do receptor do discurso. Desse modo, relativiza- negros brasileiros, consideramos que as contradições são
se o impacto do sentido absoluto proposto pelas ideologias de exclusão. corno a pedra de toque da imprensa negra dos anos 80 e 90.
No tocante à mídia impressa, a autocrítica do enunciador e do receptor
está sugerida na indagação feita por Octávio Paz, O 1110/10gramático, Rio de Isto é, nota-se a intenção de trabalhar as questões étnicas no
Janeiro, 1988, p. 58: "os olhos que vêem o que escrevo, são os mesmos circuito da grande mídia, mas o detalhe é ,que essa grande
olhos que eu digo que vêem o que escrevo?" mídia se articula corno um shopping center da informação,
246 247
exigindo de seus integrantes uma atitude empresarial diante serem apresentados como a face nova e atraente da cultura
da atividade jornalística. A incidência de patrocinadores nas brasileira. Para tanto, os seus veículos de informação interagem
publicações vai além da ocupação do espaço gráfico, refle- com a economia de mercado e os sujeitos que são notícia desse
tindo-se nos modos como a mídia impressa é organizada. Há ,I, veículo se oferecem como um novo padrão de identidade.
ii
que se atentar para a idéia de que a eficiência da midia im- j' No primeiro caso, vale notar o interesse pela produção
pressa passa a depender da maneira como são gerenciadas I' das revistas, em detrimento dos jornais. As revistas são cada
as relações entre patrocinadores, editores, jornalistas e públi- iセ
"
j'
vez mais indicadoras do refinamento industrial na área da
cos. A esse propósito, Muniz Sodré observa que publicações I, rrúdia impressa, pois se trata de produtos sofisticados e com
como a Revista Raça Brasil inserem-se na esfera do consumo, maior espaço para o investimento publicitário. Além disso,
abrindo aos patrocinadores o mercado de um público até [i interferem na elaboração dos produtos gráficos, apresentan-
então desconsiderado.r" Simultaneamente, sugere a esse pu- do ousadias. que as transformam em objetos de apreciação
I'
blico a possibilidade de integrar-se ao grupo dos privilegia- II estética. Nessa condição de fetiche, 'as revistas se tornam al-
dos mediante o acesso aos bens de consumo. , vos de colecionadores, o que contribui para o investimento
Uma das estratégias de gerenciamento responsável pela em padrões que garantam sua perenidade. Em conseqüência
inserção da imprensa negra atual na esfera da grande mfdia disso, o público espera das revistas uma regularidade de edi-
é aquela que procura atender à demanda de gosto do públi- ções, a ênfase em matérias atualizadas e atenção a certos
co. Nesse sentido, revistas como Black People e Raça Brasil temas que demandam pesquisa para ocupar o espaço das
dedicam espaço suficiente para que os leitores negros se iden- matérias especiais. Isso confere às revistas um carãter enci-
tifiquem com os produtos anunciados. Mas, um detalhe me- dopédicoaliado ao dinamismo que lhes permite cobrir os fatos
rece atenção: essas publicações se propõem a enfatizar uma mais contemporâneos.
nova imagem para os negros brasileiros, a partir do entendi- No segundo caso, referente à elaboração de uma nova
mento do negro cama um cidadão consumidor. Aqui deve se identidade para os negros, as revistas têm investido na idéia
subentender o interesse de afirmar uma melhora substancial do novo como um valor absoluto. Ou seja, segue-se uma ori-
dos padrões socioeconômicos da população negra. entação ideológica que coloca as esperanças sob o signo da
Ao mesmo tempo, a constituição dessa imagem está expectativa de realizar algo novo.
vinculada ao resgate da dignidade dos negros, aspecto que A Revista Raça Brasil exemplifica a interação entre a
leva à valorização de figuras heróicas, de fatos históricos modernização do suporte e a orientação ideológica de mer-
(como as rebeliões de escravos, os quilombos) e de contribui- cedo-Em editorial, do número 8, ano 2 da publicação, o dire-
çõesculturais (como a presença negra na música e no espor- tor Aroldo Macedo anuncia a ampliação da linha editorial
te). E evidente que encontramos em Black People e Raça Brasil que, além da própria Raça Brasil, passará a contar com outras
a atitude política que denuncia o racismo e debate questões duas publicações direcionadas para os leitores negros: a Raça
acerca da inserção dos negros no mercado de trabalho, nas Brasil Cabelos Crespos e a Raça Brasi I Especial Black Music. 199
atividades partidárias e nos meios empresariais. Na análise Nesse caso, evidencia-se a proposta de diversificar os
da relação entre o aperfeiçoamento do suporte e a orienta- canais comunicativos relacionados a um mesmo grupo, o que
ção ideológica da imprensa negra atual pode-se notar urna demonstra a tentativa de estabelecer sintonia com o processo
tendência que procura demonstrar a capacidade de os negros mundial de oligopolização dos órgãos informativos.

198 Muniz Sodré, op. cít., p.251. QセYe、ゥエッイ 。ャ "Linha de Frente", ln: Raça Bmsil, São Paulo, ano2,número 8, 1997.

248 249
MセM M M ML ML
. A セエオ。 ̄ッ
ri _ .b

_.bm: "'. " 'ME'

de Raça Brasil não atinge os parâmetros de


iii
--------
r
PS se., tm:t ....

"
consciência" .203 O acirramento entre as duas revistas empre-
oligopolizeção 、セウ mega-empresas internacionais, mas no
contexto das publicações do mercado brasileiro essa propos- ga as estratégias de marketing, quando se trata de estabelecer
a diferença entre dois produtos e demonstrar ao público qual
ta representa uma 。ーッセエ。t bastante expressiva. Proporcional-
mente, o セ・イ」。、ッ brasileiro é tão atraente para as expectati- deles merece sua atenção. Esse fato é relevante se considerar-
vas da イ・カセウエ。 quanto os mercados mundiais são interessan- mos que essas publicações se organizam mediante a perspec-
tes para as mega-empresas. tiva de ampliação do público-leitor. Para isso concorrem, por
, Para sustentar a ousadia empresarial, a revista utiliza um lado, os índices que apontam o crescimento de uma clas-
o dIscurso do novo que serve para justificar a investida no se média negra, por outro, o discurso das próprias revis-tas
mercado e セ。「←ュ no perfil que se deseja construir para os que enfatizam o perfil dos negros como um nicho de novos
negros brasileiros. Exemplo disso é a inflexão do seu discur- consumidores.s"
セッL アセ・N mescla os 。イセオュ・ョエッウ do l11ar7ceting com o projeto A tensão entre as duas revistas ocorre num cenário onde
ideológico de fundação de uma nova identidade. Leia-se as se cruzam as disputas pelo prestígio junto ao público-leitor e
palavras do diretor da revista: "Neste mês resolvi comparti- pelo direito de falar pela comunidade de negros brasileiros.
lhar com vAocê .algumas decisões aqui da Redação que certa- Para atingir tais objetivos, é necessário que essas revistas es-
mente voce vセャ gostar de saber. São novidades importantes tejam inseridas no segmento editorial destinado às popula-
nessa nossa VIagem de recuperação da imagem e auto-esti- ções negras e no segmento maior das publicações dedicadas
ma do negro no Brasil. "200 a diferentes temas e a diferentes públicos. No primeiro caso,
. n・セウ p'0n:o, Raça Brasile BlackPeople se articulam como Black People e Raça Brasíl utilizam o argumento da identifica-
publicações similares porque abordam temas relacionados às ção étnica para demonstrar seu compromisso de denunciar
mesmas questões, ou seja, a exclusão étnica e social dos ne- a exclusão das populações negras. No segundo caso, se
gros brasileiros e a necessidade de inserir as revistas no mer- estruturam como órgãos de comunicação que buscam a
cado. Porém, o modo como analisam essas questões demons- hegemonia em certas faixas do mercado editorial.
tr.a que seE?uem caminhos distintos: se a primeira investe num A atuação da mídia negra busca estratégias correspon-
discurso llght em que como "num passe de mágica orques- dentes ao contexto competitivo da sociedade de mercado, o
エイセ、ッ pelos deuses africanos temos um presidente da Repú- que indica a opção por certa orientação ideológica. Por isso
bhca que .se reconhece mestiço", 201 a segunda procura desta- as confluências e as divergências da imprensa negra dos anos
car um discurso mais político em que denuncia a violência 90 se espraiam por um mercado diverso, fragmentado e con-
contra os negros: "agressão aos favelados. aos pobres e ne- traditório, revelando embates onde aparentemente se dese-
gros acontecem diariamente em todo o país. Jamais ficaría- nhavam atitudes comuns.
mos calados diante de um fato como esse (...)".202 As revistas Black People e Raça Brasil se aproximam ao
, A 」ッセー・エゥ￧ ̄ entre as dUflS publicações se explicita tam- apresentarem matérias de conteúdos semelhantes: moda, en-
bem através dos slogans que utilizam para se autodefinirem: tretenimento, notícias do meio artístico, trabalhos sociais de-
se a Raça se apresenta como liA revista dos negros brasilei- senvolvidos por grupos culturais, entrevistas especiais com
ros", a Black People garante oferecer "Mais informação, mais pessoas negras de destaque, sínteses de fatos históricos, his-
tórias de vida. Porém, quando prevalece a lógica do merca-
20Uldcm, 1997.
2Dl Ihidern, 1997.
202"Fd', ial" I BIack: Peopie, Rio de Janeiro, eno S, número 4, 1997.
- I xma ,n: 203 Raça Brasil, número 8, 1997; Black People, número 4,1997, p. 35.
20. Revista Veja, "A classe média negra", SEio Paulo, n'' 33, 18/08/99, p. 62"69.
250
251
do - que incita à conquista de diferentes públicos, ao aumen- mente assediada para atender às demandas do mercado con-
to dos espaços de publicidade e à ampliação das tiragens - sumidor. Segundo, a tentativa de certas publicações de com-
explicita-se a divergência entre as revistas. binarem a função social da mídia com a sua inserção no mer-
A questão que agora se coloca é se o peso maior recai cado. Nesse caso estão as revistas Black People, Raça Brasil e,
sobre a busca de uma identidade étnica comum - que redu- outras, como a Raízes: revista afro-brasileira. 206
plica o paradigma da oposição entre negros e brancos - ou Essas publicações, realizadas por editoras diferentes, pos-
sobre as estratégias de inserção dessa identidade num con- suem discursos similares. No entanto, as editoras desenham
texto influenciado por um fatal' extra-étnico, isto é, o direito estratégias para demonstrar que a sua revista apresenta um
de acesso aos bens de consumo. A segunda possibilidade é discurso particular, pois essa é a maneira para conquistar um
um dado recente e de grande impacto, pois em função dele o número maior de leitores. Prevalece, portanto, a lógica do
argumento da identidade étnica deixa de ter um sentido iso- mercado, segundo a qual a demanda de público sustenta o
lado, relativizando-se para ser apresentado ao público como interesse dos patrocinadores e o interesse dos patrocinadores
uma marca apetecível ao consumo. garante a continuidade e a melhoria da revista.
Na disputa pela preferência do público, o marketing das O que se observa é a formação de um nicho de publica-
publicações para negros reduplica as estratégias das grandes ções voltadas para as questões étnicas, demonstrando a aber-
empresas, de diferentes setores. A competição publicitária que tura de espaços para a difusão de diferentes discursos. No en-
se estabelece entre fabricantes de automóveis, corporações de tanto, o mercado editorial exerce pressões para selecionar os
supermercados ou redes de comunicação, por exemplo, tam- temas considerados de maior interesse para o público consu-
bém ocorre entre os órgãos da imprensa negra. Intenta-se uma midor. Assim, do ponto de vista do markeíing a competição
arriscada operação de construção do discurso identitério me- entre as revistas para negros pode ser tornar economicamente
diante o apelo às estratégias da sociedade de consumo, como tão atraente quanto a disputa entre revistas especializadas em
se pode observar na campanha publicitária a seguir: temas como moda feminina, esportes, turismo, teen generatíon,
negócios, informações científicas, cinema ou shaw bizz.
"VEJA. Mas com os olhos Esse quadro revela mudanças no tratamento das ques-
BLACK, ISTO É, com olhos tões étnicas demonstrando que a imprensa negra dialoga com
de quem conhece as muitas as injunções sociais de seu tempo. A percepção desse aspecto
CARAS brasileiras. Por isso, é decisiva para que possamos pensar as questões étnicas no
na BLACK, âmbito de outras questões, tais como os embates ideológicos
negro dá MANCHETE.
de maior peso em determinadas épocas, a democratização ou
Revista BLACK People,
a melhor da RAÇA."205 a concentração de rendas, o aumento ou a redução do acesso
a melhores condições de educação, saúde e habitação.
O cenário projetado a partir da comparação entre duas Sob esse ponto de vista, é importante discutir por que
revistas direcionadas ao público negro indica dois aspectos as representações dos negros na mídia contemporânea ain-
importantes: primeiro, a dificuldade de direcionar a mfdia da beiram à reificação presente nas frases e abecês. Os moti-
para as funções sociais na medida em que ela é sistematica-
Raízes, São Paulo, ano II, número 2. Se as outras revistas empregam síogone
2D6

que apelam para o sentido de identificação com a raça, Raízes amplia esse
セPU Black Peopíe, número 4, 1997, P: 35. apelo e se autoptesenta como "uma revista sem preconceitos".

252 253
,
:::4$4,$:: ;;, 5 4 55 'A: a
t
: nu: Pi: " :u; 2J Si" $$ ijUb4 nA as ;C.4 4P .. =- .;
-----------IIIIIII!!"--------.
".. ir._
"s'
,Ir

....
U'''ibSUi? 57:7* P 'PZ' • '. $ ra', " " 'r e _ dt, '" ..

GM セ LN L
_. __ "!._ ...

vos da reificação são distintos, não há dúvida, mas a lógica sença na vida social. Afinal, é importante que os atares te-
de pensamento que fundamenta a representação parece si- nham corpo e voz para ocuparem os lugares de desejo que
milar; tanto as frases e abecês quanto o discurso visual da ora se mostram, ora se ocultam no jogo de luz e sombras da
midia contemporânea tomam o caráter étnico como valor sociedade. O desafio consiste em estabelecer a crítica dos
para definir a desqualificação ou a legitimação dos negros. O perfis identitérios absolutos, simultaneamente à proposição
discurso oral utilizou esse valor para reduzir os negros à con- de identidades que libertem os indivíduos ao invés de
dição de objeto, o discurso visual o emprega para construir encarcerá-los. Por isso, as reflexões acerca das representa-
um padrão de identidade que se associa às demandas do su- ções dos negros brasileiros só terão sentidos se forem ー・ョウ。セ
jeito consumidor. das no conjunto das contradições e esperanças que fazem
Por nos preocupamos em reconhecer as contradições de nós interessados observadores do espelho no labirinto.
subjacentes aos discursos acerca das populações negras, lem-
brando que se trata de um recorte metodológico. De fato,
insistimos na perspectiva de refletir sobre a exclusão étnica,
tendo ao mesmo tempo como referência a exclusão que atin-
ge outros segmentos sociais. As imagens estabelecidas corno
representações dos excluídos não se esgotam em si mesmas se
forem analisadas como uma possibilidade entre outras イ・ー セ
sentações. Não se pode desconsiderar que essas representa-
ções decorrem de diversas estratégias sociais sendo, ao mesmo
tempo, revelação e ocultamento de identidades.
No limiar de uma ordem social que aproxima cada vez
mais as diferenças através das redes mundiais de comunica-
ção, comércio, administração pública e privada, é pertinen-
te observar as estratégias que alimentam essa aproximação,
Impõe-se a necessidade de vislumbrar quais serão as ações
das sociedades no tocante à eliminação ou ao acirramento
dos processos de exclusão. Um dos termômetros para se medir
essas disposições é justamente o campo de produção das re-
presentações. Como sempre, será preciso estar atento para
reconhecer os ardis que subjazem aos processos de repre-
sentação: as metáforas do espelho (que reflete o mesmo ao
contrário) e do labirinto (que ameaça a descoberta da saída
porque indica muitos caminhos falsos) parecem combinar-se
para demonstrar como é complexa a tarefa de tecer os dis-
cursos identitários no mundo contemporâneo.
Apesar disso, não se pode ignorar que o paradigma
da identidade ainda é imprescindível para os grupos, prin-
cipalmente os excluídos, que pretendem marcar sua pre-

254 255
ICONOGRAFIA
I - Negros disciplinados

Figura 1

257
Figura 2
Figura .3
258
Figura 4
Figura 5
260 261
Figura 6 Figura 7

263
Figuro 8 Figum 9
264 265
figura 10 Figura 11

266 267
Figura 16

Figura 15 Figura 17

270 271
II - Poses para Negr os

# / 05100 ANel
4Y DAABOUU
.ASI1
oャk io
--_
_

---
---
_

...

o

Figure? 19 - Revist a Man chete


Figura 18 Edição hist6r ica /l OO ano s da Abo lição
272 273
Figura 20 - Revista Veje1 Figura 21 - Revista Vejn
H ori zontes da ascensão social A di versidad e entr e os negros

274 275
A REVISTA DOS NEGROS BRASILEIROS

............ , . . . _ _ セ • .-.... セ • CM&.OSf'NlARSlA


\ _ _.,.... .vI. COM . . . . . DOS ca.n DA . . . . . . . . .
...... DA-..c:Ao ..... ' .,..". - . : ACD inエatosiヲセ

Figura 22 - Revist a B/ack Peop/e Figu ra 23 - Revista R t:1 Çt:1 Bmstt


Um projeto de id entid ad e Um mod el o d e ascensão socia l
276 277
III - Neg ro co isifica d o

ri
FUG 10 de Francisco Anton io Ribeiro. de sua
checara do rio Cumprido na villa de Serra huma
sua escrava de nome Bened ita alt ura baixa . cor
de fonniga com dois dentes tirados na frent e.
_.- com nica cicatriz debaixo do queixo , mui to ci-
vilisada, e com um dedo da mão dire ita aleijado por ter
soffri do de um panari sço, desconfia-se andar pelos cert ões
da mesma villa ou por esta cidade procur ando essas pes-
soas que costumão da r asilo a escravos fogidos para os
comprar por força e a troca do barato: que m della der
noticia pegalla. melena na cadeia. ou entregala nesta ci-
dade ao Sr. Antonio Francisco Ribeiro. ou na villa da
Serra a seu Sr. sera gratificado com a qua ntia acima. e
ーイッセ・ウ ャ セMウ・ com lodo rigor das leis ce ntra quem a tiver

Fig ura 24 - Anú ncio de fuga d e m ulher esc rava


Jorn al brasi le iro do séc u lo XIX

Fugia no dia 4 de outubro de 1857 . d a chacara

t n. 5 da rua do Marahy. em S. Christovão no Rio


de Janeiro um escravo do senado r Alencar . de
nome Luiz Telles. pardo escuro ; tem de 40 annos
. para cima ma l encarado e falta de dentes na
rente. tem uma en ruga na teste . and ar ap ressado e passe-
as curt as. finge-se ás vezes doido , (em falia tremule . com
izcs de estupo rado ; é muit o ladino e astucioso, anda com
artes dizend o que vae com el1as apa drinhado apr esentar-
e a seu Sr ; inculca-se ped estre alguma s veses. Qu em o
ppr ehend er. e fizer delle entrega aonde possa ser recolhid o
cadeia para ser entregue a seo Sr . recebera 40$ rs. de gra-
lficeção . alem das deepeses: cer é tud o pago a qu em nesta
"ipogre phia o eprezenter com o competente documento .

Figura 25 - An ú ncio de fu ga de ho me m esc ravo


Fig u ra 26 - Certes de visites
Pe ri ó d ico do séc u lo XIX
Re p rodu çã o d a rea lid ad e no es t úd io
278
279
Figu ra 27 - Revi st a r セ Q ᅦ セQ Bm s tl Figura 2B - Revista Raça Brasil
Ano 2, N ú mero 13, 1997 Ano 2, Núm ero 14, 1997
281
280
UMADUPLA INDESEJÁVEL


DOREinflamセo
SS'lNS'''''AAt.
Bt lamd asona (loslalo dissódico) 1.5 mil + h ゥ 、 イ ッセ ッ」「。ャ ュ ゥョ 。 1.000 meg

Elimina simultaneamente a Dor e


a Inflamação Mioesqueléticas

ARTRITEREUMATOIDE • LUMBALGIAS • DSTEDARTRITE Glaxo


Fig u ra 29 - Revista Raça Brasil
Figura 30 - Indústria farm acêutica
Ano 2, Núm ero 15, 1997
Visão negat iva d os negr os
282
283
N - Negro é moda

Figura 31 - O
olhar de
Rug enda s
Negro capturado
]セ Z Z[ [Z セ[ N no séc ulo XIX

Figura 32 - O olhar de Morier - Negros suspeitos no Figura 33 - Negros às margens da fotografia


séc ulo XX. Jornal do Brasil, 29/09/ 1982 História da vida privada no Brasil - vol. 2 - p. 207
284 285
Valeria vatenssa
,f
'" -. ,..--
-...--
1111 I ' ,

_....1"""-
-
--
n --,
--_. Mセ
RIlI /\J' IIl '
'J_ _

•'.
DOMINGÔ.. 1
O apogeu do negão
,_
. _.. \ .lI ,
• I
.as.
. .""
......

A -_.-
. - - ----
,
.._-_._ -
_
,J,• ............-.. , .. I h • • lo o_o セ M M
" " ' " -"IO ..... _ . Cema linda
----
-- ..._
---_.-
.- .0_-- -_.. . ,..-- . -
---
.__
o. N L セ 'j'" "' ..... '" n '

-...-
- o
'."m., ".
_
" .. "" ,,, ""., n.' ..
......,,....,,'"
........
---_
_
BGNZ⦅[セ
L L L i⦅L

d,,"·I.o. ,J..
NL L L [N Lセ L I! .,
NLセ
o

..._
....
_. ....-_--. -
-_ . _-
" " . ", j
" " '" ,,, '" ,' " セ GB ,lo, J• • ,0" .1. , . " I " セ B L •
" I..,. ... .1,""
,,, 1• •. '"' .... ,0.... ""1 ' '' '' ' <'
IW'" Vi m , pJ" <I, '" "h' "," ,• •,
","" . "'''" ' ."".,,,' B
... " ' ,, "
,--
..,
"" ,...,__.I II••Biセ B L L L L LB

" , " , . ""',. " '''" ,....... "", ..""'. ⦅ no , ".." " " . _. .. ,..,...,
N セ

---. ,--
" -::= =_.._.-
-_... ..-- .- -
• " I.OJ, " " "". m.." ,,,
'". ''''' ,''" '"",,, l ,,,,, '''''roI . ..... G G G セ .,. " I BN L j セBL 'i'"
"",.I""""' I.<>.,....

----
N ャッG L⦅セ ヲ⦅Nᄋセ⦅GB
.... __• r-o" I' .' :-=:::: ....

NM
⦅N
セ⦅
,.... G セ L ... """,,.,. '\..... di __
_ " ••" ,_
• ... 1 ...... \ '

....
\I ,
..'- -,- =:-..z;.
...." , <I<- _ """Huk. ,,'"
...,." .... "'" \.- ........... __o '-'-"-'-
.. " - ...
'-
:":::::::r...=:-
.. . ... ........... iBGセ .ho ,
,. o "'-"'-
\leria. dat te. h i moft" e 'ftnuu Mセ Lᆳ ,
OS t Ont llrWS elu.a. Mas nb ilN9UyY. que
t onu l " tOtno a gセj・ャ e. ain'a
( iru, se casariI tom o mago ia オ ュ ー カ 「 セ N「
1 fiu TV,KaM On.m

'.....
....

.. _
\ ' . " _ U " lo..,
_ l ..
_ l • •. . -J..._

. .............""""r_'
. ,.....

_.. . . .J._.. ..... _dr_


M⦅」ᄋセNB
-.-.....,
"
.
. . ..w

--
Mセ
r I. 1_ •• ,
._
....................
,....• • 10 _
ャLLセ
("""'"
f"· .... "&'Odr
_ _ ...
•• "
<

イッ⦅セ
looo ... セN N

, . n....
•• . -...
_- .... ,I

---
_
_._--- _._ ...
---
NセM

-_--_._--
I 1_ _ •., _ "'.
I .
----_.-
'--""-
,-_
_
I" I
I
• I..... . ....... 1"1
\l . _.... ""',."
... "" ....
.
"'
.,j",.. セ
,.. ,.'" ,
-- -----....... ----
---
I ' .." .. dr j '" v 1,_ "" ,.. . , .... セ ... I I ,.

..........
" ....

-_._--
--- -_-- ...
-- ........-"'-"'
--_
-- -.-.. .--
=...0:-""::'===::
=r::::- _ .....
-
セ ⦅ NG セ ...
Figura 34 - Estética da mula ta C/obe/eza Fig ura 35 Estética d o negão viril
Revista Raça Brasil, Ano 2, Número 6 O Dia, Rio de Janeiro, 08/ 12/96

286 287
JORNAL DO BRASIL
.__.
.. .-----
. -
-..--. , , • セ oャui _ _ al _ II
110aa.u;tL
---
--セ

." ...::::.
==--==
_ _o

'-=:'-
r
Ronaldo é
conversam
__ _.
r eco rd ista
CRÉDITOS DAS ILUSTRAÇÕES
.__. mundial
.--'--'--- ....
⦅セキ
há nm mês
_
._-- __
._-
MLセ

_.
-'---'-'____._.
=:..--:.-=-...:::
....
--_.
----_...-
==z:=:=: -_._-
...... - _._-
.•.. _. ----
_"--._-'''- _.-
_-
_._. --.... __-_
. _--
セ]AL GfM Z f--"t_ "'--'
--
----
::=:::= :--:'-'..
.
-'-'-_. .
.:0...
Fig. "I - Escravos brasileiros do séc ulo X/X Ilfl fotografia de
Figura 36 - Estética do atleta vencedor Ctiristíano [r., por Pau lo Pau lo C ésa r d e Az eved o e
1" Página Jornal do Brasil, Rio de Janeiro21/09 /98 Mau rício Lissovsky, São Paulo, Ex Libris, 1988, p. 1.

Esportes Fig. 2 - Idem, p. 3


Fig. 3 - Idem, p. 5
Fig. 4 - Idem, p. 7
Fig. 5 - Idem, p. 29
Fig. 6 - Idem, p. 33
Fig. 7 - Idem, p. 75
Fig. 8 - Idem, p. 76
Fig. 9 - Idem, p. 77
Fig. 10 - Idem, p. 74
Fig. 11 - Idem, p. 73

oMELHOR DO MUNDO Figura 37 - Estética do atleta vencedor


I
I
Fig. 12 - Idem, P: 14
Fig. 13 - Idem, p. 15
Fig . 14 - Id em, p . 2
Jorn al do Brasil , 21 /09 /98 Fig. 15 - Idem . p . 68

288 289
• t 21m'.,,: a s.,."' 'to . 't tm. " 'w. • .........
"
n:1
ti • to "
"

Fig. 16 - História da vida privada no Brasil: Império, volume orga-


Fig. 32 - A cor do medo: homicídios e relações raciais no Brasil,
nizado por Luiz Felipe de Alencastro, São Paulo, Compa-
por Dijaci David de Oliveira et al.. Brasília, Editora da
nhia das Letras 1997, P: 19:
UnB, 1998, encarte fotográfico.
Fig. 17 - Arl'uros: olhos do rosário, por Núbia P. M, Gomes e
Fig. 33 - Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., P: 207,
Edimilson de A Pereira, Belo Horizonte, Mazza Edi-
ções, 1990, p. 60. Fig. 34 - Raça Brasil, número 6, 1997, P: 42.

Fig.18 - Idem, P: 38. Fig. 35 - Jornal O Dia, Rio de Janeiro, Caderno D- Domingo,
08/12/1996.
Fig,19 - tâancnete. Rio Janeiro, Bloch Editores, número 1883,
1988, capa, Fig. 36 - Jornal do Brasil, número 166, Rio de Janeiro, 21/09/
1998, primeira página.
Fig. 20 - Veja, Rio de Janeiro, Editora Abril, número 25, 1998,capa.
Fig. 21- Veja, Rio de Janeiro, Editora Abril, número 19, 1988, Fig. 37 - Idem, Caderno de Esportes, p. I.
capa.
Fig. 22 - Black People, Rio de Janeiro, CLS Editora, edição 10,
número 4, capa.
Fig. 23 - Raça Brasil, Rio de Janeiro, Editora Símbolo, número
13 1997, capa.
Fig. 24 - O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século
XIX, por Gilberto Preyre, São Paulo, Editora Nacional,
1979, p. 4.
Fig. 25 - Idem, p. 5,
Fig. 26 - Paulo César de Azevedo e Maurício Líssovsky, op.
cit., p. 45.
Fig. 27 - Rafa Brasil, número 13, 1997, segunda contracapa.
Fig. 28 - Idem, número 14, 1997, primeira contracapa.
Fig. 29 - Idem, número 15, 1997, primeira contracapa.
Fig. 30 - História das Copas do Mundo, s/C Claxo, s/ d.
Fig. 31- Escravidão em Minas Gerais, por Alda Maria Falhares
et al., Belo Horizonte, Secretaria de Estado da Cultura,
1988, p. 43.
290
291
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCA5TRO, Luiz Felipe de (org.). História da vida priva-


da no Brasil! Império: a corte e a modernidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997, 2" volume.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra completa - prosa e
verso. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Farewell. Rio de Janeiro:
Record, 1996.
APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na
filosofia da cultura. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997.
ARAÚJO, Emanoel (org.). A mão afro-brasileira: significado da
contribuição artística e histórica. São Paulo: Tenenge, 1988.
AZEVEDO, Paulo César & LISSOVSKY, Maurício (org.). Es-
cmvos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano
Jr.. São Paulo: Ex Librís, 1988.
BAH.ROS, Manoel de. Livro sobre nada. 2. ed. Rio de Janeiro:
Record, 1996.
BARTI-IES, Roland.A climam ciom : nota soiJre a fotogrnfin. 2
ed. Trad. JÚlio Caataüon Guimarães. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1984.
BAUDRILLARD, Jean. A arte dn desaparição. Rio de Janeiro:
N-Imagem/ UFRj, 1997.
BHABHA, Homi K.. O loml dn cuítum. Trad. Myriam Ávi18,
Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçal-
ves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
293

LセB _ _,_O⦅B セ •• _'_'_0_ •" _


- .. "_"'_o
_I, ' . r I m' m. sm rt dr r ' pbnt rt' m " '5 5.M' 7r•• r 'rr: r. P.' trr'

BIEDERMANN, Hans. Dicionário ilustrado de símbolos. Trad. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Maria
Glória Paschoal de Camargo. São Paulo: Melhoramen- Adriana da Silva Caldas. Rio de Janeiro: Pator. 1983.
tos, 1993. FARIAS, Zaíra Ary. Domesticidade: "cativeiro feminino?".
BLACK PEOPLE. Rio de Janeiro: CLS Editora, ano 3, edição Rio de Janeiro: Achiamé/CMB, 1983.
10, número 4, maio, 1997. FÉLIX, Moacyr. Em nome da vida. Rio de Janeiro: Civilização
BRAGA, José Luiz et al (org.). A encenação dos sentidos: midía, Brasileira; São Paulo: Massao Ohno, 1981.
cultura e política. Rio de Janeiro: Diadorim, 1975. FERNANDES, Plorestan. "O negro na tradição oral: reação
CAMPOLTNA, Alda M8t'i8 Palhares et 81 (org.). Escravidão do elemento negro sobre os folclores ibérico e ameríndio".
em Minas Gerais. Cadernos do Arquivo - I. Belo Hori- lN: O Estado de Silo Pouso. São Paulo, 01/7/1943.
zonte: Secretaria de Estado da Cultural Arquivo pᅳセ FERNANDES, Plorestan & BASTIDE, Reger. Brancos e negros
blico Mineiro/ COPASA, 1988. em São Paulo. 2.ed. São Paulo: Companhia Editora Na-
CANDIDO, Antônio. "Literatura-Sociologia: a análise de O cional, 1959.
Cortiço de Aluísio Azevedo" lN: Prática de interpretação FERREIRA, Maria Cristina. "Atitudes sobre a mulher ウ・ァオョセ
textual - II Encontro Nacional de Professores de Literatura. do sexo, idade e zona geográfica". lN: Revista de
Rio de Janeiro: pucセrjL 1976, p. 119-134. Ciências Humanas. Rio de Janeiro: Universidade Gama
Filho, ano 19, número 31, novembro 1996.
CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores. Porto
FLORENTINO, Manolo.A paz nas senzalas. Rio de Janeiro:
Alegre: Livraria Globo, 1939.
Civilização Brasileira, 1997.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário de folclore. Belo Ho- FLÜGEL, ].C .. A psicologia das roupas. Trad. Antônio Ennes
rizonte: Itatiaia, 1984. Cardoso. São Paulo: Editora Mestre [ou, 1966.
CASTEL, Robert et alo A desigualdade e a questão social. São FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1983.
Paulo: Ed. da PUe! SP, 1997. FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura.' acu-
CASTRO, Hebe Maria Mattos de e SCHNOOR, Eduardo mulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro
(orgs.). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de j。セ NIPSXQセ YW H Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,1992.
neiro: Topbooks, 1995. FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente.
DAVIS, Angela Y.. Blues, legacies and black [eminism: Gertrude Trad. Margarida Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
"Ma"Rainey, Bessie Smith, and Billie Holiday. New York: FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do
Pantheon Books, 1998. século XIX. 2 ed. aum. São Paulo: Ed. Nacional! Recife:
DE FLEUR, Melvín L.. Teorias de conumíccçõo de IIII/Ssa. Trad. Instituto Joaquim Nebuco de Pesquisas Sociais, 1979.
Marcelo A. Corção. Rio de Janeiro: Zahar Editores, FRIAS, Lena. "O racismo comprovado em números", ln: [or-
1971. nal do Brasil. Rio de Janeiro, Sessão "Brasil", 12 de
DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo.' condição feminina, mater- maio de 2000, p. 5.
nidades e wentnííáaâee 110 Brasil Colônia. Rio de Janeiro: GEERTZ, Clifford. A interpretação das cuttume. Rio de Janei-
José Olympio: Brasília: EdUnB, 1993. ro: Cuanabara-Koogan, 1989.
DIÉGUES JR., Manuel et al. Literatura popular em verso. Belo GOMES, Nilma Lima. A mulher negra que vi de perto: o proces-
Horizonte: Itatiaia: São Paulo: Ed. USP; Rio de Janeiro: so de construção da identidade racial de professoras negras.
Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1995.

294 295
GOMES Núbia Pereira de Magalhães & FERREIRA, JAMESON, Fredric. Transformações da imagem na pós-
Edimilson de Almeida. Negras raízes mineiras: os Arturos. modernidade. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994.
Juiz de Fora: EDUF JF/MinC, 1988.
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Trad.Marina
GOMES Núbia Pereira de Magalhães & FERREIRA, Appenzellier. Campinas: Papirus, 1996.
Edimilson de Almeida. Assim se benze em Minas Gerais.
JORNAL DO BRASIL Rio de Janeiro, S .gunda-feire, 21 de se-
Belo Horizonte: Mazza Edições/ Juiz de Fora: EDUF
tembro, ano CVID, número 166, Caderno Esportes, 1995.
)F, 1989.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropo-
GOMES Núb ia Pereira de Magalhães & FERREIRA, logia simétrica. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de
Edimilson de Almeida. Mundo encaixado: significação Janeiro: Editora 34, 1994.
da cultura popular. Belo Horizonte: Mazza Edições/
LEMINSKt Paulo. O ex-estranho. Curitiba: Fundação Cultu-
Juiz de Fora; UFJF, 1992.
raI de Curitiba: São Paulo: Iluminuras, 1996.
GOMES Núbia Pereira de Magalhães & FERREIRA, LINCK Ricardo. "O apogeu do negão", ln: O Dia. Rio de
Edimilson de Almeida. Do presépio à balança: イ・ーウョセ Janeiro, Caderno Domingo,OS de dezembro de 1996.
tações sociais da vida religiosa. Belo Horizonte: Mazza LORCA, Pederico Garcia. Obra poética completa. 3. ed .. Trad.
Edições, 1995. William Agel de Mello, Brasília: Editora UnB, 1996.
GOMES, Núbia Pereira de Magalhães. "As degredadas fi- LUKÁCS, George. Teoria do romance. 'I'r ad. Alfredo
lhas de Eva: por dentro das Minas Gerais". lN: Margarido. Lisboa: Editorial Presença, s/d.
Convivium - Revista bimestral de investigação e cultura. MACEDO, Aroldo. "Um povo chamado Brasil", lN: Raça
São Paulo: Editora Convívio, atia XXVII, volume 31, Brasil. Rio de Janeiro: Editora Símbolo, ano 2, 11.0 13, 1997.
número 4, [ul- ago, 1988, P: 367-380. MACHADO, Humberto Fernandes. Escravos, senhores e café:
HARAWAY, Donna J.. Simíane, cyborgs, and women: íhe a crise da cajeícuttura eecraoieta do Vale do Paraíba
reinvention of nature. New York: Routledge, 1991. Fluminense, 1860 -1888. Niterói: Clube de Literatura
HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. Tomo Cromos, 1993.
II. 3 ed. Trad. Walter H. Geenen. São Paulo: Mestre MACLUHAN, MarshalL Os meios de comunicação como ex-
)au,1982, p.639-1193. tensões do homem. 3. ed.. Trad.Décio Pignatari. São Pau-
HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Esses poetas: uma lo: Cultrix, 1971.
antologia dos anos 90. Rio de Janeiro: Aeroplano Edito- :MANCHETE. Rio de Janeiro: Bloch Editores, ano 36, número
ra, 1998. 1.883, 1988.
HOMERO, Rita. "Valéria Valenssa セ que beleza" IN: Revista MARCUSE, Herbert. A dimensão estética. São Paulo: Martins
Raça Brasil. São Paulo: Editora Símbolo, ano 2, número 6, Fontes, 1975.
1997. MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: o Reinado do
HUIZINGA, johan. Homo íuâens: o jogo como elemento da cul- Rosário 110 Jatobá. São Paulo: Perspectivai Belo Horizon-
tura. 2. ed ..Trad. João Paulo Monteiro. são Paulo: Pers- te: Mazza Edições, 1997.
pectiva, 1980.
MEILLASOUx,. Claude. Antropologia da escravidão: o ven-
IANNt Octavio. Escravidão e racismo. 2. ed. revista e acresci- tre de ferro e dinheiro. Trad. Lucy Magalhães. Rio de
da do Apêndice. São Paulo.Hucitec, 1988. Janeiro: Jorge Zahar Editor,1995.
296 297

a,; pq; Ai IS _= 4/$ .$


• ; 4 ;;, 4 # ii .. 11 _2 ; i;; 1$ $Si II• • ç&Si$ :2 PC JS 4 :*
" t 51' " ri sr tr t. "oh c •• *. CO e"= dO O! 'S" • _0 _ .... ,

RAÍZES - Revista Afro-brasileira. São Paulo: Perfecta Edito-


MELLO E SOUZA, Laura de (org.). História da vida priva-
da no Brasil -1 / Cotidiano e vida privada na América Por- ra, ano II, número 2, s/do
tuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. RAMOS, Arthur. As culturas negras: introdução à antropo-
MEYER, Augusto, Guia do folclore gaÚcho. 2 ed. rev. e aum. logia brasileira. Vol. III. Rio de Janeiro: Livraria da Casa
Rio de Janeiro: Presença/INL/IEL, 1975, do Estudante do Brasil, s/dr
MORAES, Dênis de, Planeta Mídia: tendências da comunicação RAMOS, Arthur. As culturas negras no Novo Mundo. 4 ed.
na era global. Campo Grande: Letra Livre, 1998. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979.
MORAES PAZ, Francisco. Na poética da História: a realização RICOEUR, Paul. O si mesmo como Outro. Campinas: Papiros,
da utopia nacional oitocentista, Curitiba: Editora UFPR, 1996. 1991.
MOURA, Clóvis. O negro, de bom escravo a mau cidadão? Rio SALLES, Fritz Teixeira de. Associações religiosas no ciclo do
de Janeiro: Conquista, 1977. ouro. Belo Horizonte: UFMG/ Centro de Estudos Mi-
NETO, António Agostinho. Sagrada esperança. São Paulo: neiros, 1963.
Ática. 1985. SANTOS, Olga de Jesus & VIANNA, Marilena. O negro na
NUNES, Geraldo. "Sobre a noção de mercado de literatura de cordel. Rio de Janeiro: Fundação Casa de
referencialidade" lN: BRAGA, José Luiz (org.}, A ence- Rui Barbosa, 1989.
nação dos sentidos: midía, cultura e política, Rio de Janei- SCHWARCZ, LilianMoritz. Retrato em branco e negro: jor-
ro: Diedorim, 1995, P. 159-174. nais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século
OLIVEIRA, Dijaci David de et al. (orgs.). A cor do medo: ho- XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
micídios e relações raciais no Brasil. Brasília: Editora da SELEME, Ascânio. "Um retrato da 'terceira mulher:", lN; O
UnB/ Goiânia: Editora da UFG, 1998. Globo - O mundo. Rio de Janeiro, domingo, 28 de de-
OLSZEWSKY FILHA, Sofia. A fotografia e o negro na cidade do zembro de 1997.
Salvador 1840-1914. Salvador: BGBA/ Fundação Cul- SLENES, Robert. "Na senzala urna flor; as esperanças e
tural do Estado da Bahia, 1989. as recordações na formação da família escrava".
PAZ, Octavio. O mono gramático. Trad. Lenora de Barros ejosé Campinas: Dept" de História/IFHC/Unicampi
Simão. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988. Stanford: Stanford University, 1994, mimeografado.
PROENÇA FILHO, Domício. liA trajetórla do negro na SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro:
literatura brasileira". IN: Revista. do Patrim8nio Histó- Codecri,1979.
rico e Artístico Nacional. n'' 25. Rio de Janeiro: MinC/ SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida: por um conceito de cultura
IPHAN, 1997, p. 159-177. no Brasil. 2. ed .. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.
RAÇA BRASIL. São Paulo: Símbolo, ano 2, número 7, SODRÉ, Muniz. "Sobre imprensa negra", lN: Lumine. Juiz
março, 1997. de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora/ Facul-
RAÇA BRASIL. São Paulo: Símbolo, ano 2, número 8, abril, dade de Comunicação, volume 1, número 1, ェオャィッM、・セ
1997. zembro, 1998, p. 23-32.
RAÇA BRASIL São Paulo: Editora Símbolo, ano 2, número SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no
13, setembro, 1997. Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999.
RAÇA BRASIL. São Paulo: Editora Símbolo, ano 4, número SOUZA, Cruz e. Obra completa.' poesia e prosa. Rio de Janeiro:
29, janeiro,1999. José Aguilar, 1961, p.84ü.

298 299
SOUZA, Neusa Santos. Tomar-se negro: ou as vicissitudes da
identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de
Janeiro: Craal, 1983.
THOMPSON, John B.. A mídia e a modernidade: uma teoria
social da midia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão.
Petrópolis: Vozes, 1998.
TRINDADE, Solano. Tem gente com fome e outros poemas -
antologia poética. Rio de Janeiro: Departamento Geral
da Imprensa Oficial, Secretaria Municipal de Governal
Programa Nacional do Centenário da Abolição/ Mi-
OS AUTORES
nistério da Cultural Sindicato dos Escritores do Rio de
Janeiro, 1988.
TURRA, Cleusa & VENTURI, Gustavo (org.). Racismo cordi-
al: a mais completa análise sobre o preconceito de cor no NÚBIA PEREIRA DE MAGALHÃES GOMES (1940-1994).
Brasil. São Paulo: Folha de São Paulo-Datafolhal Nasceu em Nova Era, Minas Gerais. Professora do De-
Ática, 1995. partamento de Letras da Universidade Federal de Juiz
VAZ, Paulo. "Globalização e experiência de tempo", Il-J: de Fora (UFJF). Especialista em Lingüística (PUCMinas),
MENEZES, Philadelpho (org.). Signos plurais: midia, arte, Mestra em Linguística e Filologia Românica pela Uni-
cotidiano na globalização. São Paulo: Experimento, 1977. versidade Federal do Rio de Janeiro (1JFRJ), Especialis-
VAZ, Paulo."Corpo e risco Rio de Janeito: Ecol UFRJ, mimeo- ta em Ciência da Religião (UFJF).
grafado, 51 d.
VEJA. São Paulo: Editora Abril, ano 20, número 19, 1988. ED1M1LSON DE ALMEIDA PEREIRA
VEJA. São Paulo: Editora Abril, ano 31, número 25, 1998. Nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais. Poeta, professor
VEJA. São Paulo: Editora Abril, ano 32, número 33, 1999. de Literaturas Brasileira e Portuguesa do Departamen-
WEST, Cornel. Questão de raça. Trad. Laura Teixeira Motta. to de Letras (UFJF). Mestre em Literatura Portuguesa
São Paulo: Companhia das Letras, 1994. (UFRJ), Mestre em Ciência da Religião (UFJF), Doutor
em Comunicação e Cultura (UFRJIUFJF), pós-douto-
rando na Universidade de Zurique.

OBRAS PUBLICADAS

Negras raízes mineiras: Os Arturos. 1. ed. Juiz de Fora:


EdUFJP/ MinC, 1988; 2. cd .. Belo Horizonte: Mazza Edições,
1999/2000.

300 301

! I
• e:a.;; IS F "" '4= _.4014 4441 $ "'.=4 lU ;t 44 ia 44 'OA
· t,' 71$ t $' pt • 9 %,,,, l' 7 r'= muar rr l' 't t m • ' pt ri P ti rrnuqU

Assim se benze em Minas Gerais. Belo Horizonte: Mazza


Edições: Juiz de Fora' EdUFJF, 1989.
Artllros: olhos do rosário (textos sobre fotografias de
Marcelo Pereira). Belo Horizonte: Mazza Edições, 1990.
Mundo encaixado: significação da cultura popular. Belo Ho-
rizonte: Mazza Edições; Juiz de Fora; UFJP, 1992.
Do presépio à balança: representações sociais da vida religi-
osa. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1995.

OBRAS INÉDITAS

Ouro Preto da Pala.vra: narrativas de preceito.


Flor do não esquecimento: o cotidiano na cultura popular.
Os tambores estão frios: herança cultural e sincretismo
religioso no ritual de Candombe.

Este livro foi composto em tipologia Palatino,


corpo 11/13 e impresso sobre papel Offset 75 g/
m" para miolo epapel Supremo 2S0g/m2 para capa,
no mês de julho do ano de dois mil e um.

Você também pode gostar