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POLÍTICA DE PROGRESSÕES NO SUBSISTEMA DE EDUCAÇÃO GERAL: uma

análise qualitativa à luz da Policy Cycle Approach de Stephen J. Ball e colaboradores.

CHIRUTE, Osvaldo Simão1

Resumo
À semelhança de outras nações da região e do mundo com Estados neoliberais, Moçambique
adoptou uma Política Educativa importada e baseada em princípios de equidade e justiça que
se revela pouco ajustada ao contexto económico nacional. Como consequência, a
implementação da Política está ocorrendo sem que as condições prévias tenham sido criadas, e
as consequências disto acabam incidindo sobre a Qualidade do aluno graduado pela Política.
Diante deste cenário, o presente estudo propõe-se a descrever e analisar criticamente a Política
de Progressões. Com o auxílio da Policy Cycle Approach de Ball, a análise transcorre todo o
ciclo da Política, desde o seu surgimento até aos ganhos e perdas advindos da implementação.
O estudo também faz uma descrição da Política, o seu alcance legítimo e ilegítimo por todo o
Subsistema de Educação Geral, com maior incidência sobre as Práticas e Atitudes geradas pela
Política no contexto da prática, onde as intenções são transformadas em acções. Colectados
através das técnicas de observação participante e análise documental, os dados analisados neste
estudo levam à conclusão de que com a implementação da Política de Progressões, tudo o que
se ganhou em quantidade, perdeu-se em Qualidade, porque os actores do Currículo Real estão
acomodados, preocupando-se apenas em apresentar no final de cada ano lectivo relatórios com
elevadas percentagens de progressões, transições e aprovações.

Palavras-chave: Progressões; Práticas; Atitudes; Qualidade de Ensino

Abstract
Like other nations in the region and in the world with neoliberal States, Mozambique adopted
an imported Educational Policy based on equity and justice principles, which is not well suited
to the national economic context. Consequently, the implementation of the policy is taking
place without created preconditions, and the consequences of this end up focusing on the
Quality of the student graduated by the Policy. Given this scenario, the present study proposes
to describe and critically analyze the Progression Policy. With the help of Ball's Policy Cycle
Approach, the analysis covers the entire policy cycle, from its inception to the gains and losses
of its implementation. The study also makes a description of the Policy, its legitimate and
illegitimate scope throughout the General Education Subsystem, with a greater focus on the
Practices and Attitudes generated by the Policy in the context of practice, which is where
intentions are transformed into actions. Collected through direct observation and document
analysis techniques, the data analyzed in this study lead to the conclusion that with the
implementation of the Progression Policy, everything that was gained in quantity was lost in
Quality, because the actors of the Real Curriculum are accommodated, worrying only about
submitting at the end of each year reports with high percentages of progressions, transitions and
approvals.

Keywords: Progressions; Practices; Attitudes; Teaching Quality

1
Mestrando em Educação/Currículo pela Universidade Save – Massinga (Mz); Licenciado em Ensino de
Português com habilitação em Ensino de Inglês pela Universidade Pedagógica – Maxixe (Mz); Professor na Escola
Secundária 04 de Outubro – Inhambane (Mz). Tel. (+258) 84 418 3696; e-mail: chirute.osvaldo@outlook.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3652745982383298
2

1. Introdução

A Educação pode ser tomada como uma instituição social que se ordena no sistema educacional
de um país, daí a sua relação de subordinação com os conceitos de Ensino e Instrução (Libâneo,
2013). Ainda na dimensão formal da Educação, vários teorizadores associam este conceito ao
de Currículo, tal como se pode testemunhar em Forquin (1993) quando define o Currículo
Escolar como sendo “um percurso educacional; um conjunto contínuo de situações de
aprendizagem, às quais um indivíduo vê-se exposto, no contexto de uma instituição de educação
formal” (p. 22).

Considerando que a Educação Formal se subordina a um Currículo Oficial, isto é, prescrito pelo
estado, então pode-se concluir que o Currículo Escolar é uma Política Pública, uma vez que a
formulação desta é o estágio em que os governos democráticos traduzem os seus propósitos em
programas e ações que produzirão resultados ou mudanças no mundo real (Souza 2006).

No contexto moçambicano, através da Lei n.º 18/2018 de 28 de Dezembro, o Governo


estabelece o regime jurídico do Sistema Nacional de Educação (SNE) no país, tendo como um
dos objectivos gerais: “garantir elevados padrões de qualidade de ensino e aprendizagem 2”. No
entanto, a concretização deste objectivo tem se mostrado extremamente desafiadora para o
Ministério que superintende o sector da Educação e Desenvolvimento Humano (MINEDH) 3.

Na maioria das vezes em que se fazem críticas à Qualidade da Educação Formal em


Moçambique, o principal alvo têm sido o Currículo Prescrito, concretamente a Política de
Progressões que se assenta na Ideologia da Massificação da Educação obrigatória de 9 classes.
Ora, baseados nas nossas vivências como observadores e profissionais críticos da Educação,
podemos afirmar que o cenário crítico em que se encontra mergulhado o nosso SNE,
concretamente no concernente à Qualidade, é agravado ainda mais pela postura assumida por
parte significativa dos actores de todo o processo educativo: desde o legislador, passando pelo
supervisor, professor, pai e/ou encarregado de educação, até ao aluno.

Cientes de todos os factos expostos acima, decidimos desenvolver este estudo no qual nos
propusemos a efectuar uma análise crítica do Currículo escolar moçambicano em todas as suas
dimensões4. A nossa análise cingiu-se especificamente na Política de Progressões dentro dos

2
Capítulo I; secção III; artigo 5.º; alínea d)
3
A qualidade da educação é baixa (…). A qualidade do serviço prestado pelo sector de Educação é fraca,
traduzindo-se na saída do sistema de graduados com conhecimentos e competências abaixo das expectativas (…)
(MINEDH, 2020, p. 20).
4
A abordagem do conceito de Currículo vem evoluindo desde as teorias tradicionais, passando pelas críticas, até
às pós-críticas, sendo que na actualidade, apesar da diversidade de abordagens que até certo ponto se
3

ciclos de aprendizagem do Ensino Primário (EP); as práticas e atitudes motivadas pela política
e como estas trasbordam para todo o Subsistema de Educação Geral (SEG), e, por último, as
suas consequências na Qualidade da Educação Formal no país. Importa também referir que a
análise foi feita à luz da Policy Cycle Approach formulada por Stephen Ball e colaboradores.

2. Embasamento teórico

Cientes do quão problemático é falar da Qualidade da Educação Formal de um país, ainda mais
num contexto depreciativo, apresentamos este capítulo que objectiva estabelecer os critérios de
análise da Qualidade da Educação; os seus indicadores, e ainda, apresentar estudos já
publicados sobre a Qualidade da Educação em Moçambique, especialmente no SEG5.

Interessa-nos também abordar aqui a nossa ferramenta de análise de políticas educacionais – a


Policy Cycle Approach de Stephen Ball e colaboradores (Richard Bowe e Anne Gold) –
selecionada por permitir uma análise crítica da trajectória de programas e políticas
educacionais, desde a sua formulação inicial até à implementação e os seus efeitos, tal como se
pode ler em Mainardes (2006).

2.1. Qualidade da Educação

Num discurso dotado de muito esmero e eloquência, Dourado, Oliveira & Santos (2007)
descrevem uma infinidade de factores que influenciam significativamente a Qualidade da
Educação – a gestão escolar, o currículo, a qualidade docente, o envolvimento dos pais e/ou
encarregados de educação, entre outros.

Para uma melhor consolidação, sugere-se que a abordagem da Qualidade da Educação seja feita
em níveis: do espaço social; do estado; do sistema; ae escola; do professor; do aluno. Ainda
no contexto da abordagem da qualidade da Educação, Dourado, Oliveira & Santos (2007)
propõem alguns indicadores que podem ser tomados em consideração na medição da Qualidade
da Educação:

➢ Validade – que deve ser medida da relação entre os objectivos educacionais e os


resultados escolares que não se reduzam apenas a números;

complementam, dos vários teorizadores como M. Apple; J. Sacristán; A. Morreira; J. Forquin, entre outros,
podemos extrair os seguintes tipos de currículo: currículo formal, oficial ou prescrito; currículo experienciado ou
modelado pelo professor; currículo em acção, real ou realizado na sala de aulas; currículo oculto; currículo
experienciado pelo aluno; currículo avaliado.
5
A Lei do SNE (Lei n.º 18/2018) estabelece no n.º 3 do artigo 11.º que o subsistema de Educação Geral
compreende o Ensino Primário e o Ensino Secundário.
4

➢ Credibilidade – que deve ser medida tendo em vista elementos dignos de confiança no
universo escolar;
➢ Incorruptibilidade – consiste numa Educação desprovida de distorções, ou com uma
margem mínima destas;
➢ Comparabilidade – refere-se a aspectos que permitam avaliar as condições da Escola
ao longo do tempo.

2.2. Qualidade da Educação em Moçambique

Com o objectivo de se dissertar em torno da Qualidade da Educação em Moçambique, Zucula


(2021) faz uma abordagem aprofundada em torno do concetido de Qualidade, no geral, e
Qualidade da Educação, em particular, e termina sentenciando que:

Apesar da universalização do ensino, bem como a expansão, existem em Moçambique a nível


das primeiras classes alunos que terminam a sexta classe sem dominar plenamente a leitura, a
escrita e aritmética básica (p. 199).

A ideia exposta acima também é assumida pelo Governo de Moçambique através do Plano
Estratégico da Educação 2020 – 20296, ao afirmar que:

A qualidade da educação é baixa (…); A qualidade do serviço prestado pelo sector de Educação
é fraca (…). Há limitações sérias de aprendizagem no Ensino Primário. Em 2016, em média,
apenas 4,9% das crianças da terceira classe revelaram ter adquirido as competências de literacia
definidas para esse nível de ensino.

Ainda no contexto da Qualidade da Educação moçambicana e de forma ousada, Zucula (2021)


avança a remuneração baixa; carreira pouco valorizada socialmente; condições de trabalho
inadequadas e políticas educacionais inapropriadas como sendo alguns dos aspectos que
afectam negativamente a Qualidade da Educação em Moçambique.

Os aspectos mencionados no parágrafo acima também são corroborados por Beira, Vargas e
Gonçalo (2015), e estes acrescentam que as condições inadequadas de trabalho aumentam “a
desmotivação e a falta de autoestima dos professores” (p. 73).

Por seu turno, Muhache (2021) vai mais fundo ao apresentar questões palpáveis como a
influência do poder político no Ensino, e as consequências da sua dependência no
financiamento externo para suportar a Educação no país.

6
MINEDH (2020, p. 28).
5

Após apresentar depoimentos sobre questões percentuais que tornam o nosso Ensino mais
quantitativo do que qualitativo, na medida em que o poder político está preocupado em
satisfazer os interesses meramente numéricos dos financiadores da educação, Muhache (2021)
acaba chegando a uma conclusão7 que julgamos ser de vital importância para o nosso estudo,
na medida em que confirma a nossa tese de que a Educação em Moçambique, inda que
significativamente expandida, tem se mostrado portadora de um carácter mais quantitativo do
que qualitativo, uma vez em que o alcance das metas é medido em termos numéricos, ou seja,
percentagem de alunos progredidos, transitados e aprovados, independente de tal ter sido por
mérito.

2.3. Policy Cycle Approach

Stephen J. Ball, proponente da Policy Cycle Approach (Abordagem do Ciclo de Políticas), é


um sociólogo britânico, professor do Instituto de Educação da Universidade de Londres;
associado do Centre for Critical Education Policy Studies (Centro de Estudos Críticos de
Políticas Educacionais) e pesquisador da área das políticas educacionais (Mainardes &
Marcondes 2009).

Largamente estudada por Jefferson Mainardes8 e sintetizada em Mainardes (2006), a Policy


Cycle Approach é um referencial teórico-analítico de políticas educacionais, dinâmico e
flexível, que enfatiza a necessidade de se articularem os processos macro e micro na análise de
políticas educacionais, opondo-se, assim, às abordagens estado-cêntricas fortemente defendidas
por Roger Dale9.

Ball, Bowe e Gold10 propõem um ciclo constituído por 5 (cinco) contextos: de influências; de
produção do texto; da prática; dos resultados (efeitos); da estratégia política.

De forma sintética e objectiva, no contexto de influências ocorre a promoção da ideologia,


podendo ser influenciada por diversos grupos de interesse, sejam eles nacionais; internacionais;
ou mesmo globais, e as ideias podem fluir através da media, redes políticas e sociais que

7
“Isto mostra que as metas por serem atingidas na educação em termos de ingressos e graduados acabam sendo
políticas e não exequíveis. São políticas na medida em que o poder político quer apresentar à sociedade
moçambicana e aos seus parceiros financeiros que o sector de educação está a crescer num ritmo satisfatório,
devendo merecer confiança de todos. Estas metas deixam de ser exequíveis na medida em que a opinião dos
técnicos e académicos que lidam com o sector no seu dia-a-dia não são relevantes, sendo que estes acabam sendo
transformados em simples executores de metas e medidas traçadas politicamente, com pouco espaço para
opinarem” (Muhache, 2021, p. 163).
8
Doutor em educação e professor na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Brasil.
9
Professor da University of Bristol no Reino Unido, com uma contribuição ímpar na sociologia da educação.
10
BOWE, R.; BALL, S.; GOLD, A. (1992) Reforming education & changing schools: case studies in policy
sociology.; BALL, S.J. (1994a) Educational reform: a critical and post-structural approach.
6

envolvem a circulação internacional de ideias, e ainda por via de patrocinadores como o Bamco
Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

O contexto de produção do texto refere-se à política materializada num texto que geralmente é
uma legislação, um documento oficial, um manifesto político, etc.

O contexto da prática traduz-se na implementação da política. Na óptica de Bowe et. al. (1992,
cit. em Mainardes, 2006), neste contexto a política está sujeita à interpretação e recriação, uma
vez que os profissionais que actuam no contexto da prática não são leitores ingênuos, e os
autores das políticas não podem controlar os significados atribuídos aos seus textos pelos
respectivos leitores que possuem as próprias experiências, valores, propósitos e interesses.

O contexto dos resultados ou efeitos preocupa-se com questões de justiça e equilíbrio, na


medida em que mais do que resultados, as políticas têm efeitos ou impactos.

O último contexto, da estratégia política, preocupa-se com as desigualdades sociais resultantes


da aplicação da política, cingindo-se mais na identificação de actividades necessárias para se
lidar com as já referidas desigualdades.

3. Metodologia

No concernente à metodologia, estamos diante de um estudo qualitativo, e tal classificação


assenta-se na abordagem de Bogdan & Briklen (1994) que caracterizam este tipo de pesquisas
como sendo as que têm como fonte de dados o ambiente natural, e que tal colecta pode se
efectuar através de técnicas de observação directa e a análise documental, sendo que os
documentos objectos de análise precisam ser desprovidos de qualquer tipo de tratamento
analítico, isto é, documentos tidos como matéria prima para a investigação. As pesquisas
qualitativas também dispensam técnicas estatísticas de análise de dados, uma vez que os dados
qualitativos não podem ser quantificados, e a significação de cada dado é de vital importância.

No caso concreto deste estudo, os dados analisados foram colectados através da técnica de
observação participante, que consistiu na participação activa na actividade docente na Escola
Secundária 04 de Outubro de Inhambane; para além da análise de documentos, ou seja, consulta
de notícias em jornais nas suas versões online; consulta de Leis, Decretos Legais; Convenções
Internacionais; entre outros documentos oficiais.

4. Apresentação e análise de dados

Os dados deste estudo foram selecionados tendo como horizonte a intensão de analisar a Política
de Progressões que está legislada no currículo do Ensino Primário, e que de certa forma
7

transbordou e generalizou-se em todo o Subsistema de Educação Geral (EP e ES), através de


práticas e atitudes observáveis nos actores da Educação Formal em Moçambique.

À luz da Policy Cycle Approach de Stephen J. Ball e colaboradores, procedemos a seguir com
a análise da política em causa neste estudo nos seguintes contextos:

4.1. Contexto de influências

De forma expressiva, o Estado moçambicano, através do Plano Curricular do Ensino Primário


(PCEP), descreve alguns contextos que influenciaram a adopção de uma Política de Progressões
que tem o seu alicerce na ideia de um Ensino baseado em competências, cuja essência é avaliar
a progressão do aluno em detrimento do tempo necessário para aprendizagem11.

Em termos literais, assume-se que para a construção do actual currículo foram tomados em
consideração os relatórios de monitoria e supervisão; os resultados de estudos feitos pelo INDE;
as recomendações dos professores, inspectores educacionais, pais e/ou encarregados de
educação, governantes, políticos, líderes religiosos, empresários, sindicalistas, autoridades e
líderes comunitários, Organizações Não-Governamentais, entre outros. Foram, igualmente,
equacionadas as experiências curriculares de outros países, sobretudo os da região Austral de
África.

Ainda nesta mesma perspectiva e através do Plano Estratégico da Educação (PEE), o Estado
Moçambicano faz menção às Agendas Nacionais e Internacionais que influenciam o desenho
das políticas públicas em geral, e dos currículos educacionais em particular. Entre as Agendas
Nacionais importa destacar o Plano Quinquenal do Governo; o Orçamento do Estado e o Plano
Económico e Social. Já no concernente às Agendas Internacionais são mencionados os
Objectivos do Desenvolvimento Sustentável; o Protocolo da SADC; a Agenda 2063 da União
Africana e a Estratégia para Educação Continental para África 2016-2025.

Num estudo direcionado às políticas do ensino superior, Mechisso (2017) debruça-se em torno
das influencias globais nas políticas educacionais de Moçambique, e, suportando os seus
argumentos em Basílio (2010); Torres (2021); Leher (1999), argumenta que as políticas
educacionais de Moçambique vem sofrendo influência do Banco Mundial (BM) e do Fundo
Monetário Internacional (FMI) desde o início da década de 1980, quando o país sofreu uma
crise económica que o levou a solicitar financiamento externo, e como consequência tornou-se

11
INDE (2020).
8

signatário de várias declarações mundiais resultantes de conferências organizadas pelos seus


financiadores (BM, FMI, UNESCO, UNICEF, entre outros).

De forma ousada e citando Leher (1999), Mechisso (2017) acaba sentenciando que o BM se
tornou uma espécie de Ministério da Educação dos países tomadores de empréstimos ao
estabelecer condicionalidades em termos de políticas sociais a serem adoptadas por tais países.

Na verdade, a construção desta política começa a emergir em conjunto com várias outras
políticas públicas nos anos 1980, quando Moçambique enfrenta uma crise económica e
demostra tendências de aderir à nova conjuntura mundial – o neoliberalismo – imposta pelos
organismos globais financiadores das políticas públicas mundiais. Entretanto, no caso
específico do sector da educação, a Política só veio a “dar as caras” no ano de 2004, através do
Plano Curricular do Ensino Básico (PCEB)12, tendo sido posteriormente reforçada em 2008,
através do Regulamento Geral do Ensino Básico (REGEB)13.

De forma resumida, alguns dos textos políticos das convenções e declarações internacionais das
quais moçambique é signatário, e que fortemente influenciaram a implantação desta Política no
território nacional, apresentam-se nos seguintes termos:

➢ Declaração Mundial sobre Educação para Todos (Jomtien 1990)14

Satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem; universalizar o acesso à educação e


promover a equidade; ampliar os meios e o raio de ação da educação básica; propiciar um
ambiente adequado à aprendizagem.

➢ Protocolo da SADC

Os estados partes deverão, até 2015, promulgar leis que promovam o igual acesso ao ensino
primário, secundário, terciário, profissional e não formal e previnam o abandono escolar, em
conformidade com o Protocolo sobre Educação e Formação e os Objectivos do
Desenvolvimento do Milénio.

➢ Objectivos do Desenvolvimento do Milénio (ODM2)15

Alcançar o Ensino Primário universal: garantir que todos os rapazes e raparigas terminem o
ciclo completo do Ensino Primário.

12
INDE (2003)
13
MEC (2008)
14
Plano de ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem, aprovado pela Conferência Mundial
sobre Educação para Todos em Jomtien, Tailândia – 5 a 9 de Março de 1990.
15
Declaração do Milénio adoptada em 2000 por todos os 189 Estados Membros da Assembleia Geral das Nações
Unidas.
9

➢ Objectivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS4)16

Garantir o acesso à educação inclusiva, de qualidade e equitativa, e promover oportunidades de


aprendizagem ao longo da vida para todos.

Como se pode depreender dos exemplos arrolados acima, a ideia de universalização da


educação obrigatória é comum em todas as convenções, tratados e declarações dos organismos
financiadores das políticas educacionais, e o texto da Política de Progressões implementada em
Moçambique, que será profundamente analisado no próximo contesto, espelha fielmente os
objectivos e metas estabelecidas nas convenções internacionais das quais Moçambique é
signatário.

Ademais, a obrigatoriedade da educação primária através das progressões é uma filosofia que
vem sendo adoptada por todos os países membros das mesmas organizações; signatários dos
mesmos documentos e que buscam financiamento para as suas políticas das mesmas fontes que
Moçambique (BM e FMI).

4.2. Contexto da produção do texto da política


O texto da Política nacional de Educação (Currículo Prescrito) está distribuído em vários
documentos oficiais, ou pelo menos com a aprovação do Estado – Lei 18/2018 de 28 de
Dezembro17; Diploma Ministerial n.º 7/2019 de 10 de Janeiro18; Plano Estratégico da Educação;
Planos Curriculares; Programas de Ensino; Manuais do aluno; entre outros – que estabelecem
entre si relações de subordinação e/ou de complementaridade.

Em termos oficiais e de forma resumida, a abordagem da Política em estudo aparece legislada


no Currículo do Ensino Primário da seguinte forma:

➢ Progressão dentro do ciclo


Dentro de cada ciclo, o aluno progride normalmente de uma classe para a outra no final do ano
lectivo, podendo excepcionalmente progredir até ao fim do primeiro trimestre o aluno que
revelar competências acima do exigido;

➢ Transição do primeiro para o segundo ciclo


No fim da 3.ª classe o aluno é submetido a uma avaliação interna, elaborada e realizada na
escola, sob supervisão da Zona de Influência Pedagógica (ZIP), sendo que as retenções são

16
Produzido pela ONU, o documento apresenta 17 objectivos desdobrados em 169 metas para transformar o
mundo em nome dos povos e planetas até 2030.
17
Lei que estabelece o regime Jurídico do Sistema Nacional de Educação.
18
Aprova o Regulamento Geral de Avaliação do Ensino Primário, Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos
e Ensino Secundário.
10

excepcionais e carecem de um consenso entre o professor e a direcção da escola. Acrescenta-


se ainda que nenhum aluno deverá ser retido mais de uma vez no mesmo ciclo, excepto em
casos de comprovada Necessidade Educativa Especial. É também permitida a transição de
alunos com uma classificação não satisfatória (média 9) nas disciplinas tidas como básicas
(português e matemáticas, as únicas com exame na última classe do Ensino Primário.

➢ Conclusão do Ensino Primário

Na 6.ª classe, a última do EP, o aluno realiza um exame nas disciplinas de Língua Portuguesa
e Matemática, para aferir o desenvolvimento das competências de leitura, escrita e cálculo
elementar. As outras competências serão consolidadas no primeiro ciclo do Ensino Secundário
e avaliadas na 9.ª classe, ao terminar a Educação Obrigatória de 9 classes (Ensino Básico).

Diante do texto desta política é explícito o descontentamento dos profissionais da Educação e


dos beneficiários da Política (professores e encarregados de educação, respectivamente), e tal
descontentamento será aprofundado no próximo contexto (de aplicação). Aqui fazemos alusão
a isto apenas para expor a forte possibilidade de ausência e exclusão de algumas vozes no
processo de construção do texto da Política. Em termos concretos, ainda que no PCEP se alegue
ter havido auscultação de todos os actores do PEA, pelo descontentamento destes pode-se
depreender que na construção do texto da política não se buscou consensos.

Outro facto que se pode extrair da análise do texto da Política de Progressões é o de que o
Estado moçambicano quer alcançar os objectivos e metas globais flexibilizando o fluxo de
alunos pelas escolas, ou seja, o texto da Política de Progressões desencoraja completamente a
retenção de alunos para camuflar a insuficiência de escolas e professores qualificados no sector.

Em termos linguísticos, o texto da Política de Progressões é acessível e de fácil compreensão.


Além do texto principal existem textos secundários, também de fácil acesso, embora alguns
sejam problemáticos, e outros cheguem a ser retirados do sistema dada a gravidade dos erros
de conteúdo contidos nos mesmos19.

4.3. Contexto da prática

A análise feita nos dois primeiros contextos leva-nos a concluir que o Estado Moçambicano
adoptou uma Ideologia educacional que se baseia essencialmente na Massificação da Educação
através do desencorajamento das retenções nas escolas.

19
https://cartamz.com/index.php/sociedade/item/10875-ministerio-da-educacao-manda-recolher-livro-da-6-
classe
11

Esta Ideologia materializa-se através da Política das Progressões que está legislada apenas no
Currículo Oficial do Ensino Primário, alicerçada na filosofia de um Ensino Baseado em
Competências. Na dimensão textual, esta é uma Ideologia bem redigida e fundamentada com
argumentos sólidos e até científicos. Mas o contexto da prática vem expor que a ideologia muito
tem prejudicado o SNE porque motiva Práticas e Atitudes que depreciam significativamente a
Qualidade da Educação em Moçambique, tal como passamos a descrever a seguir:

4.3.1. Rácio aluno-professor

A filosofia do Ensino Baseado em Competências sustenta-se na premissa de que o ritmo de


aprendizagem não é uniforme em todos os alunos, e o professor precisa de tempo suficiente
(três anos lectivos) para acompanhar cada aluno no alcance das competências estipuladas para
cada ciclo de aprendizagem (três classes por ciclo).

Também se argumenta que as retenções levam os alunos ao abandono, e a solução achada para
superar o problema são as Progressões dentro dos ciclos.

Ora, o Contexto da Prática mostra-nos que a filosofia do Ensino Baseado em Competências não
é exequível porque as turmas do Subsistema de Educação Geral (SEG) são numerosas,
chegando a 75 alunos por turma em alguns casos. Tal como argumentam Lázaro, Maquia e
Mairoce (2021) “este rácio impossibilita que os alunos tenham tempo suficiente para interagir
com os seus professores e aprender como deveriam. Na verdade, é tecnicamente impossível
para um professor monitorar e acompanhar mais de 65 alunos por dia” (p. 6).

4.3.2. A problemática das percentagens


Uma das pretensões do nosso estudo é demostrar que a Ideologia de Massificação da Educação
assumida pelo Estado moçambicano não se circunscreve apenas ao EP, mas também ao ES,
tanto que a Política de Progressões legalmente aplicável apenas ao EP já transbordou e é
ilegitimamente observável em todo o Subsistema de Educação Geral (EP e ESG).

São incontáveis as vezes em que delegações provinciais e distritais visitam escolas primárias e
secundárias nos períodos de conselho de avaliação para aferir especificamente se as
percentagens de progressões, transições e aprovações são satisfatórias ou não, no sentido de
tomar providências imediatas para que os números estejam acima dos 90%, e quando tal não é
possível, os directores de escolas acabam vendo-se num cenário em que de alguma forma
devem justificar os seus “baixos aproveitamentos”20.

20
No seu estudo sobre Influências do Poder Político no SNE, Muhache (2021) acaba alertando sobre o facto de os
dirigentes das escolas não terem pleno poder sobre as instituições que dirigem por estes estarem necessariamente
12

Ora, esta prática peca por se verificar apenas nos conselhos de avaliação e com um carácter
meramente quantitativo, porque a manipulação dos resultados (notas) em nada potencia o
Currículo Experienciado que se reflete nas competências do aluno, e como agravante, dá-nos
uma imagem profundamente distorcida do que realmente é o nosso Currículo Avaliado.

Olhando para os indicadores de qualidade propostos por Dourado, Oliveira & Santos (2007),
percebemos que a prática em análise compromete o indicador da Validade porque os objectivos
educacionais e os resultados escolares são reduzidos apenas a números.

4.3.3. Vazamento de Exames Finais

O vazamento dos Exames Finais é uma Prática repudiável que se tornou comum nos últimos 5
anos, e tal se pode evidenciar com uma simples busca pela media nacional na qual encontramos
com muita tristeza títulos como os seguintes:

“Suspeita de fraude adia exame de recorrência de Física na cidade de Maputo21”


“Fraudes nos exames: o vazamento da prova de Física e uma guerra comercial como pano de
fundo22”
“Exames da 10ª e 12ª Classes já circulam nas redes sociais e MINEDH diz que são falsos 23”

Na nossa óptica, esta Prática é uma consequência da ideologia de Massificação da educação em


todo o Subsistema de Educação Geral, com vista a graduar mais alunos e gerar ainda mais vagas
para novos ingressos na perspectiva de acomodar a Ideologia de garantia de um ensino básico
e obrigatório de 9 classes a todos os rapazes e raparigas em idade escolar.

Esta prática prejudica fortemente a Qualidade da Educação nacional, com maior incidência no
Currículo Avaliado que acaba se distanciando ainda mais do Currículo Prescrito. Em termos
mais técnicos, a Credibilidade é o indicador que nos remete à conclusão de que esta Prática
prejudica a Qualidade da Educação, na medida em que o vazamento dos Exames Finais faz com
que este elemento de avaliação não seja digno de confiança.

4.3.4. “Fraude legalizada” no processo de exames

Uma das práticas mais repudiáveis observável no SEG ocorre no momento da realização dos
Exames Finais. Num esquema perfeitamente arquitetado em coordenação com os supervisores

filiados ao partido no poder, o que os leva a tudo fazerem para que as metas políticas de graduados sejam
alcançadas nas escolas.
21
https://www.opais.co.mz/suspeita-de-fraude-adia-exame-de-recorrencia-de-fisica-na-cidade-de-maputo/
22
https://cartamz.com/index.php/sociedade/item/369-fraudes-nos-exames-o-vazamento-da-prova-de-fisica-e-
uma-guerra-comercial-como-pano-de-fundo
23
https://www.opais.co.mz/exames-da-10a-e-12a-classes-ja-circulam-nas-redes-sociais-e-minedh-diz-que-sao-
falsos/
13

distritais, criam-se condições para se garantir que os alunos tenham os melhores resultados
possíveis nos exames, permitindo que os professores da disciplina sendo examinada circulem
pelas salas de exame para efeitos de esclarecimento de dúvidas, e quiçá ditar algumas respostas.

Esta Prática também denuncia o carácter quantitativo da nossa educação, motivado pela
Ideologia da Massificação da Educação, cuja implementação não se tem baseado única e
exclusivamente na expansão da rede escolar, mas também na graduação massiva de alunos
“incompetentes” para que as insuficientes escolas existentes possam absorver o máximo
número possível de crianças e adolescentes em idade escolar.

Sem dúvida, esta Prática advém de uma má abordagem ao Nível do Sistema, que mais se
preocupa em cobrar resultados percentuais sem criar pressão equivalente no concernente às
competências. Esta cobrança leva as lideranças hierarquicamente inferiores a tudo fazerem para
que os relatórios do sector da educação estejam acompanhados por números elevados.

O indicador de qualidade mais lesado com esta Prática é o da Incorruptibilidade, que consiste
numa Educação desprovida de distorções, ou com uma margem mínima destas. Com a Prática
descrita acima, o Currículo Avaliado tende a ser falacioso, porque os resultados apresentados
por este não refletem o real potencial do aluno, ou seja, são distorcidos.

4.3.5. Comodismo crónico no Subsistema de Educação Geral

Com a certeza de que até ao final do ano lectivo quase todos os alunos terão progredido,
transitado ou aprovado para as classes seguintes, observa-se, no Contexto da Prática, um
comodismo generalizado por parte dos actores últimos do PEA (alunos; professores; pais e/ou
encarregados de educação).

O comodismo por parte dos alunos é notável pela sua falta de comprometimento com a causa
educativa, na medida em que pouco se observa a pontualidade nos primeiros tempos lectivos;
o respeito e temor pelo professor depreciaram-se para dar espaço ao desrespeito e
insubordinação. No exercício das nossas actividades de docência, que felizmente coincidiram
com a observação participante através da qual colectamos os dados em análise, pudemos
testemunhar situações de alunos em quantidade significativa que conscientemente deixavam de
fazer o tpc, e mesmo com punições correctivas a Prática perpetuava-se; outros perdiam testes e
não tomavam nenhuma atitude com vista à realização oportuna dos testes perdidos; os trabalhos
em grupo eram feitos por um aluno, sendo que os demais limitavam-se a solicitar a anexação
dos respectivos nomes momentos antes da entrega dos trabalhos; entre outros comportamentos.
14

Os professores, por sua vez, avaliavam mas não chegavam a corrigir e devolver todos os testes
aplicados; outros trocavam algumas aulas da semana por negócios paralelos; alguns
transformavam as escolas em campos de assédio sexual e corrupção, o que resultava num
conselho de avaliação em que o julgamento para as votações e doações de valores era norteado
por laços de afinidade e compromissos de corrupção, desconsiderando parcialmente o mérito
de alguns alunos consoante os seus percursos estudantis ao longo do ano lectivo.

No mesmo contexto, alguns encarregados despiram-se completamente da missão educativa dos


seus educandos, deixando a tarefa sob alçada exclusiva dos professores que já estão
significativamente desmotivados pela remuneração relativamente baixa e notável falta de
autoridade sobre o aluno e todo o processo educativo. A renúncia da responsabilidade educativa
é observável pelas ausências recorrentes dos encarregados de educação em reuniões de abertura
do ano lectivo; ausências em reuniões trimestrais de divulgação dos resultados; e até mesmo a
indiferença quando são solicitados para resolver problemas pontuais dos seus educandos.

Vezes há em que nos poucos casos de retenção ou reprovação de alunos, os próprios


encarregados de educação contactam instâncias hierarquicamente superiores à direcção da
escola para forçar a anulação do resultado negativo dos seus educandos.

Os dados descritos acima afectam, de certa forma, todos os tipos de Currículo abaixo do
Prescrito, ou seja, o Percebido, o Real, o Experienciado e o Avaliado.

O comodismo do professor encontra motivações na Política de Progressões pela consciência


que este tem de que apesar do trabalho árduo para instruir, lecionar e apurar resultados fiáveis
sobre o seu trabalho docente, quando chega o fim do ano lectivo é sempre colocado numa
situação que o obriga a refazer o apuramento dos alunos na situação negativa, desconsiderando
totalmente todos os elementos de avaliação por si recolhidos ao longo do ano lectivo.
Consequentemente, este esforça-se cada vez menos na formação individual para melhorar o seu
Currículo Percebido, o que acaba prejudicando fortemente o Currículo em Acção.

O aluno é tido como sendo o centro das atenções pelos novos enfoques pedagógicos, na medida
em que este não é uma “tábua rasa”, ou seja, o aluno interage com novos saberes partindo dos
conhecimentos já adquiridos. Sendo o aluno a peça chave do PEA, é evidente que qualquer
desmotivação sua comprometerá o Sistema Educativo como um todo.

A desmotivação por si só já incide sobre o Currículo em Acção, cujas consequências refletem-


se no Currículo Experienciado. Um aluno desmotivado aprende pouco, e tem a fraude
15

académica como principal recurso para conseguir bons resultados, e isto prejudica o Currículo
Avaliado.

No contexto moçambicano, a comunidade tem desempenhado um papel de vital importância na


preservação de infraestruturas escolares através de contribuições para a contratação de guardas,
sensibilização dos seus educandos para uma utilização consciente do bem escolar, e até
contribuições com material de construção para a ampliação da escola.

Estando o encarregado de educação ainda mais distante da escola, a practicidade com que se
poderia garantir e manter condições adequadas ao PEA fica prejudicada porque o professor
passa a trabalhar de forma desamparada com um aluno cuja Educação Moral e Cívica é
deficiente, e dificilmente consegue incutir nele a pertinência de se manter uma sala de aulas
com condições que criem uma pré-disposição para a aprendizagem, o que beneficiaria
significativamente o Currículo em Acção.

4.4. Contexto dos resultados (efeitos)

Tal como já se disse anteriormente, as políticas públicas da educação em Moçambique


assentam-se numa Ideologia de Massificação da Educação por forma a garantir o direito à
educação básica aos cidadãos nacionais em idade escolar, e a Política de Progressões, ao
desencorajar a retensão de alunos, tem motivado as Práticas já descritas que permitem um fluxo
contínuo e ininterrupto de alunos por todo o SEG, possibilitando que o Sistema absorva quase
todas as crianças em idade escolar sem precisar expandir suficientemente a rede escolar.

Em linhas gerais, a Política não tem gerado cenários de injustiça social de muita relevância,
provavelmente por esta ter sido espelhada nas teorias pós-críticas do currículo que aprofundam
a sua discussão e desigualdade social, feminismos, gênero, etc., e defendem o reconhecimento
da pluralidade cultural e diversidade humana, elaborando uma concepção de currículo que
dialoga com as categorias de identidade, alteridade e diferença (Freire & Vieira, 2019).

Os resultados da Política vão de encontro com os objectivos da Ideologia de Massificação do


Ensino, e indicam para uma tendência de acesso quase universal à Educação Básica, incluindo
o Ensino Secundário, sem distinções de etnia, género, religião, etc. De acordo com o PEE, no
Ensino Primário, os efectivos do subsistema duplicaram entre 2004 e 2018, com mais de 6,5
milhões de estudantes em 2018; no EP 47,4% dos estudantes eram raparigas; dos alunos que
concluíram o Ensino Primário em 2015, 64% entraram para o secundário (MINEDH, 2020).
16

No entanto, a abordagem das progressões que tenta camuflar as precárias condições económicas
do país que não possibilitam uma devida expansão da rede escolar, está completamente
desajustada em relação às necessidades reais do país tendo em conta a densidade populacional,
e isto gera um efeito nefasto sobre a Qualidade da Educação nacional, uma vez que a Política
prevê um acompanhamento particular e personalizado do aluno pelo professor, o que não se
mostra possível dado o elevado rácio professor-aluno.

Um acompanhamento individualizado em turmas numerosas é um verdadeiro desafio para os


professores até no EP onde se adopta a monodocência. Porém isto torna-se ainda mais
inexequível no Ensino Secundário onde um mesmo professor pode ter de lecionar mais de uma
disciplina em mais de 10 turmas no mesmo ano lectivo.

Em suma, o principal e mais relevante efeito da Política aqui em estudo é a baixa Qualidade da
Educação no SEG, e isto é de domínio público porque questionamentos e comentários
depreciativos deste Subsistema podem ser ouvidos de todos os cantos das comunidades
moçambicanas que vêm os seus filhos graduando o EP sem desenvolver competências básicas
de leitura, escrita e cálculo; ou então os impedidos de continuar os seus estudos por terem sido
reprovados nos exames de admissão ao ensino superior; ou ainda os que para além do preço da
matrícula precisam investir mais dinheiro em professores particulares para compensar a parte
intelectual que a Escola Pública não consegue suprir.

4.5. Contexto da estratégia política

Todos os actores do currículo em acção (professores, alunos, pais e/ou encarregados de


educação); as Organizações da Sociedade Civil (ONP/SNPM24 em particular) têm a
responsabilidade moral e legal de influenciar não só os primeiros estágios da concepção de uma
nova política educacional, mas também o Contexto da Estretégia Política, para colmatar
possíveis efeitos adversos advindos da implementação da Política. Contudo, Mechisso (2020)
destaca …

(…) a fraca atuação das Organizações da Sociedade Civil (OSC) moçambicanas nas
reivindicações, pois, na sua maioria foram formadas no período monopartidário pela
FRELIMO e continuam a ela ligadas, o que as torna mais frágeis para externar reivindicações
de modo autônomo ao governo. O outro factor que fragiliza essas Organizações da Sociedade
Civil é a sua dependência financeira que se explica primeiro porque, por lei, as organizações

24
Organização Nacional dos Professores ou Sindicato Nacional dos Professores de Moçambique, criada a 12 de
Outubro de 1981, visa “valorizar o professor no país, dignificar e prestigiar a missão social do professor e educador
em Moçambique, como agente transformador da sociedade” (MINEDH, 2021, p. 140)
17

são obrigadas a estarem ligadas a um órgão do governo na área em que operam para
receberem apoio financeiro e segundo porque, recebem apoio do próprio Estado (p. 359).

Por causa do exposto acima, ainda que com várias ideias para mitigar os efeitos da Política de
Progressões, as vozes mais sonantes entre os actores do Currículo em Acção e as OSC optam
pelo silêncio, tornando-se leitores ingênuos e meros executores das prescrições curriculares
adoptadas pelo legislador, o que é totalmente contra as abordagens pós-críticas das teorias do
currículo25.

Mas do outro lado da história temos a comunidade científica que é destemida, e embora seja
pouco ouvida, não se tem cansado de sugerir estratégias políticas para reverter a situação
precária em que se encontra a Qualidade da Educação em Moçambique.

Lázaro, Maquia e Maicore (2021), por exemplo, sugerem a formação docente e o incremento
dos salários como soluções parciais para alavancar a Qualidade da Educação. A isto, temos a
acrescentar a necessidade da desvinculação das OSC do estado e do partido no poder para
permitir que estas exerçam as suas obrigações sociais influenciando significativamente as
políticas públicas sem medo de sofrer represálias.

A outra solução associada às já apresentadas seria a rápida e progressiva expansão da rede


escolar por forma a reduzir o rácio professor-aluno, o que tornaria exequível a implementação
do Ensino Baseado em Competências que é o principal alicerce da Política de Progressões, ou
seja, tornaria possível um acompanhamento personalizado de cada aluno por parte do professor.

5. Considerações finais

Moçambique foi uma colónia portuguesa e este facto prejudicou a Educação Formal no país na
medida em que mais do que inacessível era baseada numa ideologia discriminatória e de
opressão. Com o alcance da independência tornou-se consequência óbvia a adopção de uma
Ideologia de Democratização e Massificação da Educação para uma fácil afirmação e
consolidação da nação nos vários domínios da vida (social, cultural, económica, política,
científica, etc.).

No entanto, dadas as condições económicas do país, até aos dias correntes torna-se
extremamente desafiador massificar o acesso à Educação através da expansão da rede escolar,
levando, assim, o estado a adoptar uma Política de Progressões legislada no Currículo do Ensino

25
“A escola é a unidade básica de referência para o desenvolvimento do currículo, (…) e a ideia do professor como
executor das prescrições (…) dadas no programa pelas competentes hierarquias da administração educativa precisa
ser reconsiderada” (Zabalza, 2000, p. 46).
18

Primário, e também ilegitimamente observável no Ensino Secundário, o que permite uma


graduação massiva de alunos e consequente absorção da maioria significativa de crianças e
adolescentes em idade escolar pelas insuficientes escolas que já existem.

A adopção desta Política associada às condições inadequadas tem motivado todas as Práticas
descritas neste estudo, que infalivelmente prejudicam o valor qualitativo do SNE como um
todo, e do Subsistema de Educação Geral de forma particular, com as consequências incidindo
sobre todas as formas do Currículo.

Em suma, concluímos que com a adopção da Política de Progressões, tudo o que se ganhou em
quantidade perdeu-se em qualidade.

Há uma necessidade de se resgatar a confiança e respeito pelo Subsistema de Educação Geral,


e tal passa por um investimento em todos os tipos de Currículo. É necessário que se devolva ao
professor o poder sobre o PEA, especialmente no que concerne à gestão dos resultados da
aprendizagem (pautas finais), o que poderá levar à elevação da sua autoestima
profissionalmente e um consequente empenho na formação individual, e os resultados disto
serão refletidos no Currículo Percebido, que por sua vez tem forte influência sobre os Currículos
Real e Experienciado. De referir ainda que a consciência da reprovação certa por parte do aluno,
tanto nas classes terminais dos ciclos do EP, como em todas as classes do ES, poderá levar a
uma mudança de postura tanto do aluno, como do pai e/ou encarregado de educação.

A abordagem da Qualidade da Educação ao Nível do Sistema precisa encontrar um equilíbrio


entre o número de graduados e as competências, evitando assim julgar o trabalho do sector da
educação somente a partir do número de alunos em situação positiva. Acreditamos que esta
mudança de perspectiva vai desmotivar qualquer Prática de sabotagem do processo de exames,
facto este que reduzirá a distância conceptual entre o Currículo Avaliado e o Prescrito.
19

6. Referências bibliográficas

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