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Demo (2010), Hernandez (1998), Freire e as suas necessidades e, a partir disso, orga-
(1983) que defendem a urgência do processo nizar situações de aprendizagem para e com
de ensino e aprendizagem focar no estudante elas. Esse processo de organização curricular
suas atenções e propõe uma modificação na centrada na criança faz com que o currículo
lógica, na qual a instituição escolar está orga- tenha que ser uma construção cotidiana,
nizada, priorizando os interesses dos grupos altamente flexível e aberta a imprevistos,
específicos que a escola atende. O que se ao fascínio e à dúvida: o que se coloca em
pressupõe é a heterogeneidade existente entre uma oposição a um currículo preescritivo e
as diversas crianças que frequentam a escola organizado somente para as crianças.
e uma organização institucional que tenha por Em um primeiro momento de nossa
enfoque as curiosidades dos alunos, sabendo escrita, buscamos compreender quais as
lê-las pelas perguntas que as crianças fazem estratégias existentes na Abordagem de
(FREIRE; FAUNDEZ, 1985). Planejament Emergente que permitem ao
A ruptura proposta por esses autores exi- professor a autoria curricular, ou seja, definir
ge uma reorganização de toda a instituição os temas que serão abordados no decorrer do
escolar afetando diretamente a concepção seu trabalho pedagógico, sem seguir Planos
do professor como instrutor (DEMO, 2011) de Trabalho organizados em uma perspectiva
e a concepção de aluno como tábula rasa ou adultocêntrica.
vaso a ser preenchido. O professor, em uma Na abordagem reggiana de planejamento,
perspectiva de trabalho pelos interesses da encontramos dois elementos principais que
criança, assume-se como autor, não apenas de possibilitam a autoria do professor: a docu-
material didático, mas do currículo, uma vez mentação pedagógica e a investigação desen-
que deve ser significativo, estando em cons- volvida por ele. Essas duas estratégias são
tante processo de avaliação e reorganização. concebidas como princípios do planejamento
Nessa perspectiva, este estudo busca, na abordagem emergente (BARACHO, 2011;
na abordagem do planejamento emergente, SILVA, 2011) que, quando desenvolvidas
característica da Região de Reggio Emilia/ concomitantemente, possibilitam a renova-
Itália, subsídios que permitam a ressignifica- ção das práticas pedagógicas e dos currículos
ção das práticas pedagógicas e dos currículos escolares.
escolares. No Planejamento no Enfoque Em um segundo momento, discutimos
Emergente - abordagem de planejamento, como a documentação pedagógica constitui-
considerada a melhor do mundo para crianças se como elemento que subsidia o exercício de
de 0-6 anos (HINCKLE, 1991) - o currículo pensar a prática docente e acaba tornando-se
não é definido previamente, mas sim, cons- importante instrumento de renovação dos
truído cotidianamente por meio de um pro- fazeres pedagógicas e, sobretudo, de recons-
cesso de progetazzione, no qual os aspectos trução dos currículos destinados aos Anos
a serem trabalhados para e com as crianças Iniciais do Ensino Fundamental.
emergem do cotidiano ( MALAGUZZI, 1999; Os dados apresentados no decorrer do arti-
RINALDI, 1999, 2012). go foram obtidos por meio de um estudo qua-
Kinney e Wharton (2009) também desta- litativo, com seis professores que atuam em
cam que na abordagem reggiana de educação turmas do 1º Ano do Ensino Fundamental de
infantil um aspecto fundamental para a elabo- escolas das três redes de ensino (municipal,
ração e desenvolvimento dos currículos é o estadual e privada) do município de Lajeado/
processo de escutar o que as crianças desejam RS. O corpus da pesquisa foi constituído por
bido como um laço entre a experiência mostrando”. Por si só o ato de escutar não se
em sala de aula e as fontes externas de compromete com a ação transformadora da
apoio (SILVA, 2011, p. 29). realidade. Fazer registros dos diálogos ou
O princípio da documentação pedagógica momentos que as crianças vivenciam poderão
consiste em três etapas principais: a observa- apresentar-se como subsídios para pensar
ção, o registro e a reflexão ou investigação da o planejamento de uma aula. Assim, aden-
própria prática (HOYUELOS, 2007). Neste tramos na segunda etapa da documentação
estudo, focaremos, mais especificamente, pedagógica que é o registro.
a etapa da investigação, entretanto, as três É no momento do registro que os profes-
etapas são interligadas, o que faz com que sores constituem uma memória coletiva e
tenhamos que apresentá-las brevemente. grupal de situações que ocorrem no cotidiano
A observação consiste no primeiro mo- (SILVA, 2011). Os registros são uma forma
mento da documentação pedagógica, no qual de não confiar somente na memória, mas
o professor é responsável pela elaboração de ter um material concreto para que possa ser
um roteiro de aspectos que devem ser obser- consultado. Além dos registros de atividades,
vados nas crianças. A partir desse roteiro, ele imagens e vídeos, a documentação pedagó-
passa a escutar o que as crianças comunicam gica consiste ainda em Planos de Trabalho e
por meio de suas múltiplas linguagens (MA- hipóteses previstas para os trabalhos.
LAGUZZI, 1999). Quanto aos registros, os professores par-
Kinney e Wharton (2009, p. 23) destacam ticipantes da pesquisa também o elaboram,
que o processo de escuta na documentação sendo que destacam principalmente a exis-
pedagógica “[...] significa ouvir ativamente e tência de Diários de Aula (P1, P2, P4, P5 e
observar as reações e respostas das crianças”, P6). A P1 destaca que no seu diário consta “o
e prosseguem afirmando que esse processo que eu faço é um relato diário do que acon-
de escuta: “Proporciona muitos insights e en- teceu naquele dia”. A P4 destaca ainda que
tendimentos valiosos. Ajuda-nos a concentrar “eu relato o que a gente fez na sala mesmo.
nossa atenção nos modos como as crianças Como eles brincam como ele se relaciona
extraem sentido do seu mundo” (KINNEY; com os colegas”.
WHARTON, 2009, p. 23). Assim, ao reto- Porém, observamos, principalmente, que
marmos a ideia apresentada inicialmente de os registros dos professores são utilizados
um currículo centrado na criança, é funda- para descrever as atividades que serão de-
mental a compreensão da cultura infantil, de senvolvidas no decorrer da semana: “escrevo
seus modos de ver e interpretar o mundo, o mais ou menos o planejamento da semana
que é evidenciado por meio de um processo toda” (P3) e a P6 também afirma que nos seus
de escuta sensível. registros foca principalmente a organização
No momento em que fomos a campo para da semana.
geração de dados empíricos, percebemos Destacamos, assim, que no momento em
que a escuta é constantemente utilizada na que nos registros constam somente o plane-
prática dos seis professores participantes da jamento, os registros tornam-se estratégia
pesquisa. A P21 afirma que “através da escuta, para a normatização do currículo escolar. O
tu vai saber a necessidade deles [alunos]. O registro elaborado em uma perspectiva de
que eles querem realmente saber”. A P5, por documentação pedagógica deve constar não
sua vez, afirma que “eu procuro perceber o somente de planejamentos, mas de relatos das
que essa criança quis dizer, o que ela está me reações das crianças e o que elas comunicam.
que fundamentam as suas práticas, tal como assume a dimensão coletiva (GONZÁLEZ;
nos coloca a P5: “Quando eu escrevo, eu ESTRADA; CAÑAL, 2006). Os profes-
faço um registro mais teórico, nas questões sores sentem-se envolvidos na proposta e
de aprendizado deles. [...] Eu sempre busco transformam o seu trabalho em um princípio
fazer esse caminho”. O diálogo com estudos educativo. A escola passa de uma situação
teóricos faz com que o professor consiga ana- de reprodutora de conhecimentos para uma
lisar ou evidenciar aspectos latentes de sua esfera de produção. No momento em que a
prática que permaneceriam implícitos se não documentação pedagógica dos professores é
houvesse a implicação de pensar praticamen- exposta em uma dimensão coletiva e passa
te a teoria que sempre estudou. Não apenas a ser analisada sobre diferentes olhares,
analisa as experiências por uma perspectiva evidenciam-se aspectos despercebidos no
que as signifique, mas cria condições para trabalho docente.
que possa recriar suas teorias para adaptá- Porém, ao analisarmos a manifestação
las ao contexto que pretende pensar. Essa do trabalho coletivo junto às escolas parti-
fundamentação teórica não deve ser tomada cipantes da investigação, observamos que
como normativa, mas sim, como subsídio que isso acontece somente no caso da P1 e P6.
permita ao professor repensar a sua prática e A P1, em entrevista concedida, relata que
reconstruir as teorias utilizadas a cada nova em um determinado momento, pediu que a
situação de sala de aula. Supervisora Pedagógica observasse as suas
aulas: “eu me senti incomodada com algumas
Outro aspecto importante a potencializar
situações que ocorriam, troquei com minha
sobre a documentação pedagógica como
supervisora e ela se ofereceu para de vez em
ferramenta capaz de subsidiar e possibili-
quando me ajudar, observando a turma”, e
tar a renovação curricular se dá quando os
a P6 relata que a forma “individualista de
professores assumem a dimensão coletiva
trabalho está ultrapassada”.
do trabalho pedagógico, ou seja, mantêm
um trabalho coletivo e colaborativo com A análise desses dados permite perceber
seus pares, para que possam discutir os seus que a dimensão coletiva do trabalho docente
é um aspecto que deve ser melhorado, uma
registros e intenções pedagógicas a partir da
vez que, nos casos observados, o trabalho
documentação produzida.
colaborativo surge em um momento em
A documentação pedagógica é uma in- que uma professora precisa, ou em um mo-
terpretação subjetiva que um determinado mento de participação de experiências, não
professor faz da realidade, contudo, se outros assumindo um aspecto de formação em que
profissionais discutirem e a interpretarem, é os professores podem dialogar sobre suas
possível que novas leituras sejam feitas e se práticas com os seus pares e discutirem as-
produzam outros conhecimentos que possam pectos documentados, a que, para Perrenoud
ser utilizados no momento da (re)organização (2000), mesmo não sendo totalmente racional
curricular da instituição. O trabalho coletivo e definitiva, por estar envolvida em muitos
no espaço escolar tende a potencializar ainda aspectos subjetivos, permite um exercício de
mais a concepção de documentação pedagó- lucidez profissional.
gica como estratégia de renovação curricular. É fundamental que no processo de gestão
A inovação curricular requer desenvolvi- escolar, sejam focadas as dimensões coletivas
mento profissional e confiança e essas duas do trabalho docente. Ou seja, nas escolas
características podem ser obtidas quando o analisadas, o processo de documentação
trabalho desenvolvido no ambiente escolar pedagógica ocorre. Contudo, os momentos
NOTA
1
O anonimato aos sujeitos participantes da pesquisa foi um dos direitos garantidos no momento da
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (SPINK, 2000). Nesse sentido, não divul-
garemos os nomes de profissionais, sendo que os docentes serão identificados como P1 e P2 (docentes
de uma escola da rede municipal de ensino), P3 e P4 (docentes de uma escola da rede estadual de
ensino) e P5 e P6 (docentes de uma escola da rede privada de ensino).
REFERÊNCIAS
ALARCÃO, I. Professores reflexivos em uma escola reflexiva. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
BARACHO, N. V. de P. A documentação na abordagem de Reggio Emilia para a educação
Infantil e suas contribuições para as práticas pedagógicas: um olhar e as possibilidades em um
contexto brasileiro. Dissertação (Mestrado) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação,
Programa de Pós-Graduação em Educação. São Paulo: s.n., 2011. 234p.
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Porto: Persona, 1977.
BECKER, F. A Epistemologia do Professor. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.