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Capítulo 1

Estou agarrado à minha mãe enquanto meu padrasto esmurra


minha costa com força. É uma dor insuportável, mas não
pretendo deixar ele tocar nela mais uma vez. Me recuso. Por
mais que ela esteja implorando que pare, ele só continua a me
bater na tentativa de acertar minha mãe. Não vou permitir.
Analuci se casou com meu padrasto três anos depois da morte de
meu pai, quando eu tinha 10 anos. Os anos que se antecederam
foram bem difíceis, minha mãe chorava todos os dias e quase
não tinha forças para nos manter vivos. Éramos apenas nós dois
depois que ele morreu. Analuci trabalhava numa lanchonete que
ficava a quatro quarteirões de nossa casa, eu ia ao trabalho com
ela porque se recusava a me deixar na casa de alguém ou deixar
que outra pessoa cuidasse de mim. Seu salário na lanchonete não
era muito, apenas o suficiente para pagar o aluguel e nos manter
alimentados por um mês. Lembro de quando alguns lanches
sobravam nas mesas, quase intocados, e ela levava para casa.
Era melhor ainda quando podíamos levar alguns refrigerantes
quase cheios. Fazíamos a festa com o pouco que sobrava.
Seu casamento com meu padrasto não trouxe problemáticas
durante três anos, mas depois disso, as coisas começaram a ficar
ruins. Robert era um cliente da lanchonete quando conheceu
Analuci. Ele até nos ajudava quando os dois ainda namoravam e
depois de sete meses namorando, ele perguntou se minha mãe e
eu gostaríamos de ir morar com ele e aceitamos, já que o aluguel
da nossa casa estava muito caro. A casa dele era em outro bairro
não muito distante da lanchonete e era um pouco maior que
nossa antiga casa. Possuía três quartos, uma cozinha e ainda
tinha sala de estar, o que não tínhamos na antiga casa. Foi difícil
para nós dois nos adaptar em um lugar novo depois de tanto
tempo morando alugado, mas depois de alguns meses já nos
sentíamos em casa, e Robert pediu Analuci em casamento. Foi
repentino, mas estávamos desesperados e Analuci já estava
convencida de que o amava e que o casamento era a melhor
opção naquele momento.
Os primeiros três anos foram ótimos, não tínhamos que nos
preocupar com aluguel e podíamos jantar fora no final de cada
mês. E foi só depois disso que Robert foi de um bom homem a
um covarde. Com o tempo, a relação entre minha mãe e meu
padrasto foi esfriando, e os dois começaram a discutir muitas
vezes durante à noite, quando eu ia para o meu quarto. Porém
em uma noite ele a deu um tapa. Ela chorou e ele também e eu
pude ver os dois se abraçando e chorando pela fresta da porta.
Essa foi só a primeira vez, e não demorou para que viesse a
segunda e a terceira, até que se tornou um ciclo vicioso onde os
dois estavam perdidos em si mesmos e sem nem saber o que
sentiam um pelo outro. Pelo menos, acima de tudo, ela o amava.
Até esse ponto minha mãe já dependia totalmente de Robert,
então pedir o divórcio já não era uma opção. Durante uma parte
da minha infância eu me senti culpado, pois sabia que minha
mãe não queria que eu tivesse que passar por momentos tão
ruins de novo. Era diferente claro, mas não deixou de ser um
sofrimento.
Ainda estou agarrado à minha mãe quando Robert chuta minha
perna e eu caio. Estou cansado de viver assim. De ter que ver
minha mãe sendo obrigada a passar por isso. Me levanto e o
lanço contra a parede, soco sua cara com força até que sinto o
sangue escorrer pelas minhas mãos. Paraliso e encaro sua face
ensanguentada.
— O que você acha que está fazendo, seu moleque? – ele fala
com raiva – está se achando o valentão agora? Eu pago tudo
para você e para sua mãe e é assim que sou tratado? Vocês dois
merecem morrer de fome mesmo.
Ele bate à porta da sala enquanto sai de casa, provavelmente vai
passar a noite fora se embebedando. Lágrimas escorrem no rosto
da minha mãe, assustada e em completo desespero. Desespero
pelo que acabou de ver. Desespero pelo que teve que passar.
Desespero por saber que tudo o que meu padrasto disse é
verdade e que aquela era nossa realidade daqui para frente.

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Já passa das 6:00 da manhã e eu estou acordado desde as 4:00.


Com tudo que aconteceu, só consegui ter algumas horas de sono
e acredito que minha mãe nem sequer dormiu esta noite. Ela não
costuma dormir bem quando Robert dorme fora de casa. É
incrível que Analuci ainda ama seu marido mesmo depois de
todo o sofrimento que ele à causa durante todos esses anos, deve
ser o que acontece quando você ama tanto uma pessoa a ponto
de se sentir preso a ela.
Preciso me levantar da cama para ir ao colégio, faltei uma
semana e a diretora ligou para Analuci para saber o que houve.
Eu só estava cansado depois de tantas noites mal dormidas,
como hoje, mas não posso me dar o privilégio de faltar
novamente. Estudo num colégio relativamente bom no centro da
cidade, com bons professores e ótima estrutura, mas nos últimos
meses tenho pensado bastante em desistir dos estudos, tentar
arranjar um trabalho e finalmente livrar minha mãe daquela
vida. Muitos pensam que é só ir em uma delegacia e denunciar
meu padrasto pelas agressões, mas a justiça não é muito justa
quando se trata de mãe e filho negros que vivem numa
comunidade marginalizada, prova disso? Semana passada, um
garoto de treze anos foi morto por policiais que alegaram que o
viram esconder “sacola suspeita” na mochila. Testemunhas
disseram que ele voltava da padaria, depois de comprar alguns
salgadinhos que ele disse ser para a irmã mais nova. Foram 15
tiros no peito. Ele não atacou os policiais, não questionou eles
quando o prensaram na parede, apenas ficou calado e com medo
enquanto eles o mandavam abrir as pernas. Mesmo se ele
estivesse mentindo e a sacola fosse realmente drogas, será que
eram necessários os 15 tiros no peito? O pior é pensar que por
mais que a família implore por justiça, ela não será realmente
feita e casos como esse só iram acontecer mais frequentemente.
Meu círculo social na escola é bem limitado. Só tenho um
amigo, o Téo. Ele é o garoto extrovertido e amigável que tem
amizade com metade do colégio, e o meu melhor amigo. Téo é o
único com quem eu converso sobre quase tudo, então ele sabe
bastante coisa sobre mim, e, apesar de ter minha mãe, nunca
converso com ninguém sobre metade das coisas que acontecem
na minha vida. Até porque não tem com quem eu conversar.
Capítulo 2

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