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São Francisco de Sales, Doutor da Perfeição

Biografia de São Francisco de Sales


por ABBÉ JACQUES LECLERCQ

SUMÁRIO
Prefácio

Doutor da perfeição

Papel histórico de São Francisco de Sales

1. O ambiente e o homem
2. Tendência psicológica
3. Tendência prática
4. Otimismo
5. Piedade salesiana
6. Formação das almas

Um primoroso espírito de sanidade

Desprendimento dos Afetos

São Francisco de Sales na Visitação

Advertência

São Francisco de Sales na Visitação


1. O bom Pai e as caras Filhas
2. As palestras do bom Pai com as caras Filhas
3. O motivo pelo qual as caras filhas não são todas perfeitas
4. As caras Filhas devem morrer a si mesmas
5. As caras Filhas devem unir-se a Deus pela parte superior da alma
6. A bela virtude da simplicidade
7. As caras Filhas se tornarão perfeitas pela prática da simplicidade

Prefácio
Certas almas parecem feitas de um só bloco, — um Catão, um
Gregório VII, um Veuillot — e julgamos compreendê-las facilmente.
Reservam-nos, entretanto, surpresas, como, por exemplo, o aspecto
sob o qual se apresentam um Veuillot ou um Joseph de Maistre em
suas cartas íntimas, e os estudos recentes que modificaram a
fisionomia tradicional de Gregório VII.

Há almas, porém, que desde o princípio parecem variáveis, almas


em que os caracteres opostos se aliam e os traços contrários se
reúnem, em gradações sutis, um Pascal, um Fénelon, um
Montaigne. Essas almas servem indefinidamente de ponto de mira
aos psicólogos. Cada um encontra nelas o que quer.

Seria Montaigne realmente cético, e teria sido Pascal


verdadeiramente atormentado pela dúvida? Tantos autores, tantas
opiniões…

São Francisco de Sales é classificado entre os espíritos variáveis.


Tem sido muito estudado. A publicação da edição crítica de suas
obras completas forneceu, há poucos anos, aos historiadores, um
instrumento de trabalho perfeito, e assim a sua personalidade foi
encarada sob todos os seus aspectos e foram feitas descobertas
imprevistas. Não o transforma M. Brémond, na sua Vie de Sainte
Jeanne de Chantal, num prelado italiano espertalhão?
Apareceram alguns livros que tratam de sua vida. Citemos em
primeiro lugar Saint François de Sales et ses Amitiés, de Henry
Couannier, e Saint François de Sales, Directeur d’âmes, de M.
Vincent, que trata de sua doutrina. Pode-se acrescentar a
estes, Saint François de Sales et notre coeur de chair, de M. Henry
Bordeaux, obra encantadora, de fina psicologia ou de compreensão
esclarecida.
Os historiadores, sob pretexto de devoção, parece que tentaram
fazer de São Francisco de Sales um personagem convencional. Mas
trabalhos recentes nos dão a conhecer seu verdadeiro retrato,
colocado de novo na moldura própria. A presente obra só deve a
sua existência a estes trabalhos sobre os quais se apoia.

Divide-se em duas partes, ligeiramente discordantes. A primeira


consta de vários estudos de extensão diversa, sobre a
personalidade e a infância do Santo.

São tentativas de síntese, que o procuram colocar na Igreja Católica


entre os outros santos, seus êmulos, e dar à sua doutrina o lugar
que lhe compete na história do pensamento cristão. Poder-se-ia
intitulá-lo: O que devemos e o que não devemos procurar em
São Francisco de Sales.

A segunda parte é uma nova edição de um pequeno volume que


apareceu em 1920.

São Francisco de Sales, na Visitação, é um exemplo do espírito


salesiano. Mostra o Santo em atividade. Os princípios gerais da
primeira parte são ilustrados pela segunda.

Bruxelas, 29 de janeiro de 1928.

Doutor da Perfeição
Modesto pastor de uma pobre diocese, príncipe e bispo de Genebra,
que, devido à heresia dos seus súditos, de lá foi exilado e se
refugiou na cidadezinha de Annecy, à orla das montanhas, São
Francisco de Sales recebeu da Igreja o título mais glorioso que ela
concede aos seus santos. Pertence à falange dos Doutores.

São, ao todo, trinta e seis, cujos nomes relembram todas as glórias;


lutas e esplendores da história do cristianismo. São os Padres, os
ilustres teólogos da idade média, é o genial compilador da Moral, o
mais recente de todos, Afonso de Ligório. Qual o papel de São
Francisco de Sales nessa augusta galeria?

Sua obra não é vasta. Escreveu apenas dois livros de piedade para
ensinar às almas de boa vontade a viverem bem. Não nos
enganemos neste ponto. As edições atuais de suas Obras
completas compreendem muitos outros volumes. Mas
a Introdução à Vida Devota e o Tratado do Amor de Deus são as
únicas obras que foram propriamente dirigidas e publicadas por ele,
são seus únicos “livros”. Os mais, são todos escritos de ocasião,
obras de mocidade, como Controverses, ou cartas reunidas depois
da sua morte, ou sermões e conferências espirituais, que não foram
redigidas por ele, mas editadas de acordo com notas tomadas por
alguns dos seus ouvintes. A Introdução à Vida Devota e o Tratado
do Amor de Deus são as únicas obras terminadas por ele, são seus
títulos de Doutor.
Títulos bem insignificantes, comparados à sólida Summa de Santo
Tomás de Aquino, dos in-folio maciços dos Padres, da pilha de
volumes da Teologia Moral de Santo Afonso! E, entretanto, o fato é
que Francisco de Sales é Doutor da Igreja, e o é só por causa
destas duas obras.
Os Doutores da Igreja são os espíritos possantes que Deus suscitou
no decorrer dos séculos, para defenderem Sua doutrina, minada
pela heresia, libertarem a Verdade, obscurecida por sutilezas e
embustes, e reunirem, em sínteses fortes, a doutrina dogmática e
moral.
Nesse cortejo de gênios possantes, São Francisco de Sales faz
modesta figura. Só escreveu para nos mostrar o que deve ser um
bom e perfeito cristão. E foi por isso que a Igreja o proclamou
Doutor, pois tão bem o soube ele dizer que ela encontrou no método
espiritual do santo a expressão do seu próprio pensamento. Ocupa,
na gloriosa falange, um lugar seu, mais modesto do que o dos
outros, é verdade, mas um belo lugar. Entre os Doutores, só a ele e
a São João da Cruz coube esta honra suprema, unicamente por
causa da sua doutrina espiritual.

Outros têm escrito obras de piedade, simples acessórios no


conjunto de sua produção. São Francisco de Sales só escreveu isso
e, por causa disso, foi proclamado Doutor.

São João da Cruz é o doutor da mística, da união extraordinária


com Deus. São Francisco de Sales é o doutor da vida cristã
ordinária, da perfeição, que todos devem procurar.

A Igreja o designa, pois, com razão, como o Doutor da


Perfeição; que belo título! Convida-nos a segui-la, a colocar-nos
debaixo da sua direção, a adotar o seu método, a tornar-nos seus
discípulos.

Nada mais distante daquilo a que damos o nome de “método” do


que a direção de São Francisco de Sales. Será este o motivo pelo
qual a Igreja viu na sua doutrina a fórmula consumada do ascetismo
católico?

Tinha ele um gênio essencialmente prático e a investigação teórica


pouco o interessava. Seus primeiros livros (Tratado do Amor de
Deus), onde estuda a psicologia racional e a graça, não são mais
que uma exposição de vulgarização sem nenhum traço
poderosamente pessoal. E quando se lhe apresenta uma alma que
seu gênio se manifesta com mais intensidade. Que delicadeza,
então, que compreensão clara, que precisão em discernir todos os
movimentos que se cruzam, em descobrir o que ela própria
desconhece, que segurança em apontar-lhe o caminho!
E um dos mais admiráveis psicólogos que jamais existiu! Digo talvez
o mais admirável. Um espírito observador a quem move excepcional
generosidade grande e terna, que o impele a partilhar as penas e as
alegrias do próximo, tal foi o ponto de partida natural dos
esplendores do Espírito Santo, que lançou então sobre o Santo o
dom maravilhoso do discernimento dos espíritos. O todo se unificou
numa caridade que foi crescendo sem cessar durante todo o
percurso de sua carreira sacerdotal, até absorver, pouco a pouco,
todos os seus móveis de ação. Caridade que acabou por abrasar
aquele coração ardente por natureza numa chama de amor
inextinguível, que se revela em cada linha, ao espírito observador,
sob a unção e a ternura do estilo.

Esse gênio prático, essa ternura de coração levaram-no a


interessar-se pelas almas, sem preocupação de método nem de
sistema. Ele as viu nas suas realidades profundamente diversas.
Não pensou senão em mostrar-lhes o grande amor terno e
compassivo, com o qual o Mestre nos ama e, em conduzi-las a esse
amor, com toda simplicidade. Disse-lhes que contemplassem e
amassem a Deus, que considerassem quanto Ele é amável; disse-
lhes que a perfeição não consiste em trinta e seis práticas, mas
somente nesse amor e mostrou-lhes que, nesse grande amor,
cada um deve viver conforme a vocação a que Deus o
chama. Nada de novo disse sobre tudo isso, mas o que disse foi de
modo tão amável, tão afetuoso e tão prático, insistindo de tal
maneira sobre o que tem de atraente esse doce amor, que isto se
tornou, enfim, um método quase propriamente seu, o do amor.
Consiste em amar, em amar primeiro, em amar sobre tudo, em só
se ocupar de amar, fazendo atos de renúncia e de apostolado, como
consequência do amor, que, entretanto, deles depende, para se
elevar. Mas será isto método?

“Viva Jesus! Amemos muito ao doce Amante de nossas almas!”


Por felicidade — felicidade nossa — São Francisco de Sales dirigiu
várias senhoras e numerosas religiosas, em lugares diversos, o que
nos proporcionou, em sua Correspondência, a mais interessante
aplicação dos princípios que nos inculca na Introdução e no Tratado.
Suas cartas, entre outras as que dirigiu a Santa Joana de Chantal,
sua colaboradora na obra da fundação da Visitação, são o mais
acabado modelo, e um verdadeiro curso prático de direção de
almas, bem como suas encantadoras Conferências Espirituais
(Entretiens spirituels), séries de conselhos práticos, dados às
religiosas da Visitação. Assim tudo contribui, na sua obra, para
formar o monumento completo da prática da perfeição.
Cita-se, muitas vezes, a mansidão como virtude própria de São
Francisco de Sales. Se ele a possuiu, em grau elevado, não me
parece, entretanto, que baste para exprimir a índole de seu gênio,
de que é simples consequência. São Francisco de Sales é, antes de
tudo, um gênio ponderado, e a virtude da ponderação que,
harmonizando suas faculdades “como nunca se viu”, imprime a sua
santidade um caráter de radiosa harmonia, que a torna uma das
obras-primas mais acabadas do mundo moral. Os santos não são
todos igualmente harmoniosos; não são identicamente senhores de
suas paixões. Alguns conservam uma alma violenta, embora toda
orientada para a glória de Deus. Em São Francisco de Sales
nenhuma aspereza parece ofender o olhar; tudo nele é guiado pela
razão e, todavia, esta não lhe abafa em absoluto as efusões do
coração; pelo contrário, à medida que cresce em anos e que sua
alma se une mais estreitamente a Deus, tanto mais se dilata sua
ternura.

Para conhecê-lo perfeitamente, precisamos visitar sua cidade de


Annecy, situada nas fronteiras da Sabóia, às margens do lago,
circundado pelos primeiros contrafortes dos Alpes. A paisagem
suave e aprazível é uma imagem de sua alma. As montanhas se
elevam em direção ao céu, mas não nos esmagam com suas
massas enormes, como o Monte-Branco e o Monte-Rosa, um pouco
mais distantes. A luz do meio-dia reflete-se nas águas do lago, cujo
tom azulado os poetas decantaram; mas o sol, nessas ondas de luz,
não apresenta essa languidez que cativa e prende os olhos do outro
lado dos montes, nas ilhas Borroméias ou no lago de Como; e os
fluxos, às vezes, se encrespam em vagas curtas e impetuosas, que
fazem dançar os barcos. A cidade é clara, graciosa, sossegada,
muito frequentada durante a estação de verão; é ponto reunião das
famílias e a proteção do Santo parece ter afastado dela gente
suspeita. Toda Annecy transluz seu espírito de moderação.

E quem sobe, colina acima, até onde as religiosas do primeiro


convento da Visitação construíram, recentemente, nova morada,
encontra o Santo na Cripta da basílica em construção; encontra-o
repousando num relicário de vidro, ao lado do altar-mor, num quadro
que ele teria amado. A cripta, de abóbadas baixas, é de uma beleza
austera, com ornamentação sóbria. Não se veem nem ex-votos
acumulados, nem centenas de círios e de lâmpadas. Apenas
algumas velas ardem, o dia todo, diante do altar, e algumas pessoas
rezam em silêncio.

Quem ali se recolhe, fugindo das distrações provocadas pelos


turistas, sente uma presença que fala à alma, como na Gruta de
Lourdes, ou em Sena, na casa de Santa Catarina, em Assis, na
igrejinha de São Damião, ou em Roma, junto ao túmulo dos
Apóstolos. Há ali como que uma presença pacificadora, que
derrama sobre a alma um senso harmonioso da ponderação, o amor
confiante que dá paz e põe tudo em ordem.

“Ora, minhas filhas, coragem, e amemos, pois, a este doce Amante


de nossas almas”
Estes conselhos, que ele dava às suas filhas, que perto do seu
corpo continuam a velar atrás das grades e dos véus, ainda pairam
na atmosfera, e, ao descermos a colina, sentimo-nos “devotos”,
alegremente “devotos” dessa devoção na qual ele nos “introduz” e
que nos dilata a vida.
Papel Histórico de São Francisco de Sales

1. O Ambiente e o Homem
“Façamos tudo pelo amor e nada pela força”
Nenhum outro santo sente menos o esforço do que São Francisco
de Sales.

Nenhuma vida é mais humanamente harmoniosa.

Francisco de Sales pertence à pequena, mas boa nobreza. Seu pai


não é titular; caberá a um dos irmãos do Santo ser o primeiro barão
da família. Mas Francisco possui seus trinta e dois quartos de
sangue nobre, sendo aliado a quase toda a nobreza de Sabóia. Seu
pai é um velho guerreiro, casado aos quarenta anos, depois de uma
mocidade consagrada à vida militar. Bom cristão, um tanto rude, é
cavalheiro do campo, de sólidas tradições, que une à fé vigorosa os
preconceitos do mundo. Francisco, seu primogênito, faz honra ao
nome. O pai muito se preocupa de como há de estabelecê-lo,
propõe-lhe ricos partidos e irrita-se ao vê-lo recusar todos. Aflige-se,
também, a respeito da carreira que vai seguir, quer impeli-lo aos
cargos públicos e aborrece-se porque ele não os aceita. Quando,
finalmente, o jovem, já com vinte e cinco anos, se atreve a declarar-
lhe que deseja ser padre, desencadeia-se uma tempestade, aliás
curta. Os amigos, conhecendo o velho fidalgo, e prevendo o que ia
suceder, cuidaram, de antemão, de arranjar para o filho um emprego
honorífico, o de prepósito do Capítulo de Annecy. Entrar para a
carreira sacerdotal anuindo sem esforço a um posto que faz dele o
segundo personagem da diocese, lisonjeia a vaidade da família.

O velho fidalgo deixa-se convencer, mas há de morrer sem


compreender por que quis seu filho ser padre, de coração, e
sinceramente. Ele representa na vida do Santo o espírito do mundo
tal qual se alia, muitas vezes, às tradições cristãs.

Repreende a Francisco, quando este, pouco depois de ordenado,


começa a pregar em toda ocasião.

— Preposto, pregas demais… Tornas tuas práticas tão frequentes,


que perdes a estima geral.
Quando Francisco consente em aceitar o cargo de evangelizar
Chablais, uma região protestante recentemente anexada à Sabóia,
o pai protesta ainda, porque seu filho vai arriscar-se a perigos, vai
esgotar-se num ministério obscuro e, se fracassar, vai cair no
ridículo. Afasta-se de mau humor para não assistir à partida do
preposto, e proíbe que lhe seja dado qualquer auxílio para as
despesas de viagem.

Nada disto, porém, impede que o velho senhor, passado algum


tempo, tome ao filho para confessor.

A mãe de Francisco de Sales é a mãe cristã que figura em mais de


uma vida de santos; esposa exemplar, mãe dedicada, toda entregue
a Deus, aos deveres do lar, à família, aos pobres. Parece ter sempre
compreendido o filho e tê-lo sempre protegido. Entre Francisco e a
mãe reinou sempre a mais doce intimidade.

A vida familiar desenrola-se nos castelos da família, nos arredores


de Annecy. Uma vida simples, tranquila, honrada, de gente
abastada. A família goza da estima geral; a vida é farta, os haveres
bem administrados, tudo respira santidade.

Francisco de Sales pertence a uma dessas famílias extraordinárias,


em que a virtude, a honestidade e a retidão parecem congênitas. Os
cinco irmãos do Santo são todos homens honradíssimos; nunca se
deu um escândalo na família.

Lutos frequentes a entristeceram, é verdade. O casal perdeu cinco


filhos em tenra idade, e uma filha aos quatorze anos. Ficaram,
porém, outros sete que lhe honraram o nome. A fortuna não sofreu
reveses, a honradez foi sempre impecável. Esse lar feliz parece ter
sido preservado de qualquer mácula.

A Sabóia, onde se passa toda a sua existência, é também


privilegiada, formando como que uma pequena ilha de paz, num dos
tempos mais tormentosos da história.
As guerras religiosas ensanguentavam a França durante a infância
de Francisco. As margens do lago de Genebra, a poucas léguas de
Annecy, são teatro de frequentes conflitos entre a Sabóia, Genebra
e a França. Mas esse retumbar de batalhas parece deter-se à
entrada das montanhas. Lá a nobreza de Sabóia vive tranquila em
seus castelos. A não ser os fidalgos, que abraçam, por gosto, a
carreira das armas, ninguém pensa em guerra.

Francisco cresce nesse meio sadio, onde a vida é fácil, em suma,


embora austera, e ele cresce qual alma jovem, reta e generosa, em
que só sentimentos nobres têm acesso.

A graça e a natureza formam nele um conjunto tão harmonioso que


a ação divina dificilmente se distingue da virtude humana.

Os autores espirituais repetem, em geral, que Deus forma seus


santos pelo sofrimento, e que nenhum chega ao cimo da perfeição
sem ter passado pelo crisol de provações excepcionais. São
Francisco de Sales desmente a regra geral; sua vida é o exemplo de
uma carreira feliz e fácil, em que as sombras são raras.

Menino, é estudante aplicado, dado aos outros por modelo e que,


pela sua virtude cordial, se torna querido tanto dos colegas como
dos mestres. Jovem colhe os louros nas academias. Em Pádua,
passa um brilhante doutorado em direito. Sua recepção como
advogado, no Senado de Sabóia, é um triunfo. Sacerdote, é logo
nomeado para o segundo cargo da diocese, torna-se o filho querido
do Bispo, ao qual sucede aos trinta e cinco anos de idade. Fica,
pois, sendo a personagem mais importante do seu país natal,
adquire tal reputação de pregador e de diretor de consciência, que é
convidado para visitar toda a vizinhança, enquanto um pequeno
tratado de devoção, que escreve, quase sem pensar, faz dele um
autor célebre. Torna-se, assim, a glória da Sabóia.

“Ninguém é profeta na sua terra”


São Francisco, ainda uma vez, desmente o provérbio. É o ídolo de
sua família. É o confessor do pai e da mãe; os irmãos o têm em
conta de um oráculo, e durante toda a sua vida, não haverá a menor
desavença na sua família. Bispo, havendo renunciado aos bens do
mundo, engrandece o nome que traz e, em consideração a ele, seu
irmão Bernardo é agraciado com o título de barão de Thorens.

Para não fugir à regra de que um santo deve passar por grandes
provações, certos historiadores pintam, com cores negras, as
dificuldades que, como todo homem, encontrou na sua carreira.
Consideradas sem prevenção, cifram-se a muito pouca coisa: Uma
crise moral, aos dezoito anos, quando estudante, em Paris, crise de
angústia, diante do problema da predestinação. Durou um mês, e
gravou-se-lhe na lembrança como a maior provação da sua vida.
Não parece, depois disso, ter encontrado sombras no interior. Suas
relações com Deus mantêm-se sempre serenas.

Como sacerdote e bispo ele foi caluniado e acusado; diversas vezes


tentaram desacreditá-lo junto do duque de Sabóia; e até em Annecy
espalharam-se a seu respeito boatos vergonhosos. Intrigas de
aldeia! Nada há, em tudo isso, de muito extraordinário, nada que
possa prejudicar a carreira mais brilhante.

Conclui-se daí que a santidade de São Francisco de Sales e a sua


doutrina espiritual poucas dificuldades encontraram; e que a sua
santidade não impede que ele seja homem do mundo. Se há um
Santo, a quem deva custar compreender o ódio de Jesus pelo
mundo, é Francisco de Sales, que nele foi cercado de bons
exemplos.

Comparemo-lo aos santos, cuja conversão se opera de modo


violento. Que diferença! Converteu-se Santo Agostinho depois de ter
experimentado o pecado e vivido na desordem. Santo Inácio de
Loyola, depois de alguns anos de uma juventude pouco edificante. A
conversão desses dois santos é, pois, um retorno e supõe um
propósito firme em relação aos maus hábitos antigos. Donde,
inevitavelmente, alguma coisa de apaixonado, ou de
necessariamente excessivo. A alma desses santos não é uma terra
tratada, revolvida periodicamente, com cuidado. É um solo rude,
cheio de troncos, que devem ser arrancados, cavando-se ao redor;
e abrindo-se buracos profundos.

Quando São Luís Gonzaga troca uma família principesca pelo


convento, deixa uma corte, onde havia dissolução dos costumes.
São Francisco de Sales, durante a infância, só conheceu a vida
austera, pacífica, regular, essencialmente cristã do castelo de Sales,
situado no meio das montanhas. A nobreza da corte é-lhe estranha,
e desconhece qualquer espécie de intriga e de desordem. E o êxito
o acompanha, sem que o procure.

A reação contra o mundo é, pois, reduzida ao mínimo em São


Francisco de Sales. Essa diferença; se acentuará quando ele vier a
tratar com a sua colaboradora no que foi a grande obra de sua vida.
Senhora de Chantal também pertencia a uma família distinta. Seu
pai, senhor Frémyot, presidente do parlamento de Dijon, era homem
altamente conceituado e cristão exemplar. Sua mãe morreu
deixando-a com dezoito meses de idade; faltando, assim, à sua
educação a ternura maternal.

As guerras de religião tiveram forte repercussão na família. Frémyot,


partidário de Henrique III, foi obrigado a deixar Dijon, dominada
pelos liguistas, e seu palácio e seus bens foram confiscados.

Passou, então, durante anos, a viver retirado em Flavigny com os


membros do Parlamento que haviam aderido ao seu partido, tendo
previamente enviado sua filha para Poitou, a fim de pô-la ao abrigo
dos perigos.

Joana Frémyot, aos vinte anos, casou-se com o barão de Chantal,


jovem encantador, e gozou alguns anos de felicidade. A família de
Chantal era nobre, a família Frémyot, rica. A aliança foi tão acertada
quanto feliz; Mas, depois de oito anos de casados, o barão de
Chantal foi morto por acidente, numa caçada. Para a baronesa
acabava a felicidade.

Foi, então, residir durante grande parte do ano no castelo do sogro,


fidalgo de têmpera bem diversa da dos pais de São Francisco de
Sales. O velho barão de Chantal, depois de uma vida agitada,
retirara-se para o campo, com a fortuna abalada. Ali vivia irritado e
de mau humor, dominado por uma governante, a quem ninguém em
casa ousava resistir. A jovem baronesa teve também de suportar
esse jugo e de sujeitar-se a ver seus filhos tratados do mesmo modo
que os da serva. Vemos, pois, que a vida da Santa foi repassada de
dores e de humilhações, que a carreira luminosa de São Francisco
de Sales não parece ter conhecido.

Assim, embora Sta. Joana não tivesse como São Francisco,


conhecido o pecado; embora encontrasse no pai e no irmão, o
arcebispo de Bourges, nobres exemplos de retidão, concebe-se que
sua espiritualidade fosse mais violenta que a dele. A reação é nela
maior. Sua generosidade traduz-se facilmente em gestos
excessivos. São Francisco de Sales, apesar de impeli-la a um
sacrifício mais completo, mais radical de si mesma nas pequenas
coisas, deverá, no entanto, moderá-la muitas vezes.

No tempo de São Francisco de Sales, Annecy, sua cidade


episcopal, tinha três a quatro mil habitantes. Basta isto para mudar
completamente as perspectivas. Quando lemos que toda a cidade
foi pressurosa ouvir o primeiro sermão do Santo, lembremo-nos de
que “toda a cidade” constava apenas dessas três a quatro mil
pessoas…

As cerimônias, contam-nos, reuniam toda a nobreza da cidade; ou


toda ela acompanhava em cortejo ao nosso Santo. Mas lembremo-
nos que essa nobreza de uma cidade de três a quatro mil habitantes
devia compreender poucas famílias. Em nossos dias, as cidades de
trinta a quarenta mil almas são consideradas pequenas, e a
sociedade é restrita.
Para apreciarmos devidamente a atividade de São Francisco de
Sales, e determinarmos o que nele pode ser imitado por outros,
devemos levar em conta o meio em que vivia. Bispo, tinha um
confessionário na sua catedral. Depois de fundar a Visitação, ia
quase todos os dias ao convento, e aí se demorava longamente.
Vejamos bem em que consistia o cargo episcopal numa cidade de
três a quatro mil almas, numa época em que não havia estradas de
ferro, nem telefone, nem telégrafo. As comunicações com as regiões
distantes da diocese eram difíceis; o bispo podia, apenas, receber
visitas da cidade e dos arredores imediatos… Não podemos
comparar essa situação com a de um bispo de hoje, de algumas das
nossas grandes cidades…

Conta-se que, tendo sido a Visitação instalada fora da cidade, São


Francisco de Sales ia lá quase diariamente, a pé, “até com mau
tempo, chuva e neve…”. Mas verificamos, indo até lá, que a casa da
Visitação, fora da cidade, distava apenas quinhentos metros do
bispado, situado bem no centro da cidade!…
Quando se fala, pois, da atividade esfalfante do Santo é mister
discerni-la. É verdade que ele não se poupou; no entanto a
administração de uma diocese como a sua, permitia-lhe certa folga.
Hoje em dia, o bispo de uma das nossas regiões urbanas ou
industriais, que quisesse seguir seu exemplo, ouvir confissões na
catedral, e ir todos os dias a um convento de religiosas para as
dirigir minuciosamente, arriscar-se-ia a não o poder fazer, por causa
dos cuidados que estaria a exigir dele a sua diocese.

Pode-se aplicar a mesma discriminação em se tratando da direção


espiritual de que se encarregava São Francisco. Quem lhe estuda a
correspondência, percebe que o número de seus penitentes era
restrito. Explica-se isto facilmente. Sendo Annecy pequena, o
número de pessoas piedosas que nela recorriam à direção espiritual
não podia ser considerável. Os penitentes do bispo eram
principalmente senhoras que assistiam a suas pregações, mas
nunca foram muito numerosas. Não se pode compará-lo a certos
confessores de algumas grandes cidades que dirigem pessoalmente
cem ou cento e cinquenta pessoas…

São Francisco de Sales, aliás, percebia bem a realidade dos fatos.


Nunca pensou em gabar-se da sua atividade. Queixou-se, é
verdade, de esgotamento, de não poder trabalhar com vagar por
falta de tempo, de ser interrompido a cada instante, no meio dos
trabalhos mais diversos, o que acontece a todo homem apostólico.
Mas, quando se acha numa cidade importante, como Paris ou Lião,
está sempre a suspirar pela sua Cara “Lecy”, sua “aldeia”, seu
“ninho”. Queixa-se da vida superficial e fatigante da grande cidade,
onde passa o tempo a receber e a fazer visitas. Não perde ocasião
de se declarar um camponês, e de manifestar a atração que tem
pela sua aldeia, dizendo até que ponto só nela se sente bem.

Como era Santo, há quem queira ver nisso puros atos de


humildade. Creio que outro seria também o motivo e que, de fato,
habituado à vida pacífica de Annecy, penosamente se adaptava à
multidão e confusão das grandes cidades. Ora, estas correspondiam
às cidades de importância mediana de hoje, e não possuíam os
meios de comunicação que, em nossos dias, não nos deixam uma
hora sequer senhores de nós mesmos.

O meio social em que se desenrola a vida de São Francisco de


Sales completa assim o que havia preparado o seu meio familiar. A
vida em Annecy não é intensa como a dos grandes centros, nem
será preciso a mesma luta para conservar o recolhimento, nem, de
modo geral, para tudo mais.

***

O modo de agir de São Francisco de Sales depende muito da


formação que teve e do meio em que viveu. Se bem que a sua
doutrina seja uma continuação da tradição ascética da Igreja, —
este ponto será desenvolvido num capítulo posterior, — há, na sua
ação algo de agradável que revela o homem de boa sociedade e
deixa transparecer, ao mesmo tempo, o membro de uma família
cristã, em que o sobrenatural se expande de maneira tão
espontânea, que parece natural.

“Mesmo que ele não fosse um grande santo, dizia a presidente de


Lamoignon, seria ainda o homem mais cortês que eu conheço”
São Francisco de Sales, ao dirigir a fervorosa baronesa de Chantal,
a levará, mais do que o fizeram seus antigos diretores, a se
mortificar, mas, ao mesmo tempo, lhe ensinará a fazê-lo como
pessoa bem educada, sem dar na vista, e saberá ordenar seus
ímpetos exagerados de devoção. Do próprio Santo, contam-se fatos
que não sabemos dizer se pertencem à virtude sobrenatural, ou à
delicadeza natural do homem do mundo.

Assim, o cuidado com que interrompia suas austeridades, ao


receber um hóspede, era nele simples gesto de cortesia; ou o que
punha em conservar sempre o mesmo decoro em presença de
Deus. Conta seu amigo, Monsenhor Camus, bispo de Belley, que
tendo Francisco de Sales se hospedado em sua casa, ele o
espreitou no seu quarto pelos buracos que mandara abrir no
biombo, e verificou que o Santo conservava a sós a mesma atitude
modesta que lhe era habitual em público. O pensamento da
presença de Deus acompanhava-o por toda parte, razão pela qual
sua conduta era sempre igual e irrepreensível.

Muitos santos mostram-se na sociedade um tanto excêntricos, e,


seja por humildade, seja por desprezo das convenções do mundo,
cometem extravagâncias assombrosas. Sem falar dos Padres do
deserto, mencionemos São Francisco de Assis, São Filipe Neri, ou o
piedoso mendigo São Bento José Labre. Quanto a São Francisco de
Sales dir-se-ia que é muito homem do mundo para imitá-los. Em
toda a sua carreira, cita-se apenas um caso desses. É o sermão que
fez, na sua última estada em Paris, propositadamente enfadonho.
Tomando aí a palavra pela primeira vez, ficou tão confuso com a
afluência de gente que o viera ouvir, que não pôde deixar de
procurar humilhar-se pregando mal de propósito. Este fato é o único
em toda a sua vida, pois, em geral, não manifestava a sua modéstia
por impulsos do momento.

Homem educado e fino, onde vai, encanta, apesar do seu aspecto


reservado. Em sociedade falava pouco e ouvia atentamente, e a
benevolência com que o fazia agradava de certo mais aos seus
interlocutores do que longos discursos. Sua palavra não era viva,
mas antes lenta e ponderada. Tudo quanto dizia era oportuno e dito
com extrema delicadeza.

Com ele nunca poderia suceder o que se conta de Santo Tomás de


Aquino. Estando a jantar na corte do rei da França, enquanto a
conversação prosseguia animada, o Santo, absorvido na meditação,
exclamou de repente:

“Encontrei-o! Eis o argumento decisivo contra os Maniqueus”


Felizmente o rei era São Luís, que, longe de se formalizar com essa
extravagância do sábio, mandou vir escrivães para tomarem nota do
argumento.

O nosso Santo, pelo contrário, era muito atencioso e encantava pela


sua afabilidade.

Se, muitas vezes, manifesta aborrecimento pelo mundo, é antes


pelo enfado que lhe causa o fingimento e a leviandade da vida da
corte, ou das grandes cidades, do que pelo horror que lhe inspira a
corrupção reinante. Em ocasião própria saberá dizer a fidalgo,
chamado pela sua posição, que embora ali se torne difícil a
salvação, não se opõe, no entanto, à sua ida, porque acha que um
bom cristão deve ser bastante forte para enfrentar o assalto (1).

Ele tem mesmo para com pessoas altamente colocadas certas


indulgências, ou faculdade de ignorar, que o nosso puritanismo
burguês qualificaria facilmente de fraqueza. Um século de
democracia fez ressaltar a ideia de que a moral, sendo a mesma
para todos, os pecados dos grandes, por serem mais escandalosos,
merecem talvez menos que os outros que se lhes fechem os olhos.
Constrange-nos um pouco o elogio que São Francisco de Sales faz,
repetidas vezes, a Henrique IV, sem sequer manifestar pesar pelos
escândalos constantes e públicos da sua vida privada. Surpreende-
nos a cordialidade com que tratou, em 1618, ao passar por Paris, a
marquesa de Verneuil, antiga favorita de Henrique IV, a quem
Francisco outrora tivera ensejo de ver… triunfante perto de Vert-
Galant, no castelo de Annecy. Agora, jovem ainda reclamava para
seu filho, que o era também do rei, o chapéu cardinalício com tanta
violência que o Núncio dizia dela:

“É uma mulher diabólica”


Mas o bondoso Francisco, com quem, de bom grado, essa
celebérrima beleza conversava sobre obras pias, escrevia, com toda
ingenuidade, a baronesa de Chantal:

“…fui à casa da marquesa de Verneuil, a quem aprecio, porque é,


na minha opinião, muito franca” (2)
Os modos corteses da boa sociedade não lhe causavam o mínimo
embaraço. É simpaticamente indulgente para com a faceirice da
mocidade. Compreende que jovem queira enfeitar-se e admoesta
Santa Chantal porque não faz com que sua filha se vista bem. Na
instalação da ordem da Visitação, vai mais longe ainda e demonstra
que não quer que as pessoas se tornem feias por gosto. Para
resolver qual será o feitio do véu das Religiosas, faz-se uma prova
diante do Bispo. E ele próprio, para lhe dar a forma que julga
conveniente, pega na tesoura e arredonda as pontas… O mesmo
não se dá com São Bernardo.

Os penitentes de São Francisco de Sales são quase todos pessoas


do seu meio, da nobreza de província ou da alta burguesia de gente
togada. Não há, do seu lado, preferência alguma; ocupa-se
indiferentemente, com a mesma caridade, de uma ou de outra
mulher do povo, e trata com a mesma bondade obsequiosa os seus
empregados. Mas, pela natureza das coisas, parece que a sua
principal obra, a qual lhe dá glória, é a ação que exerce sobre as
senhoras da sociedade. A ordem religiosa que funda, a elas se
destina. São Pedro Fourier, pouco depois, fundará escolas de
aldeia, dirigidas pela sua Congregação de Irmãs educadoras; o
Bispo de Annecy poderia, pois, também ter pensado nisto. Sua
diocese carecia de escolas. São Vicente de Paulo agrupará moças
simples que se ocuparão dos pobrezinhos abandonados; o bispo de
Annecy também poderia ter pensado nisso. Em sua diocese não
faltavam desgraçados. Mas, ao invés, funda uma ordem que não
tem relação com o ministério episcopal, com o serviço diocesano.

***

Negava que fosse homem de iniciativa. Tudo que fez, fê-lo obrigado
pelas circunstâncias, que lhe designaram o caminho. Não há, nele,
a teimosia arrojada de um Santo Inácio, obstinando-se em ficar em
Jerusalém, onde julga que Deus o chama, apesar das
circunstâncias e das ordens expressas das autoridades que
finalmente o expulsam de lá. Não luta contra ventos e marés, como
alguns fundadores de ordens, uma Santa Teresa, por exemplo, ou
como certos apóstolos, um São João Crisóstomo, um São Bernardo,
uma Santa Catarina de Sena.

Segue o seu caminho “suavemente”, levado pela vida como por um


rio belo e calmo, vendo a vontade divina no desenrolar de todas as
circunstâncias. É uma flor desabrochada da vida sobrenatural da
família cristã e da sociedade culta. Um São Francisco de Sales não
podia deixar de sair de uma família como a sua, de uma província
pacífica. É o que constitui, talvez, o principal encanto da sua
santidade. Nenhum outro santo teve por base da perfeição
sobrenatural tão grande perfeição e equilíbrio naturais. Não há
violência alguma, em sua santidade, porque não parece estar a
reagir contra as más paixões; não é mais que o desabrochar de uma
alma admiravelmente reta ao bafejo da graça divina. Não lhe falta,
entretanto, a luta, sem a qual ninguém se santifica, mas não é a luta
corpo a corpo e violenta como em tantos santos, e que lhes arranca
gritos de angústia; é antes a calma pressão de uma alma
consciente, que tem pleno domínio sobre si mesma.
São Francisco de Sales, em virtude desses caracteres, é, mais que
qualquer outro, sensível às influências do seu tempo. É, no seu
século, um santo “moderno”, aproveitando-se, para a glória divina,
de tudo que sua época oferecia de útil. Nos capítulos seguintes
veremos até que ponto foi intelectualmente do seu tempo.
Humanista, fundou em Annecy uma sociedade literária e procurou
dar aos seus livros um estilo artisticamente atraente. Não se
desculpa por isso: pelo contrário. A “santa estupidez” parece-lhe um
contrassenso.

Em compensação, não tendo reações, tão pouco tem preocupações


estranhas ao seu século. Em São Vicente de Paulo, que não é
homem do mundo, que se fez por si mesmo, que aborda tarde a
sociedade com o olhar clarividente daquele que a ela não pertence,
há uma intuição genial das reformas que só dois séculos mais tarde
serão tentadas sistematicamente. Nada disso em São Francisco de
Sales. Ele exerce tranquilamente o ministério que se lhe apresenta;
suas ideias inspiram-se no meio em que vive. Revela-se gênio, é
principalmente pelo equilíbrio e a perfeição das virtudes ordinárias
que nele se tornam extraordinárias pelo conjunto que revestem e,
depois, é pelo dom do discernimento dos espíritos, que faz dele o
mestre da direção de consciência, o Doutor da perfeição, e que é
também, antes de tudo mais critério e equilíbrio.

2. Tendência Psicológica
Um dos fatos mais notáveis da história moderna é a orientação
psicológica do pensamento ocidental depois da Renascença.
Antigamente o homem contemplava o mundo; mas há uns
quatrocentos anos que se contempla principalmente a si mesmo.
Muitos filósofos só tratam da psicologia, e até aqueles que
conservam bastante vigor de espírito para formar um sistema
metafísico, como Descartes e Kant, baseiam-se geralmente em
dados psicológicos. Com Kant e os sensualistas do século XVIII, o
mundo exterior desaparece, de certo modo, do campo do
pensamento, que se torna irredutível, ao mundo da experiência
chamada científica.

Os teólogos participam dessa evolução do pensamento, porque são


homens, e homens do seu tempo. A mesma orientação encontra-se,
pois, na teologia, cujo esforço mais considerável, depois do século
XVI, se concentra na moral, ou mais exatamente na moral prática,
casuística, ascética e mística, isto é, na aplicação das noções da
psicologia aos princípios da ação humana. Em matéria dogmática a
origem do molinismo pode ser considerada como um efeito da
mesma corrente de ideias.
Entre os dois termos do cristianismo, a alma e Deus, a atenção
prende-se, de preferência, à alma. E convém dar, aqui, algumas
explicações, a fim de não sermos acusados de cega parvoíce.

O problema da vida cristã é unir a alma a Deus, abismá-la Nele,


pelo desenvolvimento da vida da graça, pela perfeita conformidade
com a sua vontade. A alma, entretanto, permanece distinta de Deus,
e os dois termos subsistem: alma e Deus.

Entre os bons cristãos, alguns tendem espontaneamente para Deus.


No que diz respeito ao progresso de sua vida interior, a natureza ou
a graça, ou a natureza e a graça, os impelirão de preferencia ao
isolamento, a fim de viver mais facilmente na presença de Deus, de
contemplá-lo, louvá-lo. Estariam até dispostos a passar toda a vida
repetindo, como São Francisco de Assis, em êxtase: “Meu Deus e
meu tudo’’, sem fazer outra coisa. Eu chamaria isto, de bom grado, o
“gosto de Deus”. Há almas que sentem esse gosto de Deus.
Ponhamos que sejam as almas contemplativas.
A par dos que têm o gosto de Deus, há os que têm o “gosto das
almas”. O gosto das almas leva-os a dedicar-se a elas e de nelas
encontrar a ação divina. Há o gosto de penetrar na própria alma, e o
de penetrar na alma de outrem. Isto, na realidade, é ainda “o gosto
de Deus”, mas de Deus nas almas, é uma tendência para considerar
a Deus não somente tal qual se revela em si mesmo e na natureza,
mas ainda como nós o percebemos nas almas em que coabita pela
sua graça. É uma modalidade especial do gosto de Deus, a
modalidade psicológica, e funda-se numa tendência toda natural
para a observação psicológica.

O “gosto de Deus” e o “gosto das almas” são ambos, portanto, em


certo sentido, “gosto de Deus”; ambos adaptam-se tão
perfeitamente à vida ativa como à contemplativa. Mas o “gosto de
Deus” conduz a um apostolado mais doutrinal, mais dogmático,
porque nos impele a falar às almas de Deus, enquanto que o gosto
das almas produz de preferência um apostolado de direção, de
moral prática, que nos leva ainda a falar às almas de Deus, mas
enquanto nelas habita e elas o devem deixar agir.

Na piedade, o “gosto de Deus” acentuará o aspecto de louvor e de


adoração do culto; o “gosto das almas” acentuará seu lado benéfico,
isto é, aquele que dedica ao proveito que as almas tiram da
piedade. Diante de uma prática de piedade, quem tem o “gosto de
Deus” se perguntará se, por esta prática, Deus é dignamente
louvado, o que tem o “gosto das almas”, se a alma tira dela algum
proveito.

Para concretizar esta noção, quisera citar exemplos, embora seja


isto um tanto perigoso, porque nunca se encontram estas duas
tendências inteiramente puras no mesmo indivíduo. Um cristão, para
oferecer-se à perfeição, terá que analisar de certo modo a sua alma
e ser um tanto propenso à contemplação. Embora uma inclinação
não exclua a outra, uma talvez domine a outra. Assim podemos
afirmar, sem medo de errar, que São Bento, ou São Bruno, ao se
retirarem para o deserto, manifestaram o “gosto de Deus” e não o
“gosto das almas”.

Isso não os impede, porém, de analisarem a sua alma e de se


revelarem grandes psicólogos, se tiverem que redigir uma regra;
mas dir-se-ia que eles se ocupam casualmente das almas, levados
pelas circunstâncias e não por gosto nem predileção. Alguns, como
São Francisco de Assis, serão admiráveis fachos de entusiasmos,
mas nunca chegarão a redigir, sozinhos, uma regra aplicável aos
homens.

***

Sondemos, agora, as obras de São Francisco de Sales, de modo


particular, os seus escritos mais espontâneos, cartas, sermões ou
conferências. É o psicólogo que aparece, o amador de almas, o
analista. Possui o “gosto das almas” no grau mais elevado; sente-se
feliz quando delas se ocupa, gosta de estudar-lhes os movimentos,
e discute de bom grado as particularidades de cada qual.

Nem por isso deixa de ter o “gosto de Deus”, e de conhecer as


doçuras da vida interior; sua alma afetiva comove-se facilmente ao
menor pensamento do sobrenatural; mas não se emociona muito,
diante dos grandes problemas metafísicos e dogmáticos.

Como obra doutrinal, temos apenas dois trabalhos apologéticos de


sua juventude e o exórdio do Tratado do Amor de Deus. Essa
introdução do Tratado é um bom trabalho de divulgação de
princípios filosóficos e teológicos, um ótimo trabalho, porque São
Francisco de Sales se esmera em se fazer compreender e emprega,
para os temas mais abstratos, imagens tão graciosas, que
acabamos por as idear. Mas penso que o autor nunca deu um passo
em favor da ciência teológica; basta-lhe o papel de vulgarizador.
O mesmo não se dá quando trata da parte da psicologia aplicada. O
escritor consciencioso revela-se então, de improviso, homem de
gênio. Está em casa, e sabe investigar e aprofundar com mais
segurança que seus antecessores, e vai mais longe do que eles.

Mas, em relação à pura doutrina, será de uma indiferença quase


desconcertante.

O exemplo apontado em geral a este respeito parece, todavia, prova


fraca: é sua recusa de intervir na questão entre tomistas e
molinistas. Solicitado a tomar partido, declarou que não
compreendia como os católicos podiam perder tempo em discutir
futilidades, quando havia tantos hereges a converter. Há quem diga
que foi ele quem aconselhou a Paulo V que mandasse calar os
molinistas e os tomistas, sem resolver a questão (3). Este exemplo
nada prova, porque a atitude de São Francisco de Sales foi,
finalmente, a da Igreja, e esta não pode ser acusada de se
desinteressar das questões dogmáticas. Parece-me que o exemplo
conclusivo foi a sua atitude perante o protestantismo.

São Francisco de Sales era bispo de uma diocese dividida ao meio


pela heresia. Em Genebra, fora expulso de sua sede episcopal
pelos calvinistas vencedores. Chamar esses hereges de novo ao
seio da Igreja era necessariamente uma de suas maiores
preocupações. Manifestava também muitas vezes seu pesar pelo
estado em que se achava a sua diocese.

Além disso, seu primeiro ministério sacerdotal havia sido a


evangelização de Chablais, um território protestante que voltara à
Sabóia em 1593, e onde ele trabalhara durante dois anos, com êxito
maravilhoso.

Assim sendo, e baseados nestas premissas, se perguntarmos qual


terá sido sua obra episcopal, devemos supor que foi uma obra
consagrada, em primeiro lugar, à conversão dos hereges.

Estando Genebra fechada à pregação católica, seu bispo vai


procurar penetrar por meio de seus escritos, como fez em Chablais,
inundando-a de folhas esparsas, que, coligidas, formaram mais
tarde o livro das Controvérsias.
Contemporâneo de Belarmino, cujas compactas Controvérsias são a
cidadela intelectual do catolicismo naquele século, São Francisco de
Sales tomará certamente a peito associar sua pena à do ilustre
jesuíta. Tendo gosto e talento para escrever, consagrará esses dons
a defender a fé contra os ataques da heresia.
Mas, praticamente, que fez ele? Nada. Creio mesmo que nunca
refletiu seriamente sobre isto. Pregou quaresmas e adventos em
todas as cidades do Sudeste da França, dirigiu religiosas e
senhoras piedosas; trabalhou muito para avivar a devoção dos
católicos e aperfeiçoar a dos bons católicos.

Ao apostolado doutrinal, que fica no domínio das ideias, que não


age diretamente sobre a alma, sobre a vontade, que não
compreende a direção das almas, e não corresponde ao “gosto das
almas”, ele fica completamente alheio.

Na mocidade, escreveu uns dois volumes de apologética, mas fê-lo


durante uma missão de apostolado, prático e direto, com intuito de
atingir a pequena população de Chablais; e o fato de não ter
continuado essa atividade missionária, apesar das circunstâncias
próprias a desenvolvê-la, é um dos traços negativos mais evidentes
da sua fisionomia.

Pelo seu “gosto das almas”, seu “gosto” dominante das almas, pelo
contato com as almas, seus dons de analista e seu amor da análise,
São Francisco de Sales é genuinamente representativo da
tendência psicológica que domina o pensamento ocidental depois
da Renascença. É bem da sua época, e creio que a fim de melhor
compreendê-lo, é necessário considerá-lo nesse quadro.

***

A tendência psicológica prende-se a grande controvérsia teológica


que, no tempo de São Francisco de Sales, dividia a Igreja em dois
campos. A controvérsia do tomismo e do molinismo.

Ainda não se sabe, ao certo, se o bispo de Genebra era tomista ou


molinista.

É molinista, afirma Vincent; tomista, replica o padre Chenu (4). É


mais provável que não fosse nem uma coisa nem outra. Esta
opinião, pelo menos, tem a vantagem de concordar com a vontade
expressa do próprio Santo.
Admitamos, porém, que ele não fosse molinista, mas talvez
molinizante… Que não fosse molinista, está de acordo com o seu
espírito pouco dado a controvérsias teóricas, e com a resposta que
deu em outra ocasião, quando quiseram induzi-lo a entrar em
discussões.

Não sendo nem molinista nem tomista, não compreende como


outros possam apaixonar-se por semelhantes questões.

Mas sua carta a Lessius (5), e na sua doutrina do Tratado do Amor


de Deus, o Santo declara-se a favor da predestinação, “em
consequência da previsão das obras”.
É verdade, mas também há muitas outras coisas no molinismo, e,
como diz Chenu, encontram-se artigos da Summa em muitas
páginas do Tratado. A síntese filosófica, a concepção do universo
em São Francisco de Sales é toda escolástica.
“Se, por hipótese, do seu Tratado do Amor de Deus fosse suprimido
o fundo de ideais que tem em comum com Santo Tomás, este se
desmembraria pelas ideais-mães, pela própria estrutura.
Se, por hipótese contrária, fossem suprimidas destas páginas as
noções formalmente molinistas, não haveria quase nada a mudar”
(6)…
São Francisco de Sales é, pois, tomista!…

Compreendamos e distingamos, porque tomista é um termo


equívoco. Há o tomismo de Santo Tomás e o tomismo de Báñez;
muitos pretendem que não seja a mesma coisa. Báñez julga-se
intérprete autêntico do pensamento tomista; mas outros teólogos,
Belarmino, por exemplo, consideram-se igualmente tomistas,
afastando-se de Báñez. Que São Francisco de Sales seja tomista
no sentido da concepção geral do homem e do universo, ou que
seja banesiano quando se trata da natureza da graça eficaz ou
suficiente da premoção ou da predestinação, são duas questões
diferentes!
Querer, pois, alistar São Francisco de Sales nas fileiras, quer do
tomismo, quer do molinismo, parece falso e ingênuo. Tomando,
entretanto, em consideração o lugar que ocupa o molinismo no
movimento geral das ideias, pode-se lhe atribuir simpatias
molinizantes. E o interesse desta questão que, à primeira vista,
pode parecer ocioso, é de marcar novamente as tendências do
século e nelas situar São Francisco de Sales.

O molinismo, com efeito, é uma aplicação à dogmática da


orientação psicológica das almas. E é por isso que se torna
impossível o seu acordo com o tomismo.

O tomismo é a solução do problema da graça, conforme o


descobriram os metafísicos. O metafísico é essencialmente um
realista na plena significação da palavra. Prende-se à realidade, ao
que é, ao ser; e, por conseguinte, entre os seres, prender-se-á, ele,
à primeira, à maior das realidades, ao primeiro, ao maior dos seres.
Coloca Deus no centro da filosofia, o que corresponde ao lugar que
Deus ocupa em verdade no universo.

Encarando a questão das relações entre Deus e o homem, e a


aparente contradição que existe entre o domínio supremo e
necessário de Deus sobre todas as criaturas, e a liberdade do
homem, o metafísico tratará, primeiro, de salvaguardar os direitos
de Deus, e baseará seu sistema sobre o fato desse domínio
universal. Se encontrar dificuldade na explicação da liberdade
humana, resignar-se-á, como um mal menor, e recorrerá, para
defender essa liberdade, a fórmulas tão sutis, que será preciso ser
tomista a todo custo, para não achar que estão em desacordo com a
noção vulgar da liberdade.

A atitude do psicólogo será inteiramente outra. Habituado a ocupar-


se do homem, tendo gosto pelo estudo das almas, prefere partir do
homem, que julga conhece. Não que negue a suprema prepotência
de Deus sobre o universo, mas o fato da liberdade humana cativa
sua atenção, e causa-lhe estranheza toda tese que parece negá-la.
Se for preciso desprezar, como inexplicável, um destes dois termos
do problema, abandonará de preferência o da soberania divina, e,
inclinando-se, com um ato de fé, ficará quite.

Creio que foi esta tendência que deu origem ao molinismo. E, por
isto, tornou-se uma criação do seu século, um produto puramente
da Renascença. Convém, pois, a fim de melhor o compreender,
conhecer a data em que apareceu.

O tomismo, raciocinando sobre a realidade, terá necessariamente


uma estrutura lógica invencível. O molinismo, raciocinando sobre a
experiência, e baseando sua certeza numa experiência renovada
sem cessar pela análise psicológica, não resistirá a uma
comparação lógica e o molinista será forçosamente vencido na
discussão. Há de conquistar, todavia, a simpatia da maior parte dos
espíritos imbuídos da mentalidade moderna, porque é conforme ao
conhecimento que temos da alma.

Digamos a verdade: O tomismo é mais lógico; o molinismo, mais


prático. Quem fica absorvido pelo lado prático, simpatizará com o
molinismo e precisará de uma sólida formação metafísica para se
deixar levar pela superioridade lógica do tomismo.

São Francisco de Sales é, antes de tudo, psicólogo; vive nas almas,


e analisa-as; é também essencialmente benevolente e animador;
toda doutrina severa, como a da predestinação ante praevisa merita,
deve desagradar-lhe. Por todos estes motivos sua doutrina parece
revestir de preferência um som molinizante, se bem que não o
possamos chamar molinista, pois sua filosofia é tomista, e ele se
recusa a tratar da maior parte dos pontos dogmáticos concisos
sobre os quais versa a polêmica.

3. Tendência Prática
Encontramo-nos ainda aqui perante duas categorias de homens:
espíritos doutrinais e espíritos práticos.

Uns têm o sentido da abstração e dão toda importância aos


princípios, vendo sobretudo a isto. Apegam-se às questões de
doutrina, cogitando menos da sua ação imediata na vida prática dos
contemporâneos. Contentam-se em procurar a verdade, e, quando
pensam na vida prática, alegam que o ato segue o pensamento.

Outros, pelo contrário, vivendo mais no mundo dos sentidos, sentem


necessidade de saber qual o resultado imediato dos atos, e o seu
efeito sensível na ordem da ação. Não lhes basta atuar sobre o
pensamento dos contemporâneos se este pensamento não se
manifestar em ato; ainda menos se contentarão em procurar a
verdade sem saber se a sua doutrina será compreendida ou aceita.

Esta dupla tendência manifesta-se no movimento psicológico de que


já falamos. Uma, em alguns, produz o estudo teórico da psicologia,
a análise aguda, agudíssima, e até a análise árida, que oferecem
numerosos exemplos todos os autores de Pensamentos e Notas
íntimas dos últimos séculos. A outra, pelo contrário, atua sobre as
almas, deseja o seu bem, procura tudo quanto possa beneficiá-las,
buscando, às vezes, até com certa mesquinheza, aquilo que lhes
possa outorgar um bem imediato.

Essa dupla tendência revela-se no apostolado. Há apóstolos da


doutrina e apóstolos da prática; há o evangelho de São João e o
evangelho de São Mateus; o discurso depois da Ceia e o Sermão da
montanha; há pregadores que desenvolvem a fé, e os há que
corrigem os costumes; há os propagandistas que espalham teorias,
e os que organizam obras. Não digo, mais uma vez, que um seja o
oposto do outro, pelo menos na Igreja católica; doutrina e moral
unem-se, mas permanecem sempre distintas, e cada espírito,
segundo seus gostos, inclina-se, de preferência, para um ou outro.
São Francisco de Sales é apóstolo, apóstolo prático, apóstolo perito
das almas. Administrador consciencioso da sua pequena diocese,
conserva certa preferência pelo confessionário, pela pregação e a
direção espiritual. O bem das almas, a glória de Deus pelo bem das
almas parece um bom resumo de sua atividade. Deus qui ad
animarum salutem beatum Franciscum confessorum tuum atque
Pontificem, omnibus omnia factum esse voluisti, diz a Igreja dele, na
oração de sua Missa. E isto esclarece de modo mais preciso a
indiferença doutrinal que assinalamos acima. As raras partes
dogmáticas que se encontram em suas obras são escritas no
decorrer de uma missão, com um fim de ação imediata, seja para
auxiliá-la, seja para introduzir a obra de análise psicológica no
manual da perfeição que é o Tratado do Amor de Deus. Atirou-se de
todo o coração à evangelização de Chablais, donde esperava um
resultado positivo e imediato. Teve grande desejo de, futuramente,
penetrar em Genebra, e ali dedicar-se a polêmicas públicas, isto é, a
ação de penetração imediata. Ele não escreveu obra de
controvérsia doutrinal, arma de longo alcance, cujo efeito não
aparece logo.
Bem sei que isso pode dar lugar a numerosas objeções. São
Francisco de Sales, dir-me-ão, tinha desejo ardente de escrever
contra os protestantes, mas era bispo e seu ministério pastoral o
absorvia. Ele próprio, mais de uma vez, queixou-se disto.

Teve tempo, todavia, de escrever inúmeras cartas, algumas bem


longas, de direção espiritual, como também a Introdução à Vida
Devota e o Tratado de Amor a Deus.
Foram as circunstâncias, alegar-se-á, que o levaram a isso. Possuía
um espírito de submissão profunda à divina Providência, e sujeitava-
se a tudo quanto lhe vinha dela, sem vontade própria.

É verdade, mas não serão as circunstâncias, até certo ponto,


suscitadas pelo nosso caráter, ou mais exatamente, não será o
nosso caráter uma das principais circunstâncias da nossa vida?
Creio um pouco, mas um pouco somente, nessa força das
circunstâncias. Creio muito, ao contrário, no provérbio: Chassez le
naturel, il revient au galop. Tomemos, ao acaso, dez padres,
coloquemo-los na mesma cátedra episcopal; um será administrador,
outro estará sempre a percorrer a diocese, a fim de estimular o zelo
do clero e do povo; um terceiro dedicar-se-á à teologia; um quarto
será diretor de religiosas. Nada mais mutável que as circunstâncias;
nada mais variável que os temperamentos! E cada qual, segundo
seu caráter, escolhe, entre as circunstâncias, as que mais lhe
convêm. Há padres em quem logo pensamos quando nos vem
algum escrúpulo de consciência, e a quem não havíamos de
consultar nas dúvidas contra a fé; um nos ajudará a organizar uma
obra, outro nos dará uma boa solução doutrinal; a outro nos
dirigiremos visando se ratar de angariar dinheiro. Será isso devido à
diferença que existe na formação que tiveram? Ou no meio em que
vivem? Nem sempre. Alguns, vivendo num mesmo meio, ocupando
as mesmas posições, têm tendências inteiramente diversas. Tal
vigário passa o dia no confessionário; tal outro, procura
principalmente atrair os fiéis à Igreja por meio do esplendor litúrgico;
um terceiro dedica-se às obras paroquiais. Isso dá-se igualmente
em todas as carreiras, e com todos os homens; há divergências
análogas no modo de gerir um ministério, um negócio, um escritório
de advogado ou uma usina.
São Francisco de Sales, devido às circunstâncias, e, de modo
particular, às do seu caráter, foi um homem de ação “prática”, de
ação de resultado imediato.

Chamo esta ação, ação prática propriamente dita, para evitar o


equívoco, no qual caem muitas vezes precisamente os espíritos que
se chamam “espíritos práticos”. Este equívoco consiste em
comparar a prática com a eficácia. Se tomarmos a prática no sentido
de eficácia, é claro que os espíritos mais práticos o serão menos no
sentido próprio da palavra, pois as ideias exercem uma influência
muito mais profunda e extensa que a dos atos. Platão, Aristóteles,
Santo Tomás, Descartes ou Kant, são homens muito mais “práticos”
do que Alexandre Magno, Júlio César, Carlos Magno, ou Napoleão.
Não é mais, porém, aquele o sentido da palavra “prática” quando em
oposição com a “teórica”. No sentido comum a palavra “prática”
significa, pouco mais ou menos, “visar um resultado positivo ou
imediatamente perceptível”. Neste sentido, o filósofo não é um
homem prático, ao passo que o cozinheiro o é.

Então nada menos prático que um doutor, isto é, um homem que


ensina a doutrina. E nenhum doutor da Igreja o será menos que São
Francisco de Sales, doutor um tanto paradoxal. Se sua doutrina
adquire valor teórico, é à força de perfeição prática, de equilíbrio, de
bom senso variado, que supõe certa aplicação geral, até nos
conselhos mais íntimos.

Este espírito prático impele-o, pois, a procurar o bem das almas, e a


glória de Deus pelo bem das mesmas, mais pela sua santidade
interior do que pelo conhecimento da verdade. Atua vivamente
sobre a vontade e a sensibilidade, e menos sobre a inteligência.
Isso explica, talvez, o motivo pelo qual obteve tanto êxito entre as
mulheres, e relativamente pouco entre os homens. A desproporção
entre seus correspondentes e seus penitentes, homens e mulheres,
é demasiado forte, e não me parece valer a desculpa que atribui
isso ao fato das mulheres serem mais ávidas que os homens desse
gênero de consultas. Se os homens têm menos necessidade de
direção minuciosa para suas almas, eles se entregam de boa
vontade às formas de influências mais gerais, mais morais, mais
doutrinais, não menos profundas.

A mulher recorre à direção para cada um dos seus atos; o homem


discutirá apenas a orientação geral a dar à sua vida, e pedirá, de
bom grado, esclarecimentos sobre pontos de doutrina. É outro
gênero de direção, mas nem por isso inferior àquela. Quem lê a
correspondência de Santo Agostinho, nela encontrará muitas cartas
dirigidas a homens, sobre centenas de questões de toda espécie. E
quando lemos a correspondência de uma Santa Catarina de Sena,
ou de uma Santa Teresa, parece-nos que elas atuam mais sobre os
homens que São Francisco de Sales!
Basta, além disso, ler os sermões de São Francisco de Sales para
ter a impressão de que ele procura quase exclusivamente edificar
de preferência a instruir, como acontece também nos sermões que
pregou a auditórios leigos.

Basta também correr a lista dos livros que ele aconselha


a Filotéia na sua Introdução. Filotéia alimentará a devoção com
leituras de caráter prático, e o santo autor nunca se lembra de
recordar-lhe que se instrua na fé, que se aprofunde nos
fundamentos teológicos da sua vida sobrenatural.
***

Naquele tempo ninguém pensava nisso e o simples fato de o


notarmos, nós, indica uma nova preocupação de nossa parte. Há
alguns anos, vem aparecendo uma quantidade de livros que não
são somente livros de piedade, destinados a comover-nos o coração
e a indicar-nos os meios de desenvolvermos a vida sobrenatural,
mas cujo fim é divulgar as noções teológicas relativas a vida, e por
este meio difundir toda a teologia.

É, em suma, coisa inteiramente nova. E para demonstrá-la,


devemos examinar mais de perto este espírito prático com
tendência psicológica, este “moralismo”, do qual São Francisco de
Sales é um dos mais eminentes representantes.

Há um enigma neste moralismo, enigma inquietador, porque nos


perguntamos a nós mesmos se não lhe devemos, em parte, atribuir
o enfraquecimento do catolicismo nestes últimos séculos.

A partir da Renascença, começa um possante movimento


intelectual, que afasta os espíritos da fé católica e tende a paganizar
a cristandade. Este movimento é um plano que visa, não tolher
práticas cristãs, nem tão pouco combater a fé diretamente, mas
destruir profundamente, no espírito, os princípios da fé. Nunca a
Igreja se viu ameaçada de perigo tão iminente, tanto mais temível
quanto mais pérfido. Os espíritos pervertem-se lentamente e,
debaixo dessa perversão do espírito, os atos da vida privada, as
instituições sociais ainda se conservam cristãs por muito tempo.
Mas como é o espírito que domina, cedo ou tarde a perversão geral
há de seguir a do espírito. Então, é árvore morta que cai de repente,
é a casa edificada sobre terreno minado que desmorona
bruscamente, e nada mais resta a fazer senão ver ruir o esqueleto
corroído.

A água mana da fonte, e a fonte que fecunda a vida humana é o


espírito. Secando a fonte, é inútil querer canalizar o leito do rio, ou
fazer trabalhos de irrigação, diques e pontes, pois a própria
perfeição desses trabalhos só serve para aumentar a penúria da
corrente d’água, já quase estancada.

Os nossos autores clássicos só falam em Apolo, nas Musas, em


Júpiter e no Olimpo. Julgar-se-iam diminuídos se fossem cantar uma
ode com o nome de Jesus ou da Santíssima Virgem.
O Partenon parece-lhes uma maravilha e gostariam de ver
desaparecer a Notre Dame de Paris; não se cansam de admirar os
filósofos gregos, mas a síntese escolástica da filosofia cristã parece-
lhes o produto de um século de trevas. Além disso, a Idade Média
torna-se sinônimo de barbaria, e não perdem ocasião de rebaixar o
poder pontifício. A vida privada, no entanto, conserva-se cristã; o rei
assiste à Santa Missa todas as manhãs, a fé permanece viva, e no
século XVII um incrédulo é o que se chama um libertino saturado de
depravação. É preciso estudar a vida íntima das famílias burguesas
da época, para fazer ideia do quanto se conservam nelas
inabaláveis as tradições cristãs.
Isto, porém, não impede que a fé se corrompa e se desvie da vida
geral do espírito. Dia virá, se não houver reação, em que, estando o
espírito paganizado, a fé decairá. O cristianismo não é um Credo de
artigos estritamente limitados, que se possam manter mudando-lhes
as tendências intelectuais e a concepção do universo; é uma
doutrina cósmica, que projeta uma luz particular sobre o universo
inteiro e orienta toda a vida do homem. O meio de atacar o
cristianismo sem pronunciar o nome de Cristo, sem se ocupar da
Igreja, nem da revelação, serve-se, para isto, da astronomia, da
matemática, da botânica ou da geografia, da história, da política, da
filosofia.

Depois da demonstração admirável que o século XIX apresentou


sobre isto, parece incrível que ainda hoje haja espíritos que se
recusem a acreditá-lo.

A partir da Renascença, inicia-se em torno da Igreja, e contra a


Igreja, um imenso movimento concêntrico, que deixa, por assim
dizer, o cristianismo no seu lugar, mas arranca-lhe tudo quanto
considera independente dos princípios religiosos. A filosofia, as
ciências, os estados, os salões, as artes e a literatura laicizam-se,
isto é, ficam estranhos ao cristianismo, separados do império de
Cristo, e a Sua Igreja fica isolada no mundo. Depois, no dia em que
terminar o movimento envolvente, lançar-se-ão, de todo lado, como
que de assalto, as forças naturalistas, para que a barca de Pedro,
submergindo nas trombas que se lançam contra ela, vá a pique.

***

Voltemos ao século XVII e ao moralismo.

Contra o perigo dissimulado, mas terrível, que ameaça as próprias


fontes da vida da Igreja, que fez São Francisco de Sales? Nem
sequer cogitou disso. Que fizeram os casuístas? Nada
absolutamente. Que fizeram os inúmeros autores da ascética e da
mística? Nada, tão pouco. Ocuparam-se das almas cristãs,
resolveram casos concretos, deram direções práticas, agiram sobre
os corações, orientaram as vontades. Pouco ou nada influíram
sobre os espíritos, quase não pensaram na necessidade dessa
atuação, e ainda menos que fosse algo de urgente. Pertencem ao
seu século. Deixam-se arrastar pela corrente psicológica que será
uma das principais causas da dissolução do pensamento Cristão, e
limitam-se a tirar dessa corrente só o que há de bom para a prática
das almas devotas e dos confessores. Os teólogos dos últimos
séculos que a Igreja proclamou doutores são: São João da Cruz, o
doutor da vida mística, e São Pedro Canísio, o doutor da
apologética de orientação imediata no século XVI; São Francisco de
Sales, o doutor da perfeição individual do século XVII; Santo Afonso
de Ligório, o doutor da casuística, no século XVIII. Nas ciências que
cultivaram, atingiram verdadeira culminância; mas nem eles, nem
nenhum outro tratou daquilo que era da maior necessidade do
século. Quanto aos doutores da metafísica e da dogmática, só indo
mais longe ainda os encontraremos nos séculos XIII e V.

***

E aconteceu o que era de esperar, a desoladora epopeia da


santidade católica do século XIX. Epopeia, sim, porque nunca a
caridade católica se desenvolveu com maior magnificência. Conta
as ordens religiosas, as obras de caridade, os sofrimentos, os
suores, o dinheiro, as missões nos quatro cantos do mundo,
contemos as irmãzinhas dos pobres nas mansardas, nos hospitais,
nos orfanatos, contemo-las, admiremo-las e choremos!

Quem lê a vida dos grandes cristãos do século, um Cura d’Ars, um


padre Ratisbonne, fica maravilhado com as conversões que
operaram, às dez, às vinte, às cem, conversões que germinam sob
seus passos. Apesar disto, entretanto, o paganismo cresce
rapidamente. Ganha, primeiro, a burguesia, depois os operários, e
finalmente os camponeses.

Os santos católicos são santos práticos, as obras católicas são


obras práticas! Nunca houve mais bela eflorescência de caridade. A
impressão que se tem é de assistir a um eclipse do dom de
inteligência! Os católicos, por isso mesmo, só atingem aqueles a
quem tocam diretamente, os indivíduos, porque só a inteligência é
universal, e só as ideias se difundem sem corpo. O paganismo está
em toda parte, paganismo de espírito, naturalismo, positivismo,
teosofismo, subjetivismo. Penetra as massas, as instituições e
infiltra-se nos cérebros. O Estado é neutro, o casamento é civil, a
escola é leiga, a imprensa livre-pensadora. Os literatos e filósofos
que escrevem a língua que o povo entende, são quase todos
estranhos ou hostis à Igreja, enquanto a irmãzinha cuida do pobre
na mansarda, foge-lhe a alma do mesmo dominada pela imprensa,
escola e por todo um ambiente de tal maneira penetrante, que o
simples respirar parece produzir liberais e naturalistas.

No meio da corrupção geral dos espíritos, a Igreja deve limitar-se a


manter suas posições essenciais, deixando gritar o mundo contra
ela.

Em certas épocas o mal é tamanho que, até entre os jovens


oriundos dos colégios católicos, parece que o maior número perde a
fé! E enquanto os missionários se esgotam para evangelizar a
China, os chineses que vêm à Europa voltam maçons. A caridade
católica não passa dos corpos, dir-se-ia que apenas toca às almas
acidentalmente, enquanto que uma onda pagã de livre-pensamento
surge qual corrente irresistível a invadir todas as avenidas do
espírito.

***

Eis aí, creio eu, o moralismo ou o espírito prático, colocado de novo


no quadro próprio. A história parece inverossímil. Como é que não
se previu o perigo iminente para os dias que se deviam seguir à
Reforma, quando, na Europa, a cristandade acabava de ser dividida
em duas partes, pela heresia, no meio da invasão da cultura pagã
da Renascença? Como é que os “humanistas devotos” não viram o
perigo do “humanismo”, quando a verdade é um “divinismo”?
Mistério que os mais sábios se encarregarão de desvendar;
observemos simplesmente que São Francisco de Sales às portas
de Genebra calvinista e da França de Henrique IV, dirige religiosas e
senhoras, com a mesma tranquilidade com que Santo Tomás
doutrinava no Paris de São Luís!

***
São Francisco de Sales é do seu tempo. Desenvolveu um trabalho
admirável sobre a ciência ascética; e os de seu tempo eram
capazes de apreciá-lo. Não conheceu o pior dos inimigos que
ameaçava a Igreja, e por isso não pôde cogitar de desviá-lo.

Seria injustiça acusá-lo por causa disso, pois ninguém, tão pouco, o
previu. Se, porém, por um golpe de vista profético, ele tivesse tido
um pressentimento de tudo isto, sem dúvida não teria sido
compreendido, teria ficado como um daqueles precursores sem
influência na sua época e que só são descobertos depois de dois ou
três séculos, quando todos reconhecem que foram bons profetas.

São Francisco de Sales é o doutor da perfeição, possui o verdadeiro


método do progresso espiritual, e é a ele que recorrem aqueles que
têm o encargo de dirigir as almas. Mas esta breve exposição sobre
o moralismo deve lembrar-nos que, se São Francisco de Sales
soube explorar de modo admirável o “raio” da vida espiritual, ainda
sobram ao cristianismo muitos outros raios a explorar.
4. Otimismo
A discussão do otimismo e do pessimismo danificou o mundo
moderno, e a grande vitória do otimismo, no século XVIII, seja
talvez, a chave da história contemporânea. Nasce o homem
naturalmente corrompido, ou sente ele, pelo contrário, uma atração
natural para o bem, que fica à espera de uma ocasião propícia para
se manifestar? O protestantismo de Lutero e de Calvino afirma
rigorosamente a corrupção da natureza. Com os jansenistas a
polêmica entra na Igreja, e todo o século XVII católico sofre as
consequências.

Poucas polêmicas doutrinais tiveram a repercussão prática imediata


desta, porque é claro que da educação das criancinhas à direção
das almas perfeitas, toda a conduta do homem varia conforme tiver
de lutar, quer contra uma natureza viciada, que a graça deve
transformar, quer contra uma natureza sem energia, que a graça
deve fortalecer e reerguer.

Em oposição ao pessimismo teológico dos protestantes e


jansenistas, o otimismo difunde-se no humanismo da Renascença,
otimismo naturalista, que se inspira no pensamento grego do
otimismo platônico, quase confundindo sabedoria com ciência, e
fazendo desta sabedoria a mãe da virtude. A teologia católica acha-
se no meio termo.

Os teólogos já haviam abandonado há muito tempo o pessimismo,


que o espetáculo dos vícios do mundo pagão inspira a certos
padres. Na Europa cristã havia escabrosidades e pecados, mas as
virtudes brotavam também, em abundância, do solo regado pela
graça. Os santos viviam lado a lado com os bandidos, a quem
convertiam na hora derradeira. Além disso, as ordens religiosas
chegaram a constituir ambientes onde a natureza, penetrada do
sobrenatural, parecia voltar ao bom caminho, pelo menos nas linhas
gerais do seu desenvolvimento.

Grandes admiradores dos gregos, discípulos de Aristóteles, os


escolásticos não sentem dificuldade alguma em reconhecer na
natureza humana uma tendência essencial para o bem, uma
inclinação natural para o amor divino, amar a Deus mais que a nós
mesmos, tendência cujo desenvolvimento é obstado pela
decadência original, se encontra debaixo do pecado, desordenada,
mas não destruída, e faz do homem um candidato à graça.

Quem fala da espiritualidade sombria da Idade Média, é porque não


a conhece. Encontram-se, na Summa de Santo Tomás, dissertações
desconcertantes, neste século de bolchevismo, sobre a tendência
natural do homem para o bem e para o amor de Deus (7). Não
parece possível encarar a nossa natureza com olhar mais amigo
que o de São Francisco de Assis. Se, pelo contrário, os moralistas
práticos e os pregadores prescrevem um ascetismo vigoroso, e por
vezes duro, é porque são chamados a lidar com naturezas rudes.
Sendo violentas as paixões, a mortificação também o deve ser. É
fato que não acarreta nenhum pessimismo na concepção teórica da
natureza humana.
A partir, todavia, da Renascença, o otimismo se acentua primeiro
sob a influência exterior do otimismo dos humanistas, depois dos
filósofos, e mais tarde ainda sob a influencia interior da reação
contra o pessimismo teológico protestante e jansenista. Manifesta-
se na ideia que fazem os teólogos dos efeitos do pecado original, da
salvação dos infiéis, e daí resulta, na teologia católica, um
movimento de suavidade (8).

À primeira vista, parece acontecer o mesmo com o papel atribuído à


mortificação na vida cristã. Os costumes suavizam-se, bem como o
ascetismo e a linguagem. As ordens religiosas modernas substituem
a mortificação exterior pela interior, Jesuítas, Ursulinas, Visitandinas,
Irmãs de Caridade, Irmãos da Doutrina Cristã. Mas essa primeira
vista poderia enganar. A reforma do Carmelo fica entre a fundação
da Companhia de Jesus e a da Visitação; os Trapistas são do
princípio do século XVII, e o século XIX viu nascer diversas
Congregações expiatórias, que em austeridades não ficam atrás de
nenhuma das ordens antigas. Além disso as antigas subsistem, e
está dito tudo.

Este último fato põe-nos de sobreaviso contra conclusões


apressadas. No domínio teórico, a tendência para o otimismo
parece certa; no domínio prático, a mitigação da espiritualidade, ou
de uma sua parte, poderia ter causas mais complexas.

Que lugar ocupa São Francisco de Sales, o doutor da perfeição,


neste movimento?

Nas eras cristãs que se sucedem, encontra-se, entre os autores


mais divergentes, notável unidade a respeito da doutrina da
mortificação. São Bento e Cassiano, São Bernardo e São Francisco
de Assis, Santo Tomás, Santa Catarina de Sena, o autor
da Imitação, Santo Inácio, Santa Teresa, São Vicente de Paulo,
todos sustentam a mesma. As aplicações podem e devem variar
conforme as almas às quais o autor se dirige; os princípios, porém,
são idênticos. Até nas ordens mais austeras, entre os santos que se
flagelam com macerações, são sempre os mesmos princípios de
justo meio, de ascetismo subordinado ao aperfeiçoamento da alma,
de austeridade estudada e calculada para um fim que não seja a
própria austeridade; mas todos, até os mais moderados, afirmam
irredutivelmente a necessidade da mortificação.
São Francisco de Sales identifica-se inteiramente com a tradição.
Nenhuma mortificação lhe é desconhecida, disciplina, cinta de ferro,
cilício, jejum, vigília; dá a todas lugar e faz do espírito de
mortificação um dos esteios da devoção.

Não introduziu ele, entretanto, algumas inovações? E que devemos


pensar de sua brandura, tão preconizada, que o caracteriza, e que
repercute em toda a sua doutrina espiritual?

As discussões sobre a doçura de São Francisco se reproduzem


periodicamente. Os que não o apreciam acusam-no de ter
enfraquecido o espírito de mortificação rigorosa da tradição cristã;
enquanto seus partidários não se cansam de citar grande
quantidade de textos em que ele exalta a mortificação nos mesmos
termos de seus antecessores, acrescentando ainda o testemunho
de suas penitentes, Santa Chantal, por exemplo, que o declara o
mais mortificador dos diretores.

Distingamos o fundo da forma. Na forma, a unção santa de São


Francisco e o seu estilo floreado emprestam-lhe, às vezes, um
aspecto de enfado. No fundo, ninguém é mais convencido de que é
preciso morrer para viver em Cristo e ninguém o repete mais
formalmente.

Resta, todavia, uma observação a fazer, que é expressa de modo


muito significativo no capítulo da Introdução à vida devota,
consagrado aos exercícios da mortificação exterior. Penso que se
escrevêssemos em nossos dias um capítulo sobre a mortificação
dos sentidos, começaríamos por afirmar a sua necessidade. São
Francisco não parece pensar nisto, e começa por sustentar o
caráter acessório da mesma, para depois tratar longamente do
desapego dos bens sensíveis, da indiferença a respeito, afirmando
que é muito mais importante do que a mortificação. Há nisso
vontade evidente de reagir, de reagir contra alguma coisa que não
pode ser senão a crença exagerada na eficácia da penitência física.

Hoje em dia não é mais preciso reagir contra isto… Se bem que
todos os autores ascéticos católicos sejam de opinião que a
penitência física não tem valor sem a penitência do coração, os
profetas do Antigo Testamento já o ensinavam, e, embora todos
restrinjam a penitência ao seu papel de educadora, de dominadora
do corpo para subordiná-lo a alma, todavia São Francisco de Sales
pode ser considerado, creio eu, como tendo particularmente
insistido sobre esta doutrina, e isto se explica pelo público a que se
dirigia.

A Introdução à vida devota é escrita especialmente para as pessoas


do mundo, os leigos, como se dizia, então. Além disso, na sua
atividade apostólica, a predileção do santo era pelas pessoas de
“compleição fraca”, que, incapazes de suportar as duras penitências
das ordens antigas, aspiravam, no entanto, à verdadeira santidade.
Para elas fundou a Ordem da Visitação. Com exceção das
Visitandinas, os religiosos e religiosas não ocupam lugar marcado
na sua correspondência, nem nos seus sermões.
Isto já não era novidade. Os Jesuítas vinham trabalhando para
difundir a oração entre os leigos piedosos e na correspondência de
Santa Teresa encontram-se diversas cartas nesse sentido. São
Francisco de Sales seguiu a mesma corrente; firmou nela a sua
doutrina com admirável segurança e sua ação marchou-lhe, de certo
modo, o pleno desenvolvimento.

***
Resta ainda alguma coisa, a dizer?

Resta, sim. Tudo quanto vimos no primeiro capítulo, o humanismo


de que São Francisco de Sales estava compenetrado; a estima de
tudo o que é humano, o gosto pela cultura do espírito e da beleza,
que lhe faz lançar para o mundo um olhar de benevolência; a
educação numa família profundamente cristã, entre gente digna; a
carreira, que se fez num meio provincial basicamente honesto.
Existem tais meios pacíficos em que o homem parece naturalmente
muito bom, onde não transparece a urgência imperiosa da luta.

Acrescentemos, enfim, uma índole bondosa por natureza e que se


interessa por tudo. O conjunto contribui para formar uma
personalidade eminentemente benevolente. Mas será o espírito
benevolente, otimismo?

***

Aproxima-se do otimismo, porque uma alma benevolente verá, em


tudo, o bem de preferência ao mal, e a alma bondosa procurará
consolar os infelizes que lutam.

Animador, consolador, São Francisco de Sales o é mais que


ninguém. É impossível, a quem ler uma página escrita por ele, não
sorver o gosto do bem e de Deus. Mas será isto otimismo?

Há um otimismo católico que quase não se discute, embora abranja


diversas gradações. É o otimismo após a graça, ou o otimismo pós-
batismal. Este otimismo consiste numa grande confiança naquilo
que o homem pode fazer quando é batizado e vive na graça. É a
base da revelação que nos ensina o caminho da salvação, e apoia-
se no amor divino. Acomoda-se, aliás, com todas as opiniões
teológicas ortodoxas sobre a natureza do homem e os efeitos do
pecado original.

Haverá em São Francisco de Sales outro otimismo teórico além


daquele, e devemos procurar nele uma doutrina precisa sobre a
natureza sem a graça? Penso que não. Ele só escreveu para as
almas, e sobre as almas, em estado de graça; a questão de maior
ou menor decadência da natureza não entrava no objeto direto dos
seus estudos, e sabemos quão pouco o atraía a simples
especulação.

Quando lhe acontece falar do pecado original, reproduz o lugar


comum dos autores ascéticos e dos pregadores sobre a impotência
em que se acha o homem de alcançar a virtude sem o auxílio divino.
Encontramo-lo mais uma vez na linha da tradição católica.

Pelo pecado original o homem perdeu sua primeira inocência, sem


que a sua natureza ficasse, no entanto, fundamentalmente
corrompida; São Francisco de Sales conserva-se à distância do
naturalismo otimista dos filósofos gregos, ou dos humanistas
paganizantes, e do teologismo pessimista dos protestantes e dos
jansenistas.

Mas será o homem, segundo a expressão dos teólogos, vulneratus


in naturalibus ou somente spoliatus gratuitis, o que representa as
duas posições ortodoxas? Creio que São Francisco de Sales não
julgou necessário tomar partido, e quando um de seus historiadores
modernos (9) quer convencer-nos de que ele adota a tese otimista,
não encontra, em suma, quase nada a citar, a não ser textos de
Belarmino, acrescentando que São Francisco é seu discípulo!
Livro Filotéia ou Introdução à Vida Devota

5. Piedade Salesiana
São Francisco de Sales desempenhou um papel considerável no
desenvolvimento da piedade católica.

Este papel deverá ser precisado, confrontado com as tendências


novas que apareceram na piedade moderna. Estudando a influência
que exerceu sua atitude perante as diversas formas da piedade, o
que fez e o que deixou de fazer, precisaremos o que devemos
buscar nele e o que não devemos procurar.
***

O primeiro aspecto da piedade católica é o sacrifical e o


sacramental. A Missa e os Sacramentos ocupam, no centro da vida
cristã, um lugar claramente determinado pelas definições doutrinais
e os textos conciliares. São as fontes principais da vida
sobrenatural, que nosso Senhor estabeleceu especialmente para
este fim, e que a Igreja cercou de ritos e de preces que firmam a sua
oração oficial ou liturgia.

Mas, quando se trata do Ofício, ou das orações que acompanham o


sacrifício da Missa, a Igreja abstém-se de definir o lugar que devem
ocupar na piedade ordinária dos cristãos. Atesta simplesmente que
existe um Ofício Canônico, fruto de uma lenta elaboração, dez ou
quinze vezes secular. A Igreja o impõe aos seus clérigos, que o
devem recitar em comum ou em particular. Este Ofício constitui,
juntamente com a Santa Missa, o ato de culto principal da Igreja.
Mas, além disto, outras devoções estranhas ao Ofício se
desenvolveram no decorrer dos séculos, foram mais ou menos
regulamentadas pelas autoridades eclesiásticas, tomando, assim,
um caráter relativamente oficial. São a adoração do Santíssimo
Sacramento sob todas as suas formas, o caminho da Cruz, o
Rosário, o Ângelus e muitas outras.

Como a autoridade eclesiástica raramente se preocupa com suas


decisões, é quase impossível dizer quais são, entre essas
devoções, as que entram no culto oficial da Igreja, e as que fazem
parte da devoção particular. Todas são aprovadas e estimuladas. O
culto oficial da Igreja é, na verdade, um culto público, isto é, de
coletividade. Mas as principais devoções particulares são praticadas
regularmente em comum, sob a direção do clero. Essa incerteza
favorece extremamente as discussões inevitáveis entre amadores
de questões cultuais, liturgistas ou anti-liturgistas. Trataremos,
porém, mais adiante da questão litúrgica.
Enfim, a oração particular, a oração individual, deve também
desempenhar papel preponderante na vida do cristão, porque o
cristianismo é uma vida fundada sobre as relações íntimas de Deus
com os homens, e a oração é o ato pelo qual o homem se comunica
com Deus. A doutrina dos teólogos dá à oração múltiplos fins: o de
louvar a Deus, oração de louvor; de implorar a misericórdia divina,
oração propiciatória; de alcançar graças, oração imperatória; de
agradecer a Deus, oração de ação de graças. Os autores espirituais
atribuem-lhe, ainda, um quinto efeito, indireto, mas importante, que
é o de atrair a nossa atenção para Deus e de inflamar o nosso amor.
Encontra-se assim com a meditação, que é uma reflexão sobre as
realidades sobrenaturais.

***

Este último é o psicológico, que une a oração à meditação,


examinando, tanto numa coisa como na outra, o bem direto e
perceptível que produzem na alma. Estuda-se, pois, a oração
enquanto auxilia a alma a unir-se a Deus por uma percepção mais
clara de sua realidade e um impulso mais ardente de seus afetos. E,
considerando a oração sob este aspecto, conclui-se que a oração e
a meditação estão ligadas entre si; que a meditação leva a alma a
orar bem, tornando-se inútil no dia em esta se ache habitualmente
na presença de Deus; que a prece — ou oração, — é, ao mesmo
tempo, o meio de nos unirmos a Deus e o resultado desta união,
que, na realidade, a verdadeira oração é a própria união, e as almas
que se acham perfeitamente unidas a Deus chegam a orar
constantemente, sem palavras, e, mesmo até, sem sucessão de
pensamentos, porque sua vida é uma série de manifestações de
amor, o que constitui a essência da oração.

Concebe-se facilmente, depois do que foi dito do movimento


psicológico da Renascença até aos nossos dias, quanto este
aspecto psicológico da oração deve ter sido analisado, desde o
século XVI. É examinado com tal penetração e tal clareza que se
constitui, nessa época, uma ciência da oração, que parece nova.
Sublinho a palavra porque tenho consciência de escrever algo de
ridículo, mas poucos autores dos séculos XVI e XVII teriam pensado
do mesmo modo. Muitos julgam sinceramente ter descoberto
alguma coisa nova, e que a ciência da oração data de Santo Inácio
e de Santa Teresa! Quem lê a maior parte dos autores daquele
tempo, uma Santa Teresa, por exemplo, tem a impressão de que a
oração mental, — e aquilo a que dão este nome é simplesmente a
oração segundo o método de Santo Inácio — é uma descoberta, um
novo método — ia escrevendo uma norma — infalível, verdadeira
chave do enigma da santidade, por falta da qual a alma mais
generosa se acharia bloqueada em sua marcha. Vemos, nas
narrações daquela época, almas que vegetam, ao serem iniciadas
no método da oração mental, e começarem, somente a partir desse
dia, a elevar-se para Deus; depois se iniciarem nos diversos graus
da oração, e pautarem sua união com Deus no modo de orar. Os
modos e graus de oração parecem tornar-se como uma espécie de
religião esotérica para almas de escol. Santificar-se não quer dizer
somente amar muito a Deus, nem orar é dizer-lhe somente que o
amamos muito. Santificar-se e orar, e, sobretudo, fazer oração, é
seguir um método. Um santo é, por conseguinte, alguém “que faz
oração elevada”; os graus de oração são marcados, e quem tem a
pretensão de ser místico, gosta de dissertar a respeito.
A bela obra do abbé Brémond, Histoire du sentiment réligieux en
France depuis la fin du XVI siècle (11), retrata com pormenores toda
essa história. Revelam-se de modo muito significativo, tanto mais
que o autor não partilha a minha desconfiança a respeito dessa
mística que se alardeia, e que ele analisa com extrema
complacência. Esta ciência da oração aparece muitas vezes como
singularmente factícia, até entre os mais piedosos. Vigora,
infelizmente, e as almas simples e retas, que se elevam para Deus
livremente, sem se deterem a considerar o seu “modo” de orar,
desagradam a algumas pessoas, que se julgam com direito de se
porem a par das suas experiências sobrenaturais (12).
Hoje, graças a Deus, conhecemos melhor a admirável continuidade
de vida da Igreja, e sabemos que a oração é tão antiga como o
cristianismo, ou mais ainda, porque já a encontramos nos patriarcas!
Sabemos que a ciência da oração foi abundantemente cultivada
durante toda a Idade Média numa literatura de luxuriante riqueza, e
que o amor dispensa métodos assim como o gênio não se prende a
regras. A obra da Renascença, ao nosso ver, reduz-se a proporções
mais modestas e mais verdadeiras. Completou a análise dos
estados da alma e dos modos de sua união com Deus; firmou
melhor certos estados pelos quais as almas passam, algumas
vezes, quando se unem a Deus, e precisou as condições mais
favoráveis ao recolhimento.

É nisto, talvez, que se torna mais admirável a obra de São Francisco


de Sales. Sem contradizer ninguém, servindo-se de todas as
doutrinas de seus antecessores, soube, pelo simples poder de seu
bom senso genial, repor a oração no lugar que lhe é destinado na
vida. É muito metódico; quer que ponhamos ordem na nossa vida
espiritual e aconselha os métodos habituais da oração; mas
enquanto isto, consegue, graças ao encanto do seu gênio particular,
despojar a devoção desse aspecto de norma espiritual que outros
tão facilmente lhe dão; e fundi-la de tal maneira na vida que,
explicada por ele, apareça simplesmente como o desabrochar
normal da alma, desabrochar contínuo, harmonioso, total. Quem lê,
pela primeira vez, o Tratado do Amor de Deus, encontra dificuldade
em descobrir os “estados extraordinários”, se bem que aí se achem,
e a classificação categórica dos graus, embora também estejam lá.
Está tudo lá, tudo de que tratam outros, mas cada coisa colocada no
seu lugar e adaptada à vida. Regulamentando assim a oração
extraordinária, São Francisco de Sales fez mais que qualquer outro
para livrá-la dos perigos e prestou relevante serviço à Igreja.
A união sobrenatural das almas com Deus, para a qual nosso
Senhor nos chama, é coisa tão elevada, sobrepuja de tal forma tudo
quanto se possa imaginar e exprimir, que fica sempre certo receio
quanto às mil contrafações que possam sobrevir. Até na melhor
mística existe o perigo do espírito afeiçoar-se pura e unicamente a
esses fenômenos, fenômenos que se produzem na própria vida, que
são talvez o cume da vida, mas não constituem a vida, e que, na
realidade, não se podem conceber separados da vida e da prática
do amor na vida cotidiana. Fica sempre o receio de que, estes
fenômenos, se estudados em si mesmos, isoladamente, com um
interesse que se torna apaixonado, acabemos, de fato, por separá-
los da vida e torná-los numa espécie de ginástica espiritual — de
acrobacia espiritual, poder-se-ia dizer — que não dilata mais a alma
toda, mas somente o seu poder de oração.

Bem sei que os verdadeiros místicos estão ao abrigo desse perigo;


mas trata-se aqui da literatura mística e de sua influência. Sei,
também, que os grandes autores místicos concordam todos quanto
à existência deste perigo. Lembremos somente, a título de exemplo,
a bela carta do bem-aventurado João d’Ávila a Santa Teresa, a
respeito da Vida da Santa escrita por ela mesma, carta em que
expõe precisamente os perigos graves desse gênero de escritos.
Santa Teresa, São João da Cruz, para citar apenas dois grandes
clássicos, gostam de lembrar que os estados de oração não
constituem a santidade, e que o principal fator da apreciação desses
estados é a pureza de vida, a humildade, o desapego, a caridade
efetiva que deles decorre.
Isto não impede que as obras de uma Santa Teresa, que são, aliás,
obras fortuitas, tratem quase exclusivamente da oração. Basta isso
para levar muitos espíritos a confundir oração com perfeição, e fazer
com que as discussões sobre os métodos de oração, com suas
divisões, e divisões sutis, deem a muita gente a impressão de que a
santidade depende do método, e que sem o método, nem a graça,
nem a generosidade, podem conduzir bem a alma.

Na obra de Brémond, o tomo consagrado aos métodos de Lallemant


e de Surin dá uma forte impressão de artificial; não é a vida
verdadeira.

O grande perigo da mística é fazer perder facilmente contato com a


vida real. Assim é que todas as grandes épocas da literatura mística
se distinguem, não só pelo desabrochar de obras primas, mas
também pelas condenações retumbantes.
O século XIV teve Eckart e o misticismo panteísta; o século XVII
encerra-se com madame Guyon. O demônio gira, sem cessar, à
volta do santuário; o faquirismo espreita a mística a fim de a atacar.

É nisso tudo que São Francisco de Sales sobressai admiravelmente.


Sua obra é a própria vida, tal qual se apresenta em toda a sua
realidade complexa, e reproduzida de modo tão natural e tão suave
que não pode ser taxada da menor parcialidade. Há nela alguma
coisa do que se atribui ao gênio de La Fontaine:

“Olhar, e escrever o que se vê”!


E pode-se dizer dele, à vontade, que é o maior dos místicos, ou que
não é místico de todo, visto o pouco interesse que demonstra pelas
diversas escalas de estados e pela distinção sutil dos graus de
oração.

Nada há, em suma, de mais realista que o sublime cristão.

Jesus é Deus andando de pés descalços sobre a terra, repousando


à beira de um poço, dormindo sobre uma velha capa no fundo de
um barco, mas é sempre Deus. A perfeição cristã está em
reproduzir Jesus na sua simplicidade e, ao mesmo tempo, em
encontrar nesta simplicidade a vida divina. O perigo da mística está
em procurar Deus nele mesmo, fora dessa simplicidade da
existência terrestre, em procurá-lO tal qual se encontra no céu, mas
como nós não O encontramos aqui na terra. Se quisermos, pois,
tornar-nos anjos, não nos tornaremos animais?

São Francisco de Sales reagiu suavemente contra este perigo, sem


nem sequer mencioná-lo, pela sua incomparável compreensão,
simples até parecer algumas vezes ingênua, da realidade cristã. É
doutor da Igreja por ter exprimido, melhor que qualquer outro, esse
natural da sublimidade cristã, por ter explicado como esta perfeição
cristã se encontra na vida de todos os dias e por tê-lo sabido fazer
sem nada sacrificar dos dois termos, nem da sublimidade divina
nem do terra-a-terra humano.
***

São Francisco de Sales, como, aliás, todos os autores espirituais,


tanto os da Idade Média como os modernos, trata longa, frequente e
minuciosamente da oração mental, e muito menos e rapidamente da
Missa e dos Sacramentos.

Há nisto uma particularidade que surpreende à primeira vista. Não é


próprio, como acabo de dizer, de São Francisco de Sales, e chega a
ser tão universal, que afasta a priori a ideia de menoscabo pelos
Sacramentos, porque então a totalidade dos autores espirituais
ficariam excluídos da tradição católica.

Declara ele formalmente que a Missa é o centro da religião cristã, “o


coração da devoção, a alma da piedade”. Quanto à
comunhão, “todos aqueles que a recebem frequentemente, com
devoção, robustecem de tal maneira a saúde e a vida da própria
alma que é quase impossível se envenenar com qualquer espécie
de afeição má”. Estes textos são da Introdução.
O problema reveste a seguinte forma: Os autores piedosos, e São
Francisco de Sales em primeiro lugar, falam relativamente pouco da
Missa e dos Sacramentos, quando, ao mesmo tempo, os
consideram o centro da vida cristã. E por quê?

A dificuldade suscitada por este ponto é muito mais aparente que


real. Duas questões importantes se relacionam com os
Sacramentos e a Missa: é preciso, primeiro, saber o que são;
segundo, como os receber com fruto. Os tratados de teologia
dogmática resolvem a primeira, mostrando a ação divina exercida
em nós pelos Sacramentos. A segunda é uma questão de moral, a
ser tratada por um autor ascético, que a deverá encarar de modo
especial. Dirigindo-se a cristãos instruídos, não lhes ensina as
condições de validade ou de legitimidade do Santo Sacrifício da
Missa. Pode limitar-se, como o fez São Francisco de Sales, a
lembrar, em ocasião oportuna, a sua importância primordial; mas se
estenderá, de preferência, sobre às condições de participação que
dependem de nós e que a tomam mais proveitosa.

Ora, o fervor da alma é condição principal para se tirar maior fruto


dos santos mistérios, e é a oração que o incrementa mais depressa.
Falar, por conseguinte, longamente da oração e brevemente dos
santos mistérios ou falar primeiro daquela e depois desses, não é
relegar os santos mistérios a segundo plano. Formar almas de
oração é formar almas capazes de se unirem perfeitamente ao
Santo Sacrifício; este, por sua vez, tornará a oração mais perfeita.

Não resta dúvida, entretanto, que tanto São Francisco de Sales


como os autores do seu tempo dão, no que diz respeito à Missa e
aos Sacramentos, um caráter um pouco diverso do que era de
esperar. Digo os autores do seu tempo, mas parece-me que deva,
talvez, dizer todos os autores, até os nossos dias. E isto leva-nos à
questão litúrgica.

***

O que chamamos, hoje, questão litúrgica é uma novidade na Igreja,


novidade cheia de consequências.
O movimento litúrgico, que estabeleceu a questão litúrgica, nasceu
pelo ano de 1850, com a restauração da grande tradição beneditina
na Alemanha, na França e depois na Bélgica. Tendia a repor em seu
posto de honra o culto oficial da Igreja, ou liturgia, submerso sob o
montão de devoções particulares. Este culto oficial da Igreja
consiste essencialmente, como já o dissemos, na Missa e no Ofício.
A Missa é o centro, o Ofício a moldura.
Os beneditinos eram logicamente induzidos, pela sua própria
propaganda, a tornar a Missa mais conhecida, pondo novamente em
relevo a noção do sacrifício, relembrando que o sacrifício de Jesus
Cristo é o centro único da nossa religião, e, assim, reunir em torno
de Jesus Cristo toda devoção. A Igreja dá-nos o exemplo disso no
ano litúrgico, que os beneditinos nos ensinaram de novo, e que gira
em torno da Páscoa.
Esse movimento litúrgico foi, sobretudo, um movimento prático, no
sentido de que não começou por exposições doutrinais, mas por
fundações. Os beneditinos criaram nas suas abadias centros de
vida litúrgica, organizaram, entre eles, o culto católico tal qual deve
ser; preconizaram a volta da liturgia, primeiro com o exemplo, e
somente depois, com a propaganda. O decreto de Pio X sobre a
comunhão frequente deu lugar, nesse ínterim, a um movimento, que
se adaptava perfeitamente ao deles. Quem compreende o fim do
Santo Sacrifício da Missa, compreende que a comunhão é o modo
normal e racional de participar do sacrifício; a comunhão cotidiana,
tomando lugar no centro da vida cristã, acarretava o culto do
sacrifício, de que é fruto.

Eis aí o movimento litúrgico: movimento prático ao qual faltou,


talvez, um grande teólogo. Foi o padre de la Taille São J., quem,
parece-me, expôs pela primeira vez, em 1921, no Mysterium
fidei (13), a doutrina da eucaristia, segundo a concepção verdadeira
da liturgia, sacrifício primeiro, comunhão depois, sendo a presença
real simplesmente o meio, meio sublime, mas meio, de que se
serviu o Salvador para perpetuar seu sacrifício e unir nossas almas
à sua pessoa divina.
Há, evidentemente, no movimento litúrgico, como em todo
movimento conquistador, certa intolerância. Entre os seus
partidários há quem seja hostil ou antipático a uma ou outra
devoção popular, dignas, ao seu ver, de estima em si mesmas, mas
que são empregadas inoportunamente. Acham absurdo, por
exemplo, rezar-se o Rosário durante a Missa.

Ora, São Francisco de Sales acha muito natural que a abadessa de


Puits d’Orbe, beneditina, reze todos os dias o Rosário durante a
Missa (4). Foi também grande propagandista da adoração solene do
Santíssimo Sacramento, com luzes, flores, incenso, cânticos, e
ornamentos suntuosos a reluzir, e que acabou, sob a forma de
bênção, por eliminar quase completamente as vésperas dos hábitos
cristãos. Se bem me lembro, foi ele quem introduziu as orações das
Quarenta Horas na diocese de Annecy, e, se não as introduziu, não
deixou, em todo caso, de organizá-las com o máximo brilho. E
sabemos que essa substituição das vésperas pela bênção é um dos
grandes agravos dos liturgistas contra a piedade moderna…

São Francisco de Sales manifesta, entretanto, a mais tocante estima


pelo Ofício; antes de ser ordenado, já o recitava por devoção e na
Introdução recomenda a Filotéia assistir, todos os domingos, às
horas e vésperas.

“E depois, (digo-o uma vez por todas), há sempre maior bem e


consolação nos ofícios públicos da Igreja do que nos atos
particulares…”
Eis o espírito litúrgico!…

Mas, na realidade, São Francisco de Sales nunca refletiu sobre o


que chamamos questão litúrgica. Seria mesmo quase impossível
que o tivesse feito, porque esta questão ainda não havia surgido no
século XVII. Encontrou no meio em que vivia um plano já traçado,
feito de tradições e hábitos, e os admitiu sem discussão.

***

É mister, para expor bem a diferença entre o estado de espírito no


tempo de São Francisco de Sales, e do nosso, ir muito longe —
longe demais — e chegar até à constituição e à razão de ser da
Igreja! É mister ainda fixar as consequências dessa constituição
sobre a vida religiosa íntima dos fiéis.

Nosso Senhor, ao instituir sua religião, não se limitou a propor um


ideal de perfeição interior; instituiu uma sociedade humana, em
cujos quadros a alma cristã deve desenvolver-se.

Esta sociedade, a Igreja, tem a missão de render a Deus a


homenagem perfeita da coletividade humana e, ao mesmo tempo,
de conduzir as almas para Deus. A homenagem da coletividade
manifesta-se por instituições públicas, pelo caráter religioso
impresso em todas as instituições sociais, estados, corporações,
famílias, e depois, de modo mais discreto, pelo culto oficial,
organizado pela Igreja, onde a comunidade dos fiéis rende a Deus
uma homenagem tão completa e tão perfeita quanto possível.

O culto organiza-se em torno da celebração da ceia, única


homenagem realmente digna de Deus.

Como já lembramos em trechos anteriores, os fins da oração são


louvor, ação de graças, propiciação, impetração. A oração é, antes
de tudo, a homenagem da criatura ao Criador, é este o seu primeiro
fim, o ato de adoração por excelência. A oração pública da Igreja é,
sob um ponto de vista, o ato supremo prestado pelos homens aqui
na terra, porque o ato coletivo organizado ultrapassa em dignidade e
intensidade o ato individual.

Encarada doutro modo, a oração pública tem pouco valor. A que


vale é a que vem do coração e não dos lábios. Essas molduras
cristãs, despidas da virtude cristã, são antes blasfêmia que
homenagem e o grande louvor dado a Deus Pai, pela sua Igreja, é o
louvor da santidade, louvor do Espírito Santo nas almas. O que
importa, por conseguinte, sob este outro ponto de vista, é santificar
individualmente o maior número possível de almas.

Conclui-se, pois, daí, que o homem, se é feito para viver em


sociedade, deve render a Deus uma homenagem coletiva, e,
embora os atos coletivos do homem sejam as manifestações
supremas de sua atividade, todavia esses atos só valem conforme
as disposições interiores de quem os pratica. Consequentemente é
desumano separar o culto público da obra de santificação privada.

Devemos, até, acrescentar: Na realidade, a homenagem que


rendemos a Deus e a santificação de nossas almas são elementos
não somente unidos, mas tão estritamente ligados entre si como a
oração impetratória à oração de louvor. É quase impossível louvar a
Deus sem que venha logo o pensamento de Lhe pedir auxílio para
melhor o fazer (14). Assim também, por perfeito que seja o culto
público, estaria incompleto se não fosse um meio propriamente dito
de santificação das almas. Em outros termos, todo ato da vida cristã
deve revestir um duplo caráter: honrar a Deus e santificar o homem.
Isso redunda sempre em homenagem, porque, de fato, quem se,
santifica, serve a Deus, portanto louva-o cada vez melhor. Quando
falamos, porém, de santificação, visamos de preferência o aspecto
humano da obra, tornando-se assim o homem o seu fim imediato, e
Deus o fim ulterior.

Não convém separar estes dois aspectos da oração; digo mais, é


preciso não os separar. Distingui-los a fim de melhor as conhecer,
está muito bem, mas na vida prática devem ficar unidos. A oração é
o ato de adoração por excelência; e é sempre benéfica ao homem.

A oração individual parece, às vezes, corresponder melhor às


exigências da alma, por se adaptar a ela. Não é a oração mais
fervorosa a que mais agrada a Deus? Mas a oração pública
corresponde melhor às exigências da glória divina. E corresponder
melhor às exigências da glória divina é mostrar melhor a Deus o
amor que lhe temos. Não lucra com isso a nossa alma?

Querer, pois, separar estas duas formas de piedade redundará em


maior confusão, porque não devem estar separadas, e sim unidas, e
em combinação uma com a outra, apoiando-se uma na outra, assim
como a natureza individual do homem não se há de separar da sua
natureza social. O homem realiza na sociedade o seu fim individual;
uma das qualidades da sua natureza individual é ser sociável e só
poder expandir-se plenamente na vida social e por meio dela. Não
as separemos, pois. A Igreja, mais uma vez, mostra-se
perfeitamente sábia, colocando o culto público acima da piedade
particular e servindo-se da piedade individual para vivificar o culto
público.

Se forem colocados um ao lado da outra, sem formarem um


sistema, cada um, conforme seus gostos, há de sacrificar esse ou
aquela… Existem estas duas falhas, e há religiões puramente
rituais; o cisma ortodoxo parece ter incorrido, não raras vezes, neste
erro. Quanto ao protestantismo, pretendeu limitar a religião à vida
individual. O catolicismo caminha entre os dois.

***

O culto social da Igreja nasce com a própria Igreja na celebração,


em comum, da Eucaristia pelos Apóstolos.

Logo que a Igreja se tomou livre, os fiéis devotos começaram, sem


mais, a reunir-se nas igrejas para rezarem juntos, sob a direção do
clero. Este costume que se fixou e se regularizou no decorrer da
Idade Média, nas ordens monásticas e nos capítulos canônicos,
dando origem aos ritos da Missa e ao Ofício canônico, tais quais
existem hoje no missal e no breviário. A vida cristã organiza-se
nesse quadro, sem que ninguém pense em esquivar-se. A Idade
Média é litúrgica sem o saber.

A decadência da liturgia começa na Renascença sob a influência de


múltiplos fatores. Mencionaremos apenas um: o individualismo.

O homem da Idade Média tem o sentimento social desenvolvido; o


pensamento da Renascença exalta o indivíduo, e esse
individualismo está ligado por laços estreitos à tendência
psicológica, da qual já tratei aqui longamente. O indivíduo é
exaltado, analisado; a emancipação do pensamento individual é
proclamada. Um dos elementos que talvez tenha contribuído para o
desenvolvimento desse individualismo, dispensando os particulares
de se ocuparem dos negócios públicos, é o estabelecimento das
monarquias absolutas. As democracias, embora muitas vezes
tempestuosas, ou talvez por isso mesmo, desenvolvem o senso
social, obrigando cada um a se interessar pelo bem comum.

Este individualismo repercute, evidentemente, entre os católicos;


chama a atenção para aquilo que é de benefício imediato para a
alma. Já falamos do lugar que ocupa, naquela época, a oração
mental sistematizada, que se torna o elemento essencial da vida
interior, não acima da Missa ou do Ofício, nem contra a Missa e o
Ofício, mas ao lado da Missa e do Ofício. Assim também a
importância das orações particulares, como o Rosário, tende a
aumentar.

Tal a situação do século XVI. Os autores de então conservam o


culto da liturgia, e limitam-se a acrescentar um elemento novo, que
colocam ao seu lado. Não é outra a atitude de Santo Inácio, atitude
aliás pouco conhecida. Nas Anotações, que ele coloca no princípio
dos Exercícios, declara, na vigésima, que o retirante deve procurar ir
todos os dias à Missa e às vésperas. Como pode, por conseguinte,
em nossos dias, muita gente pensar que haja contradição entre
os Exercícios e a liturgia!
A atitude de São Francisco de Sales é a mesma. Ambos, neste
sentido, são, pois, litúrgicos. Alguma coisa, no entanto, mudou,
mudança que as circunstâncias exteriores vão acentuar.

A decadência do senso social e o desenvolvimento do


individualismo reagirão pouco a pouco contra o gosto do culto
público. Permanecemos cristãos, procuramos a perfeição na união
com Deus, por nosso Senhor, mas damos menos importância ao
fato de sermos membros da sociedade humana visível, que é a
Igreja. Os ritos da Missa, do Ofício, a união com a Igreja no ano
litúrgico, engolfam-nos numa atmosfera católica, dão-nos o
sentimento da nossa união com o Corpo místico. Toda a tradição
vibra aí, dos profetas nos salmos aos séculos modernos, nos hinos
e nas festas dos santos. Adquirimos o espírito católico, mas de
modo geral, de alcance longínquo, que faz de nós, primeiramente,
membros ativos da Igreja, para, depois, nos tornar capazes de nos
santificarmos na Igreja. A partir do século XVI, enfraquecendo-se o
senso social, firmando-se o moralismo, vamos perdendo o hábito
das grandes verdades e procuramos, de preferência, a eficácia da
piedade sobre a alma. O coração não se prende mais ao Ofício;
continuamos a venerá-lo, por ser rito público da Igreja, mas damos
preferência a outras devoções. A bênção, por exemplo, excita mais
vivamente a sensibilidade, e é justamente isso que procuramos.
Há ainda outros elementos: o desenvolvimento da cultura
intelectual; o intelectual que se vai tornando facilmente um
individualista; a necessidade de reagir contra a atmosfera de mais a
mais leiga do meio, que restringe a vida cristã, concentrando-a na
alma.

Estes elementos se entrecruzam e explicam como a oração,


introduzida primeiro ao lado do Ofício, tende, pouco a pouco, a
absorvê-lo. As devoções particulares multiplicam-se até atingirem
quase esse estado de individualismo radical, contra o qual o
movimento litúrgico atual constitui reação salutar e providencial.

Qual é, neste movimento, o verdadeiro lugar de São Francisco de


Sales? Tudo quanto já dissemos basta para o demonstrar.

O movimento individualista esboçava-se; a tradição litúrgica da


Igreja ainda estava em pleno vigor; São Francisco de Sales, como
Santo Inácio, estava compenetrado dela. A Missa é para ele o
centro da vida, e vem antes da oração.

“É preferível, de todo modo, ouvir Missa todos os dias, com as


orações que lhe são próprias, a não assistir a ela sob pretexto de
continuar a rezar em casa” (15)
Assim também ele ensina que na Santa Missa devemos “oferecer
com o sacerdote o sacrifício da nossa Redenção, a Deus Pai, para
nós e para toda a Igreja”. Dá repetidas provas de estima pelo Ofício.
E, entretanto, parece-me que lhe falta alguma coisa… Falta-lhe,
creio eu, exatamente o seguinte: Esboçando-se, então, um
movimento, que ia afastar os cristãos do espírito social cristão e do
espírito litúrgico, ele não percebeu até onde havia de chegar, não
pressentiu a necessidade que havia de reagir. Participa do espírito
do seu tempo, mas nesse setor não o dirige. Sua ação pessoal
exerce-se toda sobre a vida interior. No que diz respeito à vida
pública, seu pensamento nada tem, por assim dizer, de pessoal.
Demais, nada indica que, para ele, ofícios públicos sejam o que, de
fato, chamamos ofícios litúrgicos. No seu tempo, eram ainda as
vésperas o grande oficio da tarde, e ele nada faz para as diminuir.
Pelo contrário, sendo tal o culto, ele procurou torná-lo o mais
perfeito possível, quis que as vésperas fossem bem cantadas, e
quis também que as orações das Quarenta Horas, extra-litúrgicas,
fossem celebradas solenemente.

A ideia de trabalhar para dar realce ao culto social da Igreja, como


culto social, não lhe passa pela mente. E quando forma as suas
Visitandinas, a quem impõe somente o pequeno ofício da
Santíssima Virgem, fica patente que ele nunca pensou em falar-lhes
de liturgia.

***

São Francisco de Sales fica sendo, assim, o doutor da perfeição


individual, da devoção, da união da alma com Deus. É isto, e nada
mais. Estimemo-lo, veneremo-lo e amemo-lo como é. Há muitas
moradas na vasta catedral da Igreja e no próprio Espírito há
diversidade de dons.

É o mestre da vida interior. Saibamos colocar a sua doutrina, como


ele próprio diria, no coração de nossa vida e na vida de nosso
coração. Ajuda-nos a encontrarmos a Deus em nossa alma, e com
isso, de modo algum, exclui aquilo que não ensina, enquanto dilata
as almas à luz divina, torna-nos mais aptos a compreender os
mestres da dogmática e os apóstolos atuais da vida social do
cristão, no corpo místico da Santa Igreja. Mas não vamos procurar
nele o que não nos pretende dar. É grande ciência conhecer os
santos tais quais são, e depois venerá-los conforme os
conhecemos.

Formação das Almas


São Francisco de Sales é um educador que nunca se ocupou de
educação.
Coube-lhe apenas formar adultos. Emprega, para este fim, o dom do
discernimento das almas, dom por excelência do educador, dom
real, sem o qual os outros pouco valor têm, dom que excede
quaisquer normas ou métodos ou regras, o dom de observar as
almas, de ultrapassar o invólucro de carne e de descortinar o que
constitui a personalidade de cada um.

O educador deve ser capaz de sair de si mesmo para viver nos


outros, de sentir com eles, de apoderar-se dos seus pensamentos,
com gradações próprias.

Ninguém, como São Francisco de Sales, possuiu esse dom de


adaptar-se à diversidade das almas, ninguém teve, mais que ele, o
amor, o gosto das almas, a alegria de ver nelas o reflexo de Deus.

***

Nos primeiros anos do episcopado, foram principalmente senhoras


da sociedade que o santo dirigiu. Só mais tarde, depois de fundar a
Visitação, ocupou-se, em primeiro lugar, de religiosas. Dessas, aliás,
as primeiras serão recrutadas entre essas mesmas senhoras
formadas por ele.

Para São Francisco de Sales, como já vimos, o mundo não se


apresenta como um antro de vícios, de que devemos fugir a todo
custo. O mundo, conforme o conheceu na sua família, é digno de
respeito. Além disso, sacerdote secular, contente com o seu estado,
não pode considerar uma regra religiosa como necessária à
perfeição.

Dirigindo senhoras de posição, ele não se propõe aconselhar-lhes a


fugir do mundo e a adotar uma regra de vida apertada, tal qual é
praticada na vida religiosa. Esta ideia, embora bastante
generalizada na Idade Média, e adotada por certos diretores, não
tem sua aprovação.
Quem dirige almas “seculares” para a perfeição, procura fazê-lo sem
lhes impor qualquer espécie de regra religiosa, já que o método de
santificação é diferente. As regras religiosas, forçosamente,
organizam, para aqueles que tendem à perfeição, um plano exterior
uniforme que todas devem seguir, com as mesmas observâncias, as
mesmas práticas de piedade, até com atitudes idênticas. Para os
leigos, é mister procurar outra coisa que supra esta norma.
Precisam de um amparo interior. Devem adquirir têmpera.

Santo Inácio de Loyola já havia tentado alguma coisa nesse sentido


nos seus célebres Exercícios espirituais, e todo o método ascético
dos jesuítas neles se inspira. O plano exterior é substituído pela
formação da vontade. O jesuíta, e aqueles a quem forma, são
homens de vontade firme, que fazem o bem porque querem, porque
o acham razoável, e porque submetem a vontade à razão.
São Francisco de Sales vai de preferência ao coração. É o amor
que guia o homem, e ainda mais a mulher, e são as mulheres que
ele dirige, ao passo que Santo Inácio, quando compunha
seus Exercícios, pensava mais particularmente nos homens.
“Tudo é do amor, no amor, para o amor e de amor na santa Igreja”
(16)
A perfeição cristã consiste também no amor; e o caminho que a ela
nos conduz é, ainda, o amor. Aprende-se a amar, amando-se. Tudo
mais é de pouca monta, se não visar o amor.

“Quanto a mim, Filotéia, jamais pude aprovar o método daqueles


que para reformar o homem começam pelo exterior, pelos gestos,
pelos hábitos e pelos cabelos”
Poder-se-ia tomar isto como uma sátira às ordens religiosas, porque
a primeira coisa a fazer quando um jovem ou uma donzela é
recebido num convento, é “tratar do exterior, dos gestos moderados,
do hábito, dos cabelos”. É óbvio que São Francisco de Sales não
teve semelhante ideia. O primeiro comentário, aliás, que um bom
mestre de noviços faz ao jovem religioso, depois da tonsura, da
vestição, e da recomendação de como se há de portar na
comunidade, é que ele ainda nada fez, e que a obra da perfeição só
começa depois do exterior se achar em ordem.

Isso não impede, porém, que nos conventos, devido à vida de


comunidade, se principie pela exterioridade, levando os fiéis a crer
que a obra da perfeição deve começar por aí.

São Francisco de Sales não concorda com isto.

“Parece-me, pelo contrário”, continua ele, “que se deve começar


pelo interior. Converte-te a mim de todo o teu coração, disse Deus;
meu filho, dá-me o teu coração. Sendo o coração a fonte das ações,
estas serão conforme for aquele. O Esposo divino convida a alma:
Põe-me como um selo sobre o teu coração, como um sinete sobre o
teu braço. Sim, na verdade, quem tem a Jesus Cristo no coração,
tê-lo-á em todas as suas ações exteriores… Em suma, quem
ganhou o coração de um homem, ganhou-o todo inteiro” (17)
Pouco importa a matéria dos nossos atos, só o amor tem valor, —
eco fiel da mais antiga tradição cristã. Não disse São Paulo que o
amor se pratica no comer, no beber, em tudo quanto se faz? A
originalidade de São Francisco de Sales está em ter ele insistido
sobre este ponto de modo quase exclusivo, e de o ter aplicado com
tanta assiduidade na sua direção e nos seus livros, que esta
doutrina ficou doravante ligada ao seu nome.

O seu discípulo, procurando unicamente a prática do amor, será


indiferente às mil modalidades sob as quais se pratica este amor.
Há, na espiritualidade, certa praxe aceita como nas formalidades do
mundo. Quando cogitamos de nos santificar, ocorrem-nos logo ao
espírito umas formas de oração e de mortificação, que são de certo
modo “chapas”. São Francisco de Sales pouco se incomoda com
isso. A quem se queixa de não poder recolher-se durante muito
tempo, — sem dúvida a hora, ou meia hora de orações prescrita —
manda que o cumpra mais brevemente, mas com maior frequência.
Devemos praticar o amor onde o encontrarmos. Às Irmãs da
Visitação, o bom Pai está sempre a pregar que o amor não se prova
com o brilho das ações, mas com o fervor com que são praticadas.
Quanto às ações, ah! cada qual pratique as que se lhe deparam na
vida.

“Pega-se no que se acha!” dir-se-ia hoje em linguagem familiar. Haja


amor, é quanto basta.
***

Na espiritualidade salesiana, a conformidade com as contrariedades


da vida ocupa também lugar importante. É assim que São Francisco
de Sales prepara o nosso século.

Quem vive no mundo, tem contrariedades a todo momento. Ora é


um marido pouco delicado, ou filhos pouco obedientes, ou falta de
saúde, ou lidas caseiras, ou então relações sociais um tanto difíceis.
As mortificações artificiais, as que nos infligimos por nossa livre
vontade, têm, em suma, muito menos importância do que essas
contrariedades de cada instante. Só terão importância para alguns
entes privilegiados, a quem a vida não pede tais renúncias, ou que
as suportam de modo tão perfeito que podem abordar uma etapa
ulterior. Estes são, porém, pouco numerosos. Na vida das almas
medíocres, a mortificação artificial constará de pequenos exercícios
para domar a vontade, pequenas práticas de secundária
importância.

A maioria dos autores espirituais dirige-se a um público diverso do


de São Francisco de Sales. São quase todos mestres de noviços,
ou diretores de religiosas contemplativas, e seus livros são o fruto
de suas pregações.

Ora, tanto essas como aqueles fugiram das preocupações do século


para se dedicarem, na solidão, ao cuidado do próprio
aperfeiçoamento, ficando, assim, livres de muita inquietação. Vivem
enclausurados, debaixo de regras estabelecidas, com o intuito de se
santificarem do melhor modo. Não tendo encargos nem de família
nem de casa, nem de sociedade, convém criar-lhes mortificações
artificiais como sua vida.

Nenhum noviciado, nenhum convento de contemplativas, representa


a vida ordinária dos homens. São necessários, pois, meios
maleáveis ao se aplicarem as regras da vida espiritual de um
noviciado, ou de um convento, às pessoas que vivem no mundo.

Quando tais pessoas, que visam a perfeição, consultam livros que


tratam do assunto, encontram, muitas vezes, uma fonte de erros,
isto é, de conselhos que não lhes convêm, porque não foram
escritos para elas. Ora, o singular serviço prestado por São
Francisco de Sales foi ter ele escrito primeiro para os leigos. Mais
tarde, mesmo quando se ocupou de religiosas, ocupou-se de uma
Ordem que ele mesmo fundara, tendo em vista pessoas
demasiadamente fracas para praticarem as mortificações em uso
até então nos conventos. Continuou assim na direção de religiosas
o sistema que havia inaugurado com gente do mundo, reduzindo a
quase nada as mortificações que nos impomos diretamente, e
insistindo sobre a aceitação daquelas que nos sobrevêm
espontaneamente da vida em comum, e das que resultam da nossa
índole.

“Pequenos atos cotidianos de caridade, uma dor de cabeça ou de


dentes, um resfriado, exigências do marido ou da mulher, o quebrar
de um copo, o desprezo, o mau humor, a perda de uma luva, de um
anel, de um lenço, o incômodo de, às vezes, nos deitarmos cedo e
nos levantarmos de madrugada para rezar, ou comungar, certo
respeito humano quando praticamos atos de devoção em público,
enfim, todos esses pequenos sofrimentos, se forem recebidos e
abraçados com amor, agradam extremamente à bondade divina, a
qual prometeu que, em troca de um copo d’água dado de boa
vontade, receberíamos um oceano de felicidades” (18)…
***
É sobretudo no sofrimento aceito que o amor se manifesta. Isto
também é tradicional na espiritualidade cristã, e baseia-se no
exemplo do próprio Cristo. É um dos pontos principais do
cristianismo. Todos os santos amaram, abençoaram e procuraram o
sofrimento.

São Francisco de Sales foi, sem dúvida, um dos que menos o


procuraram. Fiel ao seu sistema geral, contenta-se em deixá-lo vir,
aceitando-o e abraçando-o amorosamente quando se lhe apresenta.
Não parece ter sido muito tentado a praticar a renúncia heroica, mas
um tanto esquisita, de um São Francisco de Assis. Quando se refere
aos santos que praticaram Coisas extraordinárias, como os Estilitas
ou padres do deserto, fá-lo concitando as almas a imitá-los apenas
o amor. A vida de todo dia oferece-nos ocasiões de provar o amor
que temos a Deus, além de bastantes contrariedades, para que seja
preciso procurarmos outras a nossa vontade.

“Vejamos o grande Jó: Ei-lo rei dos miseráveis da terra, assentado


sobre o monturo como sobre o trono de miséria, coberto de chagas,
de úlceras, de podridão, como outros tantos mantos reais a
ostentarem a magnificência de sua realeza, tão abjeto e abatido,
que, se não tivesse falado, não teria sido possível discernir se era
um homem reduzido a um monturo ou se o monturo era uma
podridão em forma de homem. Ora, ei-lo, digo eu, o grande Jó que
exclama: Se recebemos os bens das mãos de Deus, por que não
receberemos Dele, também, os males? Que grande amor e
confiança manifestam estas palavras! Ele julga, Teótimo, que foi das
mãos de Deus que recebeu os bens, testemunhando que não os
estimará só porque eram bens, mas sobretudo porque provinham da
mão do Senhor. Assim sendo, conclui que devemos suportar
amorosamente as adversidades, visto como procedem da mesma
mão do Senhor, igualmente amável quando distribui aflições e dá
consolações. Os bens são recebidos de boa vontade por todos, mas
quanto a aceitar os males, isto só pertence ao verdadeiro amor que
os preza só porque são amáveis em virtude da mão que os dá” (19)

Jó representa a perfeição tal qual aparecia a São Francisco de
Sales. Rico, agradeceu a Deus, fez bom uso das riquezas, mas
conservou-as. Pobre, agradeceu igualmente a Deus. Agradece
sempre, porque tudo quanto lhe acontece é mandado por Deus,
mas não procura o sofrimento. Sua santidade consiste nessa
conformidade fiel, constante, imutável, a respeito de tudo.

A santidade do tipo de Jó não daria ao mundo um São Francisco de


Assis, ou uma Santa Catarina de Sena, um Santo Antônio, o
Eremita, ou um São Bento, nem muitos outros grandes Santos, que
dão glória à Igreja… Não daria nem uma Santa Joana de Chantal…
E isto prova que não devemos tomar ao pé da letra o que diz São
Francisco de Sales, quando prega a simples submissão às
circunstâncias. Na vida de Santa Chantal, viúva com quatro filhos
pequenos a educar, e grandes bens a administrar para eles, essas
não pareciam destiná-la a ser religiosa e fundadora de Ordem.

São Francisco soube descortinar nela a vocação extraordinária,


soube aceitar a responsabilidade de levá-la a deixar a via comum e
induzi-la a uma iniciativa audaciosa, que nem todos aprovavam.

Este fato, o mais importante de sua vida, — porque a fundação da


Visitação foi a sua grande obra; — mostra o alcance de sua
admiração pelo santo homem Jó. Aconselha-nos habitualmente a
procurarmos a perfeição pela simples aceitação das vicissitudes da
vida; o amor prova-se pela docilidade com que se acolhe a vontade
divina, e esta se manifesta pelas circunstâncias. Mas para certas
almas privilegiadas o chamamento divino se manifesta de modo
extraordinário, e essas devem ser tratadas também de modo
excepcional.

São casos raros, porém. Fora deles, a direção de São Francisco de


Sales fica uniformemente ligada à fidelidade muito atenta ao serviço
de Deus, segundo o estado. Cada um se abandone ao amor,
tratando tudo mais como meros acidentes, que servem unicamente
para o manifestar ou exaltar.
***

Outro ponto importante da espiritualidade salesiana é certa


indiferença pelas coisas de pouca monta. Ainda aqui, São
Francisco de Sales reage contra um estado de espírito que a vida
religiosa suscita quase necessariamente. Sendo vida de
comunidade, acarreta bom número de regras, que constituem, de
certa forma, as convenções da vida religiosa. Tais hábitos são
indispensáveis para manter a ordem na vida comum. Mas como
constituem a norma exterior da vida, e como o homem é propenso a
se deixar fascinar pelo exterior, existe um perigo contínuo dessas
práticas exteriores — atitudes, gestos, fórmulas, — serem tidas
como o essencial da vida prática. Os superiores, mestres de
noviços, diretores espirituais de religiosos e religiosas, não deixam
de chamar a atenção para esse perigo.

É perigo maior ainda para as pessoas do mundo que, tendendo a


modelar-se nos religiosos, só lhes percebem a vida exterior. Assim,
a fim de induzi-las a uma perfeição interior, é necessário frisar a
pouca importância das práticas exteriores. São Francisco de Sales
se distingue neste ponto entre todos.

Não despreza, entretanto, a ascese tradicional. Adota todos os


hábitos que as eras cristãs nos transmitiram; tudo se encontra em
seus livros e nas suas cartas: oração à hora fixa, segundo um
método, exame de consciência, mortificações, jejuns, disciplina e
tudo mais; mas tudo tratado de passagem, e de modo a fazer sentir
que não é o essencial.

Incute assim em suas penitentes um espírito de liberdade, que as


torna muito dóceis nas mãos de Deus. Liberdade dos filhos de
Deus, que é liberdade em relação ao mundo e submissão em
relação a Deus.

Encontrando por toda parte meios de praticar o amor divino, o


discípulo de São Francisco de Sales torna-se independente das
circunstâncias. Que importa se a vida o favorece, se o cumula de
bens e de honras, ou se o aniquila, o engolfa no sofrimento, na
miséria, na enfermidade? Por toda parte, e sempre, verá em tudo o
amor divino e amará a Deus no mundo que o reflete.

Ninguém melhor que ele soube realizar na vida cristã esse


desapego das criaturas que o estoicismo antigo havia pregado, mas
de um modo duro e desesperador, porque não estava preso ao
amor. Pelo desapego, São Francisco de Sales desprende-se do
terrestre para se unir ao divino. Aparece, então, radiante de alegria.

O discípulo de São Francisco é também inteiramente desapegado e


verdadeiramente independente. Essa independência, porém, não
traz consigo excentricidade alguma. Esse desapego não leva a
desprezar os hábitos legítimos do mundo, mas a dominar-se sem
dificuldade, porque tudo lhe é indiferente.

“A devoção não é mais que uma agilidade e vivacidade espiritual,


por meio da qual a caridade opera em nós, ou nós por meio dela,
pronta e afetivamente” (20)…
Mas “deverá ser praticada diversamente pelo fidalgo, pelo
aristocrata, pelo operário, pelo servo, pelo príncipe, pela viúva, pela
casada; será ainda necessário ajustar a prática da devoção de
acordo com as forças, os negócios e os deveres de cada qual” (21).
O devoto salesiano estará, pois, à vontade no mundo, e não se fará
notar por nenhuma anomalia; pelo contrário, seu próprio desapego o
induzirá a dobrar-se com extrema facilidade aos hábitos em uso.
Não se deixará apegar a essa ou àquela maneira de vestir-se ou de
pentear-se; porque era moda antigamente, nem tão pouco há de
querer a devota salesiana obrigar suas filhas aos usos do “seu
tempo”, quando estes sejam diversos dos de hoje…

São Francisco de Sales fica sendo assim, perante a história, o


inventor do devoto que dança, que se veste bem, que gosta do
progresso, o inventor da devoção amável. Na realidade, nada
inventou. Na Introdução à Vida Devota, ele mesmo lembra o
exemplo de Santa Isabel da Hungria, que dançava, “nas reuniões de
passatempo”. Esse gênero de devoção fica, todavia, ligado ao seu
nome, porque ele soube expor o seu método de maneira
encantadora e com maestria definitiva.
Mas essa facilidade em se dobrar aos usos provém da liberdade de
espírito, e não a estorva. O devoto salesiano torna-se independente
deste mundo, cujos usos aceita, sabendo, no entanto, libertar-se
deles quando refletem preconceitos que viciam o espírito do mundo.

Esse espírito do mundo põe num mesmo plano os hábitos


mundanos e a vontade de Deus. Faz desses hábitos, por mais
artificiais e passageiros que sejam, um absoluto que ninguém pode
transgredir. Impõe a tirania da opinião, das convenções recebidas.
Aqui o discípulo de São Francisco de Sales mostra o que é a
liberdade dos filhos de Deus.

Admite, sem dificuldade, os costumes legítimos, adapta-se à vida


que deve levar no meio em que o colocou a divina Providência;
veste-se como os outros se vestem, emprega as mesmas fórmulas
de polidez, aceita as mil e uma regras que a sociedade prescreve,
mas aceita-as num total espírito de liberdade, sem apego,
respeitando-as só enquanto são respeitáveis. Quando, porém, as
convenções sociais se opõem à vontade divina, o discípulo de São
Francisco de Sales despreza-as logo, e sem pesar, porque,
evidentemente, o seu coração não lhes tem o menor apego.

***

A santidade assim formada nas almas por São Francisco de Sales


é, à primeira vista, insignificante. Chegado ao fim da vida, os
cônegos de Annecy, que tão bem o haviam conhecido, admiravam-
se ainda de sua fama de santidade, pois não viam nele nada de
extraordinário.

Mas quem dele se aproxima sente um ardor suave que chega sem
ruído. É um tanto semelhante a esses apartamentos modernos, cuja
iluminação indireta, com lâmpadas escondidas cá e lá atrás das
molduras do teto ou dos lambris das paredes, chega de todo lado,
sem percebermos donde vem a luz. Assim também com São
Francisco de Sales, o amor penetra por todo lado, está em tudo e
em toda parte; é um movimento do coração que derrama, sobre
toda a vida, luz e calor em partes iguais. Nenhuma luz é mais clara,
nem mais branda; nenhuma chama aquece mais, nenhuma queima
menos.

Amar a Deus igualmente em todas as coisas. “Ele não se desviou


da regra comum”, diz Santa Joana de Chantal, ao depor no
processo de canonização, “mas de modo tão divino e tão celeste
que nada, em sua vida, era tão admirável como isto”. Quanto mais
nos aproximamos dele, melhor o conhecemos, mais queremos
imitá-lo, e mais compreendemos o que há nele de desprendimento
total, de amor heroico, de dom completo nesse simples abandono,
perpétuo, constante, de cada momento, de cada ação, de cada
circunstância, sem retorno sobre si mesmo, sem busca de
satisfação própria.
“A tentação seria tomá-lo por um homem qualquer, bom, calmo,
dócil e honesto, mas cuja virtude nada tem de extraordinário; se,
porém, lhe seguirmos os passos, eis que de repente nos inunda viva
luz: sua santidade, sem nos dar nem avisos nem provas, envolve-
nos bruscamente” (22)
É isto mesmo. Envolve-nos. Não nos ofusca, não nos esmaga, mas
envolve-nos.
Um Primoroso Espírito de Santidade
Desprendimento dos Afetos
Este estudo não será muito longo. Retrata, no entanto, um aspecto
importante, um dos sinais mais sintomáticos, da perfeição apurada
de São Francisco de Sales.

Perfeição aprimorada. A beleza perfeita, a arte delicada não é


aparatosa. Nada mais sóbrio que a Vênus de Milo, o Partenão ou a
Gioconda. Nada mais simples que os Evangelhos. É verdade que
existem belezas de ostentação: Miguel Ângelo, Rubens são
criadores de beleza. São Francisco de Sales não pertence a esta
escola.

Sua virtude não chama atenção. Gomo ele, é discreta. Como ele,
homem de boa sociedade, reveste a mesma distinção. Mas ao
observador atento a virtude de São Francisco de Sales revela-se tão
cheia de firmeza, tão aprimorada e tão harmoniosa, que se pode
dizer que ele é um dos santos mais virtuosos.

Todos os santos amaram heroicamente a Deus. Todos praticaram,


de modo eminente, determinadas virtudes. Muitos apresentam
lacunas. Há neles, na formação do caráter, brechas sobre as quais o
amor de Deus lança um espesso véu, mas que subsistem…

São Francisco de Sales é como uma bela tábua de madeira


preciosa, escolhida a dedo, bem esquadriada, bem aplainada, bem
envernizada, tão bem polida, que os olhos não percebem um único
nó, nem a mão encontra nenhuma aspereza. É como belo estofo,
simples à primeira vista, mas de um colorido e tecido tão
combinados que o olhar fica preso.

Essas virtudes discretas, mas bem trabalhadas, explicam a


irradiação do santo. O desapego dos afetos é uma virtude tão rara e
tão heroica, que poucos santos a souberam praticar até ao fim.
***

Há um desapego dos afetos que consiste em renunciar à família,


aos amigos, às ambições do mundo, para se consagrar a Deus.
Este desapego é bastante frequente, e, sobretudo entre os
missionários, muitas vezes radical.

Os afetos de que o religioso se desapega são, então, substituídos


por outros, que raramente desaparecem: apego à ordem religiosa a
que pertence, apego à obra a que se dedica.

Mas será mesmo necessário desprender-se deles? Certos afetos


são de obrigação. Se o religioso, ao entrar para o convento,
renuncia à família, não pode renunciar, todavia, a querer bem aos
seus, aos pais que o puseram no mundo e o educaram, aos irmãos
e irmãs que foram seus companheiros de infância e a que ficam
ligados pelas afinidades de sangue e de educação.

Deve, igualmente, querer bem à Ordem religiosa para qual entrou.


Escolheu-a, porque lhe pareceu a melhor. É lícito e natural que lhe
dedique admiração e amor maior do que a qualquer outra;
consagrou-lhe a vida, e o instituto religioso é para ele uma nova
família. É justo que a ela se apegue, e deve apegar-se. Cada qual
deve também amar a obra a que se dedica; entusiasmar-se por ela;
dela orgulhar-se, pois só assim há de trabalhar bem… Então qual é
o desapego que se há de neles praticar?

***

O desapego de si próprio. Devemos amar tudo que, em nós, se


relaciona com a obra da nossa vida. Devemos amar porque Deus
quer que a amemos, porque é ali que provaremos a Deus o nosso
amor. Devemos amá-la somente por este motivo, e não por outro
qualquer. Devemos amar a Deus nisso tudo, amar a Deus nos
nossos, na obra que realizamos. Devemos, pois, amá-los como
Deus quer que os amemos, e na medida em que o quiser.
Isto significa amar a esses bens em espírito de verdade, amá-los
tanto quanto merecem, não mais, como bens subordinados a outros,
que têm por objeto contribuir para o bem geral dos homens e a
maior glória de Deus.

Mas o amor próprio, o apego básico que temos a nós mesmos, o


desejo intuitivo e ávido em nós de querermos ser modelos de
bondade, de verdade, de beleza, nos leva com violência, quase
irresistível, a fazer de tudo aquilo que amamos outros tantos ídolos.

O bom cristão, em busca de humildade, chega a engolfar-se no seu


nada. Mas o orgulho e o amor próprio apoderam-se de novo dele,
quando já não se trata mais de sua pessoa, e sim daquilo a que se
afeiçoara.

Quem viaja sozinho de trem, olha com desconfiança e antipatia para


o intruso que pretende entrar no seu compartimento. Este, no
entanto, entrando, instala-se, e logo se estabelece um laço de
solidariedade e simpatia entre os dois viajantes, os quais, por sua
vez, não veem com bons olhos qualquer outro que a eles se queira
juntar…

Essa comediazinha da vida cotidiana repete-se e reproduz-se em


todos os setores. Da comunidade de interesses nasce a estima e a
simpatia. Isto é, aliás, legítimo, se não ultrapassa as medidas,
porque então provoca oposição ou desprezo pelos outros. Os que
exercem uma mesma profissão tornam-se solidários uns com
outros, e ofendem-se se alguém insultar sua profissão, ou
simplesmente opinar que qualquer outra lhe possa ser superior. Os
habitantes de um país constituem um bloco contra o estrangeiro,
não só para defenderem sua independência ou suas tradições, mas
também para sustentarem que o seu país é o mais belo do mundo;
o mesmo se dá com os membros de uma família.

Encontramos igual defeito nos que fazem profissão de virtude. Em


geral, os cristãos devotos que trabalham nas boas obras não
toleram a menor crítica àquela que patrocinam. Sendo deles,
forçosamente há de ser perfeita, e enervam-se contra quem se
atreve a considerá-la com suas falhas humanas. Os religiosos não
se limitam a amar a Ordem a que pertencem, acham-na melhor que
as outras, e o clero secular participa do mesmo defeito. Basta isso
para indicar a origem da eterna rivalidade entre o clero secular e o
regular.

A mesma fraqueza existe na concorrência entre obras de caridade e


obras apostólicas. Veem-se apóstolos admiráveis, prontos a
sacrificarem a vida até o último suspiro pela salvação das almas,
que irritaram-se interiormente quando outros se dedicaram com
igual êxito a um mesmo apostolado.

Outros ainda chegarão ao ponto de não tolerar o bem que se faz


sem eles, e não hesitarão em prejudicar uma obra que lhes parece
fazer concorrência a sua.

“As filhas da Visitação falarão sempre com muita humildade da sua


pequena Congregação, e colocá-la-ão, no que se refere à honra e à
estima, abaixo de todas as outras; dar-lhe-ão, todavia, preferência,
no que diz respeito ao amor. Admitamos que as outras
Congregações sejam melhores, mais ricas e mais excelentes que a
nossa, mas nem por isso serão mais amáveis nem mais desejáveis
para nós, porque nosso Senhor quis que fosse esta a nossa pátria,
a nossa barca, e que o nosso coração estivesse unido a este
Instituto…”
***

São Francisco de Sales conseguiu, de fato, desvencilhar-se dos


afetos desordenados. Estará pronto a abandonar o que lhe toca
mais de perto, até sua obra de predileção, logo que julgue amar nela
algo que não seja da vontade de Deus.

“Eu sou bonachão por índole… Quero pouca coisa, e o que quero,
quero-o muito pouco, não tenho quase desejos, e se tornasse a
nascer, não os teria, de todo”
Talvez a natureza contribuísse de certa forma para isso; mas, sem
dúvida, o sobrenatural dominava, porque, para quem tem uma alma
ardente, é heroísmo amoldar-se sempre aos outros, sem nunca
procurar impor suas ideias.

Era, pois, de extrema condescendência no dobrar de sua opinião e


vontade, à opinião e vontade dos outros. O plano primitivo que
formara para a Visitação era diferente. Queria que as Irmãs
visitassem, às vezes, os pobres. Era uma inovação, pois até então
as Ordens religiosas de mulheres eram enclausuradas, ficando as
obras de caridade reservadas às Ordens Terceiras e confrarias,
cujos membros viviam no mundo. Quando se estabeleceu, em Lião,
a segunda casa da Visitação, o arcebispo recusou-se a aceitar este
artigo da Regra. O fundador, depois de algumas tergiversações,
acabou por se dobrar, e a visita aos pobres foi suprimida. Esta
concessão foi muito criticada na ocasião, e ainda o é hoje em dia.
Manifesta, porém, no mais alto grau, a virtude de desprendimento
do nosso santo.

Renunciar ao bem que se julga poder fazer, parece-me ponto


culminante do desapego. É fazer constantemente o bem que os
outros nos pedem, fazer o que eles desejam e não o que nós
mesmos desejamos.

Nisto está um dos principais fatores da atração que exerce São


Francisco de Sales.

O entusiasmo das senhoras por M. de Genève (como era chamado),


e a simplicidade com que as acolhia, chocava a certos espíritos.
Alguém o censurou asperamente:

“Não sei por que motivo o procuram tanto, pois não vejo nada de
mais nas palavras que lhes dirigis”
A que ele respondeu de bom humor:
“Será então pouca coisa deixá-las dizer tudo que querem? Talvez
seja por este motivo que me procuram tanto…”
Já vimos, com efeito, que ele não era dado a falar muito. Era
reservado, exteriormente, mas duma condescendência inesgotável.
E essa condescendência provinha de que não procurava o que
agradava a ele, e sim o que agradava aos outros, e nem sequer o
bem que ele desejava, mas sim o bem que Deus desejava. Chegou
mesmo a fazer, de modo habitual, distinção entre o bem que ele
desejava, e o que era da vontade de Deus, distinção que supõe
prodigioso domínio sobre si mesmo.

A verdade é que ele conseguira extinguir todo desejo próprio, a não


ser o de servir a Deus.

***

Tendo Gerardo de Groot objetado a João Ruysbroeck que alguns


textos dos seus livros davam ideia de panteísmo, respondeu-lhe
este:

“É impossível, porque tudo que escrevi me foi ditado pelo Espírito


Santo”
Exemplo de candura um tanto ingênua, de certas almas, todavia
muito sobrenaturais. A quantos místicos, em seus êxtases, não
aparece sua obra como o que há de mais importante sobre a terra!

Em São Francisco de Sales não se encontra nada de parecido. Ele


é somente humilde, isto é, convencido do seu nada diante de Deus,
mas é modesto, isto é, convencido da sua nulidade perante os
homens. Não se julga infalível, não pensa que o bem que procura
fazer seja superior ao que fazem os outros; nem que aquilo que ele
idealiza seja precisamente melhor que aquilo que foi concebido por
outrem. E se ama aos seus e às suas obras, se ama a sua diocese
ao ponto de recusar-se categoricamente a deixá-la, não é para se
engrandecer, é unicamente porque se trata da família, das obras, da
diocese, em que a Providência o colocou. O que ama neles é
evidentemente a mão de Deus.

O amor de Deus era nele, em verdade, puro e livre de toda


imperfeição.
São Francisco de Sales na Visitação
Advertência
A história desta tentativa é semelhante à de outras muitas. O autor,
durante um santo retiro que fez, leu as Conferências espirituais de
São Francisco de Sales, e ficou extasiado pelo encanto de vida
cristã que delas emana. Anotou algumas passagens, redigiu umas
reflexões. Notas e reflexões tomaram impulso e se desenvolveram.
São as páginas que o leitor tem debaixo das vistas. Admirado, o
autor mostrou o seu trabalho a alguns amigos, que o convenceram
de publicá-lo.

Decide-se, pois. Não ignora os defeitos do seu trabalho. Objetaram-


lhe que a matéria não estava bem dividida, que a introdução não
estava devidamente ligada ao resto, que faltava a conclusão.

Reconheceu a justeza destas críticas e procurou corrigir o trabalho.


Verificou que, ao querer aperfeiçoá-lo, que tirava precisamente o
que lhe parecia melhor, — a espontaneidade do natural.

O labor intelectual não fora suficiente para refazer o que concebera


na oração. Fique, pois, o leitor advertido. Isto não é um tratado de
perfeição cristã, ainda menos um livro de história. São seis meses
de vida espiritual, em união íntima com o grande Doutor que é São
Francisco de Sales, que se escrevem nestas páginas.

E, justamente, o que tranquiliza o autor no momento em que ele as


apresenta ao público com seu nome, é que quem vai falar, quase
todo o tempo, é o próprio santo. Assim como na ordem vegetal, as
estacas desaparecem sob a exuberância da folhagem, e das flores
que suportam, assim também o autor tem consciência de não haver
colocado, por sua conta, senão algumas forquilhas para escorar,
emoldurar e dar realce à doçura das Conferências espirituais.

Bruxelas, 27 de junho de 1919.


São Francisco de Sales na Visitação
Os hagiógrafos pintam muitas vezes os santos como se fossem
figuras de cera, uniformes e impessoais, com um sorriso sem vida,
mais anjos que homens — anjos diferentes, aliás, dos verdadeiros,
que possuem, cada um, sua personalidade própria e distinta, —
anjos de cromo, tais quais os materializa a imaginação popular. Por
que razão será?

O santo torna-se, então, um homem que não é mais homem, que


não sente mais o que sentem os homens, que vive perdido, não se
sabe onde, nem em que nuvens, num mundo inacessível aos
outros. Os hagiógrafos que escrevem deste modo têm o desejo
louvável de edificar o leitor. Enquanto contam muita coisa magnífica,
exaltando os seus heróis, levam pouca gente a imitá-los.

Não ousaríamos caminhar nas pegadas de seres que não tocam


mais no solo, quando nós estamos presos a ele. Seria melhor se
ficássemos menos edificados e mais animados… Nos tempos
apostólicos dir-se-ia que a Igreja era composta de santos, enquanto
que hoje são poucas as almas simplesmente virtuosas. Como
cogitar, então, de tornarmos a este idílio dos primeiros séculos?
Admiramos, sem dúvida, tais santos, e tanto mais quanto mais
distantes deles nos achamos, mas imitá-los é outra coisa!…
Pessoas que se tornam santas de repente, no dia mesmo de sua
conversão!… Vemos através da história uma decadência que nada
detém. Não é de pasmar? Nas ordens religiosas incipientes, que
fervor! Os primeiros companheiros de São Francisco de Assis, as
companheiras de Santa Teresa, as primeiras Madres da Visitação! É
de estranhar que não sejam todos beatificados… E depois, vejamos
as religiosas de hoje, de certo boas como o pão, mas que, nem por
isso, deixam de ter os dois pés na terra.

Quando nos arriscamos nas regiões pouco exploradas das primeiras


fontes da história, ficamos atônitos. Mas ao abrirmos as Epístolas de
São Paulo… desaparece a ilusão… Alguns desses coríntios, que se
reuniam para o banquete eucarístico, traziam consigo um excelente
jantar, banqueteavam-se à vista dos outros, oprimidos de fome! Era
gente grosseira, folgazã. E os pobres cristãos da epístola de São
Tiago, a quem ele trata de assassinos, invejosos, adúlteros —
naquele tempo, atacava-se mais pronta e violentamente do que
hoje, — parecem merecer essa indignação pela avidez com que
queriam converter os ricos israelitas… com o fim de recolherem
grandes somas, porque os neófitos costumavam entregar seus bens
à comunidade, para serem distribuídos entre os membros.

É claro que não eram todos santos. Pelo menos nisso, aquele
tempo assemelhava-se ao nosso…

Entre eles, no entanto, emergem algumas figuras possantes. São


Paulo, por exemplo. Nele, de certo, tudo palpita santidade, cheio de
Cristo, ele a Cristo irradia; Jesus é toda a sua vida. Mas como está
ele longe das nossas figuras de cera! A tentação seria perguntar se
há pecador mais humano do que ele? Ama, sofre, luta, como nós,
isto é, dez vezes mais que nós. Sua vida não é atrofiada, mas
decuplada; é mais intensa e mais ardente que a nossa. Ri-se e
regozija-se com os que ama, mas sabe chorar com eles. Abramos
suas epístolas e veremos que seu sofrimento é grande, já não pode
mais, e suplica a Deus que o livre dele, mas submete-se à vontade
do Mestre. “Basta-te minha graça”. Em todas as suas palavras
sente-se o frêmito da natureza que se revolta. Como está perto de
nós, apesar de estar tão longe, nas alturas da união divina. Como se
conserva humano, embora divinizado, a ponto de dizer que já não
vive, e sim Cristo nele! Como suas epístolas são mais humanas que
a literatura latina do seu tempo, afetada e aparatosa! Basta
comparar seus testemunhos de afeto com as saudações pomposas
de Plínio. Não lhe falta absolutamente nada dessa espontaneidade
e desse imprevisto que são a paixão do nosso século.

Assim, já ganhamos um segundo ponto. Se nem todos os primeiros


cristãos mereciam ser canonizados, em compensação os que iam
ter este privilégio não deixavam, unindo-se a Cristo, de ser homens,
muito pelo contrário.

E um vislumbre de esperança surge agora em nossa frente.

Continuando as investigações, vejamos mais de perto os primeiros


religiosos e as primeiras madres, os companheiros de São
Francisco de Assis, e os primeiros dominicanos, os carmelitas e as
cooperadoras de Santa Joana de Chantal; levantemos-lhes os véus,
penetremos nos claustros, sondemos o íntimo da sua vida
doméstica. Que encontramos? Homens bons, mulheres fortes e
uma ou outra alma de escol. Quantas auréolas que se extinguem!

Não que os queira diminuir, antes pelo contrário. A mim, parecem-


me mais belos assim, porque são homens de fato. Religiosos que
são homens, que têm as mesmas dificuldades que nós, as mesmas
paixões naturais, que se querem dar a Deus, e que lutam, não é isto
muito mais sublime do que todos os anjos de cromo?

Mas é que sendo também homens, participam dos defeitos dos


homens, e nem todos atingem esse heroísmo que a Igreja canoniza.
Existem, até entre eles, almas fracas; algumas se abrem menos ao
ideal e não se deixam arrebatar. Numa palavra, é tudo como hoje,
— o que vemos, o que vivemos, — e não constitui isto sumo
conforto? Alguns santos, também, não se santificaram logo, mas à
força de lutas e de persistência. Há santos que se apresentam
belos, porque são fortes e não insípidos, porque são almas
valorosas. São mais dominadores e agrada-nos vê-los tão humanos
no seu sobrenatural, com as raízes lançadas num solo também
humano.

Mais ainda. Esses santos, grandes e verdadeiros, não deixam por


isso de ter defeitos. Observemo-los de perto e veremos que
continuam a ser de carne e osso. Conservam os olhos fitos em
Deus, mas os dois pés estão na terra e se estes os levam onde os
conduz o amor de Deus, vão normalmente, pondo um pé adiante do
outro… Às vezes, se vierem a enganar-se cometerão uma “gafe”,
como os outros, — e ao escrever isto, ocorrem-me diversos
exemplos. Falam, como qualquer outra pessoa, do tempo e da
chuva… Imaginaremos um santo dando os cem passos depois do
jantar? Por que não? Como os outros, precisa também fazer a
digestão. Afinal, só no céu aparecerão as auréolas.

Não haja, porém, dúvida: não pretendemos negar o prodígio nas


vidas dos santos. O estado de união excepcional com Deus a que
chegaram, os milagres que algumas vezes operam, são outros
tantos fatos incontestáveis. São, entretanto, até certo ponto, coisas
secundárias. A santidade não consiste em êxtases e em milagres.
Tudo que apresenta, assim, um caráter extraordinário, não passa,
por assim dizer, de acidentes, de graças que Deus concede
algumas vezes, outras não, mas que não formam de modo algum o
essencial da santidade. Finalmente, embora sejam estes os fatos
que impressionam a imaginação, não são, na realidade, os que mais
nos devem interessar. Devemos, de preferência, estudar aquilo em
que os santos mais se parecem conosco, o caminho pelo qual,
partindo do estado em que nós nos achamos, sem outros meios
senão os que estão ao nosso alcance, atingiram às alturas em que
os veneramos. E como nós nos sentimos profundamente, direi
melhor, integralmente humanos, convém, antes de tudo,
compreender bem que, neles, o sobrenatural não aniquila o homem,
mas transforma-o elevando-o. A palavra o indica: sobrenatural e não
contranatural. Jesus não veio destruir a humanidade, mas salvá-la.

Todas essas pálidas figuras de legenda não representam


absolutamente o que o Cristo veio fazer, porque Cristo é vida e eles
são puras quimeras. A natureza humana foi remida, purificada,
elevada, transfigurada, divinizada, mas sempre permaneceu
humana, assim como Jesus, o modelo único, o Verbo Encarnado, a
segunda pessoa da Santíssima Trindade, é ao mesmo tempo
homem, e homem verdadeiro, com alma e corpo e tudo que é do
homem, exceto o pecado. Os santos são os seus amigos mais
íntimos; ser santo é assemelhar-se a ele, nada mais. Como, então,
deixariam de ser homens!…

Nunca me esquecerei do prazer que senti ao ler, um dia, que São


João Crisóstomo era tão nervoso que andava de cá para lá, quando
trabalhava. Bem sei que este sentimento não é lógico, e que o
menor silogismo demonstraria logo o seu pouco valor. E tenho
certeza, entretanto, de ser compreendido.

Muito me consola também saber que Santo Tomás — o grande


Santo Tomás! — tinha um medo pueril de trovoadas. E o bom rei
São Luís não admitia, depois do jantar, discussões sérias, pedindo
que cada um se divertisse, contando “alguma pilhéria ou anedota
jocosa”… E São Carlos Borromeu, que dormia durante o sermão.
Não é delicioso?

Mas todas estas reflexões em torno do assunto sério entre todos,


são apenas como que uma introdução para um livro sobre o qual eu
gostaria de escrever algumas páginas, livro encantador, espargindo
o perfume da verdadeira santidade: as Conferências Espirituais de
São Francisco de Sales. Trata-se das conversações
despretensiosas, no locutório da primeira casa da Visitação, em
Annecy, entre o bom Bispo as primeiras religiosas. Elas faziam
perguntas, e ele dava as respostas. Anotadas estas logo em
seguida pelas Irmãs tais quais eram dadas, conservaram sua
espontaneidade, como o espelho em que se reflete graciosamente
todo o fervor da comunidade nascente e a poesia desta vida em
Deus. Vida verdadeira, vida bem humana, mas banhada pelo
sangue preciosíssimo do Redentor e acompanhada também de sua
prosa, de suas fraquezas, o mais das vezes tão simpáticas, de suas
ingenuidades e de seus arroubos, enfim, todo aquele não sei quê,
que é a vida real, humana e divina.
São Francisco de Sales e Santa Joana Francisca de Chantal

O bom Pai e as caras Filhas


Em 1610, São Francisco de Sales — ele era então conhecido como
Monsieur de Genève — fundara a Ordem da Visitação, instalando a
baronesa de Chantal e três companheiras numa pequena casa, às
portas de Annecy. A Congregação realizava o seu sonho de há
muitos anos: Criar uma Ordem que pusesse a perfeição da vida
religiosa ao alcance de todas as almas que, extremamente
desejosas de se retirarem do bulício do século para viverem só para
Deus, estavam impedidas “de o fazer por não serem bastante fortes,
ou terem uma compleição pouco sadia, ou não estarem na força da
idade” (23). Naquele tempo, as Ordens femininas eram todas
contemplativas, e as casas de observância regular, austeras. A
Idade Média, que mal acabava, não compreendia a vida religiosa
sem os rigores da penitência física, tornando-se assim o claustro
inacessível às pessoas débeis. São Francisco de Sales vinha
cogitando, havia muito, o modo de fornecer a estas pessoas um
convento em que “se pudessem entregar à perfeição do Amor
divino”.
A Visitação de Santa Maria foi esta a sua obra de predileção.
Fundara, de propósito, o convento perto da sua casa. Nada se
passava aí que não o soubesse, e sobre o qual não opinasse.
Qualquer minúcia, por pequena que fosse, merecia sua atenção. À
medida que os casos se apresentavam, ele os ia resolvendo,
determinando assim, pouco a pouco, todas as regras, sem que nada
lhe escapasse.

Vejamos, por exemplo, um extrato da crônica da primeira casa da


Galeria (24):

“Minhas caras filhas, é preciso ter sempre grande respeito umas às


outras. Sei que os Padres Jesuítas, embora se encontrem cem
vezes ao dia, tiram cada vez o barrete. Quanto a vós, quando vos
encontrardes, inclinareis a cabeça; mas, a fim de vos conservardes
alheias às modas do mundo, fareis aos seculares apenas um
cumprimento. Está bem assim, minhas filhas? E todas responderam
que sim”
Quando estava em Annecy, ia vê-las quase todos os dias. Mesmo
com mau tempo, chuva ou neve, não deixava de visitá-las duas ou
três vezes por semana, ou mais (25). Chegava a pé, sem dar
importância à lama. Celebrava a santa Missa, confessava as Irmãs,
dirigia-as, determinava as práticas, e, quando lhe sobrava tempo,
reunia a comunidade. As Irmãs vinham pressurosas. Em poucos
meses, dobrara o número e agora eram oito. Ele falava, ou, então,
elas o faziam falar.

Testemunha-o o exórdio de uma conferência feita doze anos mais


tarde, na Visitação de Lyon. A linguagem é a mesma. Ao entrar,
disse:

“Boa tarde, minhas caras filhas. Venho dizer-vos o meu último adeus
e entreter-me um pouco convosco, porque a Corte e o mundo me
furtam o resto. Enfim, minhas queridas filhas, é preciso partir; venho
despedir-me das consolações que até agora encontrei junto de vós;
que nos resta dizer? Nada mais, não é?”
E com certa malícia:

“É verdade que as mulheres têm sempre uma resposta a dar. É


melhor, porém, falar a Deus que aos homens”
Mas, queremos falar-vos a vós, para aprendermos a falar a Deus. O
amor próprio, respondeu ele, serve-se deste pretexto. Dizem-lhe:

“Vamos, então, e não usemos de prefácio. Sentai-vos, por favor,


porque as nossas Irmãs assim estão mal acomodadas”
Não se pode estar mais em família.

“Não falo agora como pregador, é uma simples conferência, em que


cada qual dá sua opinião” (26)
Com bom tempo, instalavam-se no jardim.

“No dia de São Lourenço, no ano de 1612, nosso bem-aventurado


Pai veio ver a nossa veneranda Fundadora, como sempre
acompanhado de padre Michel Favre, seu capelão, sem o qual
nunca entrava ali. As Irmãs desciam ao pomar da fonte e traziam-
lhe uma cadeira, colocando-a ao lado dos degraus que conduzem
ao jardim, debaixo da latada e todas sentavam-se no chão, em volta
dele”
Ei-las, essas irmãzinhas, sentadas em círculo sobre a relva, ao
redor do bom bispo!
Outras vezes reuniam-se na cela da Madre de Chantal.

“Como, naquele tempo, ele estivesse a escrever o livro do Amor de


Deus, nossas primeiras Madres perguntavam-lhe o que havia escrito
desde a sua última visita” (27)
Tendo, entretanto, aumentado o número de vocações, as Religiosas,
em dois meses, mais ou menos, chegaram a vinte. A casa da
Galeria, já não as comportando, elas tiveram de se mudar.
Empilhando os móveis no barco do lago, foram instalar-se no centro
da cidade, numa casa mais espaçosa e mais próxima do paço
episcopal. E as visitas do bispo continuaram no locutório do
mosteiro. Era um local um pouquinho mais apropriado — e ainda
assim!…

O convento de Annecy em nada se assemelhava aos grandes e


pomposos claustros beneditinos. O locutório dava sobre a rua, e o
barulho que vinha de fora obrigava o bispo a ser todo ouvidos.

“Que é, minhas caras filhas? Não ouço nada, pois as crianças fazem
tanta bulha na rua, que me impedem de ouvir vossas palavras” (28)
Isto lembra-me outra história, que relação não tem com esta, a não
ser que trata de crianças e de locutório, mas que cito assim mesmo,
porque me parece interessante. Um dia, entrando numa
comunidade, deixou a porta do locutório entreaberta:

“Bispo, disse-lhe a irmã rodeira, o vento que entra pela porta pode
fazer mal”
Levantou-se ele para fechá-la, mas voltou logo, dizendo:

“Há ali tantas crianças que olham tão satisfeitas para mim que não
tenho coragem de fechar-lhes a porta a cara”
Era ele verdadeiramente pai e elas suas “caras filhas”. As Irmãs
apreciavam o valor das suas visitas. A Madre de Chantal, quando se
ausentava, importunava-o com cartas.

“Peça-lhe, escreve ela à sua assistente, quando ele for aí com um


pouco de vagar, que fale à comunidade, se concordar, naturalmente,
— a fim de que possamos receber umas migalhas da abundância
das consolações que lhes dá” (29)
É que as religiosas tinham por costume redigir as conferências, que
depois circulavam pelas outras casas (30). A isto, devemos o livro
de Conferências Espirituais.
O bom prelado tomava parte em todas as festas da comunidade. No
dia de Reis, tinha sua parte no boIo, certa vez, tendo-lhe cabido a
faca por sorte, isso deu motivo a que exigissem dele uma “fala do
trono”. Prestava-se, aliás, de bom grado, a tudo: “Estou muito
satisfeito com todo nosso querido rebanho, com quem irei entreter-
me, porque minha Madre assim ordenou”, escreve ele a Santa
Chantal. Recebe de Deus graças especiais para lhes falar. Um dia,
foi pregar no convento das Clarissas.
“O padre Michel (seu capelão) disse-me ao sair, que lá eu quase
nunca falo como na Visitação. Ah! Não é porque não deseje muito
servir a esta boa companhia de servas de Deus, mas devo dizer que
a Divina Providência, que me dedicou à nossa querida
Congregação, me dá graças, particulares para o seu serviço” (31)
Gosta de repetir que seria feliz se fosse confessor de Santa Maria “o
que não mereço” e “dispensado de tudo mais”. Tendo ido a
Lyon, “mostrou desejo de ficar hospedado no quarto do padre Brum,
nosso confessor” (32). Insistimos em lhe dizer que ali ficaria mal
acomodado; respondia sempre que não, que ficaria melhor do que
merecia, e, além do mais, estaria mais perto de suas caras filhas. E,
como persistíssemos em lhe dizer que não ficaria bem ali, ele nos
disse:
“Estou bem demais, não vos aflijais, mas conservai a paz do
coração”
E acrescentou: “Estou percebendo que vos quereis ver livres de
mim; mas, por favor, deixai-me ficar acolá, e não vos preocupeis,
julgando que eu não esteja bem, pois em Annecy durmo num quarto
dez vezes mais frio do que este”, e acrescentando:
“Sinto satisfação, quando alguém me pergunta onde estou
hospedado, de poder responder que é em casa do jardineiro de
nossas filhas de Santa Maria” (33)
Vejamos agora o reverso da medalha.
“Um dia em que veio celebrar a Santa Missa — estávamos ainda na
casa da Galeria — tendo-se perdido a chave do coro, ele subiu para
a grande galeria, sem dizer nada, pôs-se de joelhos, e rezou as
orações preparatórias. Depois, como ainda não fosse encontrada a
chave, passeou para baixo e para cima, meditando, enquanto as
Irmãs iam devotamente espreitá-lo através das fendas da porta…”
Sempre que ele vinha ao mosteiro, elas faziam-lhe, como era
natural, uma infinidade de perguntas. Ele já falava que “as mulheres
têm sempre muito que dizer” e as conferências constam, na maior
parte, de respostas às perguntas, que às vezes eram muitas.
“Começarei a Conferência já que algumas perguntas me foram
feitas esta tarde, e sendo que duas se referem ao mesmo assunto,
destas não falarei ainda hoje. A outra foi… a terceira perguntava…;
a quarta queria… Mostrou-se em seguida nossa Madre desejosa
que eu falasse sobre a obediência; e como sua idade e maternidade
merecem consideração, resolvi começar o meu discurso tomando a
obediência por assunto” (34)
É sempre cheio de atenções para com a “nossa Madre”. Em Lyon,
pediram-lhe as Irmãs que fizesse uma conferência.

“Muito bem, disse ele, mas esperemos pela nossa Madre”


Quem manda é ela; quanto a ele, “não fala com caráter de
pregador”.
Às vezes, quando se trata de temas delicados, as noviças são
convidadas a se retirarem. Falando um dia sobre a votação para
admitir ou não as aspirantes à profissão, porque a Visitação é um
regime democrático e tudo lá obedece ao sufrágio universal, ele
disse:

“As noviças poderão assistir à primeira parte, mas quanto à


segunda, terão paciência de esperar até o próximo ano, quando a
repetiremos, se for preciso”
No meio do discurso, estando elas em silêncio, na esperança de
serem esquecidas, falou:
“Mas, antes de começarmos a segunda parte, retirem-se as irmãs
noviças, e peçam por nós, enquanto estivermos a tratar do outro
assunto” (35)
Imagino sempre, ao ler estas coisas, um sorriso bondoso, muito
paternal, com uma pontinha de malícia… Enfim, a conclusão:

“Ninguém tem nada a dizer? Que horas são? Já recitastes as


Completas? Quando pretendeis recitá-las? Ora, podeis ir, que já
estou com receio de ser causa de irregularidades. Demais, minhas
caras filhas, peço agora a nosso Senhor que vos abençoe. Deus vos
satisfaça todos os desejos e vos dê a sua santa paz. Amém” (36)
Com um sinal da cruz, separam-se. As Religiosas vão para o coro e
o bom Prelado dirige-se, por sua vez, aos seus aposentos.

Estamos longe da eloquência acadêmica e da devoção de maneiras


afetadas. Quem, pois, ousará ainda dizer que São Francisco de
Sales é insípido?
São Francisco de Sales apresentando a Regra para Santa Joana Francisca de Chantal

As palestras do bom Pai com as caras Filhas


Que estão eles a se contar, o Pai tão amoroso e as filhas tão
afetuosas? Não se encontram para trocarem palavras de carinho,
mas para trabalharem, — trabalho das almas — cujo primeiro e
principal objeto é tratarem do espírito próprio da nova congregação.
Se toda Ordem religiosa tem a mesma pretensão “de aspirar à
perfeição da caridade” (37), cada qual tem, além disso, o espírito
que lhe é particular, que constituirá “o meio de chegar a essa
perfeição”, e que certamente “difere conforme a Ordem”. A origem e
a razão de ser da Visitação dão-nos a conhecer facilmente o espírito
que lhe é particular: o “de profunda humildade para com Deus e de
grande mansidão para com o próximo”. Não invejemos, pois, o
brilho exterior das obras.
“As filhas da Visitação falarão sempre com humildade da sua
pequena congregação, e considerarão as outras como superiores a
ela no que diz respeito à honra e à estima; quanto ao amor, no
entanto, hão de preferi-la a qualquer outra. Concordemos que as
outras congregações sejam melhores, mais ricas, mais excelentes;
não, porém, que sejam mais amáveis nem mais desejáveis para
nós, porque nosso Senhor quis que esta fosse nossa pátria e nossa
barca, e que nosso coração se prendesse a este Instituto segundo o
parecer daquele a quem se perguntou qual era a mais agradável
morada e o melhor alimento para a criança, que respondeu: O
regaço e o leite de sua mãe; porque, embora existam outros
regaços e leites para a criança, não haverá, no entanto, nenhum
mais próprio nem mais agradável” (38)
“Noutras Congregações praticam-se rigorosas penitências corporais.
Nosso Instituto foi fundado para facilitar a entrada de moças e
senhoras enfermas ou de saúde franzina, que não são bastante
fortes para empreender, ou não se sentem inspiradas a seguir o
caminho das austeridades no serviço de Deus e união com Ele,
como fazem em outras Ordens religiosas. O espírito de mansidão é
de tal maneira o espírito da Visitação, que se alguém quisesse
introduzir nele mais austeridades, destruiria logo a Visitação” (39)
Não devemos, entretanto, confundir o sentido das palavras:
brandura não quer dizer tibieza.

“Todos os Padres antigos são de opinião que, onde falta o rigor das
mortificações corporais, deve haver maior perfeição interior”
Assim é que “todas as filhas da Visitação são chamadas a uma alta
perfeição e sua tarefa”, embora modesta, “é a mais alta e a mais
elevada que se possa imaginar” (40). Este espírito de mansidão
será, ao mesmo tempo, um espírito de fortaleza.
O seu pensamento está bem claro, — pois eu já estava a ouvir
gente asceta, — ou mundana, — encolher os ombros e falar de
insipidez.

“E, no entanto, a devoção será forte e generosa”


Forte, e ele enumera oito caracteres desta força, que omitirei, se
bastar minha palavra, e que são todos próprios para estimular as
energias; generosa “para que não nos surpreendam as dificuldades,
mas, pelo contrário, nos estimule a coragem” (41).
Além do mais, não falta zelo às filhas; pelo contrário, é preciso, às
vezes, retê-las. “As Irmãs daqui estão indo muito bem”, escreve ele
à Madre de Chantal, “e não há nada a dizer, senão que se querem
esmerar o mais possível a fim de que a nossa Madre, quando voltar,
ache tudo indo otimamente; isto as torna um tanto, pressurosas.
Ontem tivemos uma conferência, na qual procurei incutir-lhes um
espírito mais largo” (42).
É uma expressão bem de São Francisco de Sales! Torná-las mais
generosas, mais à vontade com Deus. Porque, se mansidão não é
tibieza, o constrangimento também não é perfeição, mas antes lhe é
contrário. As obras de Deus se fazem em paz. O fervor agitado terá
sempre alguma falha.

“Disse à nossa Irmã de Gouffié que bem quisera tornar a devoção


das nossas Irmãs mais generosa e livrá-las da ternura que temos às
vezes conosco, de certo melindre que nos tira a paz e nos leva a
desejar doçuras espirituais e interiores, a desculpar nossos
caprichos e a satisfazer nossas inclinações. Mas, minha caríssima
filha, a tarefa ainda não está terminada, embora todas se
encaminhem em direção ao fim” (43)
Ora, nem aqui se pode adquirir a perfeição de repente…

“Julgais, talvez, que a perfeição se deva encontrar pronta, e que só


nos cabe enfiá-la como uma roupa qualquer; não, minhas caras
filhas, não é assim. Felizes de nós, se um quarto de hora antes da
morte estivermos revestidos desse hábito” (44)
Ou me engano muito, ou é isto pouco mais ou menos o que
narramos nas primeiras páginas deste livro.

“Ah! Não devemos pensar que quem entra para o convento, fica
logo perfeito” (45)
“É certo que muita gente se engana redondamente, julgando que as
pessoas que se fazem um dever da perfeição não deveriam mais
cair em faltas, e muito particularmente os religiosos e religiosas.
Parece-lhes que apenas entram para o convento, ficam logo
perfeitos, o que não é exato. Porque os conventos não são feitos
para abrigar gente perfeita, mas gente que tem a coragem de
aspirar à perfeição” (46)
A perfeição é algo de tão belo que parece estar muito perto quando
visto de longe; é como os picos de regiões alpestres: quem parte de
manhã, vê a montanha a poucos passos, julga estar prestes a
atingi-la, mas vai andando, andando sempre, horas a fio, sem que a
distância pareça diminuir.

Esta doutrina, de que somos fracos, não é animadora para nós?


Monsenhor é um bom Pai e “suas caras filhas” são boas filhas, mas
nem por isso deixam de ser humanas. Ele não se ilude, e não vem
fazer-lhes cumprimentos.

“Estou sempre pronto sem me preparar, mas primeiro façamos o


sinal da cruz. Antes de responder às perguntas que me são feitas,
veio-me à mente falar sobre uma coisa que me acontece muitas
vezes: ao atacar vícios, em meus sermões, sempre pareço referir-
me a alguém em particular, quando, no entanto, não é este o meu
propósito. Faço, pois, esta advertência a fim de que as nossas Irmãs
não pensem que viso alguma em particular ao referir-me a qualquer
falta que possam ter cometido; embora não seja esta a minha
intenção, ficarei, contudo, satisfeito, confesso-o francamente, se isto
me acontecer. Os filósofos e, de modo particular, o grande Epicteto,
fazem distinção entre um barbeiro e um cirurgião, apesar de hoje
em dia ser quase a mesma coisa. Estabelecem essa diferença,
primeiro, a respeito de suas lojas, alguns dizem que, quem se
aproxima de uma barbearia, sente-se bem, porque costuma haver
ali um menino a tocar flautim; além disto, o barbeiro aromatiza de tal
maneira o seu salão, que este só rescende a perfume. Mas, ao
contrário, o consultório do cirurgião tem um cheiro desagradável, aí
só se veem emplastros e unguentos; só se ouvem os gritos dos
pobres coitados: Ai! ai! que dor! Enquanto se fazem incisões nuns,
noutros se fazem curativos, noutros ainda se aplicam pontas de
fogo. É tudo muito doloroso. Para recolocarem-se ossos no lugar, o
pobre paciente geme. O barbeiro, porém, não machuca o freguês
quando faz a barba, que não é sensível.

Faço-me, algumas vezes, de barbeiro, e outras, de cirurgião, minhas


caras filhas. Quando prego no coro, para os seculares, sou barbeiro
e não faço mal a ninguém. Só falo de perfumes; de virtudes, e de
coisas próprias para consolar as almas; toco um pouco de flautim,
falando de como devemos louvar a Deus. Mas nas nossas
conferências familiares, sou cirurgião, só trago emplastros e
cataplasmas para aplicar nas chagas das minhas caras filhas e,
embora elas gritem ai! Ai! Ai! Não deixarei por isso de apertar a mão
com força sobre o emplastro, para melhor segurá-lo e mais
depressa sarar-lhes as feridas. Se fizer alguma incisão, minhas
filhas hão de sentir a dor, mas não me incomodo, porque estou aqui
para isso. Os mundanos não seriam capazes do mesmo, porque
pensam, erroneamente, que as pessoas religiosas entregues à
perfeição não devem ter defeitos. Mas entre nós, minhas caras
filhas, sabemos que isto é impossível. Não temos medo de
escandalizar-nos uns aos outros, falando francamente das nossas
fragilidades. Eis, pois, minhas caras filhas, como apresento minhas
desculpas àquelas a quem possa magoar, assegurando-lhes que, se
vier a fazê-lo, será de todo coração” (47)
Quem ousará ainda dizer que São Francisco de Sales não é
enérgico? Dá ele impressão de ser tão mordaz na intimidade?
Talvez até aqui só nos fosse dado conhecer o tocador de flautim;
mas, agora, é o cirurgião que vai apertar com força o emplastro
sobre a chaga. E que pensar da brandura do seu ceticismo?

“Mas entre nós, minhas caras filhas, sabemos que isto é impossível”
Não vale isto todos os sonetos do mundo? Esta tranquila reflexão
merece atenção e denota sobretudo muita indulgência e bondade,
— indulgência do amigo das almas, do sacerdote que leu em muitos
corações, que conhece a fraqueza humana, bondade aquela mesma
de Jesus que perdoa, que reergue as almas e não lhes pede mais
do que elas podem dar. Mas tudo isso sem perder o tom de
jovialidade, cheio de delicadeza, que lhe era peculiar.

“Pedi, um dia, às senhoras do mundo que frequentam esta casa,


que me respondessem com franqueza ao que lhes ia perguntar.
Concordando elas, perguntei-lhes o que pensavam das filhas da
Visitação. Algumas responderam logo que haviam encontrado aqui
maior bem do que esperavam, pelo que louvei, a Deus. Outras, a
quem interroguei igualmente, disseram-me que da teoria à prática
da Regra a diferença era grande, porque, na leitura, esta parece
feita de mel e de açúcar, é a própria doçura e perfeição, mas nem
por isso deixavam de perceber que as Irmãs cometiam algumas
imperfeições. Sorri comigo mesmo por ver que elas pensavam que,
por serem tão perfeitas as Regras, não deveriam existir
imperfeições” (48)
E, agora, antes de continuar, uma palavra ainda.

“É preciso ser espiritual para compreender a linguagem das almas


espirituais” (49)
Que se entende com isto? Entende-se, que, para compreender os
pequenos defeitos das almas inocentes, as pequenas faltas que não
impedem que elas sejam de Deus, e para que ninguém se
escandalize com tais imperfeições, apesar dos véus e das grades, é
preciso que elas tenham também uma alma inocente e um olhar
puro e sem malícia, pureza que os mundanos não conhecem, que é
apanágio dos filhos de Deus. E se, entre os leitores destas páginas,
houver algum cujo espírito deformado pelo contato com o mundo o
levasse a procurar nelas outra coisa senão o que aqui fica dito,
rogo-lhe que não leia estas linhas, porque não foram escritas para
ele.

São Francisco de Sales entregando a regra às Irmãs da Visitação


O motivo pelo qual as caras Filhas não são
todas perfeitas
“Ora, bem sei que o centro dos vossos corações está vazio, porque
se assim não fosse, seria demasiada infidelidade, quero dizer que
devemos não apenas rejeitar e detestar o pecado mortal, como
ainda toda sorte de afeições más; ai de nós! Todos os cantos e
recantos dos nossos corações estão repletos de mil coisas
indignas… (50)”
Eis aí os pontos nos iis. Essas “mil coisas indignas” provêm da
pobre natureza decaída com o pecado de Adão, ainda vivaz em
certos pontos, e que faz germinar, apesar de tudo, sua flora
deteriorada de ervas daninhas no próprio meio dos vergéis
escolhidos, que Deus reservou para si.
Comecemos pelas postulantes:

“De certo, minhas caras filhas, algumas jovens entram para o


convento sem saber por quê. Talvez, um dia, no locutório, viram
umas religiosas com semblante sereno, acolhedoras, modestas,
radiantes. E dirão consigo mesmas: Como é bom estar aqui! Por
que não entrarei também eu? O mundo não me agrada, nele não
realizarei os meus ideais. Outra dirá: Como se canta bem aqui! É
tão bonito cantar assim! Elas fizeram bem de vir para cá, a fim de se
fazerem ouvir. Se tivessem ficado em casa, talvez cantassem numa
sala em que ninguém as ouvisse; mas num coro, serão ouvidas e
apreciadas. Outras fazem-se religiosas para encontrar paz,
consolação e toda sorte de doçuras, pensando consigo mesmas:
Como são felizes as religiosas! Estão livres das queixas dos pais,
que estão sempre a gritar e nunca estão satisfeitos com nada. É um
nunca acabar! Nosso Senhor promete muitas consolações a quem
deixar o mundo para o servir. Entremos, pois, para o convento” (51)
Vejamos bem: Não é Boileau escrevendo uma sátira, mas São
Francisco de Sales falando a religiosas…

São almas tão impulsivas!


“Quando obedecem aos primeiros ímpetos, um tanto fortes, tudo
lhes sorri, e parece que hão de vencer todas as dificuldades. Mas
quando esses sentimentos já não se manifestam do mesmo modo
na parte inferior da alma, parece-lhes que tudo está perdido: querem
e não querem”
Oscilam entre todos os caprichos dos seus nervos.

Pode-se, numa casa séria, receber moças tão levianas? Por que
não? Suas disposições não são perfeitas, mas “como já o disse
muitas vezes, não entramos perfeitas para o convento, mas para
procurarmos a perfeição”. Essas disposições defeituosas podem
ser “melhoradas e ratificadas por Deus. Eu, quando se me deparam
tais almas, não me admiro de suas aversões e diminuição de fervor,
e nem por isso tenho sua vocação em conta de menos boa”, pois a
disposição exigida é a vontade reta. São almas fracas; devemos
ampará-las e não rejeitá-las.
Outras vocações são ainda mais imperfeitas.

“Pessoas que foram influenciadas pelos aborrecimentos, desastres


e afeições que encontraram no mundo, desgostaram-se dele e o
abandonaram”
Tais vocações tão pouco são desprezíveis, porque “nem por isso as
almas deixam de se dar a Deus com uma vontade sincera. Noutras,
a vocação, em si, não é melhor; são os que se fazem religiosos por
causa de algum defeito físico, por serem coxos, zarolhos, feios, ou
qualquer outro defeito. E, parece, mais grave ainda, porque são
muitas vezes levados pelos pais, os quais desprezam os filhos
nessas condições, e atiram-nos para um canto, dizendo: Este não
presta para nada no mundo, é preciso que se faça religioso, e assim
ficaremos livres dele em casa, e quanto a ele, ficará “muito bem
junto do altar”.

Que pensar de tais sentimentos? Nem isso, porém, basta para


esgotar os recursos santificadores da misericórdia divina. Eis um
exemplo, “que é do nosso tempo. O Reverendo Padre Geral dos
Feuillants, que foi na realidade grande servo de Deus, (conheci-o e
ouvi-o pregar muitas vezes), abraçou o estado religioso por um
motivo pouco louvável, pois parecia antes buscar honras e bem-
estar que responder ao chamado de Deus. Comprou uma abadia,
ou antes seu pai comprou-a para ele. E, no entanto, sua vocação foi
tão bonificada e santificada por Deus, de tal maneira mudou de vida,
que se tornou um modelo de virtude. Reformou os Feuillants e os
converteu à sua primitiva perfeição. Assim o divino artífice compraz-
se em construir belos edifícios com madeiras retorcidas, que não
parecem prestar para nada”. E não é sem razão que “em todos os
tempos, as casas religiosas foram chamadas hospitais, e aos
religiosos dado um nome grego que significa curandeiros, pois se
acham nos hospitais para se curarem mutuamente, como os
leprosos de Santa Brígida” (52).
Voltemos às postulantes: eis, pois, a clausura que se abre. Antes de
entrarem, prometem mil maravilhas.

“Pedi-lhes tudo que quiserdes e elas o farão”


É difícil conhecê-las bem, “porque se apresentam sempre com as
melhores disposições, com os melhores modos”. Mas quando forem
provadas, então se mostrarão coléricas ou mansas. “Algumas terão
sido mal alimentadas e mal educadas”, estarão cheias “de maus
hábitos, serão rudes e grosseiras, duras e altivas de coração, e a
fisionomia revelará suas numerosas paixões”. Outras, que “no
mundo eram verdadeiros mostruários de vaidade, vêm para o
convento, não para se humilharem, mas como se quisessem
doutrinar em matéria de filosofia e teologia. Ora, são estas que nos
devem inspirar cuidados”. “Outras ainda não podem suportar que se
lhes corrijam os defeitos, sem se perturbarem, a ponto de
adoecerem. Convém então abrir-lhes as portas”. Agora, pela
primeira vez, o bom Pai carrega o sobrolho. Mas, também, como se
há de curar um doente que se recusa a tomar os remédios?
“E isso porque todas as outras, embora muito imperfeitas, têm ao
menos, boa vontade para se corrigir, para se submeter e tomar os
medicamentos indicados. E ainda que sintam repugnância pelos
remédios, e os tomem com grande dificuldade, contanto que não os
deixem de tomar, está bem. Quanto àquelas que no mundo foram
verdadeiros ‘mostruários de vaidade’, digo que se deve tomar
cuidado, e não que se deva recusá-las, se mostrarem desejos de
corrigir-se e humilhar-se”
A condição mínima exigida é a reta intenção e a boa vontade.
Havendo esta, pode-se relevar tudo o mais, porque não há defeito
que não possa ser corrigido. Essas religiosas os têm profundamente
enraizados, mas poderão sempre, “com o tempo e a graça de Deus,
operar essa mudança”. É preciso, em suma, e basta, que o queiram.
Para admitir uma moça no noviciado, o essencial é saber se ela tem
boa vontade, e se está firmemente resolvida a aceitar o tratamento
que lhe é mister para sua cura.
“Não são, pois, as pessoas de semblante triste, e as que estão
sempre a suspirar, as que mais convêm; nem as que não saem da
igreja e as que vivem nos hospitais, nem tão pouco as que
começam com grande fervor. Não devemos olhar para as lágrimas
das plangentes, nem escutar os suspiros das lamurientas, nem
tomar em consideração as aparências e formalidades exteriores
para descobrir quem, na verdade, é chamado; mas somente olhar
para a boa vontade, a resolução firme e constante de se corrigir e
de querer trabalhar com fidelidade para recuperar a saúde espiritual”
(53)
Não são só as noviças que continuam mulheres sob o véu; as Irmãs
professas também entram aqui em jogo.

“Elas têm tantos caprichos, que lhes custa obedecer” (54)


Não se trata mais das que pedem para entrar, mas das que já
pertencem à casa.

“Queremos agora tal coisa e amanhã queremos outra” (55)


“Quem tiver sido uma hora jesuíta, quererá ser outra hora
capuchinho” (56)
“O que vejo tal ou tal fazer agora, agrada-me, mas, daqui a pouco,
me desagradará. Hoje gosto de tal pessoa e converso com ela com
prazer; amanhã, porém, me custará a suportá-la”
São os sobressaltos do amor-próprio, sempre pronto a reapossar-se
de sua vitima.
“Hoje achais consolação na oração, estais animada e decidida a
servir a Deus; mas amanhã, se estiverdes na secura de alma não
encontrareis mais atrativos no serviço divino; direis então: Meu
Deus, estou tão sem forças, tão abatida! Quando surge qualquer
contrariedade, ou se cometerdes alguma falta, por pequena que
seja, julgais tudo perdido” (57)
Tais almas procuram mais “as consolações de Deus do que o Deus
das consolações”.
“Já observei em todas as nossas casas que as nossas filhas não
fazem distinção entre Deus e o sentimento de Deus, entre a fé e o
sentimento de fé. É grande erro e ignorância”
Volta a falar no perigo da ternura, “um dos grandes empecilhos da
vida religiosa” (58).
“Agrada-nos algumas vezes poder chorar, sobretudo quando muda
a Superiora, e assim mostrar que tal Irmã não é ingrata e que ficou
muito sensibilizada” (59)
“Pensam que se não manifestassem tais sentimentos seriam tidas
como indiferentes e sem coração, quando, pelo contrário, isso não
passa de fraqueza de mulher” (60)
Cheias dessas ideias que trazem do mundo, pensam, às vezes, que
resplandecem de virtude, quando só têm imperfeições.

“Alegram-se se puderem parecer bem humildes e ter-se a si mesmo


em pouca conta”
Pedem, a Deus, na oração, que lhes dê “essa humildade tão própria
para dar o bom exemplo. Mas quanto a humildade de coração, que
nos faz amar a nossa própria abjeção, parece-lhes que não
necessitam dela” (61). Muitas serão perfeitas enquanto não forem
contrariadas, mas se forem “provadas, ei-las logo a resmungar”.
E “quando alguém me diz: Tal pessoa nunca cometeu uma
imperfeição, pergunto logo: Tem ela algum cargo? ”(62).
Os cargos — outra pedra de tropeço — o desejo dos cargos, a
decepção quando não no-los dão.

“Ficamos tão contentes de ocupar um cargo que nos coloca acima


dos outros, como o de Superiora ou de Assistente, e assim fazer
valer nossa inteligência, para que outras possam dizer: Minha Irmã
determina e arranja tudo tão bem! Enquanto outras acham que se
fossem Superiora seriam muito virtuosas, cheias de humildade, de
caridade… Ah! minha Irmã, nosso amor próprio gosta de que outros
apreciem o nosso belo espírito. Tal Irmã é considerada dócil, quando
ocupa um cargo superior porque ninguém a censura, e todas lhe
admiram virtude”
Não insistiremos mais sobre todos os pontos…

Outras, sem desejarem os cargos, “têm tanto medo de vir a ter o


desejo, que estão sempre apreensivas e inquietas” (63). Pertencem
à mesma família as almas “que cogitam tanto no que devem
fazer” para serem santas, “que não lhes sobra tempo para tanto
(64), julgando que a santidade consiste numa grande quantidade de
desejos”. “Apressam-se em procurar ora um meio, ora outro” para
conseguir a perfeição “e nunca estão satisfeitas nem em paz
consigo mesmas, porque quando têm um desejo, logo tratam de
conceber outro, assemelhando-se às galinhas, que mal acabam de
pôr um ovo, cuidam logo do outro, deixando de lado o primeiro, sem
o chocar”.
Para apreciarmos bem todo o sabor destas conferências, devemos
representar-nos o quadro em que se desenrolavam, o pequeno
locutório de Annecy. As Irmãs assentadas defronte do Bispo. Ele a
todas conhece bem, e elas se conhecem umas às outras. Todos os
golpes são certeiros. Imaginem-se os sorrisos à socapa, quando ele
fala da galinha cacarejando… os olhos baixos daquela que se sente
atingida, embora, como disse, ele não visasse a ninguém em
particular, o sorriso comprometedor de uma, a expressão de outra.

“Assim como a galinha que tem pintinhos acode-lhes pressurosa e


fica a cacarejar e a fazer barulho, assim também certas almas estão
sempre a cacarejar e a correr atrás dos seus filhotes, isto é, dos
seus desejos de perfeição, procurando falar no assunto a todo
propósito para indagar de meios novos e apropriados para progredir.
Em suma, distraem-se tanto em falar da perfeição, que se
esquecem de pôr em prática os meios” (65)
“Os convivas que, num banquete, provam iguaria e comem um
pouco de cada, sentem-se mal do estômago, com forte indigestão, e
passam a noite a vomitar, sem poder dormir. As almas que querem
experimentar todos os meios e métodos que conduzem, ou podem
conduzir, à perfeição, passam também por isso, porque não tendo o
estômago da sua vontade bastante calor para digerir e pôr em
prática tantos meios, sobrevêm-lhes certa acidez e indigestão que
lhes tira a paz e tranquilidade de espírito junto de nosso Senhor”
(66)
Há, enfim, vocações extraordinárias.

“Conta-me nossa Madre que algumas Irmãs dizem: É bom guiarmo-


nos pelas Regras, mas é o caminho geral. Deus, porém, nos atrai
por graças particulares (67). Sei de uma moça que forjara ideias
semelhantes em seu espírito: Imaginando que nada devia fazer sem
que lho ditasse ou inspirasse o Esposo, punha sua mãe em
embaraços. Se esta a chamava para ir à Missa, ou para jantar,
respondia-lhe que só iria quando o Esposo o quisesse.”
O certo é “que todas não são levadas pelo mesmo caminho; mas
também não nos compete a nós conhecer o caminho a que nos
chama Deus. Isto só pertence aos Superiores” (68). E lembra, a
propósito, noutra conferência, o caso de uma religiosa de “Ordem
bem reformada” que, “à força de ler um livro da bem-aventurada
Teresa, aprendeu tão bem a falar como ela, que parecia mesmo
uma pequena Madre Teresa. Assim se julgava ela, imaginando que
tudo quanto fizera a Madre Teresa em vida, se repetia na sua
pessoa, inclusive as elevações de espírito e suspensões das
potências, enfim, tudo o que lia na vida da Santa” (69).
Se tudo isso é muito bonito, há, no entanto, o excesso contrário.
Algumas — talvez sejam as mesmas, fatigadas depois desses
impulsos desmedidos do espírito, — procuram precisar exatamente
a que as obriga à Regra. Têm medo do zelo; é o que, comumente,
se chama, entre nós, a greve aljofrada. Isto desperta a indignação
do bom prelado. Limitar-se aos mandamentos é não ter amor aos
conselhos ou Àquele de quem emanam. Tais almas não serão
condenadas, mas não podem reclamar nada.
“É como quem se gabasse de não ser ladrão; pois bem, se não é
ladrão, não será enforcado; eis a sua recompensa. Obedeceis aos
mandamentos de Deus, que vos são prescritos, — pois bem, não
sereis expulsas do convento, mas também não sereis tidas em
conta de servas fiéis de Deus” (70)
Tal Irmã não se considera “desobediente, quando despreza apenas
uma ou duas regras, que lhe parecem de pouca importância. Mas
que engano! Onde vai parar Isso? Porque aquilo a que uma dá
pouco valor, outra dá muito, e reciprocamente; de maneira que se
uma não observar tal regra, a segunda desprezará outra, a terceira
outra ainda” (71), e se implantará a desordem na Congregação.
Entretanto, pergunta alguém, — de fato severo demais — “se não
seria lícito a uma irmã, que viveu muito tempo na Ordem e nela
prestou relevantes serviços, relaxar um pouco na obediência, ao
menos no que for insignificante. Ah! como seria isto possível! (72)
Então, ser religioso é fazer votos e não os cumprir!”
“O religioso que começou bem, nada fez enquanto não perseverar
até o fim”
O homem é uma criatura miserável. Quando, por acaso, está em
paz consigo mesmo, comete faltas em relação aos seus
semelhantes. Quem, por pouco que seja, frequentou casas
religiosas, sabe que uma das provações mais duras é a convivência
com companheiros que não escolheu, e com quem tem de morar
até o fim da vida, e a quem fica associado até nas mínimas coisas.
Daí, as mil e uma contrariedades, que só um espírito muito
sobrenatural pode suavizar. Não nos inspira necessariamente
simpatia natural este ou aquele que o acaso colocou ao nosso lado.
Imaginemo-nos no refeitório, defronte de uma Irmã que mastiga
abrindo a boca, ou ao lado de outra que come sem modos. — Peço
que me relevem estas minudências, mas é a realidade da vida. São
coisas que acontecem, coisas insignificantes, sem dúvida, e que
não impedirão que a vossa vizinha seja muito boa — uma santa até.
Mas a nós repugnam-nos, e como se observa sempre a mesma
ordem nos lugares, é um mal que há de durar toda a vida, até que
morra uma das duas. São incidentes sem importância, mas que nos
fazem tremer. São fatos que se reproduzem a cada instante. —
Irmãs que batem com as portas, que fazem barulho com os saltos
ao andar, e isto chama a atenção numa casa onde reina silêncio. Ou
então “alguma se vestirá às avessas, e dará ocasião a que outra se
ria” (73), o que é desagradável num lugar onde deve imperar o
recolhimento.
“A quem se ri de tudo o que ouve, convém perguntar-lhe por que se
ri (74). Responderá que não sabe o motivo. Ficarei, pois, sem saber
por que se ri.”
Outra não se admira de nada, mas continua sempre sua vida de
todo dia. São coisas que irritam e nem todos têm a paciência
incansável do bom Pai.

Estes primeiros contratempos não passam, entretanto, de simples


faltas de educação. Mas que dizer daquelas que têm tentações de
inveja ao ver uma Irmã trabalhar melhor do que ela ou ser mais
estimada? (75). Nesse particular as noviças recebem o seguinte
conselho: “Bem quisera que as Irmãs de véu branco não se
preocupassem com as faltas das outras, mas cuidassem tanto das
suas e se tornassem tão atentas a Deus, que não tivessem tempo
de ver as culpas das professas, ao menos durante o noviciado” (76),
pois que não se pode exigir tudo de uma vez, e algumas “percebem
muito bem os defeitos dos outros, mas não veem os seus próprios”.
Uma das causas de desunião está nas simpatias e nas aversões.
Tal Irmã “não é cordial”, ou “não é igual para com as outras” ou “não
esconde que prefere esta àquela” (77). Certos temperamentos
custam a se suportarem a si mesmos e isto dá lugar a “ligeiras
murmurações, a palavras ou modos secos de lado a lado”. Às
vezes “uma Irmã, pelas suas palavras, mostrará o quanto está
apaixonada” (78). Houve, certo dia, um pequeno dissentimento entre
as Irmãs Fabre e de Chastel a respeito de uma virtude. Nosso santo
Fundador, a quem nada se ocultava, foi avisado. Vindo ele fazer
uma conferência à Comunidade, falou, entre outras coisas, da união
que deve haver entre nós; depois, dirigindo-se à nossa digna Madre,
perguntou: São as minhas caras filhas unidas entre si e amigas
umas das outras? Pode acontecer que uma ou outra vez venham a
trocar palavras menos delicadas e respeitosas. Se assim
acontecesse não nos admiraríamos. Eis aqui o remédio: A Irmã
provocadora pôr-se-á de joelhos diante da ofendida e se acusará:
Minha Irmã, peço perdão, rogo a vossa caridade que reze pela
minha conversão. E acrescentou: Comecemos já com esta prática.
Minha Irmã Peronne Marie e minha Irmã Marie Jacqueline, vinde e
ajoelhai-vos e minha Irmã Peronne Marie peça perdão (79).
Que delicadeza no modo de corrigir! Mas parece que a boa Madre
Pichet, que escreveu a história da Galeria, quis incorrer no erro dos
hagiógrafos, procurando sistematicamente atenuar o que talvez
pudesse ofuscar a auréola dos seus heróis! São Francisco de Sales,
apesar de toda a sua mansidão, teria contado o fato em termos
menos suaves. Isto me leva a dizer o mesmo a respeito da própria
Sta. Chantal. Havia de surpreender aos nossos leitores que viessem
a ler as Conferências Espirituais (Entretiens Spirituels) o não
encontrarem, em nenhuma das edições antigas, as passagens mais
picantes que temos citado. Com efeito, Santa Chantal, ao publicar a
obra, suprimiu alguns trechos, cujo estilo não lhe pareceu bastante
nobre. O gosto da época explica facilmente o fato. As religiosas da
Visitação de Annecy, porém, ao prepararem novas edições das
obras completas, encontraram esses trechos nos manuscritos
conservados em suas casas. Reproduzindo elas, em consideração à
sua fundadora, o texto de Santa Chantal, acrescentaram-lhe essas
variantes em formas de notas. Como, em nossos dias, damos
preferência ao que é vivo e verdadeiro sobre o estilo nobre, essas
variantes são muitas vezes o que mais nos agrada. Mas seja dito de
passagem.
Um belo artigo das Constituições manda que as Irmãs se advirtam
mutuamente quando em falta. É delicado, e requer muito
tato “porque não se deve chamar a atenção de uma Irmã quando
estiver de mau humor, ou premida pela melancolia, pois então havia
de rejeitar de pronto a correção. Se uma Irmã, ao dirigir-vos a
palavra, fá-lo por meio de murmurações e se perceberdes que
oculta em seu coração alguma paixão, então desviai o assunto do
melhor modo possível” (80).
“Algumas são tão suscetíveis que, se forem admoestadas por uma
Irmã, será o bastante para que fujam dela durante o recreio!
alimentando assim abertamente o ressentimento” (81)
Seria um grande mal.

As relações com as Superioras dão lugar a críticas tão numerosas


que seria fastidioso enumerá-las todas. A Superiora, “Nossa Madre”,
é, para as religiosas fervorosas, a representante de Deus, e elas
poderiam razoavelmente exigir dela tudo o que têm direito de
esperar dEle. Infelizmente, a Superiora, por melhor que seja, não
passa, como as outras, de simples mulher. Daí, até certo ponto, se
escandalizarem as religiosas quando, por acaso, ela não as recebe
com “espírito de mansidão”; “perdem a confiança e a tentação seria
recorrer logo à Assistente” (82). Coitada da Madre! exigem dela o
impossível!
“Se vos disser alguma palavra menos branda que de costume,
talvez esteja com a cabeça cheia de cuidados e preocupações, logo
o amor próprio se perturba (83). Parece que as Superioras
deveriam ter a consolação à flor dos lábios, para a derramar
facilmente sobre o coração de quem a procura”
Mas, “como as outras, não podem estar sempre de igual
humor” (84). Além disso, “é preciso não ser tão sensível e querer
contar tudo, nem tão pouco recorrer a cada instante às Superioras,
para se queixar de qualquer mal insignificante — uma dor de cabeça
ou de dentes, que talvez não dure mais de um quarto de hora”.
Mas “se não devemos falar nisso à nossa Madre, ainda menos
devemos falar com outras religiosas que encontrarmos”.
“Creio que preferem queixar-se a quem não tem poder de aliviá-las
do que a quem o tem; porque enquanto isso, cada qual se
compadece da tal Irmã e se acha na obrigação de aconselhar-lhe
algum remédio, ao passo que se o dissessem à Irmã encarregada,
seriam obrigadas a fazer o que ela lhes prescrevesse” (85).
É difícil às mulheres dominarem a língua, mesmo na vida religiosa,
apesar do silêncio, de quase todo o dia, imposto pela regra…
Alguém pergunta agora se “é lícito revelar à Superiora o nome das
Irmãs que repetiram o que ela, ou outra Irmã, tiver dito a nosso
respeito. Cuidado! Eis-como as intrigas nascem num convento e
provocam discórdias… Uma Irmã conta à outra ‘alguma palavrinha
que a Superiora disse sem pensar e que, sendo relatada por outra,
parece grave e causa verdadeira angústia àquele pobre coração’.
Porque nada aflige tanto a uma pobre religiosa como pensar que a
Superiora está aborrecida com ela”. O bom Pai de novo carrega o
sobrolho:
“Isto é muito mais importante do que parece. Contar a uma Irmã que
a Superiora disse isto ou aquilo dela em sua ausência é um pecado
que se chama sussurro ou murmuração. Devemos aprender a falar
latim; ora, susuratio quer dizer cochicho, o ruído ou murmúrio dos
regatos, onde as pedras, agitando ou ondulando as águas,
impedem-nas de correr sem ruído… (86)”
Sussurro!… Não lembra esta palavra certas sombras negras,
conhecidas de todos que frequentam as igrejas? São pequenas,
magras, de faces enrugadas. Envolve-as um manto escuro, e uma
touca prende-lhes os cabelos desbotados, repartidos ao meio.
Ficam muito tempo de joelhos perto das pilastras, e, sem voltarem a
cabeça, veem tudo o que se passa. Reúnem-se no pórtico e ficam a
conversar em voz baixa. De olhar furtivo, julgam-se muito santas e
desejariam de fato sê-lo, mas suas línguas são afiadas, e cortam o
próximo. Fazem-se uma noção talvez incompleta da perfeição. O
povo, que não gosta delas, trata-as de hipócritas ou de beatas. Elas
são, das nossas boas Irmãs da Visitação, o que se chama uma
caricatura: para essas, cochichar é um pequeno defeito, logo
reprimido; para as outras, é uma função social.

Algumas vezes a superiora também terá que corrigir uma religiosa:

“Aceitais, não é? de bom grado, a correção, mas sentis ao mesmo


tempo certa confusão perante a Superiora, porque a afligistes, ou
lhe destes motivo de zangar-se convosco; isto vos impede de
chegardes a ela com confiança, embora gosteis da humilhação que
sofreis devido a falta”
Que complicação! Quantos fiozinhos de amor próprio!

“Não sabemos, talvez, que existe em nós um convento, cujo


superior é o amor próprio, e que nos impõe penitências” (87)
Este pesar é uma delas.

Nossas Irmãs são sequiosas de afeto. Ora, isso não é virtude


sobrenatural.

“Que dirá a Superiora se eu lhe disser isto ou aquilo!… Se eu lhe for


pedir algum alívio dirá, ou achará, que sou muito mole. E se é
verdade, por que não há de achar?”
Quem tanto se preocupa com o juízo que outros possam formar
deles, não merece que este afeto lhe seja favorável.

“Mas quando lhe peço aquilo de que preciso, faz-me uma cara tão
ríspida que tenho impressão que não gostou!… Ora, minhas filhas,
isto não passa de puerilidades; deveis ser simples… Mas cometi
uma falta contra a Superiora, e fico com receio de que ela esteja
descontente comigo e não me receba bem; numa palavra, que não
me tenha mais a mesma estima e amizade”
Não é o “Pai Espiritual” que se chama amor próprio que se está
dando a conhecer? Ah! cometi tal falta! Que juízo formará de mim a
nossa Madre? Nada de bom se deve esperar de mim!… Nunca mais
lhe poderei ser agradável. Sei que Deus é bom, que perdoará a
minha infidelidade… Mas a nossa Madre!… Parece incrível, minha
Madre, que as nossas Irmãs estejam de tal modo apegadas aos
carinhos da Superiora!” (88) Isto não está certo e não passa de
vaidades femininas. Em Lyon, disseram-lhe, há Irmãs que se
distraem tanto a olhar para as virtudes das Superioras, que estão
sempre a louvá-las e aplaudi-las.

“Será possível, perguntou ele, que façam isto aqui? Sim, umas três
ou quatro responderam. Minha filha, não deveis consentir nisto.
Quando as inferiores percebem que a Superiora é um pouco fútil,
que gosta de ser elogiada, estimada, elas as louvam a todo
propósito, a fim de se tornarem queridas da Superiora, e por
nenhum outro motivo; mas se ficasse aborrecida quando elogiada e
lhes fechasse a cara, fá-lo-iam menos vezes. É, entretanto, quase
inevitável, “porque onde há muita mulher, há também muito louvor e
muita lisonja” (89)
Mas “nossa Madre é tão boa! Seria impossível não nos apegarmos
a ela!…” Então, quando for deposta — porque, na Visitação, as
Superioras são eleitas só por três anos, — como se habituar à ideia
de que ela não é mais ‘‘nossa Madre”? Haverá então rivalidade
entre as Madres. Falando da deposição duma Superiora, a qual foi
muito sentida no convento, “não podendo as Irmãs se habituarem a
tratá-la de Irmã, respondeu-lhes ele de modo gentil: Que a chamem
“avó”, se quiserem, e nada lhes direi; mas vejo que tais Irmãs não
honram, nem observam as Regras e a Constituição” (90).
Convém notar que essas observações um pouco fortes se dirigem
às Irmãs de Lyon, segunda casa da Ordem, fundada em 1615. O
convento de Annecy era, naquela época, governado pela inimitável
Sta. Joana de Chantal.

Será que desta vez o bom Pai foi muito severo, como acham as
Irmãs? — Nossa Madre era tão boa… Mas o que resulta dessas
puerilidades? À tal Superiora, que era tão querida, sucede outra, a
quem talvez falte a unção da primeira, que não possui o mesmo
dom das palavras, dos modos, dos olhares que comovem. Fazem-
se comparações que, nesses casos, não passam de críticas. Nossa
antiga Madre era mais afetuosa! Sabia conduzir-nos tão bem a
Deus! Ficam as saudades do antigo regime, e a obediência — ponto
capital num convento — se ressente. As Irmãs não deixam, por isso,
de obedecer, pois, graças a Deus, são muito fervorosas. Se o centro
do seu coração, como já vimos nas primeiras páginas, está bem
vazio, nos cantos, porém, estão cheio de poeira e a obediência
ficará prejudicada, embora continuem a obedecer. O Santo explica:

“Hoje estimo muito a minha Superiora, e obedecerei amanhã,


estimarei menos a outra e não hei de querer obedecer-lhe. Mas
obedeço-lhe da mesma forma, alegareis. Sim mas não tereis a
mesma consideração para com as suas ordens, nem as acatareis
com a mesma satisfação…”
Que diferença!
“Dirigimo-nos a almas delicadas, que o são até nas suas faltas, se é
que merecem tão pequeninas imperfeições nome tão forte. Que boa
obediência querer obedecer somente às superioras que nos
agradam!”
E, para rematar:

“Se Balaão foi tão bem instruído por uma jumentinha, devemos crer
com mais forte razão, que Deus, tendo-nos dado esta superiora,
fará com que ela nos ensine a cumprir a sua vontade, ainda que não
seja conforme aos nossos desejos” (91)
Demorei-me no assunto porque queria dar uma ideia de conjunto.
Há ainda uma referência às superioras que gostam de ficar no
locutório a conversar, “com as pessoas do mundo” (92), ou às
religiosas que têm o que eu chamaria contrição embaraçosa.
Prolongam tanto suas confissões que “prejudicam e incomodam
toda a comunidade”.
“Se, neste caso, a superiora vos disser que deveis ser a última a vos
confessar, isto não equivale a perguntar-vos o que dizeis ou não
dizeis”
Na confissão, também, algumas fazem “ao confessor belos
discursos, cheios de palavras empoladas” (93).
“Tal outra — me decido a terminar — pergunta se não pode queixar-
se ao superior, ou ao confessor, quando, por algum motivo, está
descontente com a superiora: Ó minha filha, queixar-se? Não disse
eu a Filotéia, que, em geral, quem se queixa, peca? Ora, tolera-se
que uma alma imperfeita se queixe à Superiora, quando alguma
irmã a molestou, mas se uma irmã se queixar a outra de que a
superiora a mortificou, direi apenas que, se alguma tiver semelhante
inclinação, precisa emendar-se sem vacilar. Mas queixar-se da
superiora a gente de fora; ah! isto nunca, de maneira alguma,
porque é muito grave” (94)
Não é isso encantador? Eis, pois, todo o mal que encontramos
nesta investigação que fizemos em torno do “grupo querido”. Vimos,
no entanto, que o Prelado não as lisonjeia, mas, pelo contrário,
trata-as com energia. Devem ser muito boas. E, diante disso, não
havemos nós de nos regozijar ao reconhecer, nos discretos
recônditos de suas pequenas falhas, toda a fraqueza humana, tal
qual a sentimos unida à nossa mísera natureza, e cujo estigma se
revela em cada passo que damos, cujo eco repercute em cada uma
das nossas palavras, cujo selo carimba todas as nossas ações?
Tudo aquilo que em nós é rude e grosseiro, nelas é delicado, mas
não deixa de existir. Eis até onde eu queria chegar. Não são
religiosas anônimas, fantasmagorias, a deslizar, silenciosas, ao
longo de claustros legendários… Lírios puros, erguem para os céus
sem nuvens sua alvura melancólica; uma Virgem, tendo nos braços
ao Menino Jesus, sorri, no fundo do claustro; do campanário da
capela ouve-se, de hora em hora, um ritmo ligeiro de notas
argentinas que pairam no ar crepuscular… uma atmosfera de
incenso faz sonhar com o paraíso… Tudo isto se encontra, talvez
materialmente, na Visitação da qual ora nos ocupamos, — menos o
brilho aparente do legendário. Pode chegar até a tomar
objetivamente este aspecto para algumas religiosas, em certas
tardes de devoção, ou para pessoas devotas que aí passam uma
hora. Mas na vida de todo dia as boas irmãs não passam de
mulheres; conheço-as todas: são da minha família, minhas irmãs no
Pai comum, do qual recebemos uma mesma natureza. E se, apesar
da grande distância que nos separa, eu me reconheço nelas, por
que hesitarei em fitar, também com elas, o ideal que nos prende o
olhar, e para o qual Nosso Senhor afinal parece ter-nos chamado,
também a nós? Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito.

As caras Filhas devem morrer a si mesmas


“Esta Congregação, assim como as outras Ordens Religiosas”, não
é, “uma associação de pessoas perfeitas, mas de pessoas que
pretendem aperfeiçoar-se; não de pessoas que correm, mas que
pretendem correr; as quais, por conseguinte, começam a andar
devagar, depois vão mais depressa, em seguida caminham
rapidamente, finalmente correm” (95). A casa religiosa é um
hospital, mas é “também uma escola onde se aprende a lição”.
Analisamos, e por vezes, com certa malícia, os vestígios mais ou
menos dissonantes que a natureza deixa na alma de religiosas
fervorosas. Vejamos, agora, a fim de evitar qualquer equívoco, o
comentário que acompanha esta observação, que talvez nem
sempre acentuamos bastante “a congregação tolera que nos
cheguemos a ela com nossos maus hábitos, paixões e inclinações,
mas não que as guardemos (96). Quem vem, só o deve fazer com
o fim de se mortificar” (97). A perfeição consiste em viver só
segundo a razão, e não segundo as inclinações e aversões
pessoais (98). Na teoria, parece muito simples; na pratica, muito
penosa para quem tem coragem de encará-la de frente.
Comecemos por fixar sinceramente o que se passa em nossa alma.
Que papel ocupa a razão em nossa vida real? Quais são os móveis
habituais das nossas ações? E como teremos de revolver até as
raízes de nosso ser, de cortar, talhar, podar para operar esta
transformação, tão simples na teoria, de praticar sempre o bem
conforme a verdade, e não apenas o que nos é mais agradável!
Para avaliarmos o quanto custa este trabalho, será preciso
entregarmo-nos a ele; então veremos também o quanto é
demorado, e a grande paciência e muita coragem que exige.
As filhas de São Francisco de Sales não serão, pois, destas
pessoas que “querem ser santas de repente, sem que isto lhes
custe, porque, queiramos ou não, precisaremos ter coragem para
sofrer durante toda a vida na bancarrota da perfeição que
empreendemos” (99). A vida cristã é um combate, contra um inimigo
possante e um exército poderoso. Tanto melhor! Quanto maior o
perigo, mais gloriosa a vitória.
“Minhas caras filhas, tomai a espada da mortificação para matar e
aniquilar as paixões, e quem as tiver em maior número para matar,
mais valorosa será” (100)
Se a natureza grita, deixemo-la gritar, mas nada nos detenha. E se
as paixões vierem a sublevar o coração, “devemos torcê-lo como se
torce um lenço, para conformá-lo à razão” (101).
“Queremos construir um grande edifício, minhas caras filhas, isto é,
edificar em nós a morada de Deus. Consideremos, portanto,
ponderadamente, se temos bastante coragem e firmeza para nos
destruirmos e nos crucificarmos a nós mesmos, ou antes, para
aceitarmos que Deus nos aniquile e nos crucifique, e assim
reedifique em nós o templo vivo de sua Majestade divina. Digo, pois,
minhas caras filhas, que nossa única pretensão deve ser a de nos
unirmos a Deus, como Jesus Cristo se uniu a Deus Pai, quando
morreu por, nós na cruz”

“Precisamos saber como e o que é ser um religioso. E ligarmo-nos a


Deus pela contínua mortificação de nós mesmos, e só vivermos
para Deus. Ora, como só iremos chegar a isto pela prática de
mortificação constante das nossas paixões, inclinações, humores e
aversões, somos obrigados a vigiar-nos continuamente a fim de
morrermos a tudo isso”

“Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ficará só, isto é, não
produzirá fruto, mas, se apodrecer, multiplicar-se-á cem por um.
Vós, por conseguinte, que pretendeis à tomada de hábito, vós que
quereis fazer a santa Profissão, vede bem se estais firmemente
resolvidas a morrer a vós mesmas, e a só viverdes para Deus.
Refleti bem, pois ainda vos sobra tempo de pensar, antes de que os
véus se tornem pretos, porque, minhas caras filhas, sem querer
iludir-vos, declaro que se alguma deseja viver segundo a natureza,
fique no mundo; e as que estão resolvidas a viver segundo a graça,
abracem a vida religiosa, a qual outra coisa não é senão uma escola
de mortificação e de abnegação de si mesma”.
Agora entram em cena as postulantes que gostam de fazer ouvir a
sua bela voz ou que, no locutório, são atraídas pelo semblante
sereno das religiosas. Este discurso, aliás, a elas se dirige.

“Mas, dirão, não é isso que procuravam. Pensavam que, para ser
boa religiosa, bastava o desejo de rezar bem, de ter visões e
revelações, de ver anjos em forma de homem, de ser arrebatada em
êxtase, de gostar das boas leituras. E agora? No mundo, julgava-se
tão virtuosa, tão mortificada, tão humilde! Todos a admiravam! Não
era, em verdade, humilde ao falar tão suavemente com suas
companheiras a respeito da devoção, ao contar-lhes os sermões
que não puderam ouvir, a tratar com mansidão aos de casa,
sobretudo quando não a contrariavam? Sem dúvida, minhas caras
filhas, isto era bom no mundo, mas a vida religiosa manda que
façamos obras dignas da nossa vocação, isto é, que morramos a
nós mesmos em todas as coisas, tanto naquilo que é bom e do
nosso gosto, como naquilo que é nocivo e inútil. Será que os
religiosos do deserto, que chegaram a tão grande união com Deus,
o conseguiram seguindo suas inclinações? Não de certo.
Mortificaram-se naquilo que era santo, e embora tivessem muito
pendor para os cânticos sacros, para ler, rezar e outras coisas mais,
não o faziam apenas pelo prazer que sentiam. De modo algum. Pelo
contrário, privavam-se muitas vezes desses prazeres, embora bons
e lícitos, para se dedicarem às obras árduas e difíceis. É, porém,
verdade que as almas religiosas recebem mil doçuras e
consolações no meio das mortificações e práticas da santa religião,
porque é principalmente sobre elas que o Espírito Santo derrama
seus preciosos dons. Elas devem, portanto, na vida religiosa,
procurar só a Deus e mortificar seus caprichos, paixões e
inclinações, porque se buscarem outra coisa, nunca encontrarão a
consolação a que aspiram. Mas é preciso uma coragem tenaz para
não nos fatigarmos e nos impacientarmos com nós mesmos,
porque sempre haverá o que fazer e o que cortar”

“Tal irmã, segundo lhe parece, se sente muito dada à oração. Mas
recebe ordem de ir para a cozinha. Que má notícia para quem se diz
tão devota! Ah! é preciso morrer para que Deus viva em nós, porque
é impossível conseguirmos por outro meio, fora da mortificação, a
união da alma com Deus. São palavras duras: É preciso morrer;
mas são seguidas de grande doçura, porque, por essa morte, nós
nos unimos a Deus”
É mister fazer tudo o que prescrevem as Regras, por mais que nos
custe.

“Notai bem que digo fazer, porque não é de braços cruzados que se
adquire a perfeição” (102)
E há quem afirme que São Francisco de Sales nunca fala de
mortificação! É, sem dúvida, em primeiro lugar o arauto do amor de
Deus; mas “o puro amor de Deus nunca está tão bem como na
mortificação de nós mesmos; à medida que esta cresce, vamos nos
chegando ali onde se encontra o amor divino” (103).
É bom insistir sobre este ponto da sua doutrina — embora talvez ao
preço de repetição — porque é muito desconhecido.

“Minhas caras filhas, devemos esfolar a vítima se quisermos que


ela se torne agradável a Deus. Na antiga lei, Deus não queria que o
holocausto lhe fosse oferecido sem que estivesse bem purificado;
assim também os nossos corações só estarão aptos a ser imolados
e sacrificados em honra da divina Majestade, quando forem
arrancadas as peles velhas, que são os hábitos, inclinações,
repugnâncias, afeições supérfluas, que nascem do nosso “eu” e da
nossa vontade própria” (104)
***

A mortificação deve ser incessante, ilimitada, estender-se a toda a


vida, e desobstruir todos os cantos, afastando os numerosos detritos
com que os entulha o amor próprio.

“O Bem-Amado das nossas almas vem a nós e encontra os nossos


corações repletos de desejos, de afetos e de caprichos. Não é isto,
porém, que procura, antes os quer encontrar vazios, para deles se
apossar como dono e Senhor” (105).

“Enquanto tivermos apego a qualquer defeito, por pequeno que seja,


até um pensamento inútil, nunca alcançaremos a perfeição”.
Evitemos aqui as generalidades, “nada, mais fácil na teoria do que
dizer: é preciso renunciar a si mesmo e abdicar da própria vontade.
Mas nada é tão difícil na prática”. Nenhuma minúcia será
desprezada, o mal será “cortado” pela raiz, logo que se dê a
conhecer, por menor que seja. É preciso também examinar
conscienciosamente se, de fato, como nos parece algumas vezes,
estamos verdadeiramente desapegados; se, por exemplo, quando
alguém nos elogia, dizemos alguma coisa para realçar esse bom
conceito, ou se o provocamos, por meio de palavras manhosas,
alegando que nos falta memória, ou inteligência necessária, para
falarmos bem” (106). A lista de exemplos a citar é longa…
Quanto às mortificações clássicas da mesa, requerem um coração
intrépido, que nos arraste a praticar todos esses pequenos
sacrifícios. Mas nem basta um coração intrépido, deve ainda ser
alegre.

“Se num dia de jejum estiverdes indisposta e com ares


melancólicos, embora não tiverdes vontade nem necessidade de
tomar algum alimento, digo-vos, minha cara filha, que, em vez de
dois dedos de pão e de vinho, deveis tomar dois dedos de coragem
e de vigor, a fim de que vosso aspecto doentio não prejudique às
outras, que ficariam apreensivas com o vosso mal” (107)
“De ordinário, contentemo-nos não só com pouco, mas com tudo.
Quanto a mim, nunca acho nada a dizer da carne, exceto que é boa
demais. Não é assim que devemos fazer, minhas filhas? Receais
que os pratos feitos de restos vos façam mal ao estômago; a mim
faz-me mal ouvir falar nisso, mas quanto a comê-los, nunca” (108)
“Desejo muito que não se fale de comedorias entre nós; comamos
de boa vontade o que nos for apresentado, seja ou não do nosso
gosto; basta que sustente o nosso saco de vermes” (109)
Evitemos, na oração, a tendência demasiadamente natural, para
não dizer geral, de só procurar a doçura dos afetos sensíveis;
porque “nossas satisfações e consolações não agradam aos olhares
de Deus, mas somente a esse miserável amor a si mesmo e
cuidado que temos da nossa própria pessoa” (110). Em que nos
devemos mortificar? perguntava Sóror Isabel da Trindade. Em tudo.
Quando? Sempre. Jesus baixou à terra para padecer e morrer.
Quem não carrega sua cruz não pode ser seu discípulo. Mas ai de
nós! Não fazemos nada disso. Quando sua bondade suprema nos
priva da consolação que nos dispensava em nossos exercícios,
julgamos tudo perdido. Quantos santos desejos de agradar ao Bem-
Amado formula a alma cheia de consolações. “Enternece-se junto
dele, e a ele se abandona”. Numerosas são suas obras de caridade!
Sua modéstia chama a atenção das outras.
“As mortificações, longe de me custarem, diz ela, me eram motivo
de consolação; as obediências causavam-me alegrias. Apenas
ouvia o primeiro toque do sino, e logo me levantava. Agora, porém,
sinto-me desgostosa e em plena secura.”
Parece-lhe, até, que lhe falta coragem para tudo; não tem mais
aquele fervor primitivo; enfim, sente-se de gelo e tudo nela é frio.
Pobre alma! Traz seu desgosto estampado no rosto; tem o
semblante carrancudo e melancólico, e anda tão pensativa e
confusa que faz pena. Que é? perguntam-lhe constrangidamente.

“Ah! Estou tão abatida; nada me dá prazer, tudo me desgosta”


Coitada, que fraqueza! Não devemos ser assim, “mas nos devemos
deixar despojar pelo nosso soberano Senhor quando e como lhe
aprouver, sem nos queixarmos nem nos lamentarmos, mas
procurando por todos os meios aperfeiçoar os nossos exercícios a
fim de lhe testemunharmos a nossa fidelidade. Um único ato feito
com secura de espírito vale mais do que muitos feitos com grande
ternura” (111).
“Por isso se costuma dizer, a quem entra para o convento, que é
uma escola de abnegação de toda vontade, uma cruz em que se
crucifica, em suma, aí devemos entrar para padecermos e não para
sermos consolados. Quem quiser açúcar e pastilhas vá buscá-las na
farmácia; aqui os alimentos são amargos e desagradáveis para o
paladar, mas salutares para o coração. Pergunto sempre a estas
almas, e faço-o sem receio de me repetir: Que viestes buscar no
convento, minhas filhas? Consolações? Sim. Que fazeis aqui?
Enganam-se as que pensam encontrar consolações, gozos e
doçuras espirituais. Ah! Não deveis procurar isso aqui, porque
semelhante procedimento é intolerável para quem conhece, por
pouco que seja, a devoção. Quem vem, é para viver numa profunda
humildade e inteira resignação, e receber, com a mesma boa
vontade, as desolações e as consolações, as doçuras e as
tribulações, as securas e os desgostos. Se Deus vos der
consolações, ou confeitos, beijai-lhe a mão e agradecei-lhe muito
humildemente, mas não vos detenhais no caminho, passai adiante,
e humilhai-vos”
“É de certo muito doloroso para nós vermos nosso Senhor sofrer
tanto, privar-se de todos os prazeres e consolações que poderia ter
recebido no meio dos sofrimentos, servindo-se apenas do
indispensável, e sermos nós tão apreciadores desses bens ao ponto
de parecer que só trabalhamos com o fim de os alcançar! Apenas os
possuímos, e logo ficamos a mirá-los e a saboreá-los, sem nada
fazermos de importante. Essas doçuras só servem de divertimentos
para certas almas que as procuram com demasiada avidez. Ah! não
nos são necessárias, não nos tornam melhores. Deus as concede
não somente aos justos, também aos pecadores, pois as dá por
vezes a almas que se acham em estado de pecado e fora da sua
graça. Por que, então, apegar-vos tanto a elas? Considerai, por
favor, o Menino recém-nascido no presépio de Belém; ouvi o que
vos diz; vede o exemplo que vos dá”
“Escolheu o que havia de mais áspero e de mais incômodo por
ocasião da sua Natividade. Ah! quem seria capaz de ficar ao pé do
presépio, durante toda a oitava, sem derreter-se de amor, ao ver o
Infante a chorar e a tremer de frio num lugar tão pobre! Com que
respeitosa reverência a gloriosa Virgem, nossa Mãe, contemplava
esse coração, a palpitar de amor no seu regaço; como enxugava as
doces lágrimas que rolavam suavemente pelas faces divinas dessa
bendita Criancinha! (112)”
Mas o despojamento pode ir mais longe ainda, e se pode, deve, ou
antes, há um despojamento que ultrapassa a todos os outros. É a
renúncia à própria vontade. Muitas almas querem mortificar-se, mas
a seu modo; querem praticar a renúncia, mas, bem entendido, só
porque assim o querem. Ora, é preciso “o abandono total, que
submete, sem reserva, a vontade e todos os afetos ao beneplácito
de Deus. Digo sem reserva, porque é tão grande nossa miséria que
nos reservamos sempre alguma coisa. As pessoas mais espirituais
conservam, em geral, a vontade de terem virtudes”. Daí não se
depreende que não devemos desejar a virtude e a ela tender, é
claro. Mas quanto a termos preferência em matéria de virtude —
esta é nossa, aquela não — ainda nisto há muito de nós mesmos.
Pedir, por exemplo, a prudência “para vivermos honradamente, e
não pedir a simplicidade… Submeto-me, ó meu Deus, inteiramente
à vossa vontade; mas dai-me a necessária coragem, para que,
dedicando-me ao vosso serviço, possa realizar belas obras. Na
mansidão, porém, que nos leva a viver com o próximo, ninguém
fala” (113). O amor que não procura a Deus, e só a Deus não é
puro. A alma não está ainda vazia. Esta obra de desapropriação
deve atingir uma profundeza assustadora. Devemos morrer, minhas
filhas!
“Não basta adoecermos e termos aflições, porque Deus o quer;
devemos ainda ser como ele quer, quando quer, pelo tempo que
quiser e do modo que lhe aprouver, sem que haja da nossa parte
nem escolha nem repulsa por nenhum mal ou aflição, por mais
humilhante e abjeta que seja, pois o mal e a aflição, sem a abjeção,
incham frequentemente o coração, em lugar de humilhá-lo. Quando,
porém, sofremos um mal sem honra, ou quando a própria desonra,
o aviltamento ou a abjeção são o nosso quinhão, não nos faltam
então ocasiões de praticarmos a paciência, a humildade, a modéstia
e a mansidão de espírito e de coração” (114)
“As melhores abjeções são as que vêm do acaso, ou as que nos
impõe as circunstâncias da vida, porque não as escolhemos, mas as
recebemos conforme no-las envia Deus, cuja escolha é sempre
superior à nossa” (115)
Quanto às penitências que escolhemos só mortificam a parte
superficial do nosso ser, por serem do agrado da nossa vontade.
Mas quanto às que chegam sem que as peçamos nem as
procuremos, as que não nos agradam nem quiséramos, estas nos
ferem o amor próprio na sua origem. Se as aceitamos, é quase a
contragosto. Gostaríamos de as poder não aceitar ou rejeitar, e só
conseguimos nos submeter a elas pela parte superior da vontade.
Quanto menos, por conseguinte, forem do nosso agrado, do nosso
gosto, tanto menos parte, é evidente, teremos nelas, e tanto mais
arrancarão as duras raízes do amor próprio.

É por isso que nada torna nossa alma tão dócil e flexível como a
obediência, ou, melhor ainda, o vivermos à mercê do nosso
próximo. Não se trata, aqui, evidentemente, de quem nos levasse
para o mal, e sim de saber distinguir entre as ações boas e as mil
fantasias que nos alimentam o amor-próprio. — “Devemos ter um
coração dócil, flexível e condescendente” (116).
Quem se dedica ao próximo, digo mais, quem dá a vida por ele, faz
menos do que quem fica ao seu dispor para agir para ele ou por ele.
Pois não basta ajudar nosso próximo com nossos bens temporais,
nem basta, diz São Bernardo, nos dedicarmos pessoalmente, até
sofrermos por amor dele. Mas é preciso ir mais longe, deixando que,
em virtude da santa obediência, disponha de nós em tudo, direta, ou
indiretamente.

Pois quando agimos por nós mesmos, segundo os nossos desejos e


vontade própria, o amor próprio fica muito satisfeito; mas fazer o que
os outros querem de nós e não o que nós queremos, isto é, o que
não escolhemos, constitui o sumo grau da abnegação. Se
quiséssemos pregar, por exemplo, e nos mandassem tratar de
doentes, rezar pelo próximo, e nos mandassem servi-lo. Ah! Mais
vale, sem dúvida, fazer o que os outros nos mandam fazer, contanto
que não seja contra a vontade de Deus, nem possa ofendê-lo, do
que o que fazemos ou escolhemos por livre vontade” (117).

Lembrais-vos de todas as pequeninas diplomacias e da


sensibilidade sutil nas relações das irmãs com as superioras, de
suas queixas por estarem descontentes? Que devemos fazer,
quando alguém nos corrigir ou mortificar? Devemos abrir os braços
a essa mortificação como uma prenda de amor, ocultá-la no
coração, beijá-la e acariciá-la com ternura.

Quando, pois, em plena secura, nos separarmos da superiora, sem


termos recebido uma só gota de consolação, levemos essa secura
como se fossem um bálsamo precioso, a exemplo do que fazemos
com os afetos que recebemos na santa oração, — tendo grande
cuidado para não derramar o licor precioso que nos foi enviado do
céu, qual dom excelente, a fim de nos perfumar o coração, privado
da consolação que esperava encontrar nas palavras da superiora”
(118).

Gravemos bem as últimas palavras: A fim de nos perfumar o


coração, privado da consolação. Não se trata aqui de resignação,
nem de aceitação, mas de perfumar o coração. Quem dirá ainda
que São Francisco de Sales não fala em mortificação?
Mas não terá muito valor se não durar, “porque não custa fazer
alegremente aquilo que nos mandam fazer uma só vez, mas quando
nos dizem: Tereis de fazer isto sempre, e durante toda a vida, é que
se revela a virtude e que aparece a dificuldade”.
As noviças, é certo, fazem prodígios durante o ano do seu noivado,
e “chamam atenção pela sua mortificação, pois conservam sempre
os olhos baixos” (119).
É preciso, porém, perseverar, e o grande segredo da perseverança
não consiste nos impulsos do coração, nem nas virtudes
extraordinárias, mas na obediência, na simples submissão às
Regras, segundo o curso normal da Congregação, que, se nos dá
Regras, “é para servir de lagar aos nossos corações e extrair deles
tudo quanto for contrário a Deus” (120).
Esta modesta virtude é poderosíssima para quebrar o amor próprio,
pois: “se houvesse uma Irmã generosa e corajosa ao ponto de
querer alcançar a perfeição num quarto de hora, fazendo mais do
que faz à Comunidade, eu lhe aconselharia que se humilhasse e se
sujeitasse a não querer ser perfeita senão em três dias,
acompanhando o ritmo das outras”. Insinuar discretamente que há,
no retraimento humilde, uma perfeição mais elevada ainda do que
nessa generosidade um tanto ostensiva”.
É preciso também não “tomar como vento favorável, isto é, como
inspiração, todos os caprichos que nos vêm, porque o nosso amor
próprio, sempre em busca de sua própria satisfação, ficaria então
contentíssimo. Não posso insistir demais sobre a importância deste
ponto, isto é, do exato cumprimento das mínimas prescrições da
Regra, a fim de observá-la do modo mais perfeito — até das
pequenas cerimônias. Tão pouco devemos fazer mais do que
prescreve, sob pretexto algum” (121).
Numa palavra, para atingir a perfeição, há um só caminho, o da
obediência. Praticada todos os dias, em todas as coisas, é uma
chuva miudinha que nos penetra de manso a alma, até embebê-la…
Lembro-me de ter visto outrora, num país hulhífero, trabalhos de
sondagem: Um tubo fino, terminando por uma verruma, introduzido
no solo, abria um buraco por meio de um movimento giratório
rápido, e descia lentamente, mas reta e diretamente, a centenas de
metros de profundidade. Assim como a verruma, Deus penetra na
alma, pela prática contínua da obediência humilde, assim perfura
vagarosa, mas retamente, até ao fundo, e nenhuma camada de
granito resiste à modesta mas infatigável perfuradora.

Assim morrerão “as caras filhas” para se tornarem todas de Deus.

“Ah! minha Madre, nossas Irmãs estão de tal maneira resolvidas a


amar a mortificação, que faz gosto vê-las. Já não dão mais valor à
consolação, que tal o apreço em que têm o sofrimento, as securas,
as repugnâncias, porque desejam tornar-se semelhantes ao
Esposo. Ajudai-as, pois, nesta empresa; mortificai-as bem e
denodadamente, sem poupá-las, porque isto pedem. Não se
afeiçoarão mais aos carinhos, por ser isto contrário à generosidade
da sua devoção, mas se apegarão tão firmemente ao desejo de
agradar a Deus, que não quererão mais nada” (122)
Mas será mesmo tudo isto de São Francisco de Sales? Este
ascetismo duro destoa os vergéis floridos e sua doutrina sorridente.
Que será deste espírito de mansidão, que é próprio da Visitação?

É o momento de lembrar o que dissemos a princípio: mansidão não


é moleza, nem tibieza. Não exclui o vigor nem a generosidade, —
muito pelo contrário, como tudo bem o demonstra.

Ele, no entanto, quase não tratou da mortificação física, da


austeridade propriamente dita, com o aparelhamento terrível de
instrumentos de penitência, que exibem as Ordens antigas.
“Ah! não, porque a perfeição não consiste nessas austeridades,
meios de certo bons para a conseguir, e boas em si; não nos
convêm, todavia, porque não são conformes às nossas Regras, nem
ao seu espírito, nem, tão pouco, é regra geral que devamos; fazer
tudo aquilo que nos repugna, ou nos abster de tudo aquilo que nos
agrada” (123)
Então como há de ser? Tome-se um tubo de vidro, e procure-se
curvá-lo. Há de resistir ou quebrar-se. Mas se for aquecido na
chama de uma vela, tornar-se-á flexível e tomará as formas que lhe
quiserem dar.

Assim também com os caracteres.

“Devemos morrer, minhas filhas”


Mas esta morte se efetuará mais facilmente pelo trabalho lento da
obediência humilde e do esquecimento próprio, do que pela
violência das austeridades. São virtudes que tornam as almas
maleáveis nas mãos de Deus, e as transformam numa pasta que ele
amassa à sua moda. E operam suavemente este trabalho; O
seguinte texto, que encontrei ao acaso, demonstra bem esta
transição:

“É preciso, ensinar às Irmãs que elas têm um coração para amar,


louvar e servir a Deus fielmente, e que Ele as congregou, para que
sejam extraordinariamente esforçadas, denodadas, corajosas,
perseverantes em seu serviço, que se dediquem às grandes e
perfeitas virtudes de uma devoção máscula, forte e generosa, à
abnegação do amor próprio, ao amor da própria abjeção, à
mortificação dos sentidos, à sincera dileção, e que façam o que lhes
manda a superiora, nem mais nem menos, sem outra pretensão,
senão a de servir à divina Majestade. É bem duro sentirem-se elas
aniquiladas e mortificadas em todo encontro com a superiora. A
habilidade, no entanto, de uma Madre caridosa e doce, fá-las engolir
essas pílulas amargas com o leite de uma santa amizade,
dispensando continuamente às suas filhas um acolhimento jovial,
gracioso, a fim de que elas venham pressurosas e alegres, e se
deixem manejar como bolas de cera que se amolecem sem a menor
dificuldade ao contato com esse fogo de caridade ardente.”
É preciso morrer, mas morrer suavemente e não de morte violenta.
Será, todavia, morte, e este ideal suave encerra, apesar de tudo,
pavorosa austeridade. Assim é que afasta a mais de uma. A
Visitação é para corpos fracos, mas para espíritos fortes e “as
humilhações que aí se devem praticar fazem esmorecer algumas
vezes as candidatas (124). A propósito; quero contar que, ontem, a
minha priminha veio visitar-me, e abriu-se comigo a respeito de suas
intenções relativamente à vocação religiosa, e me expôs seu caso
com tanta sinceridade e gentileza, que me deixou muito edificado e
consolado. Disse-me que desejava muito ter vocação para religiosa
da Visitação, mas que não tinha coragem de se resolver, porque não
podia aspirar a tão alta perfeição e julgava impossível empreendê-
la. Creio que a pobre menina não pensa absolutamente em se
casar, e que se acomodaria bem a outra espécie de vida, em que se
não observasse uma regra tão radical como é a da Visitação” (125).
Eis aí, exposto com clareza, o nosso espírito de mansidão. Mas
ouço o leitor propor-me uma série de objeções. Isto, dirá ele, de
morte, de aniquilamento, e de submissão do espírito a toda sorte de
obediências, desprezando a vontade própria, que é, senão renunciar
ao que nos torna homens! O homem perfeito torna-se então um ser
impessoal, que não ousa mais pensar nem querer, um manequim
sem movimento nas mãos de quem o dirige? É levar longe demais a
renúncia. Tal passividade não permite sequer que se tenha vontade
de se renunciar, porque seria ainda vontade própria! Não se tem
mais vontade alguma, e aguarda-se numa completa indiferença —
espécie de nulidade moral, — o impulso, seja qual for, que lhe
venha do diretor. Isto toca, ao Budismo!

E que fica do que já foi dito acerca da espontaneidade dos santos?


Essa máquina de produzir o vácuo aspira, com os defeitos, a própria
personalidade.

É isto mesmo que eu esperava. É o eterno grito da natureza contra


a vida cristã, — extingue a personalidade! A ideia que o mundo faz
da individualidade, da energia e da nobreza está ligada ao orgulho;
tem a humildade o desprendimento em conta de fraquezas;
considera a obediência uma vergonha e a doutrina de Cristo um
aviltamento.

Nós, porém, pregamos a Cristo crucificado, escândalo para o mundo


e demência para os filósofos. Tais objeções, sempre atuais após
dezenove séculos, causar-nos-iam grande prazer, porque
provariam, ao menos, que o leitor leu estas páginas com atenção, e,
também, porque gostamos que surjam dificuldades no momento
preciso em que as vamos resolver…

Primeiramente, nós nos limitamos a verificar que os santos são


seres vivos e homens como nós. Depois, tendo tratado de perto com
as boas irmãs da Visitação, verificamos, mais uma vez, que, de fato,
elas não abdicam de sua personalidade, — muito pelo contrário,
pois ainda soam frescas aos nossos ouvidos tantas histórias
jocosas. Resta a saber se assim deveriam fazer, — se é este o seu
ideal, mas se sua personalidade está unicamente nas suas
imperfeições, e se este aniquilamento que lhes prega o bom Pai
deve levá-las ao automatismo degradante de bonzos chineses.
Chegamos aqui ao ponto culminante da doutrina salesiana, a dois
princípios que resolvem claramente, ao meu ver, as objeções
clássicas conhecidas, sem dúvida alguma, antes de São Francisco
de Sales, mas que ninguém até então havia explicado com tão
luminosa clareza. Formam estes dois princípios, se assim posso
dizer, a lei da estabilidade da vida cristã. Trata-se da doutrina da
união pela parte superior da alma, e a do abandono na simplicidade.
As páginas que se seguem visam apresentar estas fórmulas
abstratas sob o ponto de vista da realidade da vida.

As caras Filhas devem unir-se a Deus pela


parte superior da alma
À primeira vista este texto parece estranho. São Francisco de Sales,
depois de recomendar às suas filhas que tomassem a espada da
mortificação para matar suas paixões, acrescenta “aquela que as
tiver em maior número, será a mais intrépida” (126). É, de certa
maneira, dar a palma às menos perfeitas!
A mesma ideia se manifesta ainda mais fortemente algumas linhas
atrás:

“Não se exige de vós que não tenhais paixões, pois não está em
vosso poder, e Deus quer que estas se façam sentir até à morte,
para que seja maior o vosso merecimento; nem que sejam pouco
violentas, porque equivale a dizer que uma alma sem ardor não está
apta a servir a Deus”
O divino Amante de nossas almas deixa-nos muitas vezes como
que imersos nas nossas miséria a fim de nos mostrar que só Ele
pode livrar-nos delas (127). E isto explica por que, algumas vezes,
será mais vantajoso e melhor que as virtudes não se tornem em
hábito, contanto que as exerçamos todas as vezes que se nos
apresentar ocasião, porque a repugnância que sentimos na prática
de alguma virtude deve servir para nos humilhar, e a humildade vale
sempre mais que tudo isso (128).

Essas paixões e misérias, no entanto, não deixam de ser outros


tantos sinais de imperfeição. Como pode ser agradável a Deus ver-
nos tão cheios de defeitos? Que é, então, a santidade?

“A espiritualidade desta casa deve ser generosa, independente de


qualquer espécie de ternura, gosto ou consolação sensível. Não
procuremos livrar-nos de nossas penas, repugnâncias e aversões,
porque não nos prejudicam de modo algum. Quando, pelo contrário,
alguém nos manda fazer aquilo que nos repugna à natureza, e
fizermos com a força do amor intelectual, não resta a menor dúvida
de que o mérito desta ação será infinitamente maior do que se a
tivéssemos praticado sem repugnância” (129)
Eis a santidade. É toda a doutrina da união pela parte superior. Mas,
para que a compreendamos bem, precisa ser desenvolvida.
O único fim da vida cristã é o amor que une a alma a Deus, “porque,
como já disse, pouco ou nada adiantaria renunciar-se e abandonar-
se, a não ser para se unir perfeitamente à divina Bondade (130).
Lembremo-nos sempre de que devemos morrer, mas para que Deus
viva em nós por esta morte. Só temos uma alma, Teotimo, mas
nessa alma há diversos graus de perfeição, pois é viva, sensível,
razoável, e tem, segundo estes diversos graus, uma diversidade de
propriedades e inclinações”. Ora, “enquanto for conforme à razão,
notamos duas partes manifestas, uma das quais é dita inferior,
porque discorre e tira suas consequências do que conhece e
experimenta pelos sentidos e outra dita superior, porque discorre e
tira suas consequências do conhecimento intelectual, que não se
baseia na experiência dos sentidos, mas no discernimento e juízo
do espírito”.
“Não há dia em que não experimentamos em nós vontades opostas.
O pai que vê o filho ir para a corte ou estudos, não deixa de chorar
ao dar seu consentimento, porque, embora a parte superior queira a
partida deste filho para que se aperfeiçoe na virtude, a parte inferior,
no entanto, sente muito a separação. Embora, também, o
casamento da filha seja do gosto dos pais, todavia, ao pedir-lhes a
bênção, ela chora, mostrando assim que a vontade superior
aquiesce à partida, mas a inferior não deixa de sofrer. A vontade,
afagada por diversos atrativos, parece dividida em si mesma
enquanto for atraída pelos dois lados, até que, escolhendo o seu
partido, siga livremente um ou outro” (131)
Apliquemos estes princípios à nossa vida cristã. Muitas pessoas
dizem a nosso Senhor:

“Eu me dou a vós sem reserva, mas poucas põem fielmente em


prática este abandono, o qual não passa de uma perfeita indiferença
na aceitação de quaisquer acontecimentos que lhes forem enviados
pela Providência divina. Digo parte superior da alma, porque é
inegável que a parte inferior, e a inclinação natural, tendem sempre,
de preferência, para o lado da honra e não do desprezo; para o das
riquezas e não da pobreza” (132)
Mas devemos praticar “todas as nossas ações segundo a parte
superior. É assim que devemos viver nesta casa, e nunca segundo
os sentidos e inclinações”.
Tomemos, por exemplo, a obediência: Tal superiora é-nos
agradável, “mas basta que eu lhe obedeça pela parte superior, e
minha obediência terá tanto mais valor quanto menos agradável me
for, porque assim mostramos a Deus que obedecemos por Ele, e
não pelo nosso bel prazer” (133).
Pouco importa, pois, se os sentidos reclamam.

“Precisamos de espíritos generosos que se apeguem a Deus só,


sem se deixarem de modo algum deter pelas exigências da parte
inferior” (134)
“Não devemos tomar seus engenhos em consideração, mas agir
como se não os tivéssemos percebido” (135)
“Nem devemos ficar a ponderar se temos ou não bons sentimentos,
mas proceder como se os tivéssemos” (136)
Finalmente, “a respeito das repugnâncias da parte inferior, convém
dar-lhes a mesma atenção que dão os transeuntes aos cães que
latem ao longe” (137).
Depois, prevendo uma objeção, já sem dúvida alegada:

“É preciso, neste caso, não dizer que fala a boca e não o coração;
porque quando o coração não quer, a boca não diz uma só palavra”
(138)
Friso bem que esta resolução de pleno abandono a Deus não
precisa tornar-se sensível, mas deve estar conscientemente em nós,
sem nos deixarmos distrair com o que sentimos ou não, pois a maior
parte dos nossos sentimentos e satisfações são simples
passatempos do amor próprio. Não devemos pensar tão pouco que,
em se tratando de abandono e de indiferença, nunca nos hão de vir
desejos contrários à vontade de Deus, nem que certos
acontecimentos de seu divino agrado não nos repugnem à natureza,
o que pode muito bem acontecer. São virtudes que habitam na parte
superior da alma; a inferior, ordinariamente, fica-lhes alheia. Nada
devemos empreender sem consultar esta vontade divina,
abraçando-a, seja qual for, e unindo-nos a ela.

Nessa região superior, que paira acima dos sentidos, move-se a


vida cristã.

“Nosso Senhor, às vezes, quer que as almas destacadas para o


serviço da sua divina Majestade se alimentem da resolução firme e
inabalável de perseverar, seguindo-o, apesar dos desgostos,
securas, repugnâncias e amargores da vida espiritual, sem
consolações, sem gostos, sem ternuras, sem prazer; julgando-se
indignas de outra coisa, seguindo assim o divino Salvador com a
parte superior do espírito; sem outro apoio senão o da vontade
divina, que assim o determina. Eis, minhas caras filhas, como eu
desejo que caminhemos. Há pessoas muito perfeitas, às quais
nosso Senhor nunca concede tais doçuras, nem quietudes, que
obedecem sempre à parte superior da alma, e fazem morrer sua
vontade na vontade de Deus, à viva força, e com o cimo da razão”
(139)
Trata-se agora da união, não simplesmente com a parte superior,
mas com a fina ponta, o ápice do espírito. Coincide, afinal, com a
morte da alma.

“É preciso morrer, minhas filhas, mas para que Deus viva em nós”
Toda a parte inferior da alma deve morrer, para que a superior possa
voar para o Bem-Amado.

Ou, antes, a superior deve desprender-se. Não nos iludamos; a


parte inferior, a dos sentidos e das paixões, está sempre a se agitar.
Custa muito mais a morrer do que nós em relação a ela. A morte da
qual devemos morrer consiste na renúncia a tudo que nos vem
dessa parte inferior. Não a deveremos, pois, amar, nem alimentar.
Assim, muitas paixões irão desaparecendo, enquanto outras
dificilmente se hão de vencer, e, de vez em quando, hão de explodir.
Que fazer, então? Santo Tomás, na Summa; compara a vontade
com o que chamaríamos hoje um rei constitucional. Reina, mas nem
sempre a seu gosto. Nos debates, por mais extravagantes, do seu
parlamento, poderá dizer: não. É o direito do veto. Nada mais, no
entanto, poderá fazer, e terá de esperar, para agir, que se acalme a
exaltação do povo. O mesmo acontece com a nossa pobre carcaça.
“É meu desejo que nunca nos admiremos de nada que nos possa
sobrevir da parte inferior da alma, por pior que seja” (140)
Esta doutrina da união, pela parte superior, esclarece muitos pontos
obscuros e explica, sobretudo, a facilidade com que São Francisco
de Sales acolhia no claustro toda espécie de jovens,
algumas “coléricas e mal educadas”, outras que no mundo
eram “mostruários de vaidade”. Esta vontade reta, a única condição
de que não prescindia, é precisamente a que reside na parte
superior, “de tal maneira que não é necessário, como indício de boa
vocação, ter uma constância sensível, mas basta que esta exista ha
parte superior do espírito e que seja efetiva”.
“Não é incompatível, nos principiantes, com a violência das paixões.
Não resta dúvida de que, para as pessoas de natureza rude e
grosseira, é mais penoso e difícil do que para as que têm gênio mais
dócil e maneável; aquelas cairão mais facilmente em erros do que
estas. Se, no entanto, manifestarem vontade firme de tomar os
remédios, por mais que lhes custe, não lhes recusaria o meu voto,
apesar das quedas, porque tais almas, depois de muitos esforços,
colherão grandes frutos na vida religiosa, e se tornarão ótimas
servas de Deus. A graça supre as faltas, e, muitas vezes, onde há
menos da natureza, há incontestavelmente mais da graça” (141)
“A vida religiosa não tem muito mérito em aperfeiçoar um espírito
bem formado, uma alma naturalmente dócil e calma, mas dá muito
valor a cultivar a virtude nas almas de ânimo forte, porque estas, se
forem fiéis, ultrapassarão as outras, porque conseguirão, com o
trabalho do espírito, o que aquelas adquirem sem dificuldade” (142)
“Mas é preciso salientar bem a diferença entre inclinações e afetos;
porque quando se trata, nesses casos, de inclinações e não de
afetos, não nos devemos afligir, porque aquelas não dependem de
nós, e sim estes” (143)
O mundo muito se engana a respeito.
“Deus não rejeita aquilo em que não há malícia, porque, na verdade,
que culpa tem tal pessoa de ter este ou aquele gênio, estar sujeito a
estas ou àquelas paixões? Tudo depende, pois, dos atos que
praticamos no impulso do momento, que independem da nossa
vontade, pois o pecado é de tal forma voluntário que, sem o nosso
consentimento não o pode haver” (144)
“Quisera, por conseguinte, que não nos perturbássemos com os
maus sentimentos que nos vêm, mas que nos esforçássemos,
corajosa e fielmente, para não consentirmos neles” (145)
“Basta, quanto a este ponto, ou haverá mais alguma coisa a dizer?”
“Que deveríamos fazer para elevar sempre, e em todas as coisas, o
espírito a Deus, sem olhar para a direita nem à esquerda? Minha
cara filha, gosto muito desta pergunta, sobretudo porque traz em si
a resposta. É preciso fazer isso mesmo. Buscar a Deus em todas as
coisas”
“Não foi bem esta a pergunta, eu sei, e sim o que se deve fazer para
fixar de tal maneira o espírito em Deus, que nada o possa desviar
ou afastar dEle. Isto requer duas coisas: Morrer e salvar-se, porque
depois não haverá mais separação e o espírito se afeiçoará e unirá
indissoluvelmente ao seu Deus”
“Mas ainda não é bem isto. Que fazer para que uma mosquinha não
nos desvie o espírito de Deus, como acontece, isto é, as pequenas
distrações? Perdão, minha cara filha, essas mosquinhas de
distrações não afastam o espírito de Deus, como dissestes, porque
nada nos afasta de Deus a não ser o pecado. A resolução tomada
pela manhã, de mantermos o espírito unido a Deus e atento à sua
presença, nela nos guarda sempre, até quando dormimos… Quanto
à oração, não será nem menos útil, nem menos agradável a Deus,
se nos vierem muitas distrações, mas, talvez, nos seja ainda mais
proveitosa se fielmente procurarmos evitá-las”
“O mesmo se dá com a dificuldade que encontramos durante o dia
em fixar o espírito em Deus e nas coisas celestes. Basta que
tenhamos o cuidado de recolhê-lo, e assim impedir que corra atrás
dessas moscas e borboletas, como faz a mãe com o filhinho. Ao ver
o menino correr atrás das borboletas, pensando que vai apanhá-las,
ela chama-o e segura-o pelo braço. Perdes tempo, meu filho, a
correr ao sol atrás das borboletas; é melhor ficares ao pé de mim. E
assim fica o pobre menino até ver outra borboleta, atrás da qual
correria, se a mãe não estivesse ali para agarrá-lo novamente” (146)
‘‘Deus tão pouco se aborrece se cochilarmos durante a oração,
contanto que tenhamos feito tudo para despertar” (147)
“Os mandamentos de Deus e da Igreja não são tão rigorosos como
se pensa”
Aqui o sorriso indulgente do bom Pai reaparece.

“Não devem perturbar tanto os espíritos. A lei de Deus é toda de


amor e de mansidão como afirma Davi. As distrações involuntárias
não tornam a oração nem o Ofício menos agradáveis a Deus. O
mesmo se aplica ao sono. Quando começo a rezar o Ofício estou
alerta, tenho a intenção de dizê-lo do melhor modo possível, como é
do meu dever. Mas me sobrevém certa sonolência que, no entanto,
não me impede de recitar o versículo mais ou menos bem e que se
prolonga pelo espaço de um ou dois salmos. Que fazer então?”
(148)
“Não devemos sempre pensar que houve negligência da nossa
parte quando a distração se prolonga, porque, às vezes perdura o
tempo todo do Ofício, sem que nos caiba a mínima culpa (149).
Nosso Senhor se compraz em nos ver combater todo o tempo, sem
nos querer livrar dessas distrações. Devemos sofrer com paciência
e amar já nossa abjeção” (150)
Assim também a obediência não impede, de modo algum, que haja,
da parte da natureza, pequenos ímpetos de complacência própria
(151). Se nossa superiora é menos apta que sua
predecessora, “não podemos certamente impedir que nos venha tal
ideia. Estar sujeito a ter opiniões próprias, não é, em si, nem bom
nem mau por ser naturalíssimo”. Mais ainda, “estar sujeito a estimar
a própria opinião, procurando esforçadamente argumentos que a
favoreçam, uma vez que a compreendemos bem e mereceu nossa
aprovação, é também muito natural”. Acontece o mesmo com o
primeiro movimento de complacência que sentimos quando a nossa
opinião é acatada ou seguida, o que é inevitável, e aqui é preciso
estabelecer uma distinção importante em si, e na qual nos devemos
basear: Tais sentimentos são inofensivos, “conquanto não nos
afeiçoemos a eles” (152).
“A superiora não deve deixar de corrigir as Irmãs pela aversão que
estas possam sentir, porque tal repugnância talvez nunca
desapareça, pois é inteiramente contrário à natureza do homem
gostar de ser rebaixado e censurado” (153).
Quanto às que recebem alguma correção não se devem admirar se
ficarem perturbadas, porque “se estivéssemos prevenidas com duas
horas de antecedência, talvez não nos comovêssemos; mas de
surpresa é muito difícil que isso não aconteça” (154).
“O fato das toucas serem iguais não impede que os caracteres
sejam diferentes. Há necessariamente entre as Irmãs falta de
simpatia e aversões naturais, que dão lugar a certa má vontade, em
relação àquelas que no-las inspiram. Desagradam-nos, isto é, não
temos o prazer que teríamos em conversar com aquelas que nos
são simpáticas… Ora, não devemos dar muita importância nem às
aversões naturais nem às simpatias, contanto que tudo submetamos
à razão”, porquanto, ninguém está isento de tais sentimentos, por
perfeito que seja (155).
Cuidemos, no entanto, de não diminuir os atos de caridade para
com a pessoa por quem temos aversão; devemos servi-la, falar-lhe,
tratá-la com gentileza, como se nada tivéssemos contra ela, ou mais
ainda, e assim provar a Deus a nossa fidelidade.

“Não digo que, se essa aversão for um pouco forte, nos seja sempre
possível tratá-la com a mesma cortesia que dispensamos a quem
temos amizade. Se está em nosso poder falar com ela e tratá-la
bem, não nos é, todavia, impossível fazê-lo com o semblante afável
e gracioso de quem nenhuma aversão sente. Se, falando com essa
pessoa, mostrarmos menos bom humor, ou desviarmos um pouco o
olhar, se for só isso, não haverá grande mal. Pode também
acontecer que, se eu for repreendê-la, ou admoestá-la sobre
qualquer falta, apesar de ter tido intenção firme de falar com
caridade, todavia ao dirigir-me a ela me mostrasse um pouco
apaixonada, é coisa quase inevitável a todos nós” (156).
Acontece também às vezes quando uma Irmã nos pede um favor,
que, “inadvertidamente, lhe demonstramos o nosso desagrado”.
Também a isto ainda devemos suportar com paciência, “porque não
está em nosso poder impedir que transpareça na cor, nos olhos e
nos gestos o combate que se trava em nosso interior, embora a
razão procure esforçadamente dominar-se. São mensageiros que
vêm sem serem chamados, e que não fazem caso se lhes dermos
ordens de se retirarem” (157).
A irascibilidade é, por natureza, uma paixão efervescente, e “é
impossível impedir que o sentimento de cólera não nos mova, e que
o sangue não nos suba ao rosto” (158). Não nos iludamos a
respeito.
“Se me vierem contar que tal pessoa falou mal de mim, ou de
qualquer forma me ofendeu, irrito-me logo, e nem uma só veia deixa
de bater com violência. Mas se, em compensação, eu me voltar
para Deus e fizer um ato de caridade a favor de quem me ofendeu,
não terei pecado. Digo mais, se me passar pela cabeça toda
espécie de pensamentos contra aquela pessoa, e isso durante o dia
todo, ou até durante vários dias, se eu, de vez em quando, fizesse
atos contrários, não teria pecado” (159)
Porque “a cólera e a tristeza são paixões”, são simples tendências
naturais, “e seus movimentos não constituem pecado, porquanto
não está em nosso poder afastá-los” (160). Só uma coisa nos
pertence, é o consentimento.
“Ponhamos que a cólera me surpreenda. Dir-lhe-ei: Vai-te, retira-te,
arrebenta, se quiseres; não te darei atenção, nem uma palavra
sequer direi em teu favor” (161)
“Pois bem, se me transtornar o coração, se me esquentar a cabeça
de todo lado, se me fizer ferver o sangue como água no fogo, não
deixarei, tanto quanto me for possível, de ser afável e mansa, e
destruirei todas as razões que a natureza me apresentar para o seu
desabafo, sem ouvir a uma só” (162)
“Já que tais movimentos não são pecados, é preciso, sempre
observadas as regras da prudência, não deixar que nos perturbem
tanto. Se eu souber que, encontrando certa pessoa, ela me dirá uma
palavra que me confunda ou me comova, nem devo evitá-la por
isso. Essa perturbação afeta apenas a parte inferior da alma, não
devo, por conseguinte, de modo algum, me assustar, e contanto que
não lhe dê atenção, quero dizer, quando não consentir nessas
sugestões” (163)
“Assim também, minhas filhas, se nos for confiado algum cargo, não
exclamemos logo: Meu Deus! sou tão brusca, que não me faltarão
ocasiões de me afobar; sou tão distraída que se me derem o cargo
de porteira, o ficarei ainda mais, porque sabem-se ali tantas
novidades… Aceitai-o com simplicidade. Deus vos amparará, e vos
tornareis mais perfeita ali do que se não tivésseis nenhum cargo
com que vos ocupar. Não basta, disse Cassiano, para sermos
pacientes e mansos com nós mesmos, que fiquemos privados da
conversação dos homens, porque já me aconteceu, estando eu só
na minha cela, me ter encolerizado tanto, porque o meu fuzil não
dava fogo, que o atirei longe com raiva” (164)
“A mortificação das paixões e inclinações requer tempo” (165)
“Devemos ser indulgentes com os principiantes. Não se pode dizer
que haja falta de perseverança, quando nos acontece interromper
algumas práticas de virtudes, contanto que não as deixemos por
completo” (166)
É mais que natural, e seria erro desanimarmos por causa disso.

Afinal, todas essas tristezas e desânimos não passam ainda de


amor próprio, porque nos humilham.

“Nossa Madre me diz que as nossas irmãs noviças tem boa


vontade, mas lhes falta força para fazerem aquilo que querem e
suas paixões são tão violentas, que receiam dar os primeiros
passos. Coragem, minhas caras filhas. Já vos tenho dito diversas
vezes que a vida religiosa é uma escola onde se vem aprender a
lição; ora o professor não faz questão de que os alunos a saibam
sempre de cor, mas que tenham boa vontade e procurem aprendê-
la. É como as pessoas que começam a atirar. Erram muitas vezes.
Assim também as que aprendem a andar a cavalo caem com
frequência. Mas não desanimam, porque uma coisa é ser vencido,
de vez em quando, outra é ser derrotado. Precisamos, porém, de
uma coragem inabalável para não nos enfadarmos de nós mesmos,
porque sempre teremos alguma coisa a fazer e a cortar. Assim
como o lavrador, que cuidou de semear bem a terra e cultivá-la, não
merece censura nem se deve aborrecer quando a colheita não foi
boa, também o religioso não se deve contrariar por não colher logo
os frutos da perfeição e das virtudes, contanto que tenha cultivado
fielmente a terra do seu coração, arrancando tudo quanto lhe parece
contrário à perfeição que, na medida do possível, se prontificou a
praticar, porque só no Paraíso ficaremos perfeitamente curados”
(167)
E para terminar:

“Não nos iludamos, julgando poder viver sem cometer imperfeições,


e mesmo pecados veniais, porque somos homens. O sacro Concílio
censurou os eremitas que quiseram sustentar a doutrina contrária”
(168)
“É preciso que tomemos duas resoluções de igual valor: uma, de ver
germinar as más ervas no nosso jardim; outra, de ter coragem de as
arrancar com as próprias mãos; porque, enquanto vivermos, o
nosso amor próprio não morrerá” (169)
Ninguém, nem o santo mais sobrenatural, é jamais perfeito. Assim já
dissemos nós, mas agora quem fala é São Francisco de Sales. “Em
suma, todas as criaturas”, com exceção de Nossa Senhora, é
claro, “têm em si perfeições e imperfeições”, e “quem dissesse que
não tem nenhuma imperfeição, mentiria, igualmente quem dissesse
que não tem nenhuma perfeição; porque todo homem, por mais
santo que seja, não deixa de ter imperfeições…”
“Não é, pois, fazer injustiça aos santos contar seus defeitos e
pecados, ao contar suas virtudes. Pelo contrário, os seus biógrafos
prejudicam o próximo quando ocultam suas faltas sob pretexto de os
honrarem, ou deixam, de narrar os primeiros tempos de sua vida,
com receio de diminuir, ou prejudicar, a estima em que são tidos
pela sua santidade. Ah! Não deve ser assim, pois prejudica a esses
bem-aventurados e a toda a posteridade. Os grandes santos,
quando escrevem a vida de outro santo, expõem sempre, com toda
simplicidade, suas faltas e imperfeições, julgando, com razão,
prestar assim igual serviço a Deus e aos próprios santos, como ao
expor as suas virtudes” (170)
Como já tivemos ocasião de dizer, os filhos de Deus não temem a
verdade.

Esta mesma observação encontra-se num autor contemporâneo que


será, talvez, o autor da vida cristã do século XIX. Os santos, diz
Monsenhor Charles Gay, “são manifestações autênticas” de Jesus,
mas, com exceção de Maria, são manifestações muito imperfeitas.
Ousaria dizer isto de todos, tomados em conjunto, e com mais razão
de um isoladamente, sobretudo se os considerarmos durante o
período de formação, que é o tempo da sua vida terrestre, e que
corresponde ao único estado em que nos é dado conhecer os
eleitos neste mundo. Mas nem com esta restrição chegaremos a ter,
aqui na terra, um conhecimento cabal dos santos. Uma parte de sua
beleza, e provavelmente a mais divina na inenarrável história de
Deus em suas almas, ficará sempre oculta. Mas, também, quão
longe estamos de conhecer todas as suas misérias! Como nos
iludimos, pois, julgando conhecer o que se passa no homem interior
e terrestre, e tudo aquilo que a tríplice concupiscência, de que
ninguém está isento, a fragilidade humana, a malícia do mundo, e a
do demônio ainda maior, têm muitas vezes roubado a Deus do seu
ser, da sua vida, e também do seu querer, apesar da graça, e da
sua correspondência a ela. Sua natureza parece-nos domada, mas
quanto tempo levou, quantos esforços custou, quantas alternativas
no combate, e quiçá, quantas derrotas? Eram homens excelentes,
heroicos, divinos até, se quisermos; mas eram homens, e nenhum
deles teria podido, sem presunção desmedida, suprimir, um dia que
fosse, um único dos três últimos pedidos da oração dominical:
“Pai, perdoai as nossas dívidas, não nos deixeis cair em tentação,
livrai-nos do mal”
A terra não passa de uma oficina.

“A hora em que o operário divino julga a obra terminada é, em geral,


a hora em que o arrebata” (171).
“Na escola de nosso Senhor aparecem os gloriosos Apóstolos;
embora tivessem trabalhado muito na reforma de sua vida, quantas
faltas não cometeram! Todos diziam e prometiam mil maravilhas,
inclusive seguirem a nosso Senhor na prisão e até à morte. Mas na
noite da paixão, quando o bom Mestre foi preso, todos o
abandonaram… E os três discípulos, a quem nosso Senhor, parece-
me, mais queria, foram os que caíram em faltas maiores” (172)
“É digno de admiração haver nosso Senhor permitido que diversos
fatos, na vida dos santos Apóstolos, que mereciam ser conservados
por escrito, ficassem ocultos num profundo silêncio, e que uma
imperfeição, de que foram autores o grande São Paulo e São
Barnabé, fosse transcrita, sem dúvida, por uma especial providência
de nosso Senhor, que assim o permitiu para nossa instrução
particular”
Nunca nos estendemos.

“Caminhavam juntos, para pregar o santo Evangelho. Com eles


estava um jovem chamado João Marcos, o qual era parente de São
Barnabé. Este o queria levar consigo e houve tal desacordo entre os
dois grandes Apóstolos, que se separaram. Ora, será então que nós
nos devemos perturbar se cometermos faltas recíprocas, pois não
as cometeram também os Apóstolos? (173)”
São Pedro, muitos anos depois de ter sido confirmado em graça
pela recepção do Espírito Santo, cometeu uma falta “que foi julgada
de tal importância que São Paulo, escrevendo aos Gálatas, disse
que lhe resistira porque ele era repreensível” (174).
São Francisco de Sales estuda a seu modo a vida vivida e realista
dos santos, da qual falamos ao começar destas páginas. Cita o
exemplo de Santa Paula, cuja vida foi escrita por São Jerônimo.

“Generosa no desprezo que votou ao mundo, ao ponto de deixar a


cidade de Roma e todo o bem-estar de que ali gozava, deixou-se,
depois de ter feito coisas tão maravilhosas, dominar pela tentação
do próprio juízo, insistindo em praticar grandes penitências, e não se
querendo sujeitar à opinião dos que lhe aconselhavam de se abster.
São Jerônimo, comentando o caso, confessa que ela era
repreensível. E o mesmo aconteceu a outros santos, que entendiam
ser preciso macerarem muito o corpo, para agradar a Deus,
deixando por isso de obedecer ao médico e de fazer o necessário,
para o sustento do seu corpo frágil e mortal. E embora fosse
imperfeição, não deixaram, por isso, de ser grandes santos, muito
agradáveis a Deus” (175).
Tendo São Pacômio empreendido obras para aumentar seu
convento, um dos religiosos veio ter com ele e lho “exprobrou
grandemente”. E São Pacômio, apesar de grande santo, ficou tão
sentido com a repreensão, que lhe voltou as costas, para, se não
me engane, que seu semblante não revelasse o seu ressentimento
(176).
E agora um esboço em paralelo:

“Que diferença, por favor, há entre o espírito de São Jerônimo e o


de Santo Agostinho? Os escritos deste respiram suavidade e
brandura; os de São Jerônimo, pelo contrário, denotam, estranha
severidade e dão ideia de se tratar de gente rude e intransigente.
Nas suas epístolas, aparece quase sempre irritado. Ambos, no
entanto, eram altamente virtuosos; um, porém, tinha mais doçura, e
o outro, maior austeridade de vida, apesar de os dois serem
grandes santos” (177).
Em resumo, convém repetir apenas o seguinte:

“Nunca seremos perfeitos nesta vida, e; sempre teremos que


trabalhar. Todos devemos aspirar à virtude e procurar dar no alvo.
Se a devemos desejar ardentemente, não devemos, porém,
desanimar, nem perder a coragem, se não acertarmos logo, isto é,
se o cercarmos tão somente; porque nem os próprios santos o
conseguiram em relação a todas as virtudes” (178).

“Nosso Senhor procede conosco como o bom pai ou a boa mãe, a


qual deixa o seu filhinho andar sozinho sobre a relva macia, em
cima do musgo, porque, se vier a cair, pouco se há de machucar,
mas que o leva cuidadosamente ao colo, nos caminhos maus e
perigosos.”
“Há também almas que suportam cheias de ânimo fortes assaltos
sem se deixarem vencer pelos inimigos, para, pouco depois
sucumbirem às tentações pequenas. E por que motivo? Porque
nosso Senhor, vendo que, se caíssem, não sofreriam grande dano,
deixou-as andar sozinhas, mas amparou-as, quando se achavam
nos precipícios das grandes tentações.”

A bela Virtude da Simplicidade


Parece nova esta concepção de santidade em que os santos se
irritam, discutem, sofrem quedas. E a mesma pergunta se impõe
novamente: Se os santos são tão vivos, não é por causa destas
imperfeições, e onde está a essência da santidade? Constará
simplesmente do fato de cederem menos vezes às paixões? Seria
possível levantar uma escala de graus, conforme o número maior ou
menor de quedas, onde se fixaria o mínimo requerido para cada
graduação, como se calculam os pontos nos concursos — aos oito
décimos, bem-aventurados, aos nove décimos os santos —
conseguindo-se assim uma medida muito prática para as
canonizações, quadro de dissecação das tendências naturais. Seria
o triunfo do automatismo, mas dum automatismo que errou o tiro,
pois seria aniquilar toda paixão, o que nunca se poderia conseguir.
Ou, então, não haverá na santidade algo de específico, algo que
mude a natureza da vida e a natureza dos atos, e torna santo quem
o possui, apesar das quedas, e impede quem não a possui, de sê-
lo, apesar de exercer grande domínio sobre si mesmo? Porque,
afinal, tanto um Epicteto como um Calvino podem desprender-se
dos sentidos, e nem por isso são santos.

A resposta está implícita na pergunta. O que há de especificamente


santo na união pela parte superior é a própria união: o
desprendimento dos sentidos é mera condição. Epicteto e Calvino
talvez fossem desprendidos, faltou-lhes, porém, a união com Deus.
O desprendimento dos sentidos é a parte negativa, e nada mais. O
santo não é apenas o homem que vive segundo a parte superior, é o
homem que se une a Deus por meio dela. Sem união, não há
santidade, e não se ultrapassa a sabedoria natural.

A pergunta torna-se agora bem precisa: Não encontra o santo, nesta


união, em lugar da vida à qual renunciou, outra vida, outra
espontaneidade, a vida livre em Deus?

Concebamos bem este pensamento, em que se baseia o


cristianismo: de que o valor dos nossos atos depende das suas
relações com Deus. Jesus nos ensinou uma religião divina, a do
amor de Deus aos homens e a dos homens a Deus. O ato cristão e
meritório é unicamente o que se refere ao fim divino; o ato mau ou
pecaminoso é o que lho contradiz. É dizer que só o amor dá valor
aos atos, pois é só pelo amor que o homem se une ao Criador. A
caridade é para a Igreja o que o sangue é para o organismo
humano; as palpitações do coração divino a projetam, sem cessar,
sobre o mundo, a fim de vivificar, e, sob seu impulso estabelece-se
uma nova escala de merecimentos. A matéria do ato torna-se coisa
secundária. O amor dá-lhe o valor, e se as obras heroicas são
muitas vezes mais dignas de admiração, é porque, em geral, são
mais difíceis em si, e por isso denotam mais amor. Dizemos, em
geral, porque “não é pela grandeza de nossas ações que nos
tornamos agradáveis a Deus, mas pelo amor com que as
praticamos. Uma Irmã, na sua cela, fazendo um trabalho qualquer,
pode merecer mais do que outra fazendo outro muito mais penoso,
se aquela o fizer com mais amor do que esta. É o amor que imprime
perfeição e valor às nossas obras. Tal pessoa, que sofresse o
martírio por Deus com uma onça de amor, mereceria de certo muito,
porque ninguém pode dar mais que a própria vida; porém outra, que
sofresse apenas um piparote, com duas onças de amor, teria muito
mais merecimento, porque é a caridade e o amor que dão valor a
tudo. A contemplação, sabeis bem, é superior à ação e à vida ativa;
mas se nesta houver mais união, será melhor. Se uma irmã estiver
na cozinha “a vigiar a caçarola que fumega ao lume, e tiver mais
amor e caridade do que a outra, o fogo material não a prejudicará,
pelo contrário” (179).
Assim, a alma perfeita é aquela cujos atos são todos de amor. Jesus
é tudo para ela, e ela fixa nEle o olhar. Quando se volta para o
mundo, é ainda a Ele que procura e quando, em determinada coisa
não O encontra, afasta-se, e, embora ali estivesse toda a sua
felicidade humana, não se deixaria atrair, mas se voltaria de novo
para Jesus.

***

Se a perfeição consiste no amor de Deus, a perfeição do amor está


numa virtude que se chama simplicidade. É uma
virtude “inseparável da caridade. Vai diretamente a Deus. Não pode
sofrer mistura de interesse próprio, senão deixaria de ser
simplicidade; não pode tolerar nenhuma dobrez por parte das
criaturas, nem as pode tomar em consideração. Só tem lugar para
Deus.”
Aprofundemos bem este pensamento: a simplicidade só se distrai
junto de nosso Senhor. Ser simples é ser um. Ter dois fins e duas
intenções, uma para Deus, outra para si, ou para qualquer outra
coisa, é ser dissimulado.

“A simplicidade só tem um fim, e nossa alma é simples quando não


temos outra pretensão em tudo quanto fazemos”.
“É uma virtude puramente cristã. Os pagãos, mesmo aqueles que
melhor trataram das outras virtudes, nunca tiveram conhecimento
desta, nem tão pouco da humildade; escreveram muito bem sobre a
magnificência, a liberalidade, a constância; mas nada disseram da
simplicidade e da humildade” (180)
Os pagãos não tiveram, nem podiam ter senão uma virtude humana.
Foi preciso Jesus para revelar ao homem que ele se pode unir a
Deus. Antes de Jesus, e sem Jesus, Deus é inacessível. As virtudes
essencialmente cristãs são virtudes divinas.
A alma simples, considerando em seguida a sua fraqueza diante do
poder único de Deus; abandona-se a Ele. A obra da nossa perfeição
é muito mais obra de Deus do que propriamente nossa. Unir-se a
Deus está acima da criatura, mas Deus a ela se une, elevando-a.
Assim o papel do homem na obra da sua própria santificação não é
mais que uma preparação e uma obediência:

“É ser dócil, prestar atenção, esperar que o Mestre lhe trace o


caminho, ser fiel, seguir o impulso divino. Só Deus pode fazer-nos
santos diretamente; só a voz divina pode iluminar a alma, e só a
ação divina pode dar-lhe força. Em vão trabalharão os operários se
Deus não construir a casa. Inutilmente hão de velar as sentinelas,
se Deus não guardar as cidade” (181)
“É mister que Deus construa a cidade, e, se for construída de outra
forma, será forçoso derrubá-la” (182), porque a cidade construída
por nós mesmos não passaria de construção da sabedoria humana,
da virtude filosófica. É aquela que construíram os Sócrates e os
Epictetos, cidade que não é mais que um beco sem saída, que não
nos leva ao infinito.
A humildade, assim unida à confiança, permite e determina o
abandono. O olhar da alma simples fixa-se em Jesus. O amor é o
seu único pensamento, e, perdida em Deus, esquece-se de si
mesma para se dar inteiramente a Ele. Ela nada pode e Ele pode
tudo: ela é propriedade sua. É o “abandono total de nós mesmos ao
beneplácito de Deus. Deixa-se ficar nos braços de nosso Senhor,
como uma criancinha no regaço da mamãe. A criança, quando a
mãe a põe no chão, caminha até que ela a queira carregar de novo.
A nada se opõe. Não sabe para onde vai, nem se preocupa com
isso, mas se deixa levar ou conduzir ao querer da mãe. Assim
também, a alma que ama a vontade de Deus e o seu bel prazer em
tudo quanto acontece, deixa-se levar e, no entanto, caminha,
cumprindo cuidadosamente com a vontade de Deus” (183).
Estas últimas palavras descrevem a santa indiferença, corolário do
abandono, ou mais exatamente seu lado negativo. A alma simples,
firmada em Deus e amando-O unicamente, nEle ama tudo o que
representa a sua santíssima vontade, e só a isto ama. Alheia-se,
pois, necessariamente a tudo o que não é Ele; os atrativos do
mundo não a seduzem mais; quando se vira para a terra, é ainda
por Deus, e sua ação humana continua a ser ação divina. Assim se
fundem estas virtudes, simplicidade, abandono, indiferença, que
juntas constituem uma só coisa — um amor. Eis a fórmula que
resume tudo.

“Falando um dia com uma excelente religiosa, esta me perguntou


se, tendo desejo de comungar mais vezes, ou fazer maior número
de penitências que a Comunidade, poderia pedir licença à
superiora? Disse-lhe que se eu fosse religioso, penso que faria o
seguinte: não pediria para comungar mais vezes do que a
Comunidade, nem para fazer maior número de penitências, — trazer
o cilício, a correia, fazer jejuns extraordinários, nem tomar disciplina,
nem qualquer outra coisa, contentando-me em fazer, em tudo e por
toda parte, o que faz a Comunidade. Se eu fosse robusto, não
comeria quatro vezes ao dia, mas se devesse comer quatro vezes,
fá-lo-ia sem reclamar. Se eu fosse fraco e me fizessem comer uma
só vez ao dia, eu comeria uma só vez sem me lembrar que era débil
ou não. Quero pouca coisa; o que quero, quero-o muito pouco, e
quase não tenho desejos, mas se tornasse a nascer, não os teria de
todo. Se Deus viesse a mim, para me favorecer com o sentimento
da sua presença, iria também a Ele, para o receber e corresponder
à sua divina graça; mas se não quisesse vir a mim, eu ficaria onde
estava, e não iria a Ele”.
“Digo, pois, que nada devemos pedir, nada recusar, mas ficar nos
braços da divina Providência, sem nos distrair com desejo algum,
querer o que Deus quer de nós. Toda a nossa perfeição gira em
torno desta prática” (184).
“Conservai, minhas caras Irmãs, os vossos corações nesta santa
indiferença; deixai-vos a vós mesmas, e a todos os vossos
negócios, plena e cabalmente, aos cuidados da divina Providência;
deixai que vos leve como as criancinhas se deixam levar pelas
amas; que vos carregue com o braço direito, ou com o esquerdo,
conforme lhe aprouver, fazendo como entender, porque uma criança
pouco se incomoda quer a deitem, quer a levantem, e abandona-se
inteiramente aos cuidados de sua boa mãe, a qual sabe melhor o
que lhe convém do que ela mesma” (185).
“Mil vezes feliz é a alma que sabe abandonar-se, porque goza já
nesta vida de uma tranquilidade e paz tão grandes, que nada lhes é
comparável. Não há repouso igual ao seu neste mundo, mas
somente no céu, onde gozará, para sempre e plenamente, dos
castos beijos do seu Esposo celeste” (186).
“Mas, se nada devemos desejar, interrompem as irmãs, então não
havemos de desejar o amor de Deus e a humildade, porque nosso
Senhor disse: Pedi e recebereis, batei e abrir-se-vos-á.”
“Ó minha filha, quando digo que nada devemos desejar nem pedir,
refiro-me às coisas da terra, porque no que diz respeito às virtudes,
podemos pedi-las. Quando pedimos o amor de Deus e a caridade,
pedimos também a humildade e as outras virtudes, pois uma não se
separa das outras”(187).
***

A indiferença no abandono dá paz à alma. A paz assinala as obras


de Deus, enquanto a precipitação e a inquietação denotam paixão
humana.

“A simplicidade consegue banir da alma o cuidado e a solicitude que


certas pessoas põem inutilmente na busca de uma quantidade de
práticas e meios que, conforme dizem, as levem a amar a Deus, e
parece que, se não fizerem tudo quanto fizeram os santos, nunca
estarão satisfeitas. Pobre gente! Atormentam-se para descobrir a
arte de amar a Deus, sem saber que a única arte é amá-lO, isto é,
praticar aquilo que Lhe é agradável”
“Tão grande é a simplicidade da criancinha, que não conhece senão
mãe; só tem um amor, o da mãe, e, neste amor, uma pretensão, o
seio materno; estando deitada nesse regaço feliz, nada mais deseja.
A alma verdadeiramente simples, só tem um amor, o de Deus, e
nesse amor, uma pretensão, a de repousar sobre o coração do Pai
celeste, e, lá, como filho de dileção, fixar morada, deixa que seu
bom Pai cuide dela, sem se preocupar com coisa alguma, a não ser
conservar-se nesta santa confiança: nem sequer a inquietam mais
os desejos de virtudes e de graças, que antes lhe pareciam
necessários. Não se impressiona mais com o que diz ou faz, mas
abandona tudo à divina Providência. Não se volta nem para a direita
nem para a esquerda, mas segue simplesmente o caminho. Quando
se lhe depara alguma ocasião de praticar uma virtude, aproveita-a
cuidadosamente, como meio de chegar à perfeição, que consiste no
amor de Deus; a nenhuma despreza, e não se inquieta a respeito,
nem as busca com empenho, mas descansa, quieta e tranquila, na
confiança, porque conhece o desejo que tem de lhe agradar, e isto
lhe basta” (188).
Sabe também que Deus a quer para si. O sacrifício do Cristo
demonstra sobejamente que Ele está disposto a tudo para nos
possuir. Dar-nos-á os meios necessários para nos unirmos a Ele, e
o que for preciso para chegarmos ao ponto em que nos quer. A fé
no-lo certifica com inabalável confiança. Daí como, e por que, nos
perturbarmos? Jesus “é meu Pastor; nada me faltará; faz-me
repousar nos verdes pastos, perto das fontes refrigerantes, e,
embora, me ache às portas da morte, nada hei de temer, porque Ele
estará comigo” (189).
“A alma que ama ternamente a Deus dedica-se com simplicidade, e
sem precipitação, aos meios prescritos para se aperfeiçoar, sem
procurar outros, por melhores que sejam. Meu Bem-Amado, diz ela,
pensa por mim, confio nEle, ama-me, e eu sou toda dEle. Há
tempos, umas santas religiosas me perguntaram: Que faremos este
ano? O ano passado jejuamos três dias por semana e tomamos
disciplina outros tantos. E, agora devemos fazer mais alguma coisa
para darmos graças ao Senhor pelo ano passado, e para
progredirmos sempre nos caminhos de Deus? Devemos sempre
progredir, com efeito, respondi-lhes eu, mas o nosso progresso não
se mede, como pensais, pela quantidade de exercícios de piedade
que fazemos, mas pela perfeição com a qual os fazemos, confiando
sempre mais em Deus e desconfiando sempre mais de nós
mesmos. Ano passado o jejum era feito três vezes por semana, e a
disciplina outras tantas. Se quiserdes sempre fazer mais, este ano
serão seis dias por semana, e no próximo como será? Seria preciso
uma semana de nove dias, ou então jejuar duas vezes por dia”
“Uma boa obra feita com cuidado e paz de espírito vale muito mais
do que outras muitas feitas com precipitação. Grande é a loucura
dos que perdem tempo em desejar o martírio nas Índias, e não
cumprem com seus deveres de estado! Grande também é a ilusão
dos que querem comer mais do que podem digerir. Falta-nos calor
espiritual para digerirmos bem tudo quanto empreendemos para
nossa perfeição, e não queremos, entretanto, restringir a ansiedade
de espírito que nos leva a desejar e querer fazer muita coisa. Ler
livros espirituais de valor sobretudo quando são novos, é bom; falar
muito e bem de Deus e das coisas espirituais para, digamos, nos
excitarmos à devoção, também é bom; ouvir muitos sermões, e ter
frequentes conferências, comove-nos, é verdade; confessar-se e
comungar amiúde, tratar dos doentes, comunicar o que se passa em
nossas almas para que todos saibam que nos queremos aperfeiçoar
e conseguir assim o nosso fim, será tudo isso bom? Será, contanto
que obedeça às regras dadas, e fique sempre subordinado à graça
de Deus. É dizer que nisso não devemos pôr a nossa confiança,
embora seja bom, e sim no Deus único, pois só Ele nos faz tirar
frutos dos nossos exercícios”
“Mas, rogo-vos, minhas caras filhas, considerai um pouco a vida dos
grandes santos religiosos, um Santo Antônio, um São Paulo,
primeiro eremita, que comungou duas vezes na vida, e só viu um
homem no deserto, Santo Antônio, que o foi visitar no fim da vida”
E os “que viviam sob a guarda de São Pacômio tinham, por acaso,
livros, pregações? De modo algum. Conferências? Algumas,
raríssimas. Confessavam-se muitas vezes? Poucas, nas grandes
festas. Ouviam Missa? Nos domingos e dias santos”. Mas como
podiam eles receber tão poucos alimentos espirituais e achar-se tão
bem dispostos, isto é, tão fortes e corajosos para empreenderem a
aquisição das virtudes e conseguirem a perfeição? E nós, que nos
nutrimos tanto, estamos sempre fracos, isto é, somos frouxos e
lânguidos em nossos negócios, e, logo que nos faltam as
consolações espirituais, ficamos tão sem coragem e sem vigor para
o serviço de Deus nosso Senhor? Ora, devemos imitar estes santos
religiosos, dedicando-nos à nossa tarefa, isto é, ao que Deus exige
de nós, segundo a nossa vocação, fervorosa e humildemente, sem
pensar noutra coisa, certos de que não encontraremos melhor meio
para conseguirmos a perfeição”.
“Mas, alguém poderá alegar que digo fervorosamente. E se não
tivermos fervor? Não temos o que nós chamamos fervor, o do
sentimento, que Deus dá a quem bem quer, e que não depende de
nós adquirir. Acrescento também humildemente, para que não haja
desculpas; porque ninguém dirá: Não tenho humildade, não está em
meu poder obtê-la, pois o Espírito Santo, que é a mesma bondade,
a concede a quem Lhe pede, não a humildade, isto é, o sentimento
da nossa baixeza, que nos leva a humilhar-nos graciosamente em
toda ocasião, mas a humildade que nos revela a nossa própria
abjeção, que no-la faz amar, uma vez que a reconhecemos em nós,
e que é a verdadeira humildade”.
Vem a propósito lembrar, mais uma vez, que esta simplicidade, este
abandono e esta paz formam a união na parte superior, e nela
exclusivamente.

“É esta santa igualdade de espírito, minhas caras almas, que eu vos


desejo: não quero dizer igualdade de temperamento e de inclinação,
mas sim igualdade de espírito; porque nem faço eu, nem desejo que
façais vós nenhum caso das perturbações que afetam a parte
inferior da alma, causa das inquietações e fantasias, quando a parte
superior não cumpre o seu dever” (190).
“Convém frisar bem este ponto, porque o abandono, quando se
afasta da realidade medíocre, na qual se debate a nossa existência
terrestre, parece todo doçura, e assim é, com efeito, mas é ainda
um toque, uma suavidade que reside somente na parte superior da
alma. Gozará dela só quando a alma for livre, e na medida em que o
for. A parte inferior pode então dar as cambalhotas que quiser, já
não nos perturba. Não seria talvez melhor distrair-se simplesmente,
a lutar com o espírito e teimar em querer afastar a tentação com
violência? Sem dúvida, minha cara filha. A simplicidade é sempre
preferível em tudo. Se, por exemplo, me viesse o desejo de ser
Papa, e o Papado me preocupasse o espírito, apenas havia de rir-
me, procurando distrair-me com o pensamento de que a eternidade
deve ser boa. Por que nos afligir com o que sentimos, se soubemos
cumprir com o nosso dever? Deixemos latir este mastim à vontade,
pois nenhum mal nos pode fazer se não o quisermos” (191).
“As abelhas não têm sossego, enquanto não encontram a rainha;
ficam a esvoaçar, dispersam-se, afastam-se. Desaparece a
tranquilidade da colmeia, até que apareça a nova rainha. Desde
então reúnem-se todas em volta dela, e só saem para a colheita, por
ordem da mesma rainha. Assim também o entendimento e a
vontade, as paixões e as faculdades da nossa alma, como outras
tantas abelhas espirituais, enquanto não têm um soberano, isto é,
enquanto não escolhem a nosso Senhor para Rei, não podem ter a
mínima tranquilidade. Os nossos sentidos desviam-se curiosamente,
e atraem as nossas faculdades interiores, que se distraem ora atrás
disto, ora daquilo. Ficamos, assim, numa contínua agitação, que nos
tira a paz e a tranquilidade de que tanto necessitamos, e causa a
imodéstia do entendimento e da vontade. Mas, desde que as nossas
almas elegeram, a nosso Senhor para único Rei e Soberano, estas
potências retraem-se como as castas vespas, ou abelhas místicas e
colocam-se junto dEle. Nunca se ausentam da colmeia, senão para
a colheita das práticas de caridade que o santo Rei lhes manda
realizar em favor do próximo, logo depois voltam à modéstia e ao
santo recolhimento, tão amáveis, e colhendo e conservando o mel
das santas e amorosas concepções e afetos que tiram da sagrada
presença. E assim evitarão os dois extremos supracitados,
cortando, de um lado, a curiosidade do entendimento pela simples
atenção em Deus, e do outro, a ignorância e negligência do espírito,
pelos exercícios da caridade que praticarão para com o próximo,
quando se oferecer ocasião” (192).
“Felizes daqueles que, vivendo de esperança, nunca se cansam de
esperar! É preciso que nos habituemos a procurar o êxito da nossa
perfeição por meio das vias comuns, com paz de coração, fazendo
tudo o que pudermos para adquirir as virtudes, e pela fidelidade com
que praticaremos, cada qual, conforme a nossa condição e vocação
(193), — certos de que Deus nos concederá cada coisa a seu
tempo. Basta-nos que agrademos a Deus e amemos a sua santa
vontade” (194).
“Esperemos alcançar, cedo ou tarde, aquilo a que pretendemos,
deixando tudo ao cuidado da divina Providência, que saberá
consolar-nos no momento indicado. Embora seja só na hora da
morte, será o bastante, contanto que saibamos cumprir o nosso
dever, fazendo sempre o que estiver ao nosso alcance e em nosso
poder. Teremos sempre em boa hora o que desejamos, porque nos
será dado na hora em que aprouver a Deus no-lo conceder” (195).
***

“Mas como conciliar dois pontos opostos? De um lado, devemos ter


muito cuidado com a nossa perfeição e progresso, e do outro, não
devemos pensar nisto! Aparece aqui a miséria do espírito humano,
que não se contenta com meio termo, mas procura, de ordinário, os
dois extremos. A jovem a quem a mãe tenha proibido de sair ao
anoitecer, não deixará de se queixar: Que mãe esta, que nem
sequer deixa-me sair de casa! Outra, que canta alto demais, será
admoestada pela mãe. Bem, dirá ela, já que me censuram porque
canto alto, vou cantar agora tão baixo que ninguém me ouvirá. Outra
ainda, que anda depressa demais, começará, depois de advertida, a
andar tão devagar que se lhe podem contar os passos. Que fazer
nesses casos? Ter paciência, contanto que não queiramos alimentar
tais defeitos, nem que provenham da obstinação. Não é possível
andar sempre com tal retidão entre os dois extremos que nunca
resvalemos de um lado ou de outro. Saibamos levantar-nos com
prontidão e contentemo-nos com isto. Herdamos este defeito da
nossa boa mãe Eva, que fez outro tanto quando o espírito mau a
tentou com o fruto proibido, dizendo-lhe que o comesse, já que
Deus só lhe havia proibido tocá-lo. Não digo que não deveis pensar
no vosso progresso espiritual, mas que o deveis fazer sem
inquietação” (196).
“São duas cordas igualmente dissonantes, que devem ser afinadas
como a prima e o bordão, por quem quer tocar bem a cítara. Nada
de mais discordante do que o som alto e baixo; mas sem a
consonância das duas cordas, a harmonia da cítara não pode ser
agradável. Assim também na nossa cítara espiritual há duas cordas,
isto é, duas coisas tão discordantes e quão necessárias, que
precisam ser ajustadas, a saber: Devemos cuidar muito do trabalho
da nossa perfeição, mas abandoná-lo inteiramente a Deus, tratar de
aperfeiçoar-nos conforme devemos, isto é, da forma que Deus o
quer, e no entanto deixar-Lhe o cuidado de nosso aperfeiçoamento.
Deus quer que o procuremos com calma e sossego, praticando o
que nos aconselham os nossos dirigentes, seguindo sempre
fielmente o caminho que as regras nos traçam e as diretrizes que
recebemos. Quanto ao mais, abandonemo-nos aos seus cuidados
paternais, procurando, tanto quanto possível, manter em paz a
nossa alma, porque a morada de Deus se faz na paz e no coração
pacífico e tranquilo. Em noite serena, o lago, estando calmo, o vento
não lhe agita as ondas, reflete de tal forma o céu estrelado, que
quem olhar para baixo terá diante dos olhos a mesma beleza que se
estivesse a olhar para cima. Assim também estando a nossa alma
bem sossegada, e não a agitando os ventos dos cuidados
supérfluos, a desigualdade de ânimo e a inconstância, torna-se apta
a refletir em si à imagem de nosso Senhor. Mas quando os diversos
tumultos das paixões a perturbam, inquietam e desassossegam,
deixa-se governar por elas, e não pela razão, que nos torna
semelhantes a Deus. Então não poderá de modo algum reproduzir a
nobre e bela imagem de nosso Senhor crucificado, nem a variedade
de suas excelsas virtudes, nem será digna de lhe servir de leito
nupcial. É preciso, pois, que nos entreguemos à mercê da divina
Providência, sincera e simplesmente, fazendo, todavia, da nossa
parte, o que pudermos para nos corrigir e aperfeiçoar, evitando
cuidadosamente que os nossos espíritos se deixem perturbar ou
inquietar” (197).
São Francisco de Sales e Santa Joana Francisca de Chantal, rogai por nós!

As caras Filhas se tornarão perfeitas pela


prática da Simplicidade
À simplicidade é uma fornalha ardente que difunde seus raios sobre
a vida, iluminando-a com a luz de Deus. Descrever sua ação é
delinear, pela segunda vez, o aspecto do claustro, e este quadro é
par do outro; ilumina a parte que naquele estava às escuras. À
censura sistemática dos pequenos defeitos opõe o que devem ser
as religiosas, e o que, felizmente, para muitas, constitui a trama da
sua existência, apesar dos ligeiros acidentes.

A alma simples sente-se à vontade perto do Mestre, “folgada”, como


escreve São Francisco de Sales a Santa Chantal. O amor é
confiante; as maneiras afetadas denotam certa desconfiança. Daí
algumas verdades que não passam do bom senso comum, como
esta primeira que exprime novamente, com precisão, a ideia de
santidade: esta não exige em absoluto a prática de todas as
virtudes, nem tão pouco obriga-nos a seguir todos os conselhos
evangélicos “porque alguns são de tal maneira opostos um ao outro,
que seria impossível praticar um sem prejudicar o outro. É conselho
deixar tudo para seguir a nosso Senhor, despojado de tudo; é
também conselho, emprestar dinheiro e dar esmolas aos pobres.
Ora, Como será possível, a quem tenha dado tudo quanto possuía,
fazer esmolas? Donde há de tirá-las? É preciso, pois, seguir os
conselhos que Deus quer que sigamos e não nos julgarmos
obrigados a cumpri-los todos” (198).
É isto sólido bom senso, mas convém repeti-lo para tranquilizar
certas almas escrupulosas. Dá-nos sobejamente a conhecer a
personalidade dos santos, porque “uns se distinguem numa virtude,
outros noutra; e se todos se salvaram, foi de modo bem diferente,
pois há tantas formas de santidade quantos são os santos” (199).
Pode acontecer que dois atos contrários sejam, ambos, atos de
virtude. São Jerônimo e Santo Agostinho, fugindo do sacerdócio,
praticaram atos de virtude,— da virtude de humildade; São Filipe
Neri ou São Francisco de Sales, aspirando ao sacerdócio,
praticaram também atos de virtude, porque os movia o zelo da glória
divina. A alma que vive de amor é livre: os atos que emanam da
caridade são sempre perfeitos. “Ama a Deus e faze o que quiseres”,
dizia Santo Agostinho. Tal alma, pois, não hesita a respeito de seus
atos, nem raciocina sobre seus impulsos, mas segue a graça que
nela opera. A espontaneidade renasce. É a santa liberdade cristã,
sobre a qual São Paulo escreveu páginas de sublime arrojo.
É, repito, bom senso, mas bom senso sobrenatural, que só
alcançamos quando a caridade produziu o equilíbrio. Estranho seria
se eu fosse fazer uma hora de meditação quando alguém me
oferecesse uma bebida, para saber se era da vontade de Deus que
eu a aceitasse ou não, ou se me devesse abster, por penitência ou
sobriedade, e outras insignificâncias, não merecem atenção,
principalmente se visse que, praticando-as, eu agradaria, por menos
que fosse, ao meu próximo. Nas coisas pequenas devemos andar
com simplicidade (200). Quem tanto raciocina não tem ainda o
olhar simples do amor.

“Por exemplo, enquanto eu estivesse a procurar descobrir o desejo


de Deus, estaria a perder o tempo em que devia repousar tranquilo
junto dEle. Quem, para seguir o desejo manifestado por nosso
Senhor de socorrer os pobres, quisesse ir, de cidade em cidade, a
procurá-los, enquanto socorria os de uma cidade, evidentemente
não poderia socorrer os das outras. Devemos proceder nisto, como
em tudo mais, com simplicidade de coração, fazer esmola quando
se nos oferecer ocasião, sem nos distrairmos pelas ruas,
procurando, de casa em casa, se há pobres que não conhecemos”
(201).
A alma simples tem também o que chamamos hoje em dia “espírito
largo” ou espírito tolerante.
“Esta devoção generosa nada despreza, e faz com que, sem nos
perturbarmos, nem nos inquietarmos, vejamos cada um caminhar,
correr à seu modo, voar conforme a diversidade das inspirações e
variedade das medidas da graça divina que cada qual recebe! É
uma advertência que o grande apóstolo São Paulo faz aos
Romanos: Enquanto um, diz ele, julga poder comer de tudo, o que é
fraco só come legumes; quem come não despreze o que não come;
e quem não come, não julgue o que come. Firme-se cada um em
seu modo de ver. Quem come, fá-lo para o Senhor, e quem não
come, fá-lo igualmente, e assim um e outro dão graças a Deus. As
Regras não prescrevem muitos jejuns; pode, no entanto, acontecer
que a algumas Irmãs, por necessidade particular, seja permitido
jejuar maior número de vezes; as que assim jejuam não desprezem
as que comem, nem estas as que jejuam. E assim, em tudo que não
for nem proibido nem ordenado, cada qual siga sua opinião, isto é,
se aproveite e goze de sua liberdade, sem julgar nem criticar a
quem não faz o que elas fazem, tendo aquilo que praticam em conta
de melhor; pode mesmo acontecer que uma pessoa que coma o
faça com o mesmo desprendimento da própria vontade, como outra,
que jejua; e tal pessoa não diz suas culpas com o mesmo
desprendimento com que as diz tal outra” (202).
Isto confirma a santa liberdade cristã. Como já vimos, São Francisco
de Sales, depois de insistir sobre a imperiosa necessidade de uma
total mortificação, acrescenta, entretanto: “A perfeição não consiste
nas austeridades”, nem tão pouco é “regra geral que devemos fazer
tudo que nos repugne, e abster-nos de tudo que nos agrada, porque
se uma irmã se sente atraída a rezar o Ofício divino, não deve
deixar de rezá-lo sob pretexto de se querer mortificar” (203). A
mortificação, por mais necessária que seja, não passa de meio; a
perfeição está no amor, e o amor nos liberta.
É verdade que se o velho homem nunca chega a morrer de todo,
nunca se poderá desprezar a mortificação. Pelo contrário, por um
fenômeno, à primeira vista desconcertante, vai crescendo, sem
cessar, à medida que a alma se une a Deus. Existem, em quase
todos os santos dois traços: de um lado, a pouca importância que
dão às penitências corporais, do outro, as espantosas austeridades
que praticam. É que, aumentando a luz divina, a alma percebe
melhor o horror de tudo que lhe tolhe a ação, e se desenvolve nela
um ardor que leva a varrer todas as escórias, por mínimas que
sejam.

Acontece, contudo, que a alma, uma Vez firmada no amor e unida


ao Esposo divino, vê a mortificação, como tal, embora não diminua
de intensidade, passar para o segundo plano, pelo menor interesse
que inspira à alma. Quando praticamos a mortificação, ainda
pensamos em nós; e a alma que o amor torna livre só pensa em
Deus. Faz tudo conforme a inspiração divina, inclusive mortificar-se;
a mortificação passa então a ser uma precaução de higiene
espiritual indispensável. Tal alma está sempre à vontade e procede
com grande simplicidade, porque no fundo é indiferente: A vontade
do Mestre é tudo para ela, o resto, nada. As práticas tornam-se
acessórias. A indiferença, quando não é o reverso do amor, não
acanha a alma nem a torna árida; pelo contrário, leva-a a expandir-
se, ultrapassando todo exclusivismo.

“A devoção generosa não procura companhia naquilo que faz, mas


somente em sua pretensão, que é a glória de Deus e o progresso do
próximo no amor divino; contanto que as almas se encaminhem em
direção a este fim, não se preocupa com o caminho que seguem. Se
quem jejua fá-lo para Deus, e quem não jejua procede do mesmo
modo, fica igualmente satisfeita com uma e outra coisa. Não quer
pois que os outros façam como ela, mas segue simples, humilde e
tranquilamente o seu próprio caminho. Se, digamos, alguém
comesse, não para agradar a Deus, mas por inclinação própria, ou
não tomasse a disciplina por aversão natural e não para Deus, ainda
assim quem procede de modo contrário, não o deveria julgar. Sem
censurá-la, siga o seu caminho doce, suave e tranquilamente, sem
desprezar nem julgar as enfermas, lembrando-se que, se em tais
ocasiões algumas se entregam com demasiada moleza às suas
inclinações e aversões, em outras circunstâncias elas farão o
mesmo, ou pior. Mas as que têm tais inclinações e aversões devem
cuidar para que não transpareça, nem pelas suas palavras, nem de
outro qualquer modo, o menor sinal de aborrecimento contra quem
faz melhor do que elas, o que seria grande impertinência de sua
parte. Reconheçam, pelo contrário, sua fraqueza, e olhem para as
mais inteligentes, com santa, doce e cordial reverência. Assim, pela
sua humildade, poderão tirar tanto fruto de sua fraqueza, como as
outras dos seus exercícios. Se este ponto for bem compreendido e
observado, proporcionará maravilhosa suavidade e paz à
Congregação. Seja Marta ativa, mas não se levante contra
Madalena; entregue-se Madalena à contemplação, mas não
despreze Marta, porque nosso Senhor defenderá a causa da que for
censurada” (204).
Agora, começa a aparecer a grande doçura que pode haver na vida
religiosa.
A alma sente-se bem; atenta ao seu fim, subordina-lhe os detalhes e
os harmoniza. Só dá às coisas a importância que merecem, e tudo
faz de boa vontade.

“Deveis utilizar-vos do que for necessário ao corpo, como o


aquecer-se, o comer e o vestir, com ações de graça e humildade, e
não com espírito enfadonho. Mas nas vossas contrariedades e
aflições, não deveis querer que se compadeçam de vós. Isto é bom
para quem tem espírito fraco, mas as filhas de Deus não devem
perder tempo com essas ternuras. As Constituições ensinam o que
deveis fazer, isto é, pedir simplesmente, sem escrúpulo, o que vos
for necessário (205). Quanto a mim, não quisera pedir aquilo que
pudesse dispensar facilmente, contanto que não fosse em prejuízo
da saúde; sentir um pouco de frio, usar um hábito curto de mais, ou
que não se ajuste bem ao corpo, pouco me importaria. Mas se me
dessem calçados apertados, que me levassem um quarto de hora
calçar, pediria outros, o que seria preferível, a perder tanto tempo
pela manhã; mas não me queixaria de trazer alguma coisa que me
não fosse bem, ou me magoasse um pouco. Ora, quanto ao frio,
convém evitar aquele que possa debilitar a saúde, o que não se
deve fazer” (206).
“Se a roupeira vos der um hábito menos bom do que aquele que
costumais vestir, teve boa intenção; é certo que obedece à vontade
de Deus, e que, por conseguinte, o deveis receber com santa
indiferença. Se no refeitório vos servirem alguma comida que não
for do vosso gosto, será , porém, sem dúvida, do agrado de Deus, e
por isso deveis comê-la com indiferença, isto é, quanto à vontade.
Digo o mesmo dos carinhos e provas de amizade; se tal pessoa não
vos trata com carinho, deveis pensar que Deus assim o quer,
ocupada que está com outra coisa mais importante. Por que motivo
há de se desfazer em atenções para convosco? Mas se assim fizer,
deveis também pensar que é do beneplácito divino e louvar a Deus
que vos concede essa pequena consolação” (207).
“A indiferença e a simplicidade unem-se para porem a alma à
vontade. Embora nos pareça que sentimos sensualidade ao comer,
não há mal em fazê-lo. Afastai a todos estes escrúpulos, e comei
para Deus, com sossego. É preciso fazer tudo com simplicidade,
sem pensar que encontrais satisfação na obediência. Estando
indiferente a vontade, não há perigo algum. É sutileza demasiada”
(208).
“A respeito, minha cara filha, do que vos disse há pouco, sobre a
fidelidade na prática da mortificação, devemos privar-nos de tal ou
qual alimento de que gostamos muito? Se fosse eu, não o faria,
porque somos obrigados, pela sagrada palavra de nosso Senhor, a
comer o que nos oferecerem, e isto se faz sem preferência. Quando
me dessem aquilo de que eu gostasse muito, comê-lo-ia, dando
ações de graça; quando me dessem outra coisa, pouco me
importaria”.
Mas se me dessem a escolha, “se eu estivesse com muito fastio,
escolheria o que me soubesse melhor; fora disso, não faria
distinção, tomando o que me dessem, e na mesma ordem em que
mo oferecessem” (209).
Se “me acometer febre alta, vejo neste acontecimento o beneplácito
de Deus, que quer que eu me conserve na santa indiferença, em
relação à saúde ou à doença; mas a vontade de Deus manifesta é
que eu, que não estou sob a obediência, chame o médico e tome
todos os remédios indicados (não os extraordinários, mas os
comuns e ordinários). Quanto aos religiosos, que vivem debaixo da
obediência, recebam eles de seus superiores os remédios e o
tratamento que lhes forem dispensados, com simplicidade e
submissão. Feito isto, devemos ficar numa completa indiferença,
quer a doença sobrepuje o remédio, quer este debele aquela. Se a
doença e a saúde estivessem ao dispor da alma que se entrega e
se abandona inteiramente nas mãos de Deus, e nosso Senhor lhe
dissesse: Se escolheres a saúde, não te retirarei um único fio da
minha graça, e se escolheres a doença, tão pouco te aumentarei,
mas nesta última escolha haverá um pouquinho mais do meu bel
prazer, ela escolheria, sem dúvida, a doença, pelo simples fato de
ser um pouco mais do agrado divino, embora devesse ficar no leito
toda a vida, não fazendo outra coisa senão sofrer. Este estado de
desapego de si mesmo compreende também o abandono ao bel
prazer de Deus em toda tentação, aridez, secura, aversão e
repugnância da vida espiritual, porque em tudo isso vemos a
vontade expressa de Deus, conquanto não provenham dos nossos
defeitos, nem constitua pecado.

“O abandono é, enfim, a virtude das virtudes; é a nata da caridade, o


perfume da humildade, o mérito parece da paciência, o fruto da
perseverança. Grande é esta virtude, e só digna de ser praticada
pelos mais diletos filhos de Deus” (210).
***

O olhar para Deus transforma a oração, — oração sob qualquer


forma: vocal, meditação, ato ou prática da presença de Deus.

“Não nos podemos conservar na presença contínua de Deus, pois


isto pertence aos Anjos: quanto a nós basta manter-nos nela tanto
quanto possível, elevando frequentes vezes o espírito a Deus; não
pretendo com isso dizer que o espírito se conserve sempre tenso.
Se o que fazemos nos distrai a atenção de Deus, e se for
necessário, não nos devemos afligir. Basta fazê-lo para Deus, com
simplicidade. E embora não pensássemos, antes de começar
nossas ações, em dirigir a intenção, se o fizermos depois, não
precisamos ter o menor escrúpulo, a intenção geral feita da manhã é
suficiente. Estará na presença de Deus quem fizer todas as suas
ações para Deus. Comer, dormir, trabalhar para Ele, é estar em sua
presença. Não depende de nós tê-la sempre de modo atual, senão
por uma graça particular; mas o desejo que ternos de nela nos
conservar torna-nos atentos a da sua bondade” (211).
“Perguntais se devemos, ao tomar água benta, fazer certas
considerações, conforme nos ensinam os livros. Ah! Nem tudo
quanto nos ensinam deve ser observado por quem já atingiu certo
grau de adiantamento; e voltarmos, a todo propósito, o espírito para
a divina Majestade por meio de certo efeito contemplativo
prejudicaria a simplicidade. Quem quisesse refletir sobre a água
benta, ao tomá-la, ou sobre a presença real ao visitar o Santíssimo
Sacramento, ou sobre o sinal da Cruz, e coisas semelhantes ou,
ainda, quem quisesse meditar sobre a vida, paixão e morte e nosso
Senhor, pormenorizando todos os pontos, do princípio ao fim, não
teria tempo, é claro, durante a Missa de exprimir seu afeto, ou de
tomar uma resolução, o que é mais útil. Com efeito, a intenção de
quem vai à igreja para adorar a Deus compreende eminentemente
todas essas adorações particulares, e quem não se desviar desta
intenção, e de semelhantes afetos que lhe vierem durante a Missa,
a terá ouvido otimamente. Enfim, a multiplicidade de assuntos
dissipa-nos o coração e o espírito, afastando-o e distraindo-o dessa
simplicidade amorosa, que torna as nossas almas tão agradáveis a
Deus” (212).
A santa simplicidade deve existir sempre e por toda parte, e sua
companheira é a largueza de espírito.

“Alguém me perguntou há tempos se podia fazer orações


particulares”
“Isto não tem muita importância, e respondo que, quanto às
oraçõezinhas que por vezes temos vontade de rezar, não há nisto
mal algum, contanto que não nos apeguemos a elas a ponto de, se
as omitirmos, nos virem escrúpulos. Mas não devemos fazer tenção
de rezar todos os dias, ou durante um ano inteiro, ou determinado
tempo, orações de nossa fantasia. Se algumas vezes, durante o
silêncio, tivermos vontade de recitar uma Ave Maris Stella ou
um Veni Creator Spiritus, ou alguma outra reza, não vejo dificuldade
nem mal algum nisto; é uma boa obra, da qual nos virá
merecimento, como beijar uma imagem, ou coisa semelhante. Mas
é preciso cuidado para que não redunde em prejuízo de um bem
maior. Se, por exemplo, estando em presença do Santíssimo
Sacramento, nos vier a inspiração de rezar três Pater em honra da
Santíssima Trindade, e nos chamarem para fazer outra coisa,
devemos levantar-nos imediatamente e ir fazê-la, em honra da
Santíssima Trindade, em vez de rezar os três Pater. São coisas, às
vezes, úteis a certas almas, mas de que outras não necessitam. Há
toda espécie de plantas num jardim e, embora umas sejam mais
bonitas que as outras, nem por isso serão colocadas
exclusivamente nos vasos” (213).
A oração reduz-se a um simples olhar para Deus.
“Não há mal em cogitarmos às vezes de nós mesmos, contanto que
seja para nos humilhar e pensar na nossa ingratidão, mas devemos
sempre voltar-nos para Deus; pois, como disse algures, não
fazemos propriamente oração, quando ficamos a refletir sobre nós
mesmos, porque a oração é elevar a alma a Deus, para nos unirmos
a ele. Devemos discorrer quando nosso Senhor a isto nos atrai, mas
procurar progredir na perfeição pelo caminho mais simples e não ser
tão sutil” (214).
Enganam-se muito os que pensam que fazer ‘‘oração” requer um
método especial e que procuram adestrar-se numa arte que lhes
parece necessária. Nunca deixam de sutilizar e esmiuçar a respeito
de sua oração para ver como a fazem, ou como a poderão fazer ao
seu gosto, julgando que não devem tossir, nem se mover enquanto
oram, com receio de que o Espírito de Deus se retire. Que loucura!
Como se o Espírito de Deus fosse tão delicado que dependesse do
método e da contemplação de quem faz a oração! Não digo que não
se apeguem a eles, como fazem os que nunca têm suas orações
em conta de boas, se as considerações precederem os afetos que
recebem de nosso Senhor, fim a que levam as considerações. Tais
pessoas se assemelham àquelas que, achando-se no lugar a que se
destinavam, tornam a voltar porque não vieram pelo caminho que
lhes fora indicado.
É preciso, também, tomar a firme resolução de nunca abandonar a
oração, qualquer que seja a dificuldade que encontrarmos, nem
recorrer a ela na esperança de encontrarmos consolo e satisfação,
porque assim a nossa vontade não ficaria unida e conformada com
a vontade de Deus. Manda esta que, ao começarmos a oração,
estejamos resolvidos a sofrer a pena das contínuas distrações,
securas e desgostos que sobrevierem, permanecendo firmes, como
se tivéssemos tido muita consolação e paz; pois é certo que à nossa
oração não será menos agradável a Deus, nem menos útil, por
serem maiores as dificuldades. Contanto que ajustemos sempre a
nossa vontade à da Majestade divina, numa simples e atenta
disposição de aceitar com amor os acontecimentos determinados
por seu beneplácito divino, quer na oração, quer noutras
circunstâncias, Ele fará com que tudo seja para o nosso maior bem
e o maior agrado da sua divina Bondade. É pois, minhas caras
filhas, boa oração a que nos conserva em paz e sossego junto de
nosso Senhor, ou na sua presença sem outro desejo nem pretensão
senão estar com Ele e o contentar” (215).

Quanto mais simples, tanto mais perfeita será, a nossa oração, e


quanto mais feita em Deus, longe dos sentidos, tanto mais se unifica
com toda a nossa vida.

“Como se devem conduzir em todas as suas ações as almas


atraídas na oração por esta santa simplicidade e perfeito abandono
em Deus? Respondo que não somente na oração, mas em toda a
sua conduta devem andar invariavelmente no espírito de santa
simplicidade, abandonando e entregando inteiramente sua alma,
suas ações, com seus resultados, ao beneplácito de Deus, por meio
de um amor de perfeita e absoluta confiança, entregando-se à
mercê e aos cuidados da Providência divina e do amor eterno que
esta lhes tem. E, para isso, mantenham suas almas firmes nesse
caminho, sem que se distraiam a pensar em si, para ver o que
fazem e se estão satisfeitas. Ai de nós! nossas satisfações e
consolações não são agradáveis aos olhos de Deus, mas contentam
somente ao miserável amor e cuidado que temos de nós mesmos,
fora de Deus e de sua consideração. As crianças, que nosso Senhor
nos aponta por modelo de perfeição, não têm, em geral, cuidado
algum, sobretudo junto aos pais. Então não se preocupam com os
prazeres e os consolos, mas aceitam-nos confiantes, e deles gozam
com simplicidade, sem perscrutar-lhes as causas e os efeitos, todo
entregue a esses afetos, e não podendo ocupar-se de mais nada.
Quem estiver sempre atento, procurando agradar amorosamente ao
Amante celeste, não tem tempo, nem gosto de estar sempre a
pensar em si, pois; seu espírito tende sempre para o lado onde o
leva o amor. Esta prática do abandono constante de si mesmo nas
mãos de Deus encerra otimamente toda a perfeição dos demais
exercícios em sua perfeitíssima simplicidade de e pureza. Enquanto
Deus não permite dispor deles, não procuremos mudá-los” (216).
***
A humildade, virtude que todos os autores concordam em colocar na
base do trabalho da perfeição — talvez o leitor se admire de
tratarmos tão pouco dela aqui, — também se reduz a este único e
enlevado amor, “porque a caridade é uma humildade que sobe, e a
humildade, uma caridade que desce” (217). A humildade é o
dispositivo que produz em nós o conhecimento de Deus; e traduz
simplesmente a vontade de conformarmos a nossa vida com esta
verdade.
Já isto dissipa mais, de uma noção errônea.

“Há pessoas que se atam a uma humildade falsa e tola, não


querendo reconhecer o que Deus nelas fez de bom. É um grande
erro, porque devemos reconhecer os bens que Deus nos concedeu,
estimá-los e exaltá-los, e não os ter na mesma pouca conta em que
temos àqueles que trazemos em nós, e que são nossos”
Ora, a humildade nos rebaixa e nos humilha, revelando-nos o nosso
pouco valor, a pouca estima por tudo que é nosso ou está em nós,
— saúde, riqueza, ciência, beleza e coisas semelhantes, — e, ao
mesmo tempo, nos leva a prezar altamente os bens que estão em
nós, mas não são nossos, como a fé, a esperança, o amor de Deus,
por pouco que os tenhamos, bem como certa capacidade que Deus
nos deu para nos unirmos a Ele, por meio da graça. Nesta estima,
em que a humildade tem a esses bens, funda-se a generosidade de
espírito.

“Ora, esses primeiros bens a que nos referimos, pertencem a


humildade quanto ao exercício. Os outros pertencem à
generosidade. A humildade de nada se julga capaz, em vista da
pobreza e da fraqueza humana que trazemos em nós. A
generosidade, pelo contrário, nos faz dizer, com São Paulo: Posso
tudo Naquele que me conforta. Pela humildade desconfiamos de
nós mesmos; pela generosidade confiamos em Deus. Estas duas
virtudes, a humildade e a generosidade estão, pois, de tal maneira
ligadas e unidas que não se podem separar”
“A humildade que não produz generosidade é indubitavelmente
falsa. Depois de ter dito: Nada posso, não passo de um puro nada,
deve ceder lugar à generosidade de espírito, a qual diz: Nada há, e
nada pode haver, de que não seja capaz se depositar inteira
confiança em Deus, que tudo pode. Baseado nesta confiança,
empreende corajosamente tudo quanto lhe é mandado fazer, ou
simplesmente aconselhado, por mais difícil que seja. Ora, posso
assegurar que não se julgará incapaz de fazer milagres, se lhe for
ordenado. Se, com simplicidade de coração, começa a executar a
ordem recebida, operará um milagre de preferência a negar-lhe os
meios para realizar a sua empresa, porque ela não confia nas
próprias forças, e sim nos dons que recebeu de Deus”.
A humildade, em suma, é o conhecimento de Deus e de nós
mesmos, “e não consiste somente na desconfiança própria, mas na
confiança em Deus”, da qual nasce a generosidade de espírito de
que tratamos.
“Mas nunca, então, nos será lícito duvidarmos da nossa capacidade
no cumprimento daquilo que nos foi ordenado? Respondo que a
generosidade de espírito não nos deixa ter a menor dúvida a
respeito. E para que fique mais claro, saibamos distinguir, como
costumo dizer, entre a parte superior da alma e a parte inferior.
Quando digo que a generosidade não nos permite duvidar, refiro-me
à parte superior; porque pode bem acontecer que a inferior fique na
incerteza, e tenha portanto muita dificuldade em aceitara tarefa, o
cargo que lhe for designado. Mas a alma generosa se ri de tudo isto,
a tudo despreza, e começa logo a exercê-lo sem proferir uma única
palavra, nem nada fazer que revele o sentimento de sua
incapacidade”(218).
A humildade se manifesta pela modéstia. É a arte de saber, cada
qual, colocar-se no seu lugar; é ainda eminentemente uma virtude
equitativa, e a alma humilde que vive dentro da ordem e da verdade
pratica-a naturalmente.

“Ora, a virtude da modéstia respeita três coisas, a saber: tempo,


lugar e pessoa. Porquanto não seria impertinente quem no recreio
só quisesse rir, como se ri fora dele? Certas palavras, em qualquer
outra ocasião, a não ser recreio, seriam falta de modéstia, mas não
o são quando convém dilatar justa e razoavelmente o espírito; quem
não quisesse, pois, falar, ou que outrem falasse, durante esse
tempo senão de assuntos elevados e difíceis, cometeria uma
imodéstia. É mister também tomar em consideração tanto o lugar e
as pessoas como a natureza das conversações, e de modo
particular a qualidade da pessoa com que se trata. A modéstia da
mulher que vive no mundo difere da modéstia de uma religiosa; não
seria apreciada na sociedade a moça que quisesse conservar
sempre os olhos baixos, como fazem nossas Irmãs, nem tão pouco
a irmã que fizesse o contrário. O que num homem é modéstia,
noutro será imodéstia; a gravidade fica bem numa pessoa idosa,
mas será afetação numa jovem, à qual convém uma modéstia mais
submissa e mais humilde”.
A modéstia “diz respeito às roupas e ao modo de vestir”. Limito-me
a aconselhar que se evite a falta de asseio e de decoro, como
também o extremo oposto, isto é, demasiado esmero no vestir, que
parece faceirice. É vaidade. São Bernardo encarece o asseio como
sendo grande indício da pureza e limpidez da alma. Há na vida de
São Hilarião um fato que parece desmentir este ponto. Certo dia,
falando a um cavalheiro que o fora visitar, disse-lhe que não se
devia procurar o asseio num cilício; entendia ele com isso que não
havia necessidade de tratar o nosso corpo com tanto cuidado, pois
não passa de cadáver asqueroso e infeto. Isto, porém, no grande
santo, antes merece ser admirado que imitado. Se assim se
exprimia era, se não me engano , por se dirigir ele a cortesãos,
dados a exagerada delicadeza neste sentido, sendo pois necessário
falar-lhes com certa aspereza, a exemplo de quem para desentortar
o arbusto novo, não se contenta em colocá-lo na devida posição,
mas dobra-o um pouco mais do lado oposto, a fim de que não
entorte de novo.
Direi ainda uma palavra sobre a modéstia exterior, da qual já
tratamos acima; não podeis imaginar o quanto é útil à interior, à paz
e à tranquilidade da alma. Temos a prova disto na oração; pois
todos os Santos padres, muito afeitos à oração, entenderam que a
posição respeitosa, como o estar de joelhos, auxilia-a muito.
“Será faltar à modéstia conservar a cabeça baixa e reclinada sobre
o peito, ou ainda revirar os olhos para o alto? Respondo que se
acontecer uma ou outra vez, e inadvertidamente, não haverá grande
mal, logo que não seja afetação, nem haja intenção de sobressair!
na devoção. É preciso evitar os ares afetados, pois, tudo que é
pouco natural é detestável. Cuidemos de não pronunciar
o sanctificetur, sem o nomen tuumm quero dizer, de imitar os
devotos e os santos nos modos exteriores, como fiz uma vez. Não
haverá mal em narrar este pequeno episódio, visto tratar-se da
minha pessoa. Quando jovem estudante, nesta cidade, apoderou-se
de mim, um extraordinário e forte desejo de ser santo e perfeito.
Imaginei que para isto me era preciso inclinar a cabeça ao recitar as
Horas, porque outro estudante, que era verdadeiramente santo,
assim fazia: imitei-o cuidadosamente durante algum tempo, sem por
isto me tornar mais santo” (219).
Em quem, por humildade, se coloca em seu lugar, o abandono
amoroso produz a obediência perfeita, que não somente obedece
mas preza a ordem recebida.

“Não saberíamos amar a ordem dada, se não amamos quem a deu;


na medida em que amamos e estimamos quem nos dita a lei,
havemos de observá-la com maior exatidão” (220).
A alma verdadeiramente obediente preza a ordem, porque preza
quem a dá. O superior é o homem que Deus coloca acima dele, e
cujas ordens representam as próprias ordens de Deus e cujos
desejos são os desejos de Deus. A obediência completa, o
desprendimento, aperfeiçoa a união. Assim como é uma renúncia
contínua, assim também nos une a todo instante à vontade divina,
que manifesta. A obediência é o sal que dá gasto e sabor a todas as
nossas ações e as torna merecedoras da vida eterna (221).

“Quando ouvimos o sinal da obediência, devemos crer que é a voz


de nosso Senhor que nos chama, e partir prontamente, embora
estivéssemos a trabalhar para Deus, a exemplo da jovem esposa
que, ao ouvir a voz do esposo, deixa tudo, embora estivesse a fazer
alguma coisa para ele, e corre ao seu encontro. Se bem que uma
pequena demora não seja infidelidade, no entanto a prontidão é
grande fidelidade e virtude muito agradável a Deus. Assim também
há mil coisas que, omitidas, não constituem pecado, mas que
praticadas dão prova de grande virtude” (222).
A alma abandona-se aos seus superiores como ao próprio Deus.
Nada pede, nada recusa. A obediência nos leva a retomar a prática
da indiferença.

“Quanto a mim, se eu fosse religiosa, nada pediria, pelo menos se


pensasse como penso agora. Alguns pedem cruzes, e parece-lhes
que nosso Senhor nunca lhas enviará em número bastante para
satisfazer o seu fervor. Quanto a mim, nada peço; espero somente
estar sempre pronto a carregar, com a possível paciência e
humildade, que a Bondade divina houver por bem enviar-me. Faria
do mesmo modo se fosse religioso. Nada pediria, senão estando
doente, porque os doentes pedem confiadamente tudo quanto
precisam; pediria também agulha e linha, quando tivesse algum
trabalho a fazer, porque a ordem dada me obriga a pedir o que for
necessário para a executar. Não minha cara filha, de certo não
pediria mortificações dispor-me-ia a receber prontamente as que me
fosse impostas, mas não as pediria. Procuraria seguir sempre o meu
caminho, com simplicidade, sem me entreter em desejar isto ou
aquilo”.
“Fazeis bem de pedir para amassar a farinha, porque vos sentis
bastante forte para fazê-lo; eu, porém, fá-lo-ia de boa vontade se mo
ordenassem, senão não pensaria nisto. Enfim, preferiria fazer uma
pequena cruz de palha, que me fosse colocada sobre os ombros,
sem que eu a escolhesse, a ir cortar lenha no bosque e fazer outra,
muito mais pesada, e que fosse depois carregar a muito custo.
Julgaria, com razão, ser mais agradável a Deus com a cruz de
palha, do que com aquela feita por mim, embora com maior
dificuldade e esforço, porque esta daria maior satisfação ao meu
amor-próprio, que tanto se compraz nessas invenções e tão pouco
em se deixar conduzir e governar pela simplicidade, que é isto o que
mais vos desejo. Façamos com simplicidade tudo o que nos mandar
a obediência, por meio das Regras, das Constituições ou dos
nossos superiores e depois fiquemos tranquilos, bem perto de Deus”
(223).
Poderíamos, a propósito da obediência, repetir tudo o que já
dissemos e todas as passagens que citamos sobre a indiferença.
Tornaremos sempre ao mesmo ponto de partida:

“Andar com simplicidade é o verdadeiro caminho das filhas da


Visitação” (224).
“Admiro-me que se possa ter maior inclinação para um cargo que
para outro, principalmente num convento, onde qualquer tarefa ou
trabalho é indiferentemente agradável a Deus, por ser a obediência
que imprime valor a todas as práticas da vida religiosa” (225)
Por isso “é sempre melhor nada desejar, mas estar pronto a
aceitar” (226) todos os cargos que “a obediência nos impuser, e
fossem eles honrosos ou desprezíveis, eu os acolheria com toda
humildade, sem dizer uma só palavra, a não ser que me
interrogassem, porque, então, diria a verdade como me ocorresse.
Enfim, minhas caras filhas, guardai cuidadosa e fielmente o que vos
hei dito; quer o que se refere ao interior, quer ao exterior; querendo
só o que Deus quiser de vós, abraçando com amor os
acontecimentos e as diversas consequências do querer divino, sem
vos preocupardes com coisa alguma fora disso” (227).
Há uma obediência mais preciosa ainda, e que, para ser exato, é
menos obediência que abandono nas mãos de Deus. Consiste em
condescender aos desejos do próximo, em tudo que for indiferente,
em ficar, de certo modo, subordinado a todos “porque não se pode
conhecer melhor nem mais acertadamente a vontade e o bel querer
de Deus, do que pela voz do próximo. Deus nos manifesta suas
vontades pelas de nossos irmãos e, portanto, obedeço a Deus toda
vez que condescendo àquilo que querem” (228). É uma obediência
que se firma na caridade perfeita. Ser sempre condescendente não
é o melhor meio de evitar discussão? E pode-se conceber um amor
que não seja condescendente? Esta obediência leva-nos a dizer
algumas palavras sobre o amor fraternal. Antes, porém, de
continuar, abro um parêntese para falar da Irmã Simpliciana, e de
suas virtudes de humildade e de obediência, e ler um trecho
encantador que nos é narrado a seu respeito:
Trata-se de uma humilde irmã, a primeira conversa a entrar na
Ordem, com baronesa de Chantal e suas primeiras companheiras.
Era uma alma inteiramente cândida, a quem São Francisco
estimava imensamente, pela sua grande inocência. Tendo ela lhe
dito, certa vez, que gostaria de tomar o seu lugar na casa,
respondeu-lhe ele, com a sua habitual benevolência:

“Então, minha cara filha Claude Simplicienne, gostaríeis de tomar o


meu lugar nesta casa e fazer o que eu faria se aqui estivesse? E o
que faria eu, minha filha? Sem dúvida não faria nada tão bem
quanto vós, porque sou um poltrão; nada valho de mim mesmo. Mas
parece-me que, com a graça de Deus, eu me tornaria tão atento à
prática das virtudes e às mínimas normas que devemos observar
nesta casa, que procuraria assim ganhar o coração de nosso
Senhor. Guardaria o silêncio prescrito, e falaria também algumas
vezes, quando a caridade o exigisse, mas nunca doutra forma.
Falaria sempre suavemente e em voz baixa, e prestaria muita
atenção a este ponto, como mandam as Constituições. Ah! tenho
certeza que assim faria. Abriria e fecharia as portas bem devagar,
porque a nossa Madre assim o quer, e nós queremos fazer que se
faça. Conservaria os olhos baixos em casa e andaria devagar.
Minha cara filha, Deus e seus Anjos estão a olhar sempre para nós
e tem muito amor a quem faz tudo bem”
“Parece-me que se eu me tivesse, destarte, dado inteiramente a
nosso Senhor, como quando se faz profissão, eu me abandonaria
totalmente a Ele, com tudo que me pertence, e deixaria que
fizessem de mim o que bem quisessem, — pelo menos assim me
parece. Qualquer coisa que me mandassem fazer, ou qualquer
cargo que me dessem, eu estimaria, de tudo procurando
desempenhar-me do melhor modo possível; se nada me dessem, se
me deixassem de lado, não me intrometeria em coisa alguma,
tratando de obedecer e de amar muito a nosso Senhor. Ah! parece-
me que amaria muito, e de todo o coração, a esse Deus tão bom e,
em toda parte, onde me encontrasse, aplicaria o espírito,
procurando pensar nEle o mais possível, e observar bem as Regras
e as Constituições. Ora, devemos fazer isto da melhor forma, pois
não foi para isto que nos fizemos religiosos? Estou bem satisfeito
que haja uma Irmã Claude Simplicienne. Esta quer estar no meu
lugar e progredir sempre na perfeição. A verdade é que ambos o
queremos, não é?”
“Ora, então façamos tudo do melhor modo; nada nos deve impedir
de fazer bem tudo quanto nos prescrevem as Constituições, porque
havemos de consegui-lo com a graça de Deus. Tão pouco nos
devemos admirar se cometermos faltas, porque, sem o auxílio de
Deus, que podemos nós? Nada absolutamente. Quereis que eu vos
diga mais alguma coisa, minha caríssima filha? Quero crer que
estaria sempre alegre, e nunca me perturbaria, porque acho que
assim já faço, e creio que nunca me deixo perturbar”.
“Conservar-me-ia na minha pequenez e baixeza, e me humilharia,
praticando esta virtude em toda ocasião que se apresentasse, e se
não soubesse humilhar-me, humilhar-me-ia ainda por não o saber. E
procuraria sempre praticar, do melhor modo possível, todas as
minhas ações, na presença de Deus, com a máxima humildade e
amor, porque nesta casa se aprende a fazer assim, não é exato?
Deixemo-nos a nós mesmos. Comecemos já, com coragem, e Deus
nos ajudará, e faremos muita coisa com o seu auxílio, se Deus
quiser” (229).
***

Chegamos assim ao ponto culminante da caridade fraterna: Vimos


como, em geral, nos devemos desapegar de tudo. Mas como pode a
alma perfeitamente desapegada ainda amar? Vamos retomar e
analisar este desapego, e veremos que, à medida que nele tem
parte nosso Senhor, este desapego conduz a novo apego.

Estando algumas religiosas prestes a deixar Annecy para irem


fundar um mosteiro em Orleans, veio São Francisco de Sales dizer-
lhes umas palavras de despedida:
“Pensando na vossa próxima partida, e nos inevitáveis sentimentos
de tristeza que tereis ao separar-vos umas das outras, julguei dever
dirigir-vos uma palavrinha de conforto. Não digo que não vos seja
justo chorar um pouco, porque é depois de uma convivência, suave
e intima, de tantos anos”(230).
Eis, de novo, as sorridentes efusões do bom pai com as caras filhas:
eis, de novo, o doce São Francisco de Sales; mas onde estará o
austero: “devemos morrer, minhas filhas”?
São de três espécies os bens de que nos devemos despojar. Bens
exteriores, bens do corpo, bens da alma. Por bens exteriores
entende-se tudo quanto deixamos ao ingressar na vida religiosa: lar,
família, amigos, riquezas e tudo mais. Para nos desprender de tudo
isso, devemos renunciar a tudo nas mãos de nosso Senhor, e
depois perguntar-Lhe que sentimentos nos devem inspirar, porque
não podemos deixar de nos afeiçoar, nem o podemos fazer da
mesma forma, mas devemos amar a cada qual em seu lugar, pois a
caridade classifica os afetos.

“Os segundos bens são os do corpo, saúde e outras coisas, às


quais devemos renunciar. Não devemos mirar-nos no espelho para
ver se estamos bem, nem nos preocupar mais com a saúde do que
com a doença, pelo menos quanto à parte superior, porque a
natureza sempre se ressente, algumas vezes grita, sobretudo
quando não somos ainda muito perfeitos. Devemos, pois, ficar
igualmente contentes na doença e na saúde, tomando os remédios
e alimentos que nos forem dados. Refiro-me sempre à razão,
porque não perco tempo com as inclinações. Os bens do coração
são as consolações e as doçuras que encontramos na vida
espiritual. São muito bons. Então por que nos desapegarmos?
Porque é preciso. Devemos depositá-los nas mãos de Deus, para
que disponha dele como lhe aprouver. Quanto a nós, é mister servi-
lo com eles ou sem eles”.
“Há outra espécie de bens, que não são nem interiores nem
exteriores, nem bens do corpo nem do coração, mas bens
imaginários, que dependem da opinião de outrem. Chamam-se:
honra, estima, reputação”
Destes devemos despojar-nos radicalmente, e não querermos outra
honra, senão a da Congregação, que consiste em procurar em tudo
a glória de Deus; nem outra estima e reputação, senão a da
Comunidade, a qual consiste em edificar sempre e em tudo. Estes
desprendimentos e renúncias das coisas supraditas não devem ser
feitas por desprezo, mas por abnegação, visando só o puro amor de
Deus.

“É preciso notar que o contentamento que sentimos quando


encontramos pessoas queridas, e as demonstrações de afeto que
damos, não são contrárias à virtude do desprendimento, desde que
não sejam desordenadas e que nosso coração não corra atrás
dessas pessoas quando se ausentem, pois em presença dos
objetos como não se hão de comover as potências? É como se
alguém dissesse a outrem, ao se lhe deparar um leão ou um urso:
Não tenho medo. Assim também, ao nos encontrarmos com entes
queridos, não podemos deixar de sentir alegria e contentamento.
Tudo isto é conforme ao beneplácito de Deus, e portanto não é
contrário à virtude. Digo mais ainda, se eu desejasse ver alguém em
proveito de qualquer fim útil, que pudesse reverter para a glória de
Deus, e se surgisse algum empecilho, é natural que eu ficasse um
pouco sentido com este contratempo, e procurasse remover as
causas. Nada haveria nisso de contrário à virtude do
desprendimento, contanto que não chegasse a perturbar-me”.
“A virtude não é pois tão terrível como se pensa. É erro em que
muitos incorrem. Forjam-se quimeras no espírito, julgando difícil o
caminho do céu; enganam-se, e sem razão, porque já Davi dizia a
Deus que a sua lei era demasiadamente suave (Sl 118) e, à medida
que os maus a declaravam dura e penosa, este bom rei afirmava
que era mais doce do que o mel” (231)
Ninguém ama como a alma desapegada. Fá-lo, porém, com ordem,
e não mais para satisfazer suas paixões, ama em Deus, que quer
que ela ame, e como o quer. O Mestre manda que amemos o
próximo a quem Ele amou até à morte. Se, pois, estivermos unidos
a Jesus, ‘‘seremos todo doçura e suavidade para com as Irmãs e o
próximo em geral, porque veremos suas almas no sacratíssimo
peito do nosso Salvador. Ah! quem vê o próximo sob outro qualquer
prisma, corre o risco de não o amar nem pura, nem constante, nem
igualmente; mas lá, quem não o amaria, quem não o suportaria,
quem não toleraria suas imperfeições, quem estranharia sua má
vontade, quem o acharia enfadonho? Ora, minhas caras filhas, este
próximo aí está, no Coração de nosso Salvador; e é tão querido e
tão amável, que o Amante morre de amor por ele. Então o amor
natural que nasce do sangue, das relações de amizade, da
convivência, da reciprocidade de sentimentos, da simpatia, da
graça, se purifica e se reduz à perfeita obediência do amor
puríssimo do bel prazer divino. O grande bem e felicidade das almas
que aspiram à perfeição seria de certo, nada mais desejarem da
parte das criaturas senão o amor da caridade que nos faz amar ao
próximo, e a cada um em particular, na ordem natural, conforme o
desejo de nosso Senhor” (1Jo).
A vida, em Jesus, torna-se, de novo, uma.

“Se Deus assim nos amou, devemos nós também amar- nos uns
aos outros, pois a doutrina que nos foi dada desde o princípio é
que nos amemos uns aos outros” (Mc 15)
O amor de Deus e o amor do próximo se identificam. O primeiro
mandamento manda que amemos a Deus sobre todas as coisas
e “o segundo lhe é semelhante: Amarás ao teu próximo como a ti
mesmo” (Jo 13).
“Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes
uns aos outros” (Jo 17)
E quando Jesus, no momento de caminhar para a morte, para um
instante e roga uma última vez ao seu Pai, que pede ele ainda?

“Pai, sejam eles um como tu em mim, eu em ti, a fim de que seja um


em nós” (1Jo 4).
“Quem disser que ama a Deus, mas odiar seu irmão, é mentiroso”
(232)
Como amar a Jesus, se não amamos nEle, num mesmo amor, a
todos a quem ama? Amar a Jesus não é unir-se a Ele, participar
dEle? E o amor inextinguível que tem às almas torna- se também
nosso.

Distingue-se, pois, claramente o amor cristão dessa benevolência e


beneficência natural a que se dá hoje em dia o nome de filantropia.
O amor cristão é todo em Deus, e é de Deus que, de certa forma, se
irradia nas criaturas. A generosidade natural é uma virtude das
almas bem-nascidas que sentem prazer em espalhar alegria. Mas
quem conhece, um pouco que seja, a decadência humana, não vê
até que ponto, exceto no cristianismo, esta virtude carrega
inevitavelmente, até entre os melhores, um fundo de egoísmo e de
amor próprio. A base sólida da renúncia total é o amor, e só a
humildade pode consegui-lo. Humildade, ou o conhecimento de
Deus e de si mesmo, ou desapego ao que temos e também ao que
somos; “porque, diz São Gregório Magno, se é relativamente fácil
deixar alguém o que possui, por outro lado é cruciante deixar-se a si
mesmo”.
“O coração não se desapega, senão se apegando. Para o
desapegar das coisas terrenas, é preciso apresentar-lhe, no alto,
outras realidades que o possam cativar” (233)
Só o cristão encontra na realidade de Deus, e no amor, tal como lho
manifesta o Cristo, esta verdade atraente, que o estimula ao ponto
de dar tudo, de se humilhar, de se renunciar, de quebrar a natureza,
para dar plena expansão à alma, por mais que lhe custe. E por isto
só a ele ama. Só a ele o amor liberta. Tudo se reduz à caridade, que
é o amor cristão; que se funda na humildade, ao mesmo tempo não
se concebe, fora dela, nem humildade verdadeira nem renúncia
total.

A caridade é a alma da perfeição, sem a qual as outras virtudes não


passam de cadáveres de virtudes; é ela que, elevando-as para
Deus, as vivifica e fecunda. Essa caridade é essencial e
fundamentalmente o amor de Deus, porque é o único que tem razão
de ser em si mesmo, fora de nós. Nele também, e só nele, o amor
ao próximo.
“Na medida em que a alma me ama, disse Deus a Santa Catarina
de Sena, ama ao seu próximo, porque é de mim que vem o amor
que ela lhe dedica”
Vejamos de novo a definição da beneficência: É uma virtude que
nos outorga a satisfação de proporcionarmos alegria aos outros. É,
pois, ao mesmo tempo para nós e para os outros que somos
generosos. O filantropo nunca chegará até à abnegação de todo
gozo próprio, nunca chegará ao completo esquecimento de si
mesmo, porque onde encontrará na ordem natural motivo tão
possante que o leve a sacrificar tudo? Só Deus pode elevar-nos
acima de nós mesmos; só em Deus nos será possível amarmos até
ao esquecimento próprio e é esse o amor puro, o que só pensa no
objeto amado. Se quisermos, pois, amar plenamente, fitemos o
olhar em Jesus.

“Amemo-nos uns aos outros, e sirvamo-nos para isto deste


pensamento, tão próprio para nos excitar a esta santa dileção, de
que nosso Senhor na cruz derramou até a última gota do seu
Sangue sobre a terra, para que fosse como o cimento sagrado com
o qual queria cimentar, unir, juntar e ligar todas as pedras de sua
Igreja, que são os fiéis unidos uns aos outros, a fim de que nunca
houvesse separação” (234).
***

De que consta, na prática, este puro amor ao


próximo?
“Disse o grande Apóstolo São Paulo que ele se deu todo para a
todos ganhar. Com o fraco, sou fraco. Com o doente, sou doente.
Com o forte, sou forte. Quando me acho no meio dos enfermos,
aceito de boa mente as comodidades que lhes são necessárias, a
fim de animá-los a fazer o mesmo. Se estou ao pé de doentes, velo
sobre eles, qual ama tema e carinhosa, junto do menino doente,
ninando-o para que adormeça. Estando, porém, entre os fortes,
torno-me como um gigante, para lhes dar coragem. Se percebo, no
entanto, que escandalizo o meu próximo por qualquer ato, embora
lícito e isento de pecado, todavia, porque prezo muito a paz e
tranquilidade do seu coração, de boa vontade e de todo coração
abstenho-me. É, pois, o amor que tinha a Deus, que incitava São
Paulo a se tornar semelhante a cada um, para a todos ganhar”
(235).
Pai, orava Jesus, sejam eles um, como nós somos um. Assim as
almas que exercem a caridade, esquecidas de si mesmas, são
também um. Uma junto da outra, como as cordas de um
instrumento, têm tudo em comum; o instrumento todo vibra para a
glória de Deus, seja qual for a corda que produz o som, e “assim
todos os corações unidos cantam Jesus a Deus” (236).
“Quanto à pergunta se deveis ficar satisfeita quando tal Irmã pratica
uma virtude à custa de outra, digo que devemos amar o bem do
próximo tanto quanto o nosso, principalmente na vida religiosa, onde
tudo deve obedecer ao bem comum, nem devemos ficar pesarosos
se uma Irmã praticar certa virtude à nossa custa. Por exemplo,
achando-me junto à porta com uma mais nova que eu, se me
afastar para lhe dar passagem, à medida que eu pratico esse ato de
humildade, ela deve com brandura, praticar a simplicidade, e
procurar noutra ocasião antecipar-me. Como também, se eu lhe
ceder minha cadeira, ou sair do meu lugar, ela deve ficar contente
por ter eu podido pôr em prática tal virtude, participando ela do
pequeno lucro que dele me advirá, e pensando consigo mesma: Já
que não pude fazê-lo, alegro-me por o ter feito esta minha Irmã. E
não só não nos devemos entristecer, como devemos estar sempre
prontos a contribuir, tanto quanto nos seja possível, para isso, dando
até a nossa pele se fosse necessário, porque, desde que Deus seja
glorificado, pouco nos deve importar por quem, de tal sorte que, em
se apresentando ocasião de praticarmos qualquer ato de virtude,
nosso Senhor nos perguntasse quem preferíamos que o fizesse,
pudéssemos responder: Senhor, quem vos render maior glória. Ora,
não havendo escolha, devemos desejar fazê-lo nós, porque a
caridade começa por casa, mas não nos sendo possível, devemos
regozijar-nos e ficar satisfeitíssimas com que outrem o faça, e assim
praticaremos perfeitamente tudo em comum. Outro tanto devemos
dizer em relação ao temporal, porque, contanto que a casa esteja
bem arrumada, não nos devemos incomodar se foi por nós ou por
outrem. Se surgirem sentimentos em contrário, é sinal de que há
ainda do teu e do meu” (237).
A inveja não tem acesso no reino de Deus, e a alma simples não a
conhece. Toda virtude lhe agrada, porque agrada ao Mestre e se a
tal não possui, felicita-se de que, ao menos, outra a supra. Quanto a
ela, nada perde com isto, enquanto a glória divina, que é capital
comum, aumenta em benefício de todos, com o lucro de cada uma.

Tudo em comum: “O amor cordial” conduz a uma confiança toda


infantil. As crianças, quando têm em mão um brinquedo bonito, ou
outro objeto de seu agrado, não descansam enquanto não reúnem
os amiguinhos, para lhos mostrar, a fim de que todos compartilhem
da sua alegria. Mas também quando se machucam, nem que seja a
pontinha do dedo, querem que todos tomem parte na sua dorzinha,
queixando-se a quantos encontram, para que se compadeçam do
seu mal e lhes soprem o dedinho ou o lugar machucado. Ora, não
digo que deveis imitar essas crianças, mas que esta mesma
confiança leve a se comunicarem às vossas Irmãs, com toda
simplicidade, suas pequenas alegrias e consolações, sem receio,
por outro lado, que elas lhes percebam as imperfeições. Não digo
que quem recebe de Deus um dom extraordinário o deva manifestar
a todos, não; mas, quanto às pequenas consolações que tivermos e
aos bens que nos couberem, quisera que não houvesse tanta
reserva, mas que, se a ocasião se apresentar, não por forma de
jactância ou vanglória, mas de simples confiança, umas as
comunicassem simples e francamente às outras. Quanto aos
nossos defeitos, não nos preocupemos tanto em escondê-los,
porque não se tornarão menores. Devemos, pelo contrário, ficar
satisfeitos de nos conhecerem tal qual somos. Podeis cometer uma
falta ou uma inépcia, é verdade; mas será diante de Irmãs, que vos
querem muito bem, e que saberão desculpar-vos e suportar esse
defeito, antes ficando com pena de vós do que sentidas convosco…
Como se fossem achar estranho sermos nós tão imperfeitas! (238)
Nada de exclusivismo tão pouco. Algumas são tão ciosas deste
espírito da Visitação que não o quereriam comunicar a gente de
fora. É um sentimento exagerado, que se deve cortar, porque,
pergunto, com que fim subtraireis ao próximo aquilo que pode ser-
lhe proveitoso? Não concordo com isto, pois desejaria que os de
fora conhecessem e apreciassem todo o bem que há na Visitação.
Sempre fui do parecer de que seria bom que se imprimissem as
Regras e as Constituições, a fim de que, lidas por diversas pessoas,
estas pudessem tirar proveito. Conservai o espírito da Visitação,
com extremo cuidado, mas não ao ponto de impedir que seja
comunicado caridosamente, e com simplicidade, ao próximo, a cada
um segundo a sua capacidade, sem receio de que se venha a
dissipar, por causa de semelhante comunicação. Pelo contrário, a
caridade nunca prejudica coisa alguma, mas aperfeiçoa tudo (239).
Esta caridade se manifesta de diversos modos. Todos se reduzem à
máxima de pensar nos outros e não em si mesmo. Nunca
poderemos amar de mais ao nosso próximo, nem excedermos os
termos da razão neste amor. Mas quanto às provas que dermos,
podemos muito bem cair e exceder as regras da razão,
ultrapassando-as” (240). A caridade toma em consideração as
circunstâncias; a nós adaptarmo-nos a elas.

Será esclarecida e maneável. Será esclarecida, se for toda em


Deus; um olhar para Jesus coloca cada coisa no lugar. Será
maneável, se se basear num completo desprendimento, porque
então não haverá inflexibilidade de amor próprio para impedir a alma
de se amoldar ao bem do próximo. Aqui, na vida cotidiana do
convento, só nos é dado praticá-la nas pequenas coisas, mas os
princípios permanecem os mesmos, — e sua verdade aparece mais
clara ainda, quando as circunstâncias se avolumam.

“Ora, este amor cordial vem acompanhado de duas virtudes: uma se


chama afabilidade, a outra boa conversação. A afabilidade imprime
certa suavidade no trato com os outros, quando falamos de
negócios e de coisas sérias. A boa conversação nos toma gentis e
amáveis nos recreios e no comércio trivial com o próximo. As
virtudes, como bem sabeis, têm todas dois vícios opostos, que são
os seus dois extremos. A virtude de afabilidade está, pois, entre a
gravidade, ou excessiva seriedade, e a exagerada delicadeza,
tendência para lisonjear. Ora, a virtude da afabilidade fica entre o
demasiado e o pouco, usando de carinho, conforme o caso,
conservando, todavia, a gravidade suave, de acordo com os
negócios e as pessoas com quem lidamos. Digo que precisamos
usar de carinho em certas ocasiões como, por exemplo, quando
uma Irmã está doente, ou aflita, ou um pouco melancólica, porque
isto lhe fará tanto bem! Não seria razoável ficar ao pé de uma
pessoa doente com o mesmo ar grave que tomamos alhures, não
querendo acarinhá-la, como se estivesse gozando boa saúde. Nem
tão pouco se deve estar a dar constantes provas de afeto, e dizer, a
todo propósito, palavras adoçadas, e lançá-las aos punhados a
quem encontramos. Assim como o açucarar demais em uma comida
a tornará enjoativa, assim também os carinhos muito frequentes,
tornam-se fastiosos e deixam de agradar por já constituírem hábito.
As carnes muito salgadas também tornam-se desagradáveis, por
causa da sua acrimonia. Os alimentos porém, bem temperados com
sal e açúcar são saborosos. Do mesmo modo, os carinhos feitos
com medida e discrição são agradáveis e proveitosos, para quem os
recebe” (241).
Isto exige certo tato, em que entram a modéstia, o esquecimento de
si mesmo, e a procura do bem alheio.

“Falando-lhe sobre a condescendência, perguntamos-lhe o que fazia


ele para se tornar tão indulgente para com todos. Não me é muito
difícil, respondeu-nos, e nunca me arrependo de o ser, e sim de não
o ser; naturalmente, firmeza de vontade, e, na verdade, não
devemos ser condescendentes com o próximo? Não sei contrariar
as inclinações dos outros, e, quando vejo que alguém deseja fazer
alguma coisa, deixo-o fazer (242). Deus manda exercer a caridade
com o próximo, e é grande caridade conservarmos a união entre
nós. Para isto não vejo ada melhor do que a docilidade e a
condescendência. A doce e humilde condescendência deve sempre
pairar acima de todas as nossas ações” (243).
“É verdade que quero muito bem a todos, e de modo particular às
almas simples. Quanto à consideração com que aparentemente
trato a cada um, a civilidade nos ensina a proceder assim, e,
demais, sou levado a isto naturalmente; nunca soube fazer o que
fazem certas pessoas, que, ao ocuparem um alto cargo, julgam-se
com direito à consideração geral, e, nas suas cartas, não querem
subscrever “muito humilde ou humilde servo”, senão às pessoas de
categoria. A não ser com Pedro e Francisco, meus empregados,
que, se assim me assinasse, pensariam que eu estivesse a zombar
deles, emprego estes termos e não faço muita distinção entre uma e
outra pessoa” (244).
“Manda a virtude da boa conversação que cada qual contribua para
a alegria santa e moderada, para as palestras afáveis, aptas a
consolar ou recrear o próximo, de sorte a não lhe causarmos enfado
com os nossos ares carrancudos e melancólicos, nem recusarmos
distrair-nos no tempo determinado para tal fim, procedendo como os
que só querem fazer tudo comedidamente, e só se resolvem a falar
depois de pesar cada palavra ou frase que vão dizer, a fim de que
tudo esteja certo e não haja nada a corrigir, tanto receio têm eles de
sujeitar suas palavras e ações à crítica. Ficam a se observar, a todo
propósito, não para ver se ofenderam a Deus, mas se deram
ocasião a que alguém os menosprezasse. Ah! O trato com essa
espécie de gente torna-se desagradável aos outros. Tais pessoas
pecam contra a prática da virtude da boa conversação, que nos
manda tratar o próximo franca e graciosamente, contribuindo, na
medida do possível, para lhe ser útil e consolá-lo” (245).
“Mas, alegar-se-á, se na hora do recreio me vier forte desejo de
fazer oração, a fim de me unir mais perto à soberana Bondade, não
devo concluir daí que a lei que determina o recreio não se aplica a
mim, que tenho um gênio jovial por natureza? Ah! não deveis pensar
isto, e muito menos dizê-lo; se o recreio não vos parece necessário,
deveis, no entanto, tomar parte nele, por causa daquelas que
precisam dele” (246).
Estamos a ver algumas Irmãs bem fervorosas, mas ainda um tanto
humanas na prática da virtude; a que fica absorta na capela, de
joelhos sobre as lajes, e se julga muito santa; a que pesa suas
palavras e não se atreve a falar, com receio de faltar à discrição, ou
à caridade, ou à humildade, ou ainda, ao recolhimento. No recreio
não se dizem palavras inúteis, pois tudo lá tem sua utilidade. As
Irmãs precisam distrair-se e as noviças, sobretudo, tiram grande
proveito do recreio. O espírito não se pode manter sempre tenso,
senão corre perigo de se tornar melancólico. Eu quisera que não
tivessem escrúpulos de falar sobre coisas indiferentes; não seriam
palavras inúteis; pois não podemos sempre falar de coisas sérias
(247).

“Agora, resta saber como se há de observar a simplicidade,


franqueza, sinceridade e lisura na conversação, visto que, onde há
diversidade de espíritos, não se pode afiançar que tudo quanto uma
disser seja aprovado e acatado pelas outras. Seria bom se
pudéssemos sempre adaptar as nossas palavras ao sentir e ao
gênio de cada qual, de maneira que ninguém encontrasse nada a
dizer, mas é impossível; nem devemos procurar fazê-lo, porque não
é necessário. Deve-se, por acaso, pesar cada palavra que se diz, a
fim de evitar ofender ou magoar os outros? De maneira alguma,
contanto que se observe a Regra de não falar senão do que é
necessário, ou do que sirva para distrair e alegrar no recreio. Mas se
nos viesse a ideia ou desejo de dizer outras quaisquer, não as
deveríamos dizer, posto que a simplicidade segue sempre a regra
do amor de Deus, em tudo. E se devemos ser simples na
conversação, não devemos, contudo, ser levianos, dizendo, a torto e
a direito, o que nos vier à imaginação. Mas achar-me perto de uma
Irmã de gênio um pouco melancólico, que não gosta muito de ouvir
falar, — e eu, que estava tão disposta a me distrair! Que fazer? Nem
por isto, minha filha, vos deveis incomodar. Hoje é ela que está séria
e melancólica, amanhã sereis vós; agora corre por vossa conta,
amanhã correrá pela dela. Seria de fato interessante, apenas
disséssemos uma palavra jocosa, logo olhássemos para todas as
Irmãs, a ver se acharam graça e se aprovaram, e que, vendo
alguma com ar sério, ficássemos contrariadas, julgando que ela não
gostara, ou lhe desse uma interpretação mal. Não seja assim: seria
o nosso amor próprio que nos levaria a proceder deste modo,
deixaríamos de caminhar com simplicidade, porque a simplicidade
não se preocupa com o que diz ou faz, mas deixa tudo nas mãos da
divina Providência, na qual confia inteiramente” (248).
Pode acontecer, todavia, que, apesar da nossa prudente caridade,
alguém fique magoada, “porque não esta em nosso poder contentar
sempre a todos”. Mas a alma simples se aproveita mais uma vez do
equilíbrio estável que lhe assegura a unidade de todas as virtudes
em Deus.
“Façamos o possível para não ofender a ninguém; mas se
acontecer, às vezes, apesar de tudo, pela nossa fraqueza,
desgostar a outrem, recorramos sem demora à doutrina que tanto
vos tenho pregado, que quisera gravar em vossos espíritos”.
“Humilhai-vos, logo, diante de Deus, reconhecendo a vossa culpa, e
se tanto o merecer, por um ato de humildade para com a pessoa
magoada; feito isto, não vos perturbeis mais, porque o nosso pai
espiritual, que é o amor de Deus, no-lo proíbe, ensinando que, uma
vez feito o ato de humildade, como já disse, devemos recolher-nos e
afagar ternamente esta abjeção bendita que resulta de termos
caído”(249).

“As palestras santamente alegres são aquelas em que não há mal


algum, em que não se exprobram as imperfeições do próximo,
pecado que nunca se deve cometer, nem se falar de coisas
inconvenientes e indecorosas, nem tão pouco se discutem, com
prazer e longamente, negócios do mundo e futilidades. Duas ou três
palavras, ditas de passagem, e logo compensadas, não têm
importância. Nem haverá mal em rir-se do que disser outra. Nem me
acusaria de um gracejo, dito de brincadeira, embora mortificasse um
pouco tal outra Irmã, contanto que não a entristecesse. Quem tende
à perfeição, deve tender ao alvo, mas não se incomoda, quando não
o atinge logo. É preciso proceder com toda simplicidade um pouco
ao acaso, e aproveitar bem o recreio, pelo amor de Deus. Embora
não tivéssemos tido a intenção de nos recrear para Deus, não
deveríamos ter escrúpulos, porque bastaria a intenção geral, apesar
de que, ao começar, convém ratificá-lo” (250).
***
Uma palavra para terminar:

“É preciso que eu vos diga, minhas caras filhas, que a santa Igreja
não é tão rigorosa como se pensa. Se uma Irmã estiver doente, seja
mesmo com febre terçã, e se lhe vier um acesso, em dia de
preceito, na hora da Missa, podeis e deveis perder a Missa para,
ficar junto da enferma, embora se ficasse só nada lhe fosse
acontecer; pois a caridade e a suavidade da nossa santa madre
Igreja sobrenada a tudo” (251).
Sirvam-nos estas últimas palavras de remate. Revelam-nos todo
Francisco de Sales, toda a vida cristã católica, todo Jesus, “doce e
humilde de coração”. O pai abre o coração às suas caras filhas; fala-
lhes da vida santa, da vida vivida, que ele tão bem conhece, na qual
o amor cria na alma nova espontaneidade, toda orientada por Deus.
O mundo não a compreende, porque só conhece a espontaneidade
proveniente dos sentidos, e, se admite a existência de Deus,
encara-a apenas no terreno da pura teoria, e interdiz a Deus todo
contato com o homem. Isto explica os preconceitos que pesam
sobre os santos. Não vivem segundo o espírito do mundo; e por isso
não vivem aos olhos do mundo. Mas estas páginas, assim espero,
revelando a vida que levam as almas verdadeiramente cristãs,
retratam uma vida inteiramente diversa, vida que é muito mais
intensa, porque é divina.
“Como visse as tochas acesas para o reconduzir, admirou-se e
disse à sua gente: Que quereis de mim? Passaria de bom grado
aqui a noite toda. Mas precisamos separar-nos; a obediência me
chama. Adeus, minhas caras filhas, eu vos levo a todas no coração
e vos deixo este como prova de minha amizade”.
“Quando a nossa Madre lhe pediu, muito humildemente, que nos
dissesse umas palavras que se nos gravassem profundamente no
espírito, respondeu: Que vos hei de dizer, minhas caras filhas a não
ser duas palavras preciosas, que tantas vezes vos recomendei:
Nada desejar, nada recusar? Nestas duas palavras, eu vos digo
tudo” (252).
Foi isto como que o testamento de São Francisco de Sales, e “o
último adeus do nosso bem-aventurado Pai às nossas caras Irmãs
de Lyon, em 1622, no dia de São Estevão, à tarde, na antevéspera
da sua bendita morte”. No dia seguinte sofreu um ataque de cabeça,
e morreu à 28 de dezembro, festa dos Santos Inocentes, no
momento em que, em torno do seu leito, os assistentes repetiam
pela terceira vez: Omnes sancti Innocentes, orate pro eo.
Mâlines, 25 de julho de 1917.

Referências:

(1) Vincent, Saint François de Sales dirécteur d’âmes, p. 146.


(2) Hénry Coüannier, Saint François de Sales et ses amitiés, p. 343.
(3) Vincent, op. cit, p. 48.

(4) Révue des sciences philosophiques et théologiques, 20 avril


1923, p. 252.
(5) 26 de agosto de 1618.

(6) Artigo de Dom Idesbald Rylandt na Rêvue Liturgique et


monastique, 1923.
(7) Ver, por exemplo, Summa, I parte, q. 60, art. 5 e Quodlibet a 8.
(8) Vacant et Mangenot — Dictionaire de théologie catholique, au
mot Augustinisme, col. 2516.
(9) Vincent, op. cit., p. 81.

(10) Ver o segundo volume: L’invasion mystique, que trata do tempo


de São Francisco de Sales.
(11) Ver em Brémond, obra cit., c. IV, a figura de Margarida Acarie,
cuja santidade extraordinária deve reconhecer, mas cuja discrição
não pode deixar de lastimar.

(12) Mysterium fidei. De augustissimo corporis et sanguinis Christi


sacrifício atque sacramento. Paris, Beauchesne, 1921.
(13) Carta de 9 de outubro, 1604.
(14) Santo Tomás analisa muito bem esta complexidade da
oração. Summa Theologica, II, q. 83, art. 17.
(15) Carta CLI, ed. Vivès. — Citada por Dom Rylandt, Saint Françoís
de Sales et la piété liturgique, Révue liturgique,
(16) Traité de l’amour de Dieu, Prefácio.
(17) Introduction à la vie devote, 3° p., cap. XXIII.
(18) Introduction à la vie devote, 3° p., cap. XXXXV.
(19)Traité de l’amour de Dieu, l. IX, cap. II.
(20) Introduction à la via dévote, Ia, cap. I.
(21) Introduction à la via dévote, Ia, cap. III.
(22) Bordeaux, Saint François de Sales et notre coeur de chair, p.
98.
(23) Constituições para as Religiosas da Visitação: De la fin pour
laquelle cette Congrégation a été instituée.
(24) Histoire de la Galerie, pela madre Marie-Adrienne Fichet,
sétima professa da Visitação. — A primeira casa da Visitação foi
chamada Casa da Galeria, por causa duma galeria coberta, que
corria em redor da casa e do jardim.
(25) Ibid.

(26) Entretiens spirituels. Dos votos. — Todas as citações referem-


se à edição das obras completas, publicadas pelas religiosas do
mosteiro da primeira Visitação de Annecy.
(27) Histoire de la Galerie.
(28) Dos votos.

(29) Oeuvres de sainte Jeanne de Chantal. Paris, Plon, 1877: t. VI,


carta XX.
(30) Por ocasião da morte de São Francisco de Sales, em 1622,
havia treze casas da Visitação.

(31) Carta à Madre de Chantal, em 19 de março de 1615.

(32) O Confessor só morava no convento de tempos a tempos. Por


isso o quarto ficava muitas vezes desocupado.
(33) Recueil des questions faites à Lyon, no apêndice dos Entretiens
Spirituels.
(34) Da obediência.

(35) Dos votos.

(36) Ibid.

(37) Da obrigação das constituições.

(38) Do espírito das regras.

(39) Ibid.

(40) Ibid.

(41) Da obrigação das Constituições.

(42) Carta de 13 de dezembro de 1619.

(43) Carta de 13 de dezembro de 1615 à Madre Favre, superiora de


Lyon.

(44) Da pretensão religiosa.

(45) Dos votos.

(46) Das aversões.

(47) Ibid.

(48) Ibid.

(49) Da Vontade de Deus.

(50) Dos Sacramentos.

(51) Da vocação religiosa.


(52) Dos votos.

(53) Coleção das perguntas feitas na Visitação de Lyon.

(54) Da firmeza.

(55) Da obediência.

(56) Da firmeza.

(57) Última conferência em Lyon.

(58) Dos votos.

(59) Última conferência em Lyon.

(60) Coleção das perguntas feitas em Lyon.

(61) Dos Sacramentos.

(62) Das aversões.

(63) Últimas conferências em Lyon.

(64) Da modéstia.

(65) Das três leis espirituais.

(66) Da modéstia.

(67) Da vocação religiosa.

(68) Da simplicidade.

(69) Da modéstia.

(70) Da obediência.

(71) Da obrigação das Constituições.


(72) Da obediência.

(73) Apêndice às conferências.

(74) Dos votos.

(75) Coleção de perguntas feitas em Lyon.

(76) Das aversões.

(77) Dos votos.

(78) Das aversões.

(79) Histoire de la Galerie.


(80) Da obediência.

(81) Última conferência feita em Lyon.

(82) Apêndice.

(83) Das aversões.

(84) Da obediência.

(85) Do juízo próprio.

(86) Das aversões. Apêndice.

(87) Da modéstia.

(88) Do juízo próprio.

(89) Última conferência feita em Lyon.

(90) Coleção das perguntas feitas em Lyon.

(91) Da obediência.
(92) Coleção das perguntas feitas em Lyon.

(93) Da vontade de Deus.

(94) Das aversões. Suplemento.

(95) Da obrigação das Constituições.

(96) Da vocação religiosa.

(97) Dos Sacramentos.

(98) Da obrigação das constituições.

(99) Do juízo próprio.

(100) Da vocação religiosa.

(101) Coleção das perguntas feitas em Lyon.

(102) Da devoção religiosa.

(103) Da simplicidade.

(104) Apêndice.

(105) Dos Sacramentos.

(106) Do desapego.

(107) Das aversões.

(108) Coleção das perguntas feitas em Lyon.

(109) Histoire de la Galerie.


(110) Da simplicidade.

(111) Das três leis espirituais.


(112) Sermão para a vigília de Natal, t. IX, p. 459.

(113) Dos Sacramentos.

(114) De nada pedir.

(115) Introduction a la vie devote, 3ª parte, cap. VI.


(116) S/F.

(117) Da cordialidade.

(118) Da obediência.

(119) Ibid.

(120) Da devoção religiosa.

(121) Do espírito das Regras.

(122) Do juízo próprio.

(123) Do espírito das Regras.

(124) Carta em 19 de setembro de 1612 à abadessa de Beaume-


les-Dames.

(125) Carta em 21 de setembro de 1612 ao barão Amédée de


Vibette

(126) Da vocação religiosa.

(127) Da obrigação das Constituições.

(128) Dos Sacramentos.

(129) Da obediência.

(130) Da vocação religiosa.


(131) Traité de l’amour de Dieu, livro I, cap. XI.
(132) Da confiança.

(133) Da obediência.

(134) Dos Sacramentos.

(135) Da simplicidade.

(136) Dos Sacramentos.

(137) Da modéstia.

(138) Da confiança.

(139) Da confiança.

(140) Do juízo próprio.

(141) Dos votos.

(142) Da prudência em matéria religiosa.

(143) Do desapego.

(144) Da vocação religiosa.

(145) Dos Sacramentos.

(146) Da modéstia.

(147) Coleção das perguntas feitas em Lyon.

(148) Da obediência.

(149) Dos Sacramentos.

(150) Coleção das perguntas feitas em Lyon.


(151) Da obediência.

(152) Do juízo próprio.

(153) Da simplicidade.

(154) Apêndice.

(155) Das aversões.

(156) Apêndice.

(157) Da obediência.

(158) Da modéstia.

(159) Do desapego.

(160) Da vocação religiosa.

(161) Da vontade de Deus.

(162) Da vocação religiosa.

(163) Da simplicidade.

(164) Da firmeza.

(165) Dos votos.

(166) Da obediência.

(167) Da vocação religiosa.

(168) Das aversões.

(169) Da modéstia.

(170) Sermão no domingo de Ramos, 20 de março de 1622.


(171) Da vida e das virtudes cristãs.

(172) Dos votos.

(173) Do juízo próprio.

(174) Das aversões.

(175) Da modéstia e do juízo próprio.

(176) Da cordialidade.

(177) Ibid.

(178) Ibid.

(179) Última Conferência feita em Lyon.

(180) Da simplicidade.

(181) Salmo 126.

(182) Da vocação religiosa.

(183) Dos Sacramentos.

(184) De nada pedir.

(185) Da esperança.

(186) Das três leis espirituais.

(187) Última Conferência em Lyon.

(188) Da simplicidade.

(189) Salmo 22.

(190) Das três leis espirituais.


(191) Última conferência feita em Lyon.

(192) Da modéstia.

(193) Da obediência.

(194) Da esperança.

(195) Da obediência.

(196) Da simplicidade.

(197) Da firmeza.

(198) Da vontade de Deus.

(199) Das virtudes de São José.

(200) Da vontade de Deus.

(201) Da obediência.

(202) Da obrigação das Constituições.

(203) Do espírito das Regras.

(204) Da obrigação das Constituições.

(205) Coleção das perguntas feitas em Lyon.

(206) Apêndice II, D.

(207) Da confiança.

(208) Coleção das perguntas feitas em Lyon.

(209) Apêndice II, D.

(210) Da confiança.
(211) Coleção das perguntas feitas em Lyon.

(212) Da modéstia.

(213) Da obediência.

(214) Coleção das perguntas feitas em Lyon.

(215) Dos Sacramentos.

(216) Da simplicidade.

(217) Do desapego.

(218) Da generosidade.

(219) Da modéstia.

(220) Do espírito das Regras.

(221) Da vontade de Deus.

(222) Do desapego.

(223) Apêndice II, D.

(224) Do próprio juízo.

(225) Da esperança.

(226) De nada pedir.

(227) Da esperança.

(228) Da vontade de Deus.

(229) Recueil de ce que notre bienheureux père dit à notre Soeur


Simplicienne.
(230) Da esperança.
(231) Do desapego.

(232) Da simplicidade.

(233) Rousset, La doctrine spirituelle, t. II, l. I, cap. VI.


(234) Do espírito das Regras.

(235) Da cordialidade.

(236) Mons. Charles Gay, De la vie et des vertus chrétiennes.


(237) Do desapego.
(238) Da cordialidade.

(239) Das aversões.

(240) Da cordialidade.

(241) Ibid.

(242) Coleção das perguntas feitas em Lyon.

(243) Da vontade de Deus.

(244) Coleção das perguntas feitas em Lyon.

(245) Da cordialidade.

(246) Do espírito das Regras.

(247) Coleção das perguntas feitas em Lyon. Suplemento.

(248) Do próprio juízo.

(249) Da simplicidade.

(250) Das aversões.


(251) Da cordialidade e Coleção das perguntas feitas em Lyon.
Suplemento

(252) De nada pedir.

(LECLERCQ, Abbé Jacques. São Francisco de Sales, Doutor da


Perfeição. Editora Vozes)

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