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São Francisco de Sales - Jacques Leclercq
São Francisco de Sales - Jacques Leclercq
SUMÁRIO
Prefácio
Doutor da perfeição
1. O ambiente e o homem
2. Tendência psicológica
3. Tendência prática
4. Otimismo
5. Piedade salesiana
6. Formação das almas
Advertência
Prefácio
Certas almas parecem feitas de um só bloco, — um Catão, um
Gregório VII, um Veuillot — e julgamos compreendê-las facilmente.
Reservam-nos, entretanto, surpresas, como, por exemplo, o aspecto
sob o qual se apresentam um Veuillot ou um Joseph de Maistre em
suas cartas íntimas, e os estudos recentes que modificaram a
fisionomia tradicional de Gregório VII.
Doutor da Perfeição
Modesto pastor de uma pobre diocese, príncipe e bispo de Genebra,
que, devido à heresia dos seus súditos, de lá foi exilado e se
refugiou na cidadezinha de Annecy, à orla das montanhas, São
Francisco de Sales recebeu da Igreja o título mais glorioso que ela
concede aos seus santos. Pertence à falange dos Doutores.
Sua obra não é vasta. Escreveu apenas dois livros de piedade para
ensinar às almas de boa vontade a viverem bem. Não nos
enganemos neste ponto. As edições atuais de suas Obras
completas compreendem muitos outros volumes. Mas
a Introdução à Vida Devota e o Tratado do Amor de Deus são as
únicas obras que foram propriamente dirigidas e publicadas por ele,
são seus únicos “livros”. Os mais, são todos escritos de ocasião,
obras de mocidade, como Controverses, ou cartas reunidas depois
da sua morte, ou sermões e conferências espirituais, que não foram
redigidas por ele, mas editadas de acordo com notas tomadas por
alguns dos seus ouvintes. A Introdução à Vida Devota e o Tratado
do Amor de Deus são as únicas obras terminadas por ele, são seus
títulos de Doutor.
Títulos bem insignificantes, comparados à sólida Summa de Santo
Tomás de Aquino, dos in-folio maciços dos Padres, da pilha de
volumes da Teologia Moral de Santo Afonso! E, entretanto, o fato é
que Francisco de Sales é Doutor da Igreja, e o é só por causa
destas duas obras.
Os Doutores da Igreja são os espíritos possantes que Deus suscitou
no decorrer dos séculos, para defenderem Sua doutrina, minada
pela heresia, libertarem a Verdade, obscurecida por sutilezas e
embustes, e reunirem, em sínteses fortes, a doutrina dogmática e
moral.
Nesse cortejo de gênios possantes, São Francisco de Sales faz
modesta figura. Só escreveu para nos mostrar o que deve ser um
bom e perfeito cristão. E foi por isso que a Igreja o proclamou
Doutor, pois tão bem o soube ele dizer que ela encontrou no método
espiritual do santo a expressão do seu próprio pensamento. Ocupa,
na gloriosa falange, um lugar seu, mais modesto do que o dos
outros, é verdade, mas um belo lugar. Entre os Doutores, só a ele e
a São João da Cruz coube esta honra suprema, unicamente por
causa da sua doutrina espiritual.
1. O Ambiente e o Homem
“Façamos tudo pelo amor e nada pela força”
Nenhum outro santo sente menos o esforço do que São Francisco
de Sales.
Para não fugir à regra de que um santo deve passar por grandes
provações, certos historiadores pintam, com cores negras, as
dificuldades que, como todo homem, encontrou na sua carreira.
Consideradas sem prevenção, cifram-se a muito pouca coisa: Uma
crise moral, aos dezoito anos, quando estudante, em Paris, crise de
angústia, diante do problema da predestinação. Durou um mês, e
gravou-se-lhe na lembrança como a maior provação da sua vida.
Não parece, depois disso, ter encontrado sombras no interior. Suas
relações com Deus mantêm-se sempre serenas.
***
***
Negava que fosse homem de iniciativa. Tudo que fez, fê-lo obrigado
pelas circunstâncias, que lhe designaram o caminho. Não há, nele,
a teimosia arrojada de um Santo Inácio, obstinando-se em ficar em
Jerusalém, onde julga que Deus o chama, apesar das
circunstâncias e das ordens expressas das autoridades que
finalmente o expulsam de lá. Não luta contra ventos e marés, como
alguns fundadores de ordens, uma Santa Teresa, por exemplo, ou
como certos apóstolos, um São João Crisóstomo, um São Bernardo,
uma Santa Catarina de Sena.
2. Tendência Psicológica
Um dos fatos mais notáveis da história moderna é a orientação
psicológica do pensamento ocidental depois da Renascença.
Antigamente o homem contemplava o mundo; mas há uns
quatrocentos anos que se contempla principalmente a si mesmo.
Muitos filósofos só tratam da psicologia, e até aqueles que
conservam bastante vigor de espírito para formar um sistema
metafísico, como Descartes e Kant, baseiam-se geralmente em
dados psicológicos. Com Kant e os sensualistas do século XVIII, o
mundo exterior desaparece, de certo modo, do campo do
pensamento, que se torna irredutível, ao mundo da experiência
chamada científica.
***
Pelo seu “gosto das almas”, seu “gosto” dominante das almas, pelo
contato com as almas, seus dons de analista e seu amor da análise,
São Francisco de Sales é genuinamente representativo da
tendência psicológica que domina o pensamento ocidental depois
da Renascença. É bem da sua época, e creio que a fim de melhor
compreendê-lo, é necessário considerá-lo nesse quadro.
***
Creio que foi esta tendência que deu origem ao molinismo. E, por
isto, tornou-se uma criação do seu século, um produto puramente
da Renascença. Convém, pois, a fim de melhor o compreender,
conhecer a data em que apareceu.
3. Tendência Prática
Encontramo-nos ainda aqui perante duas categorias de homens:
espíritos doutrinais e espíritos práticos.
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São Francisco de Sales é do seu tempo. Desenvolveu um trabalho
admirável sobre a ciência ascética; e os de seu tempo eram
capazes de apreciá-lo. Não conheceu o pior dos inimigos que
ameaçava a Igreja, e por isso não pôde cogitar de desviá-lo.
Seria injustiça acusá-lo por causa disso, pois ninguém, tão pouco, o
previu. Se, porém, por um golpe de vista profético, ele tivesse tido
um pressentimento de tudo isto, sem dúvida não teria sido
compreendido, teria ficado como um daqueles precursores sem
influência na sua época e que só são descobertos depois de dois ou
três séculos, quando todos reconhecem que foram bons profetas.
Hoje em dia não é mais preciso reagir contra isto… Se bem que
todos os autores ascéticos católicos sejam de opinião que a
penitência física não tem valor sem a penitência do coração, os
profetas do Antigo Testamento já o ensinavam, e, embora todos
restrinjam a penitência ao seu papel de educadora, de dominadora
do corpo para subordiná-lo a alma, todavia São Francisco de Sales
pode ser considerado, creio eu, como tendo particularmente
insistido sobre esta doutrina, e isto se explica pelo público a que se
dirigia.
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Resta ainda alguma coisa, a dizer?
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5. Piedade Salesiana
São Francisco de Sales desempenhou um papel considerável no
desenvolvimento da piedade católica.
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Mas quem dele se aproxima sente um ardor suave que chega sem
ruído. É um tanto semelhante a esses apartamentos modernos, cuja
iluminação indireta, com lâmpadas escondidas cá e lá atrás das
molduras do teto ou dos lambris das paredes, chega de todo lado,
sem percebermos donde vem a luz. Assim também com São
Francisco de Sales, o amor penetra por todo lado, está em tudo e
em toda parte; é um movimento do coração que derrama, sobre
toda a vida, luz e calor em partes iguais. Nenhuma luz é mais clara,
nem mais branda; nenhuma chama aquece mais, nenhuma queima
menos.
Sua virtude não chama atenção. Gomo ele, é discreta. Como ele,
homem de boa sociedade, reveste a mesma distinção. Mas ao
observador atento a virtude de São Francisco de Sales revela-se tão
cheia de firmeza, tão aprimorada e tão harmoniosa, que se pode
dizer que ele é um dos santos mais virtuosos.
***
“Eu sou bonachão por índole… Quero pouca coisa, e o que quero,
quero-o muito pouco, não tenho quase desejos, e se tornasse a
nascer, não os teria, de todo”
Talvez a natureza contribuísse de certa forma para isso; mas, sem
dúvida, o sobrenatural dominava, porque, para quem tem uma alma
ardente, é heroísmo amoldar-se sempre aos outros, sem nunca
procurar impor suas ideias.
“Não sei por que motivo o procuram tanto, pois não vejo nada de
mais nas palavras que lhes dirigis”
A que ele respondeu de bom humor:
“Será então pouca coisa deixá-las dizer tudo que querem? Talvez
seja por este motivo que me procuram tanto…”
Já vimos, com efeito, que ele não era dado a falar muito. Era
reservado, exteriormente, mas duma condescendência inesgotável.
E essa condescendência provinha de que não procurava o que
agradava a ele, e sim o que agradava aos outros, e nem sequer o
bem que ele desejava, mas sim o bem que Deus desejava. Chegou
mesmo a fazer, de modo habitual, distinção entre o bem que ele
desejava, e o que era da vontade de Deus, distinção que supõe
prodigioso domínio sobre si mesmo.
***
É claro que não eram todos santos. Pelo menos nisso, aquele
tempo assemelhava-se ao nosso…
“Boa tarde, minhas caras filhas. Venho dizer-vos o meu último adeus
e entreter-me um pouco convosco, porque a Corte e o mundo me
furtam o resto. Enfim, minhas queridas filhas, é preciso partir; venho
despedir-me das consolações que até agora encontrei junto de vós;
que nos resta dizer? Nada mais, não é?”
E com certa malícia:
“Que é, minhas caras filhas? Não ouço nada, pois as crianças fazem
tanta bulha na rua, que me impedem de ouvir vossas palavras” (28)
Isto lembra-me outra história, que relação não tem com esta, a não
ser que trata de crianças e de locutório, mas que cito assim mesmo,
porque me parece interessante. Um dia, entrando numa
comunidade, deixou a porta do locutório entreaberta:
“Bispo, disse-lhe a irmã rodeira, o vento que entra pela porta pode
fazer mal”
Levantou-se ele para fechá-la, mas voltou logo, dizendo:
“Há ali tantas crianças que olham tão satisfeitas para mim que não
tenho coragem de fechar-lhes a porta a cara”
Era ele verdadeiramente pai e elas suas “caras filhas”. As Irmãs
apreciavam o valor das suas visitas. A Madre de Chantal, quando se
ausentava, importunava-o com cartas.
“Todos os Padres antigos são de opinião que, onde falta o rigor das
mortificações corporais, deve haver maior perfeição interior”
Assim é que “todas as filhas da Visitação são chamadas a uma alta
perfeição e sua tarefa”, embora modesta, “é a mais alta e a mais
elevada que se possa imaginar” (40). Este espírito de mansidão
será, ao mesmo tempo, um espírito de fortaleza.
O seu pensamento está bem claro, — pois eu já estava a ouvir
gente asceta, — ou mundana, — encolher os ombros e falar de
insipidez.
“Ah! Não devemos pensar que quem entra para o convento, fica
logo perfeito” (45)
“É certo que muita gente se engana redondamente, julgando que as
pessoas que se fazem um dever da perfeição não deveriam mais
cair em faltas, e muito particularmente os religiosos e religiosas.
Parece-lhes que apenas entram para o convento, ficam logo
perfeitos, o que não é exato. Porque os conventos não são feitos
para abrigar gente perfeita, mas gente que tem a coragem de
aspirar à perfeição” (46)
A perfeição é algo de tão belo que parece estar muito perto quando
visto de longe; é como os picos de regiões alpestres: quem parte de
manhã, vê a montanha a poucos passos, julga estar prestes a
atingi-la, mas vai andando, andando sempre, horas a fio, sem que a
distância pareça diminuir.
“Mas entre nós, minhas caras filhas, sabemos que isto é impossível”
Não vale isto todos os sonetos do mundo? Esta tranquila reflexão
merece atenção e denota sobretudo muita indulgência e bondade,
— indulgência do amigo das almas, do sacerdote que leu em muitos
corações, que conhece a fraqueza humana, bondade aquela mesma
de Jesus que perdoa, que reergue as almas e não lhes pede mais
do que elas podem dar. Mas tudo isso sem perder o tom de
jovialidade, cheio de delicadeza, que lhe era peculiar.
Pode-se, numa casa séria, receber moças tão levianas? Por que
não? Suas disposições não são perfeitas, mas “como já o disse
muitas vezes, não entramos perfeitas para o convento, mas para
procurarmos a perfeição”. Essas disposições defeituosas podem
ser “melhoradas e ratificadas por Deus. Eu, quando se me deparam
tais almas, não me admiro de suas aversões e diminuição de fervor,
e nem por isso tenho sua vocação em conta de menos boa”, pois a
disposição exigida é a vontade reta. São almas fracas; devemos
ampará-las e não rejeitá-las.
Outras vocações são ainda mais imperfeitas.
“Mas quando lhe peço aquilo de que preciso, faz-me uma cara tão
ríspida que tenho impressão que não gostou!… Ora, minhas filhas,
isto não passa de puerilidades; deveis ser simples… Mas cometi
uma falta contra a Superiora, e fico com receio de que ela esteja
descontente comigo e não me receba bem; numa palavra, que não
me tenha mais a mesma estima e amizade”
Não é o “Pai Espiritual” que se chama amor próprio que se está
dando a conhecer? Ah! cometi tal falta! Que juízo formará de mim a
nossa Madre? Nada de bom se deve esperar de mim!… Nunca mais
lhe poderei ser agradável. Sei que Deus é bom, que perdoará a
minha infidelidade… Mas a nossa Madre!… Parece incrível, minha
Madre, que as nossas Irmãs estejam de tal modo apegadas aos
carinhos da Superiora!” (88) Isto não está certo e não passa de
vaidades femininas. Em Lyon, disseram-lhe, há Irmãs que se
distraem tanto a olhar para as virtudes das Superioras, que estão
sempre a louvá-las e aplaudi-las.
“Será possível, perguntou ele, que façam isto aqui? Sim, umas três
ou quatro responderam. Minha filha, não deveis consentir nisto.
Quando as inferiores percebem que a Superiora é um pouco fútil,
que gosta de ser elogiada, estimada, elas as louvam a todo
propósito, a fim de se tornarem queridas da Superiora, e por
nenhum outro motivo; mas se ficasse aborrecida quando elogiada e
lhes fechasse a cara, fá-lo-iam menos vezes. É, entretanto, quase
inevitável, “porque onde há muita mulher, há também muito louvor e
muita lisonja” (89)
Mas “nossa Madre é tão boa! Seria impossível não nos apegarmos
a ela!…” Então, quando for deposta — porque, na Visitação, as
Superioras são eleitas só por três anos, — como se habituar à ideia
de que ela não é mais ‘‘nossa Madre”? Haverá então rivalidade
entre as Madres. Falando da deposição duma Superiora, a qual foi
muito sentida no convento, “não podendo as Irmãs se habituarem a
tratá-la de Irmã, respondeu-lhes ele de modo gentil: Que a chamem
“avó”, se quiserem, e nada lhes direi; mas vejo que tais Irmãs não
honram, nem observam as Regras e a Constituição” (90).
Convém notar que essas observações um pouco fortes se dirigem
às Irmãs de Lyon, segunda casa da Ordem, fundada em 1615. O
convento de Annecy era, naquela época, governado pela inimitável
Sta. Joana de Chantal.
Será que desta vez o bom Pai foi muito severo, como acham as
Irmãs? — Nossa Madre era tão boa… Mas o que resulta dessas
puerilidades? À tal Superiora, que era tão querida, sucede outra, a
quem talvez falte a unção da primeira, que não possui o mesmo
dom das palavras, dos modos, dos olhares que comovem. Fazem-
se comparações que, nesses casos, não passam de críticas. Nossa
antiga Madre era mais afetuosa! Sabia conduzir-nos tão bem a
Deus! Ficam as saudades do antigo regime, e a obediência — ponto
capital num convento — se ressente. As Irmãs não deixam, por isso,
de obedecer, pois, graças a Deus, são muito fervorosas. Se o centro
do seu coração, como já vimos nas primeiras páginas, está bem
vazio, nos cantos, porém, estão cheio de poeira e a obediência
ficará prejudicada, embora continuem a obedecer. O Santo explica:
“Se Balaão foi tão bem instruído por uma jumentinha, devemos crer
com mais forte razão, que Deus, tendo-nos dado esta superiora,
fará com que ela nos ensine a cumprir a sua vontade, ainda que não
seja conforme aos nossos desejos” (91)
Demorei-me no assunto porque queria dar uma ideia de conjunto.
Há ainda uma referência às superioras que gostam de ficar no
locutório a conversar, “com as pessoas do mundo” (92), ou às
religiosas que têm o que eu chamaria contrição embaraçosa.
Prolongam tanto suas confissões que “prejudicam e incomodam
toda a comunidade”.
“Se, neste caso, a superiora vos disser que deveis ser a última a vos
confessar, isto não equivale a perguntar-vos o que dizeis ou não
dizeis”
Na confissão, também, algumas fazem “ao confessor belos
discursos, cheios de palavras empoladas” (93).
“Tal outra — me decido a terminar — pergunta se não pode queixar-
se ao superior, ou ao confessor, quando, por algum motivo, está
descontente com a superiora: Ó minha filha, queixar-se? Não disse
eu a Filotéia, que, em geral, quem se queixa, peca? Ora, tolera-se
que uma alma imperfeita se queixe à Superiora, quando alguma
irmã a molestou, mas se uma irmã se queixar a outra de que a
superiora a mortificou, direi apenas que, se alguma tiver semelhante
inclinação, precisa emendar-se sem vacilar. Mas queixar-se da
superiora a gente de fora; ah! isto nunca, de maneira alguma,
porque é muito grave” (94)
Não é isso encantador? Eis, pois, todo o mal que encontramos
nesta investigação que fizemos em torno do “grupo querido”. Vimos,
no entanto, que o Prelado não as lisonjeia, mas, pelo contrário,
trata-as com energia. Devem ser muito boas. E, diante disso, não
havemos nós de nos regozijar ao reconhecer, nos discretos
recônditos de suas pequenas falhas, toda a fraqueza humana, tal
qual a sentimos unida à nossa mísera natureza, e cujo estigma se
revela em cada passo que damos, cujo eco repercute em cada uma
das nossas palavras, cujo selo carimba todas as nossas ações?
Tudo aquilo que em nós é rude e grosseiro, nelas é delicado, mas
não deixa de existir. Eis até onde eu queria chegar. Não são
religiosas anônimas, fantasmagorias, a deslizar, silenciosas, ao
longo de claustros legendários… Lírios puros, erguem para os céus
sem nuvens sua alvura melancólica; uma Virgem, tendo nos braços
ao Menino Jesus, sorri, no fundo do claustro; do campanário da
capela ouve-se, de hora em hora, um ritmo ligeiro de notas
argentinas que pairam no ar crepuscular… uma atmosfera de
incenso faz sonhar com o paraíso… Tudo isto se encontra, talvez
materialmente, na Visitação da qual ora nos ocupamos, — menos o
brilho aparente do legendário. Pode chegar até a tomar
objetivamente este aspecto para algumas religiosas, em certas
tardes de devoção, ou para pessoas devotas que aí passam uma
hora. Mas na vida de todo dia as boas irmãs não passam de
mulheres; conheço-as todas: são da minha família, minhas irmãs no
Pai comum, do qual recebemos uma mesma natureza. E se, apesar
da grande distância que nos separa, eu me reconheço nelas, por
que hesitarei em fitar, também com elas, o ideal que nos prende o
olhar, e para o qual Nosso Senhor afinal parece ter-nos chamado,
também a nós? Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito.
“Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ficará só, isto é, não
produzirá fruto, mas, se apodrecer, multiplicar-se-á cem por um.
Vós, por conseguinte, que pretendeis à tomada de hábito, vós que
quereis fazer a santa Profissão, vede bem se estais firmemente
resolvidas a morrer a vós mesmas, e a só viverdes para Deus.
Refleti bem, pois ainda vos sobra tempo de pensar, antes de que os
véus se tornem pretos, porque, minhas caras filhas, sem querer
iludir-vos, declaro que se alguma deseja viver segundo a natureza,
fique no mundo; e as que estão resolvidas a viver segundo a graça,
abracem a vida religiosa, a qual outra coisa não é senão uma escola
de mortificação e de abnegação de si mesma”.
Agora entram em cena as postulantes que gostam de fazer ouvir a
sua bela voz ou que, no locutório, são atraídas pelo semblante
sereno das religiosas. Este discurso, aliás, a elas se dirige.
“Mas, dirão, não é isso que procuravam. Pensavam que, para ser
boa religiosa, bastava o desejo de rezar bem, de ter visões e
revelações, de ver anjos em forma de homem, de ser arrebatada em
êxtase, de gostar das boas leituras. E agora? No mundo, julgava-se
tão virtuosa, tão mortificada, tão humilde! Todos a admiravam! Não
era, em verdade, humilde ao falar tão suavemente com suas
companheiras a respeito da devoção, ao contar-lhes os sermões
que não puderam ouvir, a tratar com mansidão aos de casa,
sobretudo quando não a contrariavam? Sem dúvida, minhas caras
filhas, isto era bom no mundo, mas a vida religiosa manda que
façamos obras dignas da nossa vocação, isto é, que morramos a
nós mesmos em todas as coisas, tanto naquilo que é bom e do
nosso gosto, como naquilo que é nocivo e inútil. Será que os
religiosos do deserto, que chegaram a tão grande união com Deus,
o conseguiram seguindo suas inclinações? Não de certo.
Mortificaram-se naquilo que era santo, e embora tivessem muito
pendor para os cânticos sacros, para ler, rezar e outras coisas mais,
não o faziam apenas pelo prazer que sentiam. De modo algum. Pelo
contrário, privavam-se muitas vezes desses prazeres, embora bons
e lícitos, para se dedicarem às obras árduas e difíceis. É, porém,
verdade que as almas religiosas recebem mil doçuras e
consolações no meio das mortificações e práticas da santa religião,
porque é principalmente sobre elas que o Espírito Santo derrama
seus preciosos dons. Elas devem, portanto, na vida religiosa,
procurar só a Deus e mortificar seus caprichos, paixões e
inclinações, porque se buscarem outra coisa, nunca encontrarão a
consolação a que aspiram. Mas é preciso uma coragem tenaz para
não nos fatigarmos e nos impacientarmos com nós mesmos,
porque sempre haverá o que fazer e o que cortar”
“Tal irmã, segundo lhe parece, se sente muito dada à oração. Mas
recebe ordem de ir para a cozinha. Que má notícia para quem se diz
tão devota! Ah! é preciso morrer para que Deus viva em nós, porque
é impossível conseguirmos por outro meio, fora da mortificação, a
união da alma com Deus. São palavras duras: É preciso morrer;
mas são seguidas de grande doçura, porque, por essa morte, nós
nos unimos a Deus”
É mister fazer tudo o que prescrevem as Regras, por mais que nos
custe.
“Notai bem que digo fazer, porque não é de braços cruzados que se
adquire a perfeição” (102)
E há quem afirme que São Francisco de Sales nunca fala de
mortificação! É, sem dúvida, em primeiro lugar o arauto do amor de
Deus; mas “o puro amor de Deus nunca está tão bem como na
mortificação de nós mesmos; à medida que esta cresce, vamos nos
chegando ali onde se encontra o amor divino” (103).
É bom insistir sobre este ponto da sua doutrina — embora talvez ao
preço de repetição — porque é muito desconhecido.
É por isso que nada torna nossa alma tão dócil e flexível como a
obediência, ou, melhor ainda, o vivermos à mercê do nosso
próximo. Não se trata, aqui, evidentemente, de quem nos levasse
para o mal, e sim de saber distinguir entre as ações boas e as mil
fantasias que nos alimentam o amor-próprio. — “Devemos ter um
coração dócil, flexível e condescendente” (116).
Quem se dedica ao próximo, digo mais, quem dá a vida por ele, faz
menos do que quem fica ao seu dispor para agir para ele ou por ele.
Pois não basta ajudar nosso próximo com nossos bens temporais,
nem basta, diz São Bernardo, nos dedicarmos pessoalmente, até
sofrermos por amor dele. Mas é preciso ir mais longe, deixando que,
em virtude da santa obediência, disponha de nós em tudo, direta, ou
indiretamente.
“Não se exige de vós que não tenhais paixões, pois não está em
vosso poder, e Deus quer que estas se façam sentir até à morte,
para que seja maior o vosso merecimento; nem que sejam pouco
violentas, porque equivale a dizer que uma alma sem ardor não está
apta a servir a Deus”
O divino Amante de nossas almas deixa-nos muitas vezes como
que imersos nas nossas miséria a fim de nos mostrar que só Ele
pode livrar-nos delas (127). E isto explica por que, algumas vezes,
será mais vantajoso e melhor que as virtudes não se tornem em
hábito, contanto que as exerçamos todas as vezes que se nos
apresentar ocasião, porque a repugnância que sentimos na prática
de alguma virtude deve servir para nos humilhar, e a humildade vale
sempre mais que tudo isso (128).
“É preciso, neste caso, não dizer que fala a boca e não o coração;
porque quando o coração não quer, a boca não diz uma só palavra”
(138)
Friso bem que esta resolução de pleno abandono a Deus não
precisa tornar-se sensível, mas deve estar conscientemente em nós,
sem nos deixarmos distrair com o que sentimos ou não, pois a maior
parte dos nossos sentimentos e satisfações são simples
passatempos do amor próprio. Não devemos pensar tão pouco que,
em se tratando de abandono e de indiferença, nunca nos hão de vir
desejos contrários à vontade de Deus, nem que certos
acontecimentos de seu divino agrado não nos repugnem à natureza,
o que pode muito bem acontecer. São virtudes que habitam na parte
superior da alma; a inferior, ordinariamente, fica-lhes alheia. Nada
devemos empreender sem consultar esta vontade divina,
abraçando-a, seja qual for, e unindo-nos a ela.
“É preciso morrer, minhas filhas, mas para que Deus viva em nós”
Toda a parte inferior da alma deve morrer, para que a superior possa
voar para o Bem-Amado.
“Não digo que, se essa aversão for um pouco forte, nos seja sempre
possível tratá-la com a mesma cortesia que dispensamos a quem
temos amizade. Se está em nosso poder falar com ela e tratá-la
bem, não nos é, todavia, impossível fazê-lo com o semblante afável
e gracioso de quem nenhuma aversão sente. Se, falando com essa
pessoa, mostrarmos menos bom humor, ou desviarmos um pouco o
olhar, se for só isso, não haverá grande mal. Pode também
acontecer que, se eu for repreendê-la, ou admoestá-la sobre
qualquer falta, apesar de ter tido intenção firme de falar com
caridade, todavia ao dirigir-me a ela me mostrasse um pouco
apaixonada, é coisa quase inevitável a todos nós” (156).
Acontece também às vezes quando uma Irmã nos pede um favor,
que, “inadvertidamente, lhe demonstramos o nosso desagrado”.
Também a isto ainda devemos suportar com paciência, “porque não
está em nosso poder impedir que transpareça na cor, nos olhos e
nos gestos o combate que se trava em nosso interior, embora a
razão procure esforçadamente dominar-se. São mensageiros que
vêm sem serem chamados, e que não fazem caso se lhes dermos
ordens de se retirarem” (157).
A irascibilidade é, por natureza, uma paixão efervescente, e “é
impossível impedir que o sentimento de cólera não nos mova, e que
o sangue não nos suba ao rosto” (158). Não nos iludamos a
respeito.
“Se me vierem contar que tal pessoa falou mal de mim, ou de
qualquer forma me ofendeu, irrito-me logo, e nem uma só veia deixa
de bater com violência. Mas se, em compensação, eu me voltar
para Deus e fizer um ato de caridade a favor de quem me ofendeu,
não terei pecado. Digo mais, se me passar pela cabeça toda
espécie de pensamentos contra aquela pessoa, e isso durante o dia
todo, ou até durante vários dias, se eu, de vez em quando, fizesse
atos contrários, não teria pecado” (159)
Porque “a cólera e a tristeza são paixões”, são simples tendências
naturais, “e seus movimentos não constituem pecado, porquanto
não está em nosso poder afastá-los” (160). Só uma coisa nos
pertence, é o consentimento.
“Ponhamos que a cólera me surpreenda. Dir-lhe-ei: Vai-te, retira-te,
arrebenta, se quiseres; não te darei atenção, nem uma palavra
sequer direi em teu favor” (161)
“Pois bem, se me transtornar o coração, se me esquentar a cabeça
de todo lado, se me fizer ferver o sangue como água no fogo, não
deixarei, tanto quanto me for possível, de ser afável e mansa, e
destruirei todas as razões que a natureza me apresentar para o seu
desabafo, sem ouvir a uma só” (162)
“Já que tais movimentos não são pecados, é preciso, sempre
observadas as regras da prudência, não deixar que nos perturbem
tanto. Se eu souber que, encontrando certa pessoa, ela me dirá uma
palavra que me confunda ou me comova, nem devo evitá-la por
isso. Essa perturbação afeta apenas a parte inferior da alma, não
devo, por conseguinte, de modo algum, me assustar, e contanto que
não lhe dê atenção, quero dizer, quando não consentir nessas
sugestões” (163)
“Assim também, minhas filhas, se nos for confiado algum cargo, não
exclamemos logo: Meu Deus! sou tão brusca, que não me faltarão
ocasiões de me afobar; sou tão distraída que se me derem o cargo
de porteira, o ficarei ainda mais, porque sabem-se ali tantas
novidades… Aceitai-o com simplicidade. Deus vos amparará, e vos
tornareis mais perfeita ali do que se não tivésseis nenhum cargo
com que vos ocupar. Não basta, disse Cassiano, para sermos
pacientes e mansos com nós mesmos, que fiquemos privados da
conversação dos homens, porque já me aconteceu, estando eu só
na minha cela, me ter encolerizado tanto, porque o meu fuzil não
dava fogo, que o atirei longe com raiva” (164)
“A mortificação das paixões e inclinações requer tempo” (165)
“Devemos ser indulgentes com os principiantes. Não se pode dizer
que haja falta de perseverança, quando nos acontece interromper
algumas práticas de virtudes, contanto que não as deixemos por
completo” (166)
É mais que natural, e seria erro desanimarmos por causa disso.
***
“Se Deus assim nos amou, devemos nós também amar- nos uns
aos outros, pois a doutrina que nos foi dada desde o princípio é
que nos amemos uns aos outros” (Mc 15)
O amor de Deus e o amor do próximo se identificam. O primeiro
mandamento manda que amemos a Deus sobre todas as coisas
e “o segundo lhe é semelhante: Amarás ao teu próximo como a ti
mesmo” (Jo 13).
“Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes
uns aos outros” (Jo 17)
E quando Jesus, no momento de caminhar para a morte, para um
instante e roga uma última vez ao seu Pai, que pede ele ainda?
“É preciso que eu vos diga, minhas caras filhas, que a santa Igreja
não é tão rigorosa como se pensa. Se uma Irmã estiver doente, seja
mesmo com febre terçã, e se lhe vier um acesso, em dia de
preceito, na hora da Missa, podeis e deveis perder a Missa para,
ficar junto da enferma, embora se ficasse só nada lhe fosse
acontecer; pois a caridade e a suavidade da nossa santa madre
Igreja sobrenada a tudo” (251).
Sirvam-nos estas últimas palavras de remate. Revelam-nos todo
Francisco de Sales, toda a vida cristã católica, todo Jesus, “doce e
humilde de coração”. O pai abre o coração às suas caras filhas; fala-
lhes da vida santa, da vida vivida, que ele tão bem conhece, na qual
o amor cria na alma nova espontaneidade, toda orientada por Deus.
O mundo não a compreende, porque só conhece a espontaneidade
proveniente dos sentidos, e, se admite a existência de Deus,
encara-a apenas no terreno da pura teoria, e interdiz a Deus todo
contato com o homem. Isto explica os preconceitos que pesam
sobre os santos. Não vivem segundo o espírito do mundo; e por isso
não vivem aos olhos do mundo. Mas estas páginas, assim espero,
revelando a vida que levam as almas verdadeiramente cristãs,
retratam uma vida inteiramente diversa, vida que é muito mais
intensa, porque é divina.
“Como visse as tochas acesas para o reconduzir, admirou-se e
disse à sua gente: Que quereis de mim? Passaria de bom grado
aqui a noite toda. Mas precisamos separar-nos; a obediência me
chama. Adeus, minhas caras filhas, eu vos levo a todas no coração
e vos deixo este como prova de minha amizade”.
“Quando a nossa Madre lhe pediu, muito humildemente, que nos
dissesse umas palavras que se nos gravassem profundamente no
espírito, respondeu: Que vos hei de dizer, minhas caras filhas a não
ser duas palavras preciosas, que tantas vezes vos recomendei:
Nada desejar, nada recusar? Nestas duas palavras, eu vos digo
tudo” (252).
Foi isto como que o testamento de São Francisco de Sales, e “o
último adeus do nosso bem-aventurado Pai às nossas caras Irmãs
de Lyon, em 1622, no dia de São Estevão, à tarde, na antevéspera
da sua bendita morte”. No dia seguinte sofreu um ataque de cabeça,
e morreu à 28 de dezembro, festa dos Santos Inocentes, no
momento em que, em torno do seu leito, os assistentes repetiam
pela terceira vez: Omnes sancti Innocentes, orate pro eo.
Mâlines, 25 de julho de 1917.
Referências:
(36) Ibid.
(39) Ibid.
(40) Ibid.
(47) Ibid.
(48) Ibid.
(54) Da firmeza.
(55) Da obediência.
(56) Da firmeza.
(64) Da modéstia.
(66) Da modéstia.
(68) Da simplicidade.
(69) Da modéstia.
(70) Da obediência.
(82) Apêndice.
(84) Da obediência.
(87) Da modéstia.
(91) Da obediência.
(92) Coleção das perguntas feitas em Lyon.
(103) Da simplicidade.
(104) Apêndice.
(106) Do desapego.
(117) Da cordialidade.
(118) Da obediência.
(119) Ibid.
(129) Da obediência.
(133) Da obediência.
(135) Da simplicidade.
(137) Da modéstia.
(138) Da confiança.
(139) Da confiança.
(143) Do desapego.
(146) Da modéstia.
(148) Da obediência.
(153) Da simplicidade.
(154) Apêndice.
(156) Apêndice.
(157) Da obediência.
(158) Da modéstia.
(159) Do desapego.
(163) Da simplicidade.
(164) Da firmeza.
(166) Da obediência.
(169) Da modéstia.
(176) Da cordialidade.
(177) Ibid.
(178) Ibid.
(180) Da simplicidade.
(185) Da esperança.
(188) Da simplicidade.
(192) Da modéstia.
(193) Da obediência.
(194) Da esperança.
(195) Da obediência.
(196) Da simplicidade.
(197) Da firmeza.
(201) Da obediência.
(207) Da confiança.
(210) Da confiança.
(211) Coleção das perguntas feitas em Lyon.
(212) Da modéstia.
(213) Da obediência.
(216) Da simplicidade.
(217) Do desapego.
(218) Da generosidade.
(219) Da modéstia.
(222) Do desapego.
(225) Da esperança.
(227) Da esperança.
(232) Da simplicidade.
(235) Da cordialidade.
(240) Da cordialidade.
(241) Ibid.
(245) Da cordialidade.
(249) Da simplicidade.