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encontros serenos de
APRESENTAÇÃO
I – A SÁTIRA DE GREGÓRIO DE MATOS - O BOCA DO INFERNO
INTRODUÇÃO
1. O BARROCO
1. 1. Barroco: arte da contra-reforma
1. 2. Características principais
1. 3. O brasil na época barroca
2. GREGÓRIO DE MATOS E GUERRA
2.2. O estilo “boca do inferno”
3. BOCA DO INFERNO
3.1. O mundo às avessas
3.2. Caricatura do poder
3.3. A linguagem libertina
4. A MULHER E O AMOR
CONCLUSÃO
INTRODUÇÃO
1. O ROMANTISMO
1. 1. Contexto histórico
1. 2. A poesia ultrarromântica de álvares de azevedo
1. 2. 1. Liberdade criadora e subjetivismo
1. 2. 2. Sonho x realidade
1. 2. 3. A idealização da mulher
1. 2. 4. O Platonismo amoroso
1. 2. 5. A imagem da mulher adormecida
2. O NOIVO DA MORTE
2. 1. Lembrança de morrer
2. 2. O pálido poeta
3. 1. A face Ariel
3. 2. A face Caliban
3. 2. 1. O diabólico licor
3. 2. 2. Brasileirismo malandro
4. IDEIAS ÍNTIMAS
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
Edir Meirelles
Vila de Noel,
RJ, 24 de junho de 2020
PREFÁCIO
2
Doutor em Ciências da Religião pela PUC GOIÁS (2014-2017 /
CAPES) com a tese: "Chronos kai Anagké: Vestígios do Sagrado em João
Guimarães Rosa" (ganhadora de menção honrosa no prêmio CAPES de
Teses 2018); Mestre em Letras - Teoria da Literatura e Literatura
Comparada na UERJ (2009-2011) com a Dissertação: Nem Deus, nem
demo. O homem humano no palco polifônico do Grande Sertão: Veredas;
Desde o primeiro contato convite a mim feito, sabia
do enorme desafio de escrever umas linhas prefaciadoras para
este grandioso livro, honrado estou, farei o meu 'mió' diante
do seu melhor adiante apresentado e aqui comprovado.
Há-braços... a todos e todas.
Os muitos braços da professora e escritora Maria de
Fátima Gonçalves Lima evidenciam-se no fôlego, qualidade e
relevância desta obra. Alunos, professores, leitores e
escritores agradecem porque a palavra não permanece
acostumada, ela se renova a partir de cada esforço conjunto
de reinterpretações e ressignificações. Quando pensamos em
poesia, a palavra desacostumada, costumes e hábitos fixos
serão reposicionados.
Fernando Pessoa, no poema Mar Português,
perguntou-se diante do esforço lusitano ultramarino do século
XV: “Valeu a pena? Tudo vale a pena se alma não é
pequena”. Alma, da Fátima, sabemos, é imensa para os seus
arredores na contribuição para o ensino de literatura no
século XXI. Agradecemos.
A autora criou filhos e filhas, estão por aí, em amor
escreve e ensina com o toque da fé que exala uma
humanidade acolhedora e alteritária na Academia, assim
como (re)cria mundos e amizades numa construção solidária
propícia ao ato de educar com excelência para uma sociedade
brasileira tão fragilizada.
A obra é uma reunião de ensaios críticos direcionados, inicial
e preteritamente, para vestibulandos, também já publicados
O poema
5
LIMA, Maria de Fátima Gonçalves. O discurso do rio em João
Cabral. Salamanca: Lusoedições, 2016.
I- A SÁTIRA DE GREGÓRIO DE MATOS O
BOCA DO INFERNO
"Eu sou aquele,
que os passados anos
cantei na minha lira
maldizente torpezas do Brasil,
vícios, e enganos".
Gregário de Matos
1. O BARROCO
1. 2. Características principais
7
MATOS, Gregório de. Gregório de Matos: Obra poética.
Crônica do viver baiano Seiscentista. Obra completa Códice
James Amado Vo. 1– 4ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1999.
MATOS, Gregório de. Gregório de Matos: Obra poética. Crônica
do viver baiano Seiscentista. Obra completa Códice James Amado
Vo. 2– 4ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1999.
____. Sátiras. Organização de Angela Maria Dias. Rio de Janeiro.
Agir, 1990.
poesia satírica ser mais conhecida do que a lírica. Foi o maior
satírico da Literatura brasileira, em versos.
O "poeta maldito" possui uma poética inventiva e
original e, por isso, é considerado introdutor da linguagem
coloquial, popular, mestiça, das ruas, na poesia brasileira.
O poema "Aos principais da Bahia chamados os
Caramurus" (GM Sátira p. 99) é dedicado aos Caramurus,
que eram os mestiços do Recôncavo. Por isso, Gregório de
Matos o escreve com uma linguagem também mestiça:
português, tupi, africano. Eis a poesia tipicamente brasileira
ou tropicalista do poeta baiano:
Há cousa como ver um paiaiá
Mui prezado de ser Caramuru,
Descendente de sangue de Tatu,
Cujo torpe idioma é cobé pá.
A masculina é um Aricobé
Cuja filha Cobé um branco Paí
Dormiu no promontório de Passe
Se de dous f f composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia
a grande dano está posta
eu quero fazer aposta,
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter
se o furtar e o foder bem
não são os f f que tem
esta cidade a meu ver.
(GM Sátira p. 98/99)
3. BOCA DO INFERNO
A nossa Sé da Bahia,
com seu um mapa de festas,
é um presépio de bestas,
se não for estrebaria:
várias bestas cada dia
vemos, que o sino congrega,
Caveira mula galega,
o Deão burrinha parda,
Pereira besta de albarda,
tudo para a Sé se agrega.
(GM Sátira p. 54)
11
FREITAS, Maria Eurides Pitombeíra de. O grotesco na criação
de Machado de Assis e Grego rio de Matos. Rio de Janeiro.
Presença, 1981, p. 86.
engodo que praticava simonia e não curava alma nem corpo.
Era um beato maligno, um paradoxo vestido de Cura.
O naturalismo carnavalizante de Gregório de Matos
tem sua fonte nas imagens da cultura cômica popular do
"baixo material corporal. Portanto, o uso do grotesco em sua
sátira visa pôr em ridículo as suas vítimas e trazer à praça o
riso pelo destronamento de tudo o que é fixo, imutável,
oficial" (FREITAS, M. E. P. (1981) p. 91)12.
12
FREITAS, Maria Eurides Pitombeíra de. O grotesco na criação
de Machado de Assis e Grego rio de Matos. Rio de Janeiro.
Presença, 1981, 91.
Convivendo com os insanos, o poeta torna-se
impotente e conclui que é impossível emendar o mundo: Que
é melhor neste mundo o mar de enganos / Ser louco cos
demais, que ser sisudo (GM Sátira p. 29).
Diante do exposto, para não ficar à margem dessa
sociedade ensandecida, o "poeta maldito" liberou seus
demônios e tornou-se um libertino. Sua linguagem poética
ecoou louca, obscena, livre de preconceitos, festiva, lúdica,
satírica, para mostrar o mundo às avessas, como é, realmente,
sem máscaras.
O irreverente artista encontrou, na ironia e na sátira, a
exata fórmula de demonstrar os desacertos do mundo. A esse
respeito, Maria Eurides P. de Freitas pronunciou-se:
13
FREITAS, Maria Eurides Pitombeíra de. O grotesco na criação
de Machado de Assis e Grego rio de Matos. Rio de Janeiro.
Presença, 1981, p.73.
Acrescento ainda que Gregório de Matos vê o mundo
como um grande palco, onde é representada uma comédia
que, definitivamente, não é divina, mas diabólica. Nesse
espetáculo, os atores representam a própria história. Entre os
astros mais ressaltados estão os governos corruptos, os
administradores ladrões, o clero hipócrita, o frade canastrão,
os fidalgos mulatos, os letrados burros e pícaros.
Assim, o poeta transmite uma visão carnavalesca da
sociedade, onde o não-oficial é liberado e as relações
hierárquicas, regras e tabus são dissolvidos para dar lugar a
um mundo às avessas, livre, despudorado, zombeteiro,
festivo, galhofeiro, risível, palhaço, brincalhão, colorido, real,
sem hipocrisia e representa a alma da coletividade, a vida do
povo. É a representação da vida de uma forma que foge à
lógica aparente, mas é a verdadeira.
O poeta diz verdades que são proibidas, mas que no
texto satírico são liberadas e popularizadas no riso festivo e
universal. O que deveria ser sério e sagrado aparece como
galhofa e heresia. As cortinas do palco são abertas para dar
lugar aos paradoxos: padre maligno, administrador desonesto,
letrado burro e governador desordeiro. Tais absurdos são
elementos normais e revestidos de banalidades. O ludismo
gregoriano atenua o que poderia ser dramático, e acrescenta
colorido e alegria aos contrastes que marcam a vida humana.
Verifique o jogo de oposição apresentado nos versos:
Vá de retrato
por consoantes
que eu sou Timantes
de um nariz de tucano
pés de pato
pelo cabelo
começo a obra.
(GM Sátira p. 73)
4. A MULHER E O AMOR
A mulher, seja Ângela, Angélica, Anastácia, Maria,
Maricota, Jacutinga; branca, negra, rica ou pobre, todas elas
encantaram o poeta e sua poesia.
O poeta teve entre suas amantes várias negras e
mulatas, suas principais musas. São Angelitas, Beticas,
Catona, Helenas, Inácias, Joanas: quase todo o ABC de
outros nomes está registrado na lira gregoriana; são heroínas
de romances e "símbolos de exuberância da terra e da língua
num modo poético brejeiro, verso de injúria e louvores à
mulher real, palpável" (FREITAS, M. E. P. (1981) p. 98) 16.
Nos versos dos romances, o poeta registra sua preferência:
16
FREITAS, Maria Eurides Pitombeíra de. O grotesco na criação
de Machado de Assis e Grego rio de Matos. Rio de Janeiro.
Presença, 1981, p.98.
exemplo do platonismo do amor impossível de ser atingido
em razão dos perigos inerentes a esse sentimento:
O amor é finalmente
17
CAMÕES, Luís Vaz de. Lírica, épica, teatro, cartas.
Organização de João Alves e Douglas, Tufano São Puio, Moderna.
1980, p. 12).
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias.
Uma confusão de bocas
uma batalha de veias,
um rebuliço de ancas
quem diz outra coisa, é besta.
(GM Sátira p. 137)
Na sátira, o amor é dessacralizado e aparece como
"um pecado, safado, debaixo do cobertor", mas ao falar das
origens do amor, relacionando-o com Cupido e com Vênus,
ainda no poema "Definição de amor", o poeta afirma que
"Outros, que fora ferreiro / seu Pai, onde Vênus bela / serviu
de bigorna, em que / malhava com grã destreza". (GM Sátira
p.129)
Neste poema, Gregório de Matos apresenta uma
definição do amor usando uma espécie de poesia denominada
"romance", cuja narrativa em versos traz uma retrospectiva
da história do amor, suas proezas, dores e prazeres. O tom da
paródia prevalece em todo o poema, já que as marcas do
lirismo camoniano permanecem, apesar do tom pessoal e, às
vezes, brincalhão, do "poeta maldito".
CONCLUSÃO
18
Os poemas das citações desse estudo foram retirados dos livros: GONZAGA,
Tomás Antônio. Marília de Dirceu; (TAG Marília de Dirceu) biografia e
introdução de M. Cavalcanti Proença, 25ª, Rio de Janeiro: Ediouro. 1996 e
referidos como (T.A.G. 1996) ou COSTA, Manuel da, GONZAGA, Tomás
Antonio e PEIXOTO, Alvarenga / A poesia dos inconfidentes: Poesia Completa.
Organização Domício Proença Filho, artigos, ensaios e notas de Melânia Silva de
Aguiar (et.al), Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1996. nas referencias indicados por
(OCT.A.G).
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
(Fernando Pessoa)
Tu, Marília, agora vendo
Do Amor o lindo retrato,
Contigo estará dizendo
Que é este o retrato teu.
Sim, Marília, a cópia é tua,
Que Cupido é deus suposto?
Se há Cupido, é só teu rosto,
Que ele foi quem me venceu.
Tomás Antônio Gonzaga)
1. NEOCLASSICISMO/ARCADISMO
1. 1. O panorama da época
22
HELENA, Lúcia. Rio de Janeiro: Agir. 1997, 25.
Gonzaga “varia conforme aceitemos a predominância de um
ou de outro”(CÂNDIDO, A. (1975) p. 114)23
A obra-prima é a expressão do artista como ser
humano e como artífice. Marília de Dirceu é uma obra de
arte que não foge a esta regra. As LIRAS de Dirceu são,
também, as LIRAS de Tomás; não podemos eliminar um do
outro, uma vez que Dirceu é o pseudônimo do poeta Tomás
Antônio Gonzaga.
2. 1. 1. Do rococó
O Rococó foi um período estético de transição entre o
Barroco decadente e o Neoclassicismo, caracterizado pela
ornamentação leve e grácil, pela frivolidade, afetação, como
manifestação hipertrofiada do gosto aristocrático. Como é
difícil discernir os limites desse movimento em relação às
outras tendências estéticas do século XVIII, torna-se
impossível distingui-lo do Barroco ou do Arcadismo, o que
faz inoperante considerá-lo isoladamente. Na obra do autor
de Marília de Dirceu está explicitada a leveza, a frivolidade
representativa do espírito aristocrático típicas das cenas de J.
H. Fragonard, Antoine Watteau e Boncher, 25mestres do
24
DUTRA, Waltensir. Tomás Antônio Gonzaga. In: COUTINHO,
Afrânio. Edit. A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Sul
Americana, 1956, pp.470-80, V.I, T. I. P. 476.
25
https://arteref.com/movimentos/rococo/
“François Boucher tornou-se um mestre da pintura rococó um pouco depois de
Watteau. Seu trabalho exemplifica muitas das mesmas características, embora
com um tom um pouco mais travesso e sugestivo. Boucher teve uma carreira
ilustre e tornou-se pintor da corte do rei Luís XV em 1765.
Na área da escultura, o trabalho de Etienne-Maurice Falconet é amplamente
considerado o melhor representante do estilo rococó. Geralmente, a escultura
rococó utiliza porcelana muito delicada em vez de mármore ou outro meio pesado.
Falconet era o diretor de uma famosa fábrica de porcelana de Sevres. Os temas
predominantes na escultura rococó ecoavam os dos outros meios, com a exibição
Rococó, nas quais o mundo pastoril é dotado de elegância
social e aristocrática.
Nas liras de Tomás Antônio Gonzaga, são muitas as
cenas que descrevem idílios campestres valorizando a
natureza delicada e aprazível - o locus amoenus. Tal clichê
neoclássico consiste na idealização de lugares amenos, onde
o pastor Dirceu aclimata seus suaves idílios campestres e para
ele convida sua pastora Marília:
Num sítio ameno
Cheio de rosas,
De brancos lírios,
Murtas viçosas,
2. 1. 2. Do Arcadismo
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Queviva de guardar alheiogado, B
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 A
De tosco trato,de expressões
grosseiro,
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Dos frios gelos e dos sóis B
queimado.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Tenho próprio casal e nele C
assisto;
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Dá-me vi nho, le gume,fruta , D
azeite;
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Das brancas o velhinhas ti ro olei D
te
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
E as mais fi nas lãs, de que me C
vis to.
1 2 3 4 5 6
Graças, Ma rí lia bela. E
Refrão
1 2 3 4 5 6
Graças à mi nha estrela! E
(T.A.G. p. 13)
27
CHEVALIEUR, Jean & CHEERBRANT, Alain.
Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro. José Olímpio. 1990.
Graças, Marília bela!
Graças à minha estrela!
29
BOILEAUX – DESPREAUX, Nicolas. A arte poética. Trad. Cecília
Berretini. São Paulo: Perspectiva. 1979, p. 15
30
BOILEAUX – DESPREAUX, Nicolas. A arte poética. Trad. Cecília
Berretini. São Paulo: Perspectiva. 1979, p. 16.
Os árcades encaram a natureza como perfeita e
harmoniosa. Observe que o poeta expõe essa ideia
adjetivando a natureza de alegre, regular e sábia. O texto
evidencia a intenção do amante em focalizar a natureza como
mãe e detentora de muita sabedoria. O poema mostra, ainda,
a grandeza do instinto maternal, exemplificado nos animais -
vaca, cadela, galinha. Num clima bucólico e didático, Dirceu
orienta sua amada Marília sobre a responsabilidade de ser
mãe e de ter como mestra a sábia natureza.
O texto sugere um certo machismo do “eu” poemático
ao referir-se à amada como esposa e como amante, além de
suscitar a obrigatoriedade do filho ter suas feições: É esta /
de teu querido pai a mesma barba, / a mesma boca e testa.
Este desejo do “eu” lírico, de ter um filho à sua imagem e
semelhança, reflete mais do que machismo, reflete o
narcisismo da natureza humana e o desejo de perpetuação e
continuidade da existência através dos filhos.
Os versos acima, de Tomás Antônio Gonzaga, são
exemplos da “áurea mediocritas” (mediocridade dourada, ou
vida medíocre materialmente, mas rica em realizações
espirituais) e traduzem a idealização de uma vida pobre e
feliz no campo, em oposição à vida luxuosa e triste da cidade.
O fragmento citado é um exemplo do horacismo
gonzaguiano.
As temáticas do Epicurismo (valorização dos prazeres
da vida) e do “carpe diem” (gozar o momento) são
amplamente utilizadas na famosa LIRA XIV - da primeira
parte:
31
ÁVILA, Afonso. A natureza e o motivo edênico na poesia colonial. In:
O Poeta e a Consciência Crítica. Petrópolis: Vozes. 1969, p. 35.
Enternece-se Amor de estrago tanto;
Reclina-me no peito, e com mão terna
Me limpa os olhos do salgado pranto.
(T.A.G. p. 79)
2. 3. Formas
Na primeira parte de sua obra-prima, Gonzaga
recriou, à maneira das odes anacreônticas, textos de versos
breves, adotando para cada poema um determinado tipo de
estrofe, mas conservando sempre uma combinação entre
esquemas de rimas e versos brancos. As odes gonzaguianas
trazem a marca rococó do galanteio, com seus cenários
campestres, seus sítios formosos, os prados / Aonde
brincava, / Enquanto pastava / o gordo rebanho. São
composições que se traduzem por um refinamento letrado
para conversas e galanteios de salão, de acordo com os
critérios da época.
Estes versos são curtos (de quatro ou cinco sílabas), o
ritmo binário da acentuação produz quase sempre uma
entonação monótona, com movimentos equilibrados e sutis
ao modo de um minueto.
A primeira parte da lira possui, também, poemas de
estrutura rítmica e métrica mais variada, alterando com
frequência versos decassílabos e hexassílabos, poemas que
são considerados os melhores dessa fase, pois, além de maior
riqueza na elaboração dos versos, prevalece um tom mais
elevado de linguagem - uma espécie de intimidade solene
domina a evolução de Dirceu.
De acordo com o filólogo Rodrigues Lapa, nestes
versos de Gonzaga, “a individualidade adquire relevo. O
autorretrato de Dirceu mistura-se ao elogio do ideal burguês:
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,.... / Tenho próprio
casal, e nele assisto, e a figura de Marília permanece
absorvida na convenção arcádica”.(LAPA, M. R. (1976) p.
20) 33. Outras vezes, Gonzaga faz observações de caráter e
33
LAPA, Manuel Rodrigues. Prefácio, Notas. In: Gonzaga, Tomás
Antônio, Marília de Dirceu e mais poesias. Lisboa: Sá da Costa. 1976. p.
20.
linguagem realistas, o que exprime uma inovação nos padrões
árcades vigentes. Observe como o poeta examina a velhice:
Não vês aquele velho respeitável
Que à muleta encostado
Apenas mal se move, e mal se arrasta?
Oh! quanto estrago não lhe fez o tempo!
O tempo arrebatado,
Que o mesmo bronze gasta.
Enrugaram-se as faces, e perderam
Seus olhos a viveza;
Voltou-se o seu cabelo em branca neve:
Já lhe treme a cabeça, a mão, o queixo,
Não tem uma beleza
Das belezas, que teve.
(T.A.G. p. 39-40)
2. 4. 1. Bucolismo convencional
(T.A.G. p. 35/36)
Eu sei, Marília,
Que outra Pastora
A toda hora,
Em toda parte
Cega namora
Ao teu Pastor.
(T.A.G. p. 37)
Cupido tirando
Dos ombros a aljava
Num campo de flores
Contente brincava.
E o corpo tenrinho
Depois, enfadado,
Incauto reclina
Na relva do prado.
(T.A.G. p. 50)
Os fragmentos acima são exemplos dos poemas de
amor que trazem a marca do bucolismo convencional de
Tomás Antônio Gonzaga. Neles, o vate arcádico canta os
amores do pastor Dirceu por sua pastora Marília e, sob a
bênção de Cupido ou Vênus, goza os prazeres e os encantos
do amor entre riachos cristalinos, campinas verdejantes,
alamedas floridas e campos agrestes, cenários que sempre
emolduram os amores pastoris, às vezes, testemunhas
impassíveis dos lamentos e desenganos do poeta. É o que
pode ser visto em poemas da primeira parte da obra, como:
LIRA II (Idem p. 14); LIRA III (Idem p. 16); LIRA IV (Idem
p. 17), LIRA V (Idem p. 19); LIRA VII (Idem p. 22); LIRA
VIII (Idem p. 23); LIRA X (Idem p. 25); LIRA XVI (Idem p.
28); LIRA XIII (Idem p. 30); LIRA XVI (Idem p. 35); LIRA
XVII (Idemp. 37); LIRA XIX (Idem p. 40); LIRA XXIII
(Idem p. 44); LIRA XXV (Idem p. 46); LIRA XXVI (Idem p.
49); LIRA XXX (Idem p. 52); LIRA XXXI (Idem p. 53);
LIRA XXXIII (Idem p. 95).
34
LAPA, Manuel Rodrigues. Prefácio, Notas. In: Gonzaga, Tomás
Antônio, Marília de Dirceu e mais poesias. Lisboa: Sá da Costa. 1976. p.
20.
Que é este o retrato teu.
Sim, Marília, a cópia é tua,
Que Cupido é deus suposto:
Se há Cupido, é só teu rosto,
Que ele foi quem me venceu
(T.A.G. p. 14-16)
35
PESSOA, Fernando. Obra Completa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar
S/A. 1972, p. 164.
Marília, na verdade, não pode ser simplesmente sua
noiva ou as liras de Gonzaga não podem ser vistas como uma
simples autobiografia de seus amores e dramas. Marília é
muitas vezes um pretexto para seus textos poéticos.
Da mesma forma é explicada a construção em torno
da personalidade de Dirceu que, ora é apresentado como um
simples pastor: Marília escuta / um triste pastor (Idem p. 17),
ou um honrado pastor: Eu, Marília, não fui nenhum
Vaqueiro, / Fui honrado pastor da tua aldeia; ora como um
homem abastado e símbolo do ideal burguês: Eu, Marília,
não sou algum vaqueiro, (p. 13); e ora como um magistrado:
Verás em cima da espaçosa mesa / Altos volumes de
enredados feitos; / Ver-me-ás folhear os grandes livros, / E
decidir os pleitos. (Idem p. 107)
Todas essas personificações estão velando a face do
poeta Tomás Antônio Gonzaga que, no afã de poetar, faz um
jogo hábil entre a ficção e a realidade, entre as falsas e
verdadeiras confidências, demonstrando, neste ludismo
poético, a realização de uma poesia altamente
intelectualizada.
Wilson Martins disserta sobre os riscos de uma
interpretação unilateralmente biográfica, que unifique o poeta
e o cidadão Tomás Antônio Gonzaga, explicando um através
do outro. Observa o crítico ainda, que há uma identificação
em torno do poeta, o que acaba por impor um sentido único à
sua obra, atribuindo-lhe “uma unidade, um sentido e até um
desenvolvimento orgânico de que, com certeza, não teve na
realidade” (MARTINS. W. (1976) p. 551) 36. E, com essa
mesma visão, Lúcia Helena depõe que:
36
MARTINS, Wilson. Eu, Marília... In: História da Inteligência
Brasileira. São Paulo. Cultrix/Edusp. 1976, p.551.
Seria atitude ingênua e empobrecedora confinar à
mera autobiografia esta parte (sem dúvida a maior,
quantitativa e qualitativamente) da obra de Tomás.
Nela, realidade e imaginação se imbricam, num
trabalho ficcional (entenda-se aqui a palavra não
como sinônimo do ato de narrar, mas como a
natureza de todas as construções literárias,
independentes do gênero a que pertençam)
(HELENA, L. (1997) p. 21) 37.
38
CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira. São
Paulo: Itatiaia. 1975.
estado de fragmento) escritas por Critilo e endereçadas a
Doroteu, residente em Madri. Nessas missivas, Critilo,
residente em Santiago do Chile (na verdade, Vila Rica), narra
os desmandos e as falcatruas do governador chileno, um
político narcisista, despótico e amoral - o Fanfarrão Minésio
que, na realidade, era Luís da Cunha Menezes, governador
de Minas Gerais até pouco antes da Inconfidência.
Sendo o poema anônimo e tendo permanecido inédito
até 1845, houve dúvida quanto à sua autoria, embora a
tradição mais antiga apontasse Gonzaga sem hesitação.
Falou-se depois em Cláudio Manuel da Costa, em Alvarenga
Peixoto, em colaboração, etc. A dúvida só acabou após os
estudos de Afonso Arinos e, principalmente, do filólogo
português Dr. Manuel Rodrigues Lapa (o maior estudioso do
vate luso-brasileiro), quando foi concluído que Critilo é
Tomás Antônio Gonzaga e Doroteu é Cláudio Manuel da
Costa, seu amigo, poeta árcade e inconfidente.
Cartas Chilenas é mais um exemplo do jogo poético
gonzaguiano, do ludismo entre a ficção e a realidade e,
principalmente, de seu artesanato poético. Diante do exposto,
concluímos que Tomás Antônio Gonzaga foi verdadeiro no
plano artístico, pois realizou uma obra de arte ímpar na
Literatura luso-brasileira. Construiu uma obra-prima
decalcada por ficção e realidade, mas principalmente, por
lirismo, vida e arte.
39
As citações sobre CARTAS CHILIENAS foram retiradas de GONZAGA,
Tomás Antônio. Cartas Chilenas. Texto Integral. São Paulo: Martins Claret, 2007.
(TAG Cartas Chilenas)
O poema exprime seu caráter de anonimato por
meio de um discurso epistolar emitidas por um personagem
denominado Critilo, residente em Santiago do Chile (na
verdade, Vila Rica), narra a seu destinatário Doroteu,
aludindo à tirania, prepotência, falta de decoro, abuso de
poder e desrespeito às leis de um governador, denominado
por Fanfarão Minésio. Os cenários metaforizados por
Portugal, Lisboa, Coimbra, Minas e Vila Rica são na
realidade Espanha, Madrid, Salamanca, Chile e Santiago.
40
ALMEIDA, José Américo de. A Bagaceira. Introdução de M. Cavalcanti
Proença. 16ª ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1978.
41
GULLAR, Ferreira. Cultura posta em questão; Vanguarda e
subdesenvolvimento: ensaios sobre arte. 4. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2010.
42
Cf. EIKHENBAUM, B. et alii. Teoria da Literatura. Porto Alegre:
Globo, 1971, p.8.
foi dificultoso travar, com ele, uma estreita
amizade e chegou a confiar-me os manuscritos,
que trazia. Entre eles encontrei as Cartas
Chilenas, que são um artificioso compêndio das
desordens, que fez no seu governo Fanfarrão
Minésio, general de Chile.
Logo que li estas Cartas, assentei comigo que as
devia traduzir na nossa língua, não só porque as
julguei merecedoras deste obséquio pela
simplicidade do seu estilo, como, também, pelo
benefício, que resulta ao público, de se verem
satirizadas as insolências deste chefe, para
emenda dos mais, que seguem tão vergonhosas
pisadas.
Um D. Quixote pode desterrar do mundo as
loucuras dos cavaleiros andantes; um Fanfarrão
Minésio pode também corrigir a desordem de um
governador despótico.
Eu mudei algumas coisas menos interessantes,
para as acomodar melhor ao nosso gosto. Peço-te
que me desculpes algumas faltas, pois, se és douto,
hás-de conhecer a suma dificuldade, que há na
tradução em verso. Lê, diverte-te e não queiras
fazer juízos temerários sobre a pessoa de
Fanfarrão. Há muitos fanfarrões no mundo, e
talvez que tu sejas também um deles, etc.
... Quid rides ? mutato nomine, de te
Fabula narratur...
Horat. Sat lª, versos 69 e
70
3. O POETA, MAGISTRADO E
INCONFIDENTE TOMÁS ANTÔNIO
GONZAGA
A vista furtiva,
O riso imperfeito,
Fizeram a chaga,
Que abriste no peito,
Mais funda, e maior.
Marília, escuta
Um triste Pastor.
(T.A.G. p. p.17)
45
CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira. São Paulo.
Itatiaia. 1975.
fortuna) entre os dois). Gonzaga era vinte e dois anos mais
velho que a jovem Dorotéia. E muito mais pobre.
3. 3. O amor e a inconfidência
3. 4. O recomeço
3. 4. A Obra Completa
O conjunto da obra do poeta, magistrado e
inconfidente Tomás Antônio Gonzaga, é formado por sua
principal obra Marília de Dirceu (primeira parte, 1792;
segunda parte, 1799; terceira parte, 1812); Cartas Chilenas
(incompletas); Tratado de Direito Natural (carta sobre a
Usura).
Cartas Chilenas, obra satírica formada por cartas que
documentam a época com suas alegorias contra o poder de
um mandatário corrupto. Neste conjunto da obra de Gonzaga,
deve ser mencionado ainda o Tratado de Direito Natural,
texto menor e ensaístico, louvando, em teses ainda contra-
reformistas, o direito divino do monarca, que não devia ser,
segundo o texto, de forma alguma subordinado ao povo.
CONCLUSÃO
2. 2. Ritmo e Criação
50
MERQUIOR, José Guilherme. Razão do Poema – ensaios de crítica e
de estética. São Paulo, Realizações Editora, 2013, p. 66)
última instância) da canção está perpassado pelo
pressentimento doloroso de um exílio definitivo. A
intensidade do pressentimento traduz-se na urgência do
rítmo, aqui, como na estrofe II, construído em crescendo
elevado, em cujo ápice surge, semelhantemente, o timpre em
i, princípio e fecho de uma fremente volição. Entre permita e
inda viste há como que o arco distendido de vontade elétrica.
Mas o timbre agudo, cercado pelas vogais em maioria
fechadas dos cinco primeiros versos, representa a
terminação polar de uma variação rítmica apreciável.
(MERQUIOR, José Guilherme, p. 66)
3. 1. Individualismo, Subjetivismo,
Confessionalismo
(...)
Meus olhos outros olhos nunca viram,
Não sentiram meus lábios outros lábios,
Nem outras mãos, Jatir, que não as tua
A arasóia na cinta me apertaram.
4. O NACIONALISMO
51
MERQUIOR, José Guilherme. Razão do Poema – ensaios de crítica e
de estética. São Paulo, Realizações Editora, 2013, p. 66)
O termo Romantismo tem seu emprego explicável
pela origem europeia do movimento. É que na Europa a
reação aos estilos clássicos (Renascimento, Barroco,
Arcadismo), todos voltados para a valorização da Idade
Antiga greco-latina, implicou uma espécie de redescoberta da
história e cultura da Idade Média. Ora, a Idade Média possui
um estilo arquitetônico conhecido pela designação de
românico, e se chamam romances certas línguas derivadas do
Latim (língua originária de Roma) faladas na Europa naquela
época. O termo romance (e sua forma variante, rímance)
designava também certo tipo de poema escrito nessas línguas,
narrando as aventuras e desventuras de cavaleiros da Idade
Média, cheios de altos valores e sentimentos (heroísmo,
religiosidade, amor).
Note-se ainda que foi na Idade Média, durante a
expulsão dos mouros por cavaleiros cristãos, que se
originaram Portugal e Espanha, assim como as línguas
romances deram origem à maioria das atuais línguas
europeias ocidentais.
Assim, podemos dizer que a palavra Romantismo
lembra as origens de diversas nacionalidades europeias. Não
é de causar admiração, portanto, o fato de que uma das
características fundamentais deste estilo de época seja o
Nacionalismo. Também nos países da América, como o
Brasil, a produção romântica em todas as suas fases terá
como fator importante o Nacionalismo, embora ele seja mais
evidente em alguns momentos do que em outros.
4. 1. O contexto do nacionalismo
5. O INDIANISMO NO BRASIL
54
MATOS, Gregório de. Sátiras. Organização de Angela Maria Dias.
Rio de Janeiro. Agir, 1990.
O vocabulário Tupi domina o texto: Paiaiá
significa Pajé, Piaga ou feiticeiro dos índios; Cobé pá é
dialeto da tribo Cobé, que habitava os arredores da Cidade da
Bahia (Salvador); carimá é bolo feito de mandioca; pititinga é
peixe miúdo; caruru é planta alimentar, comida com peixe e
camarões; marau é mariola, malandro, patife; Maré é nome
de uma ilha do Recôncavo; Pai significa cacique ou, ainda,
pássaro cinzento cujo canto imita o nome.
O poeta explora a marcação tônica dos vocábulos
indígenas (carimá, caruru, caju, Piraguá, Aricobé, Pai,
Passé, aqui, Maré) para reforçar o grito primitivo da raça.Os
vocábulos indígenas refletem, ainda, a condição do
bilinguismo no Brasil, que se manifesta desde o início
colonização, até os nossos dias.
SONETO
Ergue de jaspe um globo alvo e rotundo,
E em cima a estátua de um Herói perfeito;
Mas não lhe lavres nome em campo estreito,
Que o seu nome enche a terra e o mar profundo.
57
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo,
Cutrix. 1980.
Todo esse plano espaço imenso de águas.
Prosseguia talvez; mas o interrompe
Sepé, que entra no meio, e diz: Cacambo
Fez mais do que devia; e todos sabem
Que estas terras, que pisas, o céu livres
Deu aos nossos avôs; nós também livres
As recebemos dos antepassados.
Livres as hão de herdar os nossos filhos.
Desconhecemos, detestamos jugo
Que não seja o do céu, por mão dos padres.
(....)
(GAMA, Basílio da. 1997, p. 59)
A morte de Lindóia
Este lugar delicioso, e triste,
Cansada de viver, tinha escolhido
Para morrer a mísera Lindóia.
“A morte de Lindoia”,
de José Maria de Medeiros(1849-1925)
62
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social . In: Obras.
Coleção “Os Pensadores”. Vol I. Trad. de Lourdes Santos
Machado, São Paulo. Nova Cultural. 1987.
63
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os
fundamentas da desigualdade entre as homens. In: Obras. Coleção
desigualdade, mas também pela criação das leis que servem
para proteger a propriedade.
O Guarani se mostra mais complexo do que os
demais romances de José de Alencar. Nele, há dois principais
conflitos: entre os índios e os portugueses que se
estabeleceram nas terras e entre os admiradores de Cecília
(Peri, Álvaro e Loredano), que estavam interessados na mão
da moça.
O segundo romance indianista de José de Alencar,
Iracema (1865) 64 (considerado o romance ícone do
indianismo romântico) é uma narrativa de fundação. A
narrativa tem início quando Martim, um português
responsável por defender o território brasileiro de outros
invasores europeus, perde-se na mata, em localidade que hoje
corresponde ao litoral do Ceará.
A personagem Iracema, uma índia tabajara que então
repousava entre as árvores, assusta-se com a chegada do
estranho e dispara uma flecha contra o estrangeiro Martim.
Ele não reage à agressão por ter sido alvejado por uma
mulher, e a índia percebe que feriu um inocente.
Como uma ação pacífica, Iracema, a selvagem, conduz
o moço ferido para sua aldeia do seu pai - Araquém, o
pajé da tribo. A cena de abertura do romance é um poema em
prosa e exemplifica o jogo poético de ritmo e imagens
metafóricas, em parágrafos curtos, como se fossem versos
longos e sonoros:
65
ALENCAR, José de. Ubirajara São Paulo: FTD, 1994.
O narrador apresenta para seu leitor que que as
informações que temos até hoje sobre os indígenas
provinham ou dos jesuítas ou dos aventureiros que chegavam
no novo continente e que, nem sempre, a linguagem utilizada
para descrevê-los estava de acordo com os costumes dos
indígenas.
Por isso, Alencar critica a visão destes primeiros
viajantes e religiosos, pois davam ao indígena um caráter
meramente bárbaro, sem levar em consideração o aspecto
sentimental e cultural da vida dos nativos. Escreve Alencar:
66
ASSIS, Machado. Obra completa. V. III.; Rio de Janeiro. José Aguilar,
1993.
67
ANDRADE, Mário. Macunaima (O herói sem nenhum caráter), S.
Paulo, Martins, 1978.
(ANDRADE, Mário. 1978, p.48)
68
ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. São Paulo: Globo: Secretaria de
Estado da Cultura, 1990.
livro Manifesto Antropófago (1928) 69 o poeta determinava o
seguinte:
69
ANDRADE, Oswald de. A Utopia antropofagica. São Paulo: Globo,
1990.
*Em 11 de janeiro de 1928, a pintora Tarsila do Amaral (1886-1973) acordou ansiosa. Era
aniversário de seu marido, o escritor Oswald de Andrade (1890-1954), e ela tinha preparado
uma surpresa: um quadro de 85 centímetros por 73 centímetros, pintado em segredo nos
últimos meses. Com seu jeito afobado e verborrágico, Oswald nem deixou que artista
explicasse a obra. Foi logo elogiando, dizendo que era a coisa mais incrível que ela já tinha
feito. "É excepcional este quadro", dizia ele. "É o homem plantado na terra." No mesmo dia,
Oswald mostrou o presente para um de seus amigos, o poeta Raul Bopp (1898-1984). E
juntos começaram a enxergar ali, naquela figura enigmática, um índio canibal, um homem
antropófago, aquele que iria devorar a cultura para se apossar dela e reinventá-la. Tarsila
empolgou-se com a interpretação e correu para um velho dicionário de tupi-guarani. Ali
encontrou as palavras "aba" e "poru" - "homem que come". Estava batizado aquele que se
tornaria o mais valioso quadro da arte brasileira, Abaporu.
Mas o que seria apenas um presente de aniversário de uma artista para seu marido acabou
transcendendo qualquer relacionamento para se tornar um dos quadros mais famosos do
Brasil - e, certamente, o mais valioso.
O movimento Pau Brasil inaugurou o primitivismo,
fez uma revisão da realidade sócio-cultural brasileira. O
Manifesto Antropófago trouxe um diagnóstico para essa
realidade e, radicalizando o primitivismo nativo, polemizou,
através da versão filosófica do autor, as intempéries,
ditaduras e moral burguesa da História do Brasil.
Em 1931, Raul Boop escreveu Cobra Norato, 70 obra
marcadamente convertida ao "Abaporu", a Antropofagia de
Oswald de Andrade e Tarcila do Amaral. Este poema é uma
obra épica-dramática e apresenta as aventuras de um jovem
na selva amazônica depois de ter estrangulado a Cobra
Norato e ter entrado no corpo do monstruoso animal. Cruzam
a história, descrições mitológicas de um mundo bárbaro sobre
violentas transformações:
Vamos brincar de Brasil
Mas sou eu quem manda
Quero morar numa casa grande
...
Começou desse jeito a nossa história
(...)
Negro coçou e fez música
Vira-bosta mudou de vida
Maitacas se instalaram no alto dos
galhos
(...)
De vez em quando
a Mula-sem-cabeça sobre a serra
ver o Brasil como vai
(BOOP,R.1984.p.47).
70
BOOP, Raul. Cabra Norato e Outros Poemas. Rio de Janeiro.
Civilização Brasileira, 1984.
O indianismo em Raul Boop está na descoberta
geográfica, mítica, primitivista, étnica e antropológicas do
povo brasileiro.
71
Tarsila do Amaral (1928)
Cobra Norato realiza a fusão da linguagem poética e
dialetal com mistério de uma região feita de sortilégios,
febres, dramas e tragédias a Amazônia. É a visão de um
mundo paludial e como que ainda em gestação, como
escreveu Manuel Bandeira e ilustrou com a seguinte frase:
Ué, aqui estão mesmo fabricando terra! (BANDEIRA, M.
1996. p. 620). 72 Já o nosso poeta maior Carlos Drummond
de Andrade, defende que Cobra Norato é o mais brasileiro de
todos os livros de poetas brasileiros e coloca a poesia de Raul
Boop ao lado do seu antecessor mais ilustre: Gonçalves Dias.
71
https://www.bbc.com/portuguese/geral-47808327
72
BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro, Nova
Aguilar, 1996.
Nos anos 60 e 70, a Tropicália de Caetano Veloso e
Gilberto Gil reviveu, poética e musicalmente, alguns temas,
procedimentos estilísticos e ações do movimento Pau-Brasil e
da Antropofagia de Oswald de Andrade, evidenciando um
nacionalismo crítico e antropófago que deglutia, ao mesmo
tempo, os Beatles e suas guitarras elétricas, João Gilberto e
Luís Gonzaga. Entre os temas da Tropicália, o índio não
poderia deixar de ser repensado. Caetano no poema "Um
índio" 73 poetizou pós-modernamente o indianismo brasileiro:
Um índio descerá de uma estrela colorida
brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul na
América num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançada que a mais
avançada das mais avançadas das
tecnologias
Virá
Impávido que nem Huhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
(VELOSO, C.1992)
74
ELIS, Bernardo. Caminhos dos gerais. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1975.
como depois e depois ainda. (ELIS, Bernardo. 1975, p.157-
167)
76
CALLADO, António. A Expedição Montaigne. Rio de Janeiro. Nova
Fronteira, 1983.
77
RIBEIRO, Darcy. Maíra. Rio de Janeiro, Record, 1989.
seminarista e ex-índio Isaías, o indianista e sociólogo Darcy
Ribeiro apresenta a imagem de um ser completamente
desprovido de essência, fruto da simbiose absurda entre o
mundo primitivo e o moderno. Desta tentativa de união
nasceu um homem completamente esfacelado. A sociedade
precisa ter consciência e respeitar o espaço e a identidade
desta nação, tão brasileira e tão privada de seus direitos.
Diante do que foi apresentado, o indianismo na
literatura brasileira está muito presente nestes tempos pós-
modernos, contemporâneos, hipermodernos do celular, da
internet e redes sociais do 3° milênio.
O indianismo contempâraneo tem outro perfil, é
tratado como assuntos que envolvem as causas sociais,
ecológicas e humanitárias.
E, é evidente que sempre será tema contemporâneo
e deverá estar sempre presente nas conferências literárias,
sociológicas, históricas, políticas e práticas de humanidade e
racionalismo, de forma neo realista, ou outra denominação
estetica temporal, sem romantismo.
O poema "Papo de índio", 78do Chacal, de forma
lúdica, tem o indianismo como motivo de reflexão temática e
brinca com a linguagem do índio:
Veiu uns ômi di saia preta
cheiu di caixinha e pó branco
qui eles disserum qui chamava açucri
aí eles falarum e nós fechamu a cara
depois eles arrepitirum e nós fechamu o corpo
aí eles insistirum e nós comemu eles.
78
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. 26 Poetas brasileiros. Hoje Rio de
Janeiro, Editora Lapor do Brasil, 1976.
file:///C:/Users/Lenovo/Downloads/26-Poetas.pdf
é a cachaça que subiu de preço
a cachaça e outros gêneros de primeira
necessidade
cachaça a dois contos, ora veja,
veja a hora,
que horas são,
atenção
apontar:
FOGO
(CHACAL, in. HOLANDA, H. B. 1976. p. 219)
79
81
( https://www.letras.mus.br/renato-russo/388284/)
( https://youtu.be/1AJjb6AhnMA )
Quase sempre se convence que não tem o bastante
E fala demais por não ter nada a dizer
(https://youtu.be/7GzXG7012n
U)
86
Cf. https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/10/04/A-trajet
%C3%B3ria-de-Raoni-da-amizade-com-Sting-
A campanha alcançou o sucesso esperado e, quatro anos
após o início da turnê de Raoni, o governo brasileiro
homologou, em 1993, o Parque Nacional do Xingu.
Após a vitória da demarcação, Raoni permaneceu
mobilizado, desta vez, para impedir a construção da Usina
Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu. Nessa nova queda
de braço, o cacique perdeu. A construção foi autorizada em
2010, durante o governo da época.
O sucesso das turnês internacionais de Raoni colocaram-
no como um estandarte permanente da causa indígena. Ele foi
recebido por diversos presidentes europeus nos anos seguintes
e pelos papas João Paulo 2º e Francisco, além de outros
líderes internacionais.
Em todo esse processo, o governo da França desempenhou
um papel especialmente influente. Raoni esteve no país
europeu em 2000, 2001, 2010, 2011 e 2019, onde foi recebido
por presidentes de diversas tendências, do socialista François
Mitterrand ao gaullista Jacques Chirac, Emmanuel Macron.
87
88
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2019/09/25/
interna_mundo,790240/conheca-a-historia-da-jovem-ativista-greta-
thunberg.shtml
89
https://www.natura.com.br/blog/sustentabilidade/amazonia-4-acoes-
para-ajudar-a-conservar-a- floresta?raccoon_param1=sustentabilidade-
conteudos&raccoon_param2=acoes-para-ajudar-a-conservar-a-
floresta&cnddefault=true&gclid=EAIaIQobChMIraz3mtXW6AIVlAuRC
h2cWQ1iEAAYAiAAEgISt_D_BwE
****“Em agosto em de 2019 as queimadas atingiram 24.944 km² do
bioma, segundo o Inpe. A área afetada é quatro vezes maior do que a do
ano anterior, que foi de 6.048 km². Desde 2010, quando a região passou
por uma seca e teve 43 mil km² de áreas queimadas, a floresta não
passava por um desastre de tamanha dimensão”.
para proteger as crianças dos efeitos da crise climática, num
processo ecopolítico e ecoreflexivo.
A natureza e o índio são matérias de poemas de
poetas contemporâneos que aderem ao tema, como matéria de
reflexão ou exercício poético ou ecopoético (como nomeiam
estudiosos do chamado ecocriticismo) que cogitam, por meio
da leitura da ecopoesia (ou poemas quem têm a natureza
como tema) de como o homem destrói a natureza, por
intermédio do desmatamento protegido pela égide da
chamada pós-modernidade e civilização.
90
TELES, Gilberto Mendonça. Saciologia goiana. 10ª. ed. Curitiba:
CRV, 2019
ALDEIA GLOBAL
A José Mauro de
Vasconcelos
1.
No meio das tabas há menos verdores,
não há gente brabas nem campos de flores.
Etnologia
Ainda
há índios.
92
LIMA, Maria de Fátima Gonçalves. O signo de Eros na Poesia de
Gilberto Mendonça Teles. Goiânia, Kelps, 2005
nutre a obra literária. Sobre essa afirmação, Octavio Paz 93
afiança que “As palavras do poeta, justamente por serem
palavras, são suas e alheias” (PAZ, 1982, p. 52). A construção
poética é um ato solitário e, ao mesmo tempo, solidário que canta
e encanta o mundo.
Diante do exposto, o Indianismo do Pós-Moderno é a
cultura do vazio, do caos, a ausência da civilização indígena.
É a cultura do silêncio.
Dessa forma, o silêncio no poema, ou seja, o espaço
em branco, propõe um caminho a ser compreendido pelo
leitor em relação ao índio, à sua cultura e suas causas; à
privação dos direitos de um povo que é marginalizado e,
hoje, se encontra desertado de suas terras.
O silêncio, nesse texto poético traz a marca do
ecopoético; conduz o ser humano para a solidão do espaço
em branco da página que (re)significa, a ausência da palavra
que desperta o homem para o absurdo que pontua a triste
realidade dos índios brasileiros.
Daí o ecopoema trazer à tona a ironia “ainda há
índios”, para demonstrar o oposto, a dizimação dos índios
marcada por vazio, um espaço desértico, que atravessa o
texto. O poeta brinca com as palavras e acende
possibilidades para o leitor fazer esta travessia de imersão no
espaço em branco do poema.
O Indianismo no Modernismo e na
contemporaneidade deixa de fazer alusão ao índio como
personagem de ação de drama (como no Aracadismo); ou
protagonizar de forma heroica e romanticamente idealizada
(como no Romantismo), para trazer à tona, um um diálogo
entre entre a Literatura e o meio ambiente de forma reflexiva
93
PAZ, Otávio. O Arco e a Lyra. 2ª ed. Trad. de Olga Savary. Editora
Nova Fronteira, 1982.
e crítica, por meio da natureza transfigurada e
performatizada (como no Modernismo a parir de Mario de
Andradre e Oswald de Andrade).
Nos dias atuais esse posicionamento estético da
literatura sobre natureza, homem e meio ambiente
denominado por Ecocriticismo ou Ecocrítica.
Essa corrente crítica contemporânea foi divulgada
pela primeira vez por Cheryll Glotfelty, nos anos 90, no
volume de ensaios que editou, O leitor da ecocrítica: marco
em Literatura e ecologia (1996). 94 Ela se propõe a estudar,
sob os prismas estéticos e culturais, as manifestações
artísticas contemporâneas que se delineiam das
problematizações do meio ambiente e da ecologia, sob o viés
das artes.
96
CASTRO, Alves. Poesias completas. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
p.54). Essas súplicas lembram os versos de "Deprecação",
que rogam: Tupã ó Deus grandel cobriste o teu rosto/Com
denso velâmem de penas gentis, texto indígena ilustrado por
alguns vocábulos da língua Tupi - Guarany: Tupã, Anhangá,
Tupi, igaras, quati e Piaga.
Nem sempre, porém, os poemas indianistas de
Gonçalves Dias apresentam uma visão realista do indígena
brasileiro: muitas vezes, o índio (semelhança do que ocorre
nos romances indianistas de Alencar) assume valores e
comportamentos mais característicos da cavalaria andante
medieval, do que dos primitivos habitantes da América.
O poema "I-Juca-Pirama" (Ibidem, 1998, p. 379-
392) (que em Tupi significa o que há de ser morto) narra a
história de um guerreiro Tupi aprisionado pelos Timbiras. No
momento da execução, o índio Tupi exalta sua bravura, mas
pede clemência, pois dele dependia a sobrevivência do pai,
cego e doente. Considerado covarde pelo chefe dos Timbiras,
é solto. Ao reencontrar o pai, este o amaldiçoa pela perda da
honra. O jovem arma-se, luta bravamente contra os Timbiras,
abate os inimigos, recupera a honra e recebe do pai o perdão.
"I-Juca-Pirama" é dividido em dez cantos curtos,
uma espécie de épico-dramático. A estrofação e a métrica
variam de acordo com a tonalidade e sugestão da
dramaticidade. O primeiro canto, formado por oito sextilhas
de onze sílabas métricas, apresenta uma descrição reveladora
da idealização da natureza, da força e valentia dos Timbiras:
Valente na guerra
Quem há, como eu sou
Quem vibra o tacape
Com mais valentia
Que golpes daria
Fatais como eu dou
Guerreiros, ouvi-me;
Quem há como eu sou
........................................
(Ibidem, 1998, p. 106)
97
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentas
da desigualdade entre as homens. Trad. de Lourdes Santos Machado, São
Paulo. Nova Cultural. 1988.
A imagem da valentia do índio e da sua comunhão
com a natureza é algo digno de contemplação: Lá vão pelas
matas;/ Não fazem ruído: O vento gemendo/E as matas
tremendo/ E o triste carpido/ Duma ave a cantar,/ São eles
guerreiros,/ Que faço avançar (p.l9). São estes os valentes
guerreiros, que avançam sem medo ao som do boré
( trombeta de bambu), E o Piaga se ruge /No seu Maracá,/A
morte lá paira/ Nos ares frechados,/ Os campos juncados
/De mortos são já:/ Mil homens viveram, / Mil homens são lá
(Ibidem, 1998, p. 108).
"O canto do guerreiro" é uma ópera indígena, da qual
participam o índio e a natureza. Enquanto o vento geme, as
matas tremem, o Piaga toca o seu maracá, o guerreiro valente
faz vibrar os sons do boré e canta em alta voz, seu grito de
guerra, formando, assim, uma orquestra magistral, uma obra
dramática musicada que eleva e exalta os feitos do indígena
da pátria brasileira.
7. A LÍRICA AMOROSA
I
Enfim tevejo! – enfim posso,
Curvado a teus pés dizer-te
Que não cessei de querer-te,
Pesar de quanto sofri. Muito penei!
Cruas ânsias,
Dos teus olhos afastado,
Houveram-me acabrunhado
A não lembrar-me de ti!
II
Dum mundo a outro impelido,
Derramei os meus lamentos
Nas surdas asas dos ventos,
Do mar na crespa cerviz!
Baldão, ludíbrio da sorte
Em terra estranha, entre gente,
Que alheios males não sente,
Nem se condói do infeliz!
.......................................
(Ibidem, 1998, p. 283)
CONCLUSÃO
Do ponto de vista temático, o indianismo dominou a
obra de Gonçalves Dias. Embora não tenha sido o introdutor
do tema na poesia brasileira, foi, ao lado de José de Alencar,
quem o elevou à categoria de valorizador da nacionalidade,
renovando-o depois das tentativas sem êxito dos primeiros
românticos. Antes de Gonçalves Dias, o indianismo não
existia com expressividade, depois, ninguém mais escreveu
sobre o silvícola, sem ter como mestre, o poeta do índio. E
isso lhe foi possível, não somente porque era um poeta de
fértil imaginação e aguda sensibilidade, ou porque tivesse
sangue índio e da infância lhe restassem vivas lembranças
dos selvagens maranhenses; é que, a essas circunstâncias e
qualidades, teve o cuidado de somar o estudo das populações
indígenas, observando-lhes as crenças, as tradições, os
costumes, bem como a leitura inteligente dos viajantes e
cronistas, daí, resultando os trabalhos linguísticos,
etnográficos eas histórias que deixou, além da nota de
autenticidade que se percebe em sua obra literária.
O indianismo em Gonçalves Dias não se limitou à
descrição exterior de episódios e lendas e à exaltação da
natureza em que viviam os selvagens; alcançou a
interpretação da psicologia do índio brasileiro, no esforço de
mostrá-lo heróico, nobre de sentimentos e de ação, capaz de
categorizar o brasileiro em face do europeu. Nesse sentido,
deixou o que de melhor existe na poesia indianista brasileira
e foi o modelo em que se apoiam os demais românticos,
poeta ou romancistas; e graças a ele, a maioria dos principais
poetas brasileiros, até o modernismo, se julgou obrigada, de
certo modo, a tratar o tema.
Ao lado da poesia indianista, Gonçalves Dias deixou a
página lírica de acentuada beleza, que ainda hoje permanece
entre as melhores já escritas no Brasil. Entre os mais belos
poemas da nossa literatura, romântica ou não, estão os versos
de "Canção do exílio" (Ibidem, p. 105), Se se morre de
amor!" (Ibidem, p. 292), "Ainda uma vez adeus! "(Ibidem, p.
283), "Olhos verdes" (Ibidem, p. 409), "Saudades" (Ibidem,
p. 496), "O mar" (Ibidem, p. 201), "Ideias de Deus" (Ibidem,
p. 203), "A tempestade" do livro SEGUNDOS CANTOS
(Ibidem, p. 267), "A tempestade"(Ibidem, p. 623), do livro
LIRA VÁRIA , etc, nas quais o amor, a emoção, a nostalgia, a
melancolia, a tristeza, a religiosidade e o mar são os motivos
dominantes.
LIRA VÁRIA é um dass últimos publicações do
poeta e está composto por três da parte Outros Poemas e
Varieantes Principais, Versos Póstumos e Poesias
Traduzidas, este poema Tempestade (p. 623) foi retidado da
primeira parte essa última obra de Gonçalves Dias, inserida
na organização de Alexei Bueno, sob o título Gonçalves
Dias: poesia e prosa completas e publicada em 1998, pela
Nova Aguilar, com textos críticos de Manuel Bandeira.
A publicação de Sextilhas de Frei Antão (l843), em
português arcaico foi, de certa forma, para provar seu
conhecimento e bom manejo do idioma, em virtude de uma
de suas peças Beatrix Cenci (1843), ter sido recusada pelo
Conservatório Dramático, sob a alegação de incorreção de
linguagem. Raro, na verdade, terá sido o poeta brasileiro que,
como ele, dominou a língua portuguesa, escrevendo-a com
elegância e correção, tanto na poesia quanto na prosa; e
apesar de haver enriquecido a sua linguagem poética,
sobretudo com vocábulos indígenas e particularidades
fonéticas do falar brasileiro ("submarinha", "objeto",
"ignóbil", etc), ficou mais preso à tradição do que Alencar,
por exemplo.
Os poemas gonçalvinos possuem, antes das marcas
estilísticas da época, um espírito romântico e poético que não
pára no tempo, que está muito presente nesta época tão
modernizada do Terceiro Milênio. Ler Gonçalves Dias, hoje,
não é apenas conhecer o Romantismo do século XIX, é
reviver um espírito pleno de nacionalismo, é fazer despertar
as emoções adormecidas n'alma e pensar na natureza e em
Deus, amando e sentindo todas as emoções que o amor pode
despertar no ser, reconhecendo que o homem pode ser
sentimental sem pieguismo. Ler Gonçalves Dias é um prazer
sempre renovado que resgata a humanidade do homem.
1.1. O Romantismo
1. 1. 4. Sonho x realidade
112
CÂNDIDO, Antônio. Na sala de aula. São Paulo: Ed. Ática, 1985.
extraordinário. O escritor romântico está aberto para o
sobrenatural e o fantástico. Álvares de Azevedo é, por
excelência, o poeta da noite, do sono e do sonho. A esta
atmosfera acrescenta-se o clima de mistério e fantasmagoria
em torno do cavaleiro, que galopa dentro da noite de um
sonho com conotações de pesadelo, medo, reforçando o lado
macabro dos versos Azevedianos.
1. 2. 3. A idealização da mulher
(Ibidem p. 101-102)
Em um castelo doirado
Dorme encantada donzela;
Nasceu – e vive dormindo
– Dorme tudo junto dela.
.........................................
E no castelo, sozinha,
Dorme encantada donzela:
Nasceu - e vive dormindo
– Dorme tudo junto dela.
..........................................
A donzela adormecida
É a tua alma santinha,
Que não sonha nas saudades
E nos amores da minha
(Idem p. 94)
(Ibidem p. 143)
Verifique nos dois fragmentos acima que a mulher
adormecida aparece como objeto de adoração, próxima, mas
distante. O poeta limita-se a ser um contemplador reverente,
apaixonado. No fragmento sete de Ideias Intimas, o poeta é
mais do que um observador, é um jovem extremamente
deslumbrado com os vícios de um amor lascivo / de fogos
vagabundos ascender-se.
Mário de Andrade, no ensaio “Amor e Medo”, analisa
a atitude do autor desta Lira com relação ao amor: “Porém a
mais bonita e mais medrosa criação que Álvares de Azevedo
inventa, nesse desvio do amor e medo pro dormir no amor,
não está na aspiração ao sono, ou na imagem do rapaz
adormecido: está sim na imagem da amante adormecida. Que
libertação! “O poeta pode gozar o seu amor, junto com a
amada e ao mesmo tempo sozinho, fugindo dos pavores que o
perseguem”(ANDRADE, M. (1967) p. 225). 113
Em Álvares de Azevedo o amor é sempre irrealizado e
só ocorre no plano do sonho, da fantasia. Ou o “eu” lírico
sonha a posse sexual da amada, ou a amada dorme; a
contemplação do sonho estimula os desejos do poeta
adolescente. O amor carnal está sempre associado à culpa e à
punição; coexistem o desejo e o medo do amor.
2. O NOIVO DA MORTE
2. 1. Lembrança de morrer
Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores…
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.
2. 2. O pálido poeta
114
CÂNDIDO, Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Ed.
Martins, 1959. Vol. II.
115
MEIRELES, Cecília. Os melhores poemas de Cecília Meireles
(Seleção Maria Fernanda). São Paulo: Global, 1996.
tudo bolhas / que vêm de fundas piscinas / de ilusionismo... -
mais nada” (MEIRELES, C. (1996), p. 48). Porém, essa
última concepção não é tão pessimista quanto a dos
ultrarromânticos, pois, para a poetiza modernista, o homem
tem a capacidade de criar, reinventar e fazer da ilusão da
vida, uma realidade mais brilhante, mais sol do que noite.
Para os românticos não existe sol, vida; a noite e a morte
reinam em suas fantasias.
3. 1. A Face Ariel
3. 2. A Face Caliban
3. 2. 1. O diabólico licor
I
De tanta inspiração e tanta vida
Que os nervos convulsivos inflamava
E ardia sem conforto...
O que resta? Uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava...
Resta um poeta morto!
..............................
II
“Morreu um trovador – morreu de fome.
Acharam-no deitado no caminho:
............................
Ninguém ao peito recostou-lhe a fronte
Nas horas de agonia! Nem um beijo
............................
(Ibidem p. 180-181)
(Ibidem p. 176)
116
Lorde Byron. Don Juan. Trad. JuanVicente Martinez Luciano, Maria
José Coperías Aguilar e Miguel Teruel Pozas. Ed. bilíngue espanhol –
inglês. Madrid: Cátedra, 2009.
cínico, melancólico eram adjetivos usados para descrevê-lo, e
uma aura de mito foi criada, a moda do “byronismo”.
Porém, se por um lado Byron foi sua mola
propulsora da arte azevediana, por outro, não se pode passar
por cima de uma das maiores contribuições deste poeta –
noivo da morte – à literatura brasileira: ele foi dos primeiros a
utilizar a ironia como técnica poética e a incorporar à sua
poesia a descrição de objetos cotidianos como o charuto, a
lamparina, o conhaque, sua cama, seus livros. Álvares de
Azevedo deu um banho de concretude e prosaísmo num
período em que, para a literatura, tudo era fluído e esfumado.
Na poesia de Álvares de Azevedo poema está clara a
representação dos ideais propostos pelo byronismo: nas
imagens de delírios febris e incitantes, nos arroubo de ideias,
nos impulsos apaixonados, frenéticos e violentos.
No quarto e quinto poemas, “A lagartixa” e “Luar de
verão”, respectivamente, encontramos o poeta afastado do
romantismo idealista e sublime. No primeiro, Álvares busca o
insólito e o prosaico, com revelam os seguintes versos: A
lagartixa ao sol ardente vive / E fazendo verão o corpo
espicha:... / Vale todo harém a minha bela, / Em fazer-me
ditoso ela capricha; / Vivo ao sol de seus olhos namorados, /
Como ao sol de verão a lagartixa. (Ibidem p. 176-177). No
segundo, a lua tão festejada dos românticos aparece
“ironicamente”, como uma simples mensageira do sono:
Torno-me vaporoso, e só de ver-te, / Eu sinto os lábios meus
se abrir de sono. (Ibidem p. 177).
No último poema da série, o “Poeta moribundo”,
encontramos o humor negro e a visão gótica, altamente
mórbida e satânica – a verdadeira face de Caliban :
117
Cleópatra VII Filopátor (em grego clássico: Κλεοπᾰ́τρᾱ Φιλοπάτωρ;
transl.: Kleopátrā Philopátōr; ( 69 – 10 ou 12 de agosto de 30 a.C.) foi a
última governante do Reino Ptolemaico do Egito.
acompanhar o marido preso. Quem comanda esta poesia são
figuras dominadoras, diabólicas e sensuais. É a face
Calibaniana no seu momento máximo.
3. 2. 2. Brasileirismo malandro
118
ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. São Paulo: Globo: Secretaria de
Estado da Cultura, 1990.
cavalo. Isto é, põe não apenas os pés na terra, mas todo o
corpo. Ridiculamente, cai do cavalo, rasga a calça e perde a
namorada. Tal cena, completamente antilírica e caricaturesca,
antecipa a paródia e o humor modernistas.
Outro poema que possui sugestão malandra, típica do
brasileiro boa-vida, ocioso e valdevino, que não se preocupa
com tempo, dinheiro e trabalho, é o poema “Vagabundo”
(Ibidem p. 176), citado anteriormente. Veja como os
seguintes versos trazem o espírito macunaímico,
imortalizado por Mário de Andrade com seu “Macunaíma”:
.... a preguiça a mulher por quem suspiro. / ... Ora, se por aí
alguma bela / Bem doirada a amante da preguiça / Quiser a
nívea mão unir à minha / Há de achar-me na Sé, domingo, à
Missa. Este poeta ultrarromântico, sem dúvida, foi um
precursor do humor, do brasileirismo malandro tão festejado
pelos poetas da primeira geração modernista.
4. IDEIAS ÍNTIMAS
I
... O Lamartine
É monótono e belo como a noite,
Como a lua no mar e o som das ondas...
Mas prateia uma eterna monodia,
..............................
Do nobre Johannisberg! Nos teus romances
Meu coração deleita-se... Contudo
Parece-me que vou perdendo o gosto,
Vou ficando blasé, passeio os dias
Pelo meu corredor, sem companheiro,
Sem ler, nem poetar. Vivo fumando.
..............................
II
Metido num tonel... Na minha cômoda
Meio encetado o copo inda verbera
As águas d’oiro do Cognac fogoso.
Negreja ao pé narcótica botelha
Que dá essência de flores de laranja
Guarda o licor que nectariza os nervos.
Ali mistura-se o charuto Havano
Ao mesquinho cigarro e ao meu cachimbo.
A mesa escura cambaleia ao peso
Do titânio Digesto, e ao lado dele
Childe-Harold entreaberto ou Lamartine
Mostra que o romantismo se descuida
E que a poesia sobrenada sempre
Ao pesadelo clássico do estudo.
(Ibidem p. 139/141)
(Ibidem p. 145-146)
O poeta dirige-se ao candeeiro como comparsa, um
cúmplice de seu spleen que, ironicamente, heroicamente,
aparecerá “como padrão às lâmpadas futuras”.
Ao lado dos mestres da Literatura, estão os mestres do
Direito: “A mesa escura cambaleia ao peso / Do titânio
Digesto, e ao lado dele / Childe-Harold entreaberto ou
Lamartine.” (Ibidem p. 141). Nestes versos o poeta contrapõe
“Childe-Harold” (poema em quatro cantos de Byron), ao
“Digesto” (tratado de jurisprudência antiga, Direito Civil
Romano). Desta forma, o autor justapõe e confronta estudo e
literatura, ou seja, os dois pólos culturais em torno dos quais
girava sua vida de acadêmico de Direito e poeta
ultrarromântico. Em meio ao desarranjo de seu quarto, entre
os quadros, o conhaque, o charuto, os livros, etc., o poeta
guarda um lugar especial para os retratos do pai e da mãe:
Em caixa negra dous retratos guardo. / Não os profanem
indiscretas vistas. / Eu beijo-os cada noite: neste exílio /
Venero-os juntos e os prefiro unidos / – Meu pai e minha
mãe.” (Ibidem p. 146). Os pais significam a pureza e a
serenidade e representam a contraposição com o mundo
degradado e caótico em que vive o poeta.
Em todos os fragmentos de “Ideias Íntimas”
aparecem momentos de devaneio, motivados pelo fumo, pelo
álcool e pela solidão que são sempre interrompidos por
momentos de lucidez:
XIV
Parece que chorei... Sinto na face
Uma perdida lágrima rolando...
Satã leve a tristeza! Olá, meu pajem,
Derrama no meu copo as gotas últimas
Dessa garrafa negra...
Eia! bebamos!
És o sangue do gênio, o puro néctar
Que as almas de poeta diviniza,
O condão que abre o mundo das magias!
Vem, fogoso Cognac! É só contigo
Que sinto-me viver. Inda palpito,
Quando os eflúvios dessas gotas áureas
..............................
Eu me esquecia:
Faz-se noite; traz fogo e dous charutos
E na mesa do estudo acende a lâmpada...
(Ibidem p. 147)
119
BÍBLIA SAGRADA. Tradução da CNBB com Introduções e Notas ,
16ª Brasília. ed. Editora Canção Nova, 2012.
120
Consultou-se para este estudo a edição da Nova Aguillar
S.A ( 2000) Obras completas de Álvares de Azevedo.
O Arcadismo retorna aos clássicos, como
Neoclassisismo; o Romantismo vai defender a liberdade do
gênio criador, a intuição e daí a fuga aos modelos prontos. É
a ruputura com a tradição.
Noite na Taverna é um exemplo dessa
insurreição contra os padrões clássicos. Embora esta obra
tenha um direcionamento de historietas, narrativas breves
que se aproximam do que a crítica qualifica por conto, seus
textos, mesmo com peculiaridades da narrativa curta, com
uma célula dramática e economia de personagens,
apresentam um entretom de peça teatral (drama ou tragédia)
e até mesmo um roteiro cinematográfico.
Os leitores do Romantismo gostam das novidades,
do estranhamento e identificam-se com personagens e
imaginação sem limite. A arte não se justifica mais como
imitação da natureza (o conceito neoclássico da "mimesis"
aristotélica), mas como a expressão inspirada da alma, na
emoção do artista, espécie de intermediário entre os homens e
os deuses da criação.
121
AZEVEDO, Álvares de. Obra Completa, volume único.
Organização Aleixei Bueno; textos críticos, Jaci Monteiro...(et al)
– RJ,Nova Aguilar, 2000, p. 17
Em 1862, foi publicada pela Garnier, das Obras do
poeta em três volumes, com reedição no mesmo ano.
Na sessão do dia 23 de maio de 1852, numa sociedade
filosófica de que Álvares de Azevedo era sócio, ouviu-se um
discurso: “A mão mirrada e certeira da Morte, desfechando
medonho golpe sobre uma das mais lisonjeiras esperanças da
nossa Sociedade e da Pátria, nos obriga a chorar neste recinto
de luto e de tristeza o pensamento do nosso mui caro patrício
e consócio Manuel Antônio Álvares de Azevedo”
(AZEVEDO, A. (1942), p. 36). 122
CONCLUSÃO
À mística litania
que oraste na igreja, à sua
serena Virgem Maria,
aos versos feitos à lua,
ao lírio que fenecia
(...)
À catedral que gradua
a vida (e um sino batia...)
(...)
e o branco luar debrua,
às rosas de tez macia,
às violetas, em que sua,
gota a gota, água alvadia,
ao céu que te apazigua,
à morte que te arrepia,
(...)
à Dona morta, alva, esguia,
nesse gesto em que a situa
estro, tua poesia...
Heli Menegale
123
As citações sobre o poeta Alphonsus Guimaraens foram retiradas da
antologia: GUIMARAENS, Alphonsus de. Melhores poemas. / Seleção
de Alphonsus de Guimaraens Filho.4a. ed. São Paulo: Global, 2001.
No dia 15 de julho do mesmo ano, após quase dois
meses da morte de Constancinha, o coração descompassado
do poeta de Mariana pára. Os sinos da Catedral choram os
lúgubres responsos, anunciando a morte de Alphonsus de
Guimaraens, poeta simbolista, cantor do Amor e da Morte.
Sua obra consta das seguintes publicações, em
poesia: Setenário das Dores de Nossa Senhora, Câmara
Ardente, Dona Mística (todas publicadas em 1899), Kiriale
(1902) e Pastoral aos Crentes do Amor e da Morte
(publicação póstuma (1923), organizada por seu filho João
Alphonsus); em prosa: Mendigos (1920).
2. O SIMBOLISMO
127
Jean-Nicolas Arthur Rimbaud (Charleville, 20 de outubro de 1854 -Marselha,
10 de novembro de 1891) foi um poeta francês. Produziu suas obras mais famosas
quando ainda era adolescente sendo descrito por Paul James, à época, como "um
jovem Shakespeare". Como parte do movimento decadente, Rimbaud influenciou
a literatura, a música e a arte modernas. Era conhecido por sua fama de libertino e
por uma alma inquieta, viajando de forma intensiva por três continentes antes de
morrer de um câncer aos 37 anos de idade.
128
FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica moderna. Trad. Marise N. Curioni,
São Paulo: Duas Cidades, 1978.
Rimbaud, Paul Verlaine 129 (1844-1989) e Stephane
Mallarmé (1842-1867) 130 são os paradigmas do Simbolismo,
cuja maior fonte foi Baudelaire. Verlaine renovou a poesia,
abandonou as regras da versificação, recorrendo
especialmente ao verso ímpar, "mais solúvel no ar", e criou
uma poesia moderna, pela profundeza do canto e seu gosto
pela confidência. Gênio do sonho e das sutilezas da alma,
Verlaine inventou uma poesia fluida e musical graças a um
uso sutil do ritmo. Mallarmé defendia a ausência de uma
lírica do sentimento e da inspiração; a fantasia guiada pelo
intelecto; o aniquilamento da realidade e das ordens normais,
tanto lógicas como afetivas; o manejo das forças impulsivas;
a sugestionabilidade em vez da compreensibilidade. Para este
poeta francês “poetar significa renovar tão radicalmente o
originário ato criativo da linguagem que o dizer seja sempre
dizer o que não foi dito até então” (FRIEDRICHI, Hugo,
1978, p.117) 131 e ainda que poetar significa portanto “evocar
o objeto calado numa obscuridade propositada por meio de
palavras alusivas jamais diretas” (IDEM, p. 118).
A partir desses poetas, a poesia ocidental vive um
momento em que a objetividade e o tom escultural do
Parnasianismo cedem lugar à evocação sugestiva e musical.
129
Paul Marie Verlaine (Metz, 30 de Março de 1844 - Paris, 8 de Janeiro de
1896).A publicação da antologia Les poètes maudits, organizada por Paul
Verlaine, em 18841, junto com o Manifeste du Symbolisme, de Jean Moréas,
publicado em 1886, nas páginas do jornal “Le Figaro” marcam o nascimento do
Simbolismo europeu, representando os documentos fundadores da nova estética
literária que dominou o período compreendido entre os séculos XIX e XX,
influenciando, em larga escala, a poesia de diversas literaturas nacionais.
130
Stéphane Mallarmé, cujo verdadeiro nome era Étienne Mallarmé, (Paris, 18 de
Março de 1842 - Valvins, comuna de Vulaines-sur-Seine, Seine-et-Marne, 9 de
Setembro de 1898) - poeta e crítico literário francês.
131
FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica moderna. Trad. Marise N.
Curioni, São Paulo: Duas Cidades, 1978.
Em lugar da exatidão, o vago predominou. A palavra sofre
um esvaziamento de conteúdo, valendo pela sugestão verbal.
O procedimento comparativo, tão comum ao romantismo e ao
Parnasianismo, é suprimido. As imagens não são mais
paralelas, superpõem-se em riqueza associativa. Por outro
lado, a musicalidade volta a ser cultivada. A palavra, antes
presa a uma sintaxe ordenada – reflexo de uma concepção do
mundo com estrutura lógica -, com a opção do simbolista
pelo indefinido e pelo mistério, liberta-se da ordem frasal e
carrega-se de subjetividade irracional. Ela passa, então, a
valer pela sonoridade, pois atribui-se a sons e ritmos a
propriedade de estimular imaginação para que a Ideia seja
apreendida. Os últimos entraves da métrica tradicional são
rompidos, surge o verso livre, conquista da modernidade
poética.
Em síntese, são características da arte simbolista:
linguagem vaga, fluida, que prefere sugerir a nomear;
utilização de substantivos abstratos, efêmeros, vagos e
imprecisos; Subjetivismo e teorias que se voltam ao mundo
interior; interesse pelo particular; antimaterialismo, anti-
racionalismo em oposição ao positivismo; misticismo,
religiosidade, valorização do espiritual para se chegar à paz
interior; pessimismo, dor de existir; interesse pelo indefinido
e pelo mistério; desejo de transcendência, de integração
cósmica, deixando a matéria e libertando o espírito; interesse
pelo noturno, pelo mistério e pela morte, assim como
momentos de transição como o amanhecer e o crepúsculo;
interesse pela exploração das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e pela loucura;
alienação do social; flexibilidade formal; arte pela arte;
presença abundante de metáforas, comparações, aliterações,
assonâncias e sinestesias.
2. 1. O Simbolismo no Brasil
(...)
Volvo o peito para tuas Dores
E o coração para as Sete Espadas...
Dá-me, Senhora, para teus louvores
A paz das Almas bem-aventuradas.
(...)
Adorar-te, Senhora, se eu pudesse
Subir tão alto na hora da agonia!
Sê propícia para minha prece,
Mãe dos aflitos...
Ave, Maria.
(p.58/59)
A musicalidade mística está sempre ativa, ou como
“antífona”, (cantos, na missa, em que os coros se alternam)
ou “Epífona” (Idem p.70/71). Esta última é uma figura da
notação musical neumática, isto é, uma melodia curta,
vocalizada sem palavras ou sobre a última sílaba da última
palavra: Nossa-Senhora, quando meus olhos/ Semicerrados,
já na agonia, / Não mais louváramos vosso olhos.../ Valei-
me, Virgem Maria.// Por entre escolhos, por entre sirtes,/
Consolai os meus olhos tristes. / (...)/ Valei-me, virgem
Maria./ (...)/ Auxiliai os meus braços tristes./ (...)/ Valei-me,
virgem Maria./ (...)/Consolai os meus olhos tristes. / (...) /
Valei-me, virgem Maria./ (...)/Sede guia aos meus passos
tristes ( Idem p.70/71).
Assim, a poesia é sensação e música, vida e morte, fé
e amor, transcende do “eu” lírico para alguma coisa fora dele
e eleva a alma de quem consegue sentir as impressões do
momento poético.
Às vezes, também, o drama pessoal do poeta evoca a
dor do momento da cerimônia do funeral:
4. SIMBOLISMO E METALINGUAGEM
133
LEFEBVE, Maurice-Jean. Estrutura do discurso da poesia e da
narrativa. Trad. José Carlos Seabra Pereira. Coimbra: Livraria Almedina,
1980.
Manda a que venham terra e céu para adorá-la... / Morre no
seu olhar a vida dos sentidos (Idem p.34).
As misteriosas olheiras de opala sugerem na própria
simbologia da cor OPALA (com sua tonalidade azulada e
leitosa, mas que, conforme a incidência de raios luminosos
apresenta cores vivas e variadas) uma multiplicidade de
sentidos, isto é, o cinza-azulado, em torno dos olhos, devido
ao cansaço, pode aludir à pluralidade da poesia simbolista
marcada pelas impressões das cores e músicas, amores
naufragados pelo destino, insônia e enigmas que aguçam as
significações. Esta poesia tem uma feição metafísica, pois sua
razão de ser transcende a terra, o céu e está carregada de
sentidos.
Portanto, o “eu” lírico sugere: Mesmo calada, quem a
vê julga escutá-la, / Pois canta o seu olhar pelos nossos
ouvidos./ De que estrela lhe desce a voz? Quando se cala, /
Que rumor de orações nos olhos doloridos! (Idem p.34). A
poesia simbolista conhece o segredo da sintaxe invisível,
possui “a sabedoria do que ficou não dito, do que ficou à
margem ou talvez no centro, o que, por ser mais denso, não
pôde subir à superfície do rio da linguagem. Esta é, pois, uma
palavra que tem sabedoria poética, que traz em si, motivados,
os sentidos da língua e da linguagem, que diz e não diz,
dizendo” (Teles, G. M.1989, p.13). 134 Os textos simbolistas
põem em prática a música do silêncio, com suas contradições
e mistérios, metaforizados nos versos: Mesmo calada, quem
a vê julga escutá-la, / Pois canta o seu olhar pelos nossos
ouvidos/(..) rumor de orações nos olhos doloridos! ( Idem
p.34).
134
TELES, Gilberto Mendonça. Retórica do silêncio I. Rio de Janeiro,
José Olympio, 1989.
Os catorze versos deste soneto suscitam o ser da
poesia simbolista, pronunciado por silêncio, alegoria e
mistério: Marmoreamente branca, imaculada e fria. Ou tem
por entre o nimbo estrelado do sonho/ A áurea Revelação de
outra Virgem Maria (p.34).
Sobre a cor branca, Chevalier & Gheerbrant instruem:
“O branco é a cor dos primeiros passos da alma, antes de
alçar vôo (...). O branco é a cor da alvorada – esse momento
vazio total entre a noite e o dia, quando o mundo onírico
recobre ainda toda realidade (...) coloca-se às vezes no início
e, outras vezes, no término da vida diurna e do mundo
manifesto, o que lhe confere um valor ideal. Mas o término
da vida – o momento da morte é momento transitório, situado
no ponto de junção do visível e do invisível e, portanto, é um
outro início. (...) o branco é a cor dos mortos. Sua
significação ritual vai mais longe ainda: cor dos mortos serve
para afastar a morte. Atribui-se ao branco um poder curativo
imenso. Frequentemente, nos ritos de iniciação, o branco é a
cor da primeira fase, a luta contra a morte” (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 1990, p. 143). 135 A partir da simbologia
dessa cor, podemos entender o porquê da preferência do
branco pelos simbolistas: é a cor do momento iniciático da
arte simbolista, ou seja, representa o instante que principia a
cerimônia pela qual o poeta imerge nos mistérios da doutrina
simbolista e vivencia poeticamente os princípios dessa
construção artística, que se consagra como uma verdadeira
religião. Assim, no momento da criação, o amanhecer poético
produz um toque musical, Marmoreamente branco, cheio de
vida e morte imaculada e fria. O poema surge entre as
brumas da alvorada e segue sua canção de sentidos e
135
CHEVALIER, J. & CHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos.
Trad. Vera da Costa e Silva, et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.
sensações que transportam o leitor para o mundo do místico e
do etéreo.
Diante do exposto, o poema “O mistério imortal das
olheiras de opala” pode sugerir uma reflexão sobre a
construção da própria poesia simbolista. Sobre a posição
metalinguística do texto artístico, Maurice-Jean Lefebve
(1980) esclarece que a arte possui um “duplo movimento: o
primeiro denominado centrífugo e pelo qual ela se abre ao
mundo exterior e aos seus problemas e o segundo, centrípeto,
que tende, pelo contrário, fechar a obra sobre si mesma, a
constituí-la como seu próprio fim e como seu próprio
sentido” (MAURICE-JEAN LEFEBVE, (1980) p. 14). 136
Considerando este duplo movimento do poema,
tomamos como modelo o texto “Ouvindo um trio de violino,
violeta e violoncelo” (Idem p.46). Inicialmente, poderíamos
ver a presença da noiva morta, transfigurada na poesia:
136
LEFEBVE, Maurice-Jean. Estrutura do discurso da poesia e da
narrativa. Trad. José Carlos Seabra Pereira. Coimbra: Livraria Almedina,
1980.
No entanto, mais do que um canto de amor para a
mulher dos sonhos do poeta, o texto sugere uma explosão de
um lirismo que se pode cantar e professar a si mesmo, a partir
do primeiro verso: Simbolicamente vestida de roxo. O roxo,
apesar se ser conhecido como a cor da paixão, da dor e da
morte é a cor da temperança, fica entre o rubro e o violáceo, é
a cor violeta, feita em proporção igual do vermelho e do azul,
“de lucidez e ação refletida, de equilíbrio entre a terra e o
céu, os sentidos e o espírito, a paixão e a sabedoria”.
(CHEVALIER & GHEERBRANT, (1990), p. 960). 137 Esta
cor exprime o Simbolismo, pois é a cor de um dos quatro
elementos constitutivos do universo: “o branco, a terra; o
verde, a água; o vermelho, o fogo e a violeta, o ar (...) A cor
violeta é geralmente considerada como um símbolo da
Alquimia e pode indicar uma transfusão espiritual... a
influência exercida de homem para homem pela sugestão,
persuasão, influência hipnótica, mágica enfim (...) representa
a passagem outonal da vida à morte (...) eis porque Jesus
veste uma túnica violeta durante a paixão, ou seja, quando ele
assume completamente sua encarnação, e que, no momento
de realizar o seu sacrifício (...) filho da terra que irá redimir,
com o Espírito celeste, ao qual retornará. É esse mesmo
simbolismo que cobre o coro das igrejas de violeta às Sextas-
feiras Santas. Pela mesma razão, inúmeros evangeliários,
livros de salmos e breviários, (...) são escritos com letras
douradas sobre um pergaminho violeta” (Idem, p.960). Por
esse motivo, o roxo passou a simbolizar a cor do luto nas
sociedades ocidentais. Na verdade, ele evoca não a morte
enquanto estado, mas da morte enquanto passagem.
137
CHEVALIER, J. & CHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos.
Trad. Vera da Costa e Silva, et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.
Todos esses simbolismos da cor violeta explicitam as
sugestões evidenciadas nos versos que poetizam esse mundo
de transcendência da própria poesia. Aparentemente o “eu”-
poético fala de uma mulher morta vestida de roxo e senhora
de um amor infinito que a tornou divina. No entanto, mais
precisamente, esse “eu” lírico pode estar tocando mesmo um
trio de violino, violeta e violoncelo (isto é, realizando um
ludismo linguístico e temático) e pondo em prática as
propriedades da poesia simbolista: a música, a
transcendência, o rito de passagem da morte para a vida,
como num momento de êxtase e criação, num processo
alquímico, numa realização da magia da linguagem como
pensava Baudelaire.
Sobre essa magia, Hugo Friedrich ponderou que “O
material sonoro da língua assume um poder sugestivo. Em
combinação com um material léxico apropriado para os
movimentos associativos, abre infinitas possibilidades de
sonho. (...) a linguagem determina também o processo
poético que se abandona aos impulsos ingênitos na própria
linguagem. Descobre-se a possibilidade de criar um poema
por meio de um processo combinatório que opere com os
elementos sonoros e rítmicos da língua como fórmulas
mágicas. (...) O lírico se converte em mágico do som”
(HUGO FRIEDRICH,1978, p.50). 138 Esse procedimento da
poesia de Baudelaire, enfocado por Friedrich, está presente
nesse poema em análise. Palavras como violino, violeta,
violoncelo, vestida, vestido, vida, vi, vieram, por exemplo,
além da aliteração (repetição do V), os seus significados
surgem não do esquema temático desta combinação, mas de
um significado oscilante, impreciso, cujo mistério ganha
138
FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica moderna. Trad. Marise N.
Curioni, São Paulo: Duas Cidades, 1978.
corpo, não apenas pelas significações essenciais das palavras,
mas por suas forças sonoras e marginalidades semânticas.
Enfim, este poema exprime, antes de tudo, sugestão e
hermetismo.
140
Immanuel Kant (Königsberg, 22 de abril de 1724 — Königsberg, 12 de fevereiro de
1804) foi um filósofo prussiano. Amplamente considerado como o principal filósofo da era
moderna, Kant operou, na epistemologia, uma síntese entre o racionalismo continental (de
René Descartes, Baruch Espinoza e Gottfried Wilhelm Leibniz, onde impera a forma de
raciocínio edutivo), e a tradição empírica inglesa (de David Hume, John Locke, ou George
Berkeley, que valoriza a indução).
141
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
142
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (Estugarda, 27 de agosto de 1770 -Berlim, 14 de
novembro de 1831) foi um filósofo germânico. Considerado o maior filósofo da história, sua
obra Fenomenologia do Espírito é tida como um marco na filosofia mundial e na filosofia
alemã. Hegel pode ser incluído naquilo que se chamou de Idealismo Alemão, uma espécie
de movimento filosófico marcado por intensas discussões filosóficas entre pensadores de
cultura alemã (Prússia) do final do século XVIII e início do XIX. Essas discussões tiveram
por base a publicação da Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant.
matéria prima dos simbolistas. Alphonsus fez da Imaginação
e Fantasia mecanismos de evolução e criação de sua obra
poética. O poema “Ismália” (Idem p. 101) confere, ao poeta,
os louros de um simbolista singular:
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
(...)
E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...
6. 1. O silêncio da lua
143
MACHADO, José Pedro. Dicionário onomástico etimológico da
Língua Portuguesa.Vol.I e II.Lisboa: Editorial Confluência. 2004.
A imaginação provocada pelo êxtase poético conduz
o poeta a contemplar o silêncio da lua e a classificá-la
conforme o ambiente: É uma lua de acompanhar-se
enterros. / De ver caixões banhados de luz branca./
Caminham virgens nuas pelos cerros,/ E o luar é um rio
ideal que não se estanca./ Afunda-se entre as nuvens o
minguante.// Na treva a terra sonha, o céu é mudo.../ Ai
pobre cavaleiro andante,/ No céu, no céu perdeste o teu
escudo!/ (p.79).
De acordo com o Dicionário de Símbolos “a Lua é um
símbolo dos ritmos biológicos: astro que cresce, decresce e
desaparece, cuja vida depende da lei universal do vir-a-ser,
do nascimento e da morte... o tempo vivo, do qual ela é a
medida, por suas fases sucessivas e regulares. A lua conhece
uma história patética, semelhante à do homem... mas sua
morte nunca é definitiva... Este eterno retorno às formas
iniciais, esta periodicidade sem fim fazem com que a lua seja
por excelência o astro dos ritmos da vida... Ela controla todos
os planos cósmicos regidos pela lei do vir-a-ser cíclico:
águas, chuva, vegetação, fertilidade...” (Idem. CHEVALIER
& GHEERBRANT, 1990, p. 561). A partir destas
informações sobre a posição alegórica da lua, pode ser
entendida a fixação dos simbolistas pela imagem da lua e, de
maneira especial, o poeta em estudo. A lua para Alphonsus
foi fonte de inspiração, companheira, confidente, irmã de
sonhos e fantasias e sempre esteve presente em seus
momentos mais poéticos, como testemunha o soneto “Era
noite de lua na minh’alma”:
Era noite de lua na minh’alma
Quando surgiste pela vez primeira:
Em cada estrela, pelo azul em calma,
Florescia uma flor de laranjeira.
(...)
(p.108).
144
GUIMARAENS, Alphonsus de. Melhores poemas. / Seleção de
Alphonsus de Guimaraens Filho.4a. ed. São Paulo: Global, 2001.
eu vi a lua cintilar.
(...)
A abóbada celeste,
que se reveste
de astros tão belos,
era um país repleto de castelos.
(...)
envolta num sudário alvíssimo de lã,
como se fosse
a mais que pura Virgem Maria..
Lua serena, tão suave e doce,
do meu eteno cismar,
(...)
E pude ver-te, contemplar-se pude,
como a imagem da virtude
e da pureza,
cheia de luz,
como
Santa Teresa
de Jesus.
(p.161/162)
CONCLUSÃO
VI - EU E OUTRAS POESIAS
DE AUGUSTO DOS ANJOS
Sofro acelaradíssimas pancadas
No coração. Ataca-me a existência
A mortificadora coalescência
Das desgraças humanas congregadas!
..............................................................
Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto
(Augusto dos Anjos)
Turbilhão teológico incoercível,
Que força alguma inibitória acalma,
Levou-me o crânio e pôs-lhe dentro a palma
Dos que amam apreender o Inapreensível!
.....................................................................
Sistematizo, soluçando, o Inferno...
E trago em mim, num sincronismo eterno
A fórmula de todos os destinos!
(Augusto dos Anjos)
Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia
roa
Todo o meu coração, depois da
morte?!
1. PRÉ-MODERNISMO
1. 1. O panorama da época
146
VIDAL, Ademar. O Outro Eu de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro,
José Olympio. 1967.
palavras acerca das tendências poéticas da época em que ele
produziu os seus versos, isto é, de 1900 a 1914.
2. 1. O Parnasianismo
2. 2. O Simbolismo
147
MALLARMÉ, Stéphane. Oeuvrer Complètes. Paris, Gallimard,
Bibliothèque de La Plèiade, 1945.
A poesia simbolista procura aproximar-se, sobretudo
da música. Os versos buscam as sonoridades que resultam na
repetição de consoantes (aliterações) e de vogais
(assonâncias).
A inovação simbolista foi sufocada pela euforia
capitalista, pelo avanço científico e tecnológico. Neste
contexto, surge um período de prosperidade, de acúmulo de
prazeres materiais denominados “Belle Epoque”. A burguesia
aplaude os versos que cantam a beleza e a perfeição. O
espírito do belo suplantou o Simbolismo que foi
desvalorizado, mas abriram caminho para novas correntes
artísticas do século XX, principalmente o Expressionismo e o
Surrealismo que também se preocuparam com a expressão
das zonas inexploradas da mente, do inconsciente e da
loucura.
Neste período de transição, surge Augusto dos Anjos
que começou a escrever sob a influência do Parnasianismo
(1900); porém, seus versos mais maduros aproximam-se do
Simbolismo. Este poeta fez, através de sua poética, um
retrato deste período transitório entre o século XIX e XX.
Retratou seu tempo, sua época, pontuada de códigos literários
velhos e novos e uniu numa só obra as mais variadas estéticas
literárias. Desta maneira, o poeta pré-modernista representou
com maestria este período entre séculos marcadamente
sincrético e movimentado.
.................................
(ANJOS, Augusto, 1997, p. 171) 149
149
Todas as citações de poemas desse estudo sobre Augusto dos Anjos
foram retirados de: ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira. 1997.
A poesia de Augusto dos Anjos reflete a Filosofia e a
Ciência do final do século XIX. Para este poeta não há Deus
nem esperança, há apenas a supremacia da ciência; e, o ser
humano, as energias que o geraram, as substâncias, a matéria
de que ele é feito (células, sangue, carne, instinto), são
arrastadas para a decomposição, para a podridão, para o mal,
para o fim e para o nada.
Porém, o “nada” decantado por Augusto dos Anjos
não representa apenas o fim da vida, mas também, uma outra
face do ser que nos lembra as palavras de Michel Zeraffa
quando diz: O nada é a outra face do ser, e a morte a outra
face da vida, esta não pode ser recusada, nem evitada.
(ZERAFFA, M. 1971 p. 287). 150Desta maneira, de acordo
com o poeta, fatalmente o ser humano, desde o momento da
epigênese, está condenado às dores da existência e fadado ao
nada. Augusto dos Anjos não nega que o homem é um ser
que caminha para a morte e que o verme é - este operário das
ruínas - / Que o sangue podre das carnificinas / Come, e à
vida em geral declara guerra. O ser vivo é condenado à
decomposição da matéria.
A poesia do autor de EU é marcada pela união de
duas concepções de mundo distintas: de um lado, a dor
cósmica, que busca o sentido da existência humana; de outro,
a objetividade do átomo, a experiência físico-química.
Augusto dos Anjos é um poeta que não se filiou a
nenhuma Escola, mas sua poesia tem a objetividade, o
positivismo e o pessimismo dos realistas; o cientificismo e o
determinismo dos naturalistas; uma preocupação com a forma
quase que parnasiana; o esoterismo e ontologismo dos
simbolistas, além de nuances expressionistas e outros traços
150
ZERAFFA, Michel. Personne et. Personagem. Paris, Klincksick.
1971.
estéticos que anteciparam a modernidade. A sua poesia
antilírica, antipoética, isenta de sentimentalismo, abriu
discussão sobre os conceitos da “boa poesia”, e preparou o
terreno para a grande renovação modernista.
Este poeta utilizou uma poesia formalmente
trabalhada, em linguagem cientificista-naturalista e, ao
mesmo tempo, assinalada por uma popularidade acima das
expectativas. O que mais aproximou o autor de EU da grande
massa de leitores foi sua temática em torno das incertezas do
século XX, do medo da guerra, sua angústia em face de
problemas e distúrbios pessoais e seu pessimismo
schopenhauereano.
Augusto dos Anjos foi incluído numa modalidade de
poetas chamados, há um tempo, cientificistas e filosofantes.
151
HOUAISS, Antônio. Augusto dos Anjos. Poesia. Rio de Janeiro, Agir.
1968.
Este autor é um vate que registrou poeticamente seu
tempo, sua realidade, seu mundo. Através de fortes imagens,
poéticas e antipoéticas, não tiveram medo de revelar a
realidade do homem que conheceu. Para tanto, usou a
Ciência, a Filosofia, a Arte e a própria experiência de vida.
Deste conjunto, nasceu o EU e outras poesias, com seus
textos densos, profundíssimamente hipocondríacos, tensos,
doloridos, mas, antes de tudo, verdadeiros, realistas.
Dentro desta óptica reveladora do homem e do
mundo, Augusto desnudou um universo de imagens
degradantes e hediondas relativas à cidade. O poeta vivendo
no início do século XX presenciou o fenômeno das grandes
aglomerações humanas da cidade que, além de seu
crescimento normal, começava a inchar-se com as
populações rurais que procuravam melhores condições de
vida, nos centros mais populosos. Desta forma, assistiu ao
movimento migratório que teve graves consequências nos
anos seguintes e que se estende aos nossos dias.
João Pessoa, Recife, Rio de Janeiro foram as cidades
grandes assistidas pelo poeta que, captou seu mundo,
principalmente o noturno e registrou suas paisagens
degradadas, os prostíbulos, as estações rodoviárias, as
tavernas e os cemitérios. No poema Os Doentes, o poeta diz:
Na quarta, os indígenas:
A civilização entrou na taba
Em que ele estava. O gênio de Colombo
Manchou de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba!
(Idem p. 110)
(Idem p. 119)
........................................
152
SCHOPENHAUER. Dores do Mundo. Rio de Janeiro, Ediouro. s/d.
uma verdade que nem sempre a poesia quer expressar.
Augusto dos Anjos não teve medo de mostrar o mundo sem
máscaras, sem véus, sem cortinas. O autor de EU e outras
poesias desvela científica e ontologicamente a sociedade e a
existência humana.
2. 3. 1. Formas
2. 3. 2. Temas
Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
154
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi.
São Paulo: Martins Fontes, 1998.
pp. 293-94); nesse caso a paiavra quer dizer
fenomenismo. Em outros casos, é empregada para
indicar as atitudes dos que negam determinados
valores morais ou políticos. Nietzsche foi o único a
não utilizar esse termo com intuitos polêmicos,
empregando-o para qualificar sua oposição radical
aos valores morais tradicionais e às tradicionais
crenças metafísicas: "O N. não é somente um
conjunto de considerações sobre o tema 'Tudo é
vão', não é somente a crença de que tudo merece
morrer, mas consiste em colocar a mão na massa,
em destruir. (...) É o estado dos espíritos fortes e
das vontades fortes do qual não é possível atribuir
um juízo negativo: a negação NIRVANA 713
NOLIÇÃO ativa corresponde mais à sua natureza
profunda" (Wille zurMacht, ed. Krõner, XV, § 24)
(ABBAGNANO, Nicola. (1992) p. 712).
155
FERREIRA, Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1980.
processo de deterioração, vislumbrando nada mais que a
morte para seu futuro. Seguindo essa mesma linha
negativista, o soneto Versos Íntimos acrescenta que:
156
SCHOPENHAUER. Dores do Mundo. Rio de Janeiro, Ediouro. s/d.
uns dos outros e lhes brada: “Sofrer, morrer, é o vosso
destino; portanto fuzilem-se, canhoneiem-se
mutuamente!” e eles assim procedem.
(SCHOPENHAUER. S/D. p. 43).
157
Op.cit
Assim como sob o ponto de vista físico o andar
não é mais do que uma queda sempre evitada, da mesma
maneira a vida do corpo é a morte sempre suspensa, uma
morte adiada, e a atividade do nosso espírito um tédio
sempre combatido... É preciso enfim que a morte triunfe,
pois lhe pertencemos pelo próprio fato do nosso
nascimento e ela não faz senão brincar com a presa antes
de a devorar (SCHOPENHAUER. S/D. p. 43).
(Idem p. 81)
158
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética. São Paulo,
Abril Cultural, 1982.
Nesta primeira estrofe, a sombra fala da sua origem,
usam uma linguagem científica e erudita como monera e
pólipo. Monera é um vocábulo que significa único, solitário
e, também, é um organismo unicelular. Para Ernest Heinrich
Haeckel (1834-1919), 159 biólogo e pensador alemão,
defensor da unidade do universo - monismo), é a primeira
forma orgânica de vida. Seu livro Os Enigmas do Universo
(1900) exerceu grande influência sobre Augusto dos Anjos.
Este poeta assimila o pensamento do biólogo alemão, no
sentido de que, no texto, monera refere-se à origem de todos
os seres que habitam o Universo, inclusive o Homem - Do
cosmopolitismo das moneras. Pólipo ou polipo (Augusto dos
Anjos sempre empregava esta palavra como se fosse
paroxítona, no entanto, a pronúncia proparoxítona é
recomendada por muitos lexicógrafos) é um animal
metazoário do ramo dos celenterados; o vocábulo está no
significado de polvo, ou de um animal que possui muitos
tentáculos e reentrâncias. Porém, no poema, o significado não
é denotativo, é uma metáfora para a mobilidade da Sombra.
O poeta acrescenta à mobilidade da sombra a
metáfora de larva do caos telúrico. O vocábulo “larva”, por
sua vez, significa, ‘fantasma’, ‘máscara’. Entre os antigos
romanos, espírito malfazejo de um morto que vagueava entre
os vivos para aterrorizá-los (FERREIRA, A. B. H. 1990 p.
821). 160 Desta forma, esta palavra, tanto no sentido
denotativo, quanto no conotativo, tem o significado de
159
Ernst Heinrich Philipp August Haeckel (Potsdam, na Prússia,
Alemanha, 16 de fevereiro de 1834 - Jena, 9 de agosto de 1919) biólogo,
naturalista, filósofo, médico, professor e artista alemão que ajudou a
popularizar o trabalho de Charles Darwin e um dos grandes expoentes do
cientificismo positivista. Descreveu e nomeou várias espécies novas,
mapeou uma árvore genealógica que relaciona todas as formas de vida.
imprecisão de forma, flutuação e, portanto, uma sombra nas
palavras do poeta, um “pólipo” que se move
assustadoramente de um lugar para outro.
O último verso desta sextilha - da substância de todas
as substâncias - a sombra expõe sua origem e deixa patente
que procede da substância original das quais todas também
procedem. Todas as substâncias vêm daquele foco de onde
deriva o universo todo, o cosmo - cósmico segredo -
monisticamente, unitariamente; uma vez que segue a doutrina
monística, segundo a qual, o conjunto das coisas pode ser
reduzido à unidade, quer do ponto de vista de suas
substâncias, quer do ponto de vista das leis pelas qual o
universo se ordena. Desta maneira, a substância não nasce
apenas do caos telúrico, mas do cósmico segredo, do gênese
universal, do princípio de tudo, do que ainda não tinha sido
devassado pelo conhecimento humano.
Na segunda estrofe do monólogo a Sombra
afirma:
A simbiose das coisas me equilibra,
Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios...
E é de mim que decorrem, simultâneas,
A saúde das forças subterrâneas
E a morbidez dos seres ilusórios! (p. 75)
É a vida.
4. 1. O engenho Pau-D’Arco
II
A meu Pai morto
(Idem p. 135)
CONCLUSÃO
1. ITINERÁRIO
Nasci na Rua da Ventura
Colegial na Soledade,
Vai pisando a Rua da Aurora,
primairmã da Rua do Sol,
e chega à Rua da Saudade,
todas elas formando um halo
em torno à Rua da União.
No dia 19 de abril de 1886, na Rua da Ventura, atual
Joaquim Nabuco, nasce Manuel Carneiro de Souza Bandeira
Filho. Seus pais, Manuel Carneiro de Souza Bandeira e
Francelina de Souza Bandeira.
Em 1890, a família transfere-se de Recife para o Rio
de Janeiro e, a seguir, para Santos, São Paulo e, novamente,
Rio de Janeiro. Depois de passar dois verões em Petrópolis, a
família volta para Pernambuco. Manuel Bandeira frequenta o
colégio das irmãs Barros Barreto, na Rua da Soledade e,
como semi-interno, o de Virgílio Marques Carneiro Leão, na
Rua da Matriz.
Em 1896, a família, mais uma vez muda-se de Recife
para o Rio de Janeiro, onde reside na Travessa Piauí, na Rua
Senador Furtado e depois em Laranjeiras. Manuel Bandeira
cursa o Externato Ginásio Nacional (atual Colégio Pedro II).
A família muda-se para São Paulo em 1903, onde
Manuel Bandeira matricula-se na Escola Politécnica,
pretendendo tornar-se arquiteto. Estuda também, à noite,
desenho e pintura com o arquiteto Domenico Rossi no Liceu
de Artes e Ofícios. Começa ainda a trabalhar nos escritórios
da Estrada de Ferro Sorocabana.
A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
- Bendita a morte, que é o fim de todos os
milagres
(Idem p. 147)
Sua vida era mais frágil que uma flor, que um pássaro,
mas o poeta como um milagre, continuava vivo e registrava este
milagre em versos ardentes de vivência e espera para o fim de
todos os milagres.
165
Op. Cit. BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. in Poesia
Completa e Prosa. ed. Organizada pelo autor. Rio de Janeiro, Ed. Nova
Aguilar S. A, 1996.
O poema “Testamento” (Idem p. 112) demonstra
o lado intimista da poesia bandeiriana. No último verso,
Bandeira classifica-se como “poeta menor”, o que significa
que sua poesia trabalha com temas intimistas. Quando o
poeta é qualificado como “poeta maior” (no caso, Carlos
Drummond de Andrade) significa que este poeta trata de
temas metafísicos ou políticos. Bandeira classifica-se
ironicamente como “poeta menor” talvez porque sua obra, em
certos momentos, busca situações muito pessoais, no caso, a
tuberculose. Sobre esse tema o poeta afirmou:
Tomei consciência de que era um poeta menor;
que me estaria para sempre fechado o mundo das grandes
abstrações generosas; que não havia em mim aquela
espécie de cadinho onde, pelo calor do sentimento, as
emoções morais se transmutaram em emoções estéticas:
metal preciosos eu teria que sacá-lo a duras penas, ou
melhor, aduras esperas, do pobre minério das minhas
pequenas dores e ainda menores alegrias. (BANDEIRA,
1996. p. 40) 166
(Idem p. 15)
168
ANDRADE, Carlos Drummond de. Viola de bolso, in Poesia
Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 394.
Da vida embriaga e exalta. E eu sinto, fibra a fibra,
Avassalar-me o ser a vontade da cura.
A energia vital que no ventre profundo
Da Terra estuante ofega e penetra as raízes,
Sobe no caule, faz todo galho fecundo
E estala na amplidão das ramadas felizes,
Clavadel, 1914
170
ANDRADE, Carlos Drummond de. Viola de bolso, in Poesia
Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 394.
preocupação com a morte e com a presença constante de
familiares e conhecidos (fantasmas sorridentes):
Recife...
171
MELLO E SOUZA, Gilda e Antônio Cândido. Introdução à Estrela
da Vida Inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
como a casa de
[meu avô
Rio 1925
(Idem p. 84)
De repente
nos longes da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
(Idem p. 82)
172
CHEVALIEUR, Jean & CHEERBRANT, Alain. Dicionário de
Símbolos. Rio de Janeiro. José Olímpio. 1990.
da fluidez das formas. O Capibaribe metaforiza o erotismo
que exalava daquele corpo de menino, que se preparava para
fertilidade poética e erótica do homem adulto, que ali já
desabrochava em seu primeiro alumbramento, ao ver uma
moça nuinha no banho. Sua fertilidade seria artística, diria
algum crítico astuto, seus versos são nossos, afirma
Drummond.
De acordo com Jean Chevalier e Allain
Cheerbrant: entre os gregos, os rios eram objeto de culto;
eram quase divinizados, como filhos do Oceano e pais das
Ninfas. Costumava-se oferecer-lhes sacrifícios, afogando, em
suas águas, touros e cavalos vivos. Não se podia atravessá-
los senão após ter cumprido os ritos da purificação e da
prece. Como toda divindade fertilizante, tinham o poder de
submergir, irrigar ou inundar, e de transportar os barcos em
suas águas ou de afundá-los: suas decisões eram sempre
misteriosas. (CHEVALIEUR & CHEERBRANT. 1990.p. 780).173
Na poesia de Bandeira, o sagrado e o profano e seus
alumbramentos se misturam nas águas do rio, com as cheias,
Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu / E nos
pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos /
em jangadas de bananeiras e mais:
Novenas
Cavalhadas
Eu me deitei no colo da menina e ela começou a
passar a mão
[nos meus
cabelos
Capiberibe
- Capibaribe
173
CHEVALIEUR, Jean & CHEERBRANT, Alain. Dicionário de
Símbolos. Rio de Janeiro. José Olímpio. 1990.
(Idem p. 83)
176
CARA, Salete de Almeida. Manuel Bandeira. Literatura Comentada,
Abril, Educação, 1981.
Em alguns poemas como “Desencanto” (idem p. 15),
(1912), época em que Manuel Bandeira escreveu seus
primeiros versos livres, sob a influência de Apollinaire,
Charles Cross e MacFionna Leod, encontramos uma
sonoridade de forma tradicional.
Em “Desencanto” (idem p. 15), os versos distribuem-
se em estrofes regulares ( quatro versos); todos os versos têm
nove sílabas; as rimas são cruzadas (abab).
Bandeira expõe sua experiência com o verso livre da
seguinte forma:
Sino de Belém,
Sino da Paixão...
Sino de Belém,
Sino da Paixão...
Sino do Bonfim!...
Sino do Bonfim!...
Enfunando os sapos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapoboi:
- “Meu pai foi à guerra!”
-“Não foi!” – “Foi!” – “Não foi”.
1918
(Idem p. 39/41)
A plateia berrava em coro, acompanhando o
desenrolar do poema: “Foi, foi não foi”.
Ao terminar, Ronald recebeu a mais estrondosa vaia
que o austero teatro já presenciara. Foi o que os antigos
chamavam: uma tremenda surriada. Quando soube do
acontecido, Bandeira riu gostosamente. E riria sempre que
conseguisse chocar o medíocre ambiente da arte oficial.
Esse poema mostra a ruptura de Manuel Bandeira
com as fórmulas parnasianas e simbolistas e sua adesão ao
Modernismo. “Os Sapos” ilustra bem o antipassadismo, o
antiparnasianismo dos poetas modernistas. Tratando dos
poetas parnasianos, Bandeira refere-se a todos eles como
sapos... quem sabe mesmo, o sapo-boi seja Bilac, cujo pai
realmente lutou no Paraguai.
Em “Os Sapos”, Bandeira satiriza a preocupação
formal, principal característica dos parnasianos e indica que,
enquanto os parnasianos fazem estardalhaço, eles, os
modernistas, trabalham silenciosamente, mal são ouvidos
pelo povo. Na terceira estrofe, o poeta critica “O sapo-
tanoeiro / Parnasiano aguado”. O adjetivo aguado no contexto
do poema significa sem graça e redundante. Aqui o poeta
refere-se a Olavo Bilac e cita versos inteiros do famoso
“Profissão de fé” do Parnasianismo. Para completar a crítica
mordaz, na Sexta estrofe Bandeira expõe a falta de vitalidade
da poesia parnasiana, que aceitou fórmulas preestabelecidas.
Com esse poema o autor fez o “sepultamento poético” da
tradição parnasiana.
De acordo com Alfredo Bosi, “Bandeira foi
naturalmente acolhido pelo grupo da Semana de Arte
Moderna como um irmão mais velho” (tinha 36 anos em
1922) e houve quem o chamasse de “O São João Batista do
movimento”. (BOSI, Alfredo. 1980, p. 408).178
Na verdade, a poesia de Manuel Bandeira serviu como
um batismo para o Modernismo que nascia. Por exemplo,
sua “Poética” batizou uma nova ideia modernista,
substituindo o “Não sabemos o que queremos” dos primeiros
tempos do Modernismo. Observe o poema:
178
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo,
editora Cultrix, 1980.
(Idem p. 75)
179
BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. ed. Organizada pelo
autor. Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar S. A, 1996.
A originalidade reside na profundidade, na marca do
indefinível e no encantamento da descontrução do retrato da
mulher.
Na primeira visão, o eu lírico achou que a “Teresa”
(....) tinha pernas estúpidas (...) cara parecia uma perna. Na
segunda vista, (...) olhos eram muito mais velho que o resto do
corpo/ (Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que
o resto do corpo nascesse). Da terceira vez, o eu poético não
viu mais nada (...) o espírito de Deus voltou a se mover sobre
a face das águas. (Idem. 214)
Assim, o poeta desconstrói a imagem de “Teresa” e
para criar algo diferente, novo, singular, com um significado
original, utilizando o mesmo material que se fragmentou,
rompendo e recriando (do ser da Teresa), no sentido também
usado por Jacques Derrida (1973).
Derrida em suas obras, A escritura e diferença181 e
Gramatologia, 182 que são entendidas como como o marco
inicial da “Desconstrução” e que ele como uma “estratégia”
para a decomposição da Metafísica logocêntrica ocidental que
passa pela filosofia da linguagem.
Desconstruir, na acepção da filosofia de Derrida,
não significa, simplesmente, demolir, pôr abaixo, implodir
algo: ideias, conceitos, posições, princípios, objetivos, meios e
fins.
180
(Chklovski, V. in. EIKHENBAUM, Boris. Teoria da Literatura:
formalistas russos. Trad. A. M. Ribeiro. Porto Alegre: Globo, 1971et. al.
1971,p. 45)
181
Derrida, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz M.N.
da Silva. 3.ª ed., São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002.
182
Derrida, Jacques. Gramatologia. Trad. de Miriam Schnaiderman e
Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973.
Assim, uma leitura desconstrutora não seria a busca
do outro lado da moeda, não seria a negação pura e simples do
que se queria questionar, uma vez que essa estratégia conduz a
um mesmo universo, só que com sinal invertido.
Também, está presente a decomposição da imagem
romântica, idealizada por Castro Alves no poema “Adeus de
Teresa” 183 – musa, bela, apaixonante, assinalada por
inspirações e ações eróticas. Dessa forma, a imagem
romântica é desconstruída, passo a passo, de um olhar para
outro e se transforma numa imagem cheia de estranhamento e
nonada, nos moldes do utilizado por Guimarães Rosa, que
não é simplesmente, a aglutinação de (não+nada), é o desejo
de criar. A descontrução da imagem conduz a visão para
uma imagem do niih, condutor de um caos estranho e
provocador.
Também podemos observar que o poeta partindo dos
preceitos vanguardista, faz com que, a imagem de “Teresa”,
saia da visão retratada pelos “impressionistas que aspiravam
“reproduzir a variedade da vida, registrando a impressão óptica
momentânea” 184 (TORRE, (1974), p. 22) e embrenha-se na
originalidade dos expressionistas que “tendem a visualizar o
eterno, desprezando o mundo das aparências” (Idem, p.22).
Os expressionistas deixam de lado a atitude de passividade
dos impressionistas e estabelecem “ a expressão de uma
realidade espiritual” (Idem p. 22). O Impressionismo “ tende
para uma reprodução. Mais ou menos fiel, das sensações
ópticas provenientes da visão espetacular do universo”. ( Idem
p. 23).
183
CASTRO, Alves. Poesias completas. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.p.34
184
TORRE, Guillermo. História das literaturas de Vanguardas, vol. II,
Lisboa-Portugal, Presença, 1974, p.22.
O Expressionismo tende, de preferência, para o
ideológico, caracterizando-se por uma maior
independência face à natureza e à realidade. Toma em
conta não tanto o mundo exterior e a experiência
individual, como antes a imaginação e o sonho. É a
antítese entre o decorativo e o expressivo, entre a medida
apolínea e o frenesim dionisíaco, entre o classicismo e a
barbárie, entre latinismo e germanismo). (TORRE, 1974,
p. 23)
187
Edvard Munch (Løten, 12 de Dezembro de 1863 — 23 de Janeiro de
1944) foi um pintor norueguês, um dos precursores do impressionismo e
expressionismo alemão.
188
Egon Schiele (Tulln an der Donau, 12 de Junho de 1890 — Viena, 31
de Outubro de 1918) pintor austríaco ligado ao movimento expressionista.
Self-Portrait with Black Vase and Spread Finger(1911)
Egon Schile
Também “A boba”, (1915-16) e “A estudante russa”,
( 1917) de Anita Malfatti 189 e o “Nu cubista” (1927) aquarela
de Isamael Nery, 190 têm imagens analógicas.
189
Anita Catarina Malfatti (São Paulo, 2 de dezembro de 1889 — São
Paulo, 6 de novembro de 1964) pintora, desenhista, gravadora, ilustradora
e professora ítalo-brasileira.
190
Ismael Nery (Belém, 9 de outubro de 1900 - Rio de Janeiro, 6 de abril
de 1934) pintor, desenhista, arquiteto, filósofo e poeta brasileiro de
influência surrealista. Sua obra icônica é Autorretrato, 1927 (Autorretrato
Rio/Paris).
191
Tarsila do Amaral (1928)
191
https://www.bbc.com/portuguese/geral-47808327
A estudante russa, ( 1917) de Anita
Malfatti
192
Salvador Dalí i Domènech, 1º Marquês de Dalí de Púbol (Figueres, 11
de maio de 1904 — Figueres, 23 de janeiro de 1989) pintor espanhol,
conhecido pelo seu trabalho surrealista.
“Galacidalacidesoxyribonucleicacid” (1963)- Salvador Dalli
4. 1. 2. Carnaval
4. 1. 3. O Ritmo dissoluto
Noite Morta
Junto ao poste de iluminação
Os sapos engolem mosquitos.
O córrego chora.
A voz da noite...
4. 2. 1. Libertinagem
194
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo,
editora Cultrix, 1980.
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
4. 2. 2. Estrela da manhã
Virgem malsexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
CONCLUSÃO
INTRODUÇÃO
1. 1. Contexto Histórico
1. 2. Contexto Cultural
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
“A vida só é possível
reinventada.
Só - na treva,
fico: recebida e dada.
No Mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.
E no planeta, um jardim;
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro, uma violeta,
e, sobre a ela, o dia inteiro.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!
3. CARACTERÍSTICAS ESTILÍSTICAS
3. 1. O apuro formal
3. 3. Musicalidade
Cecília Meireles foi amante, estudiosa e cultivadora
da música. A sua obra é um canto poético, uma profissão de
fé ao lirismo auditivo, aos sons líricos que um verso pode
exprimir.
A associação entre a música e a sua poesia está
evidenciada nos títulos de vários poemas denominados de
canção. E, no plural, Canções é o nome de uma de suas
obras, além da combinação inusitada de outra obra
denominada Vaga Música, uma vez que a autora combina o
adjetivo “vaga” com o substantivo “música”. Tal combinação
encaminha para uma ideia de indefinição “vaga”, mas
também para a amplitude sonora. Por outro lado, o
vocabulário “vaga” como substantivo - enquanto sinônimo de
“onda” - sugerindo movimento, introduz o tema mar,
frequente nessa obra e em muitas canções e outros poemas
cecilianos.
Sons musicais e água são os veículos das viagens e
dos sonhos da poetisa e de seu profundo senso de solidão.
Dessa forma, seus versos têm recorte nítido musicalidade,
combinados com flagrantes da vida, que são quase sempre,
associações entre estados de espírito e formas exteriores, que
lhe servem de contraponto e de símbolo. Raras vezes a
poetisa chega ao hermético, mas insiste na presença da
música.
Observe, por exemplo, esta sugestiva “Canção” (Idem
p. 18):
200
MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Apresentação
Alberto da Costa e Silva. São Paulo: Global, 2012.
de sua amante Chica da Silva e o alerta sobre a traição do
Conde de Valadares (XIII a XIX). A ênfase recai na cobiça
do ouro, que torna as pessoas inescrupulosas.
Essa história é apresentada através de um fio
narrativo, em que a ação não chega a sobrepor-se à reflexão.
Acontecem súbitos cortes que determinam a mudança de
ambientes ou figuras. Existe, nos romances, a figura de um
narrador que surge, de vez em quando, para sugerir uma nova
situação dramática.
4. 1. 1. Cenário
e sanefa de damasco
e, no altar, o seu frontal.
........................................
Sete crianças, na capela,
rezavam, cheias de fé,
à grande Santa formosa.
Eram três de cada lado,
os filhos do almotacé.
(Idem p. 47)
Debaixo de cada grupo de estrofes, em redondilhas
menores, aparecem orações devotadas à Nossa Senhora da
Ajuda, pedindo a santa que socorresse a Tiradentes que
estava condenado à forca: (Salvai-o, Senhora,/com o vosso
poder,/do triste destino /
que vai padecer!)
Ó grandes oportunistas,
sobre o papel debruçados,
que calculais mundo e vida
em contos, doblas, cruzados,
que traçais vastas rubricas
e sinais entrelaçados,
com altas penas esguias
embebidas em pecados!
202
TELES, Gilberto Mendonça Teles. Defesa da Poesia. Brasilia: Senado
Federal. Conselho editoria, 2017.
(Ibidm Idem p. 225)
203
A quinta parte do Romanceiro representa um novo plano temporal: D.
Maria I, a mesma que vinte anos antes lavrara as sentenças de morte e
degredo a contemplar com olhos de loucura a terra onde se desenrolou o
drama de soldados, poetas e doutores.
A obra é concluída com a “Fala aos Inconfidentes
Mortos”. Um dos romances mais significativos, o XXIV,
relaciona o ato da confecção da bandeira dos inconfidentes
com todo o movimento que eles preparavam em Ouro Preto.
204
MEIRELES, C. Olhinhos de Gato. São Paulo: Moderna, 1983.
eternidade; e, na obra em prosa, nos conceitos de infância e
de criança.
Há uma mistura de temporalidades: uma autora adulta
que conta suas memórias de infância, a partir de fragmentos
de lembranças, que muitas vezes, em alguns pontos da
narrativa, não está claro se os fatos foram contados a ela ou
se tudo foi realmente foi testemunhado pela escritora, e é
uma real memória. Funde-se o vivido e o ouvido, do real e o
imaginário, o efêmero e o eterno; na construção da memória
de um outro tempo: da infância, do passado distante,
revivido por uma mulher experiente e que tem o poder da
palavra.
Para melhor compreensão do tema transcrevemos um
trecho de uma entrevista da autora para a Revista Manchete,
outubro de 1953:
“Essas e outras mortes ocorridas na família
acarretaram contratempos materiais, mas, ao mesmo
tempo, me deram, desde pequenina, uma tal
intimidade com a Morte que docemente aprendi
essas relações entre o Efêmero e o Eterno que, para
outros, constituem aprendizagem dolorosa e, por
vezes, cheia de violência. Em toda a vida, nunca me
espantei por perder. A noção ou sentimento da
transitoriedade de tudo é fundamento mesmo da
minha personalidade.”
205
(MENEZES, 1953, p. 49).
205
MENEZES, Fagundes de. Silêncio e solidão – dois fatores positivos na
vida da poetisa. Revista Manchete, Rio de Janeiro, 3 out. 1953.
guardou na memória e na poesia tudo o que viu, ouviu e
tocou.
A escritora, comentando sobre suas recordações da
infância, afirmou que:
206
MEIRELES, C. A infância. Publicado no Diário de Notícias, 20 dez.
1930. In: Crônicas de educação. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. v.
1.
variados em suas ocupações e em seus aspectos? Das outras
crianças? Dos objetos? Do ambiente? Da natureza?
(...)
E acrescentava:
207
MEIRELES, Cecília. Poesia Completa. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1993.
..................................................................................
e os grandes cães ladravam como nas noites do
Império.
..............................................................................
E minha avó cantava e cosia. Cantava
canções de mar e de arvoredo, em língua antiga.
E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos
e palavras de amor em minha roupa escritas.
CONCLUSÃO
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
(Idem p. 30)
209
MELO NETO, João Cabral. Morte e Vida Severina e Outros Poemas
em Voz Alta. 12ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio. 1980.
sentimentos dos homens. Sua vontade é dar um grito de paz
através da sua rosa. Este ato é coerente para quem escreveu
dizendo Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. / Ao menino de
1918 chamavam anarquista. / Porém meu ódio é o melhor de
mim. / Com ele me salvo / e dou a poucos uma esperança
mínima. (Idem p. 37).
Nesses versos, de “A Flor e a Náusea”, Drummond
depõe sobre um curioso episódio de sua vida que, graças a
um incidente com um professor de Português, ele seria
expulso do colégio Anchieta, em Nova Friburgo, no Rio de
Janeiro. Tinha Drummond seus 17 anos e nesta ocasião foi
acusado de insubordinação mental e anarquista. O jovem,
denominado revolucionário, tornou-se um dos maiores
poetas da língua portuguesa e o professor de português ficou
na história marcado por sua incoerência e insensatez, por sua
visão retorcida sobre a educação e sobre o homem.
No deserto de Itabira
a sombra de meu pai
tomou-me pela mão.
Tanto tempo perdido.
Porém nada dizia.
Não era dia nem noite.
Suspiro? Vôo de pássaro?
Porém nada dizia.
(Idem p. 94)
210
Dante, perdido numa selva escura, percorre nela toda a noite e então
surge uma a imagem de Virgílio, que o reanima e se oferece a tirá-lo de
lá, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Canto I, abaixo está
escrito: Da nossa vida, em meio da jornada/Achei-me numa selva
tenebrosa/ Tendo perdido a verdadeira estrada./ Dizer qual era é cousa
tão penosa,/ Desta brava espessura a asperidade, / Que a memória a
casas em ruínas, ruas, relógios e baús. No deserto de Itabira/ a
sombra de meu pai
tomou-me pela mão. /Tanto tempo perdido./Porém nada dizia.
/Não era dia nem noite./Suspiro? Voo de pássaro?Porém nada
dizia.// No deserto de Itabira/a sombra de meu pai /tomou-me pela
mão. /Tanto tempo perdido./Porém nada dizia. /Não era dia nem
noite. /Suspiro? Voo de pássaro/ Porém nada dizia.
Pisando livros e cartas, lá vão os dois, o filho
angustiado indagando, o pai silencioso sugerindo mudamente
a necessidade de tais roteiros. Longamente caminhamos. /Aqui
havia uma casa./A montanha era maior. /Tantos mortos
amontoados,/o tempo roendo os mortos./E nas casas em ruína,
/desprezo frio, humildade. /Porém nada dizia. (...) Pisando livros e
cartas,/viajamos na família. Casamentos; hipotecas; os primos
tuberculosos;
a tia louca; minha avó /traída com as escravas,/rangendo sedas na
alcova./Porém nada dizia.
211
Thomas Hobbes (5 de abril de 1588 – 4 de dezembro de 1679) foi um
matemático, teórico político e filósofo inglês, autor de Leviatã (1651) e
Do cidadão (1651). Na obra Leviatã, explanou os seus pontos de vista
sobre a natureza humana e sobre a necessidade de um governo e de uma
sociedade fortes. No estado natural, embora alguns homens possam ser
mais fortes ou mais inteligentes do que outros, nenhum se ergue tão acima
dos demais de forma a estar isento do medo de que outro homem lhe
possa fazer mal. Por isso, cada um de nós tem direito a tudo e, uma vez
que todas as coisas são escassas, existe uma constante guerra de todos
contra todos (Bellum omnia omnes). No entanto, os homens têm um
desejo, que é também em interesse próprio, de acabar com a guerra e, por
isso, formam sociedades através de um contrato social.
212
Hobbes, T., Do Cidadão, São Paulo, Martins Fontes, 1998.
presente, permanecendo dela apenas uma ilusão ou aparência
na mente, tem-se a imaginação ou memória da coisa numa
espécie de fantasia, como uma percepção da percepção
passada, como a “sensação de já ter sentido” (Hobbes, D Co.,
1998, 25,1) que, segundo Nicola Abbagnano, 213 “significa
em relação ao ato de se reconhecer, naquilo que se percebe”.
Poesia sendo memória é uma forma de poetizar o que
ficou para ser re-conhecido, re-sentido, re-vivido. O “eu”
lírico é mais que aquele “ressentido” a que se referia o
próprio Drummond no poema denominado “Conclusão”
(Idem p. 254) que é finalizado com o seguinte
questionamento : se o poeta é um ressentido, e o mais são
nuvens? (Idem p. 254).
Drummond de Andrade é um indivíduo que sente e
re-sente a vida e se recria através da memória. O poeta tenta
recuperar o tempo passado, vencer a distância que o separa
das terras mineiras e da história de sua família, à medida que
percebe que o passado se torna presente, através da herança
legada pelos bens e sangue. Carlos Drummond assume a
captura do passado que, posteriormente, será desvendado
com mais ousadia em Boitempo – Boitempo & A Falta que
Ama, Menino Antigo e Esquecer para Lembrar. Nestas obras,
voltam às reminiscências da infância e juventude, de sua
cidadezinha, dos tempos de colégio, dos primeiros anos em
Belo Horizonte.
Nessa seção “A família que me dei”, a construção
dessa família é formada por antepassados, imagens reais e
fictícias do poeta e também personagens desejados como
213
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi.
São Paulo: Martins Fontes, 1998.
pode ser observado no poema “Ser” (Idem p. 116) que canta
em versos um filho inexistente:
Às vezes o encontro
num encontro de nuvem.
Apóia em meu ombro
seu ombro nenhum.
(Idem p. 116)
214
COUTINHO, Afrânio. Nota editorial à obra completa. In:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Carlos Drummond de Andrade:
poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. p. 51-52.
215
(referência à filóloga portuguesa Carolina Michaëlis). (Lélia Coelho
Frota, Carlos e Mário, 2002, p.128).
Mário de Andrade e Drummond eram amigos e
trocaram extensa correspondência iniciada em 1924 a
partir de um encontro entre os dois em Belo Horizonte, e,
embora tenha sido interrompida em alguns períodos, se
estendeu até a morte de Mário, em 1945.
As cartas trocadas entre os dois foram publicadas
por Drummond, no livro A Lição do Amigo, de 1982. As
missivas são muito importantes para obra poética
drummondeana, pois explicitam opiniões do poeta Mário
de Andrade de sobre o seu “pupilo-amigo na construção do
ser e do poeta, do compromisso ético-estético, da vida
cultural, conforme o próprio Carlos Drummond deixa claro
em sua apresentação ao livro:
Mas fui, sem qualquer dúvida, aquele dos quatro que
mais se correspondeu com Mário, e portanto mais recebeu
dele em bens imponderáveis. Estabeleceu-se
imediatamente um vínculo afetivo que marcaria em
profundidade a minha vida intelectual e moral,
constituindo o mais constante, generoso e fecundo
estímulo à atividade literária, por mim recebido em toda a
existência. Isto sem falar no que esta amizade me deu em
lições de comportamento humano, desvelos de assistência
ao homem tímido e desarvorado, participação carinhosa
nos cuidados de família, expressa em requintes que a
memória e a saudade tornaram indeléveis.”(Drummond,
in FROTA, Lélia Coelho 2002, p. 20) 217
218
ANDRADE, Carlos Drummond de. Carlos & Mário. Correspondência
completa entre Carlos Drummond de Andrade (inédita) e Mário de
Andrade. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002.
abrasileiramento do país, pois os jovens viviam com os olhos
voltados para a Europa. Mário escreveu:
Mas meu caro Drummond, pois você não vê que é todo o
mal que aquela peste amaldiçoada fez a você! Anatole ainda
ensinou outra coisa de que você se esqueceu: ensinou a gente a
ter vergonha das atitudes francas, práticas, vitais. Anatole é
uma decadência, é o fim de uma civilização que morreu por lei
fatal e histórica. Não podia ir pra diante. Tem tudo que é
decadência nele. Perfeição formal. Pessimismo diletante.
Bondade fingida porque é desprezo, desdém ou indiferença.
[...] Fez literatura e nada mais. E agiu dessa maneira com que
você mesmo se confessa atingido: escangalhou os pobres
moços fazendo deles uns gastos, uns frouxos, sem atitudes, sem
coragem, duvidando se vale a pena qualquer coisa, duvidando
da felicidade, duvidando do amor, duvidando da fé, duvidando
da esperança, sem esperança nenhuma, amargos, inadaptados,
horrorosos. Isto é que esse filho-da-puta fez. [...] Você diz que
ele ensinou você a não ser exigente com a vida... Como isso!
Se você se confessa um inadaptado e tem um errado desprezo
pelo Brasil e os brasileiros.
(ANDRADE, 2002. Carta sem data, p. 67-
68)
222
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. In: A importância do ato
de ler: em três artigos que se completam. São Paulo, Cortez Editora.
1981.
jornalista Daniel Defoe (1660 - 1731). A obra é a narrativa
das aventuras de um homem que consegue sobreviver numa
ilha deserta.
O tema de Robinson Crusoé e da ilha aparece várias
vezes na poesia e na prosa de Drummond. Em "Infância", o
“eu” poético descreve seu pai indo e vindo, as negras, o café,
a mãe, o irmão mais novo e se põe apartado de todos
contemplativamente:
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia história de Robinson Crusoé
comprida história que não acabava mais.
(Idem p. 93)
(Idem p. 93)
Esse comportamento gauche é uma variante do
conflito do "eu" versus o mundo. A ilha passa a ser o espaço
ideal e o continente a dura realidade. A ilha de Drummond é
uma espécie de Pasargada de Manuel Bandeira, um lugar da
realização de todos os sonhos impossíveis. A ilha é afinal,
como afirmou posteriormente o próprio Drummond: O
refúgio último da liberdade, que em toda parte se busca
destruir. Amemos a ilha (Andrade, C. D. In: Coutinho (1964)
p. 230). 223
Carlos Drummond de Andrade também sonhou com
sua Pasargada e como disse o próprio poeta, apartar-se para
uma ilha é inaugurar um novo espaço e novo tempo, porque
tempo e espaço ordinários lhe são adversos (...) há muito
sonho essa ilha, se é que não a sonhei sempre (Op. Cit
Andrade, C. D. In: Coutinho (1964) p. 201). Porém, mais
amadurecido, no poema "Mundo Grande" confessa: Outrora
viajei / países imaginários, fáceis de habitar, / ilha sem
problemas não obstante exaustivas e convocando ao suicídio
/ meus amigos foram às ilhas. Ilhas perdem o homem
(Andrade, C. D. In: Coutinho (1964) p. 220).
O primeiro conjunto rítmico de "Infância" (p. 93)
apresenta versos marcados por pontos continuados, a
metaforizar a monotonia e a vida limitada do pai e da mãe:
223
ANDRADE, Carlos Drummond de. In: Coutinho, Afrânio (org.).
Obra Completa Rio de Janeiro. Ed. Aguilar, 1964.
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha mãe
ficava sentada cosendo. / Meu irmão pequeno dormia. / Eu
sozinho menino entre mangueiras / lia a história de Robinson
Crusoé. / Comprida história que não acaba mais. (CDA
Idem p. 93)
O último verso encerra esta estrofe com a imagem da
comprida história do herói da ilha, para contrapor a imagem
da vida limitada dos pais do menino leitor. É o momento em
que lia as histórias de ficção; nesse instante a vida não tinha
limite e, logo em seguida, no último verso explicita que a
história de Robinson Crusoé não tem mesmo conclusão;
apesar de numa posição contraditória, concluir a estrofe, com
uma percepção realista de que a ficção tem fim também. A
vida sim, é mais bela que a literatura, por este motivo os
próximos blocos apresentam a realidade viva e poética ao
mesmo tempo.
A vida do menino leitor no continente é
sinestesicamente iluminada, cheia de canto e perfume do café
da manhã, de sua terra, de sua gente, de seus amores infantis.
A sua felicidade e a sua história são compridas que não
acabam mais.
Por último conclui sua narrativa real em dois sonoros
blocos rítmicos: Lá longe meu pai campeava / no mato sem
fim da fazenda. // E eu não sabia que minha história / era
mais bonita que a de Robinson Crusoé. (p. 94)
"Infância" é um poema em que o artista reflete sua
imaturidade por não perceber a grandeza do seu mundo físico
e metafísico e, portanto, é uma revelação explícita do seu
lado gauche inserido na “Família que me dei”.
VI
Nos porões da família
orquídeas e opções
de compra e desquite.
A gravidez elétrica
já não traz delíquios.
Crianças alérgicas
trocam-se; reformam-se.
Há uma implacável
guerra às baratas.
Contam-se histórias
por correspondência.
A mesa reúne
um copo, uma faca,
e a cama devora
tua solidão.
Salva-se a honra
e a herança do gado.
(...)
(CDA Idem p. 160)
Neste poema, composto por oito estrofes. Na oitava:
o poeta / declina de toda a responsabilidade / na marcha do
mundo capitalista / e com suas palavras, intuições, símbolos
e outras armas / promete ajudar / a destruí-lo / como uma
pedreira, uma floresta, / um verme (CDA Idem p. 166).
Drummond cria seus versos com os ritmos compondo
os sentidos e as emoções, não os emoldurando e, para dar
apenas mais um exemplo da técnica magistral de corte dos
versos:
E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido
na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?
(CDA Idem p. 162)
Eu distribuo segredos
Como quem ama ou sorri
No jeito mais natural
Dois caminhos se procuram.
(...) (CDA Idem p. 188)
226
SIMON, Iumna Maria. Drummond: uma Poética do Risco. São
Paulo, Ática, 1978.
onde o amor reagrupa as formas
naturais
(CDA Idem p.168/169)
232
FREUD, S. (1893-1895). 1920). “Além do princípio de prazer”.
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de
Janeiro: Imago, 1976. vol. XVIII, p. 11-85.
Seguindo a visão de Pottier e considendo “a!mou”
como semema, teremos: o semema < a!mou > é o resultado
de Sema1 " verbo amar no pretérito; mais o Sema 2 "
sentiu a emoção de amar ", mais o Sema 3 " exclamou um
amor ", mais o Sema 4 " se entregou de corpo e alma".
Logo, o Semema < a!mou > = S1 (verbo amar no
pretérito) + S2 (sentiu a emoção de amar) + S3 (exclamou um
amor) + S4 (se entregou de corpo e alma).
Essa rede de relações acionam a polissemia da
palavra poética “a!mou”. Para Rehfeldt "polissemia (...)
segundo os próprios componentes (poly + sema + ia), é
palavra que comporta várias significações" Rehfeldt, 1980,
p.77). 234 E, um significado polissêmico é quando num
mesmo significante unem-se vários feixes de semas ou
sememas, que se diversificam pelas combinações diferentes
de semas. Dessa forma, uma lexia polissêmica é aquela que
preserva uma unidade de significado, isto é, a sua unidade é
garantida pelo núcleo sêmico comum aos múltiplos setores de
semas. Com efeito, esse núcleo sêmico comum é que permite
ao falante identificar um único signo linguístico em suas
diferentes realizações no discurso. (cf. Para Barbosa 1996 p.
245-249). 235
O poético é constituído pela plurissignificação, pela
polissemia. Ezra Pound instrui que “grande literatura é
233
LOPES, Edward . Fundamentos da linguística contemporânea. São
Paulo: Cultrix. 2003.
234
REHFELDT, G. K. Polissemia e campo semântico (estudo aplicado
aos verbos de movimento). Porto Alegre:
EDURGS/FAPA/FAPCCA.1980.
235
BARBOSA, M. A. Léxico, produção e criatividade: processos do neologismo.
3ª.ed. São Paulo: Plêiade, 1996.
simplesmente linguagem carregada de significado até o
máximo grau possível”.(POUND E. 1990, p.32). 236
Diante do exposto, o poético é a explosão de
pluralidade de sentidos. O crítico Gilberto Mendonça Teles,
afirmou numa entrevista que: Há três mil anos que os poetas
vêm definindo a poesia. Para ele a poesia é o que revela o
invisível. “Você lê um poema uma vez, na segunda vez,
pode descobrir alguma coisa, ou um sentido que não
observou ou sentiu na primeira leitura”. (cf. TELES, M. G.
Entrevista para PUC TV, 2018) 237
Ao longo do poema “Amar – amaro” , “eu” lírico que
como já afirmei, se dirige a um ser que amou, cometeu erros.
Esse interlocutor ou o sujeito da ação de amar, não soube
seguir os caminhos perigosos desses sentimentos, “ternos” ou
desesperados. Esse indivíduo é marcados pelo gauchismo do
poeta, que fogue do lado destro e segue sempre lado
esquerdo, canhestro; é inseguro no amor, e sem sem
determinação: daí a palavra “desesperados”, está disposta ao
avesso, do contrário: “desesperados”.
A ironia poética do “eu” lírico segue quando faz outra
pergunta: nesse museu do pardo indiferente/ me diga: mas
por que/amar sofrer talvez como se morre/de varíola
voluntária vágula ev/idente A sonoridade museu do pardo
ironicamente alude ao famoso Museu do Prado, um dos
mais importantes do mundo, localizado em Madrid, Espanha.
Foi construido por Carlos III e inaugurado somente no
reinado de Fernando VII. Nele estão expostas preciosas
obras do mundo das artes. Aqui, o “eu” poético lembra que
236
POUND, Ezra. ABC da Literatura Trad. de Augusto de Campos
e José Paulo Paes. São Paulo, Ed. Cultrix, 1990.
237
https://youtu.be/NVFfNI3b7us
o amor guarda a história da humanidade, é um “museu de
tudo”, é a própria história da vida e morte: tudo viu e
testemunhou, com indiferença sombria, parda, sem claridade,
sem temperamento ou cor definida: museu do pardo
indiferente. Sugere também que todos querem viver o amor,
conhecê-lo, mesmo correndo o risco de sofrer, de morrer
voluntariamente pelo vírus errante do amor, que vagueia
invisível e traiçoeiro, embora evidente. No entanto, colocado
separadamente nos versos do poema, ev/ idente, sugere que
não se indentifica de forma tão fácil, não é tão visível, porque
é um vírus e se transforama numa virose ou varíola,
ameaçadora.
Daí, o “eu” poético retorna a fazer nova inquirição
exclamativa, em caixa alta e tudo ligado, numa grande
palavra-interrogação: ah PORQUEAMOU/ e se queimou.
Esse tom irônico em torno do desacerto do amor que,
como poeta é também um gauche, avesso e cheio de conflito,
está retratado no poema "Quadrilha" (CDA p. 193). Esse
antológico texto é poema-piada, portanto é carregado de
antilirismo, e da ironia amarga e seca sobre os desconcertos
do amor, sobre a rede de desencontros e inconstância das
relações amorosas. Ironiza ainda, a constante falta de
correspondência das cirandas de amores e desgostos. E, um
toque especial de humor irônico é enfatizado ao dar um
casamento final para Lili, única personagem que não amava
ninguém na história.
Construído em versos livres, o poema é dividido em
duas partes: na primeira, são observados os caóticos
desencontros amorosos de João que amava Teresa que
amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim
que amava Lili / que não amava ninguém. Nestes versos só
existe o ponto final.
Esses três primeiros versos são construídos com uma
oração principal (João amava Teresa) e cinco orações
adjetivas. O pronome relativo retoma sempre o objeto da
oração anterior e projeta-o como oração que introduz, de
maneira a configurar um interminável desencontro, que
culmina no nada, na ausência de ser, indicada pelo pronome
indefinido ninguém, que encerra o período.
Entre os vários recursos estilísticos, apontados pela
crítica, está a poeticidade do primeiro bloco que é acentuado
pelo ritmo bem marcado dos dois primeiros versos que
lembra a cadência da quadrilha. O final da dança (que não
amava ninguém) tem o ritmo ligeiramente alterado. A
metáfora da quadrilha está também no encadeamento das
orações do primeiro bloco rítmico e sua estrutura sintática,
em que o objeto do verbo é sujeito do verbo seguinte,
simbolizando a constante troca de pares da quadrilha.
A segunda parte da dança não tem o ritmo cadenciado
da primeira, é escrita de maneira prosaica, é o desfecho da
história dessas personagens e, portanto, traduz a ruptura entre
o mundo do desejo e o da realidade: João foi para os Estados
Unidos, Teresa para o convento, / Raimundo morreu de
desastre, Maria ficou para tia, / Joaquim suicidou-se e Lili
casou com J. Pinto Fernandes / que não tinha entrado na
história. Cada personagem vinculou-se ao seu destino: Longa
viagem, convento, morte trágica e física, morte metafísica e
trágica (naquela época ficar para titia era morrer tragicamente
para o mundo), suicídio e casar com quem não tinha entrado
para a história.
Muitos estudiosos da obra de Drummond chamam
atenção para o fato da outra parte da história ser construída
com orações coordenadas. Sua única oração subordinada é
que não tinha entrado na história. A coordenação indica a
não - relação dos fatos expressos pelas orações, o que mostra
que as ocorrências na vida das pessoas não guardavam
qualquer relação com o que elas desejavam. O verbo ir é
intransitivo, concorre para indicar que a ação por ele
expressa, não incide sobre nada ou sobre ninguém.
Algumas leituras de “Quadrilha” sustentam que as
figuras “ir para os Estados Unidos” e “ir para o convento”
remetem ao tema da “evasão espacial”. Nos verbos morrer e
ficar, o sujeito é paciente, o que revela que ele não age, mas
sofre os acontecimentos. O verbo suicidar-se tem um objeto
expresso por pronome reflexivo, mostrando que o ser humano
só tem controle sobre as ações que dizem respeito a si
mesmo. Suicidar-se remete também ao tema da evasão.
Só o verbo casar indica ação que incide sobre alguém.
No entanto, Lili não se casou com uma pessoa (um nome),
mas com um sobrenome. Pinto Fernandes é um sobrenome
tradicional, o que conota posição, dinheiro. O primeiro
sobrenome remete, além disso, à ideia de masculinidade, com
toda a carga conotativa que ela possui numa visão
estereotipada do casamento tradicional: segurança, apoio,
capacidade de liderança.
“Quadrilha“ é jogo amoroso que retrata a vida e a arte
de compor versos polissêmicos, carregados de sentidos até o
máximo grau possível. Mais do que interpretar as possíveis
conotações o poema deve ser sentido. “Quadrilha” traduz o
amor pela arte da palavra e remete ao leitor comum ou ao
crítico especializado, um desejo de descobrir as artes e as
manhas desse Amar-amaro drummondiano que sensibiliza e
salva a humanidade das dores amargas da ignorância e do
desamor.
Em Drummond, o amor é poetizado em todas as fases,
desde a descoberta dos primeiros sentimentos até o amor
serôdio, tardio, um amor semelhante ao fruto que vem ou
amadurece nos fins da estação própria, ou depois dela, como
pode ser contemplado no poema “Campo de Flores” (p. 214).
Nesses versos o poeta reflete:
238
FRIEDRICH, Hugo. A Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo,
Duas Cidades, 1978.
O poeta submerge no reino da linguagem à procura
das palavras que estão paralisadas, sem pressa de sair de lá;
invade esse reino tentando decifrá-las, pois elas anunciam, tal
como a famosa esfinge de Tebas: “Decifra-me ou devoro-te”.
239
O artista deve tomar cada palavra, uma por uma e conhecer
a magia de cada uma, com suas múltiplas combinações
sintáticas e semânticas; deve percorrer todo o reino e, palmo
a palmo, ter conhecimento daquele terreno, pois, se assim não
proceder será devorado pelas próprias palavras. Depois,
conviver diuturnamente com a linguagem até encontrar a
sintaxe invisível do conceito, da melodia do canto poético.
Após descobrir as artes e manhas da poesia e dos
mistérios do verdadeiro ouriço que é o poema, o artista cria o
texto que não deve, necessariamente, falar do mundo pré-
existente. O sentido literário é o fíat, que significa criação.
O mundo físico, os acontecimentos, o corpo, os
sentimentos individuais em si, nada disso é ainda poesia.
Tudo deve ser recriado, graças ao poder misterioso da
palavra, numa nova realidade, em que o mundo se apresente
reformulado em termos humanos e o homem se encontre
liberto e universalizado (integrado ao mundo). Da nova
realidade, só possível pela palavra, surge a poesia.
239
A Esfinge era um monstro fêmea que era descrito de diversas formas
diferentes, mas foi popularmente conhecida com corpo de leão, peito e cabeça de
mulher, asas de águia e segundo alguns, uma cauda de serpente que afligia a
cidade de Tebas. Havia apenas uma esfinge na mitologia grega, considerada um
demônio de mau agouro, azar e destruição. Essas criaturas eram tidas como
traiçoeiras e impiedosas, as pessoas que não conseguiam responder seu enigma
sofriam um destino bem comum nos contos e histórias mitológicas, eram mortos e
totalmente devorados por esses monstros.
O Enigma da Esfinge é um dos mais famosos quebra-cabeças de todos os tempos:
Ela dizia ‘’Decifra-me, ou devoro-te’’. – Qual o ser que pela manhã tem quatro
pés, ao meio dia tem dois, e a noite tem três?
O poeta deve penetrar surdamente no reino das
palavras sem nenhuma ideia preconcebida, humildemente,
com atenção e receptividade, buscando a intimidade dos
vocábulos, atento a sugestões que deles se desprendem,
esperando que as palavras se revelem e mostrem aquela face
secreta em que, como num molde, se ajuste à ideia poética.
O reino das palavras implica poder e autonomia. Ora,
as palavras são ricas de sentido e potencialidade de
comunicação; além disso, possuem aquela face secreta capaz
de, unindo forma e fundo, construir o poema. As palavras são
independentes do poeta para existir, uma vez que fazem parte
do código social, a língua.
O poeta não pode adiantar-se, querendo escolher com
a inteligência as palavras que formarão o poema. O que lhe
cumpre fazer é, contemplando as palavras, esperar que elas se
revelem e extraiam da consciência os elementos poéticos que,
com ela fundidos, façam surgir o poema que comunicará a
poesia.
Assim, o poder de silêncio é a capacidade que as
palavras têm de, sozinhas, sem a participação organizada da
inteligência do homem, agir como estímulo para extrair do
inconsciente o material poético. O poder da palavra é, no
poema, a capacidade que o vocábulo possui para comunicar a
poesia.
As palavras guardam a impressão, o rastro, o eco, a
figura, a face de todas as vivências humanas no mundo. Na
verdade, o interior da palavra é o reflexo da alma do homem
e do mundo. O ser é manifestado através da linguagem, como
afirma Martin Heidegger (1889 – 1976) na obra Carta sobre
o humanismo 240 (Über den humanismus)90, escrita em 1946:
A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser
mora o homem. Os pensadores e os poetas são os
guardas desta habitação. A guarda que exercem é o ato
de consumara manifestação do ser, na medida em que a
levam à linguagem e nela a conservam. Não é por ele
irradiar um efeito, ou por ser aplicado, que o pensar se
transforma em ação. O pensar age enquanto exerce como
pensar. (...) (HEIDEGGER, Martin. Sobre o
humanismo. 2005, p. 55) 241
De acordo com a sua Essência, a linguagem é a casa
do Ser, edificada em sua propriedade pelo Ser e disposta
a partir do Ser. Por isso urge pensar a Essência da
linguagem numa correspondência ao Ser e como uma tal
correspondência, isto é, como a morada da Essência do
homem.(Op. Cit. 2005 p. 55).
240
Heidegger escreve Carta sobre o humanismo em resposta ao existencialista Jean
Beaufret que havia lhe enviado uma carta solicitando um esclarecimento acerca do
significado do humanismo após o acontecimento das duas guerras mundiais. Heidegger
nunca escrevera uma obra de conteúdo diretamente humanístico ou ético, tendo, inclusive,
se recusado a admitir que se faça qualquer relação das suas obras com a corrente
existencialista – tentativa constante de Beaufret -, uma vez que era contrário à classificação
do pensamento. Em Carta sobre o humanismo ele critica o processo de decadência do
homem ocorrido a partir do momento em que a concepção técnico-científica foi se firmando,
promovendo assim o esquecimento do sentido do Ser.
241
Heidegger, Martin, Carta sobre o humanismo .Tradução de Rubens
Eduardo Frias. São Paulo: Centauro. 2005.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.
Preferes o amor
de uma posse impura
e que venha o gozo
da maior tortura.
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
(...)
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se .
(CDA Idem p. 260)
247
BARTHES, R. O Grau Zero da Escritura. São Paulo Cultrix, 1971.
lógicos pregados por Euclides, o grande matemático
discípulo de Platão.
A arte não precisa por a geometria em ordem como
fez Euclides, mas reflete a desordem do mundo, com os
silêncios e os gritos dissonantes dos porões da humanidade.
A poesia é um jogo lírico, é uma flor original e
plurissignificante, que comunica a essência do ser do homem.
249
HEIDEGGER, Martins, O Que é Metafísica? São Paulo, Duas Cidades
1969.
250
TELES. Gilberto Mendonça. Drummond – A Estilística da Repetição.
2ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1976.
"No meio do caminho" apesar de ser um retrato
irônico e antilírico da vida, demonstra uma verossimilhança
que sangra a realidade com suas pedras sonoras e, por meio
de metáforas, diz o indizível e desperta o homem para sua
humanidade adormecida.
Se o poema tem uma tonalidade avessa, torta, gauche,
meio caótica e repetitiva, tem os tons da vida, que nem
sempre são claros, coloridos e belos. "No Meio do Caminho"
traduz os sentimentos do mundo que o poeta posteriormente
vai falar através da misteriosa voz de seus poemas, porque
como definiu Otávio Paz em O Arco e a Lira a criação
poética é um mistério porque consiste em falar dos deuses
pela boca humana. (Paz, O. 1982 p. 196). 251
2.10. Suplemento
251
PAZ, Otávio. O Arco e a Lyra. Trad. de Olga Savary. Editora Nova
Fronteira.1982.
na incidência da luz é silenciosa. / Mas a hora no relógio da
Matriz é grave / como a consciência / E repete. Repete.
Nesta Antologia, o autor – privilegiado autor leitor de
sua obra – apresentou-nos aqueles poemas que ele considerar
os principais núcleos de sua poesia e, como afirmou, algumas
caberiam talvez em outra seção que não a escolhida, ou em
mais de uma. A razão da escolha está na tônica da
composição, ou no engano do autor. ( Op. Cit Andrade C. D.
(2001) p. 17). O certo é que Drummond conduz o leitor numa
viagem cujo destino é, sem dúvida, o maior conhecimento do
perfil da obra de um dos maiores poetas da Língua
Portuguesa.
CONCLUSÃO
253
PEIXOTO, Sérgio Alves. A Poesia de Mário Quintana. Belo Horizonte:
Editora Lê, 1994.
254
BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.
igualmente como passado, por seu valor histórico” e que “o
mesmo ocorre com o presente.” (idem).
Escrito a partir de 1863, O pintor da vida moderna
(ensaio sobre o desenhista, aqualelista e gravador Constantin
Guys de Sainte-Hélène (foi publicado originalmente no
Fígaro (26 e 29 de novembro e 3 de dezembro de 1863. (Cf.
Op. Cit. BAUDELAIRE, Charles, 2006, p. 1090). Assim,
construído em três fases, no primeira em Le Figaro, mais
tarde, integrariam a coletânea de escritos de Baudelaire,
editado em l868, sob o título de L’Art Romantique.
A noção de modernidade, para o poeta e teórico,
estaria associada à missão contemporânea da arte e
estabelece uma nova ideia de modernidade, a tentativa de
teorização da arte inspirou diversos comentários posteriores.
Na miscelânea de sua arte poética com a projeção teórico-
científica característica do ensaio, Baudelaire constrói uma
imagem do pintor da vida moderna, mostra espaços nos quais
atividades e fatos aparentemente corriqueiros como a moda,
as viaturas, a mulher e outros se transformam em objetos da
arte atemporal.
Em síntese, O pintor da vida moderna, de
Baudelaire, apresenta, poeticamente, uma visão sobre o
objeto da arte, sua possível técnica e suas condições de
produção; a arte para seria uma constante busca do novo em
todas as esferas da vida econômica, política, social, cultural,
descobrindo-a ou inventando-a, à forma dos materiais da
modernidade daquele contexto ou de outros quaisquer e em
vários momentos estão presentes a busca eterna pelo fugitivo,
pelo original em vários momentos. À modernidade associa-
se sempre o ousado, o inovador, o original, aquilo que dá o
tom de transformação de um conceito anterior.
Assim, o poeta fixa o irrepetível da vida que,
sequestrado num determinado momento e ponto, transforma-
se em elemento singular, intemporal e teoria a obra de arte
com forma e conteúdo, enquanto a primeira representa o
corpo, o segundo remete à alma da obra, à qual se relaciona a
questão do intemporal, defindindo, assim a modernidade ao
mesmo tempo que produz uma obra de arte.
De acordo com Friedrich, Baudelaire reúne o gênio
poético e a inteligência crítica. Suas ideiass a cerda do
procedimento da arte estão no mesmo nível do seu próprio
poetar e são, em muitos casos, até mesmo mais avançadas,
como ocorreu também com Novalis. (Friedrich H. (1978) p.
36), 255
Diante do exposto, Baudelaire preconiza o
impressionismo e afirma que a modernidade está também na
possibilidade de transformar em poético tudo aquilo de
artificial, grotesco e feio que a grande cidade pode oferecer
ao artista: o caminho para uma estética do feio. Este poeta, ao
lado de Edgar Allan Poe (1809 - 1949), o criador de O
Corvo, defendem que a poesia associa-se a inteligência
crítica.
Os herdeiros de Baudelaire e Poe são os poetas
mágicos - inspirados e os lógicos-construtores do
Simbolismo: Verlaine, Rimbaud e Mallarmé, para ficar
apenas com os franceses. Destes três, Stéphane Mallarmé
(1842 - 1898) foi o ponto máximo dessa caminhada contra
uma sociedade que tudo automatiza. Por isso o poeta precisa
buscar suas armas dentro da própria linguagem da poesia
255
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna: Da Metade do Século XIX
a Meados do Século XX. Trad. Do texto por Marise M. Curione; trad. das poesias
por Dora F. da Silva. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
(Idem Friedrich H. (1978) p. 95), mesmo sabendo que nada é
definitivo.
Mário Quintana trilhou nos caminhos poéticos de
Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Verlaine, Verhaeren,
Rollinart e Antônio Nobre. Deste último, a influência foi
notória e explícita quando escreveu alguns sonetos em
homenagem ao poeta português. Entre eles, o soneto XI “Para
Antônio Nobre”: Contigo fiz, ainda em menininho,/ Todo o
meu Curso d”Alma...E desde cedo/ Aprendi a sofrer
devagarinho,/ A guardar meu amor como um segredo... (Op.
Cit. QUINTANA, M. Poesia Completa, 2005, p.95)
256
(https://vermelho.org.br/prosa-poesia-arte/carlos-drummond-andrade-
o-poeta-quintana/)
Este inventor de imagens, por meio de palavras ricas
em significados, expõe a ideia de um dia repleto de luz, em
pleno zênite do meio dia, na hora aberta. O dia, apresentado
nos versos, está desnudo, nem sente os pesados besouros, os
dissabores da vida. É um dia pleno, intocável e inesquecível.
As imagens surrealistas na obra de Quintana não
possuem o automatismo psíquico puro, fórmula pela qual
André Breton dá início à sua definição de Surrealismo. A
poesia deste poeta não possui a recusa sistemática ao Belo e à
Arte e nem busca a simples manifestação do inconsciente e
do sonho através de algo disforme e gratuito.
Por outro lado, Quintana não nega a importância do
Surrealismo em sua formação de poeta. Assim como não
esconde que o Surrealismo, junto com o Simbolismo,
constitui em confluências poéticas:
Eu me criei lendo os poetas simbolistas,
depois fui libertado pelos poetas surrealistas da
excessiva musicalidade à forma pela forma. E
assim o poeta vai-se fazendo. Quanto às
influências, não há influência propriamente. Há
confluência. A gente só gosta de quem se
parece com a gente. (In. CARVALHO, 1977,
p.5) 257
No entanto, Mário Quintana foi influenciado deveras
pelo poder das imagens poéticas que existem na verdadeira
poesia. O texto poético é imagético por natureza, deve
possuir uma intensa magia e dizer o indizível.
Deve ser ressaltado ainda, que as imagens constantes
na obra de Quintana aparecem em primeiro plano, aquelas
provenientes do mundo urbano procedentes da rua, do
257
CARVALHO, Maria Angélica. Um poeta não é um macaco sábio. O
Globo. Rio de Janeiro. 15 de maio de 1977.
movimento, das pessoas, dos objetos, dos animais e dos
vegetais que povoam a realidade. A poesia de Quintana é
predominantemente visual e óptica. No entanto, o
poetapintor não expressa apenas o exterior, ao contrário, as
imagens observadas pelo eu lírico são símbolos da condição
interior do poeta. No soneto abaixo Quintana expõe sua
poesia pictórica:
2. METALINGUAGEM E POESIA
Uma das preocupações dos poetas de todos os tempos
tem sido a de tentar definir a poesia. Dessa forma, seus textos
tematizam o próprio fazer poético. A esse fenômeno dá-se o
nome de metalinguagem.
Metalinguagem é a utilização da linguagem para tratar
da própria linguagem. É a reflexão da obra de arte sobre a
obra de arte.
A arte da palavra de Mário Quintana sempre trilhou os
caminhos da essência da poesia. Esse poeta principiou sua
carreira literária com A Rua dos Cataventos (1940), obra
composta de 35 sonetos impregnados de renovações métricas,
rítmicas e formais. A linguagem modernizada, com acentos
coloquiais e populares, demonstrava influências do
Simbolismo na sutileza dos símbolos e dos ritmos. Neste
livro, a metalinguagem aparece tímida, mas já faz da
linguagem objeto do poema.
Em Canções (1946), a consciência metalinguística
começa concentrar-se na palavra, melhor dizendo, começa a
abstratizar a palavra na direção do puro nome. Do Mário
Quintana pintor que nomeava o mundo através de descrições
coloridas, surge em Canções o Mário Quintana poeta
preocupado com a substância da linguagem, filosofando
sobre a essência da poesia e fazendo experiências linguísticas
e poéticas.
Nas Canções, Quintana aparece mais solto, mais
liberto das formas tradicionais, mais criativo, mais engajado
aos experimentalismos da poética vanguardista:
Impressionismo, Surrealismo, Cubismo. Seu Modernismo
ficava evidente nos versos brancos, nos versos livres, na
sintaxe rebelde, na rima toante, na expressão do absurdo, na
mistura do lógico com o racional, nas imagens surrealistas, na
mistura do erudito com o popular e do grave com o cômico,
na simplicidade da linguagem.
O título Canções é justificado pela preferência da
redondilha maior e pelo lirismo musical que popularizam os
poemas encantam a todos: “Canção da primavera”(p.24),
“Canção de Domingo”( MQb p. 31), “Canção de um Dia de
Vento”(MQb p. 25), “Canção de outono”(MQb p. 26 ),
“Canção do suicida” (MQb p. 27), Pequena crônica policial
(MQb p. 28), “Canção de barco e de olvido ” (MQb p. 29),
Porém nem todas as canções são escritas em redondilhas,
muitas são trabalhadas em versos livres ou métrica irregular,
porém todas possuem muito ritmo e musicalidade.
A métrica, as rimas, alternância de sílabas fortes e
fracas (cadência), os jogos de som, a extensão dos versos, a
presença de assonância (repetição de sons vocálicos),
aliteração (repetição de sons consonantais) e onomatopeia (1
Gram. Vocábulo cuja pronúncia lembra o som da coisa ou a
voz do animal que designa. 2 Frase constituída para causar
efeito fonético imitativo) (Op. Cit. Michaelis (1998) p. 262)
são os elementos que formam a expressão sonora de um
poema. Descobrindo esses elementos o leitor identifica o
ritmo do texto.
O ritmo é uma espécie de desenho que o texto poético
faz para o leitor. Acompanhe o ritmo “Canção de um Dia de
Vento” (MQb p. 25):
O vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule.
258
FONSECA, Juarez. Mário Quintana. Revista ZH. Porto Alegre: 16 de
outubro 1977.
Quintana afirma também, sem querer ser filosófico, que a
259
260
SARTRE, Jean-Paul. O Imaginário. Psicologia Fenomenológica da
Imaginação. Trad. Duda Machado. São Paulo: Ática, 1996.
de alguém, pensá-lo presente, imaginá-lo frente a nós
mesmos torna-o mais real, mais verdadeiro.
A poesia não é apenas a verdade, é muito mais: é a
invenção da verdade. Imaginar é transformar, recriar,
inventar mundos novos, mitologias novas. Todavia, esse
mundo de sonho, de encantamento não foge do real. A poesia
não pode ser dissociada do real, pelo contrário, deve
conscientizar o homem e fazê-lo conhecer o melhor da vida,
um mundo melhor, mais humano e mais imaginativo. O texto
poético deve despertar a criatividade do homem. Daí a
questão enfocada por Quintana de que o poeta é um ser
perigoso, que por isso mesmo é assassinado, várias vezes,
pela sociedade.
Platão expulsa os poetas da República, 261 por achar a
sua função menor. De acordo com este filósofo grego, a
realidade humana é basicamente imitativa e distante da
essência do ser - o mundo das ideias - e os artistas não
representam a verdade do mundo nas suas imitações. Nesse
mundo imitativo, em primeiro lugar está o artesão e só
depois, de modo degradado a imitação do artista.
Já para Aristóteles, imitar, representar, criar são
marcas naturais do ser humano. A obra de arte é uma
realidade especial, podendo ser mais importante que própria
história: é preferível o impossível que verossímil ao possível
(Aristóteles, (1987) p. 16) 262 que é incrível uma vez que a
261
PLATÃO. Diálogos e A República. Seleção de textos de José Américo
Mota Pessanha; trad. e notas de José Cavalcante de Sousa, Jorge Paleikate
e João Cruz Costa. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
262
ARISTÓTELES. Tópicos. Dos Argumentos Sofísticos. Ética a
Nicômaco. Poética. Seleção de Textos de José Américo Mota Pessanha.
Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. A.
Pickard. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
obra de arte não tem necessariamente um compromisso com a
verdade. Dessa forma, a arte pode se dar ao prazer de retratar
o impossível, ou puramente o fictício. Porém, embora não
tenha esse compromisso com a veracidade dos fatos, a arte é,
muitas vezes, mais verossímil que a própria realidade, que é
considerada possível, mas são apresentadas, inúmeras vezes,
como impossível, incrível e absurda.
Tanto para Platão como para Aristóteles, no entanto,
coloca-se o impasse entre o discurso lógico da razão e o
discurso alógico inventivo da arte poética. Enquanto o
Geômetra Platão é radical na sua insatisfação, o Biólogo
Aristóteles experimenta compreender a arte e sua especial
relação entre o homem e o mundo.
O poeta é um ser sensível que vê o invisível aos olhos
comuns, percebe a poesia de todos os lugares: do silêncio dos
velhos corredores, de uma esquina, de uma lua, do primeiro
olhar da primeira namorada, de todas as namoradas do
mundo inteiro.
Este poeta, tão livre de expressão e criatividade, é
muitas vezes aprisionado pelos grilhões dos desumanos que
não suportam a poesia. Estes funcionam como grilos
perturbando a paz e o lirismo dos poetas e, às vezes,
assassinam o poeta que existe dentro deles mesmos e todos os
poetas do mundo: “A noite dorme um sono entrecortado,
alfinetado de grilos” (QUINTANA, M. Poesia completa,
(2005) p.274 ), “Os grilos são os poetas mortos”.
(QUINTANA, M. Poesia completa, (2005) p. 639 ). Desta
forma, o vocábulo grilo, simboliza também o poeta que
perturba a boa vida daqueles que não querem ver certas
realidades consideradas desagradáveis.
2. 3. Função da poesia
A função da poesia, antes de tudo, é despertar o
homem para a humanidade. A obra deste vate gaúcho é uma
reflexão sobre o mundo, o homem e sua existência. É uma
poética que tem uma forte irmandade com filosofia.
O poeta Mallarmé dizia que a poesia se faz com
palavras, e que é poeta quem lhes cede à iniciativa de que
elas falem por si mesmas. O filósofo Heidegger, no
empreendimento de auscultação da linguagem, filosofou
sobre sua essência. O poeta e o filósofo buscaram a
linguagem poética em sua pura essência dizente. Por estas e
outras experiências e pensamentos, a Filosofia se avizinhará
da poesia tanto quanto a filosofia da ciência. E ambas
falarão sempre do ser; os textos dos poetas e dos filósofos
rememoraram, reiterada e veladamente, mas de maneira
diferente, essa mesma experiência congênita à própria
linguagem e à humanidade do homem (Nunes, B. (1986) p.
260). Heidegger afirma mesmo que a Filosofia está mais
próxima da poesia do que da ciência.
A poesia de Mário Quintana literalmente filosofa
através das palavras, observe o soneto “Ah Os relógios”
(MQb p.146):
CONCLUSÃO
263
Todos os poemas de João Cabral inseridos nesse estudo foram
retirados da obra MELO NETO, J. Cabral. Obra Completa. vol. único.
Rio de Janeiro: Ed.Nova Aguilar S.A., 1994.
tempestade, uma imagem da própria aparência do
homem adormecido. Ambos: os acontecimentos do
sonho e o homem adormecido, profundamente
marcados pela presença mesma do sono, essa
presença que não é de nenhum modo, apenas a
ausência de nossas vinte e quatro horas, mas a
visão de um território que não sabemos, do qual
voltamos pesados, marcados por essa nostalgia de
mar alto, de "águas profundas", para empregar a
tradução que Américo Torres Bandeira faz das
desconhecidas sensações nele provocadas por uma
anestesia de clorofórmio. Como não reconhecer
essa presença do sono na atitude do corpo de quem
dorme, nessas poses não raro trágicas (irônicas),
nas palavras que se quer balbuciar, na fisionomia
em que adivinhamos, inegavelmente, os sinais de
uma contemplação, e que é sob outro aspecto, um
sinal de vida?
(...)
Além de tudo, porém, uma observação se faz
necessária: a poesia não está no sono, no sentido
em que ele constitua um reservatório, do qual, em
sucessivas descidas, o poeta nos aporte os materiais
de seu lirismo. O sono predispõe à poesia.
Reconheço que o próprio elemento, o sono em si, a
própria palavra: sono (feita de sons que parecem se
prolongar no escuro; a voz do homem falando no
escuro), são coisas enormemente poéticas.
Entretanto, a ação do sono sobre o poeta se dá em
outro nível que o de simples material para o poema.
Num terreno em que ele deixa de ser um objeto e se
transforma como que num exercício, num apronto
para o poeta (no sentido esportivo do termo),
aguçando nele certas aptidões, certa vocação para
o sobrenatural e o invisível, certa percepção do
"sentido oculto das forças inertes", da fórmula de
Pedro Nava. (...)
Uma outra observação a fazer (...) é a de que o sono
promove esse amálgama de sentimentos, visões,
lembranças, que segundo Cocteau fará o verdadeiro
realismo do poeta. Pode-se dizer do sono que ele
favorece a formação de uma certa zona obscura (um
tempo obscuro), onde essa fusão se desenvolve (os
nossos sentidos oficiais adormecidos) e de onde
subirão mais tarde esses elementos que serão os
elementos do poema e que o poeta surpreenderá um
dia sobre seu papel sem que os reconheça.
Sobretudo, favorece aquele recolhimento, aquela
presença em si (o poeta andando a longas pernadas
dentro de sua noite), cujo efeito sobre o poeta, um
grande poeta comparou ao de uma verdadeira
purificação do espírito (Raissa Maritain).(...)
Assim, pode-se adiantar que o sono não inspira uma
poesia (a poesia moderna, por exemplo, coisa que
se dá inegavelmente com o sonho, cuja mitologia é a
da própria poesia moderna), no sentido em que o
poeta se sirva dele como uma linguagem ao seu uso.
Apenas, fecunda-a com o seu sopro noturno - o
hálito da própria poesia em todas as épocas.
[João Cabral de Melo Neto. Considerações sobre o
poeta dormindo. Tese apresentada ao
Congresso de Poesia do Recife, 1941]
264
Charles-Edouard Jeanneret-Gris, mais conhecido pelo pseudónimo
de Le Corbusier (La Chaux-de-Fonds, 6 de Outubro de 1887 -
Roquebrune-Cap-Martin, 27 de Agosto de 1965), foi um arquiteto,
urbanista, escultor e pintor de origem suíça e naturalizado francês em
1930. É considerado, juntamente com Frank Lloyd Wright, Alvar Aalto,
Mies van der Rohe e Oscar Niemeyer, um dos mais importantes
arquitectos do século XX. Conhecido por ter sido o criador da Unité
d'Habitation, conceito sobre o qual começou a trabalhar na década de
1920.
a partir de formulações das negativas: Cultivar o
deserto/como um pomar às avessas./(A árvore destila/a
terra, gota a gota;/a terra completa/cai, fruto!/Enquanto na
ordem/de outro pomar/a atenção destila/palavras
maduras.)/Cultivar o deserto/como um pomar às
avessas:/então, nada mais/destila; evapora;/onde foi
maça/resta uma fome;/onde foi palavra/(potros ou
touros/contidos) resta a severa/forma do vazio (Idem p.97).
Com O cão sem plumas, O rio e Morte e vida
severina respectivamente de 1950, 1953 e 1954-55, compõe
uma amostragem tríplice da realidade social do Nordeste.
O cão sem plumas (1950) é uma grande metáfora que
espelha a contínua luta pela sobrevivência empreendida ao
mesmo tempo pelo rio e pela população ribeirinha.
Em O rio (1953), procurou expressar o impacto, o
golpe (faca) de saber que no Nordeste a expectativa de vida é
ainda menor do que na índia. Distante, pois se encontrava
desde 1947 em missão diplomática na Espanha, mas
verdadeiramente preocupado com a obscura realidade de
Pernambuco, buscou associar a expressão seca, a linguagem
direta e reduzida à denúncia. A paisagem presente nesses
volumes é a do Nordeste, em especial a do Recife, as águas
presentes são as do Capibaribe que, personificadas em O rio,
tomam a palavra para mostrar friamente, em uma viagem que
vai de sua nascente até o Recife, a miséria que suas águas
banham: Para trás vai ficando/a triste povoação daquela
usina/onde vivem os dentes/com que a fábrica
mastiga./Dentes frágeis, de carne,/que não duram mais de
um dia;/dentes são que se comem/ao mastigar para a
Companhia;/de gente que, cada ano,/o tempo da safra é que
vive,/que, na braça da vida,/tem marcado curto o limite
(Idem p.132).
Morte e vida severina – um Auto de Natal (1954-55)
tem como temática nos seus 1241 versos a vida e a morte. A
água que representa um símbolo da vida, aparece na figura
do Rio Capibaribe e do mar em 102 referências. Assim, essa
obra exterioriza o Capibaribe com suas mortes e símbolos, e
o mar com sua vida e renascimento: o Capibaribe,/ como os
rios lá de cima,/ é tão pobre que nem sempre/ pode cumprir
sua sina/ e no verão também corta,/ com pernas que não
caminham (Idem p.176). O retirante sonha com o Recife do
ideal: Recife, onde o rio some/ e esta minha viagem se fina
(Idem p.187). Chegando aos cais, entra em desespero e
deseja: caixão macio de lama,/ mortalha macia e líquida,/
coroas de baronesa/ junto com flores de aninga,/ e aquele
acompanhamento / de água que sempre desfila/ (que o rio ,
aqui no Recife,/ não seca, vai toda a vida) (Idem p. 193).
Depois, com o nascimento do menino, o mar transforma-se
em poesia e música da vida por meio da figura do recém-
nascido. Ambos sintetizam a poesia da vida e das águas: é
belo como um coqueiro/ que vence a areia marinha./ (...) -
Belo como a última onda/ que o fim do mar sempre adia./ -
É tão belo como as ondas/ em sua adição infinita./ (Idem
p.200/20l).
A partir da década de 50, as composições de João
Cabral oscilam entre duas vertentes: a criação poética, o
poema-arquitetura, por um lado; e o enriquecimento da forma
e do conteúdo com a vivência do diplomata e o contato com a
tradição cultural da Espanha, mas sem abandonar a influência
que sobre ele exerce o meio pernambucano. Paisagens com
figuras (1954), Uma faca só lâmina (1956), Quaderna (1960)
entre outros, atestam o referido comportamento do escritor.
Mais do que nunca, porém, sobressai no poeta a necessidade
de conceber a poesia de forma plena, maior. E ainda em torno
da busca da composição perfeita que estão centradas as
preocupações do autor.
Nesse sentido, a atividade literária acompanhou-o
durante todos esses anos no exterior e no Brasil, o que lhe
valeu ser contemplado com numerosos prêmios, entre os
quais - Prêmio José de Anchieta, de poesia, do IV Centenário
de São Paulo (1954); Prêmio Olavo Bilac, da Academia
Brasileira de Letras (1955); Prêmio de Poesia do Instituto
Nacional do Livro; Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do
Livro; Prêmio Bienal Nestlé, pelo conjunto da Obra e Prêmio
da União Brasileira de Escritores, pelo livro "Crime na Calle
Relator" (1988).Em 1990 João Cabral de Melo Neto é
aposentado no posto de Embaixador.
Em Educação pela pedra (1966), João Cabral reflete a
preocupação com o trinômio trabalho-processo de criação
formal-simetria entre linguagem e realidade. O poema –
gerado como objeto – parte do objeto: são recorrentes
imagens que têm como ponto de partida a pedra, o rio, o
canavial, o poço, o vento, entre outras, da multiplicidade de
sentidos que cada poema objeto pode ter.
João Cabral foi eleito para a ABL em 15 de agosto de
1968 e ocupava a cadeira número 37, que já havia sido
ocupada, entre outros, por Getúlio Vargas e Chateaubriand.
Recebido por José Américo. Em seu discurso de posse
homenageou o jornalista Assis Chateaubriand:
Assim, para compensar o laconismo de um
“muito obrigado” e expressar meu
reconhecimento de outra maneira, quero dizer
que me sinto muito honrado em vir a ser um de
vós. E não apenas pelo que cada um de vós
representa em nossa vida intelectual como
porque a Academia, que vós todos, em conjunto,
constituís, é uma de nossas instituições em que se
tem mantido mais vivo o respeito pela liberdade
do espírito. Daí (e não sei de maior elogio que se
possa fazer a um corpo de escritores, homens
para quem a liberdade de espírito é condição de
existência) meu empenho em declarar que,
entrando para a Academia, não tenho o sentido
de estar abdicando de nenhuma das coisas que
me são importantes como escritor.
Na verdade, venho ser companheiro de escritores
que representaram, ou representam, o que a
pesquisa formal, no nível da textura e da
estrutura do estilo, tem de mais experimental;
escritores outros cuja obra é uma permanente, e
renovada, denúncia de condições sociais que
espíritos acomodados achariam mais
conveniente não dar a ver; escritores que, em
momentos os mais diversos de nossa história
política, têm combatido situações políticas
também as mais diversas; escritores que, já
acadêmicos, têm julgado livremente a Academia,
patronos de suas Cadeiras e membros de suas
Cadeiras. E tudo isso sem que a Academia tenha
procurado exercer nenhuma censura e sem que
a posição de acadêmicos tenha levado esses
escritores a qualquer autocensura." (Trecho do
Discurso de Posse, 6 maio de 1969)
267
SCHOPENHAUER, A. Dores do Mundo. Trad. Assis Brasil, Rio de
Janeiro: Tecnoprint, s/d.
Desta forma, o rio, poeta e filósofo, acorre para
uma severa realidade, com nuances de negativismo,
desesperança e, até mesmo, um certo nihilismo: para a gente
que desce/ é que nem sempre existe esse mar,/ pois eles não
encontram/ na cidade que imaginavam mar/ senão outro
deserto/ de pântano perto do mar (Idem p.142). Nestes
versos da penúltima estrofe, por exemplo, essa desesperança
é bem marcada e a própria voz poemática tem a sensação de
incapacidade - não sabe como ajudar essa gente: É gente que
assim me olha/ desde o sertão do Jacarará;/ gente que
sempre me olha/ como se, de tanto me olhar,/ eu pudesse o
milagre/ de num dia ainda por chegar,/ levar todos comigo,/
retirante para o mar (Idem p.142).
O discurso do rio interroga essa realidade e sua
pergunta (que lhe posso deixar,/ que conselho, que recado?)
(Idem p.143) pode estar respondida na própria linguagem
que, mesmo sem ter, necessariamente, o interesse e a
eficácia do discurso comum, presentifica uma realidade por
meio de metáforas, analogias e de uma retórica que transmite
uma série de lógica e de significações, numa polissemia que
pode ser compreendida por meio de leitura silenciosa, ou em
alto e bom som, como aliás é a leitura ideal para o discurso
deste rio. No final da última estrofe, apesar da gratuidade
inerente ao texto artístico, a voz poemática põe em
evidência que o seu discurso pode traduzir alguma relação
metafórica entre os rios e essa gente: somente a relação/ de
nosso comum retirar;/ só esta relação/ tecida em grosso tear
(Idem p.143). Esta conexão analógica é o ponto de partida
para a presentificação do mundo real a ser revelado e, ao
mesmo tempo, a materialização do texto artístico, num
trabalho de pura metalinguagem. Esta dupla realização
concebe a metáfora do mundo da arte.
O Rio, um poema narrativo com 60 estrofes de 16
linhas tem composição assimétrica, totalizando 960
versos. A extensão do poema, combinada com sua
assimetria, metaforiza o mundo da bacia do Capibaribe que,
realmente, nasce no município de Poção, limítrofe com o
município de Jatuaúba/PE. A extensão desde a nascente até
Recife é de aproximadamente 220 a 240 km. Estes números
podem sugerir o sentido de que os 960 versos aludam a
uma imagem quadrangular, por meio do número quatro,
uma vez que 240 x 4 = 960. O quadrado é, segundo Jean
Chevalier e Alain Gheerbrant (1990), “o símbolo da terra por
oposição ao céu, mas é também, num outro nível, o símbolo
do universo criado, terra, céu, por oposição ao incriado; é
antítese do transcendente” (Chevalier e Gheerbrant (1990)
p.750). 268 Desta maneira, o quadrado é símbolo do terrestre,
do sólido, do tangível e também da totalidade do criado e do
revelado. Assim, o quatro é símbolo do mundo físico do
sertão de Pernambuco, representa as terras de sede (...) terra
desertada/ vaziada, não vazia,/ mais que seca, calcinada./
De onde tudo fugia,/ onde só pedra é que ficava,/ pedra e
poucos homens/ com raízes de pedra, ou de cabra (Idem
p.120). Enfim, é um mundo dominado pela sede e pela
dureza. Neste espaço, o Capibaribe nasce e caminha para o
mar. Porém, logo aprende que é preciso lutar contra as
intempéries do sólido, e que este comanda todo aquele
espaço: seja através da imagem do leito de areia/ com suas
bocas multiplicadas (Idem p. 119), ou nos dentes das usinas,
ou na ferocidade da ambição do usineiro, ou na presença de
qualquer natureza daquela paisagem - do mar de cana aos
capinheiros. O quatro também significa a palavra em
CHEVALIER,J. & CHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Trad.
268
269
BÍBLIA SAGRADA, Trad. Centro Bíblico de São Paulo: Ave Maria,
1981.
um, aquele ser que inicia a ação desse discurso e o conduz à
totalidade. Ao simbolizar este numeral pode-se fazer uma
analogia entre o simbolismo do homem e desse numeral.
Sobre este último, Chevalier, J. & Gheernbrant, A. (1990)
expõem que o numero um tem a capacidade de assumir a
posição de sujeito e “ toda a energia do símbolo unificador
para realizar a si a harmonia do consciente e do inconsciente,
o equilíbrio dinâmico dos contrários reconciliados, a
coabitação do irracional com o racional, do intelecto com o
imaginário, do real com o ideal, do concreto com o abstrato.
A totalidade unifica-se na sua pessoa e a sua pessoa
desenvolve-se na totalidade” (Idem, 1990, p. 919).
Este sujeito, rio ou homem ou palavra, simbolizável
pelo número um está inserido dentro de uma realidade: o
sertão ressequido, sólido - representado pelo quadrado.
Portanto, o um não é a única representação desse espaço
recriado. Existe um outro quatro vezes maior; um lugar
pétreo, cabral: marcadamente sólido. Portanto, o número
quatro pode ser assumido como a marca deste discurso,
porque é a transfiguração física e metafísica do mundo do
Capibaribe e da palavra poética.
Diante do exposto, “O Rio” tem o número quatro
como múltiplo e é, nesta multiplicidade, que reside o
significado dos 960 versos, das 60 estrofes, todas elas
formadas por 16 versos e dos 28 quadros ou cenas compondo
o seguinte desdobramento quaternado: 960÷ 4 = 240 ÷ 4 =
60 / 60÷ 4= 15/ 16÷ 4 = 4/ 28÷ 4 = 7.
A composição da estrofe por 16 versos tem um
simbolismo significativo, uma vez que, sendo o quatro
símbolo de solidez, materialização e metáfora da realidade
do sertão nordestino, e posição estática da palavra em
situação de poço, o dezesseis (quatro x quatro) indica, sem
dúvida, a realização firmeza e da força material. Quatro ao
quadrado representa a essência da força e solidificação do
criado e revelado que não resulta de uma intenção humana.
Esta força sólida e direcionada para um sentido, se opõe à
polissemia e fluidez da linguagem literária e das águas
deste rio da linguagem, que é um campo de ação,
movimento e vontade humana. Tal intenção realiza uma
obra literária composta por 60 estrofes de 16 versos e 28
cenas ou quadros.
Estas cenas ou quadros realizam a transfiguração da
realidade do sertão de Pernambuco, na bacia do Capibaribe.
Porém, este mundo real retratado nestes quadros não é uma
simples cópia ou representação. É, na verdade, a criação de
uma outra realidade: o discurso literário. E este, enquanto
linguagem artística, pode repousar sobre uma realidade pré-
existente, mas “admite-se, sem dúvida, que esta linguagem
possa, de certa maneira refletir, na sua estrutura, os objetos,
as ideias, as sensações que comunica, que ela possa, de algum
modo, imitar o seu conteúdo” (Lefebve, M. J. 1980, p.18). 270
Maurice-Jean Lefebve expõe ainda que “a matéria da
linguagem é, assim, convocada a pôr-se a si mesma em cena,
o que leva muitas vezes a dizer que é a própria linguagem
que fala” (Idem, 1980, p. 21).
A linguagem literária não se contenta em fotografar
simplesmente uma realidade pré-existente; pelo contrário, o
mundo real é um ponto de partida para a sua criação e para as
interrogações que a arte se propõe, uma vez que de acordo
com Lefebve, “a arte interroga o mundo sobre a sua
270
LEFEBVE, Maurice-Jean. Estrutura do Discurso da Poesia e da
Narrativa. Trad. José Carlos Seabra Pereira. Coimbra: Livraria Almedina,
1980.
realidade e a linguagem sobre a sua obsessão de uma
adequação perfeita ao ser do mundo” (Idem, 1980, p. 63).
Roland Barthes acrescenta que a linguagem literária é um
“sistema semântico muito particular cujo fim é pôr “sentido”
no mundo, mas não “um sentido”. Daí resulta a tamanha
força para fazer perguntas sem jamais lhes responder... e, por
outro lado, que ela se ofereça a uma decifração Infinita”
(Barthes apud Lefebve, 1980, p.63.), na plurissignificação
que reside no poético.
A imitação do mundo físico, dos acontecimentos ou
mesmo a presença dos sentimentos individuais não é
propriedade da arte poética. A poesia só pode ser descoberta
na contemplação das palavras e estas têm o poder de atuar
sobre o mundo, sobre as coisas, sobre os sentimentos
individuais e deles extrair o artístico. Sem essa atuação das
palavras, as coisas, as ideias não significam nada em termos
literários. É necessário que o eventual assunto do poema (a
dura realidade do sertão pernambucano, o curso do rio
Capibaribe e a criação literária) encontre a forma de
expressão linguística adequada. Mas, essa forma linguística
não pode surgir por um trabalho apenas de inteligência: deve
nascer espontaneamente da contemplação das palavras (aqui
metaforizada pela concretude do sertão e pelo verbo
criador). É neste contemplar que nasce o discurso do rio da
linguagem artística que, quadro a quadro, cena por cena, (28
vezes) nos 960 versos, vai revelando o poético, unindo
forma e fundo, até a conclusão do curso do rio no mar de
múltiplas ondas, margens e significações.
Neste final encontramos a marca da arte, o número
7, símbolo da perfeição e do mistério. Se dividirmos as 28
cenas por 4 (o número do sólido, da criação e revelação),
chegaremos ao número 7, “símbolo universal de uma
totalidade, mas de uma totalidade em movimento ou de um
dinamismo total ( Chevalier, J. & Geheernrant, A. 1990,
p.750), a tradução da arte e símbolo de toda a criação.
Esta totalidade do poema O rio está expressa na
reunião das 60 estrofes. Cada estrofe significa um conjunto
de unidades ou versos do poema. Cada verso é uma imagem
poética que, somada aos versos seguintes, ganha um reforço
discursivo, sai do significado inicial e adquire novas
significações e possibilidades de leitura. Esta polissemia
provoca uma força no discurso poético análoga ao afluxo
das águas excitadas pelo encontro com as pedras. Depois do
choque entre o líquido e o sólido, o primeiro explode numa
energia provocada pelo contato, causando as vozes líquidas
do poema (Idem p.55) com o seu barulho de acontecimento e
ação. No texto poético, o mesmo procedimento pode ser
observado em todas estrofes e apresentado como um
exemplo, no primeiro verso da 31ª estrofe do poema O rio,
denominada “Encontro com a Usina”: Mas na Usina é que
vi (p.131). Na leitura desta unidade, a imagem acústica da
usina surge na memória do leitor, seguida do conceito
(significado). Porém, a possível acepção da usina como um
estabelecimento industrial, fábrica ou oficina, na significação
denotativa, designativo do mundo real, ganha novos
significados nas reiterações e associações concebidas nos
versos seguintes: aquela boca maior/que existe por detrás
/das bocas que ela plantou;/que come o canavial/que contra
as terras soltou; (Idem p.131).
No segundo verso, o leitor se vê diante de novo
significado da usina que, agora, não aparece com o conceito
abstrato de indústria, mas com o de um de ser detentor de
uma enorme boca devoradora, uma espécie de monstro, um
símbolo do mal. Aquela boca maior (Idem p.131) devora
outra uma boca também muito perigosa: o canavial. Cada
verso traz nova ideia do que poderia representar a usina,
uma vez que aquele conceito denotativo, agora é uma
conotação, é uma metáfora, explicada em forma de
informações, traduzindo o todo em partes, num processo
metonímico: a usina é uma boca maior. Tal boca mastiga
outra boca, que mastiga as terras, as casas, as caldeiras, tudo
reiteradamente.
O ato de triturar com os dentes é representado por
uma série de versos que ruminam repetidamente, como se
estivesse mastigando o problema que está sendo
explicado:boca maior/ que existe(...) que come (...) que
contra(...) que come(...) e tudo (...) que come (...) e tudo(...)
que come (...) (Idem p.131). Toda a seção de versos é
iniciada pela tradução de verbos que indicam certeza e pela
adição de mais informações, para que o discurso, apesar de
literário e, portanto, pouco transparente, seja comunicado.
A aludida reiteração de ideias e informações, além
de produzir o espelho do ato de ruminar, repisar a imagem
da violência e destruição provocada contra a vida daquela
região, reflete também a própria imagem fluvial: o
movimento ondulatório e sinuoso do fluxo das águas batendo
nas pedras, expondo perturbações da massa fluida. Os versos
são as linhas paralelas da corrente das águas formando
curvas, tomando outras formas e rumos.
Esta imagem fluvial percorre todo o poema O rio,
porém em algumas estrofes elas refletem as próprias ondas do
mar, como pode ser observado na estrofe 32: Na/vi/la/ da
U/si/na / é/ que/ fui/ des/co/bri/r a /gen/te / que as/ ca/na/s
ex/pul/sa/ram / das/ ri/ban/cei/ra/s e/ va/zan/tes; / e/ que
e/ssa/ gen/te/ mes/ ma / na/ bo/ca/ da U/si/na/ são /os/
den/tes / que/ mas/ti/gam /a/ ca/na / que a/ mas/ti/gou/
en/quan/to/ gen/te (Idem p.131) Os versos desta estrofe,
assim como de todas que compõem o poema “O Rio”,
possuem uma métrica irregular ou imperfeita, uma vez que
existe uma pequena variação no número de sílabas poéticas
de verso para verso. A métrica desse poema oscila entre, 5,
6,7,8,9 e 10 sílabas. Esta aparente irregularidade significa a
imagem das correntes do curso do rio, que na fluidez
espalha fluxos variados, porém carregados de ritmo. O ritmo
determina essa fluviometria do poema. Quase todos os
versos apresentam um ritmo que deixa evidente uma força
sonora, no início e no final de cada verso. O mesmo processo
acontece de forma cíclica em toda a estrofe: que nessa gente
mesma/ nos dente (...) arrenda/ as moendas estrangeira. Ao
lado dessa acentuação no princípio e fim de cada verso
existe um jogo entre os sons das vogais e consoantes, ora
prevalecendo a aliteração, ora a assonância. Porém, mesmo
quando o primeiro recurso está em evidência, os sons
vocálicos chamam mais atenção. É o que pode ser chamado
de vozes líquidas do poema, também já referidas nos versos
de “O poema e a água” (Idem p.55), numa alusão à
capacidade de percepção de ideias e evocação que
possuem os sons abertos. Tais sons, podem ser considerados
fluidos e detentores de uma grande capacidade
comunicativa. Ao contrário dos sons consonantais, que
exceto o (s), (com o seu poder de sugerir pluralidade), têm
um poder de reter a mensagem. Numa analogia, podemos
comparar as consoantes com as pedras: duras, sólidas,
firmes, quase que intransponíveis. Por outro lado, as vogais
têm a fluidez das águas: transparentes ou opacas,
comunicativas, soltas, leves, transcendentais.
Na leitura em voz alta, o poema “O Rio” deixa os
sons vocálicos fluírem como o barulho das águas batendo nas
pedras: Por esta grande usina/ olhando com cuidado vou,
que esta foi a usina/ que toda esta Mata dominou. Numa
usina se aprende/ como a carne mastiga o osso,/se aprende
como mãos/ amassam a pedra, o caroço (Idem p.132); As
águas quando encontram alguma dificuldade produzem um
barulho de sonoridade aberta, semelhante aos sons vocálicos.
Aqui também pode ser vista a metáfora da vitória do brando
sobre o duro, aludida na imagem dos versos acima. Efetiva-
se assim o resultado vitorioso do rio, sobre a dura realidade
enquanto, história e o triunfo do poético sobre a dura
realidade.
(Em poesia) “o som”, diz Pope, deve ser um eco do
sentido ( Pop, apud Lefebve, 1980, p.69). Lefebve acrescenta
que “em verdade, o som deveria ser o próprio sentido. Mas
somos forçados a contentarmo-nos com aproximações e com
quase. A encarnação é ideal que só se aproxima na imitação
ou na semelhança” (Idem. p. 69.) Esta aludida encarnação
realiza uma representação do espírito e esse momento
provoca a ilusão de que os sons das vogais podem ser
ouvidos por meio do barulho das águas. Este instante fica
carregado de impressionismo e idealização, uma vez que as
vozes liquidas (Idem p.55) do poema são fluídas e cheias de
opacidade. O som das vozes líquidas é quase virtual e
mítico, imaterial e inexplicável. Existe apenas a sugestão ou
imagem vocálica. Porém, no momento que a sugestão está
sendo praticada, ou encarnada, acontece “a tentativa de
superar a contradição opacidade – transparência e de
reaproximar a linguagem literária dessa linguagem adequada
e original, essa linguagem em que o significante e o
significado coincidem, essa linguagem dos deuses que é o
mito da literatura” (Idem. 1980, p. 69), conforme defende
Maurice-Jean.
Mas a arte aqui representada na canção fluvial,
não está apenas na sonoridade vocálica, ou fluída,
comunicativa e branda. E, como já citamos no capítulo
anterior, a arte nasce justamente “onde a comunicação se
quebra,- ou, pelo menos se altera -, como a faísca nasce de
um curso-circuito” (Idem. 1980, p. 36.) O discurso do rio
realiza um jogo entre o brando e do duro, entre o som
vocálico e o consonantal, num processo alquímico que
exprime uma realidade e traduz o mundo nas suas aparências
e estrutura. Todo esse artifício criativo fica marcado pela
abundância de significação inerente ao inscrição artístico.
Em quase todo o poema pode ser percebida ainda
a imagem das águas em ação, quer seja em corredeira, como
já sugerem estes primeiros versos: Sempre pensara em ir /
caminho do mar/ Para os bichos e rios/ nascer já é caminhar
(Idem p.119), ou ondas nas estrofes que apresentam o
“Encontro com a Usina”: que mastigam a cana/ que
mastigou enquanto gente;/ que mastigam a cana/ que
mastigou anteriormente (Idem p.131). A ideia de uma
situação- onda puxar outra, está reiterada nas estrofes 31 e
32, e em outras também, especialmente as que exprimem o
mar de cana. Desta forma, a arte reflete o real na própria
imagem discursiva.
Nesta ação imagética, muitas vezes aparece uma
sintaxe invisível e calada, refletida no próprio silêncio do
discurso. Este processo pode ser observado na quadragésima
sexta estrofe: Um velho cais roído/ e uma fila de oitizeiros/
há na curva mais lenta/ do caminho pela Jaqueira,/ onde
(não mais está)/ um menino bastante guenzo/ de tarde olhava
o rio/ como se filme de cinema;/ viam-me, rio, passar/ com
meu variado cortejo/ de coisas vivas, mortas,/coisas de lixo
de despejo (Idem p.137). Na descrição da curva mais lenta, o
discurso do rio é compassado e transmite uma imagem
nostálgica e triste, sombreada pelos oitizeiros e pela
aparência da ancianidade e decrepitude do cais consumido
pelo tempo.
Com uma nostalgia profunda, o rio contempla
aquele espaço e vê, inserido na realidade severina, a figura
franzina de um menino, também Severino. Este menino
olhava o rio e descobria no curso das águas a caminho do
mar, o próprio destino. Porém, o menino era uma palavra/
pedra em situação dicionária, estava estagnado, parado,
apenas Severino: não possuía a força daquele curso de água
que ganhava novos sentidos em cada fluxo de ação. Ele, o
menino, era um rio que não se fez, não tinha força suficiente
para realizar seu sonho de buscar outras margens. Ele, o rio,
olhava o menino e, também naquela figura humana e guenza,
se reconhecia: Sempre pensara em ir / caminho do mar (...)
Rio menino, eu temia/ aquela grande sede de palha/ grande
sede sem fundo (Idem p.119). O rio olhava no menino e,
como num filme, via passar a sua história de rio menino, num
estado de poço ou numa pequena nascente na Serra do
Jacarará. Como o menino, o rio também não tinha
consciência da sua situação dicionária, por isso afirmou
( não consigo me lembrar/ dessas primeiras léguas / de meu
caminhar (Idem p.119). O menino exprime a transfiguração
do rio da Serra do Jacarará e também símbolo dessa
realidade severa. Por outro lado, o menino via no rio a
imagem do seu ideal refletida em forma de acontecimento,
ação e construção de um mundo novo. Desta forma, a arte,
ao contemplar a realidade, não fica encantada com a
simples aparência da natureza, mas faz um mergulho na
própria imagem e, através dela, descobre os traços de um
possível real ofuscado pela visão da irrealidade da sua
criação. A natureza por sua vez também busca na arte sempre
o reflexo do si mesma numa posição narcisista. No entanto,
neste reflexo fica evidenciada uma irrealidade, uma ilusão,
um ideal distante de ser realizado.
Tal procedimento traduz a chamada “metáfora
do abismo”, que expressa uma espantosa e imensa
diferença entre o menino e rio, entre a realidade e a arte, entre
o real e o imaginário, apesar das possíveis analogias. Neste
momento, os dois páram e fazem mútua contemplação: um
menino bastante guenzo/ de tarde olhava o rio/ como se filme
de cinema e, vice-versa, o rio olha o menino, no processo
denominado por Lefebve (1980) de “reflexo abissal: o mundo
como espelho de si mesmo e a obra como espelho do mundo
coincidem” (Idem. p. 54). Mas neste encontro narcíseo,
cada um mergulha no próprio mundo: o menino – na sua
realidade severa e estática; a arte - na sua irrealidade, fluidez
e criação. Por este motivo, o discurso do rio nesta estrofe
transmite uma sensação de estar parado ou de construir um
abismo profundo de nostalgia, sentimento, lembranças num
variado cortejo/ de coisas vivas, mortas,/coisas de lixo de
despejo (Idem p.137). Estamos diante do fascinante encontro
entre a realidade pétrea e a fluidez da arte, num jogo
antitético gerador de energia e força produtora do poético e,
portanto, de imagens encantadoras que realizam a criação
de um mundo de significações.
271
GENETTE,Gérard. Discurso da Narrativa. Trad. Fernando Cabral
Martins. Lisboa: Vegas, 1984.
síntese, numa primeira assertiva, o enunciador apresenta a
relação analógica entre rios e bichos para, em seguida,
questionar a semelhança entre rios e marinheiros e, por
último, expõe que ambos se irmanam na aventura, (numa
relação certeza x dúvida x certeza). Estas asserções levaram-
no a concluir que os rios, os bichos e os homens do mar têm
um plano em comum: possuem uma natureza dinâmica, no
aspecto físico ou metafísico.
Esta lógica introduz esse discurso que, usando uma
voz poemática, discorre as travessias e os ideais de um ser-
rio amadurecido pelos acontecimentos, que já realizou todo o
seu percurso, que correu terras, contornou obstáculos,
venceu as pedras do seu curso, ultrapassou todos seus
limites. O momento presente tem a marca da maturidade e,
pelo tempo de meditar sobre sua existência, de considerar
suas próprias ações, seja como conhecimento que o intelecto
tem de si mesmo; como consciência; ou como abstração. Para
tanto, a voz poemática rememora seu nascimento e faz um
“flash-back”, retornando à sua primeira descida de serra e
caraibeiras lendárias: volta ao seu ponto de partida, ao
princípio do seu movimento, à nascente do rio Capibaribe na
serra do Jacarará, município de Poção no limite com a
Paraíba: Eu nasci descendoa serra que se diz do
Jacarará,/ entre caraibeiras/ de que só sei por ouvir contar.
(Idem p.119.)
Contemplando sua existência, o rio torna-se sujeito
de suas ações e, tomado pelo signo de uma antropomorfia,
adquire atribuições e caráter humanos, como a contemplação
das coisas e da natureza. Como um ser humano, observa o
espetáculo da vida e manifesta diversos sentimentos: medo,
resignação, incompreensão, espanto e perplexidade.
Esta constatação encontra-se traduzida por meio de
um discurso que examina a origem, natureza e transformação
do próprio mundo, numa alusão, muitas vezes, à filosofia de
Heráclito que concebe o mundo como um fluxo contínuo de
mudanças, um eterno fluir como um rio, onde se torna
impossível banhar-se duas vezes na mesma água; ou ainda,
defende o mundo como constante fluir, em movimento
perpétuo, e também como unidade dos opostos, sempre em
contradição entre si como uma guerra (Cf. Nicola A.1998,
p.497). 272
Transformado em um ser pensante, o rio realiza a
ação de contar poeticamente seu percurso, suas viagens pelo
mundo dos rios, agora que suas águas se movimentam no
grande mar. Os oito primeiros versos que iniciam
demonstram a conclusão da travessia das ações praticadas por
este sujeito que passa, a partir do nono verso, a contar seus
predicados. Começa aqui a anacronia defendida por Genette
(1984), como “uma discordância entre a ordem da história e
a da narrativa” ( p.20).Como já afirmamos anteriormente,
até a metade da primeira estrofe existe uma espécie de “grau
zero”, uma sincronia entre o tempo da história e o tempo da
narrativa. Na segunda metade do primeiro segmento, pode
ser percebida uma espécie de “sintaxe narrativa, em que uma
narrativa temporalmente segunda, é subordinada à primeira”
(Idem. 1984, p. 47), ou mesmo num enxerto temporal entre
o presente e o passado, entre o sujeito enunciador e as
ações praticadas: nascimento, infância, juventude, fase
adulta e a idade da razão – início, meio e fim de uma história,
que se encaixa de maneira cíclica com o início do discurso
do rio.
272
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi.
São Paulo: Martins Fontes, 1998.
A partir do nono verso, a voz poemática retorna à
sua nascente na serra do Jacarará onde, na realidade, ali o rio
brota protegido por uma mata e vai escorrendo até formar
uma lagoa, turva e espessa, tal qual na foz, em Recife. Graças
ao olho-d’água que mantém a terra úmida, aquele lugar não
conhece êxodo. Porém, o rio, os animais e os marinheiros têm
vida nômade, não ficam parados nas nascentes.
Na segunda estrofe, o momento presente está
tomado pelas lembranças dos caminhos percorridos. Os
verbos oscilando entre o presente o passado são
acompanhados de metáforas que traduzem um mundo
caótico, seco, ainda sem existência, ressequido, inimigo de
vida e água: Desde tudo que lembro,/lembro-me bem de que
baixava/entre terras de sede/que das margens me vigiavam/
Rio menino, eu temia / aquela grande sede de palha,/
(Idem p.119).
O rio representa um sim, nesta terra de negativas e
uma alegoria da criação do mundo, a partir do caos. A
imagem do rio menino diante do nada, metaforizado por
(aquela grande sede de palha,/ grande sede sem fundo)
(Idem p.119) expressa o momento do Fiat , em que o verbo
deu origem à existência e, com as artes e manhas da retórica,
venceu a grande sede sem fundo (Idem p.119) do nada, deu
luz à vida , ao mundo, ao rio que, para sobreviver às
intempéries dos vazios das areias inconstantes, tomou o
caminho do sólido, das pedras, do tangível, do verbo, da arte
e fez a história. O eu poemático retratou na sua narrativa os
caminhos do Alto Sertão, da estrada da Ribeira, Apolinário,
Poço Fundo, Os rios de Pernambuco, o Couro d’Anta, da
estrada da Paraíba, do riacho das Éguas ao Ribeiro do Mel, da
terras de Limoeiro a Ilhetas e desta ao Petribu, do trem de
ferro, do canavial, de outros rios, usinas,pontes, cidades,
ilhas, recifes e mares: o mundo do Capibaribe e sua
prosopopéia.
A terceira estrofe traz notícia do Alto Sertão, de
uma terra desertada,/ vaziada, não vazia,/ mais que seca,
calcinada./De onde tudo fugia,/ onde só pedra é que ficava,/
pedras e poucos homens/ com raízes de pedra, ou de cabra
(Idem p.120). Os versos rememoram terras companheiras do
sol e das sombras da morte.
Nos dois primeiros versos da quarta estrofe,
denominada “A estrada da Ribeira”, a voz poemática
retoma o verbo no pretérito-mais-que-perfeito, numa alusão
ao sonho acalentado: a busca do seu destino de mar ( Idem
p.120). A estrada da Ribeira foi a primeira travessia
consciente para o destino de mar. Foi neste espaço que o eu
poemático sentiu o contraste entre este início, condensado
num mar de cinza e o porvir estendido num mar de mar,
entre sua existência ressequida e a perspectiva de futuro.
Na estrofe seguinte, a voz poemática deixa a
primeira infância, as areias e a natureza de pedra do Alto
Sertão e percorre caminhos de brejos, não menos severos,
mas seu fluir acompanha a mudança dos espaços, dos nomes
e das coisas. O rio desfila ao lado do tempo, dos homens e de
outros rios, que aliás, apresentam-se como temática da
sétima estrofe: os rios são de água pouca,/em que a água
sempre está por um fio (Idem p.121). Estes rios são
animizados e zoomorfizados na própria história, uma vez
que possuem realmente nomes de gente, de santos e de
bichos: mas todos como a gente /que por aqui tenho visto:/ a
gente cuja vida/ se interrompe quando os rios (Idem p.121).
“De Poço Fundo a Couro d’Anta” motiva a oitava
estrofe. Nestes versos, o rio descreve o despovoamento da
ribeira:Vê-se alguma caieira/tocando fogo ainda mais na
terra;/vê-se alguma fazenda/com suas casas desertas: vêm
para a beira da água/ como bichos com sede (Idem p.122).
Descreve também a decadência das vilas de poucas casas,
nenhuma escola e uma pequena igreja (Idem p.122). A nona
estrofe descreve o desfile de Vilas com seus santos
padroeiros. Os versos apresentam o dinamismo do fluir do rio
que vai passando e observando o cenário: Primeiro é Poço
Fundo,/(...) Depois é Santa Cruz/ que agora é Capibaribe(...)
(Idem p.122). Na estrofe seguinte, a estrada da Paraíba fica
muito bem explicada, para não haver erro, num estilo muito
popular, numa prosa de um viajante experiente , senhor
daquele sertão, vilas, serras, rios, estradas e descida a
caminho do mar.
O tom popular do romance medieval está
evidenciado em cada verso da décima primeira estrofe. O rio
conta sua odisséia rumo ao mar, ao mesmo tempo que
afirma ser um viajante calado,/ para ouvir histórias bom,/ a
quem podeis falar/ sem que eu tente me interpor (Idem
p.123). Desta maneira, tem as características de um filósofo:
bom ouvinte, observador, sensível, racional e dono de uma
habilidade de comunicação e expressão: o rio é o
companheiro melhor (Idem p.123).
A viagem continua no 12º segmento por Caruaru
e Vertentes. Nesta altura, a narrativa alude a manhã,
fornecendo a imagem da passagem dos dias, do fluir das
horas, combinado com o movimento dos espaços
geográficos, das paisagens com suas denominações e suas
isotopias: Entretanto a paisagem,/ com tantos nomes, é quase
a mesma./ A mesma dor calada,/ o mesmo soluço seco,
/mesma morte de coisa/ que não apodrece mas seca (Idem
p.123).
As vilas desfilam seu cenário e coronéis na 13ª
estrofe: Cheos, Malhadinha, Salgadinho ( com pobres águas
curativas), São Vicente ( muito morta e muita antiga), Pedra
Tapada (com poucos votos e pouca vida), Pirauíra segue a
ladainha dos nomes de vilas, sempre com a mesma paisagem
( reduzida à sua pedra). Assim, tem início a estrofe seguinte,
continuando este discurso que exprime a dura realidade do
sertão nordestino nos versos: Vou na mesma
paisagem/reduzida à sua pedra./A vida veste ainda/sua mais
dura pele./Só que aqui há mais homens/ (Idem p.124.) Nesta
14ª estrofe, a voz narrativa faz um mergulho na paisagem
humana daquele espaço mirado pelos olhos da medusa,
lugar reduzido à pedra, mas habitado por homens
destemidos, que desmoronam mitos, apesar de acreditarem
nos santos padroeiros. Esses homens lutam contra pedra e
sabem lidar com penhasco.
A marca dos dias está presente neste poema
narrativo, que representa a própria imagem do fluir das águas,
do passar dos tempos: Dias depois, Limoeiro,/ cortada faca
na ribanceira (Idem p.124). Assim, tem início o 15ª estrofe
desse poema, que apresenta Limoeiro, cidade considerada
melhor, com duas feiras, cadeia segura e “bela”, melhores
fazendas, inúmeras bolandeiras, igreja maior e mais “feia” e
ainda possuidora da serra do Urubu. Depois, na estrofe
seguinte, são apresentados os defeitos deste cenário: região
de secura extrema e sede profunda e infinita:Pois, aqui, em
Limoeiro,/com seu trem, sua ponte de ferro,/com seus
algodoais,/ (Idem p.125.)
A secura de Limoeiro vai sendo deixada para trás
com evidente prazer. E outras cidades formam o cenário da
17ª estrofe: Ribeiro Fundo (onde só vivem ferreiros), Boi-
Seco, Feiticeiro, Gameleira, Ilhetas, todas ao pequenos
arruados/ plantados em terra alheia, onde vivem as mãos/
que calçando as outras, de ferro,/ vão arrancar da terra/ os
alheios frutos do alheio (Idem p.125). Na próxima porção
desse todo, o rio deixa definitivamente o município de
Limoeiro com o pensamento no trem de ferro, também
viajante a caminho do mar, mas dono de maior velocidade,
pois os rios , como os bois, são ronceiros (Idem p.126),
seguem sua lentidão sem pressão, sem diligência, ao sabor do
progresso da natureza.
Na 19ª estrofe, a presença do trem pode ser ouvida
quando o rio se aproxima de Carpina. E, outra vez aparece o
contraste entre a máquina com o seu grito de poder e
velocidade, e o caráter indolente, pachorrento e silencioso
do rio: Diversa da dos trens /é a viagem que fazem os
rios:/convivem com as coisas/entre as quais vão fluindo;/sem
se apressar em fugir/ (Idem p.126).Na 20ª
estrofe, a audição do rio torna-se mais aguçada, porque agora
não fica apenas a ouvir o trem de ferro; no momento em
que deixa o agreste, tem a impressão de ouvir vozes: “Rio
Capibaribe,/que mau caminho escolhestes/Vens de terras de
sola,/curtidas de tanta sede / (Idem p.126/127). Neste ponto,
a sensibilidade do rio está à flor da pele e das águas, e o
medo do desconhecido assola do inconsciente em forma de
presença sombria, mas a luz do ideal que brilha no
consciente fica mais forte quando exprime: Penso: o rumo
do mar / sempre é o melhor para quem desce (Idem p.127).
Nova marca temporal aparece no 21ª seção: No
outro dia deixava / o agreste, na Chã do Carpina./ Entrava
por Paudalho,/ terra já de cana e usina. Aqui, a paisagem
toma ares de canavial. A cana adquire características que
oscilam entre homem e animal, com cabeleira ou crina. O
eu narrador retrata a lâmina fina da folha de cana, a
aparência franzina da soca e qualifica aquelas terras como
mais brandas e femininas (Idem p.127).
Este cenário tem história, agora silenciosamente
ouvida pela voz poética no 22º e 23º segmentos: Foram
terras de engenho,/ agora são terras de usina./ É o que
contam os rios/ que vou encontrando por aqui (Idem p.127).
Desta maneira, são apresentados os “Outros rios”, que
segundo o narrador são diferentes dos que já o
acompanharam, mas que são bem vindos. Os primeiros eram
tímidos e todos não possuíam grandes ideais: eram
trabalhadores de eitos ou operário das usinas como os
homens daquele lugar. O sonho de outras águas parou para
movimentar os trabalhos dos engenhos e nas usinas. Os rios
operários apresentados são: Petribu (que trabalha para uma
usina), Apuá, Cursai (trabalhavam para engenhos), Cumbe ,
Cajueiro, Camilo, (trabalhadores de eito) Muçurepe, (que
trabalhava para outra usina), Goiatá,(dos lados da chã da
Alegria), Trapacurá (dos lados da Luz, freguesia/ da
gente do escrivão/ que foi escrevendo o que eu dizia) (Idem
p.128).
“A conversa de rios” é travada nas estrofes 24 e 25.
O rio narrador apresenta os “segredos”dos novos
companheiros, revelados depois de uma boa caminhada.
Aqui, na antroponímia dos rios, o enunciador revela o
caráter social da sua narrativa: Contam por que
possuem/aquela pele tão espessa;/por que todos
caminham/com aquele ar descalço de negros;/por que
descem tão tristes/arrastando lama e silêncio. (Idem p.128).
O discurso dos rios exprime a história dos
engenhos com seus fogos mortos, acompanhados da usina,
da moenda e da ruína do banguê velho. As impressões sobre
as usinas são pessimistas. Estas, são qualificadas como
portadoras de urtigas, morcegos e destruição.
A paisagem “Do Petribu ao Tapacurá” é descrita
nas estrofes 26 e 27. Na primeira, é enfatizada a vegetação:
tudo planta de cana/nos dois lados do caminho;/ e mais
plantas de cana/ nos dois lados do caminho/ por onde os rios
descem(...) e outras plantas de cana/ há na ribanceira dos
outros rios (...) Tudo planta de cana(...) Tudo planta de
cana/ e assim até o infinito(...) (Idem p.129). A reiteração da
imagem das plantas de cana, não quer enfatizar a extensão
do canavial, mas sim o poder dos usineiros que comandam
aquelas terras. Esta atividade econômica não trouxe
benefícios para aquela região, pelo contrário; o canavial
provoca o despovoamento, como está explicitado na 26ª
estrofe: As casas não são muitas/ que por aqui tenho
encontrado/ (os povoados são raros/ que a cana não tenha
expulsado) (Idem p.129). Os pequenos povoados citados são:
Rosarinho, Desterro, Paudalho e Santa Rita.
Aguilar, p. 119-120.
nesse Recife afoga os sonhos dos desafortunados e
retirantes que buscaram o mar e somente encontraram chão
de lama/ entre água e terra indecisa (Idem p.138), nesse
terreno que não é Canaã, nem Pasárgada, nem a ilha de
Robinson Crusoé.Porém, a tensão desta questão social foi
suspensa por enquanto. O narrador salta literalmente para
outros caminhos de seu discurso: Vou naquele caminho/que
pelo hospital dos Coelhos./ por cais de que as vazantes/
exibem gengivas negras,/ leva àquele Recife/ de fundação
holandesa (Idem p.138). Aqui, são citadas as pontes
portuguesas, o anúncios luminosos, o Palácio do Governo, o
caminho “Dos Coelhos ao cais de Santa Rita”, apresentado na
estrofe 50.
As seções 51 e 52 expõem a lentidão das águas
espessas do rio, águas pesadas de terra preta, de ilhas e dores
dos moradores daquele lamaçal. Na próxima estrofe, desfilam
os cais com seus sobrados ossudos (Idem p.139). O rio
parece parado de tanto peso e, por ele, parece passarem
muitos sobrados/ com seus telhados agudos (Idem p.139), os
armazém de açúcar do Brum, barcaças a caminho de
Itapissuma e Igaraçu. O mar finalmente desponta no cais de
Santa Rita, como enorme montanha azul (Idem p.139). Este
encontro com o mar foi acompanhado do reflexo de uma
imagem poética, que traduz o despertar do estado de
embriaguez e sonolência, um mundo de imaginações, para
uma realidade. Na primeira impressão, o mar de tanto azul,
é, no inconsciente, montanha, e só depois aparece a como
uma paisagem marinha de Recife que tanto inspirou
Joaquim Cardozo. Porém, esta pintura levou o discurso do
rio voltar à cidade tão cantada nos versos do matemático,
poeta e amigo Joaquim Cardozo. É preciso contar sobre
Recife: Tuas refeições de peixe;/ teus nomes / femininos:
Mariana; teu verso/ medido pelas ondas;/ a cidade que não
consegues/ esquecer/ aflorada no mar: recife,/ arrecifes,
marés, maresias (Idem p.80); como foi descrita num poema
do livro O Engenheiro, dedicado à engenharia verbal do
referido poeta daquela paisagem. A estrofe 53, o enunciador
explica que vai contar da cidade/ habitada por aquela gente/
(Idem p.140) que o acompanhou de quem foi confidente: Lá
pelo Beberibe/aquela cidade também se estende/ prefere se
fixar aquela gente/sempre perto dos rios/
(Idem p.140).
Da 53ª até a 58ª, o rio desfila sua experiência e
conhecimento a respeito dos rios da região e dos homens
que moram naquele espaço. O enunciador afirma que todos
os habitantes dali são seus conhecidos: rios e gente do
Agreste, da Caatinga,da Mata vomitada pelas usinas / gente
também daqui/ que trabalha nestas usinas,/ que aqui não
moem cana,/ moem coisas muito mais finas (Idem p.140).
Aqui, o eu poemático denuncia uma questão citadina: a
escravidão dos trabalhadores das fábricas.
Por meio da sua narração, o rio vai demonstrado a
intimidade entre ele e aquela gente: entro-lhes pela cozinha;/
como bicho de casa/ penetro nas camarinhas (Idem p.140). O
rio é amigo, é amante, é o defensor, é a voz dos que vivem
sob o avesso do Recife e desvela “As duas Cidades”.O
discurso do rio questiona, em poética voz, a história de um
Recife que não está nos livros, da sua metade pode/ que
com lama se edifica (Idem p. 141). Evidencia a cidade das
sombras, sem nome, mendiga, que, de outra qualquer
cidade/ possui apenas polícia./ Desta capital podre/ só as
estatísticas dão notícia,/ ao medir sua morte,/ pois não há o
que medir em sua vida (Idem p.141).
A voz poemática conclui a exposição enfatizando
seu conhecimento sobre essa gente que deságua nestes
alagados (Idem p.141). Segundo o rio, esse povo o
acompanhou desde a serra do Jacarará: gente que sempre me
olha/ como se, de tanto me olhar,/ eu pudesse o milagre/ de,
num dia ainda por chegar,/ levar todos comigo,/ retirantes
para o mar (Idem p.142).
“Os dois mares” dominam o assunto da penúltima
estrofe. O rio segue seu itinerário lentamente, como num
cortejo fúnebre, pausadamente vai filosofando sobre o
destino dos rios e daquele povo. O primeiro sempre alcança
o mar imenso; o segundo, é detido pelo mar de lama, sem
perspectiva, sem vida, num fim dolorido. O rio sofre as dores
dessa gente.
A voz narrativa conclui seu percurso. Entra agora
pelos caminhos comuns do mar (Idem p.142), avista barcos
e corre junto de barcaça e rios vindo de outros lugares. Deixa
para trás a gente desses alagados e, no discurso, sua
indignação, sua pergunta, concebida como uma substância
ou uma essência da linguagem artística. Essa interrogação
tem um caráter concreto uma vez que o rio o questiona a si,
num exame de consciência, numa constatação de um destino
comum dessa gente.
Por outro lado, a referida pergunta está marcada
por uma multiplicidade sêmica, já que pode ser dirigida a
alguém ou a ninguém; aos leitores, a todos que interessem
pela humanidade; ou evidencia a irrealidade da sua
materialidade por meio de uma conotação reflexiva. Maurice-
Jean Lefebve (1980) afirma que “a conotação reflexiva
insere-se precisamente nesta ambiguidade: dá-nos o discurso
como literário, logo, inseparavelmente, como matéria de
linguagem e realidade do mundo” (Idem p. 53). Pode ainda ir
além, e evidenciar “a sua natureza artificial e irreal
recorrendo a um processo manifesto: o do reflexo abissal”
(Idem, p. 54) expondo na própria imagem discursiva o
reflexo visível da irrealidade da sua criação: a linguagem
real do rio Capibaribe configura o espelho do discurso
literário do poema O rio.
Finalmente, nos quatro últimos versos, conclui:
Somente a relação/ de nosso comum retirar;/ só esta relação/
tecida em grosso tear (Idem p.143). Destarte, com maestria,
o rio cumpre a sua função: construir a narrativa e a história
desse mundo real sob o signo da arte da palavra.
Toda essa história narrada pelo eu poemático
compõe-se por uma sequência de situações vivenciadas pela
voz narrativa e de ações por este sujeito, implantadas num
certo espaço, durante um determinado tempo.
De início, o caráter ficcional pode ser percebido
uma vez que a voz anunciada pertence ao próprio rio
Capibaribe, constituindo-se portanto numa prosopopéia. As
situações vivenciadas pelo sujeito são as constatações
experimentadas durante percurso, da sua nascente até o
oceano, num jogo ficção x realidade. Este dualismo traduz
as duas faces desta narrativa, uma vez que o rio expressa
ficção e realidade ao mesmo tempo.
A realidade pré-existente do rio Capibaribe está nas
experiências do personagem ficcional. Desde a nascente do
rio, todos os espaços citados: a lagoa da Estaca,
Apolinário, Alto Sertão, estrada da Ribeira, Poço Fundo,
Couro d’Anta, estrada da Paraíba, riacho das Éguas, ribeiro
do Mel, terras de Limoeiro, Ilhetas, Petribu, o canavial, os
rios citados, o Tapacurá, as usinas e sua problemática, São
Lourenço, Ponte de Prata, Caxangá, Apipucos, Madalena,
primeiras ilhas, os cais de Santa Rita, as duas cidades
descritas. Estas paisagens e questionamentos formam a
verdadeira história do rio Capibaribe. Por outro lado, os
personagens dessa narrativa são rios e homens. Porém, estes
últimos não têm voz, são narrados pelo rio Capibaribe que,
por sua, vez insere uma ideologia de caráter revolucionário a
caminho do mar e de outras margens de vida. Entretanto, no
final os rios alcançam o ideal, chegam ao grande mar, mas os
homens ficam estacionados no mar de lama. A voz narrativa,
depois de contar sua odisséia, interroga sua participação e
ideologia neste fim de história e segue seu inexorável
caminho. Contudo, ao partir, narra a história dessa gente, por
meio da sua experiência poética e narrativa e, nesta
realização, revela a condição humana.
Esta ação praticada pelo sujeito poético, não possui,
evidentemente a eficácia e o interesse, nem a transparência
do discurso quotidiano. “O discurso literário não se dirige,
em geral, a nenhum interlocutor preciso: no limite, dir-se-ia
que ele se fala sozinho. Trata-se, ainda, de um sinal de
gratuidade” (Idem, p. 36). Por outro lado, o rio exprime a
difícil travessia do homem sertanejo e questões sociais e
históricas de Pernambuco e utiliza o próprio discurso para
falar sobre este mundo. Desta forma, a narrativa do rio
Capibaribe apresenta duas faces: Ficção – a prosopopéia x
Realidade – o mundo real do rio Cabiparibe.
3. Nível profundo
274
FRIEDRICH, H.A Estrutura da Lírica Moderna. Trad. Marise N.
Curioni, S. P. Duas Cidades, 1978.
homens e, por isso, está isento de responsabilidades e críticas
da realidade. E, no posto de sua margem, isenção e arte, O
rio pode contemplar o mundo poética e filosoficamente. De
sua contemplação nasceram os versos do seu discurso-rio,
nos quais a voz poética exprime o desacerto do mundo por
meio das marcas estilísticas de seus versos, que refletem
sobre própria construção literária.
O nível discursivo desse trabalho artístico
evidenciou a irregularidade métrica dos versos do poema.Tal
irregularidade metaforiza toda a disjunção de um mundo
caótico e desumano observado por esse rio-poeta-filósofo.
Ora, como poderia esse poeta expressar, por meio de versos
marcados pela regularidade, ações e realidades tão estranhas
e inconcebíveis para os olhos humanos? Qual seria a melhor
maneira para exprimir em versos a desumanidade do próprio
homem? Com certeza, o nosso rio-poeta-filósofo e, ao
mesmo tempo, a própria arte em sua plena realização,
transfigurou, com coerência, as imagens inusitadas que
contemplou. Daí nasceu essa prosopopéia que, no seu
estranhamento próprio da arte, presentifica uma realidade que
poderia ser estranha se não fosse tão real. Tal concepção
conduz ao célebre questionamento, a vida imita a arte, ou a
arte imita a vida. Da primeira assertiva está patente um
princípio certo e verdadeiro, a vida talvez seja muito mais
estranha do que a arte. Por isso, as imagens aparentemente
inusitadas do poema O rio exprimem o estranhamento do ser
da arte, que não se presta a uma simples imitação da
realidade, tem sua autonomia e singularidade. Ela existe e
basta. Cabe ao homem, que se diz humano, contemplá-la e,
neste encontro, resgatar sua humanidade perdida no deserto
de sua modernidade imaginada e cheia de poder e
conquistas. Quem sabe nesse encontro, o homem perceba que
a sua maior vitória está dentro do seu próprio rio existencial,
e que este talvez seja também um Capibaribe a cantar
versos irregulares de uma desumanidade perdida? Neste
reflexo o homem pode ter salvação e nem tudo está disperso.
Entretanto, torna-se necessário esse mergulho no
discurso-rio da linguagem para que se descubra este rio
inexaurível do ser do qual Nietzsche escreve que “ninguém
pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar,
para atravessar o rio da vida – ninguém, exceto tu, só tu.
Existem, por certo, atalhos sem números, e pontes, e
semideuses que se oferecerão para levar-te além do rio; mas
isso te custaria a tua própria pessoa; tu te hipotecarias e te
perderias. Existe no mundo um único caminho onde só tu
podes passar. Onde levas? Não perguntes, segue-o”
(Nietzsche, F. 1950, p. 608). Desta forma, O rio de João
Cabral de Melo Neto nos 960 versos procede por meio de
raciocínios imagéticos toda uma metáfora viva da existência
do homem e da natureza em geral. Na fala proferida para o
ser humano, o rio o conduz a uma reflexão sobre todas as
coisas e, como um filósofo, mostra as verdades de forma
abstrata e concreta. Cabe aos homens efetivar essa
conscientização.
.
Cão (C)
Homem (H) Espada
Rio (R) Fruta (F) (E)
§ Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
(...)
277
DUBOIS, Jacques et. al. Retórica da Poesia. Trad. de Carlos Felipe
Moisés. São Paulo: Cultrix, 1980.
278
COHEN, Jean. A Plenitude da Linguagem ( Teoria da Poeticidade).
Trad. José Carlos Seabra Pereira. Coimbra: Livraria Almedina, 1987.
§ Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
(...)
§ Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.
(p.109/110)
O termo rio foi modificado “in absentia”, baseado na
semelhança dos semas conotativos entre o termo
modificado e o substituído: Aquele rio / (...) Sabia dos
caranguejos / de lodo e ferrugem. / Sabia da lama / como
de uma mucosa. / Devia saber dos polvos. / Sabia
seguramente / da mulher febril que habita as ostras (Idem
p.105). Na redução do desvio o termo substituinte sofre
supressão de quase todos os seus semas nucleares,
substituindo-os pelos semas do termo substituído.
Considera-se, portanto, de um lado - o rio; do outro, a
espada e, no centro, o cão sem plumas - o homem, que é
ao mesmo tempo, o rio e a fruta.
O rio corta uma paisagem que, no poema, é
representada pelas partes Paisagem do Capibaribe I e
Paisagem do Capibaribe II. Depois, tem a “Fábula do
Capibaribe” na qual se observa a cena que a cidade é
fecundada / por aquela espada (p.111). Em seguida, “O
discurso do Capibaribe” evidencia os estados de
consciência ou movimentos interiores daquela metáfora
viva que pode ser reconhecida inicialmente pela
visualização do seguinte quadro:
A norma (plano paradigmático) – no nível do código
Sememas Semas nucleares Class Semas conotativos
emas
Cão Mamífero animado despojamento
(Ter quadrúpede, animal miséria
mo
substi carnívoro material concreto pobreza
tuinte domesticado fidelidade
)
desprezado desprezo
Diabo
sem (Pluma) adorno inanimado material concreto
(Sem plumas)
plum
as de aves. ausência,
Algodão riqueza)
Estr inanimado despojamento
utur
Paisa a material miséria,
gem físic pobreza
do concreto
a fidelidade
Capib
aribe de desprezo
I uma
(term
o pais
modif age
icado m
) mar
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por
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e
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a.
Paisa Estr inanimado despojamento,
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II. a material miséria,
(Ter físic pobreza
concreto
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Cã Es a
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n
c
r
e
t
o
§ Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo de estagnação
das árvores obesa
pingando os mil açucares
das salas de jantar pernambucana
por onde veio arrastando.
§ (É nelas,
mas de costas para o rio,
que “as grandes famílias espirituais” da cidade
chocam seus ovos gordos
de sua prosa./...).
(Idem p.107)
Aqui estão reiterados os aspectos da negatividade
que não aparecem explicitados na história dos cartões
postais ou guias turísticos. Este rio representa uma
realidade velada, porque não interessa às salas de jantar
pernambucanas/ (...) às grandes famílias espirituais (p.
107), como ironicamente foi exposta a nobreza
pernambucana.
Na “Paisagem do Capibaribe II”, o elemento humano
é fundido ao rio e ao cão. Aliás, o cão é metáfora do
homem que, desprovido de ser e linguagem, tornou-se o
objeto do olhar do eu poético. E, nesse conjunto ritmo e
imagético dessa paisagem de anfíbios / de lama e lama
(p.108), cada verso flui como as águas pesadas do rio,
como o andar dolorido do cão, refletindo a cada passo, a
cada ritmo de reiteração cheia de intensidade e desvios. Os
versos vão ora oscilando, ora fazendo uma parada num
momento de reflexão, obrigando o pensamento a voltar
sobre si mesmo para examinar o seu próprio conteúdo:
§ Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
§ Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.
§ Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta.
(Idem p.112/113)
5. Imaginação material
283
BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. Trad.
de Maria da Gloria Novak e Maria Luiza Néri. Campinas- São
Paulo : Pontes / Editora da Universidade Estadual de Campinas,
1991.
mais além de reorganização das convenções, e não
significa conferir “expressividade” ao já conhecido.
Benveniste ao dizer que “ o espírito só acolhe a forma
sonora que serve de suporte a uma representação
identificável para ele; senão. rejeita-a como
desconhecida ou estranha”, nota-se que a visão do
linguista , marcada pela categorização, acaba
fornecendo subsídios férteis para a reflexão sobre o
poético. Muitas e muitas vezes, mesmo não conseguimos
encontrar uma relação lógica entre os significados das
palavras de um poema, o nosso espírito acolhe o que
aprende como nomeado pela primeira vez, embora já não
mais pelas palavras-signos, mas pela profusão
hieroglífica dos elementos constituintes. (Op. Cit..Idem
p.166)
O/u/o/e/u/io/eu/i/u/o/io
e/a/a/a/e/a/e/e/a/a/e/e
u/io/e/i/a/e/ui/o/io/e/a/ua
a/a/e/a/e/o/io/a/i/o/eu/o/e
a/o/a/i/o/uê/ia/e/u/a/eia
e/i/o/o/i/e/i/a/ou/a/i/ua/e
u/io/e/i/a/e/ui/a/a/ua/e/io
a/a/eu/o/o/o/o/o/e/e/a/e
e/a/e/u/a/e/ao/a/e/e/a/e
a/e/a/e/e/a/io/o/i/u/o/u/i/o
e/eu/e/e/o/a/e/a/e/e/o/a/e
(Idem p.352)
287
DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário:
introdução à arquetipologia geral. Trad. Hélder Godinho. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
Esse texto aperfeiçoa a imagem da água vertical que,
mesmo funcionando maquinalmente como um monjolo
continua sem o seu discurso real e efetivo: quem sabe se
algum monjolo/ ou antiga roda de água / que vai rodando,
passiva, / graças a um fluído que a passa // que fluido é
ninguém vê: da água não mostra os senões: / além de igual,
é contínuo, / sem marés, sem estações (Idem p. 326).
Esse poema explora a metáfora do rio interior que
corre dentro do homem: outra máquina de dentro, / imediata,
a reveza, / soando nas veias, no fundo / de poça no corpo,
imersa (p.327). Esse rio material e interior tem a sina dos
rios de um dia, possui sua existência limitada no tempo e
no espaço. Porém, o movimento desse rio pode ter
continuidade se tomar a posse do discurso dos rios
duradouros (Idem p.352) que sem a bomba motor/ (coração
linguagem) // extenua gota a gota (Idem p.327) a íntima
poça do homem. Assim, mergulha no ser do homem / lavra e
desvenda seus mistérios, para se consubstanciar em
linguagem e movimento contínuo, como um relógio entre o
ser tempo e espaço. Nesta unificação, a vida e a poesia
permanecem na imaginação material.
Esta imaginação exterioriza-se também em “O
poema” (Idem p. 76/77), que perscruta os mistérios
da criação poética:
A tinta e a lápis
escrevem-se todos
os versos do mundo.
Na cidade propriamente
velhos sobrados esguios
apertam ombros calcários
de cada lado de um rio.
(Idem p.147)
O catelhano e o catalão
têm pobreza e riqueza tristes.
assim desprezam a Andaluzia:
vêm na africana ou sacrílega.
CONCLUSÃO
289
BARBOSA, João Alexandre. João Cabral de Melo Neto. São Paulo:
Publifolha, 2001.
relações entre criação poética e expressão da
realidade.
As respostas iniciais de João Cabral, portanto,
serão as marcas tensas de uma poesia que, querendo-
se consciente do fazer e da construção, se abre, cada
vez mais, para dizer da experiência dos homens e do
mundo (Op. Cit BARBOSA, J. A. (2001) p.14).
I – OBRAS DA AUTORA
1. CRÍTICA / ENSAIO
1.1. LIVROS
O signo de Eros na poesia de G.M.T. Goiânia: Editora
Kelps, 2005
Três Líricas Performativas. Coleção Prosa e Verso,
Goiânia: Editora Kelps/ UCG, 2007.
Leitura & Poesia I,. Coleção Prosa e Verso, Goiânia:
Editora Kelps/ UCG, 2009/
Leitura e Poesia II. Coleção Prosa e Verso, Goiânia:
Editora Kelps/ PUC, 2011/
Leitura & Poesia III. Coleção Prosa e Verso, / Goiânia:
Editora Kelps/ PUC, 2012/
O Discurso do Rio em João Cabral. Salamanca: Editora
Lusoedições, 2016
O discurso do rio em João Cabral. Goiânia: Kelps 2016.
2ª edição 2020
O signo de Eros na poesia de G.M.T e outros ensaios.
Goiânia: Editora Kelps, 2020.
A poesia brasileira do Barroco ao Modernismo. Teoria e
Prática. Goiânia: Editora Kelps, 2020
Arte e Poesia em Goiás. Teoria e Prática. Goiânia. Kelps,
2020.
2. LITERATURA INFANTO-JUVENIL
O castelo de Branca de Neve. Goiânia: Editora Kelps. 2004
Renato e as bananas Ourinhos. Coleção Histórias que
vovó Maria contava. Goiânia: Editora Kelps/ Learte 2006;
O papagaio e a rocodela. Coleção Histórias que vovó
Maria contava. Goiânia: Editora Kelps/Leart. 2007;
Sopa de pedras. Coleção Histórias que vovó Maria
contava Goiânia: Editora Kelps/Leart. 2005 e em 2007
A sopa de Viaro e outras estórias. Goiânia: Editora
Kelps/Leart. 2007.
O bezerro e a rainha. Coleção Contos para crianças.
Goiânia: Editora PUC Goiás/ Kelps, 2009.
A pedra furada. Coleção Contos para crianças. Goiânia:
Editora PUC Goiás/ Kelps, 2009.
Os cabelos de Rebeca. Coleção Contos para crianças.
Goiânia: Editora PUC Goiás/ Kelps, 2009.
O Canto de Iguaçu Coleção Contos e Cantos das Águas.
Goiânia: Editora PUC Goiás/ Kelps, 2014.
Pelo Amor de uma Tapuia Coleção Contos e Cantos das
Águas. Goiânia: Editora PUC Goiás/ Kelps, 2014.
O Papagaio Pintor e o Castelo de Baobá. Coleção Contos e
Cantos das Águas. Goiânia: Editora Kelps. 2014.
A Odisseia de Nívea e os sete anões. Goiânia: Editora
Kelps, 2016.
Contos e Recontos Infantis. Coletânea. Goiânia: Editora
Kelps, 2017.
Contos e Recontos Infantis. Coletânea. Goiânia: Editora
Educart. 2018.
Contos e Recontos Infantis. Coletânea. Goiânia: Editora
Educart, 2019.
Aninha e o concílio das musas. Coleção Contos e cantos de
Aninha. Goiânia: Editora Kelps,
2018.
Cora coralina e a cidade de pedras. Coleção Contos e
cantos de Aninha. Goiânia: Editora Kelps, 2018.
O Mundo Encantado de Amaury Menezes. Cora coralina
e a cidade de pedras. Goiânia: Editora Kelps, 2020.
Dois Mundos. Goiânia: Editora Kelps, 2020.
4. EM COLABORAÇÃO
FOTOS
1. Lançamento de Livros e momentos de
autógrafos:
Lançamento de O Castelo de Branca de Neve, como seus
filhos Everaldo Júnior, o ilustrador, Cecilia Menezes e
Diana Gonçalves Lima. Em 2004
Lançamento de A sopa de Viaro e outras estórias como seu
filho Everaldo Júnior, o ilustrador, e a presença da
escritora Augusta Faro, em 2004
Outros lançamentos
Coleção Contos para crianças (2009)
Três Líricas Performativas.(2007) Leitura & Poesia I
(2011) A pedra furada
O bezerro e a rainha
Os cabelos de Rebeca
Recebendo o Título Honorífico de Cidadã Goianiense
(2012), com sua mãe, Manoelina Gonçalves, seu esposo
Everaldo Correia de Lima e seus três filhos.
Outros momentos de lançamentos e homenagens.