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MARIA DE FÁTIMA GONÇALVES LIMA

A Poesia da Literatura Brasileira


Do Barroco ao Modernismo
CONSELHO EDITORIAL

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BIBLIOTECA PÚBLICA ESTADUAL PIO VARGAS

Lima. Maria de Fátima Gonçalves Lima.


Leitura e Poesia em Cena – Do Barroco ao Modernismo

1. Literatura 2. Critica literária 3. Ensiaos I. Título.

CDU: 821:2-25

Índice para catálogo sistemático:


CDU: 821:2-25

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sem a autorização prévia e por escrito do autor. A violação dos Direitos Autorais (Lei nº
9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

Impresso no Brasil Printed in Brazil 2020


Aos meus refúgios seguros,

encontros serenos de

Paz, Porto Seguro e Muito Amor:

Everaldo Correia de Lima ,


Everaldo Júnior,
Cecília Menezes Gonçalves Lima
e Diana Gonçalves Lima

À minha mãe, Manoelina, in memoria


Plenitude e Exemplo.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
I – A SÁTIRA DE GREGÓRIO DE MATOS - O BOCA DO INFERNO
INTRODUÇÃO
1. O BARROCO
1. 1. Barroco: arte da contra-reforma
1. 2. Características principais
1. 3. O brasil na época barroca
2. GREGÓRIO DE MATOS E GUERRA
2.2. O estilo “boca do inferno”
3. BOCA DO INFERNO
3.1. O mundo às avessas
3.2. Caricatura do poder
3.3. A linguagem libertina
4. A MULHER E O AMOR
CONCLUSÃO

II - MARÍLIA DE DIRCEU – AMOR, RAZÃO E POESIA


INTRODUÇÃO
1. NEOCLASSICISMO/ARCADISMO
1. 1. O panorama da época
1. 2. O Brasil na época arcádica
1. 3. Características da poesia arcádica
2. AS LIRAS DE TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
2. 1. Caracteríscas da poesia lírica de Gonzaga
2. 1. 1. Do rococó
2. 1. 2. Do Arcadismo
2. 1. 3. Da convenção arcádica à antecipação romântica
2. 2. TEMAS
2. 2. 1. Marília de Dirceu - o retrato da amada
2. 2. 2. Dirceu de Marília - o retrato do amado
2. 3. FORMAS
2. 4. LIRISMO EM TRÊS DIMENSÕES
2. 4. 1. Bucolismo convencional
2. 4. 2. Lirismo amoroso expressivo
2. 4. 2. 1. Lirismo amoroso como expressão pessoal
2. 4. 2. 2. Lirismo amoroso como exercício poético
2. 4. 3. Lirismo como expressão do homem
3. O POETA, MAGISTRADO E INCONFIDENTE TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
3. 1. A Adolescência na Bahia e os estudos em Portugal
3. 3. O Amor e a Inconfidência
3. 4. O recomeço
3. 4. A obra completa
CONCLUSÃO

III – O POETA DA CANÇÃO, DO ÍNDIO E DOS AMORES


INTRODUÇÃO
1. GONÇALVES DIAS: O POETA DA CANÇÃO, DO ÍNDIO E DOS AMORES
2. O ROMANTISMO
2. 1. A renovação das formas literárias
2. 2. Ritmo e Criação
3. A POESIA ROMÂNTICA DE GONÇALVES DIAS
3. 1. Individualismo, Subjetivismo, Confessionalismo
3. 2. A Religiosidade, Natureza e Idealismo
4. O NACIONALISMO
4. 1. O Contexto do Nacionalismo
4. 2. O Nacionalismo dos Temas d da Linguagem
5. O INDIANISMO NO BRASIL
5. 1.O Indianismo do Quinhentismo E Barroco
5. 2. O Indianismo do Período Arcádico
5. 3. O Indianismo do Período Romântico
5. 4. O Indianismo do Período Parnasiano
5. 5. Indianismo do Período Modernista
5. 6. Período Pós-Modernista
6. O INDIANISMO DE GONÇALVES DIAS
7. A LÍRICA AMOROSA
CONCLUSÃO

IV – A LIRA DO NOIVO DA MORTE

INTRODUÇÃO
1. O ROMANTISMO
1. 1. Contexto histórico
1. 2. A poesia ultrarromântica de álvares de azevedo
1. 2. 1. Liberdade criadora e subjetivismo
1. 2. 2. Sonho x realidade
1. 2. 3. A idealização da mulher
1. 2. 4. O Platonismo amoroso
1. 2. 5. A imagem da mulher adormecida
2. O NOIVO DA MORTE
2. 1. Lembrança de morrer
2. 2. O pálido poeta
3. 1. A face Ariel
3. 2. A face Caliban
3. 2. 1. O diabólico licor
3. 2. 2. Brasileirismo malandro
4. IDEIAS ÍNTIMAS
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA

V. OS MELHORES POEMAS DE ALPHONSUS DE GUIMARAENS


1. Alphonsus de guimaraens - o poeta dos sinos plangentes,dos cinamomos, da vida, da
morte, da transcendência.
2. O SIMBOLISMO
2. 1 O Simbolismo no Brasil
2. 2. O Simbolismo de Alphonsus de Guimaraens
3. INTERESSE PELO INDEFINIDO E PELO MISTÉRIO
3.1. Exploração do tema da morte
4. SIMBOLISMO E METALINGUAGEM
5. CONCEPÇÃO MÍSTICA DO MUNDO
5. 1. Atmosfera mística e litúrgica
6. IMAGINAÇÃO E FANTASIA
6. 1. O silêncio da lua
CONCLUSÃO

VI. EU E OUTRAS POESIA – AUGUSTO DOS ANJOS,


1. PRÉ-MODERNISMO
1.1. O Panorama da época
1.2. Literatura Conservadora e Literatura Renovadora
2. O SINCRETISMO DE AUGUSTO DOS ANJOS
2. 1. O Parnasianismo
2. 2. O Simbolismo
2. 3. Componentes da poesia de Augusto dos Anjos
2. 3. 1. Temas
2. 3. 2. O Simbolismo
3. A POESIA DE AUGUSTO DOS ANJOS
4. AUGUSTO DOS ANJOS - O VATE DA DOR E DO INFORTÚNIO
4. 1. O Engenho Pau-d’Arco
4. 2. O curso de Direito, o Magistério, as Mudanças e a Poética da Dor
4. 3. O Livro polêmico e o final prematuro
CONCLUSÃO

VII. MELHORES POEMAS DE MANUEL BANDEIRA


1. ITINERÁRIO
1. 1. Lastro subjetivo, autobiográfico: a tuberculose
1.2. Recife, figuras da infância
2. RITMOS, ESTILOS E VIDA
3. O MODERNISMO
4. CARACTERÍSTICAS DAS OBRAS
4. 1. Primeira fase: PréModernismo
4. 1. 1. Cinza das Horas
4. 1. 2. Carnaval
4. 1. 3. O Ritmo dissoluto
4. 2. A Segunda fase: Modernismo
4.2.1. Libertinagem
4.2.2. Estrela da manhã
4.3. Terceira fase: PósModernismo
5. CONCLUSÃO

VIII. A POESIA DE CECÍLIA MEIRELES


INTRODUÇÃO
1. A POESIA DA SEGUNDA GERAÇÃO MODERNISTA
1. 1. Contexto Histórico
1. 2. Contexto Cultural
2. O LIRISMO DE CECÍLIA MEIRELES
2. 1. Preocupação com a fugacidade do tempo, com a precariedade das coisas e dos seres, e a
consciência da imortalidade através do poético
2. 1. 1. A vida só é possível reinventada
2. 1. 2. O sangue eterno e a pluralidade dos versos cecilianos
2. 2. A contemplação do mundo
2. 3. A fusão entre o poeta e a natureza
2. 4. Ênfase à condição solitária do ser humano e aos obstáculos da vida
3. CARACTERÍSTICAS ESTILÍSTICAS
3. 1. O apuro formal
3. 2. A captação sensorial
3. 3. Musicalidade
4. A HISTÓRIA E A TEMÁTICA SOCIAL
4. 1. Divisão por parte da obra completa - Romanceiro da Inconfidência
4. 1. 1. Primeira parte
4. 1. 2. Segunda parte
4. 1. 3. Terceira parte
4. 1. 4. Quarta parte
4. 1. 5. Quinta parte
4. 2. A seleção dos romances nos Melhores Poemas de Cecília Meireles
4. 2. 1. Cenário
4. 2. 2. Romance XII ou de Nossa Senhora da Ajuda
4. 2. 3. Romance XXI ou Das Ideias
4. 2. 4. Romance XXIV ou Da Bandeira da Inconfidência
4. 2. 5. Fala aos pusilânimes
4. 2. 6. Romance XLVIII ou Do jogo de cartas
4. 2. 7. Romance LIII ou Das palavras aéreas
4. 2. 8. Romance LXXXI ou Dos ilustres assassinos
4. 2. 9. Romance LXXXII ou Dos passeios da Rainha louca
5. ENTRE O EFÊMERO E O ETERNO
6. A MULHER TAMBÉM TEM O QUE DIZER
CONCLUSÃO

IX. CARLOS DURMMOND DE ANDRANDE


X QUINTANA DE BOLSO
1. O LIRISMO MODERNO DE MÁRIO QUINTANA.
1. 1. O sujeito lírico moderno
1. 2. A imagem poética
2. METALINGUAGEM E POESIA
2. 1. O poema e a poesia.
2. 2. A poesia e sua essência.
2. 3. A função da poesia
3. A VIDA E A OBRA DE MÁRIO QUINTANA E SEU AUTORRETRATO
CONCLUSÃO
XIO DISCURSO DO POEMA O RIO DE JOÃO CABRAL
PREFÁCIO

UMA PRECIOSIDADE LITERÁRIA


Edir Meirelles*1

A escritora Maria de Fátima Gonçalves Lima foi


“picada pela abelha dos ensinamentos de Clarice Lispector”
conforme ela própria sugeriu na apresentação que fez de sua
enciclopédica obra A Poesia da Literatura Brasileira – Do
Barroco ao Modernismo. Entretanto, não foi apenas picada. É
muito provável que a abelha a tenha inoculado o vírus da
docilidade, o mel impregnado de sabores nacionais e
sabedoria que sabe transmitir aos seus leitores.
Inspiradíssima pesquisadora, estudiosa de grande
fôlego e capacidade para mergulhar nas profundezas das
1
Edir Meirelles é romancista, contista, poeta, ensaísta e jornalista. É
membro das seguintes Academias: Membro da Academia Carioca de
Letras, do PEN Clube do Brasil e da União Brasileira de Escritores;
Guanabarina de Letras, Carioca de Letras, Luso-Brasileira de Letras e
Piresina de Letras e Artes. Outras entidades culturais que pertence:
Associação Brasileira de Imprensa; Sindicato dos Escritores do Estado do
Rio de Janeiro (Presidente do Sindicato no triênio: 2001 a 2004); União
Brasileira de Escritores - UBE-RJ (Presidiu a UBE-RJ no período de 2007
a 2011); União Brasileira de Escritores - Goiás; Pen Clube do Brasil e
Membro Honorário da ALB de Mariana. Obras publicadas: Poemas
Contaminados - 1993; O velho Januário (contos - 1994); Madeira de
dar em doido (romance - 1996). Poemas Telúricos - 2003; O Feiticeiro
da Vila (romance- 2006). Participou ainda de diversas antologias.
águas literárias. Deste mergulho, trouxe à superfície pérolas
preciosas. Extraiu o sumo da História poética, produzido
pelos nossos ancestrais. A professora Maria de Fátima
vasculhando nos recantos mais obscuros das bibliotecas
nacionais e dos arquivos coloniais soube retirar o pó das
estantes e resgatar para os estudiosos, as figuras e os textos
exponenciais dos grandes vates da literatura poética
brasileira. Passou em peneira fina a poesia do Brasil Colônia
aos neomodernistas da atualidade. Com o rigor de
pesquisadora e talento literário, trouxe a público os perfis
poéticos de Gregório de Matos Guerra, Tomás Antônio
Gonzaga, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Alphonsus
de Guimaraens, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira,
Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Mário
Quintana e João Cabral de Melo Neto.
De Gregório de Matos, conhecido como Boca do
Inferno, resgatou sua lira. Colocando seu trabalho à
disposição dos estudiosos brasileiros e do mundo lusófono.
Sua obra é um repositório cultural, capaz de levar os
estudiosos a uma profunda reflexão de nossa história literária.
Bem como os principais vultos poéticos das diversas
correntes da literatura brasileira. Resgata, com elegância, os
nossos valores, os aspectos mais caros dos sonhos de
brasilidade e formação da unidade nacional.
Assim como a professora Maria de Fátima, também
nossos antepassados, sonharam uma nação independente e
com uma cultura própria. A autora soube aprofundar no
estudo dos nomes mais representativos da formação poético-
cultural desta jovem nação: Brasil. Suas pesquisas vão desde
o já mencionado Gregório de Matos, representativo do
barroco, com ”uma poética inventiva e original” (FG – 21).
Seguindo Tomás Antônio Gonzaga, que perpassa pelo
neoclassicismo ou arcadismo e, como afirma a autora “é o
casamento da razão com o natural”. Por outro lado, trata-se
de um poeta significativo por ser também um herói da
histórica Inconfidência Mineira.
O livro da professora Maria de Fátima se constitui
numa aula magna, centrado ainda em Gonçalves Dias na sua
“afirmação nacionalista” e o destaque do indigenismo
cultural, núcleo da nacionalidade, como marca da
independência cultural do Brasil como nação. A poesia e a
abordagem indigenista da autora são de tal forma importante,
pois seus estudos e pesquisas chegam aos dias atuais, quando
a segurança das nações indígenas ainda é precária, apesar do
grande avanço constitucional. A obra tem o mérito de trazer a
lume, a luta diplomática do ilustre Cacique Raoni, da Nação
Kaiapó, um dos “grandes líderes que fazem história” como
bem ressaltou a autora, em cuja tese faz ampla defesa de
nossos ancestrais autóctones.
Muito oportuna a inclusão de Álvares de Azevedo neste
trabalho. O poeta paulista, em sua curta existência deixou
uma obra marcante e expressiva no seio do Romantismo,
delineando um novo momento da cultura nacional. A autora
narrou com grande perspicácia e precisão ao asseverar: “A
literatura brasileira foi contemplada com uma obra de grande
força expressiva, estilística, altamente poética e única”. (FG –
257)
Os Simbolistas não poderiam estar ausentes desta
enciclopédica obra. Pois, conforme certifica pouco adiante, o
Simbolismo “representa uma nova forma de ver o mundo.”
(FG – 260). Valoriza o pioneirismo e a importância do
afrodescendente catarinense Cruz e Souza, fase que atingiu o
limiar da Semana de Arte Moderna. Entretanto, no
simbolismo sobressai um nome das Minas Gerais. Escreve a
professora Fátima com estilo inconfundível e propriedade:
“Alphonsus de Guimaraes foi dono de simbolismo ímpar, de
brilho próprio.” (FG – 264). Dá ênfase na sua concepção
mística do mundo e adoração pelo clima de mistério nas
temáticas do vate de Ouro Preto. É nesse clima de
transcendência que o poeta exercita seus poemas. É
importante lembrar que a autora mostra claramente as origens
europeias das escolas literárias que medraram no Brasil.
Entretanto, foram tomando feições próprias de nosso povo,
nossos costumes e nossa brasilidade. Portanto, o trabalho
literário dos poetas foi importante para fundamentar os
alicerces desta nação que emergia.
Em seu trabalho de profundidade, aborda a fase Pré-
Modernista onde sobressai o poeta Augusto dos Anjos, um
autor singular e de grande popularidade. Retrata com
extraordinária competência que “o poeta pré-modernista
representou com maestria este período entre os séculos
marcadamente sincrético e movimentado”, referindo-se ao
final do século XIX e inicio do século XX. Augusto dos
Anjos é estudado com bastante argúcia e exemplificado com
inúmeros poemas disponíveis para o leitor.
Outro poeta de grande prestígio e enorme apelo popular
é ressaltado em minúcias às páginas deste livro. Trata-se de
outro nordestino, desta vez um pernambucano - Manuel
Bandeira – o renomado poeta de “Pneumotórax” e “Vou-me
embora pra Pasárgada”. Bandeira como nenhum outro poeta
soube transitar do Parnasianismo ao Simbolismo e se abraçar
ao Modernismo nascente e nele sobressair grandioso.
Tornando-se um vanguardista notório, destacando-se entre
seus pares. Retrata a trajetória de Manuel Bandeira de uma
fase à outra e, o faz com extrema elegância, conhecimento e
sabedoria ímpar. Por isso, sua obra é uma joia preciosíssima à
disposição dos estudantes e dos estudiosos em geral.
Nostálgico, revi Bandeira, dos parcos conhecimentos que
dele tive na juventude. Agora, revendo-o numa amplitude
poética incomensurável, moderna, plena de brasilidade.
Disseca o poema “Vou-me embora pra Pasárgada”
registrando a certidão de nascimento do texto, sendo que é
“um dos poemas mais conhecidos de Bandeira”. (FG – 401)
Encantei-me, mais uma vez com Manuel Bandeira. Não me
esquecerei, jamais do seu extraordinário “Trem-de-ferro” e, a
simplicidade de “Irene no céu” dois dos poucos que tive
acesso na minha infância sertaneja. Motivado, mais tarde
escrevi e publiquei “O trenzinho da Goiás”, recheado de
onomatopáicas. E, a autora ressalta a musicalidade dos seus
versos e sua produtividade longeva. Aliás, faço questão de
registrar também, a sua arguta afirmação de que ”pode ser
observado na obra bandeiriana, uma ânsia de buscar a
imortalidade através da arte”. (FG – 375).
A História do Brasil está recheada de grandes mulheres
escritoras, poetas, romancistas, ensaístas, dramaturgas. Isto
sem falar de nossas heroínas históricas. Entretanto, ao longo
da História enfrentaram enormes obstáculos para se
sobressaírem. O machismo reinante, os preconceitos de toda
sorte, as dificuldades para obtenção do voto universal, tudo
contribuiu para que a mulher, especialmente as intelectuais
ficassem alheias à participação cultural com maior
efetividade. Nesta obra exemplar temos o destaque feminino
amplamente reconhecido aqui e além-mar – a carioca Cecília
Meireles. Os anos 30 do século XX testemunharam grandes
transformações e amadurecimento cultural. “A educadora
Cecília Meireles trabalha ativamente nessa reforma
educacional” (FG – 412), efetuada à época. Fez justiça ao
ressaltar o trabalho da poeta altamente representativa dessa
plêiade de notáveis da segunda geração modernista. E não faz
por menos, ao registrar: “sua poesia é um coração que pulsa
vida e imortaliza o efêmero”. (FG – 416). Ademais, seu
Romanceiro da Inconfidência é um atestado de suas
qualidades literárias.
A autora com sua capacidade e espírito lúcido, criativo
e sensível, deu grande e merecido relevo à obra do poeta
itabirano – Carlos Drummond de Andrade. Compôs um
retrato irretocável. Indo desde a poesia de 30, com um
subtítulo marcante: “Um eu todo retorcido”, onde o “eu” do
poeta se vêm ”simultaneamente voltado para si próprio” mas
que, filosoficamente, ao contemplar o mundo ideias e outros,
“o poeta descobre o mundo inteiro”. (FG-459) Tudo isso
explicitado com enorme sensibilidade. Sobre o “Poema de
sete faces” que menciona o anjo torto, nos oferece detalhes da
vida e da obra drummondiana, desde a sua infância e, aos 17
anos quando “foi acusado de insubordinação mental e
anarquista” (FG-476). O leitor pode ainda apreciar o retrato
provinciano de seu torrão natal – Itabira de Mato Dentro,
aspectos da vida familiar do poeta. Noutra parte, relata sua
amizade com Mário de Andrade e a rica correspondência
entre eles. A obra disponibiliza uma extensa informação
sobre os trabalhos do itabirano no campo poético. O texto
segue em ritmo atraente que prende o leitor e estimula os
estudiosos e pesquisadores da cultura brasileira.
A pesquisadora Fátima Gonçalves sai em busca de
outro poeta notório. E, pesca lá do Sul do Brasil, justamente
em terras gaúchas da cidade de Alegrete e, nos oferece o
lirismo de Mário Quintana. Logo nos preâmbulos traça seu
retrato poético: “sua obra não segue nenhum modismo
específico, mas percorre os caminhos da mais pura poesia da
lírica moderna”. Um destaque da apresentação que serve
muito bem à aparente simplicidade de Quintana, mas que, no
fundo é um poeta de intenso saber e de uma poesia capaz de
agitar as profundezas da alma do leitor. Enfatiza um autor
que soube se aliar a grandes nomes da poética universal,
mostrando os caminhos por ele trilhados. Seguindo pegadas
como as de Verlaine, Boudelaire, Rimboud e, em especial as
do português Antônio Nobre. Oferece aos estudiosos as rotas
a serem seguidas pelos admiradores dos Quintanares. A certa
altura da explanação, enfatiza o poeta criativo: “O artista é
um inventor de quadros, de cenas e de palavras. Cria o
inusitado.” (FG-571). E adiante, acrescenta: “revelando um
realismo mágico ou fantástico...” traça um panorama
primoroso do poeta gaúcho. Caracteriza a obra de Mário
Quintana como de “difícil simplicidade”. Enfim, um trabalho
de apaixonante qualidade! (FG-595)
Estudando a terceira fase do Modernismo Brasileiro,
quando se realiza a renovação da poesia pela forma e pela
linguagem, a autora observa que “João Cabral de Melo Neto
é poeta exato, preciso, em cujos versos, não falta ou sobra
nenhuma palavra”. (FG-598). O engenheiro compõe uma
poesia matemática. Com destaque para suas obras O cão sem
plumas, O rio e Morte e vida severina. Esta oferece uma
amostragem ampla da realidade social do Nordeste
Brasileiro. Uma metáfora da sobrevivência nordestina, assim
como os respectivos simbolismos dos dois outros. A
professora Fátima narra a importância social e literária de
João Cabral. Sem dúvida, é um dos mais importantes autores
da nova geração Modernista. Suas obras, suas funções
diplomáticas e a ligação amorosa com Sevilha, na Espanha,
proporcionou-lhe uma nova vertente temática, sem se
desligar de suas origens nordestinas. A autora soube, como
ninguém, delinear os aspectos biográficos de João Cabral de
Melo Neto, narrando sua importância na Poesia Brasileira e
seus reflexos no mundo literário.
O livro A Poesia da Literatura Brasileira – Do
Barroco ao Modernismo, é uma obra que encanta o leitor,
estimulando-o na busca de conhecimentos. Engloba os nomes
mais representativos de nossa poesia, é um trabalho sem
paralelo e de grande fôlego. Merece estar na cabeceira de
todos os estudiosos da cultura, da poesia e da História do
Brasil.
Parabéns, Professora Maria de Fátima Gonçalves Lima!

Edir Meirelles

Vila de Noel,
RJ, 24 de junho de 2020

PREFÁCIO

Prof. Dr. Cristiano Santos


2
Araújo

2
Doutor em Ciências da Religião pela PUC GOIÁS (2014-2017 /
CAPES) com a tese: "Chronos kai Anagké: Vestígios do Sagrado em João
Guimarães Rosa" (ganhadora de menção honrosa no prêmio CAPES de
Teses 2018); Mestre em Letras - Teoria da Literatura e Literatura
Comparada na UERJ (2009-2011) com a Dissertação: Nem Deus, nem
demo. O homem humano no palco polifônico do Grande Sertão: Veredas;
Desde o primeiro contato convite a mim feito, sabia
do enorme desafio de escrever umas linhas prefaciadoras para
este grandioso livro, honrado estou, farei o meu 'mió' diante
do seu melhor adiante apresentado e aqui comprovado.
Há-braços... a todos e todas.
Os muitos braços da professora e escritora Maria de
Fátima Gonçalves Lima evidenciam-se no fôlego, qualidade e
relevância desta obra. Alunos, professores, leitores e
escritores agradecem porque a palavra não permanece
acostumada, ela se renova a partir de cada esforço conjunto
de reinterpretações e ressignificações. Quando pensamos em
poesia, a palavra desacostumada, costumes e hábitos fixos
serão reposicionados.
Fernando Pessoa, no poema Mar Português,
perguntou-se diante do esforço lusitano ultramarino do século
XV: “Valeu a pena? Tudo vale a pena se alma não é
pequena”. Alma, da Fátima, sabemos, é imensa para os seus
arredores na contribuição para o ensino de literatura no
século XXI. Agradecemos.
A autora criou filhos e filhas, estão por aí, em amor
escreve e ensina com o toque da fé que exala uma
humanidade acolhedora e alteritária na Academia, assim
como (re)cria mundos e amizades numa construção solidária
propícia ao ato de educar com excelência para uma sociedade
brasileira tão fragilizada.
A obra é uma reunião de ensaios críticos direcionados, inicial
e preteritamente, para vestibulandos, também já publicados

Licenciado em Letras Português-Literaturas de Língua Portuguesa


(UNESA/UFG) com a defesa da Monografia intitulada: Diadorim - A
Metáfora da Religião em Grande Sertão: Veredas.
em jornais (O Popular/ Vestiletras / Vestilivros), e depois em
livros alhures. Após nova e ampla revisão geral, assim como
nova formatação, ampliou-se o conteúdo. Por conseguinte,
sabe-se que um estudo de tamanha monta não tem fim,
quanto mais se trabalha, vê-se possibilidades de melhorar
aqui, ali e acolá. Mas, aí entram também os leitores e
pesquisadores futuros: Fátima deixará que os outros
consultem a obra como fonte necessária para estudos da arte
poética brasileira, e deste modo façam a continuidade de sua
obra vivida e escrita.
Paul Valéry, em Variedades, diz que em qualquer
questão, e antes de qualquer exame sobre conteúdo, devia
olhar para a linguagem, como o costume de agir como os
médicos que purificam primeiro suas mãos e preparam seu
campo operatório. É o que se chamaria de limpeza da
situação verbal.
Este livro que o leitor tem adiante é longo porque
analisam-se onze diletos poetas e poesias do Barroco ao
Modernismo, um longo percurso da história da literatura
brasileira: Gregório de Matos, Tomaz Antônio Gonzaga,
Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Alphonsus
Guimaraens, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Cecília
Meireles, Drummond de Andrade, Mário Quintana e João
Cabral .
As análises feitas pela autora privilegiam recortes
clássicos para a leitura dos poemas, orientando-se através dos
aspectos estilísticos e temáticos propício à proposta da obra,
trazendo em cada parte informações básicas sobre os poetas e
poesias, assim como as possíveis possibilidades textuais de
leituras e interpretações feitas pelos leitores, claro que,
didaticamente descortinando também o conjunto imaginal de
cada verso.
Muitas linhas necessárias sobre a arte poética que se
concebe na essência da inspiração da poésis, mas também
labor artesanal peculiar à pesquisa em literatura, algo que não
prescinde da criatividade, contudo se realiza
fundamentalmente por releituras fundadas em conceitos da
poesia como arqui-escritura diacrônica de brasilidades,
construídas por autores clássicos da literatura brasileira em
seus ritmos próprios e particulares objetivando captar
vestígios de cronotopias tão singulares aos autores, aos textos
e a nós no século XXI.
Dentre os diversos modos de apropriar-se com o
transbordar de mundos a poesia se apresenta como canal para
esse jorrar estético através da palavra vigorosa diante dos
desafios de cada época. Deste modo, a voz da poesia
representa as nomias de (des)ordem e sentidos. A poesia é
conhecimento, salvação, poder, abandono, revolução de
mundos como expressão histórica de raças, nações, classes
para a consciência humana, logo, comparativamente, o
poema é um caracol onde ressoa a música do mundo, e
métrica e rima como apenas correspondências, ecos, da
correspondência universal para leituras humanas.
Este livro é um convite à audição visionária.
Estranho? Não. Entre autora deste, textos e leitores(as) destas
releituras é mister o exercício de ausculta das polifonias
poéticas apresentadas. Vozes que querem dizer uma vontade
de existência que se transforma em presença modulando
influxos cósmicos que nos atravessam como leitores novos,
uma espécie de ressonância infinita que faz cantar a vida e
interpela o sujeito leitor na viabilidade de se imprimir uma
cifra de alteridade onde a voz da poesia possa tornar-se um
instrumento da profecia.
Como dirá Maria de Fátima na apresentação deste
livro: o poema é uma revelação de uma realidade interior que
atravessa abstratamente a realidade perceptível através dos
sentidos, é a materialização do desejo de um porto sonhador a
traduzir angústia do poeta à procura do seu próprio ser no
mundo. A poesia é a essência do verso. A efetivação plena do
poema somente acontece na realização da leitura e nas
múltiplas interpretações que o texto suscita.
Aos leitores, parabéns!
Esse é o orgulho da autora.
A obra aberta a você.

Nestas minhas considerações sugiro e proponho.


Sugiro que você tenha em mãos esta obra magistral.
Proponho que a mantenha sempre por perto devido à
relevância da mesma para estudos e pesquisas em todos os
cantos do Brasil e além-mar, enfim, àqueles que desejam
conhecer a paixão de um ser humano ímpar pelas letras como
aqui será demonstrado.

Prof. Dr. Cristiano S. Araújo

Goiânia, Maio de 2020


APRESENTAÇÃO

O poema

Como um pobre animal palpitando


ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida
para sempre na
floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua
misteriosa
condição
de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.
Mário Quintana

O poema é uma revelação do mundo interior que


atravessa abstratamente a realidade perceptível por meio dos
sentidos, é a materialização do desejo de um porto sonhador a
traduzir a angústia da voz poética à procura do seu próprio
ser no mundo. A poesia é a essência do verso. O poema,
composto por versos metódicos, não tem alma, é uma coisa
triste, solitária, vazia. A poesia é o ser do poema, é a alegria,
a imaginação, a criação e a imortalidade dos versos. No
entanto, a efetivação plena do poema somente acontece na
realização da leitura e nas múltiplas interpretações que o
texto suscita. O leitor precisa contemplar o poema com os
olhos de quem ama e, com perspicácia, deve ler as
entrelinhas das inúmeras sugestões da metáfora viva que
brota em cada palavra. Ao contemplar a metáfora viva do
poema, o leitor desvelará a sintaxe invisível do texto poético
e a poesia acenderá sua luz sublime.
A linguagem poética, por excelência, é
plurissignificante. Ela “desrealiza” da função normativa da
língua e da comunicação, mobiliza a necessária relação entre
significante e significado, além de recuperar ou nomear
(indiretamente) aquilo que era apenas nebuloso no
pensamento ou no espírito. Dessa forma, um novo mundo
surge diante do leitor. Assim, a natureza da palavra poética
tem o poder da criação e do logos - já que o signo e a
realidade vão passar por um processo dialético, uma vez o
signo não é a coisa, a substância, mas sim a forma e “grande
literatura é simplesmente linguagem carregada de significado
até o máximo grau possível”, conforme instrui Ezra Pound.
(1990, p. 32).3 A arte da palavra transfigura um mundo,
traduz uma imagem, portanto, é pura sugestão. Nesse sentido,
a obra literária nomeia a existência das coisas por meio de
metáforas que pluralizam a significação do silêncio, porque
dizem o indizível e possuem uma sintaxe invisível. Esta
sintaxe manifesta uma plurissignificação e conduz o texto
artístico para outras margens da linguagem, numa realização
silenciosa da metáfora. É o silêncio do sentido.
Este estudo é a reunião de textos sobre a poesia
brasileira que publiquei em jornais e que, posteriormente,
foram ampliados para publicação em livros. Nessa
coletânea apresento análise sobre onze poetas, do Barroco ao
3
POUND, Ezra. ABC da Literatura Trad. de Augusto de Campos e
José Paulo Paes. São Paulo, Ed. Cultrix, 1990.
Modernismo: Gregório de Matos, Tomaz Antônio
Gonzaga, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Alphosus
Guimaraens, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira,
Cecília Meireles, Drummond de Andrade, Mário
Quintana e João Cabral de Melo Neto , que publiquei
entre 1994 a 2009, no Jornal O POPULAR, em seus
Suplementos Literários VESTILETRAS e VESTILIVOS:
Noite na taverna de Álvares de Azevedo. O Popular -
Vestiletras. Goiânia - GO, p. 1 – 08. 09/11/2009; Melhores
poemas de Alphonsus de Guimaraens. Parte I O Popular;
Vestilestras. Goiânia, p.1 – 8. 03/07/ 2006; Melhores poemas
de Alphonsus de Guimaraens. Parte II O Popular;
Vestilestras. Goiânia, p.1 – 8. 10/07/ 2006; Melhores
poemas de Alphonsus de Guimaraens. Parte I O Popular;
Vestilestras. Goiânia, p.1 – 8. 24/07/ 2005; Melhores poemas
de Alphonsus de Guimaraens. Parte II O Popular;
Vestilestras. Goiânia, p.1 – 8. 01/08/ 2005; Antologia
poética de Carlos Drummond de Andrade. Parte I.
Suplemento Cultural Vestilivros O Popular. Goiânia, p.1 – 8.
25/08/2003; Antologia Poética de Carlos Drummond de
Andrade. Parte II. Suplemento Cultural Vestilivros O
Popular. Goiânia, p.1 – 8. 01/09/2003; Antologia Poética de
Carlos Drummond de Andrade. Parte I. Suplemento
Cultural Vestilivros O Popular. Goiânia, p.1 – 8. 16/09/2002;
Antologia Poética de Carlos Drummond de Andrade. Parte
II. Suplemento Cultural Vestilivros O Popular. Goiânia, p.1
– 8. 23/09/2002; Melhores Poemas de Gonçalves Dias. Parte
1 Suplemento Cultural Vestilivros O Popular. Goiânia, p.1 –
8. 03/09/2001; Melhores Poemas de Gonçalves Dias. Parte 2
Suplemento Cultural Vestilivros O Popular. Goiânia, p.1 –
8. 10/09/2001; Melhores Poemas de Gonçalves Dias. Parte
1 Suplemento Cultural Vestilivros O Popular. Goiânia, p.1 –
8. 04/09/2000; Melhores Poemas de Gonçalves Dias -
Parte 2 Análise Literária. Suplemento Cultural Vestilivros O
Popular. Goiânia, p.1 – 8. 11/09/2000; Melhores Poemas
de Manuel Bandeira - Análise Literária. Suplemento
Cultural Vestilivros O Popular. Goiânia, 16/08/1999; Eu e
Outras Poesias - Augusto dos Anjos - Análise Literária.
Suplemento Cultural Vestilivros. O Popular. Goiânia,
06/09/1999; Melhores Poemas de Mário Quintana - Análise
Literária. Suplemento Cultural Vestilivros O Popular.
Goiânia, 04/11/1999; Eu e Outras Poesias - Augusto dos
Anjos - Análise Literária. Suplemento Cultural Vestilivros O
Popular. Goiânia, 18/09/1998; Marília de Dirceu - Tomás
Antônio Gonzaga - Análise Literária. Suplemento Cultural
Vestilivros O Popular. Goiânia, 04/09/1998; Melhores
Poemas de Cecília Meireles - Análise Literária. Suplemento
Cultural Vestilivros O Popular. Goiânia, 24/11/ 1997;
SÁTIRA - Gregório de Matos - Análise Literária.
Suplemento Cultural Vestilivros O Popular. Goiânia,
30/12/1996; Os Melhores Poemas de Gilberto Mendonça
Suplemento Cultural - Análises Literárias. Vestilivros. O
Popular. Goiânia, 05/12/1994.
Além da reunião de trabalhos publicados, no
jornal O Popular, apresento nessa pesquisas, ensaios
publicados nos três livros de Ensaios sobre poesia: Leitura
e Poesia I, Leitura e Poesia II e Leitura e Poesia III 4.
4
LIMA, Maria de Fátima Gonçalves, Leitura & Poesia I– Do
Barroco ao Romantismo. Coleção prosa e verso. Goiânia: Kelps /
Editora PUC-GO, 2009.
_______. Leitura e Poesia II – Leitura e Poesia II. Coleção Verso
e Prosa. Goiânia: Kelps / Editora PUC-GO, 2012.
_______. Leitura e Poesia II – Leitura e Poesia III Coleção
Verso e Prosa. Goiânia: Kelps / Editora PUC-GO, 2014.
Todos esses estudos foram ampliados e enriquecidos, com
atualizações e detalhamentos, teórico-crítico-ensaísticos,
sobre as obras dos poetas escolhidos para essa coletânea.
As análises orientam a leitura dos poemas, indicam os
aspectos estilísticos e temáticos, as informações técnicas
sobre os poetas, norteiam possíveis leituras e interpretações,
além de apontar para o conjunto imaginal e
plurissignificativo de cada verso.
No primeiro capítulo, analiso a obra de Gregório de
Matos e oriento como matéria-prima da literatura é a
realidade humana. O poeta vive em consonância com o
universo e procura ver mais intensamente as coisas-palavras.
Sentindo e observando a realidade, este ser sensível realiza
um trabalho linguístico particular que tem, pelo menos
virtualmente, o poder de se tornar social, de exercer
influência direta ou indireta sobre outras pessoas.
Gregório de Matos e Guerra sentiu e registrou,
poeticamente, seu tempo com intensidade, lirismo e uma
sátira singular. Meu objetivo é apresentar os traços mais
marcantes dos diversos tipos da escrita desse poeta da estética
barroca, dando prioridade à sátira e à lírica. Para tanto, depois
de uma pequena exposição sobre o estilo literário e os traços
biográficos do autor, direciono algumas análises de poemas
selecionados na antologia Sátiras, organizada por Angela
Maria Dias.( RJ: Agir, 1990).
Em razão do grande número de textos, ressalto os
poemas satíricos que representam mais intensamente a visão
crítica e a irreverência da poesia gregoriana, mas também
traço um estudo sobre poemas que assinalam o canto de amor
desse grande amante Gregório de Matos, cuja obra é o
organismo mais inventivo e atual de toda a poesia luso-
brasileira.
No segundo capítulo, Marília de Dirceu – Amor,
Razão e Poesia, a partir da ideia de que poesia é a expressão
mais intensa da vida que, por meio de uma criação linguística
e rítmica, expõe-se a essência do homem, mostro que Tomás
Antônio Gonzaga, com sua obra-prima induz o leitor a
refletir sobre a poesia e sua essência, as verdades e mentiras
de um poeta.
Nesse estudo sobre Gonzaga, por meio de algumas
exposições estilísticas, temáticas e biográficas, tive como
propósito levar o amante de poesia a percorrer paisagens
campestres, idílios amorosos e as dezenas de liras
gonzaguianas que expressam mais que os simples clichês
árcades/neoclássicos. Tais poemas apresentam,
principalmente, muito lirismo, humanidade e amor à arte
poética.
Segundo especialistas, a Obra de Tomás Antônio
Gonzaga é dividida em três partes, publicadas
respectivamente em 1792, 1799 e 1812, descartando-se a
falsa parte três de 1800. Duas edições têm servido de base
para os trabalhos acerca do poeta Arcádico. A primeira,
elaborada por Afonso Arinos de Melo Franco, mantém a
subdivisão em três partes. A segunda foi organizada por
Manuel Rodrigues Lapa, a partir de um critério que
denominou cronológico. Daí, o fato da discrepância da ordem
numérica das liras, nas seleções de várias editoras. Se
escolher a linha de Rodrigues Lapa, por exemplo: Eu
Marília, não sou algum vaqueiro será lira 53, parte I; se
escolher Afonso Arinos, será Lira I da Parte I. A presente
análise teve como suporte a Coleção Prestígio da Ediouro,
que segue a organização de Afonso Arinos.
O terceiro capítulo, intilulado, O Poeta da Canção, do
Índio e dos Amores, evidenciei o momento de intenso
nacionalismo da época e como lusofobia, o individualismo
poético, a religiosidade, o misticismo e o indianismo
caracterizam os textos então produzidos. Nesse cenário o
fundador da poesia nacional, Antônio Gonçalves Dias é a
figura que se destaca entre os poetas da primeira geração. A
criatividade de seus poemas indianistas, a idealização do
selvagem e a forma de expressar o nacionalismo, a oposição
ao elemento português, a natureza, o saudosismo e o lirismo
amoroso são aspectos significativos da sua poesia.
O prazer de ler e conhecer a poesia do romântico
Gonçalves Dias é um momento único na vida de cada leitor.
É intransferível a sensação de percorrer os campos poéticos
de amenos verdores, de várzeas em flor e céu de estrelas dos
versos gonçalvianos. Somente vivenciando, através dos
textos, é que o leitor pode verificar a força do “canto do
piaga”, da “canção do tamoio” e o heroísmo de um “I-Juca
Pirama”.
Nesse estudo faço um convitee para o estudioso de
poesia dessa época, a partir da reflexão de procedimentos
estilísticos e temáticos do poeta e, de forma especial, do
panorama do indianismo, do lirismo amoroso e da poética de
inspiração medieval e também do traço um panorama
indianismo do Barroco ao Modernismo.
A Lira do Noivo da Morte - Álvares de Azevedo é o
tema do quarto capítulo. Nessa análise mostro que a poética
azevediana tem o poder de conduzir o admirador de poesia,
não apenas para uma viagem na história ao Romantismo,
mas, principalmente, para um mergulho no ser de um jovem e
genial poeta. Percorrendo as páginas de sua Lira dos vinte
anos e Noite na Taberna o leitor poderá fazer descobertas
sobre o estilo romântico, o Ultrarromantismo, as faces do
poeta e todas as intimidades de seus textos cheios de
juventude, sonhos, amor e morte.
Seguindo o itinerário da LIRA de Álvares de
Azevedo, o presente trabalho tem o objetivo de conduzir o
leitor para este universo poético, delicioso e triste, mas cheio
de lirismo e arte literária. Todo esse foco direcionado pelo
princípio de que as obras de arte são eternas, misteriosas e
mágicas. Como uma máquina do tempo, leva-nos a um
passado que imaginávamos perdido na história da
humanidade. Porém, a magia da alquimia verbal do texto
artístico desperta nossa sensibilidade e atenção para aquele
mundo. Neste despertar, percebemos algumas mudanças de
hábitos, linguagem e valores. Mas, por outro lado, podemos
sentir, entender e até mesmo vivenciar certas situações,
amores, paixões e sentimentos, próprios da natureza humana,
que não são regidos pela marca do tempo.
No estudo que realizo Alphonsus de Guimarães, um
dos expoentes da poesia simbolista brasileira, faço uma
reflexão sobre a constituição do Simbolismo em geral e nos
poemas desse artista da palavra, com suas expressas
verdades humanas que traduzem, antes de um sentimento,
uma experiência, uma compreensão, um sentido da vida, um
julgamento das coisas humanas e do mundo.
Augusto dos Anjos, no seu EU e outras poesias,
expõe uma poesia que fala da vida, das coisas e do homem.
Esta análise pretende abrir caminhos para a leitura e o estudo
desta profunda obra. Para tanto, início pela visualização da
época e dos estilos. Em seguida, apresento algumas
interpretações didáticas e sugestivas para leitura de seus
poemas.
No capítulo sobre Manuel Bandeira, segui seu
itinerário, desde Recife na época do seu nascimento e seus
caminhos de A Cinza das horas, Carnaval, O ritmo dissoluto,
Libertinagem, Itinerário de Pasárgada, Estrela da Manhã,
Lira dos Cinquent’anos, Belo Belo e Estrela da tarde até suas
últimas canções de vida e de morte.
Na poesia Cecília Meireles, apresento a poetisa
senhora de si e da arte, no reino sagrado das palavras,
desvelando com habilidade os segredos da linguagem e,
como operadora da língua, experimenta os atos de uma
transformação alquímica, resultado de sua imperiosa
criatividade e sensibilidade contemplativa da vida.
Na Antologia Poética de Carlos Drummond de
Andrade evidenciei que ele é um desses poetas que
aparecem de tempos em tempos e que conseguem apreender e
refletir, poeticamente, as inquietações de uma época, tal
como um Camões ou Fernando Pessoa.
Dado o volume de sua Obra Poética e ao caráter
didático deste trabalho, optei por considerar a organização da
Antologia Poética de Carlos Drummond de Andrade em
estudo feita pelo próprio poeta. Drummond demarcou a área
temática de sua poesia distribuindo seus poemas pelos
seguintes compartimentos, avaliados como pontos de partida
ou matéria de poesia: o indivíduo; a terra natal; a família;
amigos; o choque social; o conhecimento amoroso; a própria
poesia; exercícios lúdicos; uma visão, ou tentativa da
existência; outros temas, o que corresponde, na nomenclatura
adotada na titulação, às 10 seções do livro: “Um eu todo
retorcido”, “Uma província esta”, “A família que me dei” e
“Cantar de amigos”. “Na praça de convites”, “Amar-amaro”,
“Poesia contemplada”, “Uma, duas argolinhas”, “Tentativa
de exploração e interpretação do estar no mundo” e
“Suplemento”.
O objetivo deste estudo é demonstrar algumas
possíveis interpretações da arte poética drummondiana. O
texto literário possui uma linguagem carregada de
significação até o máximo grau possível, não se esgota em
fórmulas e receitas de interpretação. Por isso, a proposta é
sugerir algumas leituras para que o leitor possa ser orientado
a uma direção coerente. Ler Drummond é um prazer
intransferível. Sentir o texto drummondiano é uma
experiência que se eterniza na lembrança e no desejo do
reencontro. Quem lê Drummond se contagia de poesia e,
quem afirmava não gostar de poema, torna-se um amante
entusiasta da arte poética.
O capítulo que trato de Mário Quintana apresento um
poeta que se recusa a ser enquadrado em qualquer escola
literária e orgulha-se de não ter “frequentado” nenhuma. Sua
obra não segue nenhum modismo específico, mas percorre os
caminhos da mais pura poesia lírica moderna.
No último capítulo, completo este livro de ensaios
sobre a Poesia Brasileira do Barroco ao Moderninsmo,
com uma reflexão sobre a poética das Águas em João Cabra
de Melo Neto. Apresento ensaios que foram publicados e
meu livro sobreo O discurso do Rio em João Cabral. 5.

5
LIMA, Maria de Fátima Gonçalves. O discurso do rio em João
Cabral. Salamanca: Lusoedições, 2016.
I- A SÁTIRA DE GREGÓRIO DE MATOS O
BOCA DO INFERNO
"Eu sou aquele,
que os passados anos
cantei na minha lira
maldizente torpezas do Brasil,
vícios, e enganos".

Gregário de Matos

"Não existe pecado do lado de baixo do Equador.


Vamos fazer um pecado, safado,
debaixo do meu cobertor.
(...)
Quando é Lição de esculacho,
olhaí, sai debaixo, que sou professor."

Chico Buarque e Ruy Guerra

1. O BARROCO

Em meados do século XVII, inúmeras crises


convulsionaram o Ocidente, entre elas, a crise religiosa, com
a Reforma de Lutero e Calvino, e o rompimento de Henrique
VII com o Papa, declarando-se chefe da Igreja Anglicana.
Os católicos reagem, convocam o Concílio de Trento
e restauram os tribunais da Inquisição. Inicia-se a Contra-
Reforma, que tenta restabelecer o prestígio da Igreja e a
disciplina religiosa.
A harmonia e o equilíbrio renascentista esfacelam-se.
Fruto da ideologia da Contra-Reforma, surge o Barroco,
movimento que acaba por refletir os conflitos e o sentimento
dilemático da época, como veremos a seguir.

1. 1. Barroco: Arte da Contra-Reforma

O Barroco é a expressão da dualidade cultural gerada


pela Contra-Reforma: humanismo renascentista (valorização
da cultura pagã greco-latina) e a religiosidade tridentina
(cultura medieval). A tentativa de conciliar o humanismo
renascentista e o espiritualismo medieval resultou numa
tensão entre forças opostas: o Antropocentrismo e o
Teocentrismo.
A procura da conciliação ou do equilíbrio entre ambas
equivale à procura de uma síntese que, em resumo, é o
próprio estilo Barroco.

1. 2. Características principais

O dualismo barroco coloca em contraste elementos


como matéria e espírito; bem e mal; Deus e Diabo; céu e
terra; pureza e pecado; alegria e tristeza; vida e morte;
juventude e velhice; claridade e escuridão etc., refletindo um
uso excessivo de antíteses e paradoxos. A consciência da
transitoriedade da vida e da degeneração física e moral
traduzem uma visão pessimista e um sentido trágico da
existência.
Diante da dúvida e da incerteza, a literatura barroca
não pretende proporcionar um retrato claro e direto da
realidade e, sim, referir-se a ela de tal modo indireto e
contorcido que mais se realce a maneira de representar do
que propriamente o representado. Isso se nota pelo reiterado
uso da metáfora (fuga ao termo próprio e adoção de um outro
que mantém semelhança imaginária com aquilo que ele
designará) e da perífrase (torneio ao redor do termo próprio e
adoção de muitas palavras para evitá-lo). Assim, a literatura
barroca é, antes, a arte da sugestão do que da nomeação,
precursora, por isso, do Romantismo, Simbolismo,
Impressionismo e outras correntes contemporâneas.
Há duas tendências do estilo Barroco em literatura:
uma mais voltada para jogos com as imagens e com os sons
das palavras, chamada cultismo (ou gongorismo); outra mais
intelectual, voltada para jogos de conceitos sutis e uso de
trocadilhos, chamada conceptismo (ou Quevedismo).

1. 3. O Brasil na Época Barroca

Não era boa a situação do Brasil-Colônia ao longo do


século XVII: os portugueses não demonstravam amor à terra
e exerciam uma exploração predatória; os jesuítas cuidavam
da educação e dominavam a mentalidade; a imprensa estava
proibida e grandes latifúndios mantinham as rédeas do poder.
A atividade agrícola mais importante era o cultivo da cana-
de-açúcar e nada se podia fabricar aqui; os portugueses
mantinham o monopólio do comércio, e os jesuítas
mantinham o monopólio da cultura.
De acordo com Amauri Sanches, "o ambiente de que o Brasil
se pôde dotar – cujo centro administrativo era a Bahia não
propiciava o florescimento da arte. Sem um processo
orgânico de cultura não haveria campo para a atividade
literária e sistemática”(SANDEZ, A. M. T. (1982) p. 80) 6
O que se fez durante a época em que o Barroco
predominou como estilo acabou tendo caráter quase eventual:
foi produzido um conjunto de textos decorrentes do fato de
portugueses e brasileiros, sensíveis para a literatura, terem
iniciado ou continuado a obra literária resultante da formação
cultural que traziam da metrópole (os brasileiros abastados
concluíam os estudos em Portugal).
Desta forma, durante os 150 anos em que o Barroco
marcou nossa literatura, a sociedade brasileira era ainda
bastante semelhante àquela sociedade atrasada do século
XVI, que não favorecia a arte literária: vivíamos ainda sob o
regime colonial que dificultava nosso desenvolvimento
cultural; não tínhamos unidade devido ao isolamento das
capitanias; os meios de comunicação com Portugal eram mais
frequentes que entre as próprias cidades do Brasil.
Entretanto, independente dos empecilhos para a
formação cultural brasileira, foi nesse período – no Barroco –
que surgiu nosso primeiro grande poeta: Gregório de Matos e
Guerra, cujo talento venceu os bloqueios ambientais,
escrevendo poemas de alto valor literário.

2. GREGÓRIO DE MATOS E GUERRA

Cultor qualificado de uma arte de grande


complexidade, Gregório de Matos realizou poemas
marcantes, seja na linha cultista, seja na conceptista,
chegando ao ponto de adaptar em português, com grande
6
SANDEZ, A.Mário Tonucci. Panorama da literatura brasileira.
São Paulo. Abril, 1982, p.80
êxito, poemas do maior mestre da lírica barroca – o espanhol
Luiz de Gôngora e do grande modelo barroco da sátira –
Quevedo, também espanhol. Sua poesia não é, contudo,
destituída de originalidade, pois além das convenções
barrocas de lirismo e religiosidade, que cultivou, foi capaz de
utilizar artisticamente a linguagem coloquial brasileira (o seu
"português mestiço") e de produzir um retrato satírico, vivo e
saboroso do Brasil no século XVII. O poeta baiano foi a
primeira grande voz da poesia brasileira, sendo considerado
seu fundador.

2. 1. A vida do “poeta maldito”

Gregório de Matos e Guerra nasceu na Bahia, em


1636, filho de família abastada, estudou com os Jesuítas em
Salvador. Aos quatorze anos, foi estudar em Portugal, onde
se formou em Direito na Universidade de Coimbra. Casou-se,
tornou-se juiz e morou na metrópole até 1681. Viúvo,
retornou ao Brasil.
Investido no cargo de Tesoureiro Geral da Sé, em
1883, foi destituído pouco tempo depois por pressão do
Arcebispo de Salvador, contrário aos seus hábitos mundanos.
Em Salvador, sobreviveu precariamente, advogando e
sem recurso. Tornou-se um reles boêmio, quase louco, sujo,
mal vestido, a percorrer os engenhos do Recôncavo, viola ao
lado, tocando lundus.
Sofreu várias perseguições, até ser degredado para Angola,
em 1694. Voltou ao Brasil no ano seguinte e foi obrigado a se
estabelecer no Recife, onde morreu a vinte e seis de
novembro de 1695. Em vida, sua obra permaneceu inédita, o
que deixa dúvidas sobre a autenticidade de muitos textos a
ele atribuídos. Sua suposta Obra completa só veio à luz entre
1923 e 1933 pela Academia Brasileira de Letras, sob a
responsabilidade de Afrânio Peixoto, em seis volumes. Em
1969, James Amado organizou a primeira edição sem cortes
ou reticências: Obras completas, sete volumes. As obras de
Gregório consultadas para referências e citações desse estudo
foram os volumes I e II, MATOS, Gregório de. Gregório de
Matos: Obra poética. Crônica do viver baiano Seiscentista.
Obra completa Códice James Amado – 4ª edição. Rio de
Janeiro: Record, 1999, indicadas por (GM v1) e (GM v2) e .
Gregorio de Matos Sátiras. Organização de Angela Maria
Dias. Rio de Janeiro. Agir, 1990 (GM Sátira)7.

2.2. O estilo “boca do inferno”

Gregório de Matos foi denominado de "poeta maldito"


e recebeu o cognome de "Boca do Inferno" devido à
virulência de suas sátiras. Podemos, hoje, imaginar o poeta na
Bahia improvisando versos, cantando à viola, caçoando de
toda a gente, inclusive das autoridades. Essa fama de
malcriado e irreverente marcou seu nome, a ponto de sua

7
MATOS, Gregório de. Gregório de Matos: Obra poética.
Crônica do viver baiano Seiscentista. Obra completa Códice
James Amado Vo. 1– 4ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1999.
MATOS, Gregório de. Gregório de Matos: Obra poética. Crônica
do viver baiano Seiscentista. Obra completa Códice James Amado
Vo. 2– 4ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1999.
____. Sátiras. Organização de Angela Maria Dias. Rio de Janeiro.
Agir, 1990.
poesia satírica ser mais conhecida do que a lírica. Foi o maior
satírico da Literatura brasileira, em versos.
O "poeta maldito" possui uma poética inventiva e
original e, por isso, é considerado introdutor da linguagem
coloquial, popular, mestiça, das ruas, na poesia brasileira.
O poema "Aos principais da Bahia chamados os
Caramurus" (GM Sátira p. 99) é dedicado aos Caramurus,
que eram os mestiços do Recôncavo. Por isso, Gregório de
Matos o escreve com uma linguagem também mestiça:
português, tupi, africano. Eis a poesia tipicamente brasileira
ou tropicalista do poeta baiano:
Há cousa como ver um paiaiá
Mui prezado de ser Caramuru,
Descendente de sangue de Tatu,
Cujo torpe idioma é cobé pá.

A linha feminina é carimá


Moqueca, pititinga, caruru
Mingau de puba, e vinho de caju
Pisado num pilão de Piranguá.

A masculina é um Aricobé
Cuja filha Cobé um branco Paí
Dormiu no promontório de Passe

O branco era um marau, que veio aqui,


Ela era uma Índia de Maré
Cobpe pá, Aricobé, Cobe Paí.
(GM Sátira p. 99)

Havia no Recôncavo uma "fidalguia improvisada",


petulante, constituída pelos descendentes de Diogo Álvares
Correia, o Caramuru. Esta "nobreza caramuru" negava suas
raízes, suas origens indígenas ou africanas. Estes versos
captam de forma brilhante o cotidiano da vida colonial e a
linguagem coloquial da época.
O vocabulário tupi está evidente: Paiaiá significa
Pajé, piago ou feiticeiro dos índios; Cobé pá é dialeto da tribo
cobé, que habitava os arredores da Cidade da Bahia
(Salvador); Carimá é bolo feito de mandioca; pititinga é
peixe miúdo; caruru é planta alimentar, comida com peixe e
camarões; marau é mariola, malandro, patife; Maré é nome
de uma ilha do Recôncavo; Paí, pássaro cinzento cujo canto
imita o nome.
O poeta explora a marcação tônica dos vocábulos
indígenas (carimá, caruru, caju, Piraguá, Aricobé, Paí, Passé,
aqui, Maré) para reforçar o grito primitivo da raça.
Os vocábulos indígenas refletem, ainda, a condição do
bilinguismo no Brasil, que se manifesta desde o início da
colonização, até os nossos dias.
O baiano Gregório de Matos, abandonando a
linguagem clássica, procura explorar a fala popular, a
brasileira, "como somos, como falamos". Lima Barreto, em
O triste fim de Policarpo Quaresma8, também defendeu a fala
do Brasil, se possível, até mesmo o puro Tupi, sem
lusitanismo, sem arcaísmo.
Além da novidade linguística, este poema apresenta o
fato de um soneto, clássico e barroco, ser composto por uma
língua mestiça, o que causa grande contraste à linha
europeizante.
Usando uma "língua brasileira", além do tupinismo e
africanismo, a poesia de Gregório de Matos está repleta de
gírias baianas e termos chulos de toda a sorte. Corajosamente,
8
BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo.
Ática. 1995.
dá inicio a uma linha de protesto e consciência nacional. Com
sabedoria apresenta o diagnóstico dos males do Brasil, acusa
os portugueses que exploravam barbaramente a Colônia, mas
não poupa os brasileiros. Todos são impiedosamente
satirizados pelo poeta: "Eia, estamos na Bahia, / onde agrada
a adulação, / onde a verdade é baldão, / e a virtude
hipocrisia". (GM Sátira p. 36).
Gregório de Matos explorou com requinte a temática
e estética barroca. Nos poemas líricos de fundo existencial,
utiliza os lugares comuns universais do barroco (a brevidade
da vida, a fragilidade da beleza) e chega a atingir, em alguns
sonetos, um nível superior à alta média de qualidade da
poesia de seu tempo. O mesmo se pode dizer de seus poemas
de fundo religioso, nos quais o tema constante e o
arrependimento tratado, às vezes, com uma certa
"malandragem" típica do poeta - que não hesita em tentar
enganar a Deus para salvar-se do inferno.
O mundo sugerido é impreciso, inexato. No Barroco,
tal imprecisão é consequência da dúvida que vivifica o estilo
seiscentista. Desta forma, a literatura barroca cultivou com
frequência a sugestão de um mundo que não é perfeito. Daí a
preferência pela estética do feio, do grotesco, do horrível, do
macabro.
Gregório de Matos foi um mestre em caricaturar
personalidades. Seus retratos são fotografias desfiguradas,
descrições hiperbólicas e grotescas que apenas refletem a
fealdade e o ridículo. "Os defeitos físicos, as situações
indecorosas e sórdidas, os vícios repulsivos constituem temas
frequentes da poesia barroca de caráter realista e satírico"
(SILVA, V. M. A.(1998) p. 489). 9 O nosso poeta, imbuído do
9
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar. Teoria da literatura. Coimbra.
Almedina, 1998, p. p. 489.
espírito da arte barroca, descreveu governadores, padres e
outros inimigos com desenhos deselegantes que suscitam o
riso e o escárnio. O padre Damaso da Silva teve sua imagem
assim reproduzida:

A cara é um fardo de arroz,


que por larga, e por comprida
é ração de um elefante
vindo da Índia.
(...)
A boca desempenada
é a ponte de Coimbra,
onde não entra, nem saem,
mais que mentiras
(...)
Não é a língua da vaca,
por maldizente, e maldita,
mas pelo muito, que corta
de Tiriricas.
(GM Sátira p. 59/60)

É interessante observar ao longo deste poema que o


retrato do padre vai sendo pintado parte por parte: a cara, a
boca, a língua, o corpanzil, as mãos, os ossos do pé
configuram o "feitio" do padre. Em seguida, as últimas
estrofes mostram o mundo interior do padre, a sua
personalidade, o seu lado vil de homem ignorante, seguidor
da lei do Mafona, que nos faz lembrar o padre de Memórias
de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida.
No retrato que fez da Bahia, o poeta captou o mais
feio, as cenas mais truculentas e lúgubres possíveis, como se
pode ver no poema "A terra, a gente":

Toda a cidade derrota


esta fome universal,
uns dão a culpa total
a Câmara, outros à frota
(...)
Eles tanto em seu abrigo,
e o povo todo faminto,
ele chora, e eu não minto,
se chorando vo-lo digo:
tem-se cortado o embigo,
este nosso General.
(GM Sátira p. 91/93)

Esta caricatura da sua cidade aparece ainda em vários


poemas entre os quais, "Define a sua cidade":

Se de dous f f composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia
a grande dano está posta
eu quero fazer aposta,
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter
se o furtar e o foder bem
não são os f f que tem
esta cidade a meu ver.
(GM Sátira p. 98/99)

Os aspectos ridículos, escabrosos e feios presentes na


literatura de Gregório de Matos demonstram o barroquismo
dos seus textos. Sobre este aspecto desagradável à vista,
característica barroca por excelência, Vítor Manuel
posicionou-se da seguinte maneira: "As cenas cruéis e
sangrentas abundam igualmente na literatura barroca,
traduzindo uma sensibilidade exasperada até ao paroxismo
que se compraz no horrorífico e no lúgubre, na solidão e na
noite" (SILVA, V. M. A. (1998) p. 489)10.
O amor na estética barroca, de acordo com o crítico
Vítor Manuel:
é considerado prevalentemente como gozo dos
sentidos – gozo que o dinheiro compra, cínica e
impudentemente – e não como um sentimento
depurado e exaltador do espírito humano. A poesia
gregoriana encontrou no estilo barroco uma
perfeita forma de revelar os prazeres mundanos
que marcaram a vida deste artista e da sociedade
de sua época. (SILVA, V. M. A. (1998) p. 491).

Como amante, o poeta escreveu sobre mulheres


idealizadas, sedutoras e perigosas; mulheres de carne e osso,
prostitutas, mundanas, impregnadas de amor carnal. São as
Beticas ou as Catonas, pardas ou mulatinhas de tal talento, /
que a mais branca e a mais bela / deseja trocar com ela / a
cor pelo entendimento. (p. 128). O amor do poeta arde na
própria chama da sensualidade da arte barroca, um fogo
incendido em mina, / faísca emboscada em pedra, / um mal,
que não tem remédio, / um bem que se não enxerga. (GM
Sátira p. 134) Um paradoxo, um completo contraste cheio de
ornamentos e belezas, que, ao mesmo tempo, privilegia os
aspectos feios e grotescos da existência.
A produção poética do maior poeta brasileiro do
século XVII pode ser assim resumida: poesia de
circunstância: satírica, em que encontramos a monocultura
açucareira, a corrupção governamental, o arrivismo do
colono, a opressão da Corte, a carestiada vida; poesia
graciosa que trata de festas e fatos da Bahia; poesia

SILVA, Vítor Manuel de Aguiar. Teoria da literatura. Coimbra.


10

Almedina, 1998, p. 491.


economiástica que apresenta bajulações. Poesia amorosa:
traz temas como o sensualismo, o "carpe dien", e a exaltação
sentimental. Poesia reflexiva: possui poética de cunho
religioso, em que o homem aparece dividido entre culpa e
perdão e o verso filosofante que trata do estar no mundo, da
efemeridade das coisas. Poesia fescenina: versa sobre a
sexualidade, exibe o grotesco, o escabroso e o chulo.
Notadamente barroco, Gregório de Matos cultivou
tanto o estilo cultista, quanto o conceptista, usando jogos de
palavras, ao lado de raciocínios sutis, sempre com o uso
abusivo de figuras de linguagem e o dinamismo da estrutura
dos contrários.
Sua capacidade de versejador assume formas variadas
como sonetos (poemas de quatorze versos dispostos em dois
quartetos e dois tercetos); décimas (estâncias ou estrofes de
dez versos); romances (narrativa medieval, em prosa ou em
verso, em que trata de personagens heróicas e dos seus
feitos); coplas (pequena composição poética, geralmente em
quadras, para ser cantada); glosas (composição poética,
ordinariamente formada de quatro décimas, às quais servem
de mote (tema) os versos de uma quadra ou décima única, no
qual se inclui o mote de um ou dois versos) etc.
Gregório de Matos possui três modelos: Camões,
Gôngora e Quevedo. Sua poética mantém, portanto,
compromissos com a Renascença maneirista e com o Barroco
cultista e conceptista. Assim, a lírica amorosa anda de
permeio com a lírica religiosa. Sua sátira desbocada e
agressiva vem também da Espanha barroca, mas possui raízes
medievais portuguesas e qualidades absolutamente próprias.
A poesia economiástica explica-se pela habilidade
versificatória e pelas circunstâncias de sua vida. Outra
tentativa de classificação poderia ser: poesia erudita, fruto da
formação literária do autor, em que predominam a lírica
amorosa maneirista e a mística barroca e sonetos e oitavas de
versos decassílabos; poesia popular, consequência de sua
irreprimível necessidade de expressão, em que a supremacia é
exercida pelos poemas satíricos, graciosos e licenciosos
(obscenos), em redondilha maior (sete sílabas) e menor
(cinco sílabas).

3. BOCA DO INFERNO

Do seu posto de intelectual, de homem observador e


sensível, Gregório de Matos testemunhou e, posteriormente,
registrou o drama do Brasil seiscentista. Seus versos
documentam o estado lamentável da cidade da Bahia daquela
época e revelam cenas infernais, onde a Colônia aparece
ardendo no fogo da ganância, dos desmandos dos
governadores e dos comerciantes. O poeta desnuda a
sociedade corrupta, a vida dos ricos, pobres, brancos, negros
e mulatos.
Na Bahia de Todos os Santos, as missas se sucediam
intermináveis, o povo comparecia para expiar suas culpas, ao
mesmo tempo em que os demônios aliciavam as almas para
povoarem o inferno. O sagrado e o profano caminhavam de
mãos dadas, a religiosidade celeste fazia contrapartida com o
mundo das jogatinas, traições, simonias e prevaricações.
O "Boca do Inferno" fez uma crônica poética desse
tempo. O poema denominado "Epílogos" (GM Sátira p.
94/97) exibe razões e conclusões sobre o drama da cidade da
Bahia:

Que falta nesta cidade?Verdade


Que mais por sua desonra?............Honra
Falta mais que se lhe ponha? Vergonha

O demo a viver se exponha


por mais que a fama a exalta,
numa cidade, onde falta
Verdade, Honra e Vergonha.
(GM Sátira p. 94/97)

"Epílogos" é um retrato do Brasil Colônia. Esta


fotografia é realizada por meio da montagem de nove quadros
/ partes. Cada quadro é composto por duas estrofes: um
terceto e um quarteto, este, denominado epílogo. Na primeira
estrofe, o poeta decompõe os vícios e enganos da sociedade;
na segunda, apresenta o epílogo, ou seja, faz uma
recapitulação, um resumo da situação criticada, finalizando
com um remate bem gregoriano, cheio de sarcasmo, galhofa,
injúria e, até mesmo, maldade.
O poeta utiliza a redondilha maior, da tradição
medieval, para cantar as mazelas da província. Todos os tipos
são didaticamente denunciados. Essa didática é alcançada via
processo de disseminação e recolho, muito usado na poesia
barroca, que consiste em espalhar certas palavras pelo texto e
depois reuni-las no último verso.
Cada terceto apresenta três falsas perguntas que,
ironicamente, são respondidas no quarteto abaixo. Este expõe
uma breve dissertação nos três primeiros versos, enquanto o
último recolhe os termos em questão e conclui a ideia.
O uso dessas retóricas, acrescidas da disseminação e
recolho, a ironia do "poeta maldito" verte sátira e denuncia
um mundo isento de valores morais como verdade, honra e
vergonha. Apresenta uma sociedade dominada pelo negócio,
ambição, usura e seus principais agentes: pretos, mestiços,
mulatos, meirinhos, guardas e sargentos.
Podemos imaginar o "Boca do Inferno" declamando
ou cantando em coro, estes versos, juntamente com seus
colegas de boêmia. O poeta (mestre) fazendo as perguntas e
os companheiros (discípulos) emitindo as respostas, depois,
juntos, cantando a conclusão (epílogo).
Este texto é uma pintura realista e corajosa da
sociedade. A galhofa tem seu ponto alto nas partes finais
(quinta e sexta) quando são realizadas críticas a El-Rei e
clerezia. O primeiro é acusado de oferecer uma "justiça"
bastarda, vendida e injusta, o segundo é denunciado por
prática de simonia (tráfico de coisas sagradas, espirituais) e
por se ocupar com "freiras", "sermões" e "putas".
O audaz poeta ataca sem temor os desajustes
administrativos, sociais e econômicos. No poema "Aos
capitulares do seu tempo" diz francamente:

A nossa Sé da Bahia,
com seu um mapa de festas,
é um presépio de bestas,
se não for estrebaria:
várias bestas cada dia
vemos, que o sino congrega,
Caveira mula galega,
o Deão burrinha parda,
Pereira besta de albarda,
tudo para a Sé se agrega.
(GM Sátira p. 54)

O poeta reveste sua poesia de naturalismo ao


transmitir imagens que desmascaram a sociedade e põe às
claras a degradação daqueles tipos humanos. A sociedade é
classificada como um "presépio de bestas" ou uma
"estrebaria", sendo, portanto, animalizada, bestializada. "A
desfiguração do poder espiritual é reduzida ao nível e ao
espaço animal. Os padres são caricaturados dentro do
bestiário de asno” (FREITAS, M. E. P. (1981) p. 86)11.
A patologia está consignada nas décimas referidas
"Ao cura da Sé que naquele tempo, introduzido ali por
dinheiro, e com presunções de namorado satiriza o poeta
como criatura do prelado." (GM Sátira p. 55)

O cura, a quem toca a cura


de curar esta cidade
cheia a tem de enfermidade
tão mortal que não tem cura:
dizem, que a si só se cura
de uma natural sezão

(GM Sátira p. 54/55)

As sete décimas deste poema relatam o caso de uma


cidade atormentada por enfermidades físicas e espirituais.
Um cura recebeu a incumbência de salvar a aldeia.
Ironicamente, o tal padre trouxe mais doenças e males para
aquela Sé.
O texto é marcado pelo ludismo, isto é, pela
brincadeira com a linguagem expressa através do trocadilho:
O Cura, a quem toca a cura / de curar esta cidade... O poeta
brinca ironicamente com a ambiguidade da palavra cura:
primeiramente, significa vigário, pároco de uma aldeia, Sé;
depois, ação ou efeito de curar. Contrariando os dogmas e a
semântica, o dito santo padre era um "santo ladrão", um

11
FREITAS, Maria Eurides Pitombeíra de. O grotesco na criação
de Machado de Assis e Grego rio de Matos. Rio de Janeiro.
Presença, 1981, p. 86.
engodo que praticava simonia e não curava alma nem corpo.
Era um beato maligno, um paradoxo vestido de Cura.
O naturalismo carnavalizante de Gregório de Matos
tem sua fonte nas imagens da cultura cômica popular do
"baixo material corporal. Portanto, o uso do grotesco em sua
sátira visa pôr em ridículo as suas vítimas e trazer à praça o
riso pelo destronamento de tudo o que é fixo, imutável,
oficial" (FREITAS, M. E. P. (1981) p. 91)12.

3.1. O mundo às avessas

Gregório de Matos transfigura, em seus versos, uma


visão pessimista de mundo. A sociedade divulgada é doente,
enlouquecida, errada, às avessas. Observe o soneto "Queixa-
se o poeta em que o mundo vai errado, e querendo emendá-lo
o tem por empresa dificultosa".

Carregado de mim ando no mundo,


E o grande peso embarga-me as passadas,
Que como ando por vias desusadas
Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.
(...)
Não é fácil viver entre os insanos,
Erra, quem presumir, que sabe tudo,
Se o atalho não soube dos seus danos.
(GM Sátira p. 28)

12
FREITAS, Maria Eurides Pitombeíra de. O grotesco na criação
de Machado de Assis e Grego rio de Matos. Rio de Janeiro.
Presença, 1981, 91.
Convivendo com os insanos, o poeta torna-se
impotente e conclui que é impossível emendar o mundo: Que
é melhor neste mundo o mar de enganos / Ser louco cos
demais, que ser sisudo (GM Sátira p. 29).
Diante do exposto, para não ficar à margem dessa
sociedade ensandecida, o "poeta maldito" liberou seus
demônios e tornou-se um libertino. Sua linguagem poética
ecoou louca, obscena, livre de preconceitos, festiva, lúdica,
satírica, para mostrar o mundo às avessas, como é, realmente,
sem máscaras.
O irreverente artista encontrou, na ironia e na sátira, a
exata fórmula de demonstrar os desacertos do mundo. A esse
respeito, Maria Eurides P. de Freitas pronunciou-se:

Em Gregório de Matos, o gosto de satirizar e


de quebrar o bloco do imutável e normal dos
acontecimentos na sociedade, os escândalos da
palavra inconveniente, os gracejos, os
desmascaramentos, as paródias e os rebaixamentos
são aspectos que denunciam ser a sua arte fundada
na visão carnavalizada do mundo, que as injúrias –
verdades, ditas a respeito do velho poder,
assemelham-se aos disfarces e desmascaramentos
carnavalescos.
O riso que sua obra provoca pela sensação
carnavalesca do mundo, destrói o sério e todas as
pretensões a uma significação superior e realiza o
afrouxamento da consciência da imaginação e do
pensamento. (FREITAS, M. E. P.(1981), p. 73)13.

13
FREITAS, Maria Eurides Pitombeíra de. O grotesco na criação
de Machado de Assis e Grego rio de Matos. Rio de Janeiro.
Presença, 1981, p.73.
Acrescento ainda que Gregório de Matos vê o mundo
como um grande palco, onde é representada uma comédia
que, definitivamente, não é divina, mas diabólica. Nesse
espetáculo, os atores representam a própria história. Entre os
astros mais ressaltados estão os governos corruptos, os
administradores ladrões, o clero hipócrita, o frade canastrão,
os fidalgos mulatos, os letrados burros e pícaros.
Assim, o poeta transmite uma visão carnavalesca da
sociedade, onde o não-oficial é liberado e as relações
hierárquicas, regras e tabus são dissolvidos para dar lugar a
um mundo às avessas, livre, despudorado, zombeteiro,
festivo, galhofeiro, risível, palhaço, brincalhão, colorido, real,
sem hipocrisia e representa a alma da coletividade, a vida do
povo. É a representação da vida de uma forma que foge à
lógica aparente, mas é a verdadeira.
O poeta diz verdades que são proibidas, mas que no
texto satírico são liberadas e popularizadas no riso festivo e
universal. O que deveria ser sério e sagrado aparece como
galhofa e heresia. As cortinas do palco são abertas para dar
lugar aos paradoxos: padre maligno, administrador desonesto,
letrado burro e governador desordeiro. Tais absurdos são
elementos normais e revestidos de banalidades. O ludismo
gregoriano atenua o que poderia ser dramático, e acrescenta
colorido e alegria aos contrastes que marcam a vida humana.
Verifique o jogo de oposição apresentado nos versos:

Neste mundo é mais rico, o que mais rapa:


Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:
Com sua língua ao nobre o vil decepa:
O velhaco maior sempre tem capa.
(...)
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver pode ser Papa.
(GM Sátira p. 38/39)

Estes versos trazem contrastes que revelam detalhes


da vida desde os tempos mais remotos, pois é público e
notório que quanto mais rico, mais ganancioso, quem mais
limpo se faz tem mais sujeira. As contradições apresentadas
são tão comuns e verdadeiras quanto absurdas e, além de
tudo, hodiernas, universais.

3.2. Caricatura do poder

A obra de Gregório de Matos foi marcada pelas


imitações grosseiras, cujo objetivo era ridicularizar os
poderosos.
Dois governadores ficaram na história da poesia
satírica brasileira. O primeiro foi Antônio de Sousa Meneses,
vigésimo quinto governador e capitão-general do Brasil, o
temível “Braço de Prata”, alcunha que teve por base o fato de
o governador usar uma peça desse metal em lugar do braço
perdido numa batalha naval contra os invasores holandeses.
Por suas sátiras aos donos do poder e por seu
envolvimento com inimigos do governo, Gregório de Matos e
Guerra foi perseguido pela fúria brutal do “Braço de Prata”.
Vários poemas caricaturam Antônio de Sousa
Meneses. Os versos da "Descrição, entrada, e procedimento
do Braço de Prata Antônio de Sousa Meneses Governador
deste Estado". (GM Sátira p. 67/72) exemplificam as
deformações ridículas oferecidas a Dom Antônio. Entre as
descrições extravagantes estão: O bigode fanado feito ao
ferro / ...olhos cagões, que cagam sempre à porta / ...De
muito cego, e a não de malquerer / A ninguém podes ver; /
...Chato o nariz de cocras, sempre posto; / Te cobre todo o
rosto, / ...És fábula do lar, riso da praça, / Té que a bala, que
o braço te levara, / Venha segunda vez levar-te a cara. Desta
forma, o poeta satírico denota a sua oposição ao ditador,
fazendo-lhe caricatura, desentronizado-o do alto de seu
poder.
O segundo governador, vítima do sarcasmo do "Boca
do Inferno", foi Antônio Luís da Câmara Coutinho,
governador geral do Brasil, de 1690 a 1694. Eis o "Retrato
que faz extravagante o poeta, ao mesmo governador Antônio
da Câmara na sua despedida". (GM Sátira p. 73/78)

Vá de retrato
por consoantes
que eu sou Timantes
de um nariz de tucano
pés de pato
pelo cabelo
começo a obra.
(GM Sátira p. 73)

O poeta descreveu o "Senhor Tucano" como um


hércules quasímodo, uma personagem monstruosa que
possuía "pés de pato", "giba de camelo", "olhos baios",
"sobrancelha à semelhança de vassoura esparramada", "nariz
de embono", "garganta de voz fanchona" (voz de mulher),
"corcunda", "um caracol que traz a casa às costas", "pernas,
dois rolos de tabaco já podre e fedorento".
No romance denominado "Apologia cavilosa em
defesa do mesmo governador Antônio Luís" (GM Sátira p.
79/82), o governador geral do Brasil foi denominado de
"sodomita", "fanchono", "vilão ruim" etc. Em outros poemas,
mesmo não constando desta seleção, foi classificado de
"bronco", "corcova de canastrão", "hiena que falava com
putana", "maligno desde o tronco", "que tinha os criados
sempre aferrolhados para o pecado mortal", "jumento" e
"homossexual".
Estes retratos grotescos dos governadores da Bahia
lembram à caricatura do Presidente Floriano Peixoto feita por
Lima Barreto em Triste fim de Policarpo Quaresma. A
imagem do presidente ditador, autoritário, injusto aparece
sem retoques, feita com o exagero necessário para suscitar a
sátira ao poder instituído no Brasil naquela época. Por meio
dos questionamentos de Policarpo Quaresma, Lima Barreto
evidencia o abuso de poder de Floriano Peixoto e faz o retrato
caricato não só do presidente como o da situação reinante
naquele momento histórico.
Esse conjunto caricatural virulento levou o "Boca do
Inferno" à prisão e ao degredo em Angola. A perseguição e
posterior degredo a que foi condenado inspiraram poemas
como o soneto "Desempulha-se o poeta da canalha
perseguidora contra os homens sábios, cantando benevolência
aos nobres". (GM Sátira p. 111) em que ele questiona:

Que me quer o Brasil, que me persegue?


Que me querem pasguates, que me invejam?
(...)
Com seu ódio a canalha, que consegue?
Com sua inveja os nécios que motejam?
(GM Sátira p. 111)

Na sua despedida, sem perder oportunidade para


soltar seu veneno em direção aos poderosos e aos nobres, diz
o poeta no longo poema "Embarcado já o poeta para o seu
degredo, e postos os olhos na sua ingrata pátria, lhe canta
desde o mar as despedidas". (GM Sátira p. 111/115)
Adeus praias, adeus cidade
(...)
Adeus Povo, adeus Bahia,
digo, Canalha infernal,
e não falo da nobreza
tábula, em que se não se dá.
(GM Sátira p. 112)

Além dos governadores, outro retrato cruel registrado


pelo poeta teve como modelo o vigário de Passé Lourenço
Ribeiro. "Clérigo e pregador, mulato natural da Bahia,
constitui o mote desta sátira por ter, anteriormente, mofado,
em público, dos versos de Gregório" (GM Sátira p. 62).
O poema cheio de rancor conceitua o sacerdote de
"Canaz", "Cão revestido de padre", "cachorro pregador",
"podengo asneiro", "mondongo", "sangue de carrapato",
"mentecapto", além de expressões chulas como "que me
importa um branco cueiro" / “se o cu é tão denegrido".
Em Gregório de Matos "os rebaixamentos assumem
sempre aspectos grosseiros, seja na rude palavra, no epíteto
violento, na ironia ferina. É por elas que o poeta arremessa
flechas para a direita e para a esquerda".(FREITAS, M. E. P.
(1981), p. 105)14. O texto gregoriano é revestido de um
realismo afetivamente carregado, rancoroso e sarcástico. O
poeta é um especialista em caricaturar o indivíduo em uma
situação. Por meio desses aspectos, denuncia os poderosos,
inclusive a clerezia santificada, denúncia que está também
apresentada de forma caricaturesca no romance de Manuel
Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias.
Os textos do poeta barroco e do romancista romântico,
14
FREITAS, Maria Eurides Pitombeíra de. O grotesco na criação
de Machado de Assis e Grego rio de Matos. Rio de Janeiro.
Presença, 1981, p. 105.
embora em épocas distintas, século XVII e XIX, atacam o
clero, expondo o ridículo do falso sacerdote, "que podia por
si só fornecer a Bocage assunto para um poema inteiro...
pregador que buscava sempre por assunto a honestidade e a
pureza em todo o sentido; porém interiormente era sensual
como um sectário de Mafona." (ALMEIDA, M. A. De,
(1998) p.27)15. Gregório vê esses mestres-de-cerimônias
como "Zotes de Requiem", "Mariolas de missal", "Lacaios de
missa cantante", "ganhões de altar", "Orate frates". Os dois
artistas desmascaram a falsa santidade clerical em cenas
ridículas e de situações comprometedoras.
Desta forma, usando de rebaixamentos grotescos,
termos de baixo calão e imagens carnavalizantes, o poeta
baiano desmascara os governadores, a Igreja, os corruptos, os
donos do poder e da verdade do Brasil.

3.3. A linguagem libertina

Gregório de Matos revestiu sua sátira de uma língua


livre de preconceitos, festiva, libertina, obscena.
Sua poesia fescenina, que não evita os termos mais
chulos e as cenas mais escabrosas, toma-o como que um
herdeiro do espírito das cantigas de escárnio e maldizer.
A palavra "fescenino" provém do latim: adjetivo
relativo a um certo tipo de verso licencioso da antiga Roma
do qual teria originado a sátira. A este tipo de verso costuma-
se chamar "escatológico" (adjetivo relativo a excremento) ou
sotádico (Sótades, poeta grego, obsceno, do séc. III a.C.). É
difícil encontrar poesia fescenina tão contundente quanto a de
15
ALMEIDA, Manuel António de. Memórias de um sargento de
milícias. São Paulo, Moderna. 1988, p. 27
Gregório de Matos. Convém revelar que a poesia sotádica
agrada muito aos intelectuais e é comum na obra dos maiores
poetas da História.
A glosa em que o poeta "Define a sua cidade" (GM
Sátira p. 98/99) pode exemplificar a libertinagem do famoso
baiano. O texto traz o seguinte mote: De dous f f se compõe /
esta cidade a meu ver / um furtar, outro foder. A partir do
pensamento expresso nesses versos, Gregório de Matos
ridiculariza sua cidade e não se intimida em dizer
abertamente palavras proibidas.
Sua "musa picante", ou seja, seu veio satírico fez
maravi, maravi, maravilhas (GM Sátira p 59) de
libertinagens ao descrever o clérigo Padre Damasco da Silva
(GM Sátira p. 58/62). Entre os termos e frases desregradas
estão as que dissecam o corpo do vigário: a cara é um fardo
de arroz, a boca é a ponte de Coimbra, língua de vaca pelo
que corta de tiriricas; ou ainda a sátira endereçada ao
vigário de Passé Lourenço Ribeiro que apresenta expressões
grosseiras como o cu é tão denegrido (GM Sátira p. 64).
Devemos lembrar, ainda, as memoráveis qualificações
dirigidas ao governador Tucano "sodomita", "fanchono",
"jumento de mãos guadunhas", "puta dos calções" e outras
palavras e frases de alta obscenidade.
Nenhum outro poeta brasileiro possui tão atrevida
força de expressão e tamanha coragem de dizer palavras
tabus, coisas proibidas que moram na alma popular. Este
poeta "maldito" deixou para a literatura brasileira um legado
de versos picantes, porém corajosos, verdadeiros e imortais.

4. A MULHER E O AMOR
A mulher, seja Ângela, Angélica, Anastácia, Maria,
Maricota, Jacutinga; branca, negra, rica ou pobre, todas elas
encantaram o poeta e sua poesia.
O poeta teve entre suas amantes várias negras e
mulatas, suas principais musas. São Angelitas, Beticas,
Catona, Helenas, Inácias, Joanas: quase todo o ABC de
outros nomes está registrado na lira gregoriana; são heroínas
de romances e "símbolos de exuberância da terra e da língua
num modo poético brejeiro, verso de injúria e louvores à
mulher real, palpável" (FREITAS, M. E. P. (1981) p. 98) 16.
Nos versos dos romances, o poeta registra sua preferência:

Crioula da minha vida,


Supupema da minha alma,
bonita como umas flores,
e alegre como umas páscoas,
Não sei que feitiço é este,
que tens nessa linda cara,
a gracinha, com que ris,
a esperteza, com que falas.
(GM Sátira p. 122)

Como era de se esperar de um coração de tantas


contradições barrocas, o amor em Gregório de Matos recebe
duplo tratamento: contemplação platônica à maneira de
Camões e Petrarca e concupiscência terrena voltada às
crioulas da Bahia. Prevalece a segunda modalidade.
O soneto em que o poeta "Pondera agora com mais
atenção à formosura de D. Ângela" ( GM v1p. 403) é um

16
FREITAS, Maria Eurides Pitombeíra de. O grotesco na criação
de Machado de Assis e Grego rio de Matos. Rio de Janeiro.
Presença, 1981, p.98.
exemplo do platonismo do amor impossível de ser atingido
em razão dos perigos inerentes a esse sentimento:

Não vi em minha vida a formosura,


Ouvia falar dela cada dia,
E ouvida me incitava, e me movia
A querer ver tão bela arquitetura.

Ontem a vi por minha desventura


Na cara, no bom ar, na galhardia
De uma Mulher, que em Anjo se mentia,
De um Sol, que se trajava em criatura.

Me matem (disse então vendo abrasar-me)


Se esta a cousa não é, que encarecer-me
Sabia o mundo, e tanto exagera-me.

Olhos meus (disse então por defender-me)


Se a beleza hei de ver para matar-me
Antes, olhos, cegueis, do que perder-me
(GM v1p. 403)

A beleza angelical da mulher/amor provoca a perdição


do “eu” lírico. O poeta experimenta sensações contraditórias,
paradoxais. Ao sentir-se atraído pela beleza angélica, afasta-
se com medo de perder-se no pecado desse amor avassalador,
do anjo-demônio, bem-mal, Deus-diabo, céu-inferno, vida-
morte.
O soneto está voltado mais para o sensorial, para o
jogo de imagens que retratam o reflexo de uma beleza
estonteante e está inserido no estilo cultista, uma vez que
este se manifesta como uma resposta a uma atitude emotiva,
sentimental, sensorial, perante o mundo. O uso intenso de
figuras de linguagem e de jogos de palavras realça, ainda
mais, o gongorismo. As palavras "Mulher", "Anjo", "Sol", e
criatura, por exemplo, estão dispostas em forma de um "X",
formando um cruzamento de imagens denominado quiasmo e
com inicial maíscula, para inserir propriedade aos nomes. A
amada é ao mesmo tempo uma Mulher-Anjo-Sol, uma pessoa
que prossui o atributo de ser celeste e iluminada a partir do
próprio nome, num jogo intrínseco da própria essência do
nome. Também nesse jogo em torno do nome e seus
predicativos está ludismo do cultimo barroco. O poeta brinca
com as palavras enquanto define e dispõe seus encantos em
torno da mulher amada.
Na lírica gregoriana, o amor foi definido como um
sentimento que traz, na essência, o paradoxo, amplamente
conceituado por Camões: Amor é fogo que arde sem se ver /
É ferida que dói e não se sente / É um contentamento
descontente / É dor que desatina sem doer. (CAMÕES, L. V.
(1980) p. 11)17; O amo é um não sei quê, que nasce não sei
onde, / Vem não sei como, e dói não sei porquê” (CAMÕES,
L. V. 1980, p.12). Na lírica amorosa, o tom parodístico
prevalece, uma vez que, imitando o poeta português,
Gregório de Matos conceitua o amor, através da antítese e do
paradoxo; também para ele o "Amor é fogo" (GM Sátira p.
129). Para o poeta baiano, o amor é Uma hidropsia da alma /
da razão uma cegueira, / uma febre da vontade / uma
gostosa doença. / Uma ferida sem cura, / uma chaga, que
deleita, / um frenesi dos sentidos, / desacordo das potências
(GM Sátira p. 133); ou ainda, sem paradoxos, simplesmente:

O amor é finalmente

17
CAMÕES, Luís Vaz de. Lírica, épica, teatro, cartas.
Organização de João Alves e Douglas, Tufano São Puio, Moderna.
1980, p. 12).
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias.
Uma confusão de bocas
uma batalha de veias,
um rebuliço de ancas
quem diz outra coisa, é besta.
(GM Sátira p. 137)
Na sátira, o amor é dessacralizado e aparece como
"um pecado, safado, debaixo do cobertor", mas ao falar das
origens do amor, relacionando-o com Cupido e com Vênus,
ainda no poema "Definição de amor", o poeta afirma que
"Outros, que fora ferreiro / seu Pai, onde Vênus bela / serviu
de bigorna, em que / malhava com grã destreza". (GM Sátira
p.129)
Neste poema, Gregório de Matos apresenta uma
definição do amor usando uma espécie de poesia denominada
"romance", cuja narrativa em versos traz uma retrospectiva
da história do amor, suas proezas, dores e prazeres. O tom da
paródia prevalece em todo o poema, já que as marcas do
lirismo camoniano permanecem, apesar do tom pessoal e, às
vezes, brincalhão, do "poeta maldito".

CONCLUSÃO

Gregório de Matos é o mais importante poeta brasileiro do


Barroco e um dos exemplos mais expressivos do comportamento da
época.
Refletindo o dualismo barroco, ora demonstra a aversão que
sente pelo clero, ora revela uma profunda devoção às coisas sagradas, ora
produz versos pornográficos, sensuais e eróticos.
Graças à linguagem maliciosa e ferina com que critica pessoas e
instituições da época (não dispensando palavras de baixo calão), recebeu
o apelido de Boca do Inferno. Em suas sátiras não investe apenas contra
os poderosos, mas contra o ser humano que considera inepto, corrupto e
mau.
A poesia lírica de Gregório de Matos ora celebra o sensualismo
africano, ora o erotismo nativista, ora vincula-se à tradição renascentista.
Seus poemas religiosos (não incluídos nesta seleção) revelam a
inquietação do homem diante da divindade e da consciência da fragilidade
e da pequenez dos mortais.
A lira do poeta baiano canta as "torpezas do Brasil, vícios e
enganos" e apresenta a cidade da Bahia do seu tempo como uma
metonímia do mundo, conferindo à sua poesia um tom universalizante, o
que faz reluzir, ainda mais, o brilho desse brasileiro que, por ter estilo e
veia poética, ficou na História da nossa literatura. Quem conhece os
versos de Gregório de Matos e Guerra jamais esquece a sabedoria e a
irreverência que deles emanam.

II - TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA


– AMOR, RAZÃO E POESIA18

18
Os poemas das citações desse estudo foram retirados dos livros: GONZAGA,
Tomás Antônio. Marília de Dirceu; (TAG Marília de Dirceu) biografia e
introdução de M. Cavalcanti Proença, 25ª, Rio de Janeiro: Ediouro. 1996 e
referidos como (T.A.G. 1996) ou COSTA, Manuel da, GONZAGA, Tomás
Antonio e PEIXOTO, Alvarenga / A poesia dos inconfidentes: Poesia Completa.
Organização Domício Proença Filho, artigos, ensaios e notas de Melânia Silva de
Aguiar (et.al), Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1996. nas referencias indicados por
(OCT.A.G).
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
(Fernando Pessoa)
Tu, Marília, agora vendo
Do Amor o lindo retrato,
Contigo estará dizendo
Que é este o retrato teu.
Sim, Marília, a cópia é tua,
Que Cupido é deus suposto?
Se há Cupido, é só teu rosto,
Que ele foi quem me venceu.
Tomás Antônio Gonzaga)

Eu tenho um coração maior que o mundo,


Tu, formosa Marília, bem o sabes:
Um coração... , e basta,
Onde tu mesma cabes.
(Tomás Antônio Gonzaga)

1. NEOCLASSICISMO/ARCADISMO

O Neoclassicismo foi o único estilo literário que


nasceu com a finalidade específica, estabelecida em estatutos,
de combater o estilo literário anterior. Sua origem imediata
está nas reuniões que a Rainha Cristina, ex-soberana da
Suécia, fazia em seu palácio, depois que se instalou em
Roma. Nessas reuniões, a que compareciam não só os
grandes poetas do tempo, mas pintores, escultores e músicos,
é que se propôs, formalmente, fazer com que a literatura e a
arte retomassem a primitiva simplicidade de forma e de
ideias, observável na arte clássica.
Depois da morte de Cristina, criou-se em Roma, em
1690, a fim de que aquelas ideias não se perdessem, a
primeira academia literária, ou melhor, a primeira Arcádia,
chamada Arcádia Romana. Em 1756, foi criada em Portugal a
Arcádia Lusitana. Por essa época, Cláudio Manuel da Costa,
poeta brasileiro que tinha vivido em Portugal, veio para o
Brasil com o propósito de aqui fundar uma “arcádia
ultramarina”. A intenção não deu certo, isto é, não chegou a
ser criada uma arcádia no Brasil, mas a ausência da
instituição não impediu que, entre nós, se escrevessem obras
obedecendo às mesmas normas e regras que orientavam a
poesia produzida pelos membros das arcádias europeias.
A Arcádia Lusitana tinha um lema: a frase latina
inutilia truncat que significa, em português, despreza o que
é inútil, ou corta as inutilidades. Esta frase transmite uma
espécie de ordem: abandono do supérfluo e inútil. Essa era a
atitude preconizada, aconselhada ou sugerida pela Arcádia.
A literatura produzida pelos árcades (membros das
Arcádias) abandonava a tradição barroca; rebelando-se contra
ela, propunha uma poesia mais simples, menos rebuscada.
Muito embora se voltasse violentamente contra o
Barroco, o Neoclassicismo, com sua poderosa corrente
conhecida como Arcadismo, não logrou vencer de imediato a
estética anterior. Assim é que, em todo o decorrer do século
XVIII aparecem, na poesia, obras de valorização da
Antiguidade clássica, enquanto na prosa neoclássica
(destituída de maior importância, diga-se de passagem),
permanece aquele mesmo espírito barroco que predominou
na poesia e na prosa do século XVIII.
O retorno dos neoclássicos aos modelos clássicos e à
valorização das obras greco-latinas não evitaram que sua
poesia se revestisse de certo caráter postiço e extemporâneo,
uma vez que os autores se limitaram ao uso de determinadas
fórmulas, formas e chavões literários, já cediços e esgotados.
O Arcadismo, fruto da tentativa de fazer voltar à vida,
por meio da literatura, à primitiva Arcádia grega, região
habitada por pastores chefiados pelo deus Pã, tornou a poesia
neoclássica ainda mais fora da época, mais postiça e
inautêntica. Dessa tentativa decorre o fato de os poetas se
apresentarem como pastores, adotando pseudônimos, e se
entregarem a certo tipo de poesia em que a Natureza é, regra
geral, totalmente idealizada, valorizando-se a simplicidade de
estilo e de ideias de vida simples, a pureza de formas e o
equilíbrio na obra literária.

1. 1. O panorama da época

Como o Arcadismo não surgiu no Brasil, mas na


Europa, é lá, mais especificamente na França, que vamos
encontrar os fatos históricos e sociais relacionados ao
aparecimento da poesia arcádica.
Por volta do século XVII, a vida europeia mudava
rapidamente: a nobreza estava enfraquecida e a classe
burguesa fortalecia-se cada vez mais.
Os objetos não eram mais fabricados à mão, de um em
um: eram produzidos em série, em indústrias. Foi o que se
chamou Revolução Industrial. A multiplicação das indústrias
criou novas oportunidades de emprego: muita gente
abandonou a lavoura e veio trabalhar nas cidades. Isto,
evidentemente, fez com que as cidades se desenvolvessem
muito.
Pensando um pouco, vemos logo que a Revolução
Industrial foi precedida de um desenvolvimento muito grande
da ciência e da tecnologia. Era preciso, afinal, que se
criassem novas máquinas e novos processos que acelerassem
a produção de objetos.
Esse avanço científico e tecnológico, por sua vez,
mostrou aos homens o valor da inteligência, do raciocínio.
Passou-se a valorizar, extremamente, a Razão, faculdade
através da qual o homem explica o universo e inventa formas
de atuar sobre ele. Essa valorização da Razão e da
Inteligência fez com que, aos poucos, se percebesse a
importância do conhecimento para a felicidade humana. Uma
filosofia - O Iluminismo - surgiu deste modo de pensar.
Foi por essa época que alguns intelectuais franceses se
dispuseram a escrever um livro que divulgasse todo o
conhecimento existente. Esse “livro” foi a primeira
enciclopédia e o movimento em prol da difusão da cultura
ficou conhecido como Enciclopedismo.
Nessa época, a educação era extremamente
valorizada. Tornou-se, assim, necessária uma completa
reforma no sistema escolar de Portugal e suas colônias, onde
toda a educação era confiada aos jesuítas, cuja filosofia de
ensino não combinava com as ideias iluministas: a escola
jesuítica tinha uma forma religiosa e dogmática de ver o
mundo, enquanto a filosofia dos novos tempos exigia
explicações racionais do universo. Foi por isso que o marquês
de Pombal, ministro do rei de Portugal, Dom José, expulsou
os jesuítas do sistema escolar, deixando a política
educacional na mão de leigos. Foi o que chamou de
Iaicização da cultura.
Mas, enquanto isso ocorria, a vida social e política
andava bastante conturbada. O marquês de Pombal era, na
realidade, o homem forte do governo. O período de sua
administração foi marcado por atitudes radicais e violentas; e,
para tomar tais atitudes, ele não consultava ninguém. Era, por
isso, um déspota. Mas, como muitos dos atos que praticou
(como por exemplo a expulsão dos jesuítas) tinham por
objetivo a modernização da sociedade portuguesa, seu
governo é chamado de despotismo esclarecido.
O despotismo esclarecido, que tentava conciliar o
Iluminismo e o Absolutismo, era apoiado por muitos
intelectuais. O próprio marquês de Pombal foi exaltado em
vários poemas que o celebravam como um defensor da
cultura. Mas, em contraposição às ideias de despotismo, o
fim do século XVIII foi também uma época cheia de
pensamentos liberais e democráticos de igualdade entre os
homens. Tais ideias, na França, acabaram por provocar a
Revolução Francesa.

1. 2. O Brasil na época arcádica

No Brasil, essas mesmas ideias provocaram a


malograda Inconfidência Mineira. Aliás, muitos dos poetas
arcádicos brasileiros participaram ativamente da
Inconfidência, como por exemplo, Cláudio Manuel da Costa
e Tomás Antônio Gonzaga.
Outro fator importante para compreensão da vida
cultural brasileira, ao tempo do Arcadismo, foi a vinda da
Corte portuguesa, em 1808. Transferindo o governo para o
Brasil (Rio de Janeiro), Dom João VI acelerou a
modernização de nossa sociedade: começamos a ter órgãos
de imprensa, a ter contato com outras nações além de
Portugal.
Assim, a Inconfidência Mineira e a chegada da família
real foram os marcos do panorama brasileiro; em
consequência, os mais fortes núcleos de produção poética
arcádica localizaram-se em Vila Rica (Minas Gerais) e Rio de
Janeiro.

1. 3. Características da poesia arcádica

Já vimos que a literatura arcádica surgiu da reunião de


poetas em agremiações intituladas arcádias. Encontramos aí,
então, um dos traços mais importantes da produção arcádica:
seu caráter gregário, corporativo.
Os poetas que se reuniam nas arcádias tinham um
ideal estético comum: a simplicidade, que deveria ser
atingida por meio de uma completa ruptura com a tradição
barroca, ou seja, o abandono de tudo o que tinha
caracterizado a linguagem seiscentista: as antíteses e
paradoxos, as metáforas mais violentas, a ordem inversa, os
exageros. Em troca, os árcades propunham a ordem direta e
uma linguagem simples, com inspiração arte clássica,
elegendo Teócrito, Virgílio e Horácio como modelos. Filinto
Elísio19, um árcade português, aconselhava os jovens poetas:
19
FILINTO ELYSIO nasceu em Lisboa, 23 de Dezembro de 1734 e faleceu em
Paris, 25 de Fevereiro de 1819. Foi um poeta, e tradutor, português do
Neoclassicismo. O seu verdadeiro nome é Francisco Manuel do Nascimento, e
foi sacerdote.
O seu pseudónimo, Filinto Elísio, ou também Niceno, foi-lhe atribuído pela
Marquesa de Alorna (a quem ensinou latim quando se encontrava reclusa no
Convento de Chelas), dado Francisco Manuel do Nascimento ter pertencido a uma
Lede que é tempo os clássicos honrados; / Herdai seus bens,
herdai essas conquistas.
Como consequência dessas retomadas da tradição
clássica, a poesia arcádica faz frequentes alusões aos deuses
da mitologia e aos heróis da história grega, como se vê nos
seguintes versos da lira de Tomás Antônio Gonzaga20:

Podem muito, conheço, podem muito,


As fúrias infernais, que Pluto move;
Mas pode mais que todas
Um dedo só de Jove.
(T.A.G. 1996 p. 60)

Pluto, na mitologia grega - o deus dos infernos e das


riquezas - era cego e não podia distinguir os bons dos maus,
distribuindo, inconscientemente, a uns e a outros as riquezas.
Pluto é representado na figura de um ancião que leva uma
bolsa na mão; chega com passos lentos e coxeando, e
desaparece subitamente, voando; o que significa que as
riquezas se adquirem com muita dificuldade, mas que se
perdem com grande rapidez. A alusão a Pluto na poesia de
Gonzaga refere-se ao desabafo do poeta quando estava no
cárcere, período em que fez um balanço do que foi sua vida
de homem rico, juiz e conhecedor do poder das fúrias

sociedade literária – Grupo da Ribeira das Naus, cujos membros adaptavam


nomes simbólicos.
Sua obra hoje pode ser encontrada em PDF, no site http://purl.pt/12077/4/
em X Tomos
http://purl.pt/12077/4/l-3226-p/l-3226-p_item4/l-3226-p_PDF/l-3226-p_PDF_24-
C-R0150/l-3226-p_0000_capa-capa_t24-C-R0150.pdf (I TOMO)
http://purl.pt/12077/4/l-3228-p/l-3228-p_item4/l-3228-p_PDF/l-3228-p_PDF_24-
C-R0150/l-3228-p_0000_capa-capa_t24-C-R0150.pdf (III Tomo)
20
GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu. Rio de Janeiro:
Ediouro. 1996.
infernais que a riqueza às vezes pode trazer. As fúrias
infernais referem-se também às Enírias ou Eumênides, deusas
dos romanos; filhas da Terra, viviam no Tártaro e tinham por
missão punir os crimes dos homens. Representam-nas com os
cabelos entrelaçados de serpentes, com um facho aceso numa
das mãos e na outra um punhal. Chamavam-se: Tisífone,
Alecto e Megera e representavam o sofrimento e a punição
dos crimes. Diante do exposto, a alusão às fúrias infernais
promovidas por Pluto denota o poder do dinheiro, sua força
justiceira e cega que tudo pode e é capaz de realizar.
Jove é um cognome romano para Júpter ou Zeus
(nome grego) - o soberano dos deuses na mitologia. É o pai
todo-poderoso que, ao comando de um dedo seu, podem ser
dissipadas todas as dores do mundo. Aqui, o “eu” lírico
neoclássico apresenta sua crença aos poderes do maior de
todos os deuses.
Além da mitologia, os árcades cultivaram também o
tópico da “áurea mediocritas” (vida mediana, modesta, mas
dourada pelo entendimento) como pode ser visto nos
seguintes versos de Gonzaga:

Enquanto revolver os meus consultos,


Tu me farás gostosa companhia,
Lendo os fatos da sábia mestra história,
E os cantos da poesia.

Lerás em alta voz a imagem bela,


Eu vendo que lhe dás o justo apreço,
Gostoso tornarei a ler de novo
O cansado processo.
(T.A.G. 1996 p.107)

A áurea mediocritas defendia aquele anseio de vida


envolvida na mediania, no querer que aspira ao não
demasiado, mas ao suficiente e repudia o tom de excesso da
grandiloquência do Barroco tardio e postiço.
Outra atitude bastante comum, encontrada na poesia
arcádica, é a preocupação com a passagem do tempo, com a
velhice inevitável, com o enfraquecimento do corpo. Chama-
se “carpe diem” a manifestação desta consciência, que
provoca apelos ao gozo da vida, à urgência do prazer, à
pressa na realização amorosa. Nesse sentido o pastor Dirceu
diz à sua amada:

Ah! não, minha Marília,


Aproveite-se o tempo, antes que faça
O estrago de roubar ao corpo as forças,
E ao semblante a graça.
(T.A.G. 1996 p. 34)

O clichê carpe diem tem como modelo os versos


horacianos que ditam “goze o dia, não confie nenhum pouco
no amanhã”. Gonzaga foi um discípulo fiel desta moda latina
de cultuar o dia. Por isso, um lugar comum de suas liras está
nessa temática.
Além do carpe diem, é a paisagem da Arcádia, amena
e bucólica, habitada por pastores e rebanhos, que alimenta o
ideal arcádico de simplicidade, o locus amoenus, lugar
ameno, paraíso bucólico aprazível. O bucolismo e o
pastoralismo já tinham sido largamente cantados nas poesias
de Horácio, um poeta latino que viveu entre 68 a.C. e 8 a.C.
Este vate foi um dos maiores influenciadores do pensamento
e das atitudes do Arcadismo. Chama-se então horacianismo
o elogio da vida pastoral e campestre, presente na maioria dos
versos arcádicos.
O poeta árcade retorna ao equilíbrio e à simplicidade
dos modelos greco-romanos, diretamente ou através dos
modelos renascentistas, notadamente do poeta e humanista
italiano Petrarca (1304 a 1374), valoriza a presença marcante
do bucolismo da exaltação da vida campesina, com sua
paisagem, seus pastores e seu gado, com a simplicidade das
atividades e dos costumes da vida rural.
O elogio da vida em contato com a natureza está
intimamente ligado ao pensamento de Rousseau, o filósofo
francês que difundiu a ideia de que o homem é naturalmente
bom, mas a sociedade injusta o corrompe.
Esta exaltação da vida em contato com a natureza e a
consequente crítica ao tumulto urbano constituem um traço
arcádico típico, indicado pela expressão latina fugere urben,
que significa fugir da cidade.
Curiosamente, a época do Arcadismo - a segunda
metade do século XVIII e começo do XIX - foi um tempo de
urbanização, de desenvolvimento de cidades. Por isso, a
valorização da natureza proposta pelos árcades torna a poesia
arcádica muito inautêntica, artificial. A natureza descrita
como ideal era da Arcádia grega e, portanto, bastante
padronizada: como sempre, os mesmos rios tranquilos, a
mesma vegetação amena, os mesmos rebanhos, os mesmos
pastores e pastorinhas. Essa inautenticidade da paisagem
arcádica aumenta-se ainda mais pelo fato de os poetas
árcades usarem pseudônimos: Cláudio Manuel da Costa era
Glauceste Satúrnio; Tomás Antônio Gonzaga era Dirceu;
Basílio da Gama era Termindo Supílio; Maria Dorotéia era
Marília, e assim por diante.
No Brasil, entretanto, a coincidência do momento
histórico do Arcadismo com a Inconfidência Mineira e a
participação de vários poetas nesse movimento acabaram por
atenuar a inautenticidade do Arcadismo: em algumas obras,
por exemplo, a figura do pastor fazia com que elementos do
nosso cotidiano “abrasileirassem” o cenário clássico.
Também a paisagem altaneira e pedregosa de Minas aparece
com muita força nas obras de alguns árcades, principalmente
em Cláudio Manuel da Costa, chega a sobrepujar o figurino
arcádico: Destes penhascos fez a natureza / O berço em que
nasci; oh! quem cuidara / Que entre penhas tão duras se
criara / Uma alma terna, um peito sem dureza (COSTA. C.
M. (1976) p. 35)21.
Num outro plano, além de as poesias arcádicas
testemunharem o ideal de retorno à natureza, há nelas,
também, uma valorização da razão, da inteligência e do
estudo, ao lado de esperanças e lutas por uma sociedade mais
justa.

2. AS LIRAS DE TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA

Marília de Dirceu é a principal obra de Tomás


Antônio Gonzaga - foi publicada em três partes nos anos
1792, 1799 e 1812. As liras da Parte I caracterizam-se por
um tom de completa felicidade. São liras em que o poeta-
pastor se dirige à amada como a lhe ensinar coisas. São
pequenas falas ou cantos do pastor Dirceu à sua amada
Marília. As liras da Parte II têm um tom trágico, de
desalento. E, finalmente, as liras da Parte III reafirmam a
leveza daquelas iniciais (todavia, sem que tivesse havido o
reencontro dos amantes).
Muitos críticos defendem a interpretação biográfica
da obra Marília de Dirceu, mas estudiosos de Gonzaga mais
21
COSTA, Cláudio Manuel da. In: RAMOS. Péricles Eugênio da
Silva, Int. Seleção e notas dos poemas de Cláudio Manuel da
Costa. São Paulo: Cultrix. 1976, p.35.
sensatos asseveram que esse livro não é uma obra em que o
eu que se dirige à pastora Marília, pintando-lhe a beleza, ou
sonhando com seu amor, deve ser identificado
simetricamente ao eu real e autobiográfico do namorado
(Gonzaga) de Maria Dorotéia. Este eu que se recolhe, na sua
singularidade, várias vozes (dentre elas a de um “eu”
autobiográfico) que se desindividualizam, tornando-se um eu
‘plural’, no qual se capta e expressa o microcosmo ficcional
do mundo real e imaginário do escritor.
Há uma certa sedução em tomarmos como idênticas,
também, a masmorra que aparece nos textos de lamento do
pastor Dirceu, nas liras da chamada Parte II, e a prisão na Ilha
das Cobras, em que ficou retido o poeta. “Creio que esta
leitura biográfica corre o risco de realizar algo a que o
próprio poeta talvez nos tenha pretendido induzir: agigantar,
no texto poético, a dimensão real de uma vida” (HELENA,
Lúcia, (1997) p. 25).22
Marília de Dirceu é uma obra que demonstra o
trabalho artesanal e a consciência poética de Gonzaga. Tal
consciência resultou numa obra singular que faz o leitor
interrogar até que ponto as liras de Tomás expõem um
lirismo amoroso tecido à volta de uma experiência concreta -
namoro, noivado, inconfidência, prisão e separação de Dirceu
(Gonzaga) e Marília (Maria Dorotéia Joaquina de Seixas); ou,
até que ponto é um exercício poético, um fingimento do
poeta. A verdade é que os dois aspectos não se apartam, nem
se apresentam como alternativas. É verdadeira, também, a
afirmação de que o significado da obra de Tomás Antônio

22
HELENA, Lúcia. Rio de Janeiro: Agir. 1997, 25.
Gonzaga “varia conforme aceitemos a predominância de um
ou de outro”(CÂNDIDO, A. (1975) p. 114)23
A obra-prima é a expressão do artista como ser
humano e como artífice. Marília de Dirceu é uma obra de
arte que não foge a esta regra. As LIRAS de Dirceu são,
também, as LIRAS de Tomás; não podemos eliminar um do
outro, uma vez que Dirceu é o pseudônimo do poeta Tomás
Antônio Gonzaga.

2. 1. Caracteríscas da poesia lírica de Gonzaga

Gonzaga parte de um princípio como o bucolismo


pastoril e o submete a um tratamento baseado nas constantes
repetições dos clichês retóricos disponíveis ao poeta de seu
tempo, como a áurea mediocritas; o locus amoenus; o fugere
urbem e o carpe diem. Contudo, Tomás Antônio Gonzaga
consegue inovar principalmente no que concerne ao ritmo e à
estrofação das liras que se derivam das odes anacreônticas (o
canto de amor pastoril), complementam e ampliam de forma
pessoal o acervo técnico em poemas de versos breves,
adotando para cada poema um determinado tipo de estrofe,
mas conservando sempre uma combinação entre esquemas de
rimas e versos brancos.
Waltensir Dutra destaca alguns dos aspectos desta
renovação: a precisão pouco poética do vocabulário, cujo
poder de “sugestão” é reduzido ao mínimo; o perfeito
equilíbrio de sons agudos e graves, que confere às liras um
ritmo normalmente binário; a inclinação pelas estrofes de
quatro a sete versos, com padrão variável, e o uso habitual de
rimas agudas antes das graves. Apesar de todo o arranjo
23
CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira. São
Paulo: Itatiaia. 1975, p.114.
formal nitidamente elaborado, planejado, Gonzaga consegue
conferir à sua poesia uma marca de naturalidade e improviso,
tal a perícia com que maneja seu instrumental técnico. (Cf.
DUTRA W. (1956) p. 476).24
Tradicionalmente a obra de Tomás Antônio Gonzaga
é citada no Arcadismo, todavia sua obra alinha-se num
cruzamento de tendências, mesclando procedimentos
rococós, neoclássicos e pré-românticos.

2. 1. 1. Do rococó
O Rococó foi um período estético de transição entre o
Barroco decadente e o Neoclassicismo, caracterizado pela
ornamentação leve e grácil, pela frivolidade, afetação, como
manifestação hipertrofiada do gosto aristocrático. Como é
difícil discernir os limites desse movimento em relação às
outras tendências estéticas do século XVIII, torna-se
impossível distingui-lo do Barroco ou do Arcadismo, o que
faz inoperante considerá-lo isoladamente. Na obra do autor
de Marília de Dirceu está explicitada a leveza, a frivolidade
representativa do espírito aristocrático típicas das cenas de J.
H. Fragonard, Antoine Watteau e Boncher, 25mestres do
24
DUTRA, Waltensir. Tomás Antônio Gonzaga. In: COUTINHO,
Afrânio. Edit. A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Sul
Americana, 1956, pp.470-80, V.I, T. I. P. 476.
25
https://arteref.com/movimentos/rococo/
“François Boucher tornou-se um mestre da pintura rococó um pouco depois de
Watteau. Seu trabalho exemplifica muitas das mesmas características, embora
com um tom um pouco mais travesso e sugestivo. Boucher teve uma carreira
ilustre e tornou-se pintor da corte do rei Luís XV em 1765.
Na área da escultura, o trabalho de Etienne-Maurice Falconet é amplamente
considerado o melhor representante do estilo rococó. Geralmente, a escultura
rococó utiliza porcelana muito delicada em vez de mármore ou outro meio pesado.
Falconet era o diretor de uma famosa fábrica de porcelana de Sevres. Os temas
predominantes na escultura rococó ecoavam os dos outros meios, com a exibição
Rococó, nas quais o mundo pastoril é dotado de elegância
social e aristocrática.
Nas liras de Tomás Antônio Gonzaga, são muitas as
cenas que descrevem idílios campestres valorizando a
natureza delicada e aprazível - o locus amoenus. Tal clichê
neoclássico consiste na idealização de lugares amenos, onde
o pastor Dirceu aclimata seus suaves idílios campestres e para
ele convida sua pastora Marília:
Num sítio ameno
Cheio de rosas,
De brancos lírios,
Murtas viçosas,

Dos seus amores


Na companhia
Dirceu passava
Alegre o dia.
(T.A.G. p. 44-5)

Observe os metros curtos e melódicos que emolduram


a suavidade do quadro descrito, com movimentos sutis de um
minueto – (“antiga dança francesa originária do Poitou e
caracterizada pela nobreza e equilíbrio dos movimentos.
Música que acompanhava essa dança”) (FERREIRA. A. B.
H.(1989) p. 327) 26 -, dançado na corte de Luís XV, na época
do Rococó. Deve ser lembrado ainda que Cupido e Vênus são
constantemente aludidos nestes versos, aparecendo como os
monitores dos amores e daquela felicidade idílica.

de temas clássicos, querubins, amor, diversão e natureza sendo retratados com


mais frequência”.
26
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1989.
As composições que trazem estas marcas estilísticas
são denominadas de Odes anacreônticas, uma vez que são
compostas à maneira (ou à semelhança) dos poemas
atribuídos ao poeta lírico grego Anacreonte (570 - 480 a.C.)
famoso por suas canções báquicas e poemas de amor.
São exemplos dessas composições poéticas as liras da
primeira parte: LIRA IV (p. 17); LIRA V (p. 19); LIRA VIII
(p. 23); LIRA X (p. 25); LIRA XII (p. 28); LIRA XIII (p.
30); LIRA XVII (p. 37); LIRA XX (p. 41); LIRA XXIII (p.
44); LIRA XXVIII (p. 50) e LIRA XXXI (p. 53).

2. 1. 2. Do Arcadismo

Gonzaga sabiamente incorporou o espírito do


Arcadismo que, influenciado pela razão iluminista e marcado
pelo influxo do rococó, apreendeu e retomou os conceitos
horacianos de poetar, numa compreensão da obra de arte
como reinvenção natural.
Já foi dito que o Arcadismo caracteriza-se pelo coro
da poesia bucólica, do cenário pastoril; é o casamento da
razão com o natural, sob o signo da poesia dos grandes
mestres da Antiguidade Clássica. Este espírito arcádico da
retomada dos modelos clássicos do bucolismo, como as odes
de Anacreonte, as éclogas de Virgílio e os idílios de Teócrito,
é uma característica constante da obra gonzaguiana.
Tomás Antônio Gonzaga celebrou a vida simples, o
controle sobre a emoção e imaginação, o intelectualismo (o
amor à razão, ao bom-senso, à valorização do estável e
universal), a construção racional do poema. Cultivou, ainda,
o princípio da verossimilhança (através do qual se exclui da
obra literária o que seja considerado insólito, anormal ou
estritamente local ou excessivo capricho da imaginação).
Exaltou a elegância natural das imagens, a linguagem
harmoniosamente clara, a universalidade da representação do
objeto em que o caráter genérico prevalece sobre qualquer
singularidade ou traço individual e, na volta aos clássicos,
Gonzaga fez constantes alusões mitológicas.
O Arcadismo gonzaguiano legou à Literatura Luso-
Brasileira textos árcades brilhantes, como a clássica Lira I,
da primeira parte. Observando não apenas o primeiro
fragmento, mas este poema por inteiro, verifica-se que as
estrofes apresentam um expositor que se dirige a uma
personagem feminina, Marília, dizendo de si mesmo, de sua
situação na vida, de suas aspirações; depreende-se dos versos
uma concepção tranquila e feliz da existência, uma visão
conflitante do mundo, valorizada por uma condição amorosa
onde transparece a ausência de conflitos; é exaltada a vida
campesina nas suas mais simples condições.
Há um refrão que se repete no final de todas as
estrofes, marcando a “eleição” desse expositor privilegiado e,
ao mesmo tempo, traduzindo uma atitude característica do
ambiente social em que se insere poeticamente. Se as
condições vitais traduzidas no poema se fazem de
simplicidade e naturalidade, também simples é a linguagem
de que se constituem as estrofes.
A área semântica nos mostra palavras e expressões
capazes de criarem um mundo de formas ideais que
exprimem objetivamente o mundo das formas naturais. Com
raras exceções, a manifestação linguística está muito próxima
da prosa e da denotação. O texto afasta-se desta atitude
apenas na quarta estrofe, quando a figura feminina é
apresentada através de metáforas, hipérboles e comparações
que, mesmo na época, já eram lugares comuns; deve ser
observado ainda em todo o poema que a imagem é artificial e
estereotipada.
O vocábulo é, em sua maioria, ligado ao campo. Se
pensarmos na realidade brasileira do tempo, o século XVIII,
fácil é verificar que não há no texto qualquer preocupação em
caracterizá-la, seja em termos de imagem, seja em termos de
exaltação; há, isto sim, uma caracterização geral de realidade
campestre.
Na área da sintaxe, observa-se o rigor da norma
gramatical, a estrutura frasal simples com o uso de hipérbatos
não violentos nem mesmo expressivos: as inversões
constituem mais um “comportamento”, notadamente no que
se refere aos adjetivos; estes são, em sua maioria, meramente
descritivos; em cada estrofe, os quatro primeiros versos
constituem sempre um período.
Na área fônica mantém-se o equilíbrio e a
regularidade: o texto faz-se de sete estrofes, cada uma com
oito versos decassílabos (dez sílabas) e um refrão composto
de dois versos hexassílabos (seis sílabas) - heróicos
quebrados; a matéria tratada se distribui regularmente pelas
estrofes. A cada uma corresponde um aspecto da realidade
apresentada; o esquema de rimas apresenta rimas alternadas e
opostas ABABCDDC nos oito versos iniciais de cada estrofe,
sendo que nos refrões há conjugação de sons, ligeiramente
desiguais pelas vogais abertas e fechadas: bela / estrela.
Embora se trate, como versos, de um poema regular, a
quebra dos versos decassílabos por meio do refrão não só
facilita a leitura, aproximando o texto de uma canção, ou seja,
tornando-o musical, mas também instaura um momento
lírico, cuja repetição enfatiza o sentimento amoroso que
associa a imagem de Marília à de uma estrela. Leia, enfim, os
primeiros versos da LIRA I - primeira parte.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
“Eu,Ma rí lia,nãosou al A
gumvaqueiro,

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Queviva de guardar alheiogado, B

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 A
De tosco trato,de expressões
grosseiro,

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Dos frios gelos e dos sóis B
queimado.

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Tenho próprio casal e  nele C
assisto;

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Dá-me  vi nho, le gume,fruta , D
azeite;

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Das brancas o velhinhas ti ro olei D
te

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
E  as mais fi nas lãs,  de que me C
vis to.
1 2 3 4 5 6
Graças,  Ma rí lia bela. E

Refrão
1 2 3 4 5 6
Graças à mi nha estrela! E
(T.A.G. p. 13)

Na primeira estrofe, o “eu” lírico faz um autorretrato


no qual se coloca como pastor de acordo com as convenções
arcádicas. Ao mesmo tempo, entretanto, deixa claro que não
pode ser confundido com “qualquer” vaqueiro; isto porque
tem próprio casal (casa, propriedade) o que sugere tratar-se
de alguém abastado, merecedor, portanto, do amor de
Marília. Aqui encontramos a valorização dos bens materiais,
conjugada com o bucolismo e o pastoralismo que
caracterizam o Arcadismo. Podemos observar, ainda, o ideal
burguês de vida, na afirmação da condição de proprietário,
no orgulho pela posse de terra: Tenho próprio casal e nele
assisto... e mais as finas lãs, de que me visto, valorizando,
desta forma, a vida serena, tranquila, sem nenhuma
preocupação financeira, em plena dourada mediocridade.
Observe agora, as 2a e 3a estrofes:

Eu vi o meu semblante numa fonte:


Dos anos inda não está cortado;
Os Pastores que habitam este monte
Respeitam o poder do meu cajado.
Com tal destreza toco a sanfoninha,
Que inveja até me tem o próprio Alceste:
Ao som dela concerto a voz celeste,
Nem canto letra que não seja minha.
Graças, Marília bela,
Graças à minha estrela!

Mas tendo tantos dotes de ventura,


Só apreço lhes dou, gentil pastora,
Depois que o teu afeto me segura
Que queres do que tenho ser senhora.
É bom, minha Marília, é bom ser dono
De um rebanho, que cubra monte e prado;
Porém, gentil pastora , o teu agrado
Vale mais que um rebanho e mais que um trono.
Graças, Marília bela,
Graças à minha estrela!
(T.A.G. p.13)

Na segunda estrofe, mantêm-se os elementos


arcádicos (fonte, pastores, monte, cajado, sanfoninha,
Alceste - personagem mitológico e um nome poético
atribuído por Gonzaga ao seu amigo Cláudio Manuel da
Costa, cujo pseudônimo era Glauceste Satúrnio. Alceste é
variante de Glauceste) e a “superioridade” do Ilustrado a que
se conjuga seu vigor físico e sua capacidade subentendida de
amar Marília. O mesmo ocorre na terceira estrofe, embora ali
a “superioridade” e a “virtude” de ser proprietário sejam
revitalizadas pelo amor de Marília, a cujos pés o poeta coloca
tudo o que materialmente possui: rebanho e trono. Nesta
mesma estrofe dimensiona-se o sentimento que, por
comparação, aparece ultravalorizado sem qualquer angústia.
Nas três oitavas apresentadas o “eu” poético emprega
a razão e, usando um jogo de ideias, demonstra os dotes do
amante ideal que, a princípio, deve ser rico... não sou algum
vaqueiro; depois, deve ser bonito e, numa alusão a Narciso -
símbolo de beleza e vaidade, diz: Eu vi o meu semblante
numa fonte / dos anos inda não está cortado, aludindo à sua
formosura e juventude. Em seguida, o poeta afirma ser
poderoso no sentido sexual: Os pastores que habitam este
monte respeitam o poder do meu cajado. A referência ao
cajado (bastão) é significativa. O cajado representa a
soberania, o poder e o comando do “eu” poemático, tanto na
ordem intelectual, como na ordem espiritual, hirerárquica e
social. Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: “O
bastão relaciona-se igualmente com o fogo, e
consequentemente com a fertilidade. O cajado foi comparado
a um falo” (CHEVALIEUR, J. & GHEERBRANT. A.(1990)
p. 123) 27. Desta forma, este símbolo alude ao poder sexual do
homem ideal. Em último lugar, o amante deve ter uma
inteligência brilhante, como pode ser demonstrado nos
seguintes versos: Com tal destreza toco a sanfoninha, / que
inveja até me tem o próprio Alceste: / ao som dela concerto a
voz celeste, / nem canto letra que não seja minha. Assim, o
poeta expõe a essência do perfeito galanteador que, além de
ser rico, bonito, poderoso e inteligente, sabe com maestria
tecer elogios aos olhos, corpo e beleza da amada e, para
concluir a conquista, deixa claro que os seus bens materiais
têm menos importância do que o amor de sua Marília.
Verifique ainda a 4a e a 5ª oitavas:

Os teus olhos espalham luz divina,


A quem a luz do sol em vão se atreve;
Papoula ou rosa delicada e fina
Te cobre as faces, que são cor da neve.
Os teus cabelos são uns fios d’ouro/
Ah! não, não fez o céu, gentil pastora,
Para glória de amor igual tesouro!

27
CHEVALIEUR, Jean & CHEERBRANT, Alain.
Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro. José Olímpio. 1990.
Graças, Marília bela!
Graças à minha estrela!

Leve-me a sementeira muito embora


O rio, sobre os campos levantado;
Acabe, acabe a peste matadora,
Sem deixar uma rês, o nédio gado.
Já destes bens, Marília, não preciso
Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;
Para viver feliz, Marília basta
Que os olhos movas, e me dês um riso.
Graças, Marília bela!
Graças à minha estrela!
(T.A.G. p.13-14)

A quarta estrofe apresenta uma figura-padrão de


mulher que, seja dito desde logo, é a imagem ideal da figura
feminina presente na literatura da época, que volta valorizada
em sua significação na estrofe seguinte; observe-se a
tendência para o sentimentalismo. Esta estrofe é dedicada a
Marília: a seus olhos de luz divina, a suas faces cobertas por
papoula, ou rosa delicada, aos fios de ouro de seus cabelos,
ao lindo corpo que vapora bálsamos e fulgura beleza.
Se o poeta primeiro aparece como “senhor”, na
medida em que vai revelando o seu amor, vai passando de
senhor a “servo”. Isto porque Marília (nome de pastora, de
acordo com a mitologia clássica) incorpora também a
imagem da “mulher-anjo”, a Senhora, a “estrela” da tradição
medieval, uma imagem a quem o poeta presta vassalagem
amorosa mas a quem, ao mesmo tempo, sabiamente, procura
convencer de suas qualidades.
A estrofe seis define seu ideal típico de viver
cotidiano, sempre à sombra da paisagem bucólica. Culmina o
trecho com a certeza da fidelidade presente e com a
segurança da felicidade que esta condição vital representa:

Irás a divertir-te na floresta,


Sustentada, Marília, no meu braço;
Aqui descansarei a quente sesta,
Dormindo um leve sono em teu regaço:
Enquanto a luta jogam os pastores,
E emparelhados correm nas campinas,
Toucarei teus cabelos de boninas,
Nos troncos gravarei os teus louvores,
Graças, Marília bela!
Graças à minha estrela!

Depois que nos ferir a mão da Morte,


Ou seja neste monte, ou noutra serra,
Nossos corpos terão, terão a sorte
De consumir os dois a mesma terra.
Na campa, rodeada de ciprestes,
Lerão estas palavras os pastores:
“Quem quiser ser feliz nos seus amores,
Siga os exemplos que nos deram estes”.
Graças, Marília bela!
Graças à minha estrela!
(T.A.G. p.14)

A sétima estrofe, transcrita acima, conclui o poema


sob o signo do número sete que “corresponde aos sete graus
da perfeição; simboliza também a conclusão do mundo e a
plenitude dos tempos; é o sete ainda, o número do homem
perfeito e perfeitamente realizado” (IDEM, 1990, p. 826) 28.
28
CHEVALIEUR, Jean & CHEERBRANT, Alain.
Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro. José Olímpio. 1990,
826.
Assim, embebido pela magia do sete, o “eu” lírico encerra o
poema na sétima estrofe, afirmando que a felicidade dos
amantes será plena e até depois da morte os dois ficarão
perfeitamente juntos. Esse amor incontestável, pleno, único e
imortal ficará gravado nos troncos das árvores e na memória
dos pastores. O texto deixa registrado um amor imensurável
que, pela sua magnificência, deve ser universalizado e
seguido: Quem quiser ser feliz nos seus amores, / Siga os
exemplos que nos deram estes.
A LIRA XIX, da primeira parte, é um típico exemplo
da forma como Tomás aplicou a mimesis (teoria Aristotélica
que defende a arte como imitação da natureza):

Enquanto pasta, alegre, o manso gado,


Minha bela Marília, nos sentemos
À sombra deste cedro levantado.
Um pouco meditemos
Na regular beleza,
Que em tudo quanto vive nos descobre
A sábia Natureza.
(...)
Repara como, cheia de ternura,
Entre as asas ao filho essa ave aquenta,
Como aquela esgravata a terra dura,
E os seus assim sustenta;
Como se encoleriza
E salta sem receio a todo o vulto
Que junto deles pisa.
(T.A.G. p. 40/41)

Na primeira estrofe o poeta solicita à amada que eles


se sentem à sombra do cedro com a finalidade de ali, sob a
sombra da frondosa, consistente e perene árvore, meditarem
sobre a sabedoria da natureza “na regular” beleza de tudo,
cultuando, assim, a teoria aristotélica da arte como imitação
da Natureza. Tal conceito deve ser entendido que o guia da
arte é, neste caso, a razão. Não se trata de reproduzir
simplesmente a natureza, mas, sim, de apreender a forma
imanente, isto é, uma verdade ideal. O belo é o verdadeiro
porque este imprime a verdade na imaginação.
Horácio, recuperando Aristóteles, preconiza o caráter
racional da arte e da cultura, preocupando-se em exaltar a
finalidade moral da Literatura e a concepção de que o poeta é
um pintor de situações, não devendo estar sujeito à
emocionalidade exarcebada.
A Arte Poética de Nicolas - Boileau Despréaux,
datada de 1764, é um poema didático-artístico cujo enunciado
defende que a “obra literária - é uma imitação da natureza,
devendo por isso tomar a verdade como seu ideal e a razão
como algo que não se pode dispensar” (BOILEAU -
DESPRÉAUX. (1979) p. 15) 29.
No canto I de seu texto, informa-nos Nicolas -
Boileau:

Qualquer que seja o assunto que trataremos,


divertido ou sublime, o bom senso concorre sempre
com rima: parece que ambos se odeiam
inutilmente. (....) Amem a razão: que todos os
escritos procurem sempre o brilho e o valor
apenas na razão. (IDEM. p. 16.) 30.

29
BOILEAUX – DESPREAUX, Nicolas. A arte poética. Trad. Cecília
Berretini. São Paulo: Perspectiva. 1979, p. 15
30
BOILEAUX – DESPREAUX, Nicolas. A arte poética. Trad. Cecília
Berretini. São Paulo: Perspectiva. 1979, p. 16.
Os árcades encaram a natureza como perfeita e
harmoniosa. Observe que o poeta expõe essa ideia
adjetivando a natureza de alegre, regular e sábia. O texto
evidencia a intenção do amante em focalizar a natureza como
mãe e detentora de muita sabedoria. O poema mostra, ainda,
a grandeza do instinto maternal, exemplificado nos animais -
vaca, cadela, galinha. Num clima bucólico e didático, Dirceu
orienta sua amada Marília sobre a responsabilidade de ser
mãe e de ter como mestra a sábia natureza.
O texto sugere um certo machismo do “eu” poemático
ao referir-se à amada como esposa e como amante, além de
suscitar a obrigatoriedade do filho ter suas feições: É esta /
de teu querido pai a mesma barba, / a mesma boca e testa.
Este desejo do “eu” lírico, de ter um filho à sua imagem e
semelhança, reflete mais do que machismo, reflete o
narcisismo da natureza humana e o desejo de perpetuação e
continuidade da existência através dos filhos.
Os versos acima, de Tomás Antônio Gonzaga, são
exemplos da “áurea mediocritas” (mediocridade dourada, ou
vida medíocre materialmente, mas rica em realizações
espirituais) e traduzem a idealização de uma vida pobre e
feliz no campo, em oposição à vida luxuosa e triste da cidade.
O fragmento citado é um exemplo do horacismo
gonzaguiano.
As temáticas do Epicurismo (valorização dos prazeres
da vida) e do “carpe diem” (gozar o momento) são
amplamente utilizadas na famosa LIRA XIV - da primeira
parte:

Minha bela Marília, tudo passa;


A sorte deste mundo é mal segura;
Se vem depois dos males a ventura.
Vem depois dos prazeres a desgraça.
Estão os mesmos deuses
Sujeitos ao poder do ímpio Fado:
Apolo já fugiu do céu brilhante,
Já foi pastor de gado.

A devorante mão da negra morte


Acaba de roubar o bem que temos;
Até na triste campa não podemos
Zombar do braço da inconstante sorte;
Qual fica no sepulcro.
.............................................................

Ah! enquanto os destinos impiedosos


Não voltam contra nós a face irada
Façamos, sim, façamos doce amada,
Os nossos breves dias mais ditosos.
Um coração que frouxo,
A grata posse de seu bem difere,
A si, Marília, a si próprio rouba,
E a si próprio fere.

Ornemos nossas testas com as flores,


E façamos de feno um brando leito;
Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
Gozemos do prazer de sãos amores.
Sobre as nossas cabeças,
Sem que o possam deter, o tempo corre;
E para nós o tempo que se passa
Também, Marília, morre.
(T.A.G. p. 33-4)

Este texto, além da presença da mitologia como Apolo


(deus da beleza, que conduz o carro do Sol e pastoreou
durante algum tempo os rebanhos do rei Admeto), faz
referências a elementos arcádicos como flores, feno, brando
leito, cordeiro. Ressalta com lo-uvor o “carpe diem”
horaciano, cuja filosofia reside em aproveitar ao máximo o
momento presente, pois o tempo é célere, urge: Sobre as
nossas cabeças, / sem que o possam deter, o tempo corre e as
glórias que vêm tarde já vêm frias. Por isso Dirceu convoca
sua amada para que ambos aproveitem o dia e usufruam dos
prazeres da vida, exercitando o epicurismo, desfrutando do
amor em toda a sua plenitude e sugando a essência da vida.
Nesta lira 28 de Gonzaga, podemos observar que o
poeta aproxima Arcadismo e Romantismo, nos momentos em
que a emoção vivida predomina sobre a ilustração (observe as
imagens a respeito da morte que aparecem de forma trágica,
contrariando as convenções do Arcadismo: “negra morte”,
“triste campa”, “sepulcro”, “frios ossos”, “destinos
impiedosos”, “face irada”).
Verifica-se que Tomás Antônio Gonzaga deixa a
convenção arcádica da natureza morta, para fazer uma
antecipação romântica dando asas aos sentimentos e
emoções. Nos poemas gonzaguianos percebe-se, no geral,
uma menor regularidade formal e, em vários momentos, uma
intensidade emotiva. Tais marcas estilísticas levaram alguns
críticos a denunciar o Pré-Romantismo do autor de Marília
de Dirceu.

2. 1. 3. Da convenção arcádica à antecipação


romântica

Tomás Antônio Gonzaga é considerado um poeta dos


mais equilibradamente neoclássicos da nossa poesia.
Entretanto, este poeta não é tão ortodoxo em relação ao
Neoclassicismo, uma vez que infunde à sua lírica dois
elementos não convencionais: a imitação direta da natureza
de Minas Gerais e a vertente subjetiva que valoriza a
internalização psicológica.
Gonzaga, em algumas liras, faz imitação direta da
natureza de Minas Gerais, a Vila Rica de seu tempo, de
minadas serras e plantações de fumo, em detrimento da
natureza reproduzida do pano-de-fundo bucólico, greco-
romano ou renascentista, que se reduz às claras águas e aos
amenos campos. É o que pode ser observado na Lira III, da
terceira parte:

Tu não verás, Marília, cem cativos


Tirarem o cascalho, e a rica terra,
Ou dos cercos dos rios caudalosos,
Ou da minada serra.

Não verás separar ao hábil negro


Do pesado esmeril a grossa areia,
E já brilharem os granetes de ouro
No fundo da bateia.

Não verás derrubar os virgens matos;


Queimar as capoeiras ainda novas;
Servir de adubo à terra a fértil cinza;
Lançar os grãos nas covas.

Não verás enrolar negros pacotes


Das secas folhas do cheiroso fumo;
Nem espremer entre as dentadas rodas
Da doce cana o sumo.
(T.A.G. p. 107)

Nesta lira, a paisagem apresentada é a brasileiríssima


Vila Rica, com suas minas, serras, virgens matas e capoeiras
ainda novas. É a cor local do Brasil Colônia que é descrita
nestes versos. É a verdade sócio-cultural e nacionalista
expressa posteriormente pelos românticos Gonçalves Dias e
José de Alencar, que está antecipada na poesia arcádica de
Tomás Antônio.
Afonso Ávila, em estudo sobre a lírica mineira,
disserta que:
(...) os autores coloniais, presos embora à tutela dos
modelos portugueses, traíram já em suas
composições poéticas ou nas descrições em prosa a
sublimação da paisagem natural. (...) E o fato de
haverem muitas vezes conformado sua imaginação
ao fenômeno edenista, numa identificação
psicológica com o colono comum, inclui mesmo para
que se preparasse entre nós o advento do
Romantismo, antecipado, aliás, na inovação rítmica
de um Gonzaga ou de um Silva Alvarenga (ÁVILA,
A. 1969, p. 35) 31.

O Pré-Romantismo Gonzaguiano pode ser visível na


subjetividade presente, principalmente, nas liras escritas no
cárcere. Em vários poemas da fase poética do autor de
Marília de Dirceu, percebe-se uma análise psicológica do
“eu” poético que, ao descrever a masmorra, expõe seus
dilemas, oscilações e dores contempladas na Lira XIX, da
segunda parte:

Nesta triste masmorra,


De um semivivo corpo sepultara,
Inda, Marília, adoro
A tua formosura.
Amor na minha ideia te retrata;
Busca extremoso, que eu assim resista
À dor imensa, que me cerca, e mata.

31
ÁVILA, Afonso. A natureza e o motivo edênico na poesia colonial. In:
O Poeta e a Consciência Crítica. Petrópolis: Vozes. 1969, p. 35.
Enternece-se Amor de estrago tanto;
Reclina-me no peito, e com mão terna
Me limpa os olhos do salgado pranto.
(T.A.G. p. 79)

Pode ser notado, no fragmento acima, que o universo


pastoril da áurea mediocritas, do equilíbrio e da tranquilidade
é substituído pela ambiência da “triste masmorra”, onde um
“semivivo corpo” foi sepultado. O poeta é um ser que chora,
sente dor e saudade. Tal como os poetas da 1 a Geração
Romântica, o “eu” emotivo, vive por amor:

Quando em meu mal pondero,


Então mais vivamente te diviso:
Vejo o teu rosto, e escuto
A tua voz, e riso.
Movo ligeiro para o vulto os passos;
Eu beijo a tíbia luz em vez de face;
E aperto sobre o peito em vão os braços
(T.A.G. p. 79)

Esta lira suscita um estado de espírito de um eu que


lamenta a distância da amada e diz: Conheço a ilusão minha;
/ A violência da mágoa não suporto; / Foge-me a vista, e
caio, / Não sei se vivo, ou morto. Enfim, o que se apresenta
nas linhas deste poema é mágoa, dor, lágrimas e uma
profunda tristeza. O ambiente plácido, estável, harmonioso e
alegre da Arcádia transfigurou-se numa subjetividade
complexa e dolorida aos moldes do Romantismo. Diante do
exposto, Tomás, em algumas liras, da segunda parte de sua
obra, sai da simples convenção arcádica para fazer uma
antecipação romântica.
2. 2. Temas
O grande tema das liras de Gonzaga é o Amor. Tal
sentimento é aqui consubstanciado em Cupido, na pastora
Marília, em Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, Laura,
Ormia, Lidora, Nise ou Altéia. Esses cognomes e nomes
representam o Amor em todas as formas, vivenciado ou
apenas imaginado, desejado pelo poeta.
Observando a obra-prima de Tomás Antônio
Gonzaga, nota-se que este poeta, afeito às teorias de Horácio
(segundo o qual, há um paralelismo entre a pintura e a poesia
- “ut pictura, poiesis” - pintar é traçar perfis) 32, seguiu tais
preceitos poéticos. Ao longo de todas as liras gonzaguianas
pode ser notada uma identificação entre o poeta e o pintor.
Gonzaga deixa visualizados dois retratos, um da Marília de
Dirceu - o retrato da amada e outro de Dirceu de Marília - o
retrato do amado.

2. 2. 1. Marília de Dirceu - o retrato da amada

No retrato de Marília, a amada é pintada dentro das


convenções da época, em sua beleza e dotes morais, sem
análise psicológica mais profunda. As liras que exemplificam
este retrato estão na primeira parte da obra: LIRA II ( Idem p.
14); LIRA IV (p. 17); LIRA VI (Idem p. 21); LIRA VII
(Idem p. 22); LIRA XV (p. 34); LIRA XXII (Idem p. 44);
LIRA XXIV (Idem p. 45); LIRA XXXI (Idem p. 53).
O quadro no qual a amada é pintada, tem como pano
de fundo um sítio ameno, um cenário bucólico, pastoril,
32
ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A Poética Clássica.
Tradução direta do grego e do latim de Jaime Bruna. São Paulo:
Cultrix, 1997.
tranquilo e muitos caminhos que levam ao amor. As liras que
retratam este pano de fundo são as seguintes: LIRA XIX
(Idem p. 40); LIRA XX (Idem p. 41); LIRA XXIII (Idem p.
44); LIRA XXX (Idem p. 52); LIRA V (Idem p. 19); LIRA
XXI (Idem p. 42); LIRA XV (Idem p. 34); LIRA XVIII
(Idem p. 39); e, na parte três, LIRA I (Idem p. 13); LIRA III
(Idem p. 107).

2. 2. 2. Dirceu de Marília - o retrato do amado

O retrato do amado aparece principalmente na


segunda parte da Obra refletindo o sofrimento provocado
pelo cárcere. Aí, o poeta mostra-nos uma série de reflexões
que aborda a justiça do homens e faz uma pintura do seu
sofrimento na masmorra e de seu sonho pela liberdade.
Os lamentos e os sonhos, frutos de sua clausura, são
encontrados principalmente nas seguintes liras: LIRA IX -
parte um (Idem p. 24); LIRA I (Idem p. 58); LIRA II (Idem
p. 60); LIRA XXXIV (Idem p. 96); LIRA IV (Idem p. 61);
LIRA XXIV (Idem p. 84); LIRA XII (Idem p. 71); LIRA
XIX (Idem p. 79); LIRA XX (Idem p. 80); LIRA XXI (Idem
p. 82); LIRA XV (Idem p. 74); LIRA XXXIII (Idem p. 95);
LIRA XXVI (Idem p. 87) - parte dois.
Outros temas trabalhados nas liras de Gonzaga estão
nas odes e nos sonetos que têm como musas as Ormias,
Lidoras, Nises, Lauras, Altéias e Dircéias, todas,
composições poéticas gonzaguianas que se aproximam
tematicamente da Ode (canto em homenagem a alguém, cujo
assunto gracioso é vazado de uma linguagem leve).

2. 3. Formas
Na primeira parte de sua obra-prima, Gonzaga
recriou, à maneira das odes anacreônticas, textos de versos
breves, adotando para cada poema um determinado tipo de
estrofe, mas conservando sempre uma combinação entre
esquemas de rimas e versos brancos. As odes gonzaguianas
trazem a marca rococó do galanteio, com seus cenários
campestres, seus sítios formosos, os prados / Aonde
brincava, / Enquanto pastava / o gordo rebanho. São
composições que se traduzem por um refinamento letrado
para conversas e galanteios de salão, de acordo com os
critérios da época.
Estes versos são curtos (de quatro ou cinco sílabas), o
ritmo binário da acentuação produz quase sempre uma
entonação monótona, com movimentos equilibrados e sutis
ao modo de um minueto.
A primeira parte da lira possui, também, poemas de
estrutura rítmica e métrica mais variada, alterando com
frequência versos decassílabos e hexassílabos, poemas que
são considerados os melhores dessa fase, pois, além de maior
riqueza na elaboração dos versos, prevalece um tom mais
elevado de linguagem - uma espécie de intimidade solene
domina a evolução de Dirceu.
De acordo com o filólogo Rodrigues Lapa, nestes
versos de Gonzaga, “a individualidade adquire relevo. O
autorretrato de Dirceu mistura-se ao elogio do ideal burguês:
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,.... / Tenho próprio
casal, e nele assisto, e a figura de Marília permanece
absorvida na convenção arcádica”.(LAPA, M. R. (1976) p.
20) 33. Outras vezes, Gonzaga faz observações de caráter e
33
LAPA, Manuel Rodrigues. Prefácio, Notas. In: Gonzaga, Tomás
Antônio, Marília de Dirceu e mais poesias. Lisboa: Sá da Costa. 1976. p.
20.
linguagem realistas, o que exprime uma inovação nos padrões
árcades vigentes. Observe como o poeta examina a velhice:
Não vês aquele velho respeitável
Que à muleta encostado
Apenas mal se move, e mal se arrasta?
Oh! quanto estrago não lhe fez o tempo!
O tempo arrebatado,
Que o mesmo bronze gasta.
Enrugaram-se as faces, e perderam
Seus olhos a viveza;
Voltou-se o seu cabelo em branca neve:
Já lhe treme a cabeça, a mão, o queixo,
Não tem uma beleza
Das belezas, que teve.

(T.A.G. p. 39-40)

Verifique que a visão um tanto realista destes versos


não traz nenhuma lembrança dos idílios amorosos de
tonalidade rococó.
A obra gonzaguiana inova ainda mais quando o poeta
expõe sua visão realista com relação ao Brasil, fazendo
alusão às paisagens humanas e físicas do país de sua época.
Desta maneira, Gonzaga apresenta uma verdade sócio-
cultural brasileira, inovando o Arcadismo, do puro
bucolismo, para uma versão pré-romântica, nacionalista e até
realista. É o que se pode ver nos versos da LIRA III,
terceira parte:

Tu não verás, Marília, cem cativos

Tirarem o cascalho, e a rica terra,


Ou dos cercos dos rios caudalosos,
Ou da minada serra.
.........................................................
Não verás derrubar os virgens matos;
Queimar as capoeiras ainda novas;
Servir de adubo à terra a fértil cinza;
Lançar os grãos nas covas.
(T.A.G. p. 107)
Desta maneira, a arte poética de Gonzaga sai da
convenção arcádica e galante dos versos rococós para, ao
longo da experiência de vida e arte, transfigurar-se numa
poesia inovadora, rica no tema e na forma, além de se tornar
imortal pela beleza, artesanato, intelectualismo e
humanidade.

2. 4. Lirismo em três dimensões

A expressão poética de Tomás Antônio


Gonzaga é pontuada por um lirismo em três dimensões: O
Bucolismo Convencional, o Lirismo Amoroso Expressivo e o
Lirismo como Expressão do Homem. Neste sentido, Gonzaga
é dono de um lirismo amplo, complexo, múltiplo e
multifacetado, o que faz do vate um dos mais célebres poetas
líricos do Arcadismo/Neoclassismo e da História da
Literatura Luso-Brasileira.

2. 4. 1. Bucolismo convencional

Usando preferencialmente o metro breve e sonoro, a


redondilha menor (versos de cinco sílabas métricas) e, às
vezes, a redondilha maior (versos de sete sílabas métricas) o
poeta descreve, com muita graça, a leveza dos jardins
amenos, a cuja alegoria natural os pastores e alguns animais
emprestam fragilidade e beleza. É o que pode ser notado nos
versos abaixo:
Acaso são estes
Os sítios formosos
Aonde passavam
Os anos gostosos?
São estes os prados,
Aonde brincava,
Enquanto pastava,
O manso rebanho
Que Alceu me deixou?
(T.A.G. p. 19)

Eu Glauceste, não duvido


Ser a tua Eulina amada
Pastora formosa,
Pastora engraçada,

(T.A.G. p. 35/36)

Eu sei, Marília,
Que outra Pastora
A toda hora,
Em toda parte
Cega namora
Ao teu Pastor.
(T.A.G. p. 37)

Cupido tirando
Dos ombros a aljava
Num campo de flores
Contente brincava.

E o corpo tenrinho
Depois, enfadado,
Incauto reclina
Na relva do prado.
(T.A.G. p. 50)
Os fragmentos acima são exemplos dos poemas de
amor que trazem a marca do bucolismo convencional de
Tomás Antônio Gonzaga. Neles, o vate arcádico canta os
amores do pastor Dirceu por sua pastora Marília e, sob a
bênção de Cupido ou Vênus, goza os prazeres e os encantos
do amor entre riachos cristalinos, campinas verdejantes,
alamedas floridas e campos agrestes, cenários que sempre
emolduram os amores pastoris, às vezes, testemunhas
impassíveis dos lamentos e desenganos do poeta. É o que
pode ser visto em poemas da primeira parte da obra, como:
LIRA II (Idem p. 14); LIRA III (Idem p. 16); LIRA IV (Idem
p. 17), LIRA V (Idem p. 19); LIRA VII (Idem p. 22); LIRA
VIII (Idem p. 23); LIRA X (Idem p. 25); LIRA XVI (Idem p.
28); LIRA XIII (Idem p. 30); LIRA XVI (Idem p. 35); LIRA
XVII (Idemp. 37); LIRA XIX (Idem p. 40); LIRA XXIII
(Idem p. 44); LIRA XXV (Idem p. 46); LIRA XXVI (Idem p.
49); LIRA XXX (Idem p. 52); LIRA XXXI (Idem p. 53);
LIRA XXXIII (Idem p. 95).

2. 4. 2. Lirismo amoroso expressivo

De acordo com a convenção da poesia árcade, as


situações descritas devem ser sempre artificiais, tudo é
fingimento, a partir do nome do poeta que deve ser
apresentado por um pseudônimo pastoril. No Arcadismo não
é o poeta quem fala de si e de seus reais sentimentos. No
plano amoroso, por exemplo, convencionalmente, quase
sempre, é um pastor que confessa o seu amor por uma pastora
e a convida para a “áurea mediocritas” e para o “carpe diem”
num “locus amoenus”.
Lendo vários poemas, de diversos poetas árcades,
tem-se a impressão de que se trata sempre de um mesmo
homem (pastor), de uma mesma mulher (pastora) e de um
mesmo tipo de amor. Não existe variedade nas emoções
racionalizadas. Existe uma convenção amorosa que obedece à
razão e aos clássicos.

2. 4. 2. 1. Lirismo amoroso como expressão pessoal

Tomás Antônio Gonzaga é inegavelmente árcade e,


como tal, adotou as convenções estilísticas do Arcadismo,
mas em meio às liras dedicadas à contemplação de uma
pastorinha de caracterização vacilante (Marília loira e
morena; Marília rigorosa e sensível), encontramos uma
personagem concreta, localizável na geografia romântica de
Vila Rica, que suscita as expansões lírico-amorosas de uma
sensibilidade que transcende em muito a de um mero pastor
imaginado. Isto porque, as liras de Gonzaga são também
baseadas no amor de Tomás Antônio Gonzaga por sua noiva
Maria Dorotéia Joaquina de Seixas.
Muitos autores defendem a veracidade dos fatos,
outros atacam estas memórias, mas o tema tornou-se lenda
em Vila Rica - atual Ouro Preto - e ganhou notoriedade
nacional, indo parar na mesa de doutores, graduados e
estudantes da Europa, das Américas e Oriente. Um exemplo
dessa fama é o trabalho do professor, tradutor e poeta,
Zaidam, que escreveu sobre Cleópatra e Marco Antônio
baseando-se pitorescamente nas Liras de Gonzaga.
Aqui no Brasil, o material bibliográfico sobre o
assunto é vastíssimo. Segundo Antônio Barreto - um escritor
que romanceou esta história sob o título A barca dos
Amantes – “o idílio entre eles é pautado de contradições e
lances folhetinescos, assim como a própria Conjuração
Mineira e os Autos da Devassa” (BARRETO. A. (1990) p.
9) 34.
Afirmam os historiadores que a Dorotéia -
poeticamente conhecida por Marília, de Dirceu, foi uma
donzela de rara beleza. Tal jovem encontrou e conquistou o
Ouvidor da Comarca de Vila Rica, poeta e Inconfidente, Dr.
Tomás Antônio Gonzaga que, sob o predomínio pastoril de
Dirceu, cantou e decantou sua amada em belíssimas liras.
Uma lira que pode ser exemplo do lirismo amoroso, como
expressão pessoal, é a descrição de Cupido:
Pintam, Marília, os poetas
A um menino vendado,
Com uma aljava de setas,
Arco empunhado na mão;
Ligeiras asas nos ombros,
O tenro corpo despido,
E de Amor ou de Cupido
São os nomes que lhe dão.

Porém eu, Marília, nego,


Que assim seja Amor, pois ele
Nem é moço nem é cego,
Nem setas nem asas tem.
Ora pois, eu vou formar-lhe
Um retrato mais perfeito,
Que ele já feriu meu peito:
Por isso o conheço bem.

Tu, Marília, agora vendo


De Amor o lindo retrato,
Contigo estarás dizendo

34
LAPA, Manuel Rodrigues. Prefácio, Notas. In: Gonzaga, Tomás
Antônio, Marília de Dirceu e mais poesias. Lisboa: Sá da Costa. 1976. p.
20.
Que é este o retrato teu.
Sim, Marília, a cópia é tua,
Que Cupido é deus suposto:
Se há Cupido, é só teu rosto,
Que ele foi quem me venceu
(T.A.G. p. 14-16)

Nesta descrição de Cupido, o “eu” lírico dirige-se à


sua amada expondo seus galanteios e, como um verdadeiro
Dom Juan, sabe com maestria conquistar a mulher. Marília,
nesta lira, é consubstanciada no próprio Amor. Conforme o
poeta aqui personificado em Dom Juan, Eros na verdade, é a
sua musa-pastora de compridos cabelos, / ... branco rosto / ...
lisa testa ... sobrancelhas arqueadas. Cupido é Marília ou
Maria Dorotéia Joaquina de Seixas.
Segundo os historiadores, são numerosas as liras de
Gonzaga que foram escritas inspiradas no lendário grande
amor de Tomás por sua Maria Dorotéia, o que levou a crítica
afirmar que, no geral, a poesia de Tomás é pontuada pelo
lirismo como expressão pessoal. Sua obra projeta
artisticamente seu modo de ser e de pensar como homem
apaixonado, como Juiz de Direito e como Inconfidente. Seus
textos foram inspirados em amores, alegrias e dramas
pessoais. Diante de tais informações, podemos afirmar que as
liras gonzaguianas possuem um certo alicerce biográfico,
porém, a vertente mais subjetiva da obra do autor de Marília
de Dirceu é mais visível na 2a parte, que foi escrita no
cárcere, conforme exemplifica o fragmento abaixo:

Nesta triste masmorra,


De um semivivo corpo sepultura,
Inda, Marília, adoro
A tua formosura.
Amor na minha ideia te retrata;
Busca, extremoso, que eu assim resista
À dor imensa, que me cerca a mata.

Conheço a ilusão minha;


A violência da mágoa não suporto;
Foge-me a vista e caio,
Não sei vivo ou morto.
Enternece-se de Amor de estrago tanto;
Reclina-me no peito, e, com mão terna,
Me limpa os olhos do salgado pranto.
(T.A.G. p. 79)

Na Lira XIX, da segunda parte, ficam claros o


desespero e o sofrimento do poeta inconfidente, quando
estava na prisão. A melancolia, a saudade e a depressão estão
evidentes no poema. Tal subjetividade nos faz lembrar o
“pathos” romântico. No entanto, este “pathos” (palavra grega
que significa sofrimento, reporta-se à capacidade ou poder
que tem a Literatura e outras artes de provocar sentimento de
piedade, compaixão e tristeza) não é piegas, ridiculamente
sentimental como o romântico. Tomás declina sua dor num
estilo clássico, contido, sem o choro e o derramamento
estilístico do Romantismo. Mesmo expressando o “eu”
emotivo desesperado na masmorra e martirizado pela
frustração amorosa, Tomás Antônio Gonzaga é apolíneo,
racional, sóbrio, clássico, equilibrado.
O “pathos” apresentado nos versos gonzaguianos não
são de fraqueza do caráter, pelo contrário, é um lamento
estóico, em que se percebe uma rigidez moral e uma
impassibilidade em face da dor e do infortúnio. É o que pode
ser percebido no seguinte exemplo:
Esprema a vil Calúnia, muito embora,
Entre as mão denegridas e insolentes,
Os venenos das plantas
E das bravas serpentes;

Chovam raios e raios, no meu rosto


Não hás de ver, Marília, o medo escrito,
E medo perturbado
Que infunde o vil delito
(T.A.G. p.60)

Nesta LIRA II, segunda parte, em que o “eu” lírico


torna-se impassivo diante da dor e da adversidade, chamamos
atenção para o talento de Gonzaga em criar sugestões visuais,
informar quadros vivos. Na primeira estrofe, vemos a calúnia
personificada, agindo, espremendo venenos por todos os
lados. Na segunda estrofe, o artista apresenta uma imagem
(plástica) da vitória, da coragem sobre o medo: “chovam
raios e raios, no meu rosto”. Observa-se ainda uma emoção
contida que o artífice tenta expressar através de imagens. É
um sentimento de dor, angústia e mágoa que se mistura numa
força interior, cuja lira é o roteiro de uma personalidade que
analisa a vida, a justiça, a injustiça e os homens; que se
analisa e expõe, a pretexto da referida experiência, a vida, a
prisão, a capacidade de amar, de suportar a dor e de poetizar.
2. 4. 2. 2. Lirismo amoroso como exercíco poético

Tomás Antônio Gonzaga é um poeta de inegável


talento. Como um neoclássico, tinha por mestres os clássicos
Horácio, Virgílio e Petrarca.
Seguindo os passos de tão honradas artes poéticas,
Tomás elaborou uma poesia vigorosa, rica na forma e no
conteúdo. Destarte, sua obra não se apresenta com um puro
testemunho de uma história de amor pessoal, mas também
como um exercício poético.
Fernando Pessoa poetiza que “O poeta é um
fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que
é dor / A dor que deveras sente” (PESSOA, F. (1972) p. 164)
35
. A partir da assertiva de Pessoa, que o poeta finge,
concluímos que a alma de um poeta pode ser preenchida por
vários sentimentos como nos outros homens, mas a
sensibilidade mais intensa do artista é que o distingue dos
demais e faz com que ele veja um mundo impossível de ser
visto por uma pessoa comum. Deste modo, o poeta diz coisas
inefáveis e finge o seu próprio fingimento. Daí, poder-se
afirmar que o poeta nunca é sincero, sendo sincero, já que é
poeta e homem ao mesmo tempo.
O vate é um artista que se personifica no “eu” lírico e
usa uma máscara poética. Tomás Antônio Gonzaga se
personificou em Dirceu - seu pseudônimo pastoril. Da mesma
forma, criou uma musa denominada Marília, que pode ser sua
noiva ou não necessariamente, mas é uma referência poética
a quem o artista se dirige em suas liras. Tal musa, Marília,
ora aparece loira (numa alusão à mulher clássica, europeia):
“os teus cabelos são fios d’ouro”; ora surge morena, numa
versão da mulher brasileira):

Os seus compridos cabelos,


Que sobre as costas ondeiam,
São que os de Apolo mais belos;
Mas de loura cor não são.
Têm a cor da negra noite;
E com o branco do rosto
Fazem, Marília, um composto
Da mais formosa união.
(T.A.G. p. 15)

35
PESSOA, Fernando. Obra Completa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar
S/A. 1972, p. 164.
Marília, na verdade, não pode ser simplesmente sua
noiva ou as liras de Gonzaga não podem ser vistas como uma
simples autobiografia de seus amores e dramas. Marília é
muitas vezes um pretexto para seus textos poéticos.
Da mesma forma é explicada a construção em torno
da personalidade de Dirceu que, ora é apresentado como um
simples pastor: Marília escuta / um triste pastor (Idem p. 17),
ou um honrado pastor: Eu, Marília, não fui nenhum
Vaqueiro, / Fui honrado pastor da tua aldeia; ora como um
homem abastado e símbolo do ideal burguês: Eu, Marília,
não sou algum vaqueiro, (p. 13); e ora como um magistrado:
Verás em cima da espaçosa mesa / Altos volumes de
enredados feitos; / Ver-me-ás folhear os grandes livros, / E
decidir os pleitos. (Idem p. 107)
Todas essas personificações estão velando a face do
poeta Tomás Antônio Gonzaga que, no afã de poetar, faz um
jogo hábil entre a ficção e a realidade, entre as falsas e
verdadeiras confidências, demonstrando, neste ludismo
poético, a realização de uma poesia altamente
intelectualizada.
Wilson Martins disserta sobre os riscos de uma
interpretação unilateralmente biográfica, que unifique o poeta
e o cidadão Tomás Antônio Gonzaga, explicando um através
do outro. Observa o crítico ainda, que há uma identificação
em torno do poeta, o que acaba por impor um sentido único à
sua obra, atribuindo-lhe “uma unidade, um sentido e até um
desenvolvimento orgânico de que, com certeza, não teve na
realidade” (MARTINS. W. (1976) p. 551) 36. E, com essa
mesma visão, Lúcia Helena depõe que:
36
MARTINS, Wilson. Eu, Marília... In: História da Inteligência
Brasileira. São Paulo. Cultrix/Edusp. 1976, p.551.
Seria atitude ingênua e empobrecedora confinar à
mera autobiografia esta parte (sem dúvida a maior,
quantitativa e qualitativamente) da obra de Tomás.
Nela, realidade e imaginação se imbricam, num
trabalho ficcional (entenda-se aqui a palavra não
como sinônimo do ato de narrar, mas como a
natureza de todas as construções literárias,
independentes do gênero a que pertençam)
(HELENA, L. (1997) p. 21) 37.

Por esta ótica, podemos afirmar ainda que todo


escritor, por mais sonhador e fantasioso que nos pareça,
escreve a partir de uma dimensão dita real colhida em sua
própria experiência e amplificada por meio de sua
inteligência, perspicácia, sensibilidade e observação do
mundo que o envolve.
É certo afirmar que a obra Marília de Dirceu não é
um mero depoimento de Tomás Antônio Gonzaga, nem
Marília é simplesmente Maria Dorotéia Joaquina Seixas; da
mesma forma, Dirceu não é totalmente Tomás. Na obra-
prima de Gonzaga há uma mistura entre o cidadão,
magistrado, inconfidente, homem das letras e o “eu” lírico
fingidor. Este poeta tem uma predileção pela musa Marília
(Dorotéia de Seixas ou não) e até outras musas (reais ou
imaginárias) de cognomes variados: são as Altéias É gentil, é
prendada a minha Altéia; / As graças, a modéstia de seu
rosto (Idem p. 116); Ormias: Enganei-me, enganei-me -
paciência! / Acreditei às vezes, cri, Ormia: (Idem p.117);
Lauras: Ainda que de Laura esteja ausente, / Há de a chama
durar no peito amante; (Idem p.118); Lidoras: Quantas vezes
Lidora me dizia, / Ao terno peito minha mão levando: / -
37
HELENA, Lúcia. Rio de Janeiro: Agir. 1997, 21.
Conjurem-se em meu mal os astros, quando / Achares no
meu peito aleivosa! (Idem p. 119); Albinas: Albina ingrata,
adeus, em paz te deixo; (Idem p. 120); todas são cantadas em
belas liras e petrarquianos sonetos.
Além da variedade de sonetos e musas, Tomás
exercitou sua arte poética até em uma Ode em honra da
Rainha Da. Maria I, intitulada Congratulação com o Povo
Português na Feliz Aclamação da Muito Poderosa Soberana
D. Maria I Nossa Senhora. Esta ode é um poema
encomiástico, nos moldes da época, mas serviu como
exercício poético do então jovem Tomás Antônio Gonzaga.

2. 4. 3. Lirismo como expressão do homem

Uma leitura atenta da obra-prima de Tomás Antônio


Gonzaga demonstra que seu tema predileto não é
necessariamente o amor. Marília é muitas vezes pretexto para
a revelação de sua visão pessoal do amor, das coisas e do
homem. Há nele, portanto, antes do lírico amoroso um lírico
em sentido amplo. E a presença de uma poesia fortemente
voltada para o sujeito já levou um crítico arguto a sugerir a
troca do nome da parte Marília de Dirceu para Dirceu de
Marília.
A crítica enfatiza que os elementos de inovação
poética são mais aparentes na segunda fase, isto é, na Parte
II das liras, quando o poeta relata sua vida na prisão. O
Amor, nesta fase, adquire uma intensa força que anima a
capacidade estóica de vencer as dificuldades, de crescer como
ser humano e de fazer a sabedoria sobrepor à dor. É o que tão
sabiamente expõe os versos da LIRA II - segunda parte:

Porém se os justos Céus, por fins ocultos,


Em tão tirano mal me não socorrem;
Verás então, que os sábios,
Bem como vivem, morrem.

Eu tenho um coração maior que o mundo!


Tu formosa Marília, bem o sabes:
Um coração..., e basta,
Onde tu mesma cabes.
(T.A.G. p. 60)

Nestes versos, Dirceu conquista sua individualidade e


a figura de Marília permanece “absorvida na convenção
arcádica: é a pastora Marília, objeto ideal de poesia, sem
existência concreta” (CÂNDIDO. A. (1975) p. 117) 38.. À
medida que Dirceu se impõe nos versos, sua poesia adquire
um lirismo filosófico. Sua poética lírica, bucólica e amorosa
alcança uma dimensão maior: um lirismo como expressão do
homem, que reflete o amor, o ser humano e a vida.
Observe que nesta Lira II, segunda parte, o “eu”
poemático deixa explícito que o sofrimento não diminui o
poeta como ser humano. Ao contrário, a dor traz-lhe
humanidade e muito sentimento, um coração maior que o
mundo.

2. 5. Poesia satírica como exercício poético

O exercício poético de Gonzaga não ficou reduzido


apenas em sua lírica, mas ganhou notoriedade com as Cartas
Chilenas 39- sua obra satírica - um poema truncado e
inacabado, constituído de 13 cartas (das quais a 7 a e a 13a em

38
CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira. São
Paulo: Itatiaia. 1975.
estado de fragmento) escritas por Critilo e endereçadas a
Doroteu, residente em Madri. Nessas missivas, Critilo,
residente em Santiago do Chile (na verdade, Vila Rica), narra
os desmandos e as falcatruas do governador chileno, um
político narcisista, despótico e amoral - o Fanfarrão Minésio
que, na realidade, era Luís da Cunha Menezes, governador
de Minas Gerais até pouco antes da Inconfidência.
Sendo o poema anônimo e tendo permanecido inédito
até 1845, houve dúvida quanto à sua autoria, embora a
tradição mais antiga apontasse Gonzaga sem hesitação.
Falou-se depois em Cláudio Manuel da Costa, em Alvarenga
Peixoto, em colaboração, etc. A dúvida só acabou após os
estudos de Afonso Arinos e, principalmente, do filólogo
português Dr. Manuel Rodrigues Lapa (o maior estudioso do
vate luso-brasileiro), quando foi concluído que Critilo é
Tomás Antônio Gonzaga e Doroteu é Cláudio Manuel da
Costa, seu amigo, poeta árcade e inconfidente.
Cartas Chilenas é mais um exemplo do jogo poético
gonzaguiano, do ludismo entre a ficção e a realidade e,
principalmente, de seu artesanato poético. Diante do exposto,
concluímos que Tomás Antônio Gonzaga foi verdadeiro no
plano artístico, pois realizou uma obra de arte ímpar na
Literatura luso-brasileira. Construiu uma obra-prima
decalcada por ficção e realidade, mas principalmente, por
lirismo, vida e arte.

2. 5. 1 Cartas Chilenas – Espaço e Personagens

39
As citações sobre CARTAS CHILIENAS foram retiradas de GONZAGA,
Tomás Antônio. Cartas Chilenas. Texto Integral. São Paulo: Martins Claret, 2007.
(TAG Cartas Chilenas)
O poema exprime seu caráter de anonimato por
meio de um discurso epistolar emitidas por um personagem
denominado Critilo, residente em Santiago do Chile (na
verdade, Vila Rica), narra a seu destinatário Doroteu,
aludindo à tirania, prepotência, falta de decoro, abuso de
poder e desrespeito às leis de um governador, denominado
por Fanfarão Minésio. Os cenários metaforizados por
Portugal, Lisboa, Coimbra, Minas e Vila Rica são na
realidade Espanha, Madrid, Salamanca, Chile e Santiago.

Nessas missivas, Critilo tem em seu topônimo, a


obviedade da autoria das críticas, ou intertextualidade da
literatura clássica, ou outras plussignificações próprias do
texto literário. A evidencia objetiva é que Gonzaga usando
da licença poética do fingimento, as instruções em leis
adquiridas em sua formação jurídica e linguagem culta
escreve a um amigo apelidado de Doroteu narrando
poeticamente os acontecimento ocorridos no Chile, (espaço
fictício, metáfora do Brasil/ Vila Rica).
O destinatário de Doroteu, que sugere um nome
em voga na época ou preferência do autor, os estudos
apontam para o poeta e inconfidente Cláudio Manuel da
Costa. Outras análises defendem que pode ser considerado
como destinatário genérico, fruto da ficcionalidade ou da
virtualidade do poema. No entanto, é interlocutor culto,
também experimentado em ciências jurídicas.
Outra alcunha com menções comparativas ou
sugestões diretas (exceto alguns que permanecem inalterados,
como Macedo, a ermida do Senhor Bom Jesus de
Matosinhos, a igreja do Pilar) é do governador de Minas
Luis da Cunha Menezes é Fanfarrão Minésio, acenando para
festeiro, boa vida, perdulário, minério e Menezes. O
governador, bem descrito na epístola poética era um nobre
português sem formação jurídica que, somente se apresentar
em administrar desmandos na Capitania. Por meio de
recursos estilísticos como o uso de apóstrofes irônicas,
carregadas de um espírito jocoso que debochavam do líder
como: “louco chefe”, “chefe tão soberbo” e “o nosso chefe”
Os recursos retóricos eram utilizados para caracterizar e
deterioração a figura do chefe de Estado: Gestor
incompetente, sem atitude nobre, desonesto, fanfarrão,
viciado, ignorante das lei e da ética.
Na verdade Luís da Cunha Menezes, que
governou Minas Gerais no período de 1783 a 1788, se tornou
eminente pelo modo insensato como tratava seus desafetos.
Seus desmandos, falcatruas, sua posição como narcisista,
despótico e amoral ficou lendária. No seu governo que a
Coroa Portuguesa foi estabelecida a aterrorizante Derrama,
historicamente marcada pela época em a metrópole exigia de
seus súditos até aquilo que eles não eram capazes de
possuir.
Os acontecimentos basilares que constituem o
poema narrativo giram em torno dos fatos que norteiam a
construção do Edifício da antiga Casa da Câmara e Cadeia,
(atualmente sede do Museu da Inconfidência.) Construído
entre 1785 a 1855 é um do admirável exemplo da arquitetura
brasileira do período colonial, mesmo tendo sido, na época,
considerada faraônica, pois, segundo dizem, a mão de obra e
recursos esgotaram as finanças públicas e prodigalizou até
mesmo os recursos privados por meio de extorsões e
violências exorbitantes praticadas pelos governantes.
Os versos brancos são concentrados em ataques.
Critilo/ poeta aplica-se de tal modo na sátira, que a beleza
mal o preocupa, daí não existe uma tonalidade do sublime
que realça o realismo do Arcadismo, que valorizava a
representação da vida doméstica e próspera. O retrato era de
uma desventura marcada pela arbitrariedade de um chefe de
governo que exercitava uma ação que provocava o
desequilíbrio natural da sociedade. Apesar desse retrato
dantesco, as Cartas portava aversão militante contra os
baldrames do princípio colonial vigente, ou pratica
objetivamente uma insurreição contra o colonizador; Fazia
apenas, poeticamente, virtualmente, uma critica da má
administração do governador Minas Gerais, o que não tira da
obra seu significado político e sua importância nos anais da
poesia satírica mais importante do século XVIII.

2. 5.2 A composição do poema

A obra é apresentada por um texto anunciado como


“Dedicatória aos grandes de Portugal”, no qual o autor
apresenta um fingimento poético dizendo:

Ilmos. e exmos senhores,

Apenas concebi a ideia de traduzir na nossa


língua e de dar ao prelo as Cartas Chilenas,
logo assentei comigo que Vv. Exas. haviam de
ser os Mecenas a quem as dedicasse. São Vv.
Exas. aqueles de quem os nossos soberanos
costumam fiar os governos das nossas
conquistas: são por isso aqueles a quem se
devem consagrar todos os escritos, que os
podem conduzir ao fim de um acertado
governo.
Dois são os meios porque nos instruímos:
um, quando vemos ações gloriosas, que nos
despertam o desejo da imitação; outro,
quando vemos ações indignas, que nos
excitam o seu aborrecimento. Ambos estes
meios são eficazes: esta a razão porque os
teatros, instituídos para a instrução dos
cidadãos, umas vezes nos representam a um
herói cheio de virtudes, e outras vezes nos
representam a um monstro, coberto de
horrorosos vícios.
Entendo que Vv. Exas. se desejarão instruir
por um e outro modo. Para se instruírem pelo
primeiro, têm Vv. Exas. Os louváveis
exemplos de seus ilustres progenitores. Para
se instruírem pelo segundo, era necessário
que eu fosse descobrir o Fanfarrão Minésio,
em um reino estranho! Feliz reino e felices
grandes que não têm em si um modelo destes!
Peço a Vv. Exas. que recebam e protejam
estas cartas. Quando não mereçam a sua
proteção pela eloquência com que estão
escritas, sempre a merecem pela sã doutrina
que respiram e pelo louvável fim com que
talvez as escreveu o seu autor Critilo.
Beijo as mãos
De Vv. Exas.
O seu menor criado..
(TAG Cartas Chilenas p. 13)

Com esta dedicatória, Gonzaga utiliza-se do recurso


inventivo que possibilita a arte recriar a realidade, dando
corpo a outra verdade. Esse expediente nos leva a buscar
uma citação corrente atribuída a Pablo Picasso a afirmar que
"A arte é uma mentira que revela a verdade" e José Américo
de Almeida, em A Bagaceira40-, assim se pronunciou sobre a
arte: "Há muitas formas de dizer a verdade. Talvez a mais
persuasiva seja a que tem a aparência de mentira”. O poeta e
crítico de arte Ferreira Gullar 41 definiu essa inventividade do
artista com a seguinte reflexão: "A arte é muitas coisas. Uma
das coisas que arte é, parece, é uma transformação simbólica
do mundo. Quer dizer: o artista cria um mundo outro - mais
bonito ou mais intenso ou mais significativo ou mais
ordenado - por cima da realidade imediata. Naturalmente esse
outro mundo que o artista cria ou inventa nasce de sua
cultura, de sua experiência de vida, das ideias que ele tem na
cabeça, enfim, de sua visão do mundo". Desta forma, O que
faz a literatura ser literatura é a literariedade (literarnost) ou
“literaturidade” (literaturnost) 42. O poeta Tomas Antônio
Gonzaga empregou com eficiência os artifícios da
literariedade. Depois da dedicatória, ele apresentou o seguinte
prólogo:

Amigo leitor, arribou a certo porto do Brasil,


onde eu vivia, um galeão, que vinha das Américas
espanholas. Nele se transportava um mancebo,
cavalheiro instruído nas humanas letras. Não me

40
ALMEIDA, José Américo de. A Bagaceira. Introdução de M. Cavalcanti
Proença. 16ª ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1978.
41
GULLAR, Ferreira. Cultura posta em questão; Vanguarda e
subdesenvolvimento: ensaios sobre arte. 4. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2010.
42
Cf. EIKHENBAUM, B. et alii. Teoria da Literatura. Porto Alegre:
Globo, 1971, p.8.
foi dificultoso travar, com ele, uma estreita
amizade e chegou a confiar-me os manuscritos,
que trazia. Entre eles encontrei as Cartas
Chilenas, que são um artificioso compêndio das
desordens, que fez no seu governo Fanfarrão
Minésio, general de Chile.
Logo que li estas Cartas, assentei comigo que as
devia traduzir na nossa língua, não só porque as
julguei merecedoras deste obséquio pela
simplicidade do seu estilo, como, também, pelo
benefício, que resulta ao público, de se verem
satirizadas as insolências deste chefe, para
emenda dos mais, que seguem tão vergonhosas
pisadas.
Um D. Quixote pode desterrar do mundo as
loucuras dos cavaleiros andantes; um Fanfarrão
Minésio pode também corrigir a desordem de um
governador despótico.
Eu mudei algumas coisas menos interessantes,
para as acomodar melhor ao nosso gosto. Peço-te
que me desculpes algumas faltas, pois, se és douto,
hás-de conhecer a suma dificuldade, que há na
tradução em verso. Lê, diverte-te e não queiras
fazer juízos temerários sobre a pessoa de
Fanfarrão. Há muitos fanfarrões no mundo, e
talvez que tu sejas também um deles, etc.
... Quid rides ? mutato nomine, de te
Fabula narratur...
Horat. Sat lª, versos 69 e
70

(TAG Cartas Chilenas p.15)


Este prólogo confirmar a teoria que defende a
conceito de que a literariedade é a arte da palavra dotada da
elevação da língua à sua função máxima, sua
plurissignificação, sua polissemia, sugestão e estranheza. O
primeiro ponto esclarecido foi a relação entre literatura e a
realidade; e o que leva o crítico a pensar sobre de que
maneira as Cartas Chilenas se relacionam com a origem do
sentido e até que ponto esta obra retoma algo que está fora
dela e algo que instaura o mundo. Até que ponto a obra
reflete ou não o mundo.
É nessa questão que está arrematado o
verdadeiro sentido das Cartas Chilenas. Para isso, é preciso
verificar as duas maneiras de se relacionar com a mimese.
Nesse sentido, devemos questionar se esta obra satírica de
Tomás Antônio Gonzaga reflete o mundo ou se apenas
instaura o mundo. A partir desta oposição, deve ser lembrado
raciocínio da mimese platônica - do discurso medido com a
realidade - representação (reprodução) do mundo – realidade
preexistente e a visão de Mallarmé que pregava a literatura
como um discurso autônomo - a realidade está sendo
produzida - criada (Fiat). A partir desses pressupostos,
defendemos a ideia de que Cartas Chilenas não conta
simplesmente a História do governo de Luis da Cunha
Menezes, ou a História de uma época da capitania de Minas
Gerais. A poesia e, como tal, cria sentido, não fala apenas
sobre algo. A poesia é que nos ensina a pensar o que é pensar.
E esse pensamento está sugerido na linguagem e truncada
das 13 cartas que compõem o poema inacabado, pois a 7 a e a
13a são fragmentos.
A Carta 1ª, “Em que se descreve a entrada que
fez Fanfarrão em Chile” tem início com o discurso poético
de Doroteu, acordando seu amigo Critilo, que parece dormir.
O poema, dessa forma, soa como uma canção de despertar, o
que nos lembra de Carlos Drummond de Andrade no poema
“Canção Amiga” 43 quando poetiza: Eu preparo uma
canção,/ que faça acordar os homens /e adormecer as
crianças. Doreteu canta em decassílabos brancos da seguinte
forma: Amigo Doroteu, prezado Amigo,/ Abre os olhos,
boceja, estende os braços/ E limpa das pestanas carregadas/
O pegajoso humor, que o sono ajunta./ Critilo, o teu Critilo é
quem te chama; / Ergue a cabeça da engomada fronha,/
Acorda, se ouvir queres coisas raras. (Idem p.25). Assim, o
poeta vai descrendo os acontecimentos da cidade e a figura
do governador do lugar:

Escuta a história de um modesto chefe


Que acaba de reger a nossa Chile,
Ilustre imitador a Sancho Pança.
E quem dissera, amigo, que podia
Gerar segundo Sancho a nossa
Espanha!

Não cuides, Doroteu, que vou contar-te


Por verdadeira história uma novela
Da classe das patranhas, que nos
contam
Verbosos navegantes, que já deram
Ao globo deste mundo volta inteira.
Uma velha madrasta me persiga,
Uma mulher zelosa me atormente
43
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética organizada
(organizada pelo autor) / Carlos Drummond de Andrade; prefácio, Marco
Lucchesi – Rio de Janeiro: Record, 2001, p.188.
E tenha um bando de gatunos filhos,
Que um chavo não me deixem, se este
chefe
não fez ainda mais do que eu refiro.

Ora, pois doce amigo, vou pintá-lo


Da sorte que o topei a vez primeira;
(...)
Tem pesado semblante, a cor é baça,
O corpo de estatura um tanto esbelta,
Feições compridas e olhadura feia;
Tem grossas sobrancelhas, testa curta,
Nariz direito e grande, fala pouco
Em rouco, baixo som de mau falsete;
Sem ser velho, já tem cabelo ruço,
E cobre este defeito e fria calva
À força de polvilho que lhe deita.
Ainda me parece que o estou vendo
No gordo rocinante escarranchado,
As longas calças pelo embigo atadas,
Amarelo colete, e sobre tudo
Vestida uma vermelha e justa farda.
De cada bolso da fardeta pendem
Listradas pontas de dois brancos lenços;
Na cabeça vazia se atravessa
Um chapéu desmarcado; nem sei como
Sustenta a pobre só do laço o peso.
Ah! tu, Catão severo, tu que estranhas
O rir-se um cônsul moço, que fizeras
Se em Chile agora entrasses e se visses
Ser o rei dos peraltas quem governa?
(TAG Cartas Chilenas p.26-
28)

A Carta 2ª: “Em que se mostra a piedade que


Fanfarrão fingiu no princípio do seu governo,
parachamar a si todos os negócios”
Carta 3ª: “Em que se contam as injustiças e
violências que Fanfarrão executou por causa de uma
cadeia, a que deu princípio”.

Que triste, Doroteu, se pôs a tarde!


Assopra o vento sul, e densa nuvem
Os horizontes cobrem; a grossa chuva,
Forma regatos, que os portais inundam.
Rompem os ares calubrinas fachas
De fogo devorante, e ao longe soa
De compridos trovões o baixo estrondo.
Agora, Doroteu, ninguém passseia,
Todos em casa estão, e todos buscam
Divertir a tristeza que nos peitos
Infunde a tarde, mais que a noite feia.

Assim, descrevendo os tempos sinistros, a carta é


iniciada. Depois, a descrição explicando o que o governador
pretende:

Pretende, Doroteu, o nosso Chefe


Erguer uma Cadeia majestosa,
Que possa escurecer a velha fama
Da Torre de Babel, e mais dos grandes
Custosos edifícios, que fizeram,
Para sepulcros seus os Reis do Egito.
Talvez, prezado Amigo, que imagine,
Que neste monumento se conserve
Eterna a sua glória; bem que os povos
Ingratos não consagrem ricos bustos,
Nem montadas estátuas ao seu nome.
Desiste, louco Chefe, desta empresa;
Um soberbo edifício levantado
Sobre ossos de inocentes, construído
Com lágrimas dos pobres, nunca serve
De glórias ao seu autor, mas sim de opróbrio.

Desenha o nosso Chefe sobre a banca


Desta forte Cadeia o grande risco
À proporção do gênio, e não das forças
Da terra decadente, aonde habita.
Ora pois, doce Amigo, vou pintar-te
Ao menos o formoso frontispício:
Verás, se pede máquina tamanha
Humilde povoado, aonde os Grandes
Moram em casas de madeira a pique.
(TAG Cartas Chilenas p.49)

Para fugir da tristeza as pessoas se apegavam à


família, ou a leituras ou à solidão e à escritura solitária e
solidária. Dessa forma Critilo narra os desmandos da gestão
de Fanfarrão Minésio, a edificação do nova cadeia. Conta
ainda que o prédio da prisão foi projetada na arrogância do
chefe político.

Ora, pois, doce amigo, vou pintar-te


Ao menos o formoso frontispício.
Verás se pede máquina tamanha
Humilde povoado, aonde os grandes
Moram em casas de madeira a pique.
Em cima de espaçosa escadaria
Se forma do edifício a nobre entrada
Por dois soberbos arcos dividida;
Por fora destes arcos se levantam
Três jônicas colunas, que se firmam
Sobre quadradas bases e se adornam
De lindos capitéis, aonde assenta
Uma formosa, regular varanda;
Seus balaústres são das alvas pedras
Que brandos ferros cortam sem trabalho.
Debaixo da cornija, ou projetura,
Estão as armas deste reino abertas
No liso centro de vistosa tarja.
Do meio desta frente sobe a torre
E pegam desta frente, para os lados,
Vistosas galerias de janelas
A quem enfeitam as douradas grades.
(TAG Cartas Chilenas p.49/49)

Destarte, a narrativa tece um retrato assombroso,


desproporcional, um monstro meio peixe, meio dama (Idem
p.51), um suma espécie de sereia ou ser exótico, o paradoxo
do que consiste um bom gestor: Na sabia proporção é que
consiste/A boa perfeição das nossas obras (Idem p.51). Pelo
contrário, o chefe era um néscio, um ignorante das leis da
ética, pois Ignora a lei do reino, que enumera/ Entre os
direitos próprios dos argustos/ A criação de novos
magistrados? (Idem p.54). Um governo anti-Salomão e cita o
grande sábio governate:
O grande Salomão lamenta o povo
Que sobre o trono tem um rei menino;
Eu lamento a conquista a quem governa
Um chefe tão soberbo e tão estulto
Que, tendo já na testa, brancas repas,
Não sabe, ainda, que nasceu vassalo
(TAG Cartas Chilenas p.52)

O governador prende, extorque, confisca,


corrompe, abusa do Direito e do poder, instala a Ditadura de
focrma aterrorizante. O terror é instalado: chibata, tronco,
medo é a lei do Fanfarrão Minésio.

Só mandam que se açoiem com a sola


(...)
Nos crimes, quase iguais aos réus de morte
Tu também não ignora os açoites
Só se dão por desprezo, nas espáduas
Que açoitar, Doroteu, em outra parte
Só pertence aos senhores, quando punem
(…)
No pelourinho a escada já se assenta,
Já se ligam dos réus os pés e os braços,
Já se descem calções e se levantam
Das imundas camisas rotas fraldas,
Já pegam dois verdugos nos zorragues,
Já descarregam golpes desumanos,
Já soam os gemidos e respingam
Miúdas gotas de pisado sangue.
Uns gritam que são livres, outros clamam
(...)
Às vezes Doroteu se perde a conta
Dos cem açoites, que no meio estava,
Mas outra nova conta se começa.
Os pobres miseráveis já nem gritam.
Cansados de gritar apenas soltam
Alguns fracos suspiros que enternecem.
(TAG Cartas Chilenas p.55)

E, assim, finaliza a terceira carta com os seguintes


versos: Mas tu, prezado amigo, tens o peito,/Dos males que
já leste, magoado,/Por isto é justo que suspenda a história,/
Enquanto o tempo não te cura a chaga. (Idem p.56)

Carta 4ª: Em que se continua a mesma matéria;


Carta 5ª: Em que se contam as desordens feitas
nas festas que se celebraram nos desposórios do nosso
sereníssimo infante, com a sereníssima infanta de
Portugal.
Carta 6ª: Em que se conta o resto dos festejos.
Carta 7ª: Sem título, começa com os versos Há
tempo, Doroteu, que não prossigo/Do nosso Fanfarrão a
longa história.
Carta 8ª: Em que se trata da venda dos
despachos e contratos.
Carta 9ª: Em que se contam as desordens que
Fanfarrão obrou no governo das tropas.
Nesta carta, Critilo relata os desmandos do
Fanfarrão, ações denominadas de asneiras sobre asneiras
(Idem p.128), entre elas, obriga os meirinhos dar sustento,
(alimentos cuidados com saúde e todas as despesas para a
sobrevivência) a mais de trinta preso e infames malfeitores,
ladrões e criminosos (Idem p. 129); obriga o magistrado
Silverino a enviar, ilicitamente, dinheiro para o governo;
obriga que o Albino se recolha na cadeia/ E more com os
negros na enxovia (Idem p.132), tudo por ganância e
desvario.
Carta 10ª: Em que se contam as desordens
maiores que Fanfarrão fez no seu governo.
Nesta carta Critilo descreve o terror que assola a
cidade à noite enquanto na casa do grande chefe a festa de
escárnio e lasciva toma o espaço notívago de Santiago.
Durante o dia o desvario se avoluma em sórdidas ações.
Carta 11 ª Em que se contam as brejeirices de
Fanfarrão.
As Carta 12ª e 13ª Embora não apresentem
títulos, continuam as descrições da triste gestão do
governador que Não zela, Doroteu, a sã justiça/ Nem sela a
própria honra, maculada/ (...) Em torpe lupanário. Não, não
zela. (Idem p.158). Descreve enfim a triste figura, um feio
Vulcano. Um deus do fogo, da morte, da tristeza, de um
Olimpo perdido e morto. E, na última carta, em seu
fragmento disponível conclui:
........................................................
Ainda, caro amigo, ainda existem
Os vestígios dos templos suntuosos
Que a mão religiosa do bom Numa
Ergueu o Marte e levantou a Jano.
5 – Ainda, ainda lemos que elegera,
Para estas divindades, sacerdotes,
E que muitas donzelas consagrara,
A fim de conservar-se, aceso, o fogo,
Em o templo de Vesta, sobre as aras.
10 – Também, também sabemos que este
sábio,
Para ter mais conceitos entre o seu povo,
Fingiu que a ninfa Egéria, sendo noite,
Vinha falar com ele, e que, benigna,
A forma do goveno lhe inspirava.
15 – O mesmo fez Sertório, que dizia
Que nada executa que não fosse
Ensinado por uma branca cerva,
Que, a deusa caçadora lhe mandara.
Mafoma, o vil Mafoma, astuto segue
20 – Também este sistema: ao seu ouvido
Acostuma a chegar-se a mansa pomba.
A nação, ignorante, se convence
De que este seu profeta conhecia
Os segredos do céu, por este meio.
25 – Não há meu Doroteu, não há um
chefe,
Bem que perverso seja, que não finja,
Pela religião, um justo zelo,
E, quando não o faça por virtude,
Sempre, ao menos, o mostra por sistema.
(TAG Cartas Chilenas p. 164)

3. O POETA, MAGISTRADO E
INCONFIDENTE TOMÁS ANTÔNIO
GONZAGA

Tomás Antônio Gonzaga, natural do Porto, chegou ao


Brasil em 1751. Tinha, então, sete anos de idade e vinha
órfão da mãe, D. Tomásia Clarque Gozaga, portuense. O pai -
Dr. João Bernardo Gonzaga - era brasileiro, advogado,
funcionário público. Primeiro, instalaram-se em Pernambuco,
depois Bahia por – onde Gonzaga passou seus verdes anos e
iniciou seus estudos oficiais (cf. LAPA, M. R. (1976) p. 35).
44

Em Pernambuco, o Dr. João Bernardo, viúvo, logo se


interessou por uma certa D. Madalena. E a educação do
pequeno Tomás ficou a cargo de um parente - José Clarque
Lobo -, sargento, pessoa de confiança.

3. 1. A adolescência na Bahia e os estudos em


Portugal

Mais tarde, na Bahia, Gonzaga estudou, até os quinze


anos, no Colégio da Companhia de Jesus, onde aprendeu
latim, talvez grego, lógica, dialética, humanidades.
Com os padres, na atmosfera dolente da Bahia
colonial, a vida passava tranquila para o adolescente escolar.
Até que, em 1759, “assistiu assombrado à perseguição dos
jesuítas, ao cerco do Colégio, à dispersão e embarque dos
religiosos - de noite, entre soldados de baioneta calada e
armas pesadas”
(IDEM. p. 35).
E as coisas foram se complicando. Numa atmosfera de
medos e suspeitas, havia prisões todos os dias. Nas ruas
circulavam impressos contra os religiosos, espalhados por
ordem do marquês de Lavradio, o vice-rei. O Colégio dos
Jesuítas foi fechado. Gonzaga e alguns colegas terminaram
seus cursos tomando aulas particulares, durante todo o ano de
1760. Dois anos depois do fechamento do colégio por tropas
militares, e agora com dezessete anos, Gonzaga partiu para
Portugal. Aos dezoito anos, matriculou-se na Universidade de
Coimbra, onde estudaria direito - um dos poucos cursos da
44
LAPA, Manuel Rodrigues. Prefácio, Notas. In: Gonzaga, Tomás
Antônio, Marília de Dirceu e mais poesias. Lisboa: Sá da Costa. 1976.
época - e seguiria a trilha do pai, já então desembargador no
Porto e homem de confiança do Marquês de Pombal.
Formando em leis, em 1768, logo ingressou na vida
política - redigiu e defendeu uma tese, Tratado de Direito
Natural, dedicando-a ao Marquês de Pombal, líder político
oposicionista, que colocava o poder real acima do
eclesiástico.
Mais tarde, em 1777, ocorre uma mudança política em
Portugal, a “Viradeira” e Gonzaga milita ao lado da situação.
D. Maria I, a rainha louca, assume o poder. Professor em
Coimbra, almejava uma vida melhor: habilitou-se ao cargo de
magistrado e batalhou muito para conquistá-lo.

3. 2. A volta ao Brasil e o encontro com a Marília


dos seus amores

Culto, talentoso e perseverante, Gonzaga foi nomeado


ouvidor de Vila Rica, em 1782. Tinha então 38 anos de idade
e muita experiência profissional: já havia sido juiz-de-fora
em Beja (Portugal), por três anos, e conhecia bem a política
da Corte em relação à Colônia brasileira. Em Minas Gerais, a
situação era caótica: a população estava descontente e
agitada. Registrou-se numa crônica da época que “saía da
terra o hálito da revolta”. Era uma época de dificuldades, de
muito imposto atrasado e muita gente falindo. No fim de
1782, quando Gonzaga tomou posse do cargo, já devia estar a
par da situação que ia encontrar.
A capital de Minas era, por certas peculiaridades, uma
cidade bastante movimentada: sede econômica do governo,
rota de ouro e de pedras preciosas. Gonzaga ali se instalou
bem inteirado da situação brasileira. Logo procurou um velho
amigo, colega de academia em Coimbra: Inácio José de
Alvarenga Peixoto, residente em São João Del Rei. Foi ele
quem o apresentou a Cláudio Manuel da Costa (poeta que
tinha uma obra já definida e era especialista em questões de
artesanato poético) e o integrou na Intelectualidade da época.
Nascia ali um convívio valioso do qual Tomás extraiu lições
para sua poesia, ainda que adotando uma linha poética bem
distinta.
Mas, enquanto perdurou o “grupo mineiro”, Gonzaga
pontificou em Vila Rica. Frequentou o paço (no governo de
D. Rodrigo José Meneses); relacionou-se com pessoas
influentes (o intendente Francisco Gregório Pires Monteiro
Bandeira foi seu grande amigo); foi festejado e considerado
um bom poeta (era talentoso).
Por essa época (1783) frequentava muito a casa de
Bernardo da Silva Ferrão, advogado, de família muito
considerada. Foi lá que conheceu Maria Dorotéia - sobrinha
mais velha do Dr. Bernardo. Amor à primeira vista e amor
correspondido. Aí está parte de um longo poema, onde brilha
a constante Marília, de lisas faces cor-de-rosa / brancos
dentes, olhos belos. Gonzaga assim decantava Marília:

Mal vi o teu rosto,


O sangue gelou-se,
A língua prendeu-se,
Tremi, e mudou-se
Das faces a cor.
Marília, escuta
Um triste Pastor.

A vista furtiva,
O riso imperfeito,
Fizeram a chaga,
Que abriste no peito,
Mais funda, e maior.
Marília, escuta
Um triste Pastor.
(T.A.G. p. p.17)

Foi significativo o encontro de Gonzaga com o grupo


de intelectuais: Cláudio Manuel da Costa, Alvarenga
Peixoto, outro primo Joaquim Antônio Gonzaga, o naturista
Joaquim Veloso de Miranda, o padre Luís da Silva, os
intendentes Francisco Pinto Bandeira e Luís Beutrão
Gouveia, os doutores Diogo de Vasconcelos e Tomás Belo.
Formava-se, assim, ao seu redor, um ambiente ilustrado, no
sentido que lhe dava a época - de culto à razão e ao razoável.
Nesse ambiente, o vate encontrou a adolescente Maria
Dorotéia - a renovação de sua vida.
Antônio Cândido 45 teceu um bom esclarecimento
sobre o impacto e o significado desses encontros tão ricos
para o homem e para o poeta Tomás Antônio Gonzaga:

Não há como escapar ao fato de que, apenas em Vila


Rica, a poesia avultou na sua vida. No Brasil, o homem
de estudo, de ambição e de sala, que provavelmente era,
encontrou condições inteiramente novas. Ficou talvez
mais disponível, e o amor por Dorotéia de Seixas o
iniciou em ordem nova de sentimentos; o clássico
florescimento da primavera no outono (CÂNDIDO, A.
(1975) p. 117-18).

Assim, Marília, a bela de pescoço e peitos nevados, /


negros e finos cabelos, testemunhou este louco amor (nem
sempre muito bem visto pelo pai de Dorotéia, o Dr. Bernardo
da Silva Ferrão, que considerava a diferença de idade (e de

45
CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira. São Paulo.
Itatiaia. 1975.
fortuna) entre os dois). Gonzaga era vinte e dois anos mais
velho que a jovem Dorotéia. E muito mais pobre.

3. 3. O amor e a inconfidência

Entretanto, a felicidade do casal (ficaram noivos em


1787) foi empanada por problemas no ofício de Gonzaga. Era
o pior tempo do governo corrupto de Cunha Meneses - de
quem o ouvidor tornou-se inimigo.
A tal altura, as ideias políticas do poeta já haviam se
modificado muito: combatia a corrupção, adotava uma
posição de denúncia contra os desmandos constantes do
governador. As desavenças entre Gonzaga e Cunha Meneses
eram conhecidas pela rainha (D. Maria I) e seus assessores
(como o visconde de Barbacena). O conflito entre o ouvidor
e o governador crescia até 1788, quando Cunha Meneses
deixou Vila Rica. Os atritos entre os dois prejudicaram a
carreira de Gonzaga, que almejava um cargo superior, na
Bahia, onde havia passado a adolescência...
Ao mesmo tempo, Gonzaga frequentava o grupo de
Cláudio e Alvarenga Peixoto, que tramava a conjuração,
planejava a Independência.
A vinda do visconde de Barbacena para o governo de
Minas alegrou Gonzaga e seus companheiros. Também saíra
a nomeação do poeta para o ambicionado cargo:
desembargador da Relação da Bahia.
Alegria breve, no entanto. Foi o próprio visconde,
amigo do poeta desde Portugal, quem mandou prendê-lo e
aos demais elementos do grupo. É que Joaquim Silvério dos
Reis havia denunciado a todos e, como tinha sido
ridicularizado nas Cartas Chilenas, vingou-se com a calúnia
“por escrito, apontando Gonzaga como chefe de uma
conspiração, que visava principalmente a ele, o visconde ”
(LAPA, M. R.(1976) p. 36) 46. Tomás Antônio Gonzaga
estava com 44 anos. Seu futuro parecia brilhante:
tranquilidade, prestígio social, estudos de processos judiciais,
culto ao amor, à razão, tudo sob as luzes da poesia. O seu
mundo estaria de acordo com a áurea mediocritas e o carpe
diem, mas, lembrando Vinícius de Moraes “De repente, do
riso fez-se o pranto / Silencioso e branco como a bruma / E
das bocas unidas fez-se espuma / e das mãos espalmadas fez-
se o espanto (...)/ De repente, não mais que de repente”
(MORAES, V. (1990) p. 40) 47. O noivado, o alto cargo na
Bahia, tudo ficou para trás. Tomás Antônio Gonzaga foi
remetido à fortaleza da ilha das Cobras, e lá ficou preso até
23 de maio de 1792. No mesmo ano, MARÍLIA DE DIRCEU
foi publicado em Lisboa, o vate recebeu sua sentença e partiu
definitivamente para a África.

3. 4. O recomeço

Na África, Tomás Antônio Gonzaga casou-se com


Juliana de Sousa Mascarenhas, jovem, analfabeta e herdeira
de uma das maiores fortunas de Moçambique. Como informa
o Dr. Rodrigues Lapa: “os talentos superiores de Gonzaga, a
própria auréola de perseguido político e republicano, num
meio já trabalhado pelas ideias da Revolução Francesa,
operaram logo sobre as altas esferas moçambicanas. Todos
lhe auguravam uma sorte feliz como negociante, ao uso da
terra” (IDEM. p.37.) Dedicou-se até o fim da vida ao
46
LAPA, Manuel Rodrigues. Prefácio, Notas. In: Gonzaga, Tomás
Antônio, Marília de Dirceu e mais poesias. Lisboa: Sá da Costa. 1976.
47
MORAES, Vinícius de. Os melhores poemas de Vinícius de Moraes.
Seleção Renata Palottini. São Paulo. Global. 1990.
comércio e à administração de suas propriedades. Morreu em
algum dia do ano de 1810, aos 66 anos, respeitado como
próspero comerciante em Moçambique, após chegar a juiz de
alfândega. Deixou sua fortuna a uma herdeira: sua filha Ana
Mascarenhas Gonzaga.
Não mais praticara a poesia. Nunca mais vira sua
musa. Mas Tomás Antônio Gonzaga, o poeta árcade, o
inconfidente de Minas, ficou inscrito para sempre na
memória de Vila Rica e do Brasil, pois legou à posteridade a
inesquecível obra Marília de Dirceu.

3. 4. A Obra Completa
O conjunto da obra do poeta, magistrado e
inconfidente Tomás Antônio Gonzaga, é formado por sua
principal obra Marília de Dirceu (primeira parte, 1792;
segunda parte, 1799; terceira parte, 1812); Cartas Chilenas
(incompletas); Tratado de Direito Natural (carta sobre a
Usura).
Cartas Chilenas, obra satírica formada por cartas que
documentam a época com suas alegorias contra o poder de
um mandatário corrupto. Neste conjunto da obra de Gonzaga,
deve ser mencionado ainda o Tratado de Direito Natural,
texto menor e ensaístico, louvando, em teses ainda contra-
reformistas, o direito divino do monarca, que não devia ser,
segundo o texto, de forma alguma subordinado ao povo.

CONCLUSÃO

A lírica de Tomás Antônio Gonzaga é bastante


significativa, tanto no contexto restrito do Arcadismo quanto
no contexto genérico da lírica nacional, uma vez que este
poeta dotou seus textos de um lirismo multifacetado,
complexo. Um lirismo que pode ser visto em três dimensões.
Como árcade, foi mestre no Bucolismo
Convencional, mas redefiniu o Pastoralismo baseado na sua
experiência pessoal, sobretudo quando o poeta estava na
prisão. O ideal clássico locus amoenus, em Gonzaga, longe
de ser uma mera abstração artística, tornou-se, ao longo de
sua obra, o desejo realista do poeta, que contrapõe o lugar
aprazível e ameno dos clássicos ao ambiente frio e triste da
masmorra. Igualmente, o ideal da áurea mediocritas, na obra
Marília de Dirceu, espelha um sentimento verdadeiro do
artista, o desejo de viver em paz ao sair da Prisão e de ser
feliz.
Como poeta, Gonzaga deu mais um realismo aos
motivos poéticos e projetou neles experiências individuais
para exposição dos sentimentos. Utilizou o lirismo amoroso
como expressão pessoal, mas também valorizou o lirismo
como exercício poético.
Como cidadão, magistrado e inconfidente usou o
lirismo para expressar o homem, a capacidade de amar, de
sofrer, de vencer a dor e o infortúnio e, principalmente, de
retirar, dessa vivência, uma poesia altamente lírica, fruto de
um grande Amor à Vida e à Arte poética. Desse Amor nasceu
Marília de Dirceu.
III – GONÇALVES DIAS - O POETA DA CANÇÃO,
DO ÍNDIO E DOS AMORES

Com a vida isolada que vivo, gosto de afastar os olhos de s o b


r e a nossa arena política para ler em minha alma, reduzindo à
linguagem harmoniosa e cadente o p e n s a m e n t o q u e me
v e m de improviso, e as ideias que em mim desperta a vista
de uma paisagem ou de oceano o aspecto enfim da natureza.
Casar assim o pensamento com o sentimento o coração com o
entendimento a ideia com a paixão colorir tudo isto com a
imaginação, fundir tudo isto com a vida e com a natureza,
purificar tudo com o sentimento da r e l i g i ã o e da
d i v i n d a d e , eis a Poesia a Poesia grande e santa a
Poesia como eu a compreendo sem a poder definir, como eu a
sinto sem a poder traduzir.
(Gonçalves Dias)
Que bom costume é bailar! Adornar-se, andar pintado, tingir
pernas, empenado fiimar e curandeirar, andar de negro
pintado.
(José de Anchieta)

Antônio Gonçalves Dias nasceu a 10 de agosto de


1823 no sítio Boa Vista, em terras do Jatobá, a 14 léguas de
Caxias, antiga Aldeias Altas no Maranhão. Descendente das
três raças que deram o tipo brasileiro, porque filho do
português João Manoel Gonçalves Dias e da cafuza
Vicência Mendes Ferreira, Gonçalves Dias transmitiria à sua
obra a marca inconfundível de sua origem, apesar de ser
quase exclusivamente europeia sua formação intelectual:
não só estudou na Europa, onde concluiu o curso de
humanidades e se diplomou em Direito (Coimbra, 1844),
mas aí viveu cerca de 14 dos 41 anos de sua existência. Ao
contrário, porém, de outros escritores brasileiros que se
europeizaram a um contato menor que o seu, o de Gonçalves
Dias iria utilizar a cultura humanista literária que adquirira
no velho mundo, para realizar uma obra de profunda
significação brasileira; ainda estudante em Coimbra, e
apesar da influência considerável que nele exerceu o
Romantismo português, escreveria um romance
autobiográfico (Memórias de Agapito Goiaba) e parte de sua
obra poética e dramática, em que já predominava a
inspiração americana e indianista.
A primeira grande obra da poesia romântica, no
Brasil, é o seu livro de estria, Primeiros Cantos, publicado
em 1846 e saudado pela crítica do país, inclusive pela
portuguesa, através de Alexandre Herculano, como
acontecimento extraordinário, tão diferente se mostrava do
que ali se publicava.
Entre as atividades que exerceu, destaca-se a de
professor de Latim e História no Colégio Pedro II em 1849,
em que, junto com Araújo Porto Alegre e Joaquim Manuel de
Macedo, fundou a revista Guanabara. Em 1851, foi
incumbido pelo governo de estudar os aspectos educacionais
primários e secundários na região Norte. Foi quando
conheceu Ana Amélia Ferreira do Vale, cuja mão lhe foi
negada pela família, devido à sua condição de filho ilegítimo
e de mestiço. Ana Amélia foi seu grande amor, uma paixão
frustrada, mas o poeta, em 1852, casou-se com Dona Olímpia
da Costa e constituiu família. Empreendeu viagens à Europa
como representante do governo brasileiro, e como etnógrafo
esteve em visita à Amazônia, integrando também comitiva
governamental.
Com a saúde abalada, foi novamente à Europa em
1863, buscar tratamento. Na volta ao Brasil, na madrugada
de 3 de novembro de 1864, o navio em que viajava, Ville de
Boulogne, naufragou no baixio dos Atins, próximo à vila de
Guimaraens, na costa maranhense, fendendo-se ao meio.
Toda a tripulação salvou-se, mas quando se lembraram de
socorrer o artista, seu camarote já estava submerso. O poeta
da Canção, do índio e dos amores estava morto, mas a sua
grande obra estava eternizada: Poesia: Primeiros cantos
(1846); Segundos cantos (1848); Sextilhas de Frei Antão
(1848); Últimos cantos (1851); Cantos (1857); Os Timbiras
(1857). Teatro: Beatriz Cenci (1843); Patkull (1843); Leonor
de Mendonça (1847). Outros: Meditação, prosa, trabalho
escrito entre 1845/6; Brasil e Oceania (1852); Dicionário da
língua Tupi (1858).
2. O ROMANTISMO

O Romantismo surge e se desenvolve como reflexo da


evolução econômica, social e política da burguesia e está
intimamente relacionado com o segundo período da
Revolução Industrial e com a Revolução Francesa, que
provocou a crise do absolutismo e propagou o liberalismo,
doutrina ligada ao individualismo econômico e à crença na
capacidade individual do homem.
O Arcadismo não deixa de ser, em essência, a
continuação do Classicismo, com seus modelos e regras,
enquanto os românticos, num clima de liberdade e
transformação, puderam, de fato, propor ruptura dos moldes
preestabelecidos e relativa liberdade de criação.
O novo público consumidor, de origem burguesa,
não aceitando os padões clássicos que indicavam uma
concepção de mundo estática, dita novos valores: o apego às
tradições nacionais, o gosto pelas lendas, mitos e narrativas
de origem medieval e pelo heroísmo, o sacrifício e sangue
derramado que evocavam o recente passado revolucionário.
A euforia pela Revolução Francesa, associada à liberdade e à
ascensão econômica individual, é suporte e inspiração de uma
literatura movida por emoções individuais. A ânsia de
glorificar pátria e de fazer confissões pessoais são duas faces
do mesmo individualismo que se manifesta em favor do
espírito e contra coisas materiais.

2. 1. A renovação das formas literárias


O individualismo conduz o romântico ao desejo de
liberdade, o que o faz se revoltar contra todas as convenções,
inclusive as literárias. Como a massa de leitores não tinha
mesmo condições de entender a obediência a certas
convenções desconhecidas, o escritor romântico pôde
renovar os gêneros literários e tornar-se um ser original.
Quanto mais diferente, melhor. Assim, no teatro, o romântico
quebra as regras da tragédia clássica. Surge o drama
moderno. Na narrativa, o romântico pode aprofundar-se na
alma das personagens, criar um novo modo de contar
histórias. Surge o romance. Os leitores gostam das novidades
e identificam-se com personagens que se tornam
verdadeiros ídolos. A poesia não se justifica mais como
imitação (o conceito neoclássico da "mimesis" aristotélica),
mas como a expressão inspirada da alma. O romântico toma a
alegoria pela realidade, e faz profissão de fé num Belo
Absoluto, do qual acontece e faz com que o poema participe,
segundo a virtude de “médium” que possui o poeta, espécie
de intermediário entre os homens e os deuses: e a sua poesia
faz-se sem esforço – não é ele que invoca a Musa, senão a
Musa que vem a ele. O poeta será comparado a um
organismo vivo: está, portanto, delineada uma verdadeira
revolução no conceito de poesia e, dentro da nova ordem de
valores, a poesia lírica terá lugar de destaque nas produções e
reflexões estéticas.

2. 2. Ritmo e Criação

Do ponto de vista das conquistas técnicas da


linguagem poética, o Romantismo dará lugar de destaque ao
ritmo, no projeto de organizar analogicamente, por traços de
semelhanças ou diferenças, a imagem do mundo no poema. A
rebelião romântica contra a versificação silábica irá casar-se
com a sua própria aventura de pensamento, já liberto do
racionalismo anterior. Ritmo e analogia: eis os princípios
românticos. As relações entre imagens, ritmos e sonoridades
prevalecem sobre a lógica de uma sintaxe submetida à
versificação: é esse o caminho mais fecundo do Romantismo.
No Brasil, Gonçalves Dias revelou-se excelente
versejador e hábil na elaboração rítmica. Construiu sua
poética marcada por apoios rítmicos tradicionais, mas
trabalhou magistralmente novos ritmos, o que levou Manuel
Bandeira a escrever o seguinte:
Se considerarmos a obra publicada em vida e em livro
pelo poeta, mas com exclusão d'Os Timbiras e das
traduções, verificamos que nos Primeiros, Segundos e
Últimos cantos, primeira edição, e nos Novos cantos, há,
num total de 142 poemas, 75 em que variam os metros e
muitas vezes as estrofes. A variação obedece sempre a
uma necessidade de expressão, e é curioso notar que onde
há movimento belicoso ou sentimento frequentemente o
ritmo ternário do anapesto, não só nos eneassílabos e
hendecassílabos, de que é o elemento característico, mas
ainda em outros metros dê pausas menos constantes, como
o decassílabo e a redondilha maior.
O anapesto é em Gonçalves Dias a célula
rítmica de toda sua poesia de inspiração indianista .
(Manuel Bandeira, in. DIAS, Gonçalves. Poesia e
Prosa Completas. Volume único. (1998), p.57) 48

O anapesto é um pé ou medida métrica constituído por


três sílabas, sendo duas breves ou átonas, seguidas de uma
48
Todas as citações desse estudo foram retiradas de DIAS, Gonçalves.
Poesia e Prosa completas. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1998.
longa ou acentuada. Manuel Bandeira chama atenção para os
anapestos que aparecem nos seguintes poema inseridos na
reunião da obra do Poeta do índio, Poesia e Prosa
completas. 49: No "Canto do Guerreiro": Aqui na floresta/ Dos
ventos batida... (Idem p.17). No "Canto do piaga": Ó guerreiros, da
taba sagrada,/ Ó guerreiros, da tribo tupi. (Idem p.20). Na
"Deprecação" Deus grande! cobriste o teu rosto...(Idem p.23). No
"Gigante de pedra": Gigante orgulhoso de fero. Semblante (Idem
p.93). Em "I-Juca- Pirama": No meio das tabas de amenos
verdores...(Idem p.379). Na "Canção do tamoio": Não chores,
meu filho./Não chores que a vida.. (Idem p. 117).
Manuel Bandeira afirma “que fora dos poemas
indianistas o elemento anapéstico é ainda muito encontradiço
e creio poder indicá-lo como a constante rítmica do poeta”.
(Ibidem, 1998, p. 58).
Em seu estudo sobre a poética de Gonçalves Dias, o
criador de "Vou embora para Pasárgada" escreveu ainda que:

Rolland assinalou a energia e a insistência dos ritmos


de marcha e de combate na obra de Beethoven: a mesma
observação se pode fazer na de Gonçalves Dias. Sua
máscula têmpera de lutador, tão impressionantemente
manifesta no diário escrito a bordo do Grand Conde,
afirma-se também com pujança no ritmo verdadeiramente
marcial dos seus anapestos.
(Manuel Bandeira. Idem, 1998, p. 58).

Quanto ao metro, o poeta maranhense usou com


frequência o decassílabo e a redondilha maior, embora se
deva observar que, como bom romântico, não se prendeu às
regras, realizando combinações polimétricas, variando
medidas e ritmos, muitas vezes na mesma estrofe, segundo
49
Idem.
lhe indicava sua sensibilidade, em busca da melhor
expressão.
Bandeira chama atenção para o fato de que Gonçalves
Dias tinha finíssimo ouvido, o que pode ser observado na
harmonia de suas combinações polimétricas, nas mudanças
de estrofação e de ritmo.
Um dos melhores exemplos é o poema "I Juca-
Pirama" (Ibidem, 1998, p. 379) escrito em dez cantos curtos.
Cada canto varia de estrofação e ritmo simbolizando a
dramatização da estória do índio que deve ser morto. Um dos
mais belos momentos, o IV canto, por exemplo, é composto
em redondilhas menores, com a segunda e a quinta sílabas
tônicas. Observe:

Meu canto de morte,


Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros descendo
Da tribo Tupi.
(GD, 1998, p. 382)

A cadência do anapesto com a primeira breve, a


segunda sílaba tônica seguida de duas breves e a outra longa
produz um som idêntico ao rufo do tambor na representação
de um andamento marcial, (tam, tam, tam, tam, tam, tam) ou
pode ser observada a analogia da sonoridade dos atabaques
usados durante as cerimônias indígenas.
Da mesma forma, no canto VIII, os versos
eneassílabos (nove sílabas) formando três anapestos, (bam,
bam, bam, bam, bam, bam, bam bam, bam) conferem-lhe
um tom dramático de medo, dor e prisão. É como se o índio
tupi caminhasse para o julgamento, prisão ou morte ao som
das batidas do tambor que anunciam o movimento fatídico ou
a maldição do pai. Verifiquemos o fragmento:

Tu choraste em presença da morte


Na presença de estranhos choraste
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito,
De uma tribo de nobres guerreiros.
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de vis Aimorés.
(GD, 1998, p. 389)

Os versos sugerem um clima de acusação e, ao


mesmo tempo, passam a impressão de que o guerreiro Tupi
estivesse vivenciando a maldição do pai – um ser eterno,
errante, sem irmãos, sem honra, uma sombra a vagar pelo
mundo. Por esse motivo precisava lutar, ser herói, ser nobre,
antes de tudo.
"Canção do exílio" (Ibidem, 1998, p. 105), o poema
mais famoso de Gonçalves Dias, é marcado pela simplicidade
dos versos de sete sílabas (redondilhas maiores), de fácil
memorização e que agradou o gosto do público. Foi neste
poema que Gonçalves Dias se revelou o grande poeta, seu
mérito não reside apenas no forte nacionalismo e na
lusofobia da época, mas na graciosa musicalidade e a rima
oxítona bem marcada (lá, cá, sabiá). Outro aspecto criativo
foi a ideia do verso das palmeiras onde canta o sabiá, que se
repete ao longo do poema, exercendo, de forma sutil, o papel
de refrão e traduzindo a mais autêntica expressão da emoção
pessoal e suas relações com a natureza nacional. Num país
orgulhoso de afirmar-se com personalidade social e poética,
no momento de autodescoberta, o lirismo romântico de
Gonçalves Dias acabou superpondo a simples afirmação
nacionalista, por uma personalidade literária e eloquência
retórica.
Em "Canção do Exílio" (Ibidem, 1998, p. 105) e
também em outros poemas como, por exemplo, "Leito de
folhas verdes" (Ibidem, 1998, p. 377), Gonçalves Dias
conseguiu integrar o "eu" e a "natureza" na linguagem do
poema, exercitando uma nova concepção de poesia, num
estilo lírico em que o dado subjetivo consegue ultrapassar o
estágio da mera confissão para encontrar até mesmo seu
oposto, os limites da própria expressão subjetiva, dando um
salto para o coletivo e universal.
Quanto à estrofação, predominam as quadras regular e
quebrada, a sextilha e oitavas e a terça-rima, estância formada
por uma cadeia que é fechada por um verso e muitas vezes
precedido de uma pausa, como podemos conferir nos
seguintes versos do poema "A minha musa" (Ibidem, 1998, p.
127-130):
(...)
Canções que a turba nutre, inspira,exalta
Nas cordas magoadas me não pousam
Da lira de marfim.
Correm meus dias, lacrimosos,tristes,
Como a noite que estende as negras asas
Por céu negro e sem fim.

É triste a minha Musa, como é triste


O sincero verter d'amargo pranto
D'órfã singela;
É triste como o som que a brisa espalha,
Que cicia nas folhas do arvoredo
Por noite bela.
(Ibidem, 1998, p. 129)

Os versos grifados acima: Da lira de marfim,! Por


céu negro e sem fim,! D'órfã singela;! e / Por noite bela l
encerram, com uma pequena pausa, uma estância de três
versos, dividindo em duas partes a estrofe formada pelo
conjunto de seis versos, denominada de sextilha.
O fundador da poesia nacional utilizou
frequentemente certos recursos retóricos, como o estribilho
ou refrão (um ou mais versos que se repetem, com intervalos,
geralmente, no final de uma estrofe), a anáfora ou
paralelismo anafórico (como acontece na repetição dos
pronomes e dos advérbios designativos de aumento, grandeza
ou comparação de "Canção do Exílio" em Nosso céu tem
mais estrela / Nossas várzeas têm mais flores /Nossos
bosques têm mais vida l Nossa vida mais amores. Outro
recurso estilístico muito usado é a aliteração (repetição de
sons consonantais como sugestão de uma ideia), como
podemos notar nos seguintes versos: Em cismar, sozinho, à
noite, / Mais prazer encontro eu lá. No caso desta canção, a
aliteração nasal pode sugerir um gemido, marcado pela dor
da saudade da pátria distante. Este texto possui um alto grau
de outras sugestões, além desta aliteração ou sonoridade.
De acordo com José Guilherme Merquior, no ensaio
denominado “ O poema do lá”, em Razão do Poema –
ensaios de crítica e de estética (2013) 50, p. 66, expõe que:

O segundo verso ecoa o ritmo de As aves que aqui


gorjeiam de maneira apropriada, pois também ele é
referência direta à terra estranha. (...) O segundo terceto (e

50
MERQUIOR, José Guilherme. Razão do Poema – ensaios de crítica e
de estética. São Paulo, Realizações Editora, 2013, p. 66)
última instância) da canção está perpassado pelo
pressentimento doloroso de um exílio definitivo. A
intensidade do pressentimento traduz-se na urgência do
rítmo, aqui, como na estrofe II, construído em crescendo
elevado, em cujo ápice surge, semelhantemente, o timpre em
i, princípio e fecho de uma fremente volição. Entre permita e
inda viste há como que o arco distendido de vontade elétrica.
Mas o timbre agudo, cercado pelas vogais em maioria
fechadas dos cinco primeiros versos, representa a
terminação polar de uma variação rítmica apreciável.
(MERQUIOR, José Guilherme, p. 66)

O crítico detalha em sua análise ainda que:


“O primeiro verso obedece ao cânone predominante do
poema, expresso no próprio refrão, e que é o metro trocaico,
acentuado nas sílabas impares. O segundo sé tem, em
relação a tal norma, a tenuidade da quinta sílaba, onde a
preposição apaga a força do acento, legada ao volte
imperioso e aberto. No terceiro verso, entretanto, num
movimento que abrange os dois seguintes, o ritmo sofre
desvio enérgico, de jorro último e de apelo transido de uma
vibração que só o silêncio, depois do fragmento de
estribilho, serenamente sucederá. Da terceira, acento se
desloca para a quarta sílaba: Sem que desfrute os primores.
Não é possivel ler a estrofe sem sentir a intensidade que ela
extrai dessa mudança. Quando o último verso – pedaço de
refrão – cai sob os olhos depois desse arrepio, a rima á,
vinda desde a uqdra inicial recebe em cheio toda sua
expressividade. (Idem, p. 66)

José Guilherme Merquior fez várias descobertas que


permite-nos ter a medida de sua imaginação crítica ao
elaborar conceitos e percepções das expressões polissêmicas
proporcianas pelo ritmo do poema. O crítico observa que:
“Quase se deveria dizer rima do lá: tanto se faz o advérbio, o
designativo poderoso da terra natal, eco sintético das
palmeiras, do sabiá, de tudo que, em valor incoparável,
oferece o país de oriegem. Síntese de uma obsessão, essa
palavra mínima contrasta, inalterada, com várias designações
adverbiais da terra estranha, tratada por aqui, cá e por cá”
(Ibidem, 67). Na conclusão dessas percepções analíticas,
completa que: “Nas quatro vezes que ocorre, o lá vem
sempre assim, puro e o mesmo. É verdade que no verso 20
lemos para lá; mas essa para, depois do verbo volte, antes
reforça a ideia verbal, distiguindo-se com isso das funções
puramente locativas, como a daquele neutro por cá do verso
22”. (Idem, 67)
Nesse sentido, Gonçalves Dias utilizou com maestria
o artifício do ritmo como metáfora e com arte e propriedade,
a rima interior, como nos seguintes versos de "Rola"
(Ibidem, 1998, p. 282): Vem contentar, meus desejos,/Vem
fartar-me com teus beijos,/...saciar-me de
amor!/....pousar, no peito meu.../ Amo-te, quero-te, adoro-
te. Enfim, estes e outros procedimentos poéticos
emprestaram a muitos de seus poemas, sobretudo aos de
redondilha maior, um acentuado sabor popular; daí porque
ocupam eles a preferência do público, sendo os mais
conhecidos e repetidos em todo o país, como o exemplo da
"Canção do exílio", o poema mais famoso do Brasil, modelo
de outras canções, muitas paródias e ideias de cunho
nacionalista.

3. A POESIA ROMÂNTICA DE GONÇALVES DIAS

Gonçalves Dias é considerado pela crítica como o


mais equilibrado dos poetas românticos. Sua poesia não tem
os exageros dos outros poetas, mas defende a profissão de fé
do individualismo, subjetivismo, confessionalismo,
religiosidade, culto da natureza, idealização e nacionalismo
(indianismo e tradicionalismo).

3. 1. Individualismo, Subjetivismo,
Confessionalismo

Está evidenciada na poética de Gonçalves Dias a ideia


de que em oposição ao universalismo dos clássicos, os
românticos vêem o mundo unicamente através do seu
interior. Desta forma, a primeira pessoa (eu) está constante
em sua poesia. Está também presente a concepção de que a
revelação dos segredos mais íntimos da alma, a prevalência
do sujeito sobre o objeto trarão como consequência o
sentimento agudo de solidão. É o que pode ser observado no
poema "Leito de folhas verdes" (Ibidem, 1998, p. 377):

Por que tardas, Jatir que tanto a custo


A voz do meu amor moves teus passos
Da noite a viração, movendo as folhas,
Já nos cimos do bosque rumoreja.

Eu sob a copa da mangueira altiva


Nosso leito gentil cobri zelosa
Com mimoso tapiz de folhas brandas.
Onde o frouxo luar brinca entre flores.

(...)
Meus olhos outros olhos nunca viram,
Não sentiram meus lábios outros lábios,
Nem outras mãos, Jatir, que não as tua
A arasóia na cinta me apertaram.

Do tamarindo a flor jaz entreaberta,


Já solta o bogari mais doce aroma;
Também meu coração, como estas flores,
Melhor perfume ao pé da noite exala!
( .........)
Tupã! Lá rompe o sol! Do leito
inútil
A brisa da manhã sacuda as
folhas!

( DIAS, Gonçalves. Ibidem, 1998, p.


377/378)

Neste poema, Jatir estava sendo esperado para um


encontro amoroso; entretanto, por motivos ignorados, não
apareceu; daí as queixas do eu lírico que o busca o amado em
vão por todos os recantos. O poema é um solilóquio do eu
poemático, que descreve os seus próprios sentimentos,
enquanto aguarda o ser querido. No solilóquio, a personagem
fala em primeira pessoa sobre seus problemas interiores,
dirigindo-se a uma plateia vaga.
Há três movimentos nítidos no desdobramento do
tema: Da estrofe primeira à quinta, a amada se queixa da
ausência de Jatir, o que lembra as cantigas de amigo da
poesia medieval portuguesa. A principal característica desse
seguimento é o do “eu” lírico feminino colocar-se como
centro de interesse do amor (Jatir deveria vir para ela); da
estrofe sexta à sétima, o “eu” lírico feminino destaca Jatir
como a única razão de ser de sua vida. O centro de interesse,
agora, é Jatir; nas estrofes oitava e nona, a enamorada faz um
último apelo a Jatir e toma consciência de que ele não mais
virá. Desilude-se. Ela e o leito de folhas verdes (símbolo do
amor da índia) voltam a ser o centro de interesse de um
quadro que se desfaz.
Este poema reserva algumas importantes
características da estética do Romantismo e do estilo de
Gonçalves Dias. Uma das características românticas é o
envolvimento da natureza com os conflitos sentimentais da
personagem. Esta marca do Romantismo já aparece na
primeia estrofe, uma vez que para comprovar que a hora do
encontro já escoara, a amada lembra que a viração da noite já
soprava nos cimos dos bosques.
O texto é iniciado com uma pergunta direta por que
tardas? seguido do vocativo Jatir, indicando a suposição de
que o amado se move a custo, uma vez que a hora marcada
para o encontro está se escoando. Esses elementos são
recursos de estilo que comunicam o sentimento que
caracteriza o espírito da amada tomado de ansiedade, amor,
de angústia.
Na segunda estrofe, o pronome "eu" trai o secreto
desejo da índia de ser o alvo principal dos desejos de Jatir.
Esta, por sua vez, faz um convite de amor com imagens
românticas que revelam um leito gentil, mimoso tapiz de
folhas brandas, onde o frouxo luar brinca entre as flores e,
através do verso nosso leito gentil cobri zelosa, revela
exclusividade no amor.
Na terceira estrofe há dois importantes símbolos bem
femininos: o primeiro é o próprio “eu” lírico, representado
pela flor do tamarindo e pelo bogari; o segundo, é o amor da
índia, representado pelo doce aroma. A ação de abrir-se com
referência à flor do tamarindo traduz o sentimento e a súplica
de amor, da mulher apaixonada que vem logo revelado na
expressão prece de amor.
À medida que o tempo passa, a participação da
natureza nos problemas amorosos das personagens é mais
intensa; a amada e o seu amor são simbolizados por
elementos tomados na natureza. As delícias do amor com que
a índia acena ao amado vêm envolvidas no encantamento
mágico e embriagador de que a natureza também participa,
como nos seguintes versos: Correm perfumes no correr da
brisa, influxo mágico, quebranto de amor. Na terceira
estrofe, a flor do tamarindo (símbolo da apaixonada) abre-se
ansiosa e cheia de esperança para o amor; agora, a flor está
associada à ideia de morte, embora o ser apaixonado ainda
fale em vida. Está implícito nas palavras do “eu” lírico que
assim como a flor precisa apenas do Sol por um dia, ela se
contentaria ao menos com um pouco do amor de Jatir. Sem
esse mínimo, porém, ela perecerá.
Por trás das palavras da mulher e de sua inteira
dedicação a Jatir, cresce uma luta íntima: ela reluta em aceitar
o que já começa a sentir conscientemente, ou seja, o seu
homem tão esperado não virá ao seu encontro e, talvez, nem a
ame. Assim, ela deixa de propor-se como centro de atração
amorosa e é o índio dos seus sonhos que se torna o ponto de
atração. Antes, ela representava o amor que deveria atrair o
amado; agora, é Jatir que surge como único amor que ela
busca. A consciência da realidade provoca na amada um
sentimento que pode ser definido como desesperança,
desencanto, solidão e profunda tristeza, acompanhada pelo
desejo de morte.
O eu poemático projeta-se na imagem da flor por três
vezes: Na terceira estrofe, ela é a flor cheia de esperança,
embora atribulada pela inquietação; na quinta estância, é a
flor que suplica pela presença do índio da sua vida; na oitava
quadra, é a flor que jaz, conotações que se associam à ideia
de desilusão e morte.
Os elementos da natureza evocados pela índia
sonhadora, para caracterizar-se como centro da atração
amorosa, situam-se agora num estado psicológico de tristeza
e desencanto.
Há, no desdobramento do tema, um crescendo
dramático. Assim, o que era, na primeira estrofe, ansiedade e
amor, e se muda na segunda em oferecimento, e na terceira
em súplica de amor, agora, na quarta estrofe, se caracteriza
como um quebranto de amor.
A india descreve dramaticamente sua grande paixão
por Jatir. Mas, no calor de suas palavras de amor, sente
também o desespero que começa tomar conta dela. Os versos:
Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas l A arazóia na cinta
me apertaram retratam bem o sentimento de cobrança de um
compromisso assumido por Jatir.
É perfeitamente significativo o ritmo da última
estrofe. Há três etapas Não me escutas, Jatir! (....) Tupã! lá
rompe o sol! Do leito inútil e A brisa da manhã sacuda as
folhas!. Essas etapas parecem marcar três sentimentos que se
sucederas sugerem o tema. Estes sentimentos são de
decepção, desilusão e revolta. O tema pode ser resumido
como uma grande frustração.
"Leito de Folhas Verdes" exemplifica o estilo
romântico de Gonçalves Dias, uma vez que o autor criou um
quadro em que o amor é idealizado pela imaginação e
sensibilidade, não se preocupando com fidelidade ao real. O
amor é retratado na sua instabilidade e ilogicidade, de acordo
com os sonhos ou fantasias do apaixonado.
Gonçalves Dias, neste poema, retrata a psicologia
feminina, em termos de idealização. Conclui-se que para o
autor a fantasia e os sentimentos, na arte, têm primazia sobre
a realidade e a razão.
É importante refletir que em "Leito de Folhas Verdes"
a natureza é grandiosa e acolhedora, tendo-se a impressão de
que nela talvez o homem pudesse viver bem se realizasse
seus sonhos de amor. A natureza oferece ao autor recursos de
grande efeito poético, habilidosamente ligados aos gestos e
às intenções sentimentais da personagem.

3. 2. A Religiosidade, Natureza e Idealismo

A religiosidade é outra marca da poesia de Gonçalves


Dias: muitas vezes, o sentimento religioso manifesta-se a
partir da contemplação da natureza, cuja grandiosidade leva o
poeta a uma reflexão mística, como se vê nas seguintes
estrofes, extraídas do poema "O Mar" (Ibidem, 1998, p. 201-
203):

Oceano terrível, mar imenso


De vagas procelosas que se enrolam
Floridas rebentando em branca espuma
Num pólo e noutro pólo,
Enfim... enfim te vejo; enfim meus olhos
Na indómita cerviz trêmulos cravo,
E neste rugido teu sanhudo e forte
Enfim medroso escuto!
(...)
Ó mar, o teu rugido é um eco incerto
Da criadora voz, de que surgiste:
Seja, disse; e tu foste, e contra as rochas
As vagas compeliste.
E à noite, quando o céu é puro e limpo,
Teu chão tinges de azul, tuas ondas correm
Por sobre estrelas mil; turvam-se os olhos]
Entre dois céus brilhantes.
(Ibidem, 1998, p. 202)

Este poema é um hino impregnado de panteísmo, de


um sentimento entre o filosófico e o religioso que concebe
tudo como projeção de Deus – de modo especial toda a
natureza: os vales, as montanhas, a aurora, as florestas, as
tardes e o oceano. A observação e a filosofia conduzem o
“eu”- poético ao sentimento de solidão que se fortalece com a
contemplação reflexiva do universo.
O poema principia com a descrição do mar: mar
imenso, vagas procelosas, branca espuma, rugir. Aos
poucos, esta percepção visual e auditiva vai se transformando
numa reflexão do eu lírico, que passa a meditar na identidade
entre o bramir do mar e a voz de Deus: o teu rugido, ó mar, é
um eco incerto da criadora voz de que surgiste. Mais além, o
eu poemático considera a natureza como propícia à
meditação (a sós contigo, a mente livre se eleva...), aderindo
assim a uma das posturas mais caras à literatura romântica.
Na poesia de Gonçalves Dias, no entanto, a natureza
desempenha ainda outras funções: é, por exemplo, descrita e
exaltada como símbolo da pátria, como ocorre nos versos de
"Canção do Exílio": As aves que aqui gorjeiam, /Não
gorjeiam como lá. (...)/ Em cismar, sozinho, à noite, / Mais
prazer encontro eu lá; (...) / Minha terra tem primores, / Que
tais não encontro eu cá; (Ibidem, 1998, p. 105). O poeta
expõe o platonismo romântico idealizando o seu país.
Marcado pela distância e saudade, descreve sua terra como
uma espécie de Pasárgada, o lugar ideal para se viver, a mais
bela, mais estrelada, mais florida, o habitat das aves mais
sonoras, um empíreo, um lugar celeste, supremo, uma
verdadeira morada dos deuses cheia de prazeres divinais.
Apaixonado, longe da pátria amada, exagera na enumeração
das qualidades do território brasileiro. Porém, apesar de ser
um texto de profunda exaltação da pátria, Gonçalves Dias
teve a maestria de construir um poema com uma total
ausência de adjetivos qualificativos. As adjetivações das
belezas e grandiosidade da pátria são todas imagéticas: são
cenas de uma paisagem paradisíaca, plena de idealização. É
uma natureza abençoada, como se Deus fosse brasileiro e
que, em um ufanismo tipicamente romântico, derramasse
neste solo todas as belezas e amores mundo.
Em Razão do Poema – ensaios de crítica e de
estética, (2013) no ensaio “O poema do lá”, o crítico José
Guilherme Merquior, assinala que:

A “Canção do Exílio” é um poema simples e desnudo, mas não


porque haja nele, em alusão poética, os elementos essenciais da
terra nativa. A verdadeira razão do poema, o verdadeiro
segredo de sua direta comunicabilidade é a unidade obstinada
do sentimento que a domina. Esta é a qualidade distintiva da
canção, e o que faz dela poema realmente “sem qualicativos”,
precisamente porque todo o poema é qualicativo: todo ele
qualifica, em termos de exaltado o valor, a terra natal. Mas a
qualidade atribuída ao país saudoso é em si abstrata.
Recusaando-se a tomar o país qualquer peculiaridade concreta
para submetê-la a amorosa descrição, o poeta preferiu partir do
Sabiá simbólico para sobrevalorizar sua pátria,
irrespectivamente a qualquer elemento particular. O Brasil, na
“Canção do Exílio”, não é isso nem aquilo; O Brasil é sempre
mais.(MERQUIOR, José Guilherme, 2013, 67) 51

Na poesia de Gonçalves Dias, contudo, não é apenas a


natureza que tem a função de refletir o patriotismo; o espírito
da pátria esta expressa na forma como o nacionalismo se
apresenta, nos temas histórios que são cantados em sua obra,
assim manifesta-se também o indianismo, isto é, a exaltação
do índio, encarado como símbolo do homem brasileiro

4. O NACIONALISMO

51
MERQUIOR, José Guilherme. Razão do Poema – ensaios de crítica e
de estética. São Paulo, Realizações Editora, 2013, p. 66)
O termo Romantismo tem seu emprego explicável
pela origem europeia do movimento. É que na Europa a
reação aos estilos clássicos (Renascimento, Barroco,
Arcadismo), todos voltados para a valorização da Idade
Antiga greco-latina, implicou uma espécie de redescoberta da
história e cultura da Idade Média. Ora, a Idade Média possui
um estilo arquitetônico conhecido pela designação de
românico, e se chamam romances certas línguas derivadas do
Latim (língua originária de Roma) faladas na Europa naquela
época. O termo romance (e sua forma variante, rímance)
designava também certo tipo de poema escrito nessas línguas,
narrando as aventuras e desventuras de cavaleiros da Idade
Média, cheios de altos valores e sentimentos (heroísmo,
religiosidade, amor).
Note-se ainda que foi na Idade Média, durante a
expulsão dos mouros por cavaleiros cristãos, que se
originaram Portugal e Espanha, assim como as línguas
romances deram origem à maioria das atuais línguas
europeias ocidentais.
Assim, podemos dizer que a palavra Romantismo
lembra as origens de diversas nacionalidades europeias. Não
é de causar admiração, portanto, o fato de que uma das
características fundamentais deste estilo de época seja o
Nacionalismo. Também nos países da América, como o
Brasil, a produção romântica em todas as suas fases terá
como fator importante o Nacionalismo, embora ele seja mais
evidente em alguns momentos do que em outros.

4. 1. O contexto do nacionalismo

A época de domínio do Romantismo coincidiu com


movimentos nacionalistas, tanto na Europa (Grécia, Bélgica,
Estados Confederados da Alemanha, Império Austro-
Húngaro, etc.) quanto na América (várias antigas colónias de
países europeus obtiveram independência: Paraguai, 1811;
Chile, 1818; Colômbia, 1819; México e Venezuela, 1821;
Brasil, 1822; etc.). O Romantismo aparecerá então como a
afirmação literária do nacionalismo, e sua primeira
consequência artística será a tentativa de abandonar a
tradição greco-latina (patrimônio universal, portanto, sem
raízes na história de cada país), para se criarem caminhos
próprios e peculiares a cada nação.
O Barroco tem o mérito de marcar o nascimento da
nossa literatura. O Neoclassicismo tem o de iniciar a
formação da nossa consciência nacional na literatura. Já o
Romantismo destaca-se como o primeiro estilo constituído no
Brasil com motivos próprios, brasileiros. Não que os
românticos brasileiros se desligassem das influências
europeias. É que elas foram ao encontro dos desejos locais, o
que gerou nosso primeiro estilo depois da Independência, e o
nacionalismo que o caracterizou, tanto na Europa, como aqui.
Um estilo que cultivou a natureza exótica e, neste aspecto, a
nossa natureza selvagem era ideal. Foi um estilo que buscou
heróis míticos, e aqui estava o índio. Pátria, natureza e índio
formam o grande trio temático do Romantismo brasileiro.
Enquanto os poetas românticos da Europa
procuravam recuperar a memória histórica, voltando-se para
suas origens na Idade Média, os autores brasileiros buscavam
suas raízes no elemento indígena. Um índio idealizado, muito
mais o "Bom Selvagem" do francês Jean-Jacques Rousseau,
filósofo que pregava a volta do homem ao estado primitivo.
Segundo Rousseau, a civilização corrompera o homem, a sua
redenção estava no retomo às origens: "O homem nasce bom.
A sociedade o corrompe".
O trio (pátria, natureza e índio) não deixou de ser
interessante para a nossa burguesia da época, composta,
predominantemente, pelos proprietários de terras (fazendeiros
e senhores de engenho). Ninguém criticava a estrutura social.
Os leitores da cidade eram jovens estudantes ricos,
comerciantes, funcionários públicos e mulheres, moças
casadoiras que exibiam, com muito recato, seus dotes, pelos
salões da época. O sonho e a fuga da realidade agradavam
muito a tais leitores, que buscavam distração e nada mais.

4. 2. O nacionalismo dos temas e da linguagem

Caetano Veloso, na canção "Língua", poetiza que


Minha pátria é minha língua (VELOSO,C.1992) 52 e José de
Alencar, o maior romancista romântico brasileiro, escreveu:
A língua é a nacionalidade do pensamento como a pátria é a
nacionalidade do povo (ALENCAR, J. v l, p. 210.1964) 53.
Com efeito, a língua é a alma e o maior símbolo de
nacionalidade de um povo. E, de forma especial, os
românticos preocuparam-se muito em "nacionalizar" a
linguagem literária, isto é, em usar cada vez mais na
Literatura a língua portuguesa conforme sua modalidade
falada no Brasil, e não segundo a modalidade falada em
Portugal. A língua era a mesma, é claro, mas havia variações
no uso. Diversas expressões e palavras, além de certos fatos
sintáticos (concordância, regência e colocação de pronomes),
típicos do Brasil, não eram aceitos pelos gramáticos e críticos
literários, porque não estavam de acordo com a norma culta
que vigorava em Portugal, motivo por que, no Romantismo,
52
VELOSO, Caetano. Circulado Vivo. São Paulo. PollyGram. 1992.
53
ALENCAR, José. Obra completa. Rio de Janeiro; José Aguilar.
(1964).
sobretudo com José de Alencar, a linguagem procura
incorporar o elemento nacional: regionalismos, termos
indígenas, expressões e construções do feitio nacional.
O nacionalismo romântico não deixa de ser uma
espécie de individualismo, mas de âmbito coletivo, em
oposição ao universalismo clássico. É uma espécie de
utilização da filosofia do "conhece-te a ti mesmo", não na
visão socrática do racional, mas na visão rousseauniana que
defende o intelecto como uma fonte sublime, que conduz o
homem para fora de si mesmo, para a essência interior do
sentimento, para suas origens e para a liberdade. Este espírito
romântico conduz o homem à valorização da história da
nação, do regional, da flora, da fauna, do mito, do folclore,
dos usos e dos costumes. Daí, a preferência pela temática dos
silvícolas, os primeiros habitantes e os verdadeiros donos da
nação brasileira; a pintura romântica das palmeiras, das
mangueiras e dos sabiás; o retrato do céu de mais estrelas, do
brilho e do calor da terra de mais vidas, mais bosques e mais
amores.
Assim, diante de tendências e influências que
aumentavam a ideia de nacionalidade, a linguagem e os
temas desenharam o retrato de um Brasil, com cores
indígenas e indianistas de Gonçalves Dias ou José de
Alencar. Ambos criaram as mais raras pinturas literárias
nacionais, como uma "Canção do Exílio", um "I-Juca-
Pirama" ou uma Iracema e um O Guarani.

5. O INDIANISMO NO BRASIL

A evolução do Indianismo na literatura brasileira


compreende seis períodos distintos: o quinhentista e barroco,
o arcádico, o romântico, o parnasiano, o modernista e o pós-
modernista.

5. 1. O Indianismo do Quinhentismo e do Barroco

O Indianismo quinhentista-barroco é representado


pela literatura jesuítica, ou melhor, por certos autos do padre
José de Anchieta, escritos em português ou em língua
indígena. Estas peças teatrais são instrumentos de catequese,
que representam o indígena brasileiro com a alma sempre
tentada por fincas diabólicas e sendo salva pela conversão à
fé cristã, mediante ensinamento ou exorcismo. Nesses autos
não há qualquer tentativa de valorização do mito do "bom
selvagem", difundido pelo humanismo do século XVI.
Gregório de Matos também explorou o Indianismo
através das sátiras que fazia aos fidalgos que negavam suas
raízes indígenas. O poema "Aos Principais da Bahia
chamados os Caramurus" 54 é dedicado aos mestiços do
Recôncavo. Gregório de Matos escreve o poema usando uma
linguagem também mestiça: Português, Tupi, Africana. Eis a
poesia tipicamente brasileira, indianista e tropicalista do
poeta baiano:

Há coisa como ver um Paiaiá


Mui prezado de ser Caramuru,
Descendente de sangue de Tatu,
Cujo torpe idioma é cobépá.
(MATOS, G. 1990, p. 99)

54
MATOS, Gregório de. Sátiras. Organização de Angela Maria Dias.
Rio de Janeiro. Agir, 1990.
O vocabulário Tupi domina o texto: Paiaiá
significa Pajé, Piaga ou feiticeiro dos índios; Cobé pá é
dialeto da tribo Cobé, que habitava os arredores da Cidade da
Bahia (Salvador); carimá é bolo feito de mandioca; pititinga é
peixe miúdo; caruru é planta alimentar, comida com peixe e
camarões; marau é mariola, malandro, patife; Maré é nome
de uma ilha do Recôncavo; Pai significa cacique ou, ainda,
pássaro cinzento cujo canto imita o nome.
O poeta explora a marcação tônica dos vocábulos
indígenas (carimá, caruru, caju, Piraguá, Aricobé, Pai,
Passé, aqui, Maré) para reforçar o grito primitivo da raça.Os
vocábulos indígenas refletem, ainda, a condição do
bilinguismo no Brasil, que se manifesta desde o início
colonização, até os nossos dias.

5. 2. O Indianismo do Período Arcádico

O indianismo Arcádico inicia a valorização


literária do índio, com os poemas O Uraguai (1769), 55 de
Basílio da Gama, e Caramuru, de Santa Rita Durão, (1781)
56
nos quais o indígena já aparece como nação, como povo
perseguido e extorquido.
Na obra O Uruguai, Basílio da Gama faz críticas aos
jesuítas e retrata os padres a favor do cativeiro dos índios.
Pelo Tratado de Madri, celebrado entre os reis de Portugal e
de Espanha, as terras ocupadas pelos jesuítas, no Uruguai,
deveriam passar da Espanha a Portugal. Os portugueses
ficariam com Sete Povos das Missões e os espanhóis, com a
Colônia do Sacramento. Sete Povos das Missões era habitada
55
GAMA, Basílio da. O Uraguai. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997.
56
DURÃO, Santa Rita. Caramuru: poema épico do descobrimento da
Bahia. Introdução Ronald Polito. São Paulo: Martins Fontes. 2000.
por índios e dirigida por jesuítas, que organizaram a
resistência à pretensão dos portugueses.
Basílio da Gama narra a luta pela posse da terra,
travada em princípios de 1757, exaltando os feitos do General
Gomes Freire de Andrade. O poema é dedicado a Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, irmão de Sebastião José de
Carvalho - o Marquês de Pombal:
AO ILUSTRÍSSIMO E EXCELENTÍSSIMO
SENHOR CONDE DE OEIRAS

SONETO
Ergue de jaspe um globo alvo e rotundo,
E em cima a estátua de um Herói perfeito;
Mas não lhe lavres nome em campo estreito,
Que o seu nome enche a terra e o mar profundo.

Mostra na jaspe, artífice facundo,


Em muda história tanto ilustre feito,
Paz, Justiça, Abundância e firme peito,
Isto nos basta a nós e ao nosso mundo.

Mas porque pode em século futuro,


Peregrino, que o mar de nós afasta,
Duvidar quem anima o jaspe duro,
Mostra-lhe mais Lisboa rica e vasta,

E o Comércio, e em lugar remoto e escuro,


Chorando a Hipocrisia. Isto lhe basta.
Do autor.
(GAMA, Basílio da. 1997, p. 29)

Combatendo abertamente os jesuítas, o poeta


descreve a luta entre portugueses e espanhóis versus índios e
jesuítas que, instalados nas missões jesuítas – do atual Rio
Grande do Sul - não queriam aceitar as decisões do Tratado
de Madri. Nesse sentido, o poeta apresenta o heroísmo dos
indígenas, apoia com louvor as ações de Marques Pombal
contra os religiosos e expõe os jesuítas como vilões.

O Uraguai é poema mais lírico-narrativo do que


épico, ou uma epopeia que não segue a estrutura formal
clássica da tradição, imposto em língua portuguesa,
conforme Os Lusíadas (1572), de Camões. Portanto, traz
uma nova forma de poema narrativo, que traduz fatos
históricos com abordagens do imaginário e poético.
A obra está dividida em cinco cantos, em versos
decassílabos heroicos e sáficos, brancos, sem estrofação, mas
é possível perceber a sua divisão em partes: proposição,
invocação, dedicatória, narrativa e epílogo. O poeta abandona
a linguagem mitológica, contudo ainda adota o maravilhoso,
apoiado na mitologia indígena.
Segundo Alfredo Bosi:
Basílio era poeta de veia fácil que aprendeu na Arcádia menos o
artifíciodos temas que o desempeno da linguagem e do metro. O
verso branco e o balanço entre os decassílabos heróicos e sáficos
aligeiram a estrutura do poema que melhor se diria lírico-
narrativo do que épico. Nada há no Uraguai que lembre as
rígidas divisões do poema heróico. O princípio, ex-abrupto, traz
ao leitor a matéria mesma do canto:
Fumam ainda nas desertas praias
Lagos de sangue, tépidos e impuros,
Em que ondeiam cadávares despidos,
Pasto de corvos.
É o aqui-e-agora que urge sôbre a sensibilidade de Basílio. O
que ainda se sente e se sabe, a luta que mal terminara entreos
luso-castelhanos e os missionários dos Sete Povos. A quase-
contemporaneidade dos sucessos cantados retira ao poema a au-
ra de mito que cerca a epopéia tradicional, mas dá-lhe a garrado
moderno, imergindo o leitor do tempo nos motivos mais can-
dentes: o jesuitismo, a ação de Pombal, os litígios de fronteiras, a
altivez guerreira do índio .
(BOSI, 1980, p.72) 57

Basílio da Gama rejeitava o belicismo e acreditava


nas ideias pré-liberais que profetizam a Revolução e
anunciavam o idealismo do Romantismo.
O poeta reflete a imagem do “bom selvagem” e faz
apologia da vida natural, avessa à corte, à religião, às
hierarquias dos brancos por meio das personagens : General
Gomes Freire de Andrade (chefe das tropas portuguesas);
Catâneo (chefe das tropas espanholas); Cacambo (chefe
indígena); Sepé (guerreiro índio); Balda (jesuíta
administrador de Sete Povos das Missões); Caitutu (guerreiro
indígena; irmão de Lindóia); Lindóia (esposa de Cacambo);
Tanajura (indígena feiticeira). Cacambo e Sepé poetizam os
grandes heróis desse poema narrativo:
Gentes de Europa, nunca vos trouxera
O mar e o vento a nós. Ah! não debalde
Estendeu entre nós a natureza

57
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo,
Cutrix. 1980.
Todo esse plano espaço imenso de águas.
Prosseguia talvez; mas o interrompe
Sepé, que entra no meio, e diz: Cacambo
Fez mais do que devia; e todos sabem
Que estas terras, que pisas, o céu livres
Deu aos nossos avôs; nós também livres
As recebemos dos antepassados.
Livres as hão de herdar os nossos filhos.
Desconhecemos, detestamos jugo
Que não seja o do céu, por mão dos padres.
(....)
(GAMA, Basílio da. 1997, p. 59)

O inquieto Cacambo achar sossego.


No perturbado interrompido sono
(Talvez fosse ilusão) se lhe apresenta
A triste imagem de Sepé despido,
Pintado o rosto do temor da morte,
Banhado em negro sangue, que corria
Do peito aberto, e nos pisados braços
Inda os sinais da mísera caída.
Sem adorno a cabeça, e aos pés calcada
A rota aljava e as descompostas penas.
Quanto diverso do Sepé valente,
Que no meio dos nossos espalhava,
De pó, de sangue e de suor coberto,
O espanto, a morte! E diz-lhe em tristes vozes:
Foge, foge, Cacambo. E tu descansas,
Tendo tão perto os inimigos? Torna,
Torna aos teus bosques, e nas pátrias grutas
Tua fraqueza e desventura encobre.
Ou, se acaso inda vivem no teu peito
Os desejos de glória, ao duro passo
Resiste valeroso; ah tu, que podes!
E tu, que podes, põe a mão nos peitos
À fortuna de Europa: agora é tempo,
Que descuidados da outra parte dormem.
Envolve em fogo e fumo o campo, e paguem
O teu sangue e o meu sangue. Assim dizendo
Se perdeu entre as nuvens, sacudindo
Sobre as tendas, no ar, fumante tocha;
E assinala com chamas o caminho.
(GAMA, Basílio da. 1997, p. 73)
Sepé, um dos heróis, deixa lição de vida e morte e,
vilões, como Balda armam ciladas para entregar Lindóia e a
força indígena, a Baldeta, seu filho. A morte da índia heroína,
no Canto IV, (que para não se entregar a outro homem,
deixa-se picar por uma serpente) proporcionou celebre cena
poética:

A morte de Lindóia
Este lugar delicioso, e triste,
Cansada de viver, tinha escolhido
Para morrer a mísera Lindóia.

Lá reclinada, como que dormia,


Na branda relva, e nas mimosas flores,
Tinha a face na mão, e a mão no tronco
De um fúnebre cipreste, que espalhava
Melancólica sombra. Mais de perto
Descobrem que se enrola no seu corpo
Verde serpente, e lhe passeia, e cinge
Pescoço e braços, e lhe lambe o seio.
Fogem de a ver assim sobressaltados,
E param cheios de temor ao longe;
E nem se atrevem a chamá-la, e temem
Que desperte assustada, e irrite o monstro,
E fuja, e apresse no fugir a morte.
Porém o destro Caitutu, que treme
Os olhos, em que Amor reinava, um dia,
Cheios de morte; e muda aquela língua,
Que ao surdo vento, e aos ecos tantas vezes
Contou a larga história de seus males.
Nos olhos Caitutu não sofre o pranto,
E rompe em profundíssimos suspiros,
Lendo na testa da fronteira gruta
De sua mão já trêmula gravado
O alheio crime, e a voluntária morte.
E por todas as partes repetido
O suspirado nome de Cacambo.
Inda conserva o pálido semblante
Um não sei quê de magoado, e triste,
Que os corações mais duros enternece.
Tanto era bela no seu rosto a morte!
(GAMA, B. 1997 ,150, 130-160 p. 99)

“A morte de Lindoia”,
de José Maria de Medeiros(1849-1925)

Depois desse episódio, padres e índios fogem da sede,


não sem antes atearem fogo em tudo. Depois o exército entra
no templo.
O último canto apresenta a descrição do Templo, a
perseguição aos índios e a prisão de Balda. O poeta termina a
sua tarefa poética e despede-se, deixando expresso suas
opiniões a respeito dos jesuítas e colocando-os como
responsáveis pelo massacre dos índios pelas tropas luso-
espanholas. Essas opiniões agradavam ao Marquês de
Pombal, o todo-poderoso ministro de D. José I. Nesse mesmo
canto aparece, ainda, a homenagem ao general Gomes Freire
de Andrade que respeita e protege os índios sobreviventes.
Diante do exposto, o poema Basilio da Gama exprime
os insprescidíveis valores encarnados pelos nativos e a
poesia da vida e da morte dos indígenas que, mesmo sendo
obrigados a se curvarem aos pés da Coroa lusa,
permaneceram como criaturas dignas, e continuaram sua
luta, sua fala, sua poesia que canta o que acreditam: a
Natureza e a Liberdade.
O poeta Frei José Santa Rita Durão, no poema épico
Caramuru (1781) apresenta também o índio como tema para
transfigurar os padrões ideológicos que ele acreditava. De
acordo com Alfredo Bosi:

(...) será uma corrente oposta à de Basílio, voltada para o


passado jesuítico e colonial, e em aberta polêmica com o
séculodas luzes:
Poema ordenado a pôr diante dos olhos aos
Libertinos o que a natureza inspirou a homens, que
iviam tão remotos das que êles chamam
"preocupações de espíritos débeis.
(Reflexôes Prévias e Argumento).
Se, pela cópia de alusões à flora brasílica e aos costumes
indígenas, o Caramuru parece dotado de índole mais
nativista do que o Uraguai, no cerne das intenções e na
estrutura, a epopeia de Durão está muito mais distante do
homem americano do que o poemeto de Basílio. O frade
agostinho via os Tupinambás sub specie Theo Logiae, como
almas capazes de ilustrar para os libertinos europeus a
verdade dos dogmas católicos.(BOSI, 1980, p.75)

O poema Caramuru (1781) de Frei José de Santa Rita


Durão é um poema épico, tradicional, nos moldes
camoniano, em Os Lusíadas. Portanto, segue as regras
clássicas de um épico: 10 cantos, estrofes em oitava, rima do
tipo ABABABCC. A narrativa divide-se em Proposição,
Invocação, Dedicatória, Narração e Epílogo.
O assunto do poema é a história de Diogo Álvares
Correia, o Caramuru, que ao chegar à Bahia, se torna chefe
dos índios tupinambás e auxilia na fundação da cidade de
Salvador.

O poeta utiliza um material histórico-cronístico e


transforma em poema épico, sem descumprir a tradição
literária que o século XVIII. Do material de uma possível
crônica, que sempre foi avaliada como forma literária
inferior, Santa Rita Durão ressaltou seu conteúdo histórico e
imaginário, numa forma aceita como superior: a epopeia; e,
ostentou nela, a função didática, a defesa da política de
Estado, as referências históricas permeadas de traços de obra
de arte que transportasse o exemplar de formação moral e
cívica, para aquela época em o Brasil era uma “uma unidade
geográfica formada por províncias estranhas umas às outras”
(VILLALTA, 2000, p. 120). 58
O poeta percorre os três estágios da vida do herói: o
naufrágio, a vitória sobre os índios, a viagem de Caramuru à
França, o regresso ao Brasil e o seu reconhecimento pelos
serviços prestados à coroa. É importante destacar que Santa
Rita Durão apresenta um Pré-romantismo ao poetizar o
relacionamento entre Diogo – o Caramuru (o filho do trovão,
assim aclamado, após disparar seu mosquete durante uma
caçada) e bela Paraguaçu (personagem histórica, sua esposa
e filha do cacique Taparica).
Outras personagens da história são Moema, com
quem Diogo teve um relacionamento e os chefes indígenas
Gupeva e Sergipe. A história lendária do “Filho do Trovão”
narra que Moema e também outras índias, por ciúmes, se
jogaram ao mar para acompanhar Caramuru quando este
partia para a França com Paraguaçu.
Nas terras francesas, Paraguaçu recebeu o batismo
em Santo-malos, com o nome de Catarina (Katherina Du
Bresil) em homenagem a Catherine dês Granches, esposa de
Jacques Gartier.
Catarina Paraguaçu e Caramuru tiveram vários filhos
e filhas, Ana, Genebra, Apolônia, Graça, Gabriel, Gaspar e
Jorge Álvares, que casaram com moças da corte que vieram
com Martim Afonso de Souza, dos quais descendem as mais
importantes famílias da aristocracia baiana. Caramuru foi
sepultado no Mosteiro de Jesus, dos jesuítas, em Salvador,
onde depois foi enterrada a sua mulher em Paraguaçu.
Frei José Santa Rita Durão, em Caramuru, realizou
uma epopeia didático-moralista e apresenta o índio do ponto
58
VILLALTA, Luiz Carlos. 1798-1808: o império luso-brasileiro
e os brasis. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
de vista da catequese: Diogo é retratado como uma
personagem temente a Deus, herói casto, bom. Sua
religiosidade vai servir para ter domínio, amansar e tentar
fazer a transformação do índio que, considerado selvagem,
não era respeitado como humano.
Numa visão pré-romântica, que lembra o índio
idealizado de José de Alencar, Paraguaçu é descrita com
traços brancos, e sabe falar português:
Paraguaçu gentil (tal nome teve)
Bem diversa de gente tão nojosa,
De cor tão alva como a branca neve,
E donde não é neve, era de rosa;
O nariz natural, boca mui breve,
Olhos de bela luz, testa espaçosa;
De algodão tudo o mais, com manto espesso,
Quanto honesta encobriu, fez ver lhe o preço.
(DURÃO, Santa Rita. 2000, p. 42)

Dormindo estava Paraguaçu formosa,


Onde um claro ribeiro a sombra corre;
Lânguida está, como ela, a branca rosa,
E nas plantas com a calma o vigor morre;
Mas buscando a frescura deleitosa
De um grão maracujá, que ali discorre,
Recostava-se a bela sobre um posto,
Que, encobrindo-lhe o mais, descobre o rosto.
3.
Respira tão tranquila, tão serena,
E em langor tão suave adormecida,
Como quem livre de temor, ou pena,
Repousa, dando pausa à doce vida.
Ali passar a ardente sesta ordena
O bravo Jararaca, a quem convida
A frescura do sítio e sombra amada,
E dentro d’água a imagem da latada
(DURÃO, Santa Rita. 2000, p. 69)

Segundo Antonio Cândido:


Como se sabe, a finalidade expressa do Caramuru é
descrever o inicio da colonização da Bahia, por obra sobretudo
de Diogo Álvares Correia e sua mulher, Paraguaçu.
Simultaneamente há um desígnio mais importante para o poeta:
a redenção do índio pela conversão. Mas na perspectiva de hoje
o resultado final se traduz no choque das culturas, que
caracteriza o processo colonizador, justificado pelos dois
desígnios. Em obra escrita por um padre a partir dessas
premissas, seria de esperar que a catequese ocupasse lugar
dominante na ação presente e na antevisão do futuro, que
constituem, com a exposição das tradições indígenas, as três
dimensões do poema. Mas ela acaba ficando em segundo plano,
porque, embora muito importante no começo, quando Diogo
expõe a sua religião e o poeta efetua uma assimilação entre ela
e as crenças locais, embora invocada a todo momento, o que
avulta como ação (elemento fundamental numa epopeia) é a
guerra. A antevisão da história do Brasil, que Paraguaçu tem
nos Cantos VIII e IX, deveria mostrar a atividade dos jesuítas
(glorificados de passagem nalgumas estrofes finais), mostrando
o traçado geral da ação missionária. No entanto é constituída
maciçamente por guerras e combates. Contra hereges, é
verdade, tornando-se, portanto, uma forma extrema de
militância para preservar a religião católica. Mas de qualquer
modo, guerra - e que guerra! (...) No começo do Canto IV,
quando algumas estrofes remansosas formam por antítese o
introito ao tumulto marcial que dali por diante ocupará dois
cantos. O guerreiro Jararaca vê Paraguaçu dormindo e se
apaixona por ela, mas (como é narrado a seguir) o pai não
consente que a tome por mulher, e nem ela o deseja, porque está
predestinada a casar com o futuro Diogo; o chefe índio então se
enfurece e promove a grande guerra, para a qual mobiliza 138
000 guerreiros de várias tribos — o que permite ver como o
poeta, quando se tratava de combates, abandonava a realidade
numérica das suas fontes e entrava na escala ariostesca,
próxima dos romances de cavalaria. (CÂNDIDO, Antônio,
1985, p. 14) 59

A história de Caramuru oscila entre a ficção e a


realidade e não há como negar que é uma epopeia
colonialista, pois proclama a colonização dos índios, que eles
chamavam de civilização ou humanização, ação que
repudiamos hoje, na visão ativista de luta contra essas ideias
que, infelizmente ainda se fazem presentes na
contemporaneidade.
Diante do exposto, numa visão contrapostística entre
Caramuru do O Uraguai, o que difere os dois poemas
indianistas do Arcadismo (além dos recursos literários e
pela linguagem) refere-se à figura do índio, pois apesar de
ambos terem personagens indígenas, no Uraguai – o índio é
visto como uma figura heroica e representativa dos valores da
liberdade e da vida natural; enquanto que em Caramuru – o
índio é tratado como um objeto de colonização e catequese. O
índio é abordado em Caramuru como inferior, ao contrário
do O Uraguai, pois, para Basílio, o índio é vítima da perfídia
escravizante dos jesuítas.
Além disso, outro aspecto que diferem as obras refere-
se ao modo como seus autores veem a figura do Marquês de
Pombal: no Uraguai Basílio faz elogios e honras ao Marquês
porque este perseguia os missionários. Em Caramuru, o
período pombalino é visto como uma época de horrores.
Enquanto em O Uraguai Basílio utiliza o aqui e agora para
narrar os acontecimentos, no poema Caramuru Santa Rita
Durão retoma a acontecimentos históricos. No entando, nas
duas obras, há a presença de momentos líricos, como a
morte de Lindóia no O Uraguai e a morte de Moema no
59
CÂNDIDO, Antônio.Na sala de aula. São Paulo: Ed. Ática, 1985.
Caramuru. E, sem dúvida, o índio, a natureza e história do
Brasil aparecem como o grande tema da poesia.

5. 3. O Indianismo do Período Romântico

O Indianismo romântico tem como marca a busca


das origens. Devido à ausência de um passado medieval, o
indianismo no Brasil foi um dos elementos de sustentação do
sentimento nacionalista, acentuado com a proximidade da
nossa independência.
Foi com o Romantismo que o tema do índio se
desenvolveu e alcançou significação. Neste período estético,
a manifestação de pensamento denominada Indianismo foi
evidenciada e apresentada como modismo. Tal expressão, até
hoje, é empregada mais em referência ao período romântico.
Na literatura brasileira, a tendência universal do
Romantismo de remexer no passado nacional e rebuscar nos
escombros medievais o que melhor aí ficara da alma e da
tradição de cada povo, encontraria no Indianismo seu
correspondente. A Idade Média, para os povos americanos,
teria de ser, pelo menos poeticamente, a civilização indígena
anterior à descoberta, já enriquecida pelo mito do "bom
selvagem".
E, se um dos maiores problemas do país, àquela
altura, era o de afirmar frente a Portugal o espírito nacional
brasileiro, graças ao qual a jovem nação queria ser
independente, não só do ponto de vista político, mas também
do ponto de vista cultural, seria naturalmente através da
valorização poética das raças indígenas, da exaltação de sua
cultura, que o Brasil alcançaria aquele nível mínimo de
orgulho nacional, de que carecia para uma classificação em
face do europeu. O negro, no caso, não se prestava ao papel
de valorização da nacionalidade; e não somente porque
representava o trabalho, numa sociedade em que o trabalho
era motivo de classificação social, mas porque, não sendo
filho da terra, para ela tinha vindo escravizado e aviltado. O
índio, ao contrário, era a população vinculada à terra, era o
dono da terra, lutava para não ser escravo e não representava
o trabalho; era americano e queria ser livre. Era o que
convinha, sob medida, ao idealismo romântico que criou com
base mais lendária do que histórica, o mundo poético e
heróico das raízes americanas da jovem nacionalidade.
Esse período romântico do indianismo no Brasil
define-se a partir das “Poesias americanas", inseridas em
Primeiros Cantos (1946) de Gonçalves Dias; recebe modesta
contribuição de Gonçalves de Magalhães, com A
Confederação dos Tamoios (1856), e adquire toda a força de
exaltação nacional com o romance de José de Alencar,
passando o indianismo, então, a ser uma espécie de moda
literária, pois todos os escritores da época se sentiram
obrigados a incluir o tema em suas preocupações.
O indianismo romântico gonçalvino, do ponto de
vista temático, idealizou o indígena, ressaltando seu
sentimento de honra e nobreza de caráter; descreveu o índio
como herói, procurando torná-lo símbolo de toda uma raça,
capaz de categorizar o brasileiro em face do europeu; exaltou
a natureza em que viviam os selvagens e procurou interpretar
a psicologia do índio brasileiro, temática que será analisada
com detalhes e textos ilustrativos mais adiante.

5.3.1 O Inidanismo de José Martiniano de Alencar


José de Alencar 60 é considerado o escritor de maior
expressão do indianismo romântico, ao lado de Gonçalves
Dias.
Os romances de Alencar são poemas em prosa,
especialmente Iracema, que se notabilizou pela poeticidade
da prosa, rítmica, sonora e metafórica.
O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874)
romances históricos de José de Alencar, constituem a trilogia
indianista do autor. Os três romances revelam a identidade
brasileira, dentro dos padrões do Romantismo, com a
valorização da natureza, da Pátria, portanto o nacionalismo,
do índio como herói, do contato do índio branco o
europeu colonizador, dos temas históricos, do regate das
lendas e do amor.
O romance O Guarani,61 publicado em formato de
folhetim para o Diário do Rio de Janeiro durante o ano de
1857, narra uma história de amor entre um índio e a filha de
um fidalgo português D. Antônio de Mariz que viera às terras
brasileiras recebidas por Mem de Sá, um dos primeiros
administradores de terra da colônia. Dividido em quatro
partes: Os Aventureiros, Peri, Os Aimorés e Catástrofe, o
romance retorna ao ano de 1604, época em que os reinos de
Portugal e Espanha ainda disputavam terras no novo
continente.
A trama inicia às margens do rio Paquequer, um
afluente do rio Paraíba, onde está localizada a residência
fortificada do fidalgo D. Antônio de Mariz, que vive com sua
60
José Martiniano de Alencar (Messejana (município de Fortaleza), 1
de maio de 1829 - Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1877)
61
ALENCAR, José de. O Guarani. Edição crítica Instituto
Nacional do Livro preparada por Darcy Damasceno. São Paulo,
Ática, 1992.
esposa, Dona Lauriana, seu filho Diogo, sua filha Cecília, sua
sobrinha Isabel e o índio Peri. Na propriedade viviam
também aventureiros que participavam de expedições, entre
eles, Loredano, o ambicioso italiano que, mais adiante, torna-
se o vilão do romance. Outro personagem importante para a
trama é Álvaro de Sá, um jovem nobre de confiança do
fidalgo português. No final do livro está registrado o célebre
epílogo:
A cúpula da palmeira, em que se achavam Peri e Cecília,
parecia uma ilha de verdura banhando-se naságuas da corrente;
as palmas que se abriam formavam no centro um berço mimoso,
onde os dois amigos, estreitando-se, pediam ao céu para ambos
uma só morte, pois uma só era a sua vida.
Cecília esperava o seu último momento com a sublime
resignação evangélica, que só dá a religião do Cristo; morria
feliz; Peri tinha confundido as suas almas na derradeira prece que
expirara dos seus lábios. (...)
A água subindo molhou as pontas das largas folhas da
palmeira, e uma gota, resvalando pelo leque, foi embeber-se na
alva cambraia das roupas de Cecília.
A menina, por um movimento instintivo de terror, conchegou-
se ao seu amigo; e nesse momento supremo, em que a inundação
abria a fauce enorme para tragá-los, murmurou docemente:
— Meu Deus!... Peri!...
Então passou-se sobre esse vasto deserto de água e céu uma
cena estupenda, heroica, sobre-humana; um espetáculo
grandioso, uma sublime loucura.
Peri alucinado suspendeu-se aos cipós que se entrelaçavam
pelos ramos das árvores já cobertas de água, e com esforço
desesperado cingindo o tronco da palmeira no seus braços hirtos,
abalou-o até as raízes. (...)
Cecília abriu os olhos, e vendo seu amigo junto dela, ouvindo
ainda suas palavras, sentiu o enlevo que deve ser o gozo da vida
eterna.
- Sim?... murmurou ela: viveremos!... lá no céu, no seio de Deus,
junto daqueles que amamos!... (...)
Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lânguida reclinou
a loura fronte.
O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face
(ALENCAR, José de.1992. 291/292)
O Guarani, além de trazer um fundo histórico e trama
do amor entre o índio Peri e Cecília (moça loira, de olhos
azuis, e dona de uma alma generosa e inocente) apresenta o
selvagem Peri, como um herói nacional, mas com
características do herói europeu das novelas de cavalaria.
Assim, José de Alencar deu a Peri, características fantasiosas,
levando-o a ter identidades e aspectos que fogem aos
paradigmas da identidade nativista e nacionalista do Brasil.
O índio Peri adquiriu propriedades peculiares da bravura, da
coragem e da determinação, nos moldes do cavalheiro
medieval.
Por outro lado, o protagonista Peri é imaginado
dentro do ideal do "bom selvagem", do filósofo francês Jean-
Jacques Rousseau, (1712-1778) isto é, o índio bom e
incorruptível por estar cada vez mais distante da civilização.
Peri é a idealização do herói belo, justo e bom.
No seu livro Contrato social, (1762), 62 Rousseau
afirma “O homem nasceu livre, e em toda parte se encontra
sob ferros”(ROUSSEAU, 1987, p.22). Nesse sentido, para o
filósofo o homem é bom por natureza, a criação de leis, na
verdade, tem outros motivos, a saber, a propriedade privada,
que, como aponta no Discurso sobre a origem da
desigualdade (1754), 63 não é apenas a razão por essa

62
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social . In: Obras.
Coleção “Os Pensadores”. Vol I. Trad. de Lourdes Santos
Machado, São Paulo. Nova Cultural. 1987.
63
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os
fundamentas da desigualdade entre as homens. In: Obras. Coleção
desigualdade, mas também pela criação das leis que servem
para proteger a propriedade.
O Guarani se mostra mais complexo do que os
demais romances de José de Alencar. Nele, há dois principais
conflitos: entre os índios e os portugueses que se
estabeleceram nas terras e entre os admiradores de Cecília
(Peri, Álvaro e Loredano), que estavam interessados na mão
da moça.
O segundo romance indianista de José de Alencar,
Iracema (1865) 64 (considerado o romance ícone do
indianismo romântico) é uma narrativa de fundação. A
narrativa tem início quando Martim, um português
responsável por defender o território brasileiro de outros
invasores europeus, perde-se na mata, em localidade que hoje
corresponde ao litoral do Ceará.
A personagem Iracema, uma índia tabajara que então
repousava entre as árvores, assusta-se com a chegada do
estranho e dispara uma flecha contra o estrangeiro Martim.
Ele não reage à agressão por ter sido alvejado por uma
mulher, e a índia percebe que feriu um inocente.
Como uma ação pacífica, Iracema, a selvagem, conduz
o moço ferido para sua aldeia do seu pai - Araquém, o
pajé da tribo. A cena de abertura do romance é um poema em
prosa e exemplifica o jogo poético de ritmo e imagens
metafóricas, em parágrafos curtos, como se fossem versos
longos e sonoros:

Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a


jandaia nas frondes da carnaúba;

“Os Pensadores”. Vol. II, Trad. de Lourdes Santos Machado, São


Paulo. Nova Cultural. 1988.
64
ALENCAR, José de. Iracema. São Paulo: FTD, 1996
Verdes mares que brilhais como líquida esmeralda aos raios do
Sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de
coqueiros.
Serenai verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa,
para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas.
Onde vai a afouta jangada, que deixa rápida a costa cearense,
aberta ao fresco terral a grande vela?
Onde vai como branca alcíone buscando o rochedo pátrio nas
solidões do oceano?
Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando
veloce, mar em fora;
Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue
americano; uma criança e um rafeiro que viram a luz no berçodas
florestas, e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem.
A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante, que ressoa
entre o marulho das vagas:
- Iracema!...
O moço guerreiro, encostado ao mastro, leva os olhos presos na
sombra fugitiva da terra; a espaços o olhar empanado por tênue
lágrima cai sobre o jirau, onde folgam as duas inocentes criaturas,
companheiras de seu infortúnio.
Nesse momento o lábio arranca d’alma um agro sorriso.
Que deixara ele na terra do exílio?
Uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci, à
calada da noite, quando a Lua passeava no céu argen-teando os
campos, e a brisa rugitava nos palmares. (ALENCAR, José de.
Iracema. 1996, p. 19/20)

O estrangeiro que foi recebido com hospitalidade na


aldeia, desagradou Irapuã, guerreiro tabajara apaixonado por
Iracema. E, com o tempo, Iracema e Martim se
aproximam. Contudo, Iracema tem um papel importante na
tribo: é uma virgem consagrada a Tupã, guardadora do
segredo da jurema, um licor sagrado, que levava ao êxtase os
índios tabajaras.
Apesar do impedimento, a índia quebra o voto de
castidade, o que significa uma condenação à morte. Por esse
motivo, Martim e perseguido por Irapuã e seus homens.
Iracema e Martim fogem da aldeia. Juntam-se a Poti,
índio pitiguara, a quem Martim tratava como irmão.
Os tabajaras, liderados por Irapuã e Caiubi, o irmão de
Iracema, perseguem os fugitivos. Quando eles encontram os
apaixonados Caiubi e Irapuã agridem violentamente Martin, e
Iracema luta contra a tribo tabajara que, vencida, bate em
retirada.
Refugiados numa praia, Martim constrói uma cabana e
ali, enquanto o amado fiscaliza as costas, em expedições a
mando do governo português, Iracema espera Martins. Ele,
constantemente tomado é pela melancolia e nostalgia de sua
terra natal, o que entristece Iracema, que passa a pensar que
sua morte seria, para ele, uma libertação.

Iracema (1884), por José Maria de Medeiros (1849-1925)

Iracema descobre-se grávida e Martim vai ajudar Poti,


a defender a tribo pitiguara, que está sob ataque. A selvagem
tem o filho sozinha e batiza a criança de Moacir, o nascido de
seu sofrimento.
Ela sofreu muito e entra em profunda depressão: o leite
de Iracema seca e quando ela está muito fraca, Martim chega
a tempo da índia entregar-lhe o filho e morre em seguida.

O cristão moveu o passo vacilante. De repente, entre os ramos


das árvores, seus olhos viram, sentada à porta da cabana,
Iracema com o filho no regaço e o cão a brincar. Seu coração o
arrastou de um ímpeto, e toda a alma lhe estalou nos lábios:
- Iracema!...
A triste esposa e mãe soabriu os olhos, ouvindo a voz amada.
Com esforço grande, pôde erguer o filho nos braços e apresentá-
lo ao pai, que o olhava extático em seu amor.
- Recebe o filho de teu sangue. Chegastes a tempo; meus seios
ingratos já não tinham alimento para dar-lhe!
Pousando a criança nos braços paternos, a desventurada mãe
desfaleceu como a jetica se lhe arrancam o bulbo. O esposo viu
então como a dor tinha murchado seu belo corpo; mas a
formosura ainda morava nela, como o perfume na flor caída do
manacá.
Iracema não se ergueu mais da rede onde a pousaram os
aflitos braços de Martim. O terno esposo, em que o amorre
nascera com o júbilo paterno, a cercou de carícias que encheram
sua alma de alegria, mas não a puderam tornar à vida: oestame
de sua flor se rompera.
- Enterra o corpo de tua esposa ao pé do coqueiro que tu
amaste. Quando o vento do mar soprar nas folhas, Iracema
pensará que é tua voz que fala entre seus cabelos.
O lábio emudeceu para sempre; o último lampejo despediu-
se dos olhos baços.
(ALENCAR, José de. Iracema 1996, p.87)
Ubirajara, publicado em (1874), 65 e terceira obra de
temática indianista do de Alencar é também uma lenda
transformada em romance pelo escritor cearense.
Logo no início, o autor faz uma advertência a seus
leitores:
ADVERTÊNCIA
Este livro é irmão de Iracema.
Chamei-lhe de lenda como ao outro. Nenhum título responde
melhor pela propriedade, como pela modéstia, às tradições da
pátria indígena.
Quem por desfastio percorrer estas páginas, se não tiver
estudado com alma brasileira o berço de nossa nacionalidade, há
de estranhar em outras coisas a magnanimidade que ressumbra no
drama selvagem a formar-lhe o vigoroso relevo.
Como admitir que bárbaros, quais nos pintaram os indígenas,
brutos e canibais, antes feras que homens, fossem suscetíveis desses
brios nativos que realçam a dignidade do rei da criação?
Os historiadores, cronistas e viajantes da primeira época, senão
de todo o período colonial, devem ser lidos à luz de uma crítica
severa. É indispensável sobretudo escoimar os fatos comprovados,
das fábulas a que serviam de mote, e das apreciações a que os
sujeitavam espíritos acanhados, por demais imbuídos de uma
intolerância ríspida.
Homens cultos, filhos de uma sociedade velha e curtida por
longo trato de séculos, queriam esses forasteiros achar nos
indígenas de um mundo novo e segregado da civilização universal
uma perfeita conformidade de ideias e costumes.Não se lembravam,
ou não sabiam, que eles mesmos provinham de bárbaros ainda mais
ferozes e grosseiros do que os selvagens americanos.
Desta prevenção não escaparam muitas vezes espíritos graves e
bastante ilustrados para escreverem a história sob um ponto de
vista mais largo e filosófico. (...) ALENCAR, José de. Ubirajara.
1994, p. 15).

65
ALENCAR, José de. Ubirajara São Paulo: FTD, 1994.
O narrador apresenta para seu leitor que que as
informações que temos até hoje sobre os indígenas
provinham ou dos jesuítas ou dos aventureiros que chegavam
no novo continente e que, nem sempre, a linguagem utilizada
para descrevê-los estava de acordo com os costumes dos
indígenas.
Por isso, Alencar critica a visão destes primeiros
viajantes e religiosos, pois davam ao indígena um caráter
meramente bárbaro, sem levar em consideração o aspecto
sentimental e cultural da vida dos nativos. Escreve Alencar:

As coisas mais poéticas, os traços mais generosos e


cavalheirescos do caráter dos selvagens, os sentimentos mais
nobres desses filhos da natureza são deturpados por uma
linguagem imprópria, quando não acontece lançarem à conta
dos indígenas as extravagâncias de uma imaginação
desbragada.
Releva ainda notar que duas classes de homens forneciam
informações acerca dos indígenas a dos missionários e a dos
aventureiros. Em luta uma com outra, ambas se achavam de
acordo nesse ponto, de figurarem os selvagens como feras
humanas. Os missionários encareciam assim a importância da
sua catequese; os aventureiros buscavam justificar-se da
crueldade com que tratavam os índios.
Faço estas advertências para que ao lerem as palavras
textuais dos cronistas citados nas notas seguintes não se deixem
impressionar por suas apreciações muitas vezes ridículas. É
indispensável escoimaro fato dos comentos de que vem
acompanhado, para fazer uma ideia exata dos costumes e índole
dos selvagens. (ALENCAR, José de. Ubirajara. 1994, p.
16)

Diante do exposto, Ubirajara é considerado um


romance "irmão" da obra Iracema, embora narre eventos
acontecidos antes da vinda dos europeus para o Brasil. Logo,
os conflitos acontecem entre os povos indígenas, sem a
intervenção dos colonizadores.
O herói é Jaguarê, um jovem caçador que precisa
combater um inimigo para conseguir o título de guerreiro.
Porém, encontra Araci, índia tocantim e filha do chefe da
tribo inimiga, que o convence a lutar contra índios de sua
tribo para disputar seu amor.
- A filha dos tocantins tem no pé as asas do beija-flor; mas a
seta de Jaguarê voa como o gavião. Não te assustes, virgem das
florestas; tua formosura venceu o ímpeto de meu braço e apagou
a cólera no coração feroz do caçador. Feliz o guerreiro que te
possuir.
- Eu sou Araci , a estrela do dia, filha de Itaquê, pai da
grande nação tocantim. Cem dos melhores guerreiros o servem
em sua cabana para merecer que ele o escolha por filho. O mais
forte e valente me terá por esposa. Vem comigo, guerreiro
araguaia, excede aos outros no trabalho e na constância, e tu
romperás a liga de Araci na próxima lua do amor.
- Não, filha do sol; Jaguarê não deixou a taba de seus pais
onde Jandira lhe guarda o seio de esposa, para ser escravo da
virgem. Ele vem combater e ganhar um nome de guerra que
encha de orgulho a sua nação. Torna à taba dos tocantins e dize
aos cem guerreiros cativos de teu amor, que Jaguarê, o mais
destemido dos caçadores araguaias, os desafia ao combate.
- Araci vai, pois assim o queres. Se fores vencido, ela
guardará tua lembrança, pois nunca seus olhos viram mais belo
caçador. Se fores vencedor, será uma alegria para a virgem do
sol pertencer ao mais valente dos guerreiros. (ALENCAR,
José de. Ubirajara. 1994, p. 21)

O jovem índio luta contra o tocantim Pojucã e


aprisiona-o com sua lança e deixa como esposa a jovem
Jandira, que era sua noiva. A índia foge para a floresta. A
partir de então, Jaguarê torna-se Ubirajara, o senhor da lança,
e procura Araci para desposá-la. Compete novamente com
demais pretendentes e ganha o direito de se unir com Araci.
Descobre-se que Pojucã e Araci são irmãos e o jovem
índio o liberta de seu cativeiro para que lute ao lado de sua
tribo em uma guerra iminente entre as duas tribos. Porém,
Ubirajara consegue não apenas reconciliar as duas tribos mas,
também, as une, em uma nova e grande tribo nomeada
Ubirajara, em seu nome e, como prêmio, desposa as duas
índias, Araci e Jandira.
UNIÃO DOS ARCOS
O chefe dos chefes ordenou que três guerreiros araguaias e
três guerreiros tocantins ligassem com ofio do crautá as hastes
dos dois arcos. Quando o arco de Camacã e o arco de Itaquê não
fizeram mais que um, Ubirajara o empunhou namão possante e
mostrou-o às nações- Abarés, chefes, moacaras e guerreiros de
minhas nações, aqui está o arco de Ubirajara, o chefedos grandes
chefes. Suas flechas são gêmeas, como as duas nações, e voam
juntas. (...)
Ubirajara escolheu mil guerreiros araguaias e mil guerreiros
tocantins, com que saiu ao encontro dos tapuias. (...)
Jandira é irmã de Araci, tua esposa. Ubirajara é o chefe dos
chefes, senhor do arco das duas nações. Ele deve repartir seu
amor por elas, como repartiu a sua força. A virgem araguaia pôs
no guerreiro seus olhos de corça- Jandira é serva de tua esposa;
seu amor a obrigou a querer o que tu queres. Ela ficará em tua
cabana para ensinar a tuas filhas como uma virgem araguaia ama
seu guerreiro. Ubirajara cingiu ao peito, com um e outro braço, a
esposa e a virgem.
-Araci é a esposa do chefe tocantim; Jandira será esposa do
chefe araguaia; ambas serão as mães dos filhos de Ubirajara, o
chefe dos chefes, e o senhor das florestas.
As duas nações, dos araguaias e dos tocantins, formaram a
grande nação dos Ubirajaras, que tomou o nome do herói. Foi
esta poderosa nação que dominou o deserto. Mais tarde, quando
vieram os caramurus, guerreiros do mar, ela campeava ainda nas
margens do grande rio. (ALENCAR, José de. Ubirajara.
1994, p. 109/110)

Diante do exposto, Peri, (de O Guarani, 1857),


Iracema (de Iracema, 1865) e Ubirajara, (de Ubirajara
1874), os três protagonistas indígenas de Alencar,
exrimem a base da brasilidade. O romancista consubstancia,
em cada narrativa, uma identidade político-cultural da
miscigenação, entre o índio e o branco (europeu)
metaforizada na trama de cada romance e em cenas
simbólicas.
O beijo final de Peri e Cecília, em O Guarani, registra
o inicio de um Rio de Janeiro diferente da simples fundação
colonial operada por Mem de Sá e D. António de Mariz; o
nascimento de Moacir, (filho da dor e o primeiro brasileiro) a
criança fruto da união de Iracema com Martim Soares
Moreno e marca a fundação do Estado do Ceará; e, a união
dos arcos, em Ubirajara, simboliza a fusão das nações dos
Tocantins e dos Araguaias, expressa pelo casamento de
Ubirajara com Araci e Jandira.
Deste modo, sem dúvida, Alencar é grande fabulador
da nacionalidade do Brasil desenvolvida dentro do principio
mitopoético do imaginário, em que a história dos selvagens
se interligam com a história dos colonizadores e a ficção e
realidade se entrecruzam em lendas, metáforas e imagens,
num jogo de habilidade inventiva e literária.
Em síntese, o romancista José de Alencar, numa
linguagem poética e singular, constrói um universo próprio,
de transfiguração, de simbolismos poéticos e míticos, que
conflui, em muitos momentos, para uma factualidade
histórica de valores inerentes ao imaginário nacional, o qual
estava propenso a uma idealidade fantasiosa só concebida
dentro dos princípios do Romantismo.

5. 4. O Indianismo do Período Parnasiano

No período parnasiano, o tema do indianismo, tendo


perdido muito da significação que lhe emprestaram os
românticos, não figura entre a temática da estética parnasiana
brasileira. Porém, autores como Guimaraens Júnior, Machado
de Assis e Olavo Bilac fizeram do índio motivo para alguns
textos ou reflexões. O livro de poemas de Machado de Assis
denominado Americanas canta com maestria o indígena:
Herói lhe chamam
Quantos o hão visto no fervor da guerra
Medo e morte espalhar entre os contrários
E avantajar-se aos certeiros golpes
Aos mais fortes da tribo. O arco e a flecha
Desde a infância os meneia ousado e afoito,
Cedo aprendeu nas solitárias brenhas
A pleitear às feras o caminho.
A força opõe à força a astúcia à astúcia
Qual se da onça e da serpente houvera
Colhido as armas. Traz ao colo os dentes
Dos contrários vencidos. Nem dos anos
O número supera os das vitórias;
Tem no espaçoso rosto a flor da vida,
A juventude, e goza entre os mais belos
De real primazia. A cinta e afronte
Azuis, vermelhas plumas alardeiam,
Ingênuas galas do gentio inculto.
(ASSIS, M. 1993. v.III. p. 94)
Americanas 66, de Machado de Assis, publicado em
1875 é um livro de poemas indianistas. Nos versos
machadianos o índio aparece como grande herói e guerreiro.
O silvícola é um ser que silenciosas/ lágrimas lhe espremeu
dos olhos negros/ Esta lembrança de futuros males. (...)
(ASSIS, M. 1993. VIII p.97). Em Americanas, encontramos
um Machado de Assis de tonalidade romântica idealizando o
índio e traduzindo seus sentimentos e dores.

5. 5. Indianismo do Período Modernista

Com o movimento modernista de 1922, uma espécie


de volta às origens, no sentido de nacionalizar a literatura
brasileira e redescobrir o Brasil, teria fatalmente de incluir o
índio em sua temática, embora sem o idealismo e o exagero
dos românticos. O indianismo do Modernismo apresenta o
silvícola como uma figura caricatural e mesmo anedótica,
um Macunaíma, um herói mau caráter, completamente oposto
do super-herói romântico “I-Juca-Pirama”, símbolo de boa
índole e coragem. Em Macunaíma, o herói sem nenhum
caráter , publicado em 1928, de Mário de Andrade, o anti-
herói, é um índio bem negro que ficou branco, loiro de olhos
azuizinhos, 67:

Quando o herói saiu do banho estava branco louro e de


olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E
ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho
da tribo retinta dos Tapanhumas.

66
ASSIS, Machado. Obra completa. V. III.; Rio de Janeiro. José Aguilar,
1993.
67
ANDRADE, Mário. Macunaima (O herói sem nenhum caráter), S.
Paulo, Martins, 1978.
(ANDRADE, Mário. 1978, p.48)

Macunaíma é um símbolo anedótico das três raças


do Brasil, uma síntese do povo brasileiro, um Indianismo
modernista, portanto que mescla o índio com as outras etnias
que estão na origem do tipo brasileiro.
Menotti del Picchia, em 1917, um pouco antes da
Semana de Arte Moderna, escreveu um poema sertanista,
Juca Mulato, no qual transfere para o herói mulato as
qualidades e as virtudes do herói índio do Romantismo. O
herói de Juca Mulato é um símbolo da nacionalidade e
resgata o nacionalismo ufanista. Com este resgate nasceu a
revalorização do tema do indianismo nas diversas correntes
modernistas como a do grupo Verde Amarelismo ou "Anta",
que criticava o "nacionalismo afrancesado" do Pau-Brasil de
Oswald de Andrade68. O grupo Verde Amarelismo elegeu a
anta e passou a idolatrar o tupi. A obra Martim Cererê
(1928), de Cassiano Ricardo, ilustra bem as ideias do
movimento.
Como resposta ao nacionalismo ufanista, do Anta,
surgiu um nacionalismo bem radical: O Movimento
Antropofágico liderado por Oswald de Andrade. No seu

68
ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. São Paulo: Globo: Secretaria de
Estado da Cultura, 1990.
livro Manifesto Antropófago (1928) 69 o poeta determinava o
seguinte:

Só a antropofagia nos une. Socialmente.


Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de
todos os individualismos, de todos os coletivismos. De
todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupy or not tupy that is the question.
(...)
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval.
O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt.
Ou figurado nas óperas de Alencar cheio de bons
sentimentos portugueses.
(...)
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o
Brasil tinha descoberto a felicidade.
Contra o índio de tocheiro. O índio filho de
Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D.
Antônio de Mariz..
(...)
(ANDRADE, O. 1990. p. 47/51)

69
ANDRADE, Oswald de. A Utopia antropofagica. São Paulo: Globo,
1990.
*Em 11 de janeiro de 1928, a pintora Tarsila do Amaral (1886-1973) acordou ansiosa. Era
aniversário de seu marido, o escritor Oswald de Andrade (1890-1954), e ela tinha preparado
uma surpresa: um quadro de 85 centímetros por 73 centímetros, pintado em segredo nos
últimos meses. Com seu jeito afobado e verborrágico, Oswald nem deixou que artista
explicasse a obra. Foi logo elogiando, dizendo que era a coisa mais incrível que ela já tinha
feito. "É excepcional este quadro", dizia ele. "É o homem plantado na terra." No mesmo dia,
Oswald mostrou o presente para um de seus amigos, o poeta Raul Bopp (1898-1984). E
juntos começaram a enxergar ali, naquela figura enigmática, um índio canibal, um homem
antropófago, aquele que iria devorar a cultura para se apossar dela e reinventá-la. Tarsila
empolgou-se com a interpretação e correu para um velho dicionário de tupi-guarani. Ali
encontrou as palavras "aba" e "poru" - "homem que come". Estava batizado aquele que se
tornaria o mais valioso quadro da arte brasileira, Abaporu.
Mas o que seria apenas um presente de aniversário de uma artista para seu marido acabou
transcendendo qualquer relacionamento para se tornar um dos quadros mais famosos do
Brasil - e, certamente, o mais valioso.
O movimento Pau Brasil inaugurou o primitivismo,
fez uma revisão da realidade sócio-cultural brasileira. O
Manifesto Antropófago trouxe um diagnóstico para essa
realidade e, radicalizando o primitivismo nativo, polemizou,
através da versão filosófica do autor, as intempéries,
ditaduras e moral burguesa da História do Brasil.
Em 1931, Raul Boop escreveu Cobra Norato, 70 obra
marcadamente convertida ao "Abaporu", a Antropofagia de
Oswald de Andrade e Tarcila do Amaral. Este poema é uma
obra épica-dramática e apresenta as aventuras de um jovem
na selva amazônica depois de ter estrangulado a Cobra
Norato e ter entrado no corpo do monstruoso animal. Cruzam
a história, descrições mitológicas de um mundo bárbaro sobre
violentas transformações:
Vamos brincar de Brasil
Mas sou eu quem manda
Quero morar numa casa grande
...
Começou desse jeito a nossa história
(...)
Negro coçou e fez música
Vira-bosta mudou de vida
Maitacas se instalaram no alto dos
galhos
(...)
De vez em quando
a Mula-sem-cabeça sobre a serra
ver o Brasil como vai
(BOOP,R.1984.p.47).

70
BOOP, Raul. Cabra Norato e Outros Poemas. Rio de Janeiro.
Civilização Brasileira, 1984.
O indianismo em Raul Boop está na descoberta
geográfica, mítica, primitivista, étnica e antropológicas do
povo brasileiro.

71
Tarsila do Amaral (1928)
Cobra Norato realiza a fusão da linguagem poética e
dialetal com mistério de uma região feita de sortilégios,
febres, dramas e tragédias a Amazônia. É a visão de um
mundo paludial e como que ainda em gestação, como
escreveu Manuel Bandeira e ilustrou com a seguinte frase:
Ué, aqui estão mesmo fabricando terra! (BANDEIRA, M.
1996. p. 620). 72 Já o nosso poeta maior Carlos Drummond
de Andrade, defende que Cobra Norato é o mais brasileiro de
todos os livros de poetas brasileiros e coloca a poesia de Raul
Boop ao lado do seu antecessor mais ilustre: Gonçalves Dias.

5. 6. Período Contemporâneo e Pós-Moderno

71
https://www.bbc.com/portuguese/geral-47808327
72
BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro, Nova
Aguilar, 1996.
Nos anos 60 e 70, a Tropicália de Caetano Veloso e
Gilberto Gil reviveu, poética e musicalmente, alguns temas,
procedimentos estilísticos e ações do movimento Pau-Brasil e
da Antropofagia de Oswald de Andrade, evidenciando um
nacionalismo crítico e antropófago que deglutia, ao mesmo
tempo, os Beatles e suas guitarras elétricas, João Gilberto e
Luís Gonzaga. Entre os temas da Tropicália, o índio não
poderia deixar de ser repensado. Caetano no poema "Um
índio" 73 poetizou pós-modernamente o indianismo brasileiro:
Um índio descerá de uma estrela colorida
brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul na
América num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançada que a mais
avançada das mais avançadas das
tecnologias
Virá
Impávido que nem Huhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
(VELOSO, C.1992)

O índio da poesia de Caetano, à maneira de


Macunaíma, também se transformou em estrela, mas ao
contrário do anti-herói, que se transformou na constelação
Ursa Maior depois de todas suas aventuras e desventuras, o
índio do artista baiano tem a possibilidade de começar sua
73
VELOSO, Caetano. Circulado Vivo. São Paulo. PollyGram. 1992.
odisseia no espaço e aterrizar na América Latina, depois do
caos do extermínio da última nação indígena. O índio estrela
virá para criar um mundo novo de liberdade e amor. O índio
luz precisa vir para iluminar as sombras da desumanidade e o
poeta acredita na utopia do mundo novo construído por um
herói iluminado, cheio de força, amor e artimanha.
Porém, este indígena é poesia e desejo não realizado
nos Caminhos e descaminhos da índia Put-Koê do conto
"Ontem, como hoje, como amanhã, como depois " 74 de
Bernardo Élis. Nesta narrativa, de 1965, a indiazinha é vítima
da exploração irracional do mundo "civilizado".

Put-Kôe, como se chamava a índia, trazia nos braços


uma veadinha pequetitinha ainda, com as malhas no pêlo. Era
ser xerimbabo. No pescoço, aveadinha levava uma tira de
embira pintada de urucum (...) estava Put-Kôe com a
veadinha no colo, as pernas estiradas, os peitinhos duros
imitando duas peras, o rostinho belo com a franjinha muito
preta, os cablos luzidios (...) o corpo núbil pintado de urucum
e cipó de leite. Tão inocente, tão pura! Aos raios do sol,
imitava essas acucenas do campo... Bom seria levar a tapuia.
Ela cozinharia para Sulivero, lavaria das coisas (...) Serviria
de mulher. E ficaria barato. Put-Kôe não exigia nem vestido,
(...) Sulivero punha as maos sobre o ventre de Put-Kôe, um
ventre abaulado, musculoso, que fugia num linha harmoniosa
(...) pode ir embora – disse cabo Sulivero (...) o cabo ergueu o
revolver, deteve-se em pontaria numa insignificancia de
tempo, e o baque do tiro sacudiu a pasmaceira da tarde. Put-
Kôe (...) desmanchou rapidamente o riso, numa dolorosa
expressão de surpresa. (...) para depois vergar o joelho, girar
em torno de si e cair no solo do porto.
Manso, liso, la ia escorrendo sempre e sempre o rio para
o infinito, para o sem-fim, ontem, como, hoje, como amanhã,

74
ELIS, Bernardo. Caminhos dos gerais. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1975.
como depois e depois ainda. (ELIS, Bernardo. 1975, p.157-
167)

Put-Kôe é mais uma vítima da exploração irracional


que parte do “civilizado”. A indiazinha tornou-se objeto foi
usada pelo Cabo Sulivero e depois, quando não achou que ela
era um estorvo na vida dele, assassina a inocente, sem
piedade. Na obra de Bernardo Élis, a natureza presencia em
silêncio o drama da índia e, como sempre, segue seu curso
“sem-fim, ontem, como, hoje, como amanhã, como depois e
depois ainda.” Também os homens ficam calados diante as
injustiças:
Na venda, ouvindo a detonação, o vendeiro saiu à porta
acompanhado de um vagabundo que sempre estava por ali;
olhou para um e outro lado, mas o sol reverberava os
grãozinhos de areia, tremia ao longe sobre o rio, doiía nos
olhos e artia na pele. Por toda a redondeira a pasmaceira.
-Foi nada, resmugou o vagabundo. E ambos voltaram ao
balcão. (ELIS, Bernardo. 1975, p. 168)

Tanto o vendeiro como o vagagundo traziam as


marcas das asperezas da vida e não souberam nada sobre o
tiro e vítima; mas, mesmo que tomassem conhecimento do
fato, não teriam feito nenhuma difierença, era uma situação
corriqueira ali.
Antônio Callado em Quarup (1967) 75 revela a dura
realidade dos índios no Xingu: sua pobreza, doenças, sua
condição de condenados pelo Brasil "civilizado" que investe
sem tréguas, alterando suas vidas, roubando-lhes as terras e a
tranquilidade. Enquanto relata a história de Nando, o autor
reflete sobre a situação do indígena da Amazônia, a luta pela
75
CALLADO, António. Quarup. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro,
1973.
preservação das terras indígenas. Descreve também, entre
outros usos e costumes nativos, a grande festa dos mortos, o
Quarup, que, entre outras cerimônias ritualísticas, é
constituído de uma grande comilança. O criador de Quarup,
em 1982, publicou A expedição Montaigne76. Este romance é
a história do jornalista Vicentino Beirão, que deseja armar
um exército de índios na Amazônia contra o colonialismo
branco. O romance é uma sátira política do Brasil da
guerrilha (anos 60 70) e um retrato da decadência do índio
brasileiro.
Em 1976, Darcy Ribeiro lança Maíra,77o retrato de
Isaías, um índio seminarista, que volta à sua aldeia, sem
identidade. Não é um homem ainda civilizado, nem é mais
um marium:
Volto homem, volto só. Volto despojado de mim,
do meu ser que eu era comigo, no meu eu de menino
mairum que um dia fui. Quem sou. Volto em busca de
mim. Não do que fui e se perdeu, mas do que teria sido se
eu tivesse ficado por lá e que ainda serei, hei-de-ser,
custe-o-que-custar. Ele, o outro, o futuro de mim, e
afarei, não seguindo no que sou. Ele só nascerá quando
eu me desvestir de mim, do falso eu que encarno agora
para deixar o espaço onde ele há de ser. (RIBEIRO, D.
1989. p. 66)

Isaías deixa a sua gente, em busca de realizações


pessoais, mas não realiza seus planos no mundo dos brancos
e, ao voltar, seu povo o rejeita, porque o ex-seminarista é
impotente para assumir o posto de tuxaua que lhe era
reservado pelo clã. Através da imagem niilizada do ex-

76
CALLADO, António. A Expedição Montaigne. Rio de Janeiro. Nova
Fronteira, 1983.
77
RIBEIRO, Darcy. Maíra. Rio de Janeiro, Record, 1989.
seminarista e ex-índio Isaías, o indianista e sociólogo Darcy
Ribeiro apresenta a imagem de um ser completamente
desprovido de essência, fruto da simbiose absurda entre o
mundo primitivo e o moderno. Desta tentativa de união
nasceu um homem completamente esfacelado. A sociedade
precisa ter consciência e respeitar o espaço e a identidade
desta nação, tão brasileira e tão privada de seus direitos.
Diante do que foi apresentado, o indianismo na
literatura brasileira está muito presente nestes tempos pós-
modernos, contemporâneos, hipermodernos do celular, da
internet e redes sociais do 3° milênio.
O indianismo contempâraneo tem outro perfil, é
tratado como assuntos que envolvem as causas sociais,
ecológicas e humanitárias.
E, é evidente que sempre será tema contemporâneo
e deverá estar sempre presente nas conferências literárias,
sociológicas, históricas, políticas e práticas de humanidade e
racionalismo, de forma neo realista, ou outra denominação
estetica temporal, sem romantismo.
O poema "Papo de índio", 78do Chacal, de forma
lúdica, tem o indianismo como motivo de reflexão temática e
brinca com a linguagem do índio:
Veiu uns ômi di saia preta
cheiu di caixinha e pó branco
qui eles disserum qui chamava açucri
aí eles falarum e nós fechamu a cara
depois eles arrepitirum e nós fechamu o corpo
aí eles insistirum e nós comemu eles.

vocês repararam como o povo anda triste ?

78
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. 26 Poetas brasileiros. Hoje Rio de
Janeiro, Editora Lapor do Brasil, 1976.
file:///C:/Users/Lenovo/Downloads/26-Poetas.pdf
é a cachaça que subiu de preço
a cachaça e outros gêneros de primeira
necessidade
cachaça a dois contos, ora veja,
veja a hora,
que horas são,
atenção
apontar:

FOGO
(CHACAL, in. HOLANDA, H. B. 1976. p. 219)
79

Este poema, embora com um tom carnavalizante de


modernizar a linguagem do índio, dá a palavra ao indígena,
que apesar da sua dramática história, ainda acredita na força
de um ideal.
A Música Popular Brasileira sempre cantou o índio
de todos os tempos. A cantora Baby do Brasil difundiu o
clássico “Todo Dia Era Dia de Índio” 80 em 1981, composição
de Jorge Ben, que popularizou refrão: Curumim,chama
Cunhatã / Que eu vou contar/ Curumim,chama Cunhatã/
Que eu vou contar/Todo dia era dia de índio/(...) Antes que o
homem aqui chegasse/Às Terras Brasileiras/Eram habitadas
e amadas/Por mais de 3 milhões de índios/ Proprietários
79
CHACAL (Ricardo de Carvalho Duarte) – Nasceu no Rio de Janeiro,
em 1951. É poeta. Entre seus livros publicados estão Muito prazer, Preço
da passagem, América, Drops de abril (1983), Comício de tudo (1986) e
Letra elétrika (1994), entre outros. Produz o CEP 2000 desde 1990 e
editora a revista O carioca desde 1996. Sua poesia foi reunida no volume
“Belvedere” (2007). O romance autobiográfico, intitulado “Uma História
à Margem”, foi publicado em 2010.
80
(https://www.google.com/search?client=firefox-b-
&q=Todo+Dia+Era+Dia+de+%C3%8Dndio)
* (https://youtu.be/Kk8KAKh51BQ)
felizes/Da Terra Brasilis/(....) Mas agora eles só tem
O dia 19 de Abril (...).
Nos anos 80, a Amazônia e os índios já lutavam pela
sobrevivência. Já tinha os ativistas da natureza que, segundo
a composição eram: Amantes da natureza/Eles são
incapazes/
Com certeza/ De maltratar uma fêmea/Ou de poluir o rio e o
mar/ Preservando o equilíbrio ecológico/Da terra, fauna e
flora/ Pois em sua glória,o índio/É o exemplo puro e
perfeito/Próximo da harmonia/ Da fraternidade e da alegria/
Da alegria de viver!/Da alegria de viver!/ E no
entanto,hoje/O seu canto triste/ É o lamento de uma raça que
já foi muito feliz/(...) (https://youtu.be/Kk8KAKh51BQ).

A banda Legião Urbana, por meio do seu líder Renato


Russo eternizou “Índios” em 1986, no álbum Dois e
editada como o terceiro single promocional do álbum em
dezembro do mesmo ano, depois relançada, em 200181:

Quem me dera ao menos uma vez


Ter de volta todo o ouro que entreguei a quem
Conseguiu me convencer que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha
(...)
Quem me dera, ao menos uma vez,
Explicar o que ninguém consegue entender:
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era antigamente

Quem me dera, ao menos uma vez,


Provar que quem tem mais do que precisa ter

81
( https://www.letras.mus.br/renato-russo/388284/)
( https://youtu.be/1AJjb6AhnMA )
Quase sempre se convence que não tem o bastante
E fala demais por não ter nada a dizer

Quem me dera, ao menos uma vez,


Que o mais simples fosse visto como o mais importante
Mas nos deram espelhos
E vimos um mundo doente

Quem me dera, ao menos uma vez,


Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três
E esse mesmo Deus foi morto por vocês -
É só maldade então, deixar um Deus tão triste.

Eu quis o perigo e até sangrei sozinho


Entenda - assim pude trazer você de volta prá mim,
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do inicio ao fim
E é só você que tem a cura pro meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi

Quem me dera, ao menos uma vez,


Acreditar por um instante em tudo que existe
E acreditar que o mundo é perfeito
E que todas as pessoas são felizes

Quem me dera, ao menos uma vez,


Fazer com que o mundo saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz ao menos obrigado

Quem me dera, ao menos uma vez,


Como a mais bela tribo, dos mais belos índios,
Não ser atacado por ser inocente

Eu quis o perigo e até sangrei sozinho


Entenda - assim pude trazer você de volta prá mim,
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim
E é só você que tem a cura pro meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente


Tentei chorar e não consegui 82

O cantor Fagner gravou “Somos Todos Índios” 83,


composição de Evandro Mesquita / Vinicius Cantuária:

Há muito tempo que falo


Da natureza e de amor
Das coisas mais simples
Dos homens, de Deus
Canto sempre a esperança
Acredito no azul que envolve o planeta toda manhã
Depende de mim, depende de nós
Escuto um silêncio, ouço uma voz
Que vem de dentro
E enche de luz
Toda nossa tribo
Somos todos índios
Tenho pensado na vida
E no prazer de viver
Nas coisas bonitas
82
( https://www.letras.mus.br/renato-russo/388284/)
( https://youtu.be/1AJjb6AhnMA )
83
Fonte: LyricFind (https://youtu.be/Bm2geT96lPI) Compositores:
Carlos Vinicius Da Silva Cantuaria / Evandro Nahid de Mesquita Letra de
Somos Todos Índios © Warner Chappell Music, Inc, Sony/ATV Music
Publishing LLC
(https://www.google.com/search?client=firefox-b-d&q=Somos+Todos+
%C3%8Dndios)
(https://youtu.be/Bm2geT96lPI)
Entre eu e você
Meu canto sempre é de luta
Por um mundo de paz
Cuidar das florestas e dos animais
(https://youtu.be/Bm2geT96lPI)
O artista mato-grossense Almir Sater, gravou Kikiô
84
, composição: Geraldo Espíndola, no no LP Doma, de
1982 :

Kikiô nasceu no centro


Entre montanhas e o mar
Kikiô viu tudo lindo
Todo índio por aqui
India América deu filhos
Foi Tupi foi Guarani
Kikiô morreu feliz deixando
A terra para os dois
Guarani foi pro sul
Tupi pro norte
E formaram suas tribos
Cada um em seu lugar
Vez em quando se encontravam
Pelos rios da América
E lutavam juntos contra o
Branco em busca de servidão
E sofreram tantas dores acuados no sertão
Tupi…

(https://youtu.be/7GzXG7012n
U)

O índio tem, na contemporaneidade, grandes líderes


que fazem história e provocam discussões no campo político,
84
(https://youtu.be/7GzXG7012nU)
nacional e internacional. O cacique Raoni, nascido numa
aldeia kayapó no estado do Mato Grosso, já dominava as
mídias da época muito antes da febre midiática.
De acordo com a ONG francesa Forêt Vierge
(Floresta Virgem, em português), da qual Raoni é presidente
honorário, a militância política do cacique começou a ser
conhecida internacionalmente nos anos 1960. Nessa época,
por volta de 1962, o rei da Bélgica Leopoldo 3º, que havia
reinado de 1934 a 1951, conheceu Raoni durante uma
expedição ao Mato Grosso, onde esteve acompanhado dos
irmãos Villas Boas, importantes sertanistas brasileiros.
Posteriormente, depois de abdicar do trono, Leopoldo 3º,
dedicou-se à antropologia e à fotografia, voltou ainda outras
duas vezes ao local, em 1964 e em 1967. Desse encontro,
resultou o início de um longo caminho de relações
internacionais às quais o líder indígena brasileiro se dedicaria
pelas próximas décadas, tendo como objetivo a preservação
do meio ambiente e a demarcação de terras indígenas.
Mais de dez anos depois, em 1976, outro belga, o
diretor de cinema Jean-Pierre Dutilleux, que conheceu o
cacique em 1973, produziu um documentário chamado
“Raoni”, filmado na aldeia de origem do cacique. Dutilleux e
Raoni tinham se conhecido três anos antes, em 1973. O
documentário fez muito sucesso. O filme foi apresentado em
1977 no festival de cinema de Cannes, um dos mais
importantes do mundo. O documentário mostra a luta dos
indígenas kayapó pela preservação de suas terras e seu meio
de vida. Em 2019 Raoni voltou a Cannes em 2019,
acompanhado de Dutilleux, como uma celebridade, para
seguir falando de suas causas ambientais. 85
85
Cf. https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/10/04/A-trajet
%C3%B3ria-de-Raoni-da-amizade-com-Sting-
Foto: Loic Venance/AFP - 24.05.2019
Raoni no tapete vermelho do Festival de Cannes, na França

Em 1987, O diretor belga Dutilleux apresentou


Raoni para o músico inglês Sting, numa viagem feita ao Mato
Grosso. No ano seguinte, 1988, Sting e Raoni participaram
juntos de uma primeira entrevista a jornais e TVs do Brasil e
do exterior, em São Paulo, no lançamento de uma campanha
pela demarcação de terras indígenas. “Quando acabar toda
a mata, acaba tudo. Nós, indígenas, vamos acabar, mas não é
só. O homem branco acaba também” Raoni Metuktire.
Raoni deixou o Brasil pela primeira vez, em 1989,
decidido a levar sua pauta ao exterior. A viagem resultou em
encontros, palestras e entrevistas concedidas por Raoni em 17
países, numa turnê digna do astro da música Sting ou do
diretor de cinema Dutilleux, que o acompanhavam.
Foto: Pascal George/AFP - 12.04.1989
Raoni e o músico Sting em Paris, em 1989

Nessa época, Raoni encarnou na Europa o papel do


bom homem selvagem, agredido em sua natureza original por
uma modernidade violenta. Sua mensagem girava em torno
da necessidade de preservação da floresta como meio de
garantir não apenas o meios de sobrevivência dos índios, mas
de toda a humanidade. “Sou eu que defendo o meu povo.
Sempre que tem algum tipo de conflito, eu digo: ‘não, a
violência, não’ Raoni Metuktire, cacique kayapó, em
entrevista ao programa Fantástico, da Rede Globo, no dia 30
de setembro de 2019. 86
Segundo o João Paulo Charleaux é repórter especial
do Nexo:
Para levantar fundos e gerir a campanha internacional, foi
criada a ONG Rainforest (Floresta Tropical, em português),
com ajuda de Sting. Em 1991, foi realizado um show em Nova
York com a presença de Sting, Elton John, Tom Jobim,
Caetano Veloso e Gilberto Gil, para arrecadar fundos para
seguir financiando a campanha pela demarcação de terras
indígenas no Brasil.

86
Cf. https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/10/04/A-trajet
%C3%B3ria-de-Raoni-da-amizade-com-Sting-
A campanha alcançou o sucesso esperado e, quatro anos
após o início da turnê de Raoni, o governo brasileiro
homologou, em 1993, o Parque Nacional do Xingu.
Após a vitória da demarcação, Raoni permaneceu
mobilizado, desta vez, para impedir a construção da Usina
Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu. Nessa nova queda
de braço, o cacique perdeu. A construção foi autorizada em
2010, durante o governo da época.
O sucesso das turnês internacionais de Raoni colocaram-
no como um estandarte permanente da causa indígena. Ele foi
recebido por diversos presidentes europeus nos anos seguintes
e pelos papas João Paulo 2º e Francisco, além de outros
líderes internacionais.
Em todo esse processo, o governo da França desempenhou
um papel especialmente influente. Raoni esteve no país
europeu em 2000, 2001, 2010, 2011 e 2019, onde foi recebido
por presidentes de diversas tendências, do socialista François
Mitterrand ao gaullista Jacques Chirac, Emmanuel Macron.
87

A visão do líder indígena que há meio século milita


pelo meio ambiente e teve seu nome indicado para o Prêmio
Nobel da Paz de 2020.
Apesar dos índios ainda sofrerem perseguições dos
latifundiários que insistem em invadirem as áreas protegidas,
principalmente no Norte do País, na contemporaneidade,
os ex-nativos da terra Brasil, hoje tem letra, voz e batalham
politicamente pelos seus direitos. Hoje os índios tem acesso à
modernidade, à educação e seguem lutando bravamente por
sua língua, cultura, terras e tudo que a eles pertencem.
Aludi aqui o cacique Raoni como paradigma de um
índio ativistas que se une a Políticos e várias nações na
defesa da natureza e do planeta, da nossa casa, no sentido
87
(https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/10/04/A-trajet
%C3%B3ria-de-Raoni)
dado ao prefixo “eco” do grego (oikós = lugar onde se
habita, espaço, casa). No entanto, muitos ativistas índios,
negros e brancos também estão nessa jornada, em prol da
casa da humanidade.
Um exemplo, que foi matéria das mídias em 2019, foi
a sueca Greta Thunberg, 88 uma jovem de 16 anos, que em
setembro 2019, teve o Brasil como foco, quando país das
palmeiras e dos sabiás, assim como, Estados Unidos,
Argentina, França, Alemanha, Turquia e outras nações,
todos foram acusados de não combaterem com eficiência o
aquecimento global. Com a crise das queimadas na floresta
Amazônica, 89 as ações dos ativistas aumentaram e são
matérias que envolvem as questões contemporâneas, nas
quais os índios, as florestas, o clima e todas os problemas
que envolvem globo terrestre.
A adolescente Greta Thunberg liderou, nos
congressos, em assembleias e na ONU (Organização das
Nações Unidas) todas as discussões sobre assuntos
climáticos. Ela conduziu também grupos de jovens ativistas
de (de 8 a 17 anos), pedindo que os países criassem medidas

88
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2019/09/25/
interna_mundo,790240/conheca-a-historia-da-jovem-ativista-greta-
thunberg.shtml
89
https://www.natura.com.br/blog/sustentabilidade/amazonia-4-acoes-
para-ajudar-a-conservar-a- floresta?raccoon_param1=sustentabilidade-
conteudos&raccoon_param2=acoes-para-ajudar-a-conservar-a-
floresta&cnddefault=true&gclid=EAIaIQobChMIraz3mtXW6AIVlAuRC
h2cWQ1iEAAYAiAAEgISt_D_BwE
****“Em agosto em de 2019 as queimadas atingiram 24.944 km² do
bioma, segundo o Inpe. A área afetada é quatro vezes maior do que a do
ano anterior, que foi de 6.048 km². Desde 2010, quando a região passou
por uma seca e teve 43 mil km² de áreas queimadas, a floresta não
passava por um desastre de tamanha dimensão”.
para proteger as crianças dos efeitos da crise climática, num
processo ecopolítico e ecoreflexivo.
A natureza e o índio são matérias de poemas de
poetas contemporâneos que aderem ao tema, como matéria de
reflexão ou exercício poético ou ecopoético (como nomeiam
estudiosos do chamado ecocriticismo) que cogitam, por meio
da leitura da ecopoesia (ou poemas quem têm a natureza
como tema) de como o homem destrói a natureza, por
intermédio do desmatamento protegido pela égide da
chamada pós-modernidade e civilização.

O poeta e crítico Giberto Mendonça Teles, em seu


livro Saciolgia Goiana, 90 apresenta poemas que abordam o
tema do índio, como por exemplo “Aldeia Global” (GMT
p.74-77) e “Etnologia” (GMT p. 83) inseridos em Saciologia
Goiana.
“Aldeia Global” (Idem p. 74-77) de Gilberto
Mendonça Teles apresenta uma paródia do poema “I Juca
Pirama” 91 de Gonçalves Dias:

90
TELES, Gilberto Mendonça. Saciologia goiana. 10ª. ed. Curitiba:
CRV, 2019
ALDEIA GLOBAL
A José Mauro de
Vasconcelos
1.
No meio das tabas há menos verdores,
não há gente brabas nem campos de flores.

No meio das tabas cercadas de insetos,


pensando nas babas dos analfabetos,
vou chamando as tribos dos sertões gerais,
passando recibos nos vãos de Goiás.

Trago o sol das férias e algumas leituras,


e trago as misérias dessas criaturas
para pôr num brinde os sinais que são
a força dos índios escutando o chão.
( .....)
No meio das tabas não quero ver dores,
Mas morubixabas e altivos senhores.

Quero a rebeldia das tribos na aldeia.


Nada de “poesia”. Quero cara feia:
Cor de jenipapo e urucum no peito,
Não índio de trapo falando sem jeito.

(GMT Saciologia Goiana, 2019, p. 74/75)

O mundo da contemporaneidade é inverso do


romântico. Em no “I Juca Pirama”, (Ibidem, 1998, p. 379), no
canto inicial do poema, o índio aparece descrito como um
valente guerreiro inseridos numa natureza exuberante: No
91
DIAS, Gonçalves. Poesia e Prosa completas. Rio de Janeiro, Nova
Aguilar, 1998.
meio das tabas de amenos verdores,/ Cercadas de troncos –
cobertos de flores, / Alteiam-se os tetos d’altiva nação; / São
muitos seus filhos, nos ânimos fortes, / Temíveis na guerra,
que em densas coortes / Assombram das matas a imensa
extensão.
No romantismo, o índio era um guerreiro forte,
destemido. Não havia a presença do branco dominando suas
terras:
São rudos, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
Condão de prodígios, de glória e terror!

As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,


As armas quebrando, lançando-as ao rio,
O incenso aspiraram dos seus maracás:
Medrosos das guerras que os fortes acendem,
Custosos tributos ignavos lá rendem,
Aos duros guerreiros sujeitos na paz.

No centro da taba se estende um terreiro,


Onde ora se aduna o concílio guerreiro
Da tribo senhora, das tribos servis:
Os velhos sentados praticam d’outrora,
E os moços inquietos, que a festa enamora,
Derramam-se em torno dum índio infeliz.

(G.D. Ibidem, 1998, p.379)

Gilberto Mendonça Teles registra a figura dos índios


sobreviventes:
Venham os xerentes, craôs e crixás,
bororos doentes e xicriabás.
E os apinajés, os carajás roídos,
e os tapirapés e os inás perdidos.

Tupis canoeiros e jés caiapós,


xavantes guerreiros, fulvos caraós,
índios velhos, novos, os sobreviventes
das nações ou povos mortos ou presentes.

Venham com seus mitos e lêndeas na língua.


Tragam periquitos tartarugas e íngua.
Tragam rede suja e sexo escorrendo
(o olho da coruja fechado, mas vendo).

Vinde todos, vinde, como o curupira,


para que vos brinde no avesso da lira.
Vinde, vinde ao poema
e gritai safados
como siriema nos ermos cerrados.

(GMT Saciologia goiana, 2019, p. 75)


De fato, o índio hoje, são lutadores pela vida diante de
uma sociedade que nega seus Direitos de ter suas terras,
nação, história, língua e vida. Os conflitos agrários são
permanentes com os clássicos assassinatos de índios por
capangas de latifundiários que se sentem ameaçados em suas
posses ou desejam ampliá-las tomando as Terras Indígenas
para si.
Os índios apenas esperam que respeitem o modo de
vida de todas as tribos. Já divulgaram, por exemplo, não
precisam plantar soja, porque têm roça, mandioca, milho,
pesca, caça. E, é notório que o Brasil tem uma dívida
histórica com os indígenas, pois tomaram tudo o que tinham,
história, etnias: terras com seus minerais, as riquezas da
natureza. Por isso, hoje, eles desejam que a Nação ofereça
melhorias, sem contrapartida. E são pós-modernos, com
internet, televisão, dentista, estudos, por que não? Mas o que
mais anseiam é simples e imprescindível: o respeito pela sua
forma de vida e espaço e esperam diminuir a extinção, como
no poema, “Etnologia” (Idem p. 83), do poeta Gilberto
Mendonça Teles:

Etnologia
Ainda
há índios.

(GMT ( 2019), p. 83)

O título do poema, “Etnologia”, propõe um olhar


diante de questões antropológicas e sócio-culturais. O
“espaço” composional presente no poema delineia uma visão
ecopoética, uma vez que traz refexão sobre a extinção do
índio e, com ele, o meio ambiente, que é sua morada, seu
habitat, sua casa, sua morada, sua etnia, suas raízes
antropológicas, seu eco (palavra que vem do oikós e
significa lugar onde se habita, espaço, casa).
Dessa forma, “Etnologia” revela as dores da natureza
humana, as agonias da terra, da casa em destruição, do índio
niilizado no vazio da sua existência dentro do seu espaço,
físico e metafísico.
Esse poema ecopoético exprime “o vazio” irônico
e o silêncio falante configurados por meio da ausência de
palavras, sinalada pela metáfora do espaço em branco na
página, consubstanciada na presença significante da imagem
do vácuo alvejado da folha que sustenta a forma poemática.
O vazio silencioso reside no poema poético. Nesse
lugar - entre o (tema/título) significante e o (texto poético)
significado - está a metáfora muito viva e presente
dizendo o indizível. Esse espaço em branco constitui uma
alegoria, uma vez que o vazio, não revela o nada, pelo
contrário, diz tudo e aí está construído o grande tema ou
ideia do poema, que é exatamente o aniquilamento dos
índios das terras brasileiras.
Assim, o poema é alegórico pela ausência. O texto é
composto por três palavras: Uma, no priemiro verso
(Ainda) e as outras duas, no segundo e último verso: há
índios. A alegoria-poética é o espaço em branco, entre o
título “Etnologia” e os dois versos que ironizam o nada, que
é a ausência do índio, a dizimação da cultura, da vida, da
história de um povo.
Pode ser observado também que a palavra “ainda” é
composta pela sonoridade aberta do “A” ou “ Ai”, “Ain”, a
sugerir um grito de dor ou pedido de socorro, ou “inda”,
expressando uma nazalidade triste e continua como a ideia de
um gerúndio permante.
Em seguinda, o segundo verso “há índios”, traz um
jogo lúdico e vocálico com o primeiro, “A” do verso
anterior, antecipado pelo “H”, formando o verbo haver, no
sentido de existir. No entanto, o poema é o oposto do
escrito, não há mais índios, como afirma a expressão
poetizada, há índios; consubstanciando uma triste inoria: a
exclusão dos povos indígenas - assinalada poeticamente, por
meio da sintaxe invisível. “Esta sintaxe manifesta uma
pluralidade de sentido e conduz o poema para outras margens
da linguagem, numa realização silenciosa da metáfora. É o
silêncio do sentido”. (LIMA, Maria de Fátima Gonçalves,
2005, p. 102) 92
Desta forma, o poema, ser de vocábulos, vai mais além das
palavras e a história ou a realidade não esgota o sentido do texto
poético; pois a poesia não teria sentido e (nem) sequer
existência sem o imaginário que sustenta o processo criativo e
também, sem a história, sem a comunidade que alimenta e à qual

92
LIMA, Maria de Fátima Gonçalves. O signo de Eros na Poesia de
Gilberto Mendonça Teles. Goiânia, Kelps, 2005
nutre a obra literária. Sobre essa afirmação, Octavio Paz 93
afiança que “As palavras do poeta, justamente por serem
palavras, são suas e alheias” (PAZ, 1982, p. 52). A construção
poética é um ato solitário e, ao mesmo tempo, solidário que canta
e encanta o mundo.
Diante do exposto, o Indianismo do Pós-Moderno é a
cultura do vazio, do caos, a ausência da civilização indígena.
É a cultura do silêncio.
Dessa forma, o silêncio no poema, ou seja, o espaço
em branco, propõe um caminho a ser compreendido pelo
leitor em relação ao índio, à sua cultura e suas causas; à
privação dos direitos de um povo que é marginalizado e,
hoje, se encontra desertado de suas terras.
O silêncio, nesse texto poético traz a marca do
ecopoético; conduz o ser humano para a solidão do espaço
em branco da página que (re)significa, a ausência da palavra
que desperta o homem para o absurdo que pontua a triste
realidade dos índios brasileiros.
Daí o ecopoema trazer à tona a ironia “ainda há
índios”, para demonstrar o oposto, a dizimação dos índios
marcada por vazio, um espaço desértico, que atravessa o
texto. O poeta brinca com as palavras e acende
possibilidades para o leitor fazer esta travessia de imersão no
espaço em branco do poema.
O Indianismo no Modernismo e na
contemporaneidade deixa de fazer alusão ao índio como
personagem de ação de drama (como no Aracadismo); ou
protagonizar de forma heroica e romanticamente idealizada
(como no Romantismo), para trazer à tona, um um diálogo
entre entre a Literatura e o meio ambiente de forma reflexiva
93
PAZ, Otávio. O Arco e a Lyra. 2ª ed. Trad. de Olga Savary. Editora
Nova Fronteira, 1982.
e crítica, por meio da natureza transfigurada e
performatizada (como no Modernismo a parir de Mario de
Andradre e Oswald de Andrade).
Nos dias atuais esse posicionamento estético da
literatura sobre natureza, homem e meio ambiente
denominado por Ecocriticismo ou Ecocrítica.
Essa corrente crítica contemporânea foi divulgada
pela primeira vez por Cheryll Glotfelty, nos anos 90, no
volume de ensaios que editou, O leitor da ecocrítica: marco
em Literatura e ecologia (1996). 94 Ela se propõe a estudar,
sob os prismas estéticos e culturais, as manifestações
artísticas contemporâneas que se delineiam das
problematizações do meio ambiente e da ecologia, sob o viés
das artes.

6. O INDIANISMO DE GONÇALVES DIAS

Gonçalves Dias não foi o introdutor do índio na


poesia brasileira, todavia soube como ninguém poetizar o
índio: fez Escola. Ninguém foi melhor poeta indianista, nem
antes e nem depois do poeta maranhense. É referência ilustre
e a mais artística sobre o indianismo na literatura brasileira.
O indianismo de Gonçalves Dias vinha de fontes
imediatas, o poeta trazia-o no sangue, alimentava-o das
lembranças de sua infância em Caxias, no Maranhão.
Posteriormente, através de seus trabalhos sobre O Brasil e a
Oceania e suas andanças pela Amazônia, o poeta realizou um
94
GLOTFELTY, Cheryll (1996), “Introduction: Literary Studies in an
Age of Environmental Crisis”, in Cheryll Glotfelty; Harold Fromm
(orgs.), The Ecocriticism Reader. Landmarks in Literary Ecology.
Athens/London: The University of Georgia Press, xv-xxxvii
retrato do índio brasileiro, quase realista e até mesmo
científico, como o seu Dicionário da Língua Tupi (1848),
realizou pesquisa hitórica e geográfica.

Encarregado há algum tempo pelo Instituto


Histórico e Geográfico brasileiro de apresentar-lhe uma
memória acerca dos nossos indígenas, tive de ocupar-me
com especialidade dos que habitavam o litoral do Brasil,
quando, foi do seu descobrimento, os quais por esse fato
foram os primeiros que se acharam em contato com os
colonos portugueses.
Cabia-me tratar dos caracteres intelectuais e
morais dessas tribos; esse trabalho porém não podia ser
feito senão com o estudo prévio da língua que elas
falavam, da qual tantos vestígios se encontram, que não é
de presumir que eles tenham em algum tempo de
desaparecer completameníe da nossa linguagem vulgar,
nem mesmo da científica. ( DIAS, G.
95
1998, p.98).

O poeta do índio idealizou o nativo, mais por


simpatia e por obediência às características estéticas da época
do que por desconhecimento da psicologia própria do
silvícola. Gonçalves Dias realizou uma poética magistral e
deu vida e continuidade ao indianismo na literatura brasileira.
Entre os principais poemas indianistas de Gonçalves
Dias, estão "Os Timbiras" (Ibidem, 1998, p. 503-557), "I-
Juca-Pirama"(Ibidem, 1998, p. 379), "Marabá" (Ibidem,
1998, p. 392), "Leito de Folhas Verdes" (Ibidem, 1998, p.
377), "O canto do Guerreiro" (Ibidem, 1998, p. 106), "Canto
do Piaga" (Ibidem, 1998, p. 108) e "Canção do Tamoio"
(Ibidem, 1998, p. 394).
95
DIAS, Gonçalves. Poesia e Prosa completas. Rio de Janeiro, Nova
Aguilar, 1998.
Os Timbiras (poema americano) é um longo texto
poético dividido em cinco partes: Introdução (Ibidem, 1998,
p. 505); Canto Primeiro, (Ibidem, 1998, p. 506); Canto
Segundo (Ibidem, 1998, p. 516); Canto Terceiro (Ibidem,
1998, p. 528) e Canto Quarto (Ibidem, 1998, p. 543). Essa
obra publicada em 1857 e contém passagens de muita
realização poética, é uma tentativa frustrada de um poema
épico, uma vez que, nesta data, foram publicados apenas os
quatro cantos iniciais. O resto perdeu-se no naufrágio. De
acordo com o próprio poeta, sua intenção era fazer uma Ilíada
brasileira, um gênese americano:

Imaginei um poema... como nunca ouviste falar de


outro: magotes de tigres, de quatis, de cascavéis:
imaginei mangueiras e jaboticabeiras copadas, jequitibás
e ipês arrogantes, sapucaieiras e jamboeiros, de
palmeiras nem falemos; guerreiros diabólicos mulheres
feiticeiras, sapos e jacarés sem conta... Passa-se a ação
no Maranhão e vai terminar no Amazonas com a
dispersão dos Timbiras; a guerra entre eles e depois com
os portugueses. (id ibdem, p.59)

O texto que se segue é o início de Os Timbiras:

OS RITOS semibárbaros dos Piagas


Cultores de Tupã, e a Terra virgem
Donde como dum trono, enfim se abriram
Da cruz de Cristo os piedosos braços;
As festas, e batalhas mal sangradas
Do povo Americano agora extinto,
Hei de cantar na lira. (...)
(Ibidem, 1998, p.
505)
Lendo com atenção este trecho, percebe-se que,
nele, o poeta se propõe a cantar costumes e episódios
relacionados aos índios, definidos como o "povo americano
agora extinto", isto é, os primitivos habitantes da América,
dizimados pelos colonizadores.
O poema "Deprecação" (Ibidem, 1998, p. 113-115) é
uma oração indígena, na qual o “eu” lírico índio se dirige ao
seu Deus. Acompanhe um fragmento desse texto:

Tupã, ó Deus grande! cobriste o teu rosto


Com denso velâmen de penas gentis;
E jazem teus filhos clamando vingança
dos bens que lhes deste da perda infeliz!
Tupã, ó Deus grande! teu rosto descobre;
Bastante sofremos com tua vingança!
Já restam bem poucos dos teus, qu 'inda possam
Teus filhos que choram tão grande mudança.
Anhangá impiedoso nos trouxe de longe
Os homens que o raio manejam cruentos,
Que vivem sem pátria, que vagam sem tino
Trás do ouro correndo, voraces, sedentos,
(Ibidem, 1998, p. 113)

Ao contrário dos outros textos românticos, este


poema "Deprecação" não apresenta o índio como ser
idealizado e livre. Apesar do conteúdo romântico, o poeta
descreve um problema real dos silvícolas, iniciado com o
descobrimento e que vem-se agravando nos dias atuais. Este
texto denuncia claramente a dizimação dos índios pelos
colonizadores: Já restam bem poucos dos teus.
Diante dos diuturnos malefícios causados pelos
brancos, um “eu” lírico, nativo, cansado de sofrer, depreca ao
Deus dos índios. Para realizar plenamente sua súplica, lança
mão do procedimento da função apelativa, com imperativos e
vocativos para influenciar o comportamento do receptor da
mensagem: Tupã. O motivo desta deprecação é a destruição
que os brancos estão provocando entre os índios.
Para expor a triste situação da sua raça, o índio
utiliza uma imagem de que os filhos de Tupã jazem clamando
vingança e que já perderam tudo que possuíam, mas parece
que seu Deus não percebe as lágrimas de seu povo. Uma
grande transformação está acontecendo entre os indígenas:
mudança da sorte, do destino. Antes, os índios viviam felizes
e livres; agora, são perseguidos e destruídos. Porém, apesar
de todos estes acontecimentos, Tupã, o Deus grande, cobre o
rosto diante do infortúnio dos nativos.
O momento é de desolação e do Anhangá, o espírito
do mal. Este, impiedoso, trouxe o sangue e os homens que o
raio manejam cruentos, isto é, os invasores brancos, os
europeus, donos das armas de fogo. Os brancos, trazem a
morte dos guerreiros, o fim da caça, a perda das terras e da
liberdade. Os europeus são os mensageiros do mal e
representam também o próprio Anhangá.
O tempo presente dos nativos é uma grande tragédia,
o passado do seu povo foi de glória, força e valentia. Agora,
só resta confiar nas palavras do Piaga, que afirma ser berve
este sofrimento. Porém, a esperança maior estava na salvação
divina, motivo por que, o eu poemático depreca a
intervenção de Tupã. Apesar de pertencer à primeira geração
dos poetas românticos, Gonçalves Dias reflete nesse poema a
temática do social que será dominante na terceira geração.
No poema "Vozes d'África", 96Castro Alves,
escrevendo sobre o drama dos escravos, pergunta: "Deus! ó
Deus! onde estás que não respondes/Em que mundo, em
qu'estrela tu fescondeslEmbuçado nos céus" (ALVES, C. s/d

96
CASTRO, Alves. Poesias completas. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
p.54). Essas súplicas lembram os versos de "Deprecação",
que rogam: Tupã ó Deus grandel cobriste o teu rosto/Com
denso velâmem de penas gentis, texto indígena ilustrado por
alguns vocábulos da língua Tupi - Guarany: Tupã, Anhangá,
Tupi, igaras, quati e Piaga.
Nem sempre, porém, os poemas indianistas de
Gonçalves Dias apresentam uma visão realista do indígena
brasileiro: muitas vezes, o índio (semelhança do que ocorre
nos romances indianistas de Alencar) assume valores e
comportamentos mais característicos da cavalaria andante
medieval, do que dos primitivos habitantes da América.
O poema "I-Juca-Pirama" (Ibidem, 1998, p. 379-
392) (que em Tupi significa o que há de ser morto) narra a
história de um guerreiro Tupi aprisionado pelos Timbiras. No
momento da execução, o índio Tupi exalta sua bravura, mas
pede clemência, pois dele dependia a sobrevivência do pai,
cego e doente. Considerado covarde pelo chefe dos Timbiras,
é solto. Ao reencontrar o pai, este o amaldiçoa pela perda da
honra. O jovem arma-se, luta bravamente contra os Timbiras,
abate os inimigos, recupera a honra e recebe do pai o perdão.
"I-Juca-Pirama" é dividido em dez cantos curtos,
uma espécie de épico-dramático. A estrofação e a métrica
variam de acordo com a tonalidade e sugestão da
dramaticidade. O primeiro canto, formado por oito sextilhas
de onze sílabas métricas, apresenta uma descrição reveladora
da idealização da natureza, da força e valentia dos Timbiras:

No meio das tabas de amenos verdores,


Cercados de troncos cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d'altiva nação;
São muitos seta filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.
São rudos, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam Já cantam vitória,
(...)
(Ibidem, 1998, p. 379)

Em "I-Juca-Pirama", os índios Timbiras são


caracterizados como altivos, guerreiros, destemidos, valentes
e orgulhosos. Nos cantos II, IIl e IV são apresentadas as
tradições indígenas e o prisioneiro é preparado para o
cerimonial antropofágico, em que serão vingados os mortos
Timbiras. Ao lhe pedirem, como é próprio do ritual, que
cante seus feitos de guerra e se defenda da morte, da seguinte
forma: "Diz-me quem és, teus feitos canta/ Ou se mais te
apraz, defende-te...", o prisioneiro responde bravamente aos
inimigos. O Tupi grita o seu canto de morte no valente canto
IV: Meu canto de morte,/ Guerreiros, ouvi:/ Sou filho das
selvas,/ Nas selvas cresci;/ Guerreiros, descendo/ Da tribo
Tupi.(...) (Ibidem, 1998, p. 382). Porém, apesar das suas
bravuras, o Tupi pede para viver, por uma nobre causa:
amparar seu velho, cego e doente genitor; mas afirma que
retornaria para cumprir seu destino. Ao ouvir o discurso do
prisioneiro, o chefe Timbira ordena que solte o jovem Tupi:
Soltai-o! Diz o chefe. Pasma a turba;(...) / Timbira, diz o
índio enternecido,/(...) És livre; parte./ E voltarei/ ...) Sim,
voltarei mono meu pai./ Não voltes/(...) Mentiste, que um
Tupi não chora nunca,/ E tu choraste!... Parte; não
queremos/com carne vil enfraquecer os fortes (Ibidem, 1998,
p. 384/385).
Neste diálogo entre o guerreiro Tupi e o chefe
Timbira, o índio brasileiro é caracterizado como uma pessoa
sentimental e com um grande senso de honra e menosprezo
pelos covardes. No canto VI, o índio encontra seu pai, que,
incrédulo, o amaldiçoa e o obriga a retornar com ele à tribo
inimiga. No canto VII, pede ao chefe que o ritual de morte se
cumpra. Porém, o pai Timbira responde:

Mas o chefe dos Timbiras,


Os sobrolhos encrespando,
Ao velho Tupi guerreiro
Responde com torvo acento
– Nada farei do que dizes:
É teu filho imbele e fraco!
Aviltaria o triunfo
De mais guerreiro das tribos
Derramar seu ignóbil sangue:
Ele chorou de cobarde;
Nós outros, fones Timbiras,
Só de heróis fazemos pasto.

(Ibidem, 1998, p. 388/389)

Diante da vergonha, o pai descarrega toda a sua ira


sobre o jovem Tupi e o condena a ser um eterno errante, sem
pátria, sem irmãos, sem honra, uma sombra a vagar pelo
mundo:

"Possas tu, isolado na terra,


Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz! "
...........................................................
"Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d'argila cuidoso
Arco em frecha e tacape a teus pés!
Sê maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu fllho não és."
(Ibidem, 1998, p. 389/390)

Diante do discurso imprecativo do genitor, o índio é


tomado por uma força sobrenatural e é transformado em um
super-herói invencível:

A taba se esborota, os golpes descem,


Gritos, imprecações profundas soam,
Emaranhada a multidão braveja,
Revolve-se, enovela-se confusa,
E mais revolta em mor furor se acende.
E os sons dos golpes que incessantes fervem.
Vozes, gemidos, estertor de morte
Vão longe pelas ermas serranias
Da humana tempestade propagando
Quantas vagas de povo enfurecido
...........
(Ibidem, 1998, p. 391)

O guerreiro aniquilava a tribo inimiga quando o


chefe Timbira gritou: Basta, guerreiro ilustre! assaz lutaste e
para o sacrifício é mister forças. O Tupi parou a luta e caiu
nos braços do velho pai. Este o abraçou Com lágrimas de
júbilo bradando: "Este, sim, que é meu filho muito amado! /
"E pois que o acho em fim, qual sempre o tive, / "Corram
livres as lágrimas que choro,/ "Estas lágrimas, sim, que não
desonram" (Ibidem, 1998, p. 391).
O bravo índio faz seu pai chorar de alegria. As
lágrimas do velho Tupi expressam a vitória de um povo forte,
temíveis na guerra, sedentos de glória, apesar de já sofrer a
invasão dos homens brancos que chegam traidores com
mostras de paz e destroem os campos, quebram os arcos e
tiram os maracás dos Piagas, impondo a religião cristã.
Contudo, o heroísmo e o orgulho indígenas fazem história e
são matérias de contos e cantos fantásticos que glorificam,
não só o protagonista das narrativas, mas até mesmo aqueles
que dizem ter presenciado tais fatos. É o caso do cacique
Timbira deste poema épico que, depois de ter participado da
história do índio Tupi, fez muita fama contando a história do
"I-Juca-Pirarma". O chefe Timbira, na sua glória de
testemunha ocular, recontava a narrativa do herói, sem
aumentar nenhum ponto, mas precisava acrescentar prudente:
"Meninos, eu vi!".
Por outro lado, há ocasiões em que a poesia
indianista de Gonçalves Dias transforma o índio em sujeito
de conflitos e sentimentos universais. Em poemas tais, o
índio deixa de ser símbolo do homem brasileiro para ser um
homem qualquer. Observe este aspecto nas estrofes que se
seguem, extraídas do poema "Marabá": (p. 115).

EU VIVO SOZINHA; ninguém me procura!


Acaso feitura
Não sou deTupá!
Se algum dentre os homens de mim não se esconde
─ "Tu és, " me responde
─ "Tu és Marabá! "
─ Meus olhos são garços, são cor das safiras,
─ Tem luz das estrelas, tem meigo brilhar;
─ Imitam as nuvens de um céu anilado,
─ As cores imitam as vagas do mar!
Se algum dos guerreiros não foge meus passos;
“Teus olhos são garços”,
Reponde anojado: “mas és Marabá”:
"Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes,
"Uns olhos fulgentes,
"Bem pretos, retintos, não côr d'anajá "
(Ibidem, 1998, p. 392)

Os versos transcritos ilustram a queixa de uma índia


Marabá (mestiça, que tem olhos claros) que, por diferir do
tipo físico comum do indígena brasileiro, não encontra
companheiro na tribo. Vê-se, portanto, que neste poema
Gonçalves Dias projetou no índio o problema da
marginalizacão do mestiço: como já dissemos, o próprio
poeta foi vítima do preconceito racial.
O Romantismo apresentou uma visão bastante
idealizada do índio a fim de equipará-lo ao colonizador.
Neste poema, a índia Marabá é apresentada segundo o padrão
de beleza europeu: Olhos garços, cor das safiras,/rosto da
alvura dos lírios,/loiros cabelos em ondas, transferência do
padrão europeu de beleza que para o índio, é uma idealização
da figura nativa.
Porém, o silvícola, em Gonçalves Dias, não convive
pacificamente com o homem branco, como ocorre em José de
Alencar. Nos textos gonçalvinos, o índio sofre as pressões da
sociedade moderna e deseja ser livre e corajoso, vivendo na
sua sociedade primitiva. Esta imagem do índio está de acordo
com os postulados de Rousseau, quando afirma:

Evitemos pois, confundir o homem selvagem com os


homens que temos diante dos olhos. A natureza trata todos
os animais abandonados a seus cuidados com uma
predileção com que parece querer mostrar quanto é ciosa
desse direito. O cavalo, o gato, o touro, o próprio asno têm,
na maioria, uma estatura mais alta, e todos uma constituição
mais alta, e todos uma constituição mais robusta, mais vigor,
força e coragem quando nas florestas do que em nossas
casas; perdem a metade dessas vantagens tornando-se
domésticos e poder-se-ia dizer que todos os nossos cuidados
para tratar bem e alimentar esses animais só conseguem
degenerá-los. Acontece o mesmo com o próprio homem.
Tornando-se sociável e escravo, torna-se fraco, medroso e
subserviente, e sua maneira de viver, frouxa e afeminada,
acaba por debilitar ao mesmo tempo sua força e sua
coragem.'' (ROUSSEAU, J. J. 1988.p.45) 97

O índio em Gonçalves Dias deseja ser forte e canta


vitória como pode ser comprovado através do poema "O
canto do guerreiro" (Ibidem, 1998, p. 106):

Valente na guerra
Quem há, como eu sou
Quem vibra o tacape
Com mais valentia
Que golpes daria
Fatais como eu dou
Guerreiros, ouvi-me;
Quem há como eu sou
........................................
(Ibidem, 1998, p. 106)

O canto do indígena expressa um guerreiro ideal, sem


medo, valente e livre. Apesar do denunciado contato com os
homens que raio manejam cruentos (p.23), o índio é um
guerreiro, de viva voz que mata sem temor seus inimigos, que
na caça ou na lide, não há quem afronte, Se as matas estrujo/
Co'os sons do Boré,/Mil arcos se encurvam,/Mil setas lá
voam,/ Mil gritos reboam./ Mil homens de pé (Ibidem, 1998,
p. 107). Este sim, é um valente herói.

97
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentas
da desigualdade entre as homens. Trad. de Lourdes Santos Machado, São
Paulo. Nova Cultural. 1988.
A imagem da valentia do índio e da sua comunhão
com a natureza é algo digno de contemplação: Lá vão pelas
matas;/ Não fazem ruído: O vento gemendo/E as matas
tremendo/ E o triste carpido/ Duma ave a cantar,/ São eles
guerreiros,/ Que faço avançar (p.l9). São estes os valentes
guerreiros, que avançam sem medo ao som do boré
( trombeta de bambu), E o Piaga se ruge /No seu Maracá,/A
morte lá paira/ Nos ares frechados,/ Os campos juncados
/De mortos são já:/ Mil homens viveram, / Mil homens são lá
(Ibidem, 1998, p. 108).
"O canto do guerreiro" é uma ópera indígena, da qual
participam o índio e a natureza. Enquanto o vento geme, as
matas tremem, o Piaga toca o seu maracá, o guerreiro valente
faz vibrar os sons do boré e canta em alta voz, seu grito de
guerra, formando, assim, uma orquestra magistral, uma obra
dramática musicada que eleva e exalta os feitos do indígena
da pátria brasileira.

7. A LÍRICA AMOROSA

Além da natureza, da religiosidade e do índio, boa


parte dos poemas de Gonçalves Dias trata do amor. A poesia
lírico-amorosa de Gonçalves Dias é tipicamente romântica e
muito impregnada da experiência pessoal do poeta. Seus
poemas amorosos refletem sempre infelicidade, amargura e
desilusão, bem como uma posição de inferioridade perante a
amada. Esse amor não correspondido, em grande parte, é
decorrente de sua paixão frustrada por Ana Amélia Ferreira
do Vale. O poema "Ainda uma vez – Adeus! – " (Ibidem,
1998, p. 283) é fruto dessa desilusão amorosa:

I
Enfim tevejo! – enfim posso,
Curvado a teus pés dizer-te
Que não cessei de querer-te,
Pesar de quanto sofri. Muito penei!
Cruas ânsias,
Dos teus olhos afastado,
Houveram-me acabrunhado
A não lembrar-me de ti!
II
Dum mundo a outro impelido,
Derramei os meus lamentos
Nas surdas asas dos ventos,
Do mar na crespa cerviz!
Baldão, ludíbrio da sorte
Em terra estranha, entre gente,
Que alheios males não sente,
Nem se condói do infeliz!
.......................................
(Ibidem, 1998, p. 283)

A infelicidade e a inferioridade do “eu” lírico


manifestam-se claramente nestas duas estrofes do poema
"Ainda uma vez – Adeus – !". O poeta confessa seu
sofrimento (muito penei) e sua condição inferior (curvado a
teus pés). Mais adiante, na segunda estrofe, o eu poemático
atribui à natureza o papel de confidente (a natureza recebe a
confissão do poeta): Derramei os meus lamentos/ nas surdas
asas dos ventos,/ do mar na crespa cerviz. Os versos
transcritos manifestam também a marginalização do poeta,
abandonado por todos: Em terra estranha, entre gente/que
não sente os males alheios.
Os procedimentos estilísticos do Romantismo
dominam o texto de Gonçalves Dias. O pessoalismo (verbos
na primeira pessoa do singular), o sofrimento amoroso
(Pesar de quanto sofri) e o universo do poeta se resumindo a
ele e à pessoa amada são as marcas românticas mais
evidentes.
O sofrimento amoroso leva o “eu” lírico ao tédio, à
loucura, à ideia de suicídio; entretanto a simples lembrança
da mulher amada faz o poeta ter forças para viver. Nesse
sentido, o Romantismo de Gonçalves Dias não é tão
exagerado quanto o pensamento romântico dos poetas da
segunda geração, do mal do século. Estes morrem de amor e
por amor, aquele vive por amor e ama a vida. Porém, um
amor quando é intenso, pode até matar. O poema "Se se
morre de amor!" (Ibidem, 1998, p. 292) confirma esse
romantismo gonçalvino:
Se se morre de amor! Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre os festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
(...)
Mas isso amor não é; isso é delírio,
Devaneio, ilusão, que se esvaece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro
Clarão, que as luzes no morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor ó chamam,
D'amor igual ninguém sucumbe à perda.

Amor é vida; é ter constantemente


Alma, sentidos, coração abertos
Ao grande, ao belo; é ser capaz d'extremos
D 'altas virtudes, té capaz de crimes!
(...)
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes:
Isso é amor, e desse amor se morre!
(Ibidem, 1998, p. 292/293)
Gonçalves Dias quase morreu de amor. Conta
Antônio Henrique Leal 98que o poeta escreveu este poema
"Se se morre de amor!" no Recife, em fevereiro de 1852,
após um serão onde algumas senhoras da alta sociedade
recifense contestavam que o amor pudesse matar. Estava
então o poeta sobre a impressão da carta em que Dona
Lourença Ferreira do Vale, a mãe de Ana Amélia, lhe
recusara a mão da filha. Foi uma repulsa breve e seca. A
mágoa do poeta foi profunda e duraria toda a vida. A epígrafe
deste poema, tomada de Schiller, diz que podem mares,
montanhas e horizontes interpor-se entre dois amantes, mas
as almas escaparão à sua prisão e vão encontrar-se no paraíso
do amor. Algum tempo depois, casavam-se ambos, primeiro
Gonçalves Dias, no Rio, e Ana Amélia, no Maranhão, mas o
amor permaneceu no tempo, no espaço e na poesia do poeta
do Amor.
No início do poema, o poeta caracteriza a paixão
como uma fascinação passageira, fugaz, uma ilusão, um
delírio; desse amor não se morre. Depois caracteriza o Amor
que vem da alma, que é terno, espiritual, sublime, o Belo
Absoluto. Este Amor puro leva-nos a compreender o infinito,
a natureza, Deus.
O Amor visto como um sentimento que serve de
instrumento de penetração na essência da interioridade do
homem, da Natureza e de Deus segue o pensamento
rousseauniano. A ideia de que o sentimento místico da
Natureza não pode ser separado da interioridade pessoal
constitui aquilo que se costuma chamar o espírito
"romântico" de Rousseau. A Natureza é fonte da felicidade e
do Amor mais sublime do ser humano, Amor que possui uma
98
Cf. Antônio Henrique Leal, in DIAS, Gonçalves. Poesia e Prosa
completas. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1998, p.30.
Beleza Absoluta somente comparada a Deus e à Natureza.
Dessa forma, esta emoção revela ao máximo a carga mística
de sua vivência e formula a concepção de que ela só pode ser
compreendida pelo sentimento e não pela razão.
O amor é um sentimento marcado por ilogismos,
antíteses e paradoxos, como muito bem já definiu Camões:
Um não sei quê, que nasce não sei onde,/ Vem não sei como,
e dói não sei porquê./ (...) É um contentamento descontente;/
É dor que desatina sem doer;/ É um não querer mais que
bem querer, (...) (CAMÕES, L. V. 1980. p. 11/12). 99 Em "Se
se morre de amor!", Amor é vida, é ter alma, sentidos e
coração abertos ao grande, ao belo mais sublime; é ser capaz
d'extremos, é ser capaz de praticar as situações mais
antitéticas: das altas virtudes ao crime, do riso ao pranto, do
prazer à desventura, é ser o mais feliz, o mais ditoso e, ao
mesmo tempo, o mais triste, o mais misérrimo dos homens, é
ser tudo e nada, é ter o mundo e nada possuir, contradição
perigosa que pode levar definitivamente o homem à morte:
desse amor se morre.
Gonçalves Dias, o cantor do Amor, devastou
corações femininos com sua poesia. A mulher é literalmente
cantada pelo poeta, apesar de aparecer em seus textos, às
vezes, leviana, melindrosa, doce, bela e pura feito uma estrela
como em o poema "A leviana" (Ibidem, 1998, p. 126); às
vezes, um sonho, um delírio, um anjo ou uma etérea e fatal
visão como em "Delírio" (Ibidem, 1998, p. 148); às vezes,
uma musa romântica, que ama a solidão, o silêncio, o prado
florido, o sussurro das águas, os acentos / de profundo sentir,
como em "A minha musa" (Ibidem, 1998, p. 127); às vezes,
uma índia apaixonada (Leito de folhas verdes) ou escrava
99
CAMÕES, Luís. Lírica, épica, teatro, cartas. Organização de João
Alves e Douglas, Tufano São Puio, Moderna. 1980.
apaixonada do doce país de Congo, das terras dalémimar,
como em "A escrava" (Ibidem, 1998, p. 171) e, às vezes,
como sua Ana Amélia, seu inesquecível amor. A mulher,
neste poeta romântico, não deixa de ser idealizada e
inacessível, nunca realmente palpável, nunca pertence
deveras ao mundo sensível, sempre estará no mundo
inteligível, das ideias como pregava Platão: portanto, o amor
mulher será sempre platônico. Gonçalves Dias foi, antes de
tudo, um romântico.
Gonçalves Dias é o primeiro poeta realmente
brasileiro. Isso não quer dizer que não tenha ligações com a
matriz Europeia. Sua maior qualidade consiste exatamente na
inserção de alguns temas nacionais no código da cultura
Europeia: nacionalismo orgânico. Neste e em outros sentidos,
foi o continuador mais consciente de nossa experiência
neoclássica. O equilíbrio herdado dos clássicos confere-lhe
tonalidade especial por conter a veemência romântica.
Destaca-se, também, o tom clássico de sua linguagem, ainda
presa à influência de autores portugueses. É o que podemos
observar no poema "Olhos Verdes" (Ibidem, 1998, p. 429):

São uns olhos verdes, verdes,


Uns olhos de verde-mar,
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos cor de esperança,
Uns olhos por que morri;
Que, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
(Ibidem, 1998, p. 429)

Ao escrever este poema, Gonçalves Dias escolheu


uma epígrafe de Camões, o que já é um indício de sua
influência clássica. Porém a linguagem poética do
Romantismo recupera alguns procedimentos próprios da
poesia medieval, como o emprego da redondilha, abandonada
pela maior parte dos escritores da Era Clássica. Nesse poema
"Olhos Verdes" podemos perceber algumas influências
medievais combinadas com Classicismo. Ao longo da estrofe
transcrita, notamos uma forma pronominal antiga, do
português arcaico (mi em vez de mim), e uma construção
arcaica do Classicismo: "nem já sei qual fiquei sendo" (que
corresponde, em português moderno, a algo como “nem já sei
como fiquei”).
Observe que o “eu” lírico do poema é um
sentimental que perdeu o senso ou a própria identidade
depois que viu os olhos verdes da amada. Por não ter sido
correspondido, sente-se um morto vivo e, enlouquecido,
clama: Que ai de mi, lamentando a sua condição de infeliz,
diante da recusa da sua desejada. Tal negativa produziu um
desequilíbrio emocional e um profundo conflito no ser
apaixonado.
Os românticos rejeitam a razão e o equilíbrio dos
clássicos e valorizam a emoção, o conflito, a angústia e as
imagens paradoxais que o amor pode exprimir. Neste poema,
os olhos verdes da mulher amada, símbolo maior do
encantamento e da paixão, são comparados com o verde do
prado e do mar. Porém, este verde não transmite a paz que a
cor sugere, pelo contrário, inflama, derrama fogo e luz do
coração. Estes olhos verdes são reiteradamente verdes, de um
brilho reluzente, como a luz do ideal, só encontrada no
mundo inteligível, das ideias, como mostra o Mito da
Caverna, em A República 100de Platão.
100
PLATÃO. Diálogos – A república. Trad. Cleone Vallandro, Rio de
Janeiro, Tecnoprint, s. d.
Na quinta estrofe do poema, o poeta apresenta uma
analogia interessante: como se lê no espelho, os olhos
refletem a alma do ser querido, assim como o mar reflete o
céu e ambos se encontram no infinito pleno do Belo
Absoluto, símbolo do ideal.
Os olhos são espelhos da alma como expressa o
poeta, numa visão dualística; por outro lado, a alma também
possui um jogo contrapontístico no plano mental. Jean
Chevallier 101de explica que:
A alma tem dois olhos, escreve Silesius; um olha o tempo
o outro está voltado para a eternidade. Segundo os vitorinos,
une o amor, o outro a função intelectiva. Concebe-se, aqui
também, que a visão interior deva unificar essas dualidades.
Segundo Platão e São Clemente de Alexandria, o olho da
alma é não apenas único, mas desprovido de mobilidade; só
é suscetível, de uma percepção global e sintética. A mesma
expressão olho do coração ou do espírito pode ser
assinalada em Platino, Santo Agostinho, São Paulo, São
João Clímaco, em Filoteu, o Sinaíta, Elias o Èdico. São
Gregário de Nazianzo. (CHEVALIER.J.CHEERBRANT,
1982 p. 654)

Os olhos verdes, reflexo da alma dessa mulher,


traduzem um brilho intenso. Tal luz, na visão do apaixonado,
reflete, antes da função intelectiva, a eternidade, o amor, o
sentimento mais sublime que uma alma encantada pode ver,
sentir ou expressar. Por outro lado, sua alma, refletida nos
verdes olhos, traduzia antes do amor, a razão, já que o texto
sugere, na última estrofe: Eram verdes sem esp 'rança /
Davam amor sem amar! (Ibidem, 1998, p. 410). Porém,
eternizaram-se na lembrança e nos versos deste poeta do
amor.
101
CHEVALIER, J. & CHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos.
Trad. Vera da Costa e Silva, et alli, Rio de Janeiro, José Olympio, 1990.
A obra de Gonçalves Dias é marcada pela
composição lírica e nacionalista, entretanto, ele deixou-nos
uma série de poemas escritos em português arcaico, à moda
dos trovadores medievais. Todos os poemas estão reunidos
sob o título de Sextilhas de Frei Antão (Ibidem, 1998, p. 299-
366). A primeira história foi denominada de "Loa da
Princesa Santa", (Ibidem, 1998, p. 299):
BOMTEMPO foi o d'outrora
Quando o reino era cristão,
Quando nas guerras de mouros
Era o rei nosso pendão,
Quando as donas consumiam
Seus teres em devoção,
........................................
(Idem p. 75)

Esta obra é composta por 83 estrofes de seis versos


que narram e louvam o passado histórico lusitano dentro do
espírito romântico da evasão no tempo e no espaço. Esta
"Loa da Princesa Santa" é contada por um Frei Antão que
discorre sobre o passado medieval nos moldes dos antigos
romances, escritos em versos.
Era o tempo das Cruzadas, dos empreendimentos
militares e cristãos que, nos séculos XI e XIII, se dirigiam ao
Oriente a pretexto de libertar a Terra Santa do domínio dos
turcos. Nestas lutas e reconquistas, de forte influência do
clero, está o espírito guerreiro dos cavaleiros medievais, com
suas aventuras e desventuras, suas andanças regadas a sangue
e paixão, Cristianismo e Imperialismo, devoção e sede de
poder dos reinos ditos cristãos. Diante desse jogo de
interesses religioso e econômico: Chamava el-rei seus
vassalos/E cortes logo os reunia:/ Vinha o povo atencioso,/
Vinha muita cleregia,/ Vinha a nobreza do reino,/ gente de
muita valia (Ibidem, 1998, p. 299). Tomados pelo espírito
nacionalista, os jovens eram transformados em cavaleiros a
serviço do rei e da igreja.
As sextilhas vão sugerindo a sociedade elegante de
vida luxuosa, de hábitos cuidadosamente estabelecidos, de
participação exclusiva dos nobres e clérigos. Neste ambiente
tipicamente feudal, os elementos do povo não aparecem.
Todavia, o espírito dessa sociedade é guerreiro e
fanaticamente cristão, num misto de Cristianismo e
Imperialismo agressivo. Diante do discurso do rei: "Os
Infantes já são homens/ Vou-me às terras d'além-mar/ Armá-
los cavaleiros;/ Deus Senhor m'há de ajudar"(Ibidem, 1998,
p. 298). Todos já bradavam: "Seremos nessa folgança/ Honra
de nosso Senhor! "/ E logo todos em sembra,/ todos gente
muito de bem,/Na armada se agazalhavam/(...) E os Padres
de Sam Domingos/ Iam com eles também (Ibidem, 1998, p.
300).Os cavaleiros seguiam através de suas Cruzadas
queimando os hereges/ no fogo da expiação. E, assim os
portugueses conquistavam Ceita, Arzila ou Tângere, e todos,
a voz em grita,/clamavam: real! real! Assim, as glórias são
narradas, especialmente, as do el-rei Afonso quinto vencedor
dos prisioneiros mouros gigantes. De bigodes retorcidos,/
Com semblantes de atrevidos./ Causa medo vê-los tantos,/
Tam membrudos, tam crescidos (Ibidem, 1998, p. 304).
O tom novelesco das sextilhas vai relatando o
idealismo religioso unificado à ação heróica dos escudeiros;
robustos, guerreiros e bons cavaleiros. A partir da estrofe 42,
entra em ação o relato da princesa Dona Joana
(completamente idealizada, uma verdadeira imagem divina)
saindo dos Paços reais: Nos pulsos ricas pulseira/ Na fronte
finos ramais (Ibidem, 1998, p. 306); (...) Seus olhos valiam
tanto/Como duas esmeraldas (Ibidem, 1998, p.
307)./(...)Solto o cabelo em madeixas,/Pelas costas
debruçado:/ Cadeixo de fios d 'oiro,/Franjas de templo
sagrado (Ibidem, 1998, p. 307).
Dando pasto à imaginação, o poema adquire uma
tonalidade fantástica com a princesa santa vivendo a fazer
penitências e consumindo seus teres em devoção. O clímax
acontece quando a princesa de alma pura chega ao extremo
de pedir a el rei Afonso quinto para aceitar sua penitência
maior: ser sacrificada em agradecimento pelas vitórias do
reino: "Ao Deus que vence as batalhas/Dai-lhe a filha muito
amada;/ Dai-lhe a só filha que tendes/ Em tantos mimos
criada:/ Será a oferta bem quista/ E do Senhor aceitada”
(Ibidem, 1998, p. 310).
No fim da hístória, o rei cristão chorou o triunfo
breve/ E o prazer mal rematado,/Não como rei valeroso,/
Mas como pai anojado (Ibidem, 1998, p. 311). No entanto,
apesar de transtornado pela dor, aceitou a estranha oferta. O
cristianismo do rei foi mais forte que o amor paterno. Assim,
a princesa santa, de sublime amor, extrema devoção e
nacionalismo ficou na história do Frei Antão/De vida mui
alongada,/ Nossa Senhora da Escada/ O teve por Capelão
(Ibidem, 1998, p. 313).
Gonçalves Dias considerava estas sextilhas "um
ensaio filológico", devido ao seu português arcaico, pois as
características medievais são reveladas na linguagem, na
religiosidade e nas lutas santas. Este medievalismo
gonçalvino foi influenciado pelo grupo da revista O
Trovador, no seu tempo de estudante de Direito em Coimbra.

CONCLUSÃO
Do ponto de vista temático, o indianismo dominou a
obra de Gonçalves Dias. Embora não tenha sido o introdutor
do tema na poesia brasileira, foi, ao lado de José de Alencar,
quem o elevou à categoria de valorizador da nacionalidade,
renovando-o depois das tentativas sem êxito dos primeiros
românticos. Antes de Gonçalves Dias, o indianismo não
existia com expressividade, depois, ninguém mais escreveu
sobre o silvícola, sem ter como mestre, o poeta do índio. E
isso lhe foi possível, não somente porque era um poeta de
fértil imaginação e aguda sensibilidade, ou porque tivesse
sangue índio e da infância lhe restassem vivas lembranças
dos selvagens maranhenses; é que, a essas circunstâncias e
qualidades, teve o cuidado de somar o estudo das populações
indígenas, observando-lhes as crenças, as tradições, os
costumes, bem como a leitura inteligente dos viajantes e
cronistas, daí, resultando os trabalhos linguísticos,
etnográficos eas histórias que deixou, além da nota de
autenticidade que se percebe em sua obra literária.
O indianismo em Gonçalves Dias não se limitou à
descrição exterior de episódios e lendas e à exaltação da
natureza em que viviam os selvagens; alcançou a
interpretação da psicologia do índio brasileiro, no esforço de
mostrá-lo heróico, nobre de sentimentos e de ação, capaz de
categorizar o brasileiro em face do europeu. Nesse sentido,
deixou o que de melhor existe na poesia indianista brasileira
e foi o modelo em que se apoiam os demais românticos,
poeta ou romancistas; e graças a ele, a maioria dos principais
poetas brasileiros, até o modernismo, se julgou obrigada, de
certo modo, a tratar o tema.
Ao lado da poesia indianista, Gonçalves Dias deixou a
página lírica de acentuada beleza, que ainda hoje permanece
entre as melhores já escritas no Brasil. Entre os mais belos
poemas da nossa literatura, romântica ou não, estão os versos
de "Canção do exílio" (Ibidem, p. 105), Se se morre de
amor!" (Ibidem, p. 292), "Ainda uma vez adeus! "(Ibidem, p.
283), "Olhos verdes" (Ibidem, p. 409), "Saudades" (Ibidem,
p. 496), "O mar" (Ibidem, p. 201), "Ideias de Deus" (Ibidem,
p. 203), "A tempestade" do livro SEGUNDOS CANTOS
(Ibidem, p. 267), "A tempestade"(Ibidem, p. 623), do livro
LIRA VÁRIA , etc, nas quais o amor, a emoção, a nostalgia, a
melancolia, a tristeza, a religiosidade e o mar são os motivos
dominantes.
LIRA VÁRIA é um dass últimos publicações do
poeta e está composto por três da parte Outros Poemas e
Varieantes Principais, Versos Póstumos e Poesias
Traduzidas, este poema Tempestade (p. 623) foi retidado da
primeira parte essa última obra de Gonçalves Dias, inserida
na organização de Alexei Bueno, sob o título Gonçalves
Dias: poesia e prosa completas e publicada em 1998, pela
Nova Aguilar, com textos críticos de Manuel Bandeira.
A publicação de Sextilhas de Frei Antão (l843), em
português arcaico foi, de certa forma, para provar seu
conhecimento e bom manejo do idioma, em virtude de uma
de suas peças Beatrix Cenci (1843), ter sido recusada pelo
Conservatório Dramático, sob a alegação de incorreção de
linguagem. Raro, na verdade, terá sido o poeta brasileiro que,
como ele, dominou a língua portuguesa, escrevendo-a com
elegância e correção, tanto na poesia quanto na prosa; e
apesar de haver enriquecido a sua linguagem poética,
sobretudo com vocábulos indígenas e particularidades
fonéticas do falar brasileiro ("submarinha", "objeto",
"ignóbil", etc), ficou mais preso à tradição do que Alencar,
por exemplo.
Os poemas gonçalvinos possuem, antes das marcas
estilísticas da época, um espírito romântico e poético que não
pára no tempo, que está muito presente nesta época tão
modernizada do Terceiro Milênio. Ler Gonçalves Dias, hoje,
não é apenas conhecer o Romantismo do século XIX, é
reviver um espírito pleno de nacionalismo, é fazer despertar
as emoções adormecidas n'alma e pensar na natureza e em
Deus, amando e sentindo todas as emoções que o amor pode
despertar no ser, reconhecendo que o homem pode ser
sentimental sem pieguismo. Ler Gonçalves Dias é um prazer
sempre renovado que resgata a humanidade do homem.

IV – LIRA DOS VINTE ANOS Álvares de


Azevedo

Álvares de Azevedo, litogravura de L, A. Boulanger


Não tenho nada com isso,
Nem vem falar.
Eu não consigo entender sua lógica.
Minha palavra cantada pode espantar
E a seus ouvidos parecer exótica.
...............................................................
Canto somente o que não pode mais se calar
Noutras palavras, sou muito romântico”.
(Caetano Veloso)

“No fundo, eu sou mesmo um romântico inveterado.


No fundo, nada: eu sou romântico de todo jeito.
Eu sou romântico de corpo e alma,
de dentro e fora,
de alto a baixo, de todo lado: do esquerdo e do direito.
Eu sou romântico de todo jeito.
(Gilberto Mendonça Teles)

“Quem tivesse um amor, nesta noite de lua,


para pensar um belo pensamento
e pousá-lo no vento!”
(Cecília Meireles)

1. A LIRA DO NOIVO DA MORTE


“T is vain to struggle – let me perish youg”
Byron

“Foi por ti que num sonho de ventura


A flor da mocidade consumi,
E às primaveras digo adeus tão cedo
E na idade do amor envelheci!

Vinte anos! Derramei-os gota a gota


Num abismo de dor e esquecimento...
De fogosas visões nutri meu peito...
Vinte anos!... não vivi um só momento!
( AZEVEDO, Álvares de. Lira dos vinte anos. São Paulo: Ed. FTD, 1994,
p. 96.)
Este poema, denominado “Saudade” 102 é epigrafado
por um frase de George Gordon Byron, 103 o 6º Barão
Byron, poeta britânico (1788-1824, conhecido como Lord
Byron uma das figuras mais influentes do Romantismo). A
frase traz a seguinte instrução: “É inútio lutar – deixe morrer
moço!”

1.1. O Romantismo

Sempre houve temperamento e sensibilidade


romântica. O estado romântico da alma pode ser encontrado
em qualquer época, é uma constante universal caracterizada
pelo relativismo, pela busca da satisfação da natureza, no
regional, no pitoresco, e tendo na imaginação o meio para
fugir do mundo, com o qual o eu do artista entra em conflito.
Apóia-se na fé, na liberdade, na emoção. Idealiza a realidade.
102
Todas as citações de poemas foram retiradas de AZEVEDO, Álvares
de. Lira dos vinte anos. São Paulo: Ed. FTD, 1994,
103
Mary Wollstonecraft Shelley, nascida Mary Wollstonecraft Godwin -
(Somers Town, Londres, 30 de agosto de 1797 – Chester Square,
Londres, 1 de fevereiro de 1851) mais conhecida por Mary Shelley, foi
uma escritora britânica, filha do filósofo William Godwin e da feminista e
escritora Mary Wollstonecraft.
Em determinado momento, esse temperamento e
essa sensibilidade manifestaram-se com tanto vigor que
chegaram a configurar um estilo de época: o Romantismo.

1. 1.1. Contexto Histórico


2.
O século que se seguiu à Revolução Francesa foi um
período de mudanças rápidas e profundas. Em confronto com
ele, a vida nas épocas precedentes parece quase estacionária.
Jamais, em tão breve espaço de tempo, houve alterações tão
radicais nos modos de vida ou uma subversão de tradições
veneráveis, em tão larga escala. Uma avalancha de inventos
novos acelerou o ritmo da vida a um ponto que ultrapassava
os mais ousados sonhos de Leonardo da Vinci 104 ou de
Newton105.
Quando a Revolução Francesa terminou, a Europa
contava com 180 milhões de habitantes. Em 1914, essa
população atingira o total quase incrível de 460 milhões.
Nunca se tinha verificado, em épocas anteriores, algo
semelhante a tal acréscimo, em pouco mais de um século. Em
consequência dessa e de outras mudanças, a vida do homem
moderno assumiu um grau de complexidade e variedade até
104
Leonardo di Ser Piero da Vinci - Leonardo da Vinci (Anchiano, 15 de
abril de 1452 - Amboise, 2 de maio de 1519) Itália, uma das figuras mais
importantes do Alto Renascimento. Se destacou como cientista,
matemático, engenheiro, inventor, anatomista, pintor, escultor, arquiteto,
botânico, poeta e músico, o percursor da aviação, da balística e criador
de "Mona Lisa" e “A útima Ceia”.
105
Isaac Newton (Woolsthorpe-by-Colsterworth, 4 de janeiro de 1643 -
Kensington, 31 de março de 1727) foi um astrônomo, alquimista, filósofo
natural, teólogo e cientista inglês, mais reconhecido como físico e
matemático.
então desconhecido. Os novos ideais sociais e políticos
multiplicaram-se em desconcertante confusão. Foi uma época
de alterações contínuas, de tendências em conflito e de
agudas divergências sobre os problemas sociais.
Assim o historiador Edward Burns 106 sintetiza o
caráter da nova época em que surgiu o estilo de época
denominado Romantismo.
A origem do Romantismo prende-se ao progresso
político, econômico e social da burguesia. Após a Revolução
Francesa (1789), o Absolutismo entra em crise, dando lugar
ao Liberalismo, doutrina fundamentada na crença da
capacidade individual do homem.
O Arcadismo representa uma imitação dos modelos
clássicos; o Romantismo vai propor total liberdade de
criação, não obedecendo a modelos preestabelecidos,
representando, pois, uma ruptura dos padrões aceitos até
então.
Victor Hugo, 107 escritor francês do século XIX,
preconizava:
Metamos o martelo nas teorias, nas poéticas e nos
sistemas. Abaixo esse velho reboco que mascara a
fachada da arte! Nada de regras nem de modelos!

1.1.2. A Poesia Ultra-Romântica de Álvares De


Azevedo
106
EDWARD Mcnall BURNS Professor de História da Rutgers
University e autor de BURNS, Edward McNall. História da civilização
ocidental. Tradução de Lourival Gomes Machado, Lourdes Santos
Machado e Leonel Vallandro. Porto Alegre: Editora Globo, 1971.
107
Victor-Marie Hugo (Besançon, 26 de fevereiro de 1802 - Paris, 22 de
maio de 1885) foi um romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista,
estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação
política em seu país.
Álvares de Azevedo viveu profundamente o
Romantismo e marcou a fase aguda, a Segunda Geração da
nossa poesia romântica, escrevendo entre o Indianismo de
Gonçalves Dias (ainda tão amarrado ao Classicismo) e os
versos inflamados de Castro Alves108(com seu engajamento
político e literário).
Influenciado pelos britânicos George Gordon - Lord
Byron, Mary Shelleye, pelos franseses, Alfredo de Musset
109
e Victor Hugo, Alvares de Azevedo enfatizou a
imaginação criadora, o subjetivismo, a solidão, o desânimo, a
melancolia, o pessimismo, o sonho e a morbidez. Sua poesia
foi contagiada pelo mal-do-século e transpira byronismo,
satanismo, paixões exasperadas, saudades. Porém, se por um
lado Byron foi sua mola propulsora, por outro, não se pode
passar por cima de uma das maiores contribuições deste poeta
à literatura brasileira: ele foi dos primeiros a utilizar a ironia
como técnica poética e a incorporar à sua poesia a descrição
de objetos cotidianos como o charuto, a lamparina, o
conhaque, sua cama, seus livros.
Álvares de Azevedo deu um banho de concretude e
prosaísmo num período em que, para a literatura, tudo era
fluído e esfumado. Apesar de ter escrito poesias lacrimosas,
melosas, tão carregadas de “spleen”, demonstrou uma veia
sarcástica e brincalhona em boa parte de sua obra.

1. 1.3. Liberdade criadora e subjetivismo


108
George Gordon Byron, 6º Barão Byron. (Londres, 22 de janeiro de
1788 - Missolonghi, 19 de abril de 1824)
109
Alfred Louis Charles de Musset (Paris, 11 de Dezembro de 1810 -
Paris, 2 de Maio de 1857) Diz-se que ele foi "o mais clássico dos
românticos e o mais romântico dos clássicos".
Expoente do Ultrarromantismo brasileiro, o jovem
poeta, Álvares de Azevedo, proclamou sua independência
pessoal para julgar o que era belo ou verdadeiro. Não seguiu
as regras clássicas ditadas exclusivamente pela razão e
eliminou os preconceitos gerais que tendem a uniformizar os
estilos e cortar as asas da imaginação pessoal; exaltou o gênio
criador e renovador do artista, criou mundos imaginários,
livres, solitários e únicos; deixou descer o gênio da poesia e
do romantismo sobre sua vida. No poema “Lágrimas de
Sangue” (AZEVEDO, Álvares, 1994 p. 109), 110 tem como
epigrafe de Jó (Jó 10,1) (BÍBLIA SAGRADA. , 2012, p. 651)111
“Taedet animam meam vitae meae”, que na tradução de
São Jerônimo, explicou como Vulgata, (vulgata editio ou
vulgata versio ou vulgata lectio, respectivamente "edição,
tradução ou leitura de divulgação popular) – e, muito
acertadamente, é bastante literal, mas sem a estrutura do
hebraico antigo, e diz algo como: "minha alma está cansada
da minha vida" ou “ Estou cansado de viver”.
“Lágrimas de Sangue” exprime: Indolente Vestal,
deixei no templo / A pira se apagar – na noite escura / O
meu gênio descreu./ Neste poema percebemos, de um lado, a
auto-idealização do poeta, que se considera um ser em
exceção entre os homens. Por outro lado, um gênio solitário,
poeta livre, criativo, que não se apega a leis e não tem a
morte como alívio para dores da vida.
As composições de Ávares de Azevedo seguem a
forma da emoção, por isso, possuem métrica e rimas
110
AZEVEDO, Álvares de. Lira dos vinte anos. São Paulo: Ed. FTD,
1994.
111
BÍBLIA SAGRADA. Tradução da CNBB com Introduções e Notas ,
16ª Brasília. ed. Editora Canção Nova, 2012.
variáveis, reguladas pelo sentimento e pela criatividade.
Muitas vezes, são escritas em versos brancos, cuja cadência
está muito próxima da prosa. Em seus textos, a realidade
sempre é revelada através da atitude pessoal do escritor, não
se preocupando, com modelos. O artista traz à tona o seu
mundo interior, com plena liberdade. Aliás, esta característica
– o subjetivismo – está ligada estreitamente à imaginação
criadora, como projeção do mundo. Observe o fragmento do
poema “AT...” (Ibidem p. 61/63):

Amoroso calor meu rosto inunda,


Mórbida languidez me banha os olhos,
Ardem sem sono as pálpebras doridas,
Convulsivo tremor meu corpo vibra:
Quanto sofro por ti! Nas longas noites
Adoeço de amor e de desejos
E nos meus sonhos desmaiando passa
A imagem voluptuosa da ventura...
Eu sinto-a de paixão encher a brisa,
Embalsamar a noite e o céu sem nuvens...
(Ibidem p. 61)

O poeta imagina um mundo de amor e impregna os


versos de emoções pessoais; adoece ”de amor e de desejos”,
foge para um mundo idealizado e de sonhos, e nesse busca
de um mundo imaginário, acredita na realidade do mesmo.

1. 1. 4. Sonho x realidade

O embate sonho x realidade é uma das tensões da


poesia de Álvares de Azevedo. O sonho permite a criação de
um ambiente pessoal, povoado de situações e figuras
idealizadas, que permite ao escritor fugir para um mundo de
idealizações à base do sonho e das emoções pessoais. O poeta
procura universos de ilusões, mulheres imaginárias,
fantásticas, amores impossíveis, como no fragmento do
poema “Ideias Íntimas” (Ibidem p. 139-147):

Junto a meu leito, com as mãos unidas,


Olhos fitos no céu, cabelos soltos,
Pálida sombra de mulher formosa
Entre nuvens azuis pranteia orando.
É um retrato talvez. Naquele seio
Porventura sonhei doiradas noites:
Talvez sonhando desatei sorrindo
Alguma vez nos ombros perfumados
Esses cabelos negros, e em delíquio
Nos lábios dela suspirei tremendo.
Foi-se minha visão. E resta agora
Aquela vaga sombra na parede
– Fantasma de carvão e pó cerúleo,
Tão vaga, tão extinta e fumarenta
Como de um sonho o recordar incerto.
(Ibidem p. 142-143)

No texto acima há uma descrição de uma mulher


formosa. Esta descrição aproxima-se de uma imagem
angelical, intocável e sagrada que caracteriza a Senhora, a
“Mulher anjo” da concepção medieval: com as mãos unidas,
/ Olhos fitos no céu, / entre nuvens azuis pranteia orando.
Ao mesmo tempo, não sabemos até que ponto se
trata de uma imagem, uma visão, ou um sonho: Pálida
sombra de mulher formosa / É um retrato talvez”...um retrato
onde a sensualidade, o erotismo, também aparecem: “cabelos
soltos,... /... seio /... ombros perfumados / ...lábios.... Observe
que aqui o elemento mais importante e presente nos versos é
o predomínio do sonho sobre a realidade. Apenas
sonhando, o poeta aproxima-se da mulher. Isto porque,
embora se possa perceber com clareza o desejo carnal,
sensual, a “imagem” que o desperta não passa de uma
imagem, de uma visão que se esvai e se transforma em
Fantasma de carvão e pó cerúleo, / ... vaga... extinta e
fumarenta / Como de um sonho o recordar incerto.
Temos, assim, a presença de um erotismo doentio e
reprimido neste poema. Um erotismo que torna sagrada,
ideal e, por isso, intocável e medieval a imagem da mulher
que o desperta. Ultrarromantismo: contradição entre desejo e
satisfação, entre o ideal e o real, entre o sonho e a realidade
no seu mais alto grau, na sua mais expressiva e radical voz
poética, em termos de literatura brasileira: a voz lírica de
Álvares de Azevedo.
A contradição entre o sonho x realidade leva o
romântico para um estado de desencanto, de tristeza e de
spleen. Atente, no fragmento abaixo, para um momento de
profundo desespero do “eu” lírico, diante do despertar para a
inexorável e sombria realidade:
Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas
Passam tantas visões sobre meu peito!
Palor de febre meu semblante cobre,
Bate meu coração com tanto fogo!
Um doce nome os lábios me suspiram,
Um nome de mulher... e vejo lânguida
No véu suave de amorosas sombras
Seminua, abatida, a mão no seio,
Perfumada visão romper a nuvem,
Sentar-se junto a mim, nas minhas pálpebras
O alento fresco e leve como a vida
Passar delicioso... Que delírios!
Acordo palpitante... inda a procuro;
Embalde a chamo, embalde as minhas lágrimas
Banham meus olhos, e suspiro e gemo...
Imploro uma ilusão... tudo é silêncio!
Só o leito deserto, a sala muda!
Amorosa visão, mulher dos sonhos,
Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto!
Nunca virás iluminar meu peito
Com um raio de luz desses teus olhos?
(Ibidem p. 144)

Neste fragmento de Ideias Íntimas, o sonhador


imagina uma mulher lânguida, ardente seminua, abatida, a
mão no seio / perfumada visão. De repente, acorda e enfrenta
a triste e melancólica realidade da solidão, das lágrimas, da
fantasia, do desalento, aumentando ainda mais o seu conflito
entre o real e o sonho. A consciência da fragilidade do sonho
faz o poeta afirmar: Feliz daquele que no livro d’alma / Não
tem folhas escritas, / E nem saudade amarga, arrependida, /
Nem lágrimas malditas!... Nem resvalou do sonho deleitoso /
A reais pesadelos. (Ibidem p. 69). Porém, Álvares de
Azevedo enfatiza o devaneio em poemas como “Cismar”
(Ibidem p. 32), “Sonhando” (Ibidem p. 29), “O Poeta”
(Ibidem p. 44), “Crepúsculo do Mar” (Ibidem p. 63),
“Crepúsculo das Montanhas” (Ibidem p. 66), “Anima Mea”
(Ibidem Ibidem p. 73), “Tarde de Verão (p. 87), “Tarde de
Outono” (Ibidem p. 89), “A Tempestade” (Ibidem p. 114),
entre outros”; e todos revelam a preferência pela quimera e
cenários sombrios, tristes, notívagos, crepusculares e
misteriosos.
O poema “Sonhando” apresenta um cenário onírico:

Na praia deserta que a lua branqueia,


Que mimo! que rosa, que filha de Deus!
Tão pálida – ao vê-la meu ser devaneia,
Sufoco nos lábios os hálitos meus!
Não corras na areia,
Não corras assim!
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!
......................................................
A praia é tão longa! E a onda bravia
As roupas de gaza te molha de escuma;
De noite – aos serenos – a areia é tão fria,
Tão úmido o vento que os ares perfuma!
És tão doentia!
Não corras assim!
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!
(Ibidem p. 29)

Observe a construção imagética deste poema quase


cinematográfico: a lua que branqueia, a mulher pálida e fria,
com suas roupas de gaza molhadas pelas escumas. O poema
exemplifica a incrível ânsia de amar que anima o poeta –
transformada em febre – numa busca sem fim.
A heterometria do texto (hendecassílabos e
pentassílabos), oferece ao texto uma dinâmica rítmica,
sugerindo o movimento das ações narradas e conferindo
musicalidade nas interpelações, numa forma coexistência do
movimento narrativo e do interpelativo.
O antológico soneto “Pálida, a luz da lâmpada
sombria” (Ibidem p. 72) é outro exemplo desse clima de
sonho. Nele, o poeta devaneia e se compraz em contemplar a
mulher, ora virgem do mar, ora Anjo entre nuvens
d’alvorada; tudo em profunda atmosfera de irrealidade. Veja
o poema:

Pálida à luz da lâmpada sombria,


Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!
Era virgem do mar, na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d’alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! O seio palpitando...


Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te ria de mim, meu anjo lindo!


Por ti – as noites eu velei chorando,
Por ti – nos sonhos morrerei sorrindo!
(Idem p. 72)

Na primeira estrofe, o “eu” lírico já anuncia a


temática do poema na menção à mulher, sugerida por pálida,
comparada com a lua, envolvida por flores e nuvens de amor:
A mulher dos sonhos.
O segundo quarteto inaugura um novo conjunto de
evocação simbólica, através do qual o poeta vai compor a
imagem da amada, que poderia ser definido como referências
a elementos marinhos, embora mantenha a alusão às nuvens,
elemento já mencionado nos versos anteriores, na construção
da amada: Entre as nuvens do amor ela dormia / ... Era um
anjo entre as nuvens d’alvorada. Considerando, pois, os
dois quartetos, pode-se dizer que eles têm em comum a
imersão da amada num ambiente de natureza simbólica
envolvida num clima de sonho. Portanto, impalpável, pálida,
virgem do mar, anjo, etérea.
O primeiro terceto rompe com a caracterização desta
figura feminina, para sugerir a sexualidade da mulher,
inaugurando outra dimensão. A mulher é materializada, toma
corpo e sensualidade: O seio palpitando... formas nuas no
leito resvalando.
É interessante notar, ainda em relação à primeira e
segunda estrofes, a predominância de verbos que sugerem
passividade e repouso como: “dormia”, “embalada”,
“esquecia”. Já na terceira estrofe percebemos a
predominância de construções que sugerem movimento lento
e contínuo, reforçado pelas reticências que enfatizam a ação e
o movimento: “palpitando...”, “abrindo...”, “resvalando...”.
Na última estrofe, a mudança dos tempos verbais
intensifica o tom subjetivo e o enfoque individualista do “eu”
lírico, já que este último terceto revela o quanto o desejo
acaba sendo reprimido e sublimado, fato comum no poeta:
Por ti as noites eu velei chorando” / “Por ti nos sonhos
morrerei sorrindo, concluindo, assim, que o poeta viveu e
morreu sonhando, desfecho que nos remete às palavras de
W. Cowper: “Sonhos, sonhos, sonhos” e a epígrafe do
poema “No Mar” (Ibidem p. 27), com as palavras de George
Sand: “No céu, as estrelas iluminam e a brisa leve da noite
passeia entre as flores: sonhos, cantos e suspiros”.
A composição Crepúsculo do Mar (Ibidem p. 64)
apresenta a Hora solene das ideias santas / Que embala o
sonhador nas fantasias, / Quando a taça do amor embebe os
lábios / Do anjo das utopias! Hora solene conota a semi-
obscuridade do ocaso, do crepúsculo no mar, do sonho e do
poema, que apresenta uma realidade exterior difusa, onírica e
cria um cenário lírico e intimista ao diluir os contornos da
paisagem e propiciar o império do “anjo das utopias” – livre
imaginação do poeta com seus sonhos, ideais e fantasias; é a
criatividade tal como um cavalo alado voando sobre o poema
e criando recursos expressivos, visuais e sonoros. Em “Meu
Sonho” , Álvares de Azevedo cria um clima onírico de
galopada fantasmagórica:
Cavaleiro das armas escuras,
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sangrenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?
...........................................................
Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?...
Tu escutas... Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?
Cavaleiro, quem és? - que mistério,
Quem te força da morte do império
Pela noite assombrada a vagar?
(Ibidem p. 209)

O poeta descreve um sonho em que um fantasma,


galopando pelo reino da morte, corporifica sua angústia
resultante das frustrações de suas aspirações. A cadência
martelada dos versos eneassílabos, acentuados na 3 a, 6a e 9a
sílabas, faz o som unir-se ao sentido e representar
sonoramente a marcha ritmada do galope do cavalo, ao
mesmo tempo em que cria o ofego de angústia do eu (cf
CÂNDIDO, A. 1985. p. 43). 112 O galope insere-se num
cenário noturno, visualizado pelo uso de expressões que
sugerem obscuridade: “armas escuras”, “trevas impuras”,
“macilento qual morto na tumba”. A atmosfera do poema é
típica do Romantismo – a noite favorece e intensifica o
mistério, o inexplicável, o indefinível. Na compreensão do
mundo, o romântico pouco utiliza a razão. Por isso, mergulha
no seu inconsciente onde tudo é caótico, misterioso e

112
CÂNDIDO, Antônio. Na sala de aula. São Paulo: Ed. Ática, 1985.
extraordinário. O escritor romântico está aberto para o
sobrenatural e o fantástico. Álvares de Azevedo é, por
excelência, o poeta da noite, do sono e do sonho. A esta
atmosfera acrescenta-se o clima de mistério e fantasmagoria
em torno do cavaleiro, que galopa dentro da noite de um
sonho com conotações de pesadelo, medo, reforçando o lado
macabro dos versos Azevedianos.

1. 2. 3. A idealização da mulher

Um dos elementos mais constantes nos versos de


Álvares de Azevedo é a mulher, que aparece ora virgem
adormecida, pálida, inocente, inatingível, ora prostituta. A
figura feminina povoa seu universo, numa obsessão de
adolescente, cujo caráter sonhador e irreal, além de
irrealizável, dá o tom às cenas das quais participam estas
figuras mágicas e idealizadas.
A mulher, entre os românticos, aparece convertida em
anjo, em figura poderosa, inatingível, capaz de mudar a vida
do próprio homem. No decorrer de sua Lira dos Vinte Anos,
Álvares de Azevedo, somando espiritualismo e temperamento
sonhador, reveste a mulher com áurea angelical, tipicamente
romântica.

1. 1.5. O Platonismo amoroso

O adolescente Álvares de Azevedo explicita sua


inexperiência amorosa em versos como na estrofe IX de
“Ideias Intimas” (Ibidem p. 144): Oh! ter vinte anos sem
gozar de leve / A ventura de uma alma donzela! / E sem na
vida ter sentido nunca /na suave atração de um róseo corpo /
Meus olhos turvos se fechar de gozo! O jovem adolescente
não conhece o amor, vive no mundo supra-sensível ou
inteligível, teorizado por Platão. Desta forma, o amor para o
jovem poeta existe apenas no mundo das ideias, é platônico.
Do platonismo de Álvares surgem as mulheres idealizadas,
puras, santas, donzelas, virgens e mortas. Vejamos alguns
versos do poema “Virgem Morta”:

Ó minha amante, minha doce virgem,


Eu não te profanei, e dormes pura:
No sono do mistério, qual na vida,
Podes sonhar apenas na ventura.
............................................................
No leito virginal de minha noiva
Quero, nas sombras do verão da vida,
Prantear os meus únicos amores,
Das minhas noites a visão perdida!
.............................................................
E quando a mágoa devorar meu peito,
E quando eu morra de esperar por ela,
Deixai que eu durma ali e que descanse,
Na morte ao menos, junto ao seio dela

(Ibidem p. 101-102)

A virgem é um símbolo da mulher imaculada, pura,


santa, altamente idealizada. A morte salva a criatura de ser
conspurcada pelo amor carnal, pelo mundo sensível, real de
que nos fala Platão em suas teorias das ideias. Assim,
morrendo a donzela, desaparece a possibilidade da realização
amorosa no plano terreno, real, para transcender-se ao
espiritual e ideal na concepção romântica.
O amor e a morte são inseparáveis no Romantismo. O
amor é, em princípio, a face afirmativa de um ideal, da vida,
do anseio de viver extremamente, sentindo todos os prazeres
e o gozo supremo da vida, êxtase que se realiza plenamente
no prazer amoroso: Amemos! Quero de amor / Viver no teu
coração! / Sofrer e amar essa dor / Que desmaia de paixão!”
(Ibidem p. 199). Por outro lado, o romântico é um ser
insatisfeito, vive no plano das ideias. Diante da plena
irrealização amorosa durante a vida, busca no seu extremo, na
morte, a realização do seu sonho de amor. Se a vida negou-
lhe o amor supremo, na morte nenhum ideal lhe será negado:
Ó minha virgem dos errantes sonhos, / Filha do céu, eu vou
amar contigo! (Ibidem p. 119). A morte é a ponte para
concretizar o sonho do platônico amor e onde a limitação dos
instintos é sublimada e o erotismo é levado ao plano das
sensações espirituais.

1. 1.6. A imagem da mulher adormecida

A imagem da donzela adormecida é a figura central


dos sonhos do poeta adolescente. No poema “Cantiga”
(Ibidem p. 94), o “eu” lírico apresenta:

Em um castelo doirado
Dorme encantada donzela;
Nasceu – e vive dormindo
– Dorme tudo junto dela.
.........................................
E no castelo, sozinha,
Dorme encantada donzela:
Nasceu - e vive dormindo
– Dorme tudo junto dela.
..........................................
A donzela adormecida
É a tua alma santinha,
Que não sonha nas saudades
E nos amores da minha
(Idem p. 94)

Os versos acima fazem alusão ao mito da bela


adormecida ou da branca de neve, também bela, adormecida,
virgem, fragilizada e semimorta. Imagens semelhantes
encontram-se em outros poemas, especialmente na estrofe
sete de Ideias Intimas:

Em frente do meu leito, em negro quadro


A minha amante dorme. É uma estampa
De bela adormecida. A rósea face
Parece em visos de um amor lascivo
De fogos vagabundos acender-se...
E com a nívea mão recata o seio...
Oh! quantas vezes, ideal mimoso,
Não enchestes minh’alma de ventura,
Quando louco, sedento e arquejante,
Meus tristes lábios imprimi ardentes
No poento vidro que te guarda o sono

(Ibidem p. 143)
Verifique nos dois fragmentos acima que a mulher
adormecida aparece como objeto de adoração, próxima, mas
distante. O poeta limita-se a ser um contemplador reverente,
apaixonado. No fragmento sete de Ideias Intimas, o poeta é
mais do que um observador, é um jovem extremamente
deslumbrado com os vícios de um amor lascivo / de fogos
vagabundos ascender-se.
Mário de Andrade, no ensaio “Amor e Medo”, analisa
a atitude do autor desta Lira com relação ao amor: “Porém a
mais bonita e mais medrosa criação que Álvares de Azevedo
inventa, nesse desvio do amor e medo pro dormir no amor,
não está na aspiração ao sono, ou na imagem do rapaz
adormecido: está sim na imagem da amante adormecida. Que
libertação! “O poeta pode gozar o seu amor, junto com a
amada e ao mesmo tempo sozinho, fugindo dos pavores que o
perseguem”(ANDRADE, M. (1967) p. 225). 113
Em Álvares de Azevedo o amor é sempre irrealizado e
só ocorre no plano do sonho, da fantasia. Ou o “eu” lírico
sonha a posse sexual da amada, ou a amada dorme; a
contemplação do sonho estimula os desejos do poeta
adolescente. O amor carnal está sempre associado à culpa e à
punição; coexistem o desejo e o medo do amor.

2. O NOIVO DA MORTE

Além da figura feminina, Álvares de Azevedo


versejou sobre outro tema com igual constância – A Morte –
numa espécie de prenúncio do trágico desfecho de sua vida, a
tal ponto do biógrafo Vicente de Azevedo denominá-lo de O
Noivo da Morte.
De fato, a morte é mais forte do que a vida na obra
azevediana. Em poemas antológicos como “Se eu morresse
amanhã” (que não faz parte da Lira dos Vinte Anos e foi
escrito, segundo os biógrafos, em seu leito de agonia); “Um
cadáver de poeta” (Ibidem p. 125) e “Lembrança de
Morrer” (Ibidem p. 118), a morte domina.

2. 1. Lembrança de morrer

O livro de poemas Lira dos Vinte Anos traz como


epígrafe principal as seguintes palavras de Bocage: Cantando
a vida, como cisne a morte (Ibidem p. 22). Esta frase
113
ANDRADE, Mário. “Amor e medo”, in: Aspectos da literatura
brasileira. São Paulo: Livraria Martins, 1967.
predispõe o espírito do leitor para a temática do fim da vida e
para visão pessimista do “eu” lírico, que encara o viver como
um ato agônico e mórbido e sua poética como um canto desse
ato.
A existência é uma fonte de angústia, tédio e prisão,
seu fim é alegria e libertação. É o que expressa os versos de
“Lembrança de Morrer”:

Quando em meu peito rebentar-se a fibra,


Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nenhuma lágrima
Em pálpebra demente.

E nem desfolhem na matéria impura


A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.

Eu deixo a vida como deixa o tédio


Do deserto, o poento caminheiro,
- Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como o desterro de minhalma errante,


Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade - é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade - é dessas sombras


Que eu sentia velar nas noites minhas…
De ti, ó minha mãe, pobre coitada,
Que por minha tristeza te definhas!

De meu pai… de meus únicos amigos,


Pouco - bem poucos - e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,


Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei… que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!

Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores…
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,


Verei cristalizar-se o sonho amigo…
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário


Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta - sonhou - e amou na vida.

Sombras do vale, noites da montanha


Que minha alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto!

Mas quando preludia ave daurora


E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos…
Deixai a lua pratear-me a lousa!
(Ibidem p. 118-119)
Os temas da obsessão pela morte, do
desencantamento pela vida, da morbidez e da solidão: Não
derramem por mim uma lágrima / Em pálpebra demente ––
Não quero que uma nota de alegria / Se cale por meu triste
pensamento, são a base destes versos. Tal espécie de
masoquismo atinge um grau máximo na terceira estrofe,
quando o poeta identifica-se com o “poento caminheiro”,
que se despede do deserto. Assim, também, o “eu” lírico
despede-se da vida, metaforizada aqui, como as horas de um
longo pesadelo que se desfaz ao dobre de um sineiro.... Deste
modo, quando os sinos dobrarem pelo poeta, será um
momento de silêncio, paz e também de alegria.
O terceiro fragmento apresenta objetivamente o
descaso do poeta pelo fio vital. O Canto do Cisne – o
momento supremo –, o fim, aparece como alívio, já que o
pulsar do coração é dor e “um longo pesadelo”. O único
valor positivo que o “eu” lírico encontra no hálito que
vivifica é apresentado através da expressão “amorosa
ilusão”. Para o artista a vida é ilusão que as pessoas
embelezam de acordo com suas fantasias. Finalmente, expõe
o famoso epitáfio gravado na lápide de seu túmulo: “Foi
poeta – sonhou – e amou na vida” – resumindo o sentido da
existência de quem fez da sua lira, sua profissão de fé, de
amor, de vida e de morte.

2. 2. O pálido poeta

O eterno sono é configurado ainda mais nas palavras


“pálido”, “palor”, “palidez”, “macilento”, presentes em
praticamente todos os seus poemas e produção em prosa,
transmitindo à sua obra um aspecto doentio (tuberculoso).
Uma outra maneira do noivo da morte aproximar-se das
sombras do túmulo é o gosto pelo macabro e fantasmagórico.
Muitos de seus textos estão povoados de cadáveres, caveiras
e castelos fantásticos. Álvares de Azevedo incorporou o estilo
de Lord Byron e reproduziu com primazia o tédio e o spleen
desse mal-do-século.
O tom sóbrio conferido ao próprio rosto e ao próprio
livro da vida reforça o estereótipo do poeta ultrarromântico,
de sensibilidade doentia e mórbida. Sua Lira é o espelho de
alguém que em seus vinte anos cantou mais o fim do que o
princípio. Veja os seguintes versos do poema “Saudades”:

Foi por ti que num sonho de ventura


A flor da mocidade consumi,
E às primaveras digo adeus tão cedo
E na idade do amor envelheci!

Vinte anos! Derramei-os gota a gota


Num abismo de dor e esquecimento...
De fogosas visões nutri meu peito...
Vinte anos!... não vivi um só momento!
(Ibidem p. 96)

O crítico Antônio Cândido “definiu o mal-do-século


como um sentimento de inadaptação da vida a seus fins”
(CÂNDIDO, A. (1959), p. 28). 114 Ora, a vida é lume nos
olhos e não, sombras. A vida pode até ser uma ilusão ou até
uma reinvenção como afirma Cecília Meireles: 115 “A vida só
é possível reinventada / Anda o sol pelas campinas / e
passeia a mão dourada / pelas águas, pelas folhas... / Ah!

114
CÂNDIDO, Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Ed.
Martins, 1959. Vol. II.
115
MEIRELES, Cecília. Os melhores poemas de Cecília Meireles
(Seleção Maria Fernanda). São Paulo: Global, 1996.
tudo bolhas / que vêm de fundas piscinas / de ilusionismo... -
mais nada” (MEIRELES, C. (1996), p. 48). Porém, essa
última concepção não é tão pessimista quanto a dos
ultrarromânticos, pois, para a poetiza modernista, o homem
tem a capacidade de criar, reinventar e fazer da ilusão da
vida, uma realidade mais brilhante, mais sol do que noite.
Para os românticos não existe sol, vida; a noite e a morte
reinam em suas fantasias.

3. NA LIRA DOS VINTE ANOS – DUAS ALMAS


– DOIS PREFÁCIOS

Álvares de Azevedo escreveu dois prefácios nos


originais da LIRA DOS VINTE ANOS. No primeiro, fala da
parte lírica, doce, tímida e frágil: É uma lira, mas sem corda:
uma primavera, mas sem flores, uma coroa de folhas, mas
sem viços. Cantos espontâneos do coração, vibrações
doloridas da lira interna que agita um sonho, notas que o
vento levou... (AZEVEDO, Álvares, 1994, p. 23). No
segundo, refere-se ao pessimismo, à tristeza, à desilusão, ao
spleen, à sátira e à ironia. De acordo como o próprio artista,
sua obra oscila entre os extremos de duas faces:

Cuidado, leitor, ao voltar esta página!


Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico.
Vamos entrar num mundo novo, terra fantástica,
verdadeira ilha Baratária de D. Quixote, onde Sancho é
rei, e vivem Panúrgio, sir John Falstaff, Bardolph,
Fígaro e o Sganarello de D. João Tenório: - a pátria dos
sonhos de Cervantes e Shakespeare.
Quase que depois de Ariel esbarramos em
Caliban.
A razão é simples. É que a unidade deste livro
funda-se numa binômia. Duas almas que moram nas
cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta
escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.
(Ibidem p. 123)

Esta binômia é muito clara na obra azevediana. De um


lado, encontramos uma face Ariel, do outro lado, a face
Caliban. Ariel e Caliban são entidades mitológicas, populares
que representam respectivamente o bem e o mal. Shakespeare
incorporou-as como personagens em sua peça A
TEMPESTADE. A primeira é símbolo do espírito aéreo,
gênio gentil; a segunda, é um selvagem e deformado escravo,
um monstro, a personificação da força bruta. Em Álvares de
Azevedo, encontramos duas faces do mesmo autor: de um
lado, Ariel, terna, lírica, bondosa x Caliban, sarcástica,
maldosa; de um lado, aparece a mulher pura x a prostituta
sifilítica; o Álvares virgem x o boêmio inveterado.
Os dois lados expressam o ser do Álvares romântico,
muito romântico (estado de alma e estilo) e do Álvares de
Azevedo adolescente e filho do século XIX em crise consigo
mesmo e com o mundo, sofrendo o mal que não foi exclusivo
do século passado, mas de todas as épocas. O adolescente, ao
descobrir o mundo com os olhos mais críticos, percebe as
imperfeições, a dureza da realidade, surgindo, a partir daí, a
crise existencial própria dessa faixa etária. Por outro lado,
ainda, o vate, como um sujeito do seu tempo e como profeta,
sentiu as crises resultantes das mudanças históricas: a queda
da aristocracia, derrubada pela Revolução Francesa e pela
burguesia insatisfeita, sem uma essência definida, o que
denota que ele viveu sob o signo de crises, quer individual,
quer coletiva.
Em consequência de tal situação, sua obra reflete um
ser em conflito e antitético: uma lira ora lírica e ingênua; ora
sarcástica e impiedosa, expressando as duas almas de um
jovem que viveu vinte anos, mas legou à literatura textos
criativos, marcados pela força da arte da palavra.

3. 1. A Face Ariel

O Álvares de Azevedo – Ariel e sublime – está


explicito na maioria dos poemas de sua LIRA, como o poeta
do amor: “Nada lhe pedi / ousei apenas” (Ibidem p. 49),
“Meu desejo” (Ibidem p. 197), “Porque mentiras” (Ibidem
p. 198), “Amor” (Ibidem p. 199); da ilusão: “Fui um doido
em sonhar tantos amores” (Ibidem p. 47), Foi mais uma
ilusão na minha fronte” (Ibidem p. 48); da fantasia:
“Fantasia” (Ibidem p. 200); das lembranças: “Os quinze
anos de uma alma transparente” (Ibidem p. 205),
“Lembranças dos quinze anos” (Ibidem p. 206); da vida:
“Lágrimas da vida” (Ibidem p. 203); da virgem pálida:
“Inocência” (Ibidem p.71), “A.T.” (Ibidem p. 61), “Anima
mea” (Ibidem p. 73), “Toda aquela mulher tem a pureza”
(Ibidem p.184), “Pálida imagem” (Ibidem p. 221), “Seio de
virgem” (Ibidem p. 223), “Minha musa” (Ibidem p. 225); da
tempestade: “O céu enegreceu lá no ocidente (Ibidem p.
115); do mar: “No mar” (Ibidem p. 27); dos anjos:
“Anjinho” (Ibidem p. 34), “Anjos do mar” (Ibidem p. 37); do
crepúsculo: “Crepúsculo do mar” (Ibidem p. 63),
“Crepúsculo das montanhas” (Ibidem p. 66), “Tarde de
verão” (Ibidem p. 87), “Tarde de outono” (Ibidem p. 87); da
sua terra: “Na minha terra” (Ibidem p. 54); dos sonhos:
“Sonhando” (Ibidem p. 29), “Fantasia” (Ibidem p. 200),
“Meu sonho” (Ibidem p. 209). Todos estes poemas compõem
a primeira e a terceira parte da LIRA e trazem o espírito
lírico e sonhador já apresentado e comentado anteriormente
nos itens sobre a idealização da mulher, o platonismo e
sonhos x realidade.

3. 2. A Face Caliban

Segundo o próprio Álvares, depois da doença da


vida, que não dá ao mundo objetivo cores tão azuladas como
o nome britânico de blue devils, descarna e injeta de fel cada
vez mais o coração. Nos mesmos lábios onde suspirava a
monodia amorosa, vem a sátira que morde. (Ibidem 124).
Isto é, tanto o lado lírico, quanto o satírico, são formas de ver
o mesmo mundo por um poeta. O autor exemplifica tal tese
com a seguinte ilustração: É assim. Depois dos poemas
épicos Homero escreveu o poema irônico. Goethe depois de
Werther criou o Faust. Depois de Parisina e o Giaour de
Byron vem o Cain e Don Juan – Don Juan que começa como
Cain pelo amor, e acaba como ele pela descrença venenosa e
sarcástica. (Idem p. 124). Sendo assim, depois de expressar
sua visão idealizada sobre a realidade, o poeta encara a vida
com suas verdades e cores reais, visão realista que é a
expressão dominante da segunda parte dessa LIRA.
A face Caliban veste a máscara do riso impiedoso, da
galhofa e do sarcasmo ferino. Eugênio Gomes, comentando
sobre a poesia azevediana, afirma que: “tão importante é a
sua contribuição a respeito que algumas de suas melhores
composições são justamente as que têm o travo desse
diabólico licor” (GOMES, E. (1971), p. 143). Concordamos
com o crítico, pois, em textos como: “Um cadáver de poeta”
(Ibidem p. 125), “Boêmios” (Ibidem p.148), “É Ela! É Ela!
É Ela! É Ela” (Ibidem p. 180), “O cônego Filipe” (Ibidem p.
125), “Namoro a cavalo” (Ibidem p. 189), “Dinheiro”
(Ibidem p.193) e “Spleen e Charutos” (Ibidem p. 173), o
mais ultrarromântico dos poetas brasileiros registra
momentos poéticos de fabulosas crítica e ironia.

3. 2. 1. O diabólico licor

A poesia da doce essência transformou-se num licor


amargo extraído de uma sátira mordaz e maliciosa. O texto
“Um cadáver de poeta” (Ibidem p. 125) abre essa parte
representando com maestria as atitudes de Caliban, cheias de
sarcasmo e riso febril. O “eu” lírico apresenta-se desvairado
ante a brutalidade, a insensatez e a insensibilidade dos
homens para com a poesia:

I
De tanta inspiração e tanta vida
Que os nervos convulsivos inflamava
E ardia sem conforto...
O que resta? Uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava...
Resta um poeta morto!
..............................

II
“Morreu um trovador – morreu de fome.
Acharam-no deitado no caminho:
............................
Ninguém ao peito recostou-lhe a fronte
Nas horas de agonia! Nem um beijo
............................

Ninguém chorou por ele... No seu peito


Não havia colar nem bolsa d’oiro;
Tinha até seu punhal um férreo punho...
Pobretão! não valia a sepultura!
..............................
De que vale um poeta – um pobre louco
Que leva os dias a sonhar – insano
Amante de utopias e virtudes
E, num tempo sem Deus, ainda crente?
(Idem p. 125)
O poema compõe-se de sete quadras que pintam, de
forma impressionante e fantástica, a morte de um jovem
que morreu de fome, ignorado por todos (quadro I e II).
Desprezado pelo Estado, quadro III: Passou El-Rei ali com
seus fidalgos. / Iam a degolar uns inocentes / ... Era um rei
bom-vivant, e rei devoto; / E, como Luís XI, ao lado tinha / O
bobo, o capelão... e seu carrasco... /... “Conheces o defunto?
Era inda moço. / Faria certamente um bom soldado... /... Um
asno! Só cantava para o povo! / Uma língua de fel, um
insolente!... / O rei passou – com ele a companhia. / Só ficou
ressupino e macilento / Da estrada em meio o trovador
defunto. (Ibidem p. 129-130); pela Igreja, quadro IV:
“Depois de bem jantar fazendo a sesta, / Roncava um nédio,
um barrigudo frade: ... / ... E um bispo, senhor Deus! da
idade média, / Em que os bispos –como hoje e mais ainda –/
Sob o peso da cruz bem rubicundos, / Dormindo bem, e a
regalar bebendo, / Saibam engordar na sinecura; / Papudos
santarrões, depois da Missa / Lançando ao povo a bênção –
por dinheiro!” (Ibidem p. 131); e pelos poderosos, quadro
V: “A galope, de volta do noivado, / Passa o Conde Solfier, e
a noiva Elfrida... / Elfrida – Não vês, Solfier, ali na estrada
em meio / Um defunto estendido? – / Solfier –Ó minha
Elfrida, / Voltemos desse lado: outro caminho / Se dirige ao
castelo. É mau agouro / Por um morto passar em noites
destas.” (Ibidem p. 133). Termina o poema de forma
macabra – bem ao gosto da época, unindo-se na morte os
amantes, quadro VI e VII: “Na tumba dormem os mistérios
d’ambos; / Da morte o negro véu não há erguê-lo! /
Romance obscuro de paixão ignota, / Poema d’esperança e
desventura,... (Ibidem p. 138).
Ao longo deste poema, Álvares de Azevedo expõe
suas ideias a respeito da poesia, sua relação com o mundo e
extravasa seu sarcasmo com relação ao poder e à Igreja.
Outro poema que traz esta marca é “O Cônego Filipe”
(Ibidem p. 185). Nele o poeta faz mofa e chacota da figura de
um religioso lascivo e devasso. Observe o escárnio dos
versos: O cônego Filipe! Ó nome eterno! / Cinzas ilustres
que da terra escura / Fazeis rir nos ciprestes as corujas!... /
Então no escuro, em camisola branca / Ia apalpando
procurar na sala – / Para o queijo flamengo da careca / Dos
defluxos guardar – o negro saco. (Idem p. 185).
“Boêmios” (ato de uma comédia não escrita) cuja
cena passa-se na Itália do século XVI, à noite, numa rua
escura e deserta. Puff dorme no chão abraçado com sua
amada garrafa e o poeta Níni entra tocando sua guitarra. Dão
três horas. Neste instante os dois homens, o bêbado e o poeta
travam um divertido, dionisíaco, crítico e poético diálogo.
Puff aproveita para fazer uma apologia ao vinho, como
retratam estes versos: Pode a beleza desmentir do vinho. / Tu
nunca leste o Cântico dos Cânticos / Onde o rei Salomão,
como elogio, / Dizia à noiva: - Pulchriora sunt / Ubera tua
vino!” (Ibidem p. 250), depois não poupa ironia, sarcasmo e
escárnio aos religiosos: “Depois! era bonito! Frei Gregório /
Co’a boca de gordura reluzente, / Farto de vinho, esquece o
reumatismo, / Esquece a erisipela já sem cura, / Canta
rondós e dança a tarantela... / Arrasta-se caindo e se
babando / Aos pés da taver n eira.” (Ibidem p. 158). O vate
Níni, por sua vez, por meio do recurso de um poema dentro
de outro poema, satiriza o poder monárquico: “Era um
sublime rei. De rei a bobo / Já tantos têm caído!” (estrofe
X); “Bem vês, amigo Puff, que neste conto / Em poucos
versos digo histórias longas: / – Amores, mortes, e no trono
um bobo... / E um bobo é sempre um bobo. Mostro ainda /
um rei que numa pipa o trono perde,... (estrofe XVII - Ibidem
p. 168).
Os versos de É Ela! É Ela! É Ela! É Ela! registram
mais um momento desse licor azevediano impregnado de
lirismo e sarcasmo. Aqui o poeta utiliza imagens atrevidas,
nada sublimes, que mais uma vez resvalam num vívido
prosaísmo cotidiano:

“É Ela! é ela! – murmurei tremendo,


E eco ao longe murmurou – é ela!
Eu a vi – minha fada aérea e pura –
A minha lavadeira na janela!
..............................
Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela, – eu mais te
adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!

É ela! é ela! meu amor, minh’alma,


A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É ela! é ela! murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou – é ela!” –

(Ibidem p. 180-181)

Os versos acima são revestidos de uma saborosa sátira


à mulher idealizada pelos românticos. A amada aqui é uma
“fada aérea e pura”, literalmente entre aspas, pois a fada, ou
a bela adormecida é uma simples lavadeira que, no sono, não
dorme com tranquilidade nos braços de Morfeu, mas ronca
maviosa. O ronco é antipoético e a lavadeira é uma oposição
a Laura e a Beatriz, símbolos das amantes idealizadas e
divinas e grandes paixões dos poetas Petrarca e Dante
respectivamente. Sua amada possui outro status, está
vinculada a uma realidade antilírica e burlesca e de riso
mefistofélico, isto é, um riso ferino, mordaz e pungente. O
artista cinicamente imita Byron confessando: “Eu mais te
adoro / Sonhando-te a lavar as camisinhas!”. Deste modo,
vemos aqui um belo exemplo da incorporação sarcástica e do
prosaísmo criativo de Álvares de Azevedo.
“Dinheiro” é um poema magistralmente irônico, com
o gosto do amargo e diabólico licor. Depois da realista
epígrafe de Chateaubriand que afirma: “Oh! dinheiro! Tu nos
fazes belo, jovem, adorado; com honrarias, consideração,
qualidades, virtudes. Se te perdemos, ficamos na
dependência de tudo e de todo mundo.”; o “eu” lírico mostra-
se um rebelde e assume a postura de antiburguês: O mundo é
para todos... Certamente, / Assim o disse Deus – mas esse
texto / Explica-se melhor e doutro modo. / Houve um erro de
imprensa no Evangelho: / O mundo é um festim – concordo
nisso, / Mas não entra sem ter as louras. (Ibidem p. 193). O
vate chega à triste conclusão de que a mola propulsora da
humanidade não é o amor, não são os nobres sentimentos,
mas as “louras, o “vil metal”. Que pena! parece dizer,
desapontado, o poeta. Sua amargura é expressa através do seu
brado zombeteiro e revoltoso: Fora a canalha de vazios
bolsos! / O mundo é para todos.... Álvares de Azevedo exibe
seu riso sardônico ao perceber que o mundo é só para os que
têm dinheiro. Esta galhofa impregnada de conscientização
deixa evidenciar que a reles realidade destrói sublimes
realizações.
“Spleen e Charutos” é uma sessão de seis poemas: O
primeiro, denominado “Solidão”, enfatiza o spleen, num
quadro de intensa melancolia, chegando a um verdadeiro
clima fúnebre: “Minh’alma tenebrosa se entristece, / É muda
como sala mortuária” (Ibidem p.173). Aqui, a lua é
personificada como uma prostituta, uma mulher em
disponibilidade e ativa, “doida por amor”, “nua e bela”, “a
procura de amantes” e por isso mesmo, vagabunda da noite:
Nas nuvens cor de cinza do horizonte
a lua amarelada a face embuça;
Parece que tem frio, e no seu leito
Deitou, para dormir, a carapuça.

Ergueu-se, vem da noite a vagabunda


Sem chale, sem camisa e sem mantinha,
Vem nua e bela procurar amantes;
é douda por amor da noite a filha.
(Idem p. 173)

Observe que neste poema a mulher não é a virgem


pura que sempre aparece na obra azevediana, porém, no
segundo poema – “Anjo” – a figura feminina ressurge
idealizada. É um anjo envolto numa atmosfera de pureza e
santidade, porém, maculada por alguns traços de erotismo:
Tem seios tão alvos, tão macios
Como o pêlo sedoso dos arminhos.
..............................

Como o vinho espanhol, um beijo dela


Entorna ao sangue a luz do paraíso.
Da morte num desdém, num beijo vida,
E celeste desmaios num sorriso!
Mas quis a minha sina que seu peito
Não batesse por mim nem um minuto,
E que ela fosse leviana e bela
Como a leve fumaça de um charuto!
(Ibidem p. 174)

O “eu” lírico retrata uma mulher fatal, que possui


seios alvos, macios e um beijo que faz fervilhar o sangue
como um vinho espanhol. Aqui o autor apresenta uma visão
paradoxal da figura feminina, que ora apresenta-se como uma
criatura “angélica” e cheia de “encanto”, ora, tão leviana,
fútil e prosaica quanto a fumaça de um charuto. Assim sendo,
ela é ao mesmo tempo Deus e Diabo, divina e humana,
possuindo a binômia de Ariel e Caliban.
A terceira parte, “Vagabundo”, de “Spleen e
Charutos”, é composta por um texto que expressa com
maestria o “spleen”. O poeta aparece como um vadio, errante
e volúvel:

Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,


Fumando meu cigarro vaporoso;
Nas noites de verão namoro estrelas;
Sou pobre, sou mendigo, e sou ditoso!

Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;


Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas,
E quem vive de amor não tem pobreza.
......................

O degrau das igrejas é o meu trono,


Minha pátria é o vento que respiro,
Minha mãe é a lua macilenta,
E a preguiça a mulher por quem suspiro.
......................

Ora, se por aí alguma bela


Bem doirada e amante da preguiça
Quiser a nívea mão unir à minha
Há de achar-me na Sé, domingo, à Missa.

(Ibidem p. 176)

O “eu” lírico exalta a vida cigana, a preguiça, as ruas,


o prazer efêmero, o fumo, o vinho, enfim, o epicurismo. Esse
texto tem como ilustração, para esta concepção de vida, a
seguinte citação byroniana retirada da sua obra Don Juan: 116
“Eat, drink, and love; what can the rest availus?” (Coma beba
e ame; o que pode o resto nos valer?)
A vida vagabunda, leviana e displicente e sem
qualquer compromisso fascina o eu poético. Dessacraliza até
a figura feminina tão endeusada no Romantismo, que nesse
caso, precisa ser também o poeta, um vagabundo, sem muita
responsabilidade; Ora, se por aí alguma bela/Bem doirada e
amante da preguiça/Quiser a nívea mão unir à minha/ Há de
achar-me na Sé, domingo, à Missa.
Como já foi reiterado a imaginação criadora, o
subjetivismo, a solidão, o desânimo, a melancolia, o
pessimismo, o sonho e a morbidez. Sua arte foi contagiada
pelo mal-do-século e transpira byronismo, satanismo, paixões
exasperadas, tédio, vícios, crimes, mortes, noites de boemia
e orgia. Também está explicito que Lord Byron – exerceu
um extraordinário fascínio sobre os escritores românticos.
Na criação de heróis sonhadores e aventureiros, que
desfiavam as regras da sociedade burguesa, como o
antológico D. Juan. Ele mesmo, como sua vida agitada era
um típico romântico. Na imaginação dos leitores, a figura de
Byron confundia-se com a de seus heróis: orgulhoso, sedutor,

116
Lorde Byron. Don Juan. Trad. JuanVicente Martinez Luciano, Maria
José Coperías Aguilar e Miguel Teruel Pozas. Ed. bilíngue espanhol –
inglês. Madrid: Cátedra, 2009.
cínico, melancólico eram adjetivos usados para descrevê-lo, e
uma aura de mito foi criada, a moda do “byronismo”.
Porém, se por um lado Byron foi sua mola
propulsora da arte azevediana, por outro, não se pode passar
por cima de uma das maiores contribuições deste poeta –
noivo da morte – à literatura brasileira: ele foi dos primeiros a
utilizar a ironia como técnica poética e a incorporar à sua
poesia a descrição de objetos cotidianos como o charuto, a
lamparina, o conhaque, sua cama, seus livros. Álvares de
Azevedo deu um banho de concretude e prosaísmo num
período em que, para a literatura, tudo era fluído e esfumado.
Na poesia de Álvares de Azevedo poema está clara a
representação dos ideais propostos pelo byronismo: nas
imagens de delírios febris e incitantes, nos arroubo de ideias,
nos impulsos apaixonados, frenéticos e violentos.
No quarto e quinto poemas, “A lagartixa” e “Luar de
verão”, respectivamente, encontramos o poeta afastado do
romantismo idealista e sublime. No primeiro, Álvares busca o
insólito e o prosaico, com revelam os seguintes versos: A
lagartixa ao sol ardente vive / E fazendo verão o corpo
espicha:... / Vale todo harém a minha bela, / Em fazer-me
ditoso ela capricha; / Vivo ao sol de seus olhos namorados, /
Como ao sol de verão a lagartixa. (Ibidem p. 176-177). No
segundo, a lua tão festejada dos românticos aparece
“ironicamente”, como uma simples mensageira do sono:
Torno-me vaporoso, e só de ver-te, / Eu sinto os lábios meus
se abrir de sono. (Ibidem p. 177).
No último poema da série, o “Poeta moribundo”,
encontramos o humor negro e a visão gótica, altamente
mórbida e satânica – a verdadeira face de Caliban :

Poetas! amanhã ao meu cadáver


Minha tripa cortai mais sonorosa!...
Façam dela uma corda, e cantem nela
Os amores da vida esperançosa!
............................

Coração, por que tremes? Vejo a morte,


Ali vem lazarenta e desdentada...
Que noiva!... E devo então dormir com ela?...
Se ela ao menos dormisse mascarada!
............................

No inferno estão suavíssimas belezas,


Cleópatras, Helenas, Eleonoras;
Lá se namora em boa companhia,
Não pode haver inferno com Senhoras!
............................

Ora! E forcem um’alma qual a minha


Que no altar sacrifica ao Deus-Preguiça
A cantar ladainha eternamente
E por mil anos ajudar na Missa!
(Ibidem p. 178-179)

Os versos acima são exemplos da ironia de Álvares de


Azevedo, levada às últimas consequências. O mais romântico
dos nossos românticos satiriza até a morte que aparece
“lazarenta e desdentada” e despreza a pieguice amorosa, a
idealização do amor e das donzelas para valorizar mulheres
fortes como Cleópatra 117 – a rainha do Egito; Helena – a
princesa grega raptada por Páris; Eleonora – personagem da
ópera Fidélia (de Beethoven), moça de extrema beleza que se
travestiu de homem e empregou-se como carcereiro para

117
Cleópatra VII Filopátor (em grego clássico: Κλεοπᾰ́τρᾱ Φιλοπάτωρ;
transl.: Kleopátrā Philopátōr; ( 69 – 10 ou 12 de agosto de 30 a.C.) foi a
última governante do Reino Ptolemaico do Egito.
acompanhar o marido preso. Quem comanda esta poesia são
figuras dominadoras, diabólicas e sensuais. É a face
Calibaniana no seu momento máximo.

3. 2. 2. Brasileirismo malandro

Surgido e desenvolvido no período da independência


e de afirmação nacional, o Romantismo parece ligado às
ideias verde-amarelas de brasilidade. Assim, falar de
Romantismo é, de alguma maneira, falar também em
nacionalismo. Mesmo porque o sentimento nacional era
geral, ocorrendo não só na literatura brasileira como também
na literatura (e política) europeia.
Álvares de Azevedo, à primeira vista, parece ter
fugido à regra, já que seus poemas mais conhecidos estão
voltados para o cenário europeu e impregnados de imagens
byronianas e shakesperianas. Porém, seu brasileirismo não
aconteceu por meio da celebração de índios, palmeiras,
onças, mas através de pronunciamentos como o discurso
proferido por ocasião da instalação da Sociedade Acadêmica
de Ensaio Filosófico, onde discutiu a necessidade de uma
filosofia e literatura brasileiras e, principalmente pelas vias
do sarcasmo, da ironia, da descrição de suas coisas (ideias)
íntimas e da sugestão da malandragem.
Homem da cidade, ele não conheceu o Brasil floresta,
mas a emergência do nosso país urbano. E, aí, é o precursor.
Seus melhores escritos tratam de um Brasil próprio de
estudantes de Direito, afeitos à galhofa, à brincadeira, à
piada. Em “Namoro a cavalo” temos um exemplo do
brasileirismo malandro, atrevido, desabusado e, sobretudo,
astuto e matreiro:
Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça
Que rege minha vida malfadada
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcinéia namorada
........................

Morro pela menina, junto dela


Nem ouso suspirar de acanhamento...
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda a Comédia – em casamento.
........................

Circunstância agravante. A calça inglesa


Rasgou-se no cair de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!..
(Ibidem p. 190)

Observe como o poeta apresenta notas


intencionalmente prosaicas, num largo deboche ao
romantismo sublime de sua época. O casamento tão
respeitado pelos românticos, aqui é visto como uma comédia,
o que nos faz lembrar o poema “Amor”, de Oswald de
Andrade, que conceitua esse sentimento amoroso com a
seguinte palavra do poema-piada-relâmpago “humor”
(ANDRADE, O. (1990), p. 41). 118 Portanto, para o
modernista, amor é humor; e para o romântico Álvares,
casamento é comédia. Logo, a veia sarcástica de Álvares de
Azevedo tem a mesma concepção sobre o sentimento
amoroso ou sua consagração.
No último fragmento, a piada instaura-se
definitivamente quando o “eu” lírico, literalmente, cai do

118
ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. São Paulo: Globo: Secretaria de
Estado da Cultura, 1990.
cavalo. Isto é, põe não apenas os pés na terra, mas todo o
corpo. Ridiculamente, cai do cavalo, rasga a calça e perde a
namorada. Tal cena, completamente antilírica e caricaturesca,
antecipa a paródia e o humor modernistas.
Outro poema que possui sugestão malandra, típica do
brasileiro boa-vida, ocioso e valdevino, que não se preocupa
com tempo, dinheiro e trabalho, é o poema “Vagabundo”
(Ibidem p. 176), citado anteriormente. Veja como os
seguintes versos trazem o espírito macunaímico,
imortalizado por Mário de Andrade com seu “Macunaíma”:
.... a preguiça a mulher por quem suspiro. / ... Ora, se por aí
alguma bela / Bem doirada a amante da preguiça / Quiser a
nívea mão unir à minha / Há de achar-me na Sé, domingo, à
Missa. Este poeta ultrarromântico, sem dúvida, foi um
precursor do humor, do brasileirismo malandro tão festejado
pelos poetas da primeira geração modernista.

4. IDEIAS ÍNTIMAS

Manuel Antônio Álvares de Azevedo nasceu em São


Paulo, em 12 de setembro de 1831. Criou-se no Rio de
Janeiro, voltando a São Paulo em 1948, para cursar a
Faculdade de Direito, época em que a Paulicéia Desvairada
era uma cidade pouco iluminada, cheia de buracos e tediosa
como se queixava o próprio Álvares, em correspondência à
mãe e irmã:

(...) Não há passeios que entretenham nem bailes,


nem sociedades, parece isto uma cidade de mortos – não
há nem uma cara bonita em janela - só rugosas caretas
desdentadas – e o silêncio das ruas só é quebrado pelo
ruído das bestas sapateando no ladrilho das ruas.
Esse silêncio convida mais ao sono que ao estudo,
enlouquece, e entorpece as imaginações e pode-se dizer
que a vida aqui é um sono perpétuo.
(AZEVEDO, A. (1942), p. 493).

Uma saída para o tédio paulista eram as famosas,


quando pouco verossímeis, orgias estudantis, com presença
de certas moças que enchiam de amor nossos poetas. Além de
algumas festas de salão, outro passatempo era a bebida. Isto
acontecia devido ao caráter boêmio da época e também como
fuga do dia-a-dia. Contudo, especular sobre o assunto é coisa
que não trará grande contribuição à compreensão da literatura
da época: pouco ou nada interessa saber o quanto boêmios
eram Álvares de Azevedo e seus amigos Bernardo
Guimaraens e Aureliano Lessa. Interessa, sim, entender a
presença do conhaque e do vinho em suas obras. Qualquer
byroniano que se prezasse deveria citá-los, ao menos, já que
estas bebidas eram símbolos de um estado de espírito. O
conhaque e o Johannisberg, vinho branco alemão, são
constantes na poesia de Álvares de Azevedo, como nos
versos de “Ideias Íntimas”:

I
... O Lamartine
É monótono e belo como a noite,
Como a lua no mar e o som das ondas...
Mas prateia uma eterna monodia,
..............................
Do nobre Johannisberg! Nos teus romances
Meu coração deleita-se... Contudo
Parece-me que vou perdendo o gosto,
Vou ficando blasé, passeio os dias
Pelo meu corredor, sem companheiro,
Sem ler, nem poetar. Vivo fumando.
..............................
II
Metido num tonel... Na minha cômoda
Meio encetado o copo inda verbera
As águas d’oiro do Cognac fogoso.
Negreja ao pé narcótica botelha
Que dá essência de flores de laranja
Guarda o licor que nectariza os nervos.
Ali mistura-se o charuto Havano
Ao mesquinho cigarro e ao meu cachimbo.
A mesa escura cambaleia ao peso
Do titânio Digesto, e ao lado dele
Childe-Harold entreaberto ou Lamartine
Mostra que o romantismo se descuida
E que a poesia sobrenada sempre
Ao pesadelo clássico do estudo.
(Ibidem p. 139/141)

Em “Ideias Íntimas” o poeta descreve por meio de


referências visuais, toda a sua vida de boêmio e de estudante.
A atmosfera domiciliar em que se desenvolvia seu cotidiano
de estudos e de criação literária é apresentada com detalhes: a
cômoda, a cama, travesseiros, livros e etc. Nesse seu “modus
vivendi” o “eu” lírico isolava-se no seu estado “blasé”, “pelo
corredor, sem companheiro”. Ora limitava-se a ler e fumar;
ora ficava apenas fumando sem ler nem poetar; ora bebia,
fumava e lia romances lascivos, sonhava com Margaridas,
Elviras saudosas e Clarisses – símbolos de fantasias de
grandes amantes da literatura; e lia, antes de tudo, Afonso de
Lamartine (1790-1869), Alfredo de Mussett (1810-1857),
Shelley (1792-1822), Goethe (1749-1832), Cervantes (1547-
1616), Luís Vaz de Camões (1524/5-1580), Ariosto (1474-
1533), Horácio (65 A.C. - 8 D.C.), Homero (século IX A.C.),
Vigny (1797-1863), Dante (1265-1321), a Bíblia,
Shakespeare (1564-1616) e Lord Byron (1788-1824).
Na estrofe XI, estes quatro últimos estão confundidos
sobre a mesa. Os grandes mestres da literatura, companheiros
inseparáveis e inspiradores, são colocados lado ao da Bíblia,
fonte de fé e religiosidade, uma das marcas de um bom
romântico. Junto deles, um velho candeeiro se espreguiça e
pede a formatura. O ambiente é noturno e de vigília, onde as
cartas de namoro se confundem com os livros:

Junto do leito meus poetas dormem


– O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron –
Na mesa confundidos. Juntos deles
Meu velho candeeiro se espreguiça
E parece pedir a formatura.
Ó meu amigo, ó velador noturno,
Tu não me abandonaste nas vigílias,
Quer eu perdesse a noite sobre os livros,
Quer, sentado no leito, pensativo
Relesse as minhas cartas de namoro!
Quero-te muito bem, ó meu drama obscuro!
E num dia de spleen, vindo a pachorra,
Hei de evocar-te num poema heróico
Na rima de Camões e de Ariosto
Como padrão às lâmpadas futuras!
..................................

(Ibidem p. 145-146)
O poeta dirige-se ao candeeiro como comparsa, um
cúmplice de seu spleen que, ironicamente, heroicamente,
aparecerá “como padrão às lâmpadas futuras”.
Ao lado dos mestres da Literatura, estão os mestres do
Direito: “A mesa escura cambaleia ao peso / Do titânio
Digesto, e ao lado dele / Childe-Harold entreaberto ou
Lamartine.” (Ibidem p. 141). Nestes versos o poeta contrapõe
“Childe-Harold” (poema em quatro cantos de Byron), ao
“Digesto” (tratado de jurisprudência antiga, Direito Civil
Romano). Desta forma, o autor justapõe e confronta estudo e
literatura, ou seja, os dois pólos culturais em torno dos quais
girava sua vida de acadêmico de Direito e poeta
ultrarromântico. Em meio ao desarranjo de seu quarto, entre
os quadros, o conhaque, o charuto, os livros, etc., o poeta
guarda um lugar especial para os retratos do pai e da mãe:
Em caixa negra dous retratos guardo. / Não os profanem
indiscretas vistas. / Eu beijo-os cada noite: neste exílio /
Venero-os juntos e os prefiro unidos / – Meu pai e minha
mãe.” (Ibidem p. 146). Os pais significam a pureza e a
serenidade e representam a contraposição com o mundo
degradado e caótico em que vive o poeta.
Em todos os fragmentos de “Ideias Íntimas”
aparecem momentos de devaneio, motivados pelo fumo, pelo
álcool e pela solidão que são sempre interrompidos por
momentos de lucidez:
XIV
Parece que chorei... Sinto na face
Uma perdida lágrima rolando...
Satã leve a tristeza! Olá, meu pajem,
Derrama no meu copo as gotas últimas
Dessa garrafa negra...
Eia! bebamos!
És o sangue do gênio, o puro néctar
Que as almas de poeta diviniza,
O condão que abre o mundo das magias!
Vem, fogoso Cognac! É só contigo
Que sinto-me viver. Inda palpito,
Quando os eflúvios dessas gotas áureas
..............................
Eu me esquecia:
Faz-se noite; traz fogo e dous charutos
E na mesa do estudo acende a lâmpada...
(Ibidem p. 147)

Os dois primeiros e os três últimos versos revelam


consciência por parte do “eu” lírico. Os versos intermediários
sugerem um estado de embriaguez, motivado pelo conhaque
e pelo estado “blasé” do poeta.
O poema “Ideias Íntimas” é composto
fragmentariamente (como já indica seu subtítulo –
fragmento), em quatorze partes, compostas em versos
brancos. Possui uma cadência muito próxima da prosa e
revela o outro lado da lírica de Álvares de Azevedo – o
“Spleen”: solidão, desânimo, melancolia, depressão e tédio
que emergem de um cotidiano esvaziado e banalizado.
O quarto, ao se apresentar desordenado, reflete as
ações também desordenadas do jovem romântico, o agente
daquele espaço. É como se o quarto em desarranjo motivasse
ainda maior desarranjo no interior do eu e este, alucinado,
tornasse a desarrumar ainda mais o quarto e, assim,
sucessivamente, numa progressão alucinante que o conduzirá
ao caos. Da mesma forma que é possível estabelecer relações
entre o interior do “eu” lírico e o espaço do quarto, as
relações podem ser ampliadas de modo que o caos do eu
represente a própria desordem do mundo.
Como numa relação metonímica, o caos interior do eu
projeta-se para o mundo exterior, ultrapassando os limites do
quarto e envolvendo toda a realidade. É um mundo
desordenado, inconsistente em seus valores. É o mundo
burguês do século XIX em que o “eu” lírico não acredita; e a
ele, prefere a fuga, refugiando-se no sono, no vício e na
solidão.
“Ideias Íntimas” é um momento poético em que o
poeta mostra não apenas o seu cenário íntimo, mas seu
próprio ser, que embora fragmentado e caótico, esforça-se
para criar, como afirma no fragmento III: “Meu quarto,
mundo em caos, espera um Fiat!” (p. 141), fazendo alusão à
famosa frase latina do Gênesis 1:3: “Fiat lux”, ou seja,
“faça-se a luz”. (BÍBLIA SAGRADA. 2012, p.15) 119 No seu
claustro (quarto de estudante), o poeta não só espera o Fiat,
como realmente cria seus melhores textos poéticos.
Nestes fragmentos, Álvares de Azevedo trabalha o
poético e o prosaico, dando asas ao seu intimismo, quer por
meio do erotismo, quer do amor irrealizado – que só ocorre
no plano do sonho, da fantasia (quando o poeta sonha a posse
sexual da amada): Meus olhos turvos a se fechar de gozo; ou
quando lê os grandes mestres, fala dos pais, fica em estado de
embriaguez, fica lúcido e volta de novo ao devaneio.

5. NOITE NA TABERNA 120

As obras românticas realizaram uma revolução dos


modelos clássicos, que possuíam modos definidos de gênero,
como: tragédia, comédia, poema épico e outras modalidades
de textos que seguiam padrões pré-determinados por normas
marcadas pelo equilíbrio, pela tonalidade clássica
determinadas na razão.

5.1 Revolução e Pluralidade de Gênero

119
BÍBLIA SAGRADA. Tradução da CNBB com Introduções e Notas ,
16ª Brasília. ed. Editora Canção Nova, 2012.
120
Consultou-se para este estudo a edição da Nova Aguillar
S.A ( 2000) Obras completas de Álvares de Azevedo.
O Arcadismo retorna aos clássicos, como
Neoclassisismo; o Romantismo vai defender a liberdade do
gênio criador, a intuição e daí a fuga aos modelos prontos. É
a ruputura com a tradição.
Noite na Taverna é um exemplo dessa
insurreição contra os padrões clássicos. Embora esta obra
tenha um direcionamento de historietas, narrativas breves
que se aproximam do que a crítica qualifica por conto, seus
textos, mesmo com peculiaridades da narrativa curta, com
uma célula dramática e economia de personagens,
apresentam um entretom de peça teatral (drama ou tragédia)
e até mesmo um roteiro cinematográfico.
Os leitores do Romantismo gostam das novidades,
do estranhamento e identificam-se com personagens e
imaginação sem limite. A arte não se justifica mais como
imitação da natureza (o conceito neoclássico da "mimesis"
aristotélica), mas como a expressão inspirada da alma, na
emoção do artista, espécie de intermediário entre os homens e
os deuses da criação.

5.2 O Ultra-Romantismo em Noite na Taverna:


Liberdade Criadora e Imaginação.

Álvares de Azevedo, expoente do Ultra-


Romantismo brasileiro, proclamou sua independência pessoal
para julgar o que era belo ou verdadeiro. Não seguiu as regras
clássicas ditadas exclusivamente pela razão e eliminou os
preconceitos gerais que tendem a uniformizar os estilos e
cortar as asas da imaginação pessoal; exaltou o gênio criador
e renovador do artista, criou mundos imaginários, livres,
solitários e únicos; deixou o gênio da arte e do Romantismo
dominar sua vida.
Noite na taverna é a exaltação desse gênio criador e
da imaginação. O conjunto das sete narrativas tem como
epígrafe fundamental uma citação de Shakespeare de Hamlet,
ato I: “How now Horatio? You tremble and look/ pale. Is not
this something more than/ phantasy? What think you of it?”
(Então, Horácio? Estás tremendo e pareces/ pálido. Não é
isso mais do que simples/ ilusão? Que pensas?). (Azevedo,
A. 2000, p. 560). Esta epígrafe alude ao mundo do
imaginário, do espetáculo da vida e da morte, da emoção e
da fantasia, da loucura e sentimentos que peregrinam entre
sombras e cadáveres no fantástico mundo da imaginação.
A partir do mote das palavras de Hamlet, a
primeira narrativa, “Uma noite do século” é apresentada. O
texto é disposto em forma de diálogo realçando a
dramatização das cenas, em tempo presente, que
apresentam a taverna, a algazarra dos personagens, jovens
embriagados que discutem ideologias e trocam experiências.
As personagens são Solfieri, Bertram, Gennaro, Claudius
Hermann , Johann e Arnold-o-louro. O cenário da taverna
assinala a presença de mulheres dormindo alcoolizadas,
quase mortas de embriaguez, entre a fumaça dos charutos
das Antilhas, (charuto cubano, considerado o melhor do
mundo), o som dos brindes das taças, o cheiro de vinho
alemão Johannisberg sempre solicitado pelos rapazes em
louvor a Baco, o deus dos prazeres, da orgia e do vinho:
–Vinho! Vinho! Não vês que as taças estão
vazias e bebemos o vácuo, como um sonâmbulo? –
Não vês que as taças estão vazias É o fichtismo na
embriaguez! Espiritualistas, bebe a imaterialidade
da embriaguez! – Oh! Vazio! Meu copo está vazio!
Olá taverneira, não vês que as taças estão
esgotadas? (...). (Azevedo, A. 2000, p. 565)
Com o cenário montado, o narrador delineia teorias
dos ultrarromânticos lembrando as canções de orgia de Tieck
(1773 – 1853) – escritor alemão; o pensamento de Johann
Fichte (1762-1814) – filósofo idealista alemão, de Schiller
(1759-1805) e Schelling (1775-1854) admiráveis filósofos
alemães, autores de teorias poéticas do Romantismo, Platão
(428-348 a.C.) célebre filósofo grego que cogitou sobre o
mundo das ideias; Citou ainda Spinoza (1632-1677), filósofo
holandês, Malembranche (1638-1715) francês e Hume (1711-
1776), filósofo escocês; e faz referência a Homero (séc. IX
a.C), poeta grego, autor dos poemas épicos Ilíada e Odisséia.
Por meio dos diálogos, a rodas de boêmios
exprimem as doutrinas que vivenciam – as teorias do
Romantismo – suas experiências de sonho, loucura, crimes,
vida, morte, aventuras notívagas, experiências amorosas.
Assim, continuam a narrar suas peripécias extraordinárias
abarrotadas de terror, sangue e tragédia.
Nas suas histórias eles são sempre os protagonistas
ou personagens estranhos, ou narrador em terceira pessoa, e
sempre que a palavra é cedida, as taças de vinho também
circulam na taverna brindando o clima macabro. E a prosa é
revelada a partir da experiência pessoal do narrador, que não
se preocupa nem com o modelo clássico de narrativa, nem
com a opinião da sociedade diante das barbaridades que serão
confessadas nos relatos.

5.3 Sonho e a Realidade Devaneiantes

A segunda narração, “Solfieri”, traz o relato fora do


comum deste personagem que inicia sua história
relembrando um acontecimento assombroso, ocorrido na
cidade de Roma, quando ele se encantou por uma mulher,
ou por um fantasma que surgiu do nada: “Uma sombra de
mulher apareceu numa janela solitária e escura. Era uma
forma branca. – A face daquela mulher era como uma estátua
pálida à lua” (...) (p.568). Depois, a mulher começou a
“cantar o um choro de frenesi, um como gemer de insânia;
aquela voz sombria como a do vento à noite nos cemitérios,
cantando a nênia das flores murchas da morte” (p.568). Em
seguida, começa a caminhar até o cemitério e ele segue a
visão:

Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas;


enfim ela parou: estávamos num campo.
Aqui, ali, além eram cruzes que se erguiam de
entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar; em
torno dela passava as aves da noite.
(Azevedo, A. 2000, p.568)

No cemitério ele adormeceu. Quando acordou estava


febril e se debatia entre o sonho e a realidade.
O embate sonho x realidade é uma das tensões da
obra dos ultrarromânticos. O sonho consente a criação de
um ambiente pessoal, povoado de situações e figuras
idealizadas, que permite ao escritor fugir para um mundo de
idealizações à base do devaneio e das emoções pessoais. O
artista romântico procura universos de ilusões, mulheres
imaginárias, pálidas e macilentas como a lua; seres
fantásticas, amores impossíveis. Destarte, o artista traz à tona
o seu mundo interior, com plena liberdade. Aliás, esta
característica – o subjetivismo – está ligada estreitamente à
imaginação criadora, como projeção do mundo.
Solfieri continua sua narração descrevendo fatos que se
passam um ano depois do encontro com a estranha mulher
que o deixou sedento de desejo e orgia. Atormentado pelas
visões que o perseguiam, retornou a cidade de Roma.
Novamente a colisão entre o sonho e a realidade dominou os
pensamentos da personagem. Uma noite, após tentar saciar a
devassidão, ele sai à rua e sem consciência se vê no meio de
um templo. Dentro da igreja encontrou um caixão. Curioso
resolveu abri o esquife e encontrou a mulher da aparição, o
“anjo do cemitério”:

(...) As luzes de quatro círios batiam num


caixão entreaberto. Abri-o: era uma moça.
Aquele branco da mortalha, as grinaldas da
morte na fronte dela, naquela tez lívida e
embaçada, o vidrento dos olhos mal-apertados...
Era uma defunta! ... – Era o anjo do cemitério!

(Azevedo, A. 2000, p.569)

Ansioso, tomou-a em seus braços e a beijou


loucamente. Ela estava pálida, fria, enfeitada pelos cabelos
negros. Sua vontade era possuir aquela criatura:

(...) Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos


lábios. Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudário,
despi-lhe o véu a capela como noivo os despe à
noiva. Era mesmo uma estátua: tão branca era
ela. A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez
de âmbar que lustra os mármores antigos. O
gozo foi fervoroso – cevei em perdição aquela
vigília.
(Azevedo, A. 2000, p.569)

O artista do ultrarromântico idealiza sempre uma


mulher pálida, fria, morta, ou adormecida, virgem, inatingível
ou uma prostituta capaz de fartar a sede de prazer do corpo,
da alma, da ânsia que reside no ser do romântico. A figura
feminina aparece muitas vezes como obsessão de
adolescente, cujo caráter sonhador e irreal, além de
irrealizável, dá o tom às cenas das quais participam estas
figuras fantasmagóricas, idealizadas, frias e mortas que
extenuam o coração apaixonado, como exprime o fragmento
de Byron, “Cain”, escolhido como epígrafe: “...Yet one kiss
on you pale clay/ And those lips once so worm – my heart!
my heart!” (Ainda um beijo em seu corpo lívido/ E nesses
lábios outrora tão quentes – meu coração! meu coração!).
Na compreensão do mundo, o romântico prioriza a
emoção. Por isso, mergulha no seu inconsciente onde tudo é
caótico, misterioso e extraordinário. O escritor romântico está
aberto para o sobrenatural e o fantástico. Álvares de Azevedo
é, por excelência, um artista da noite, do sono, de devaneio e
emoção, por isso ressalta nessa história a atmosfera de
delírio, de vida e de morte. Acrescenta, ainda, o clima de
mistério e fantasmagoria em torno da virgem morta, dentro
da noite, com conotações de pesadelo, medo, reforçando o
lado macabro Azevediano.
Nessa narrativa de clima lúgubre e de pesadelo reside
na aparição do anjo do cemitério que, depois, aparece morta
numa igreja. No entanto, o narrador se arrisca a extrair essa
mulher do sonho mau e levá-la para sua casa, para uma
possível materialização, numa tentativa de quebrar a barreira
entre o sonho e a realidade. Mas, ele dessacraliza o sonho
dentro da própria igreja, quando sugere que possuiu
sexualmente a “ virgem morta”, acionando um erotismo
doentio e mórbido. Deste modo, quebra todas as leis dos
homens, principalmente a da moral, dos costumes e do
cristianismo. Ao realizar a convulsão de seu amor e desejos
sexuais, comete necrofilia e pratica uma ação vil,
abominável contra Deus e os homens. Contudo, sua ação
desprezível, o conduz para outra estranha realidade, quando
ele percebe que ela estava viva: “A moça revivia pouco a
pouco” (Op. Cit. p.569). Acordou de um ataque de catalepsia,
uma doença que provoca a rigidez de todos os músculos do
corpo e a pessoa fica paralisada, como se estivesse morta.
Solfieri levou a moça para sua casa, espaço de
prolongamento das orgias de seus amigos, “um bando de
libertinos”. Ali ele escondeu o anjo-mulher em estado febril:
“Ria de um rir convulso como a insânia, e frio como a folha
de uma espada. Trespassava de dor ouvi-la. (...) Não houve
sanar-lhe aquele delírio, nem o rir do frenesi. Morreu depois
de duas noites e dois dias de delírio”. (Idem p.570). Depois,
ele mandou fazer uma estátua de cera da jovem morta,
levantou com as próprias mãos um jazigo de mármore, cavou
o túmulo debaixo de sua cama e sepultou a amada no seu
leito de morte. Posteriormente, o estatuário trouxe a estátua
que ele guarda no seu quarto de rapaz.
Temos, assim, a presença de um erotismo doentio e
reprimido nessa narrativa. Um erotismo que dessacraliza
todas as convenções e leis, e expõe as contradições dos
ultrarromânticos que se agitam entre desejo e satisfação,
entre o ideal e o real, entre o sonho e a realidade no seu mais
alto grau.
A contradição sonho x realidade leva o romântico
para um estado de desencanto, de tristeza, de spleen ,
morbidez que marca o gênio solitário do ultra-romântico.

5.4 Liberdade do Gênio Criador e o Absoluto

Após Solfieri, Bertram conta suas experiências por


meio de narrativas fragmentadas que oscilam entre o conto e
teatro, pois sua narração apesar de ter uma célula dramática
em torno da tragédia ou drama da personagem, que é um
predicado do conto convencional, apresenta também o
dinamismo nas imagens e cenas do teatro acrescentada da
fragmentação imagética do cinema. Essa pluralidade de
gêneros está de acordo com as novidades defendidas pelo
Romantismo, retomadas depois em diversos momentos do
Modernismo, inclusive lembram as propostas cubofuturista,
pois usam no geral as sobreposições de imagens e as cenas
ligeiras.
O texto é iniciado em terceira pessoa por um narrador
que cede a palavra ao protagonista da história: “Era uma
cabeça ruiva, uma tez branca, uma daquelas criaturas
fleugmáticas que não hesitarão ao tropeçar num cadáver para
ter mão de um fim. Esvaziou o copo de vinho, e com a barba
nas mãos alvas, com os olhos de verde-mar fixos, falou: (...)”
(p. 571). Assim, Bertam toma a palavra e narra as
reminiscências de sua passagem por Cadiz, na Espanha. Por
lá conheceu Ângela e ambos ficaram loucamente
apaixonados. A cena é interrompida por linhas pontilhadas
para assinalar diferentes momentos do texto. Esse
procedimento era muito frequente nos autores românticos na
sobreposição de imagens, ou cenas, ou quadros, e foi
retomado pelo cubo-futurismo no Modernismo, como
procedimento da linguagem cinematográfica.
Destarte, os românticos já exploravam as marcas
vanguardistas, como o cubo-futurismo. No texto, esta
característica moderna está manifestada na construção dos
equivalentes plásticos da natureza a partir do espírito do
artista, criando uma nova realidade por meio de uma
linguagem que expressa a ideia de movimento, ressaltada por
cenas, por flashes, por quadros, que se alternam e formam
um todo. O Futurismo constituído no conto reside na
linguagem em flash, nas ações visuais dos quadros, na
presença do cotidiano das personagens-vítimas, da violência
visual a partir de cenas sensuais ou dos crimes, que embora
executados no passado, adquirem a presentificação de uma
realidade que transmite, ao espectador, a sensação de cena
presenciada ao vivo.
Desse modo, as imagens são sobrepostas na
composição da história dando sequencias aos acontecimentos.
É o que acontece na segunda cena quando Bertram narra que
antes de se casar com sua amada Ângela, teve de partir, às
pressas, para a Dinamarca em visita a seu pai que estava à
morte. Ao voltar, dois anos depois, sua Ângela estava casada
e tinha um filho, mas quando se encontraram perceberam que
ainda estavam apaixonados e então se tornam amantes.
Ângela era um espécie de anjo-demônio, de bem-mal,
de Deus-diabo, de céu-inferno, de vida-morte – um
paradoxo em forma de mulher fatal de lábios macios e
beijos que faziam fervilhar o sangue como um vinho
espanhol. Beijos de sonhos e maldições. Assim, o narrador
apresenta uma visão paradoxal da figura feminina, que ora
apresenta-se como uma criatura “angélica” e cheia de
“encanto”, ora, tão leviana e má quanto bebida alcoólica
que absorve a razão e produz sonambulismo.
A próxima cena ou quadro tem início com os vultos
nas “sombras de um jardim”, com a orgia do louco amor e
ciúme do marido ao descobrir a traição. Como Otelo de
Shakespeare, o esposo quis matar a traiçoeira, mas Ângela
se antecipa e mata esposo e filho. Esta cena é macabra, o
terror escorre das mãos de Ângela:

Senti-lhe a mão úmida. (...) – Sangue


Ângela! De quem é esse sangue?
A Espanhola sacudiu seus longos cabelos
negros e riu-se. (...) O marido estava degolado
(...) Sobre o peito do assassinado estava uma
criança morta de bruço. Ela ergueu-a pelos
cabelos ... Estava morta também: o sangue que
corria das veias rotas de seu peito se misturava
com o pai! – Vês, Bertam, esse era o meu
presente(...)
(Azevedo, A. 2000, p.573)

Nos quadros seguintes, Bertram conta a vida louca


que teve com aquela mulher: “Era um viajar sem fim”. Ela se
vestia de homem, bebia, fumava era uma libertina. Até que
um dia foi embora, mas deixou seu fantasma na vida de
Bertram: afogado na bebida, nos jogos, nos duelos, nas
paixões, se tornou um D. Juan – personagem central de um
famoso poema de Lorde Byron, publicado em 1819 – típico
sedutor cruel, orgulhoso, sem escrúpulos.
A partir dessa célula narrativa, outras histórias surgirão
formando um encadeamento de narrativas trágicas. Então,
esta história é composta por diversos e pequenos eventos
narrativos, formando um caleidoscópio de contos. Bertram
será um D. Juan movido pela paixões avassaladoras e
doentias, um ultra-romântico: “Tornei-me um ladrão de
cartas, um homem perdido por mulheres e orgias, um
espadachim terrível e sem coração” (Idem p.573/574)
A próxima narração começa relembrando suas orgias:
“Uma noite eu caíra ébrio às portas de um palácio; os cavalos
de uma carruagem pisaram-me ao passar e partiram-me a
cabeça de encontro com as lages” (p. 574). Após este
acidente ele foi socorrido por uma família, por um velho
nobre e sua filha. Porém, logo que recuperou a saúde,
desonrou a moça, o bem maior do velho fidalgo, que “teve
que chorar suas mágoas manchadas na desonra de sua filha,
sem poder vingar-se” (p.574). Depois de fugir com a jovem
ele se enjoa dela e a vende em banca de apostas: “A
saciedade é um tédio terrível: – uma noite eu jogava com
Siegfried – o pirata, depois de perder as últimas jóias, dela,
vendi-a. A moça envenenou Siegfried logo na primeira noite,
e afogou-se...”(p.574).
Novas linhas pontilhadas alertam para outra “longa
história do viver” desse D. Juan, o amante que sabe todas as
artes do amor, que pode ser cortês mas desconhece o amor
da família, a ética e a fidelidade, que voa de vitória em vitória
e, como Alexandre, desejando sempre outros mundos para a
eles estender suas conquistas amorosas. D. Juan desconhece
limites e segue o pensamento de que o fim justifica os meios
e até a antropofagia vale como recurso.
A história agora se passa na Itália, numa noite escura
quando o personagem, bêbado, tentou o suicídio, mas para
sua sorte, foi socorrido por uma pessoa, que desafortunado,
morreu para salvá-lo. Assistido “num escaler de marinheiros
que remavam mar em fora” (Idem p.574) e tinha como
comandante um homem generoso, um “velho lobo do mar”
que lhe deu ânimo de continuar a vida. O comandante tinha
uma esposa a bordo. Enquanto o marido dirigia embarcação,
“como um rei bravio no alto-mar”, Bertram fazia versos e
conquistava a mulher do capitão. O penúltimo quadro traz a
cena de um ataque de navio pirata.
O último quadro é longo e composto várias cenas. A
primeira é iniciada com a luta sangrenta, o estrondo da
pólvora e o fogo nas águas. Enquanto isso, Bertram,
covarde, desonrava o comandante dentro do navio em
amores descritos como “ de Satã e Eloá, da morte e da vida,
no leito do mar” (Idem p. 576), exprimindo a absurda
conexão entre Satanás e Deus e a realização de tanto prazer
diante do fogo de um combate marítimo que resvala a
alucinação. Este clima de sonho ou pesadelo é desperto por
um grito de agonia que revelou o navio encalhado num
banco de areia. Teatralmente, esse grito ressoa na platéia
através de um brado do próprio narrador ou de outro conviva:
“ – Olá, mulher, taverneira maldita, não vês que o vinho
acabou-se?” (Idem p. 577). A exclamação é uma interrupção
momentânea, para lembrar o leitor /espectador o ambiente da
taverna e ajuda a aumentar o suspense do enredo. No conto
convencional, é momento que se aproxima do clímax.
O narrador recomeça descrevendo “ um quadro
horrível”, uma jangada no meio do mar e homens em busca
da sobrevivência, num oceano de fogo, “onde caíam os anjos
perdidos de Milton – o cego; quando eles passavam,
cortando-as a nado, as águas do pântano de lava se apertam: a
morte era para os filhos de Deus, não para os bastardos do
mal” (Idem p.577). O romântico toma a alegoria pela
realidade, por isso, nesse trecho, Bertram faz uma alusão ao
poema Paraíso perdido, do inglês John Milton (1608-1674).
Esse poema, publicado em 1667 e que tem a queda de Adão e
Eva, foi ditado por Milton, pois ele tinha ficado cego. O
poema de Milton exprime o desespero da proximidade da
morte. No entanto, a aflição causada pelo infortúnio conduzia
Bertram para os braços da mulher do comandante, e estavam
agora mais unidos e apaixonados, sedentos de água, mas
fortes na sensualidade.
O narrador continua explicando que no início eram
cinco dividindo bolachas, mas depois divaga refletindo sobre
a existência humana. Nesse instante, surge um intenso brado
vindo da platéia, interrompendo a sequência da narrativa e
aumentando o suspense, (inicia assim, outro conto dentro do
conto): “ – Muito bem! Miséria e loucura” (Idem p.578). A
interferência partiu de um velho, que chamou a atenção do
narrador por seu aspecto cheio de estranhamento:

“– Quem és velho? – perguntou o


narrador. (...)
Quem sou eu? Na verdade fora difícil
dize-lo: corri muito mundo, a cada instante
mudando de nome e de vida. Fui poeta e como
poeta cantei. Fui soldado e banhei minha fronte
juvenil nos últimos raios de sol da águia de
Waterloo. Apertei ao fogo da batalha a mão do
homem do século. Bebi numa taverna com
Bocage – o português, ajoelhei-me na Itália sobre
o túmulo de Dante e fui à Grécia para sonhar com
Byron naquele túmulo das glórias do passado. –
Quem sou eu? Fui poeta aos vinte anos, um
libertino aos trinta, sou vagabundo sem pátria e
sem crenças aos quarenta. Sentei-me à sombra de
todos os sóis, beijei lábios de mulheres de todos
os países; e de todo esse peregrinar, só trouxe
duas lembranças – um amor que morreu nos meus
braços na primeira noite de embriaguez e de febre
– e uma agonia de poeta (...) O velho tirou de um
bolso um embrulho: era um lenço vermelho, o
invólucro; desataram-no: dentro estava uma
caveira (...).
(Azevedo, A. 2000, p. p. 579).

A história do velho interrompeu a narrativa de


Bertram para refletir sobre o gênio da criação no qual
borbulha poesia e insânia e reflete que “talvez o gênio seja
uma alucinação e entusiasmo precise da embriaguez para
escrever o hino sanguinário e fervoroso de Rouget de I’Isle. ”
(Idem p. 580). Rouget de I’Isle (1760 -1836) foi um oficial
francês, autor da música “ A Marselhesa”, que se tornou o
hino da Revolução Francesa e, mais tarde, o hino da França.
Diante do exposto, a sandice do velho e alegoria da
caveira de um poeta-louco exprimia a imagem de uma pessoa
que não seguia regras, modelos pré-estabelecidos pela ordem
ou pela razão. Adotava o comando da emoção, da criação a
partir da invocação da musa da inspiração ou do próprio
gênio criador.
Já foi dito, que o romântico toma a alegoria pela
realidade, mas é necessário explicitar que ele segue uma
profissão de fé denominada de “Belo Absoluto” e que faz
com que o poema se realiza, a partir de um gênio ou da
virtude de “médium” que possui o artista, espécie de
intermediário entre os homens e os deuses: e a sua arte faz-
se sem esforço – não é ele que invoca a Musa, senão a Musa
que vem a ele.
Nesse sentido, o velho representa a ideologia dos
românticos que não estavam presos a nenhum tipo de
paradigma, ou modelo fixo, formas precisas, determinadas.
O artista romântico, portanto seguia a Gênio criador da
Tempestade e Ímpeto (Sturm und Drang).

O romântico buscava, através da teoria do


gênio, encontrar uma inspiração quase divina, no
sentido mais amplo do temo, desenvolvido pelo
movimento Sturm und Drang (Tempestade e
Ímpeto). O termo “gênio”, “inspiração”, “ poetas
vates”, “furor poeticus”, usados pelos críticos da
renascença, correspondiam à “imaginação”,
“invenção” de Coleridge e da poética Sturm und
Drang. Para Diderot, gênio era “ um puro dom da
natureza” e se opunha ao gosto (...) É Helder, no
entanto, quem concebe a teoria mais elaborada de
gênio no Romantismo. (...) “percepção interior”
da própria personalidade (...) o próprio Sturm und
Drang (...) contra o racionalismo abstrato,
pervertendo a natureza e o intinto, “devido a
paixões monstruosas”. (LOBO, L. 1987, p.15)

Depois do instante de pasmação, por meio da


alegoria da figura do velho poeta-louco que expressou, na sua
historia individual, uma reflexão sobre as teorias do
Romantismo, Bertram retorna à sua narrativa: “– Eu vos
dizia que ia passar-se uma coisa horrível: não havia mais
alimentos, e no homem despertava a voz do instinto, das
entranhas que tinham fome, que pediam seu cevo como o cão
de matadouro, fosse embora sangue” (p.579). Em seguida
continuou divagando sobre gênio humano e sua capacidade
criadora e iluminada.
O homem, segundo a percepção romântica é uma
espécie de deus criador de mundos plenamente realizável no
objeto artístico. E, segundo o filósofo Schelling (1775-1854,
um dos maiores representantes do Romantismo), na obra de
arte está a unificação do mundo da natureza e do mundo do
espírito, do objeto e do sujeito. Esta unificação de
contradições e oposições resolve-se no conceito de Absoluto.
O Absoluto, de acordo com Schelling é a completa
indiferença entre sujeito e objeto, natureza e espírito; seria a
identidade de contrários que, no fundo, não oferece, em sua
real presença, outra oposição a não ser a de participarem
diversamente do próprio absoluto. Assim, o Absoluto
condiciona todas as diferenças e permite chegar ao ponto em
que o objeto predomina sobre o sujeito (natureza), ou vice-
versa (espírito). Destarte, nas obras de artísticas ficam
anuladas todas as oposições e exprime-se, da maneira mais
pura e completa, a identidade dos contrários no seio do
absoluto.
Esta reflexão sobre o conceito de “Absoluto” de
Schelling está inferida na narrativa de Bertram quando tenta
explicar o que o levou a praticar o ato de antropofagia.
Primeiro, ele explana sobre várias alegorias que levam o
ouvinte/espectador a não se espantar com os fatos que serão
narrados: entre eles, o que ele mais chama atenção é a
questão do gênio, do “ arroubo mais sublime do espírito”, da
alma de poeta. Porém, ele expõe literalmente, “E o que dizer
que tudo o que há de mais divino no homem, de mais santo e
perfumado na alma se infunde no lodo da realidade, se
revolve no charco e acha ainda uma convulsão infame (...)
Isso tudo, senhores, para dizer-vos uma coisa muito simples...
um fato velho e batido, uma prática do mar, uma lei do
náufrago – a antropofagia.” (Idem p. 580).
A partir dessa exposição narra as cenas em que
ficam os três sobreviventes: ele, o comandante e a mulher.
Para sobreviver Bertram matou o velho para comerem:
“Aquele cadáver foi nosso alimento dois dias...” (Idem
p.581). Ele e a mulher do comandante aproveitaram os
últimos dias de amor:

...foi a última agonia do amor que nos


queimava: gastamo-lo em convulsões para
sentir ainda o mel fresco da voluptuosidade
banhar-nos os lábios ... Era o gozo febril que
podem ter duas criaturas em delírio de
morte. Quando soltei-me dos braços dela a
fraqueza a fazia desvairar. O delírio tornava-
se mais longo, mais longo, debruçava-se nas
ondas e bebia a água salgada e oferecia-ma
nas mãos pálidas dizendo que era vinho. As
gargalhadas frias vinham mais de
entuviada...
Estava louca. (...)
Tinha febre no cérebro... e meu
estômago tinha fome. Tinha fome como a
fera.
Apertei-a nos meus braços, oprimi-lhe
nos beiços a minha boca em fogo, apertei-a
convulsivo, sufoquei-a. Ela era ainda tão
bela!

(Azevedo, A. 2000, p. 565 p.581)


No desespero, para sobreviver, ela mata a mulher,
mas uma onda leva o cadáver para a escuma das vagas, para
além da lembrança. Diante do exposto, a partir dos
pressupostos do Romantismo como movimento filosófico e
artístico, os crimes praticados por Bertram, estão sustentados
no princípio de que, o sujeito (corpo finito), (natureza
humana) é o centro da causa, do individualismo, do
egocentrismo, subjetivismo, da necessidade de sobrevivência
e que, na situação abordada, se unifica com o seu contrário,
objeto (alma infinita) (espírito) que precisa se alimentar de
vida/ prazer para buscar o próprio sentido de continuar a
existência.
No Modernismo o Manifesto Antropófago (1928), de
Oswald de Andrade, retoma a idéia da unificação dos
contrários em busca do absoluto da arte e da cultura
brasileira:

Só a antropofagia nos une. Socialmente.


Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão
mascarada de todos os individualismos, de
todos os coletivismos. De todas as religiões. De
todos os tratados de paz.
Tupy or not tupy that is the question.
(...)
(ANDRAD
E, O.1990. p. 47/51)

Em Álvares de Azevedo o “Absoluto” reside na


foma de como se dá a necessidade de sobrevivência da
natureza (sujeito) e da alma espírito (objeto). Na arte ficam
anuladas as oposições e exprime-se na maneira mais pura,
completa, a identidade dos contrários no seio do absoluto. O
artístico é o “Absoluto”, que é também denominado de
poético e não é criado para ser explicado ou ter uma
deterninada finalidade. A arte tem seu fim em si mesma, ela
pretende mesmo é pasmar ou despertar o momento. É o que
aconteceu com a narrativa de Bertram que é concluída com
um grito invocando a musa desses boêmios, a bebida, o
vinho que inspira a arte dos ultra-romanticos: “– Olá,
taverneira, bastarda de Satã! Não vês que tenho sede e as
garrafas estão secas, secas como tua face e como nossas
gargantas?” (Idem p.582). Ao chamar a taverneira, Bertram
fecha a sua história e reconduz o leitor ao ambiente inicial,
preparando o clima para a próxima narrativa.

5.5. Amor e Morte

A história de Gennaro é iniciada com uma fala de


Bertram:
– Gennaro, dormes, ou embebes-
te no sabor do último trago do vinho, da
última fumaça do teu cachimbo?
– Não: quando contavas tua
história, lembrava-me uma folha da
vida, folha seca e avermelhada como as
do outono e que o vento varreu.
– Uma história?
– Sim uma história. Sabes,
Bertram, eu sou pintor... É uma
lembrança triste essa que vou revelar,
porque é a história de um velho e de
duas mulheres, belas como duas visões
de luz. (Azevedo, A. 2000, p. 565p. 582)
Assim, Gennaro começa narrar uma experiência
que ele teve quando foi aprendiz de pintura na casa de um
velho chamado Godofredo Walsh. Este homem era casado
com uma moça jovem de vinte anos, chamada Nauza: Era
seu segundo casamento. Do primeiro, ele possuía uma filha
de quinze anos: “Laura... corada como uma rosa e loura como
um anjo” (p.582).
Gennaro estava na flor dos seus dezoito anos e
apaixonou-se pela esposa do seu mestre. Mas, a filha do
pintor também despertava sua sexualidade e, nas manhãs ia
ao quarto do jovem, até que um dia ficou grávida. Estava
desonrada e queria que o rapaz casasse com ela: “Que havia
de eu fazer? Contudo ao pai, e pedi-la em casamento? fora
uma loucura... Ele me mataria e a ela; ou pelo menos me
expulsaria de casa... E Nauza? Cada dia amava mais. Era uma
luta terrível essa que se travava entre o dever e o amor, e
entre o dever e o remorso” ( p.583)
Com a negativa do rapaz, a jovem não voltou a
falar do assunto e procurou tirar o filho de uma maneira que
prejudicou sua saúde de tal forma que padeceu até morrer:
“Uma noite... foi horrível... vieram chamar-me: Laura morria.
(...) – Gennaro, eu te perdôo, eu te perdôo tudo... Eras um
infame... Morrei ... Fui louca... Morrerei por tua causa... teu
filho...o meu...vou vê-lo ainda... mas no céu... meu filho que
matei... antes de nascer...( p.584).
O amor e a morte estão interligados no erotismo. A
morte não é encarada sob o seu aspecto desagregador,
anulativo, mas é vista, sobretudo, como a possibilidade de
expressão do ser e sua fusão com o universo.
Vida e morte se cruzam na estrada do fogo e
do amor. As pesquisas sobre as relações entre vida e morte,
seus elementos análogos e antagônicos, descobrem
invariavelmente na interligação entre erotismo e morte,
reflexão e todos aqueles que buscam desvendar o enigma do
amor. Sigmund Freud a abordou o problema de forma
científica e definiu os dois instintos básicos na composição da
psique humana: Eros (deus do amor na mitologia grega) e
Tânatos ( deus da morte).
Amor-dor-morte formam um conjunto de
fundamental importância na complementação de uma grande
paixão. O amor sem a morte não existe. Ama-se mais que a
própria vida, morre-se de amor e por amor. Morrer de não
morrer, dizia Santa Tereza insistindo no paradoxo de que
morrer seria viver. Para a religiosa, morrer pelo amado era
viver.
Essa luta entre Eros e Tânatos continua na
narrativa de Gennaro, pois o pai de Laura ficou enlouquecido
com a morte da filha. Ele se fechava no quarto de Laura para
“afogar-se em soluços” ou na solidão.
Enquanto o velho pintor padecia pela morte da
filha, Gennaro descobria o amor nos braços de Nauza. A
cena da desvelamento de Eros para os amantes é expressa
num flash , entre balizas pontilhadas em apenas duas linhas:
“Tudo o mais foi um sonho: a lua passava entre vidros da
janela aberta, batia nela; nunca a vira tão pura e divina! (Idem
p.585). Depois, enquanto o pintor chorava no quarto da filha
os amantes se entregavam às carícias, até que foram
surpreendidos pela presença de Godofredo retirou o aprendiz
de pintura dos braços de Nauza e o levou quarto de Laura.
Posteriormente, o mestre Walsh chamou seu discípulo de
pintura para uma viagem fora da cidade, para o cume de uma
montanha. Numa cabana misteriosa o velho parou e contou a
Gennaro a narrativa de um crime. Era a história de um velho
casado com um jovem e que tinha uma filha, também jovem,
fruto de outro casamento. Nesse instante, Gennaro percebeu a
própria história:
“Eu estremeci, os olhares do velho
pareciam ferir-me (...) Pois bem, esse infame
desonrou o pobre velho, traiu-o com Judas ao Cristo
(...) Se houvesse um castigo pior do que a morte, eu
te daria. Olha esse despenhadeiro! É medonho! (...)
Eu estava ali pendente junto à morte. (...) O velho
riu-se: infernal era aquele rir dos seus lábios
estalados de febre. Só via aquele riso... Depois foi
uma vertigem... (...) Quando cheguei à casa do
mestre, achei-a fechada. (...) saltei o muro (...) as
portas (...) estavam também fechadas. Umas delas
era fraca: com pouco esforço arrombei-a (...) Ergui
os cabelos da mulher, lentei-lhe a cabeça... – Era
Nauza, mas Nauza cadáver, já despotada pela
podridão. (...) – Era o velho!.. morto também, roxo e
apodrecido!... Eu o vi: – da boca lhe corria uma
escuma esverdeada.”
(Azevedo, A. 2000, p.587/588)

A história de Gennaro exemplifica a teoria de que o


amor e a morte são inseparáveis no Romantismo. O amor é,
em princípio, a face afirmativa de um ideal, da vida, do
anseio de viver extremamente, sentindo todos os prazeres e o
gozo supremo da vida, êxtase que se realiza plenamente no
prazer amoroso. Por outro lado, o romântico é um ser
insatisfeito, vive no plano das idéias. Diante da plena
irrealização amorosa durante a vida, busca no seu extremo, na
morte, a realização do seu sonho de amor. Se a vida negou-
lhe o amor supremo, na morte nenhum ideal lhe será negado:
A morte é a ponte para concretizar o sonho do platônico amor
e onde a limitação dos instintos é sublimada e o erotismo é
levado ao plano das sensações espirituais.

5.6 Claudius Hermann e Johann: Crimes e


Libertinagens

A epígrafe Shakespereana de Hamlet, que abre a


narrativa de Claudius Hermann indica o clima de pesadelo e
loucura do conto: “... Extacy!/My pulse as yours doth
temperately keep time/ And makes a healthul music. It is not
madness/ That I have sutter”. ( Insânia/ Meu pulso, como o
teu, bate compassado/ E faz música sadia. Não é loucura/ O
que falei).
Um dos boêmios excita Hermann para que ele conte
também a sua história, “sua nódoa de sangue”. O diálogo
prossegue nesse clima instigador para mais uma narrativa.
Diante do incitamento dos colegas, Claudius Hermann
tomou a palavra e contou com detalhes sua existência
marcada por libertinagem. Ele era a encarnação de Don Juan
personagem criado por Lorde Byron, sedutor vil e sem
escrúpulo. Era um jogador, aventureiro, rico e libertino.
Enquanto iniciava a narração de suas aventuras, seus colegas
de boemia participavam das digressões da personagem
quando ele tentava conceituar poesia como “ – Meio cento de
palavras sonoras e vãs que um pugilo de homens pálidos
entende, uma escada de sons e harmonias que àquelas almas
parecem idéias e lhes despertam ilusões como a lua as
sombras... Isto no que se chama os poetas. (...)”( Idem p.590).
Depois de muita divagação, quanto um amigo perdeu
a paciência e disse um “basta, (...) isso que aí dizes ninguém
entende: são palavras, palavras e palavras; como disse
Hamlet: e tudo isso é inanido e vazio como uma caveira seca
(...)” (p.590), ele resolveu e contar os detalhes da história de
uma mulher, a duquesa Eleonora, que ele conheceu em
Londres, numa corrida de cavalos. Ela montava um cavalo
negro, tinha uma aspecto de aparição ou sonho. Foi uma
paixão à primeira vista que virou obsessão. Então ele
resolveu entrar no palácio da duquesa para, por meio de “um
narcótico onde se misturaram algumas gotas daqueles licores
excitantes que acordam a febre nas faces e o desejo
voluptuoso no seio”, (p. 591) possuir sexualmente a esposa
do Duque Maffio. Por meio dessa fórmula, a mulher ficava
adormecida e se entregava aos braços do Don Juan.
A loucura se repetiu e se prolongou com a decisão de
raptar a duquesa e manter a mulher sequestrada, na casa dele.
Ao descobrir sua situação de vítima de um sequestro e
desonrada por um louco, libertino, infame e criminoso,
Elenora ficou enlouquecida. Ela foi obrigada viver sob o
domínio do seu algoz, por medo do julgamento do esposo e
da sociedade.
Ao narrar tamanha libertinagem, o personagem
exagerou na bebida, ficou sem força, sem cérebro e sem
ideias para concluir a narrativa: “ tenho sono... sono (...) ...a
história. Parece-me que olvidei tudo isso. Parece que foi um
sonho! (...) encheram-me o crânio de chumbo derretido!... e
ele batia na cabeça macilenta como um médico no peito
agonizante para encontrar um eco de vida.” (p.600).
Dessa forma, o narrador perdeu o fio da narrativa. No
entanto, surge uma gargalhada quebrando o silêncio: era
“Arnold-o-louro, que acordava” e se propôs conclui a
história contando que um dia Claudius Hernamn entrou em
casa e encontrou a cama encharcada e, no canto escuro do
quarto, o Duque Maffio, marido de Eleonora, alucinado,
abraçava o cadáver de sua mulher. “Claudius soltou uma
gargalhada. – Era sombria com a insânia, fria como a espada
do anjo das trevas”. (p.600).
Esse conto ressalta a imagem da mulher em estado
de sonolência, da bela adormecida, figura central dos sonhos
ultra-românticos. É um mito também a virgem, fragilizada e
semimorta, como Eleonora, objeto de adoração de Claudius
Hermann, que sacia seu desejo usando um narcótico para
facilitar a realização do amor. No entanto, ela não pertence a
ele, o amor não se realiza plenamente, por isso deseja a
posse sexual da amada, mesmo adormecida; O amor carnal
que se materializa, fica associado ao crime, à tragédia, à
culpa e à punição da consciência.
O penúltimo conto, Johann, é a narrativa de uma
sucessão de crimes apavorantes: fratricídio e incesto. A
narrativa começa a partir do discurso de Johann que
manifestou o desejo de também contar seus crimes. Ele
estava em Paris e jogava bilhar com um rapaz louro,
chamado Artur ou Arnold-o-louro, (que hoje é um dos
boêmios da taverna e foi ele quem concluiu a história de
Hermann). Como Artur era o vencedor do jogo, Johann
furioso esbofeteou o jovem. A ofensa provou um duelo de
vida e morte, “sangue por sangue”. Pegaram as pistolas,
tiram a sorte e Johann escolheua fatal. Artur – Arnold-o-louro
foi dado como morto pelo seu oponente da contenta.
Como Artur tinha duas cartas no bolso, uma era
endereçada à mãe dele e a outra era um bilhete de sua
namorada. O narrador da história leu o bilhete e resolveu
seguir a direção apontada nas linhas da missiva: “À uma hora
da noite na rua de... nº, 1º andar; acharás a porta aberta. Tua
G.” (p.601). Uma idéia vil dominou o cérebro de Johann: foi
até o lugar indicado e se passou pelo namorado da moça que,
apaixonada, no escuro, se entregou pela primeira vez.
Johann saiu de lá intrigado porque a donzela era uma
virgem. Na porta da residência encontrou um vulto de um
jovem que o atacou. Os dois lutaram e o narrador matou o
rapaz. Quando consegui uma luz para ver o rosto do cadáver,
verificou que o moço era seu irmão que há muito tempo não
encontrava, pois ele tinha abandonado a mãe, a irmã, o irmão
e a família para seguir sua vida de jogador e libertino. Assim,
Johann praticou o crime assombroso do fratricídio, matou
seu próprio irmão. Ao voltar para ao sobrado para ver quem
era a moça que ele desonrou, descobriu que se tratava de sua
irmã. Destarte, praticou a conexão de dois crimes
hediondos: fratricídio e incesto, pois desonrou a própria
irmã com incesto – uma união sexual entre parentes
(consanguínea ou afins), uma amoralidade condenada pela lei
e pela religião.

5.7 A Tragédia na Taverna e o “Último Beijo de


Amor”

O “Último beijo de amor” se contrapõe à primeira


narrativa, “ Uma noite de um século”, quando todos estavam
eufóricos e os boêmios invocavam vinho enquanto o som dos
brindes das taças enchiam o ambiente embaçado de fumaça
dos charutos cubanos. Em contrapartida, no arremate da
noite na taverna, soava um clima sereno, pois todos já
dormiam embriagados, nenhuma personagem tinha mais
entusiasmo e voz para narrar histórias. O conto é narrado por
o narrador principal ou, antes, um leitor virtual, não
identificado no decorrer da narrativa, denominado por Gerard
Genette de narrador herodiegético, que não participa de
forma explícita como personagem, mas é onisciente, que
conta a história em terceira pessoa, mas conhece os
sentimentos mais internos das personagens.
Das sombras da madrugada surge uma estranha
mulher de preto, pálida e com uma lanterna na mão, estava à
procura de um rosto familiar. Apontou a lanterna de face em
face até encontrar o rosto de Arnold-o-louro, “quis dar-lhe
um beijo, alongou os lábios...Mas uma idéia susteve” (p.605),
ainda não era hora de acordá-lo, ela necessitava realizar sua
vingança antes. Ao reconhecer Johann, a mulher vestida de
negro cortou sua garganta com um punhal e enxugou o
sangue nos cabelos de vítima. Em seguida, acordou Arnoud
que, ao reconhecê-la, se emocionou e pensou estar
sonhando:

“Tu? E não é um sonho? És tu! Oh! Deixa


que eu te aperte ainda! Cinco anos sem ver-te!
Cinco anos! E como mudaste!
–Sim, já não sou bela como há cinco anos!
E verdade meu louro amante! (...) Outrora era
Geórgia – a virgem –, mas hoje é Giórgia – a
prostituta!
– Oh! Deixa que me lembre: estes cinco
anos (...) Aquele homem do bilhar, o duelo à
queima-roupa, meu acordar num hospital, essa
vida devassa onde me lançou a desesperação (...)
É um adeus, é um beijo de adeus (...) É preciso
que esse adeus seja longo como a vida. (...)
Arnold! Arnold (...) Não me chames Arnold!
chama-me Arthur, como dantes. (...)
(...) Artur eu vou morrer! (...) vês aquele
homem? (...) Johann! morto! Quem o matou?
– Giorgia! Ele era um infame. (...) Giória –
a prostituta! Vingou nele Geórgia – a virgem!
Esse homem foi quem a desonrou! desonrou-a... a
ela que era sua irmã.
– Horror! horror! (...) seus lábios gruda-
os a morte; a campa é silenciosa.Morrei! (...) o
moço tomou-a nos braços, pregou os lábios nos
dela ... (...) O moço tomou o punhal, fechou os
olhos, apertou-o no peito e caiu sobre ela. (...) A
lâmpada apagou-se.( Azevedo, A. 2000, p.
606/607)

Esta narrativa retorna ao pretérito da história anterior,


contada por Johann que foi revivido pela presença de
Geórgia, ressurgida uma sombra, ou um fantasma do
passado. A mulher aparece para executar seu desagravo,
matar seu irmão e cometer o crime de fratricídio, provocando
uma tragédia semelhante àquelas que tinham sido narradas
naquela noite na taverna. Este conto, epigrafado com uma
citação de Romeu e Julieta, de Shakespeare: “Well Juliet! I
shall lie with thee to night!” (Bem, Julieta! Deitarei contigo
esta noite), já sugere, desde o início, uma tragédia, a morte
fatídica de dois amantes, o último beijo de amor no leito de
morte, exprimindo a alegoria da essência e do clímax dessa
noite na taverna, consolidada nesse grande final traduzido
numa memorável tragédia.
O título da obra Noite na taverna alude à boemia dos
ultrarromânticos como já foi mencionado nesse estudo, mas
também insinua a noção de tragédia no sentido original do
termo indicado por Aristóteles como um “coro de bodes”,
(composto por cantores vestido de bodes, sátiros – misto de
homem-cabra com orelhas pontudas e pés de cabra, mas às
vezes com formas sedutoras) em honra a Baco – o deus do
vinho. Diante do exposto, a tragédia nessa obra, acena ora
para sua origem – uma espécie de festividade dionisíaca que
cultuavam o vinho, do prazer, a orgia; ora, lembra também a
festa (saturnal) dedicada à Saturno, deus paganismo que
conquistou o Lácio, fez florescer a idade de ouro e ensinou
aos homens a agricultura. As festas celebradas em sua honra,
na Roma antiga, eram verdadeiros festins orgíacos, bacanais,
devassos.
Estas festas pagãs e libertinas, independente da
origem, estão ou sugeridas, ou referidas em vários momentos
nos contos de Noite na Taverna. Também estão presentes
nas narrativas de Álvares de Azevedo as características da
tragédia, tanto nas marcas do alto grau dramático, quanto nas
cenas nefastas, catastróficas, funestas. Não se trata da
tragédia clássica descrita por Aristóteles com as propriedades
típicas como o coro, os episódios, em número de três, a
representação dos homens superiores, apenas para citar
alguns exemplos. No entanto, independente do gênero
literário, ou da época aludida na criação da obra, ou da
referência das alegorias usadas no texto, Noite na taverna é
um mergulho no romantismo mais extremo que reside no
sonho humano, no inconsciente que cria os fantasmas
acenados por Hamlet que podem ou não ser ou não ser
“mais do que simples ilusão”.

6. O ENCONTRO DO NOIVO COM A POESIA


E A MORTE
Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro!


Que aurora de porvir e que amanhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que doce n'alva


Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora


A ânsia de glória, o doloroso afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!

Em 1951, no quarto ano da Faculdade de Direito,


passa as férias de dezembro na fazenda do tio-avô, o Barão
de Itapacorá e resolve não voltar no ano seguinte para São
Paulo, por pressentimento que morreria.
A 10 de março, já no Rio Janeiro, depois de uma
queda num passeio de cavalo, chega à casa com fortes
dores na virilha esquerda. Chamado o dr. Francisco
Praxedes de Andrade Pertence, constata-se um tumor
na fossa ilíaca. No dia 15 de março é operado, sem
clorifórmio, pelos médicos italianos Cesare Persiani e
Luigi Bompani, para a retirada do abcesso já
supurado. Na manhã de 25 de abril, confessa-se e
recebe absolvição. Perto das quatro da tarde despede-
se da mãe, a quem pede que se retire do quarto.
Amparado pelo pai e pelo irmão Joaquim Inácio,
morre às cinco da tarde, Que fatalidade, meu pai. 121
(AZEVEDO, Álvares de. 2000, p. 17)

Diante do exposto, em todos estes momentos


fragmentados, encontramos o jovem Álvares de Azevedo
falando da vida e da morte, até que, em 25 de abril de 1852, o
“o noivo da morte”, falece no Rio de Janeiro sem concluir o
curso e nem publicar nenhum livro de poema em vida. Tinha
apenas vinte anos de idade. Muito pequena, sua obra inclui
poesias: Lira dos vinte anos (1853, publicado um ano
dempois da sua morte), Poema do frade, O Conde Lopo;
contos: Noite na taverna, narrativas satânicas, inspiradas no
alemão Hoffmann e uma peça de teatro: Macário, inspirado
em Fausto de Goethe.
Em 1955, teve a edição do segundo volume das
Obras.

“A família vende os direitos das obras do poeta ao


editor B.L.Garnier, por cinco contos de réis. Com essa
quantia o pai manda erguer o túmulo definitivo do
poeta, no Cemitério de S. João Batista, jazigo nº 12.
De fato, no ano anterior fora extinto o cemintério da
Praia Vermelha, destruída por uma ressaca. Com o
desmantelamento pelas ondas do túmulo primitivo, foi
o local onde se encontravam os restos do poeta
localizado pelo cão, “Fiel”, o que possibilitou o
posterior traslado de seus ossos”
(Ibidem, p. 17).

121
AZEVEDO, Álvares de. Obra Completa, volume único.
Organização Aleixei Bueno; textos críticos, Jaci Monteiro...(et al)
– RJ,Nova Aguilar, 2000, p. 17
Em 1862, foi publicada pela Garnier, das Obras do
poeta em três volumes, com reedição no mesmo ano.
Na sessão do dia 23 de maio de 1852, numa sociedade
filosófica de que Álvares de Azevedo era sócio, ouviu-se um
discurso: “A mão mirrada e certeira da Morte, desfechando
medonho golpe sobre uma das mais lisonjeiras esperanças da
nossa Sociedade e da Pátria, nos obriga a chorar neste recinto
de luto e de tristeza o pensamento do nosso mui caro patrício
e consócio Manuel Antônio Álvares de Azevedo”
(AZEVEDO, A. (1942), p. 36). 122

Alvares de Azevedo pode cantar sua canção da morte,


conforme poetizou em “Lembrança de Morrer”:
Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta - sonhou - e amou na vida.

CONCLUSÃO

Após a implantação e o sucesso do Romantismo entre


nós – em parte graças aos esforços e ao talento de Gonçalves
Dias – a poesia romântica brasileira ganhou novos rumos
com o aparecimento do grupo ultrarromântico, a segunda
geração da poesia romântica.
Esta geração, copiando o estilo de vida dos
românticos europeus, Byron, Mussett, Lamartine e Shelley,
caracterizava-se pelo espírito do mal-do-século, isto é, por
122
AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. São Paulo: Ed. Nacional,
1942.
uma onda de pessimismo doentio diante do mundo, que se
traduzia num apego a certos valores decadentes e mórbidos,
tais como a bebida, o vício, a melancolia, o noturno, o
satanismo e a morte.
Da produção literária desse grupo, Álvares de
Azevedo destacou-se como o poeta que, com maior clareza e
consciência, soube definir um projeto de linguagem
ultrarromântica e transmitiu, com maestria, os conflitos e os
anseios de sua geração.
Nesse período supremo do Romantismo, a linguagem
romântica atinge seu ponto culminante de egocentrismo e
individualismo, ampliando e aprofundando a experiência
romântica da sondagem interior do eu, das “Ideias Íntimas”.
Contagiado pelo mal-do-século, Álvares de Azevedo
cultivou poesia, prosa e teatro. A característica marcante de
sua obra reside na articulação consciente de um projeto
literário baseado na binômia, talvez a contradição que ele
sentisse, na condição de adolescente.
Perfeitamente enquadrada no dualismo que
caracterizava a linguagem romântica, essa contradição é
visível nas partes que formam sua Lira dos vinte anos. A
primeira e a terceira parte da obra mostram a face de um
Álvares de Azevedo adolescente, casto, sentimental, ingênuo,
puro e sonhador. É a face Ariel – o Bem. Já a segunda parte
apresenta o lado irreverente, irônico, macabro, dionisíaco,
malandro e, por vezes, degradado de um moço velho, isto é,
um jovem em conflito com a realidade, tragado pelo vício e
amadurecido precocemente. É o lado Caliban – o Mal.
De acordo com o que vimos, as características da obra
de Álvares de Azevedo justificam seu brilho no
Ultrarromantismo. Sua poesia é egocêntrica, confessional,
sempre centrada na pessoa, no eu. Sua obra manifesta o mal-
do-século, a atitude cética perante a vida e, acima de tudo,
um humor irreverente, desabusado, recheado de um saboroso
brasileirismo malandro. A obra azevediana apresenta um
caráter pessoal e um talento impulsivo de um jovem que, nos
seus verdes anos, leu e assimilou poetas contemporâneos da
Inglaterra, Alemanha e França e fez da literatura sua vida e
sua morte. A literatura brasileira foi contemplada com uma
obra de grande força expressiva, estilística, altamente poética
e única.

V – A POESIA DE DALPHONSUS DE GUIMARAENS

Pálido asceta, a poesia


que emerge, límpida e nua,
da tua melancolia,
é para nós, nesta rua
que andamos, em romaria,
a bíblia que se cultua,
espelho, lâmpada e guia.

O incerto palor da lua


- intemporal harmonia
que teus nos versos flutua
(...)
E aquela dor-agonia
que, como acerada pua,
o coração te mordia,
em nós também se insinua
e fundo nos angustia. Heli Menegale

À mística litania
que oraste na igreja, à sua
serena Virgem Maria,
aos versos feitos à lua,
ao lírio que fenecia
(...)
À catedral que gradua
a vida (e um sino batia...)
(...)
e o branco luar debrua,
às rosas de tez macia,
às violetas, em que sua,
gota a gota, água alvadia,
ao céu que te apazigua,
à morte que te arrepia,
(...)
à Dona morta, alva, esguia,
nesse gesto em que a situa
estro, tua poesia...

Heli Menegale

1. ALPHONSUS DE GUIMARAENS - O POETA


DOS SINOS PLANGENTES, DOS CINAMOMOS, DA
VIDA, DA MORTE, DA TRANSCENDÊNCIA

Alphonsus de Guimaraens é o nome literário de


Afonso Henriques da Costa Guimaraens, nascido em Ouro
Preto, dia 24 de julho 1870. Segundo Manuel Bandeira, “a
latinização do prenome data de 1894 e talvez indicasse como
o desejo de fugir à vulgaridade, uma intenção mística nesse
poeta que tinha o gosto dos hinos latinos da Igreja e traduziu
em versos o “Tantum ergo” e o “Magnificat” (...)”.
(GUIMARAENS, Alphonsus de 2001, p. 40). 123Alphonsus
estudou Engenharia na Escola de Minas e, aos dezessete
anos, já escrevia versos inspirados em sua noiva, a prima
Constança, filha de Bernardo Guimaraens. Vitimada pela
implacável tuberculose, sua musa morreu em Ouro Preto, em
28 de dezembro de 1888. A doença, que não perdoava,
espiritualizou esse amor e a morte da noiva foi um tema
constante na obra do poeta mineiro. Após mergulhar na
depressão e na boemia, transferiu-se para São Paulo e, aos 20
anos, matriculou-se na Faculdade de Direito do Largo de São
Francisco, em São Paulo. Nesse período, trabalhou em
diversos jornais, teve uma intensa vida literária; bacharelou-
se em Minas Gerais em 1894. No ano seguinte, voltou a São
Paulo e graduou-se em Ciências Sociais e, no mesmo ano,
viajou ao Rio de Janeiro; lá entrou em contato com os
simbolistas e conheceu Cruz e Souza, o “Cisne Negro”.
Em 1896, foi nomeado promotor em Conceição do
Serro; depois, juiz substituto e, em 20 de fevereiro, casou-se
com Zenaide, filha do capitão João Alves de Oliveira,
escrivão da Coletoria Estadual da cidade Conceição do Serro.
A partir de 1905, exerceu o cargo de juiz municipal
em Mariana. Trabalhando para sobreviver, recebeu o apelido
de o “Solitário de Mariana”, por seus hábitos reclusos. Teve
14 filhos, a caçula, nascida em 08 de março de 1920, foi
chamada de Constança, Constancinha para os familiares.
Depois de uma doença rápida, a menina morre em 16 de maio
de 1921. Parentes, atribuíram a morte à fatalidade do nome.

123
As citações sobre o poeta Alphonsus Guimaraens foram retiradas da
antologia: GUIMARAENS, Alphonsus de. Melhores poemas. / Seleção
de Alphonsus de Guimaraens Filho.4a. ed. São Paulo: Global, 2001.
No dia 15 de julho do mesmo ano, após quase dois
meses da morte de Constancinha, o coração descompassado
do poeta de Mariana pára. Os sinos da Catedral choram os
lúgubres responsos, anunciando a morte de Alphonsus de
Guimaraens, poeta simbolista, cantor do Amor e da Morte.
Sua obra consta das seguintes publicações, em
poesia: Setenário das Dores de Nossa Senhora, Câmara
Ardente, Dona Mística (todas publicadas em 1899), Kiriale
(1902) e Pastoral aos Crentes do Amor e da Morte
(publicação póstuma (1923), organizada por seu filho João
Alphonsus); em prosa: Mendigos (1920).

2. O SIMBOLISMO

O Simbolismo floresceu, na Europa, nos anos 80 e 90


do século XIX. Na mesma época em que os pintores
impressionistas iniciavam a diluição dos contornos dos
objetos nos jogos de luz, os poetas simbolistas renunciavam à
tradução da forma fixa do objeto em favor do ritmo, do devir,
da fugacidade, do momento. Buscavam a expressão de algo
que escapasee a uma forma definida e não abordável por um
caminho direto. O simbolismo, portanto, representou uma
nova forma de ver o mundo.
Insatisfeitos com a onda de cientificismo e
materialismo a que esteve submetida a sociedade industrial
europeia na segunda metade do século XIX, os simbolistas à
reagem intuição contra a lógica; ao subjetivismo contra a
objetividade científica; ao misticismo contra o materialismo;
à sugestão sensorial contra a explicação racional.
Os adeptos do Simbolismo não acreditavam na
possibilidade de que a arte e a literatura pudessem fazer um
retrato total da realidade. Duvidavam também do positivismo
da ciência e, assim, os tornaram representantes de um grupo
social que ficou à margem do cientificismo do século XIX, e
que procurou resgatar certos valores românticos varridos pelo
Realismo: o espiritualismo, o desejo de transcendência e de
integração com o universo, o mistério, o misticismo, a morte,
a dor.
Este novo estilo literário começa por ser, portanto,
“uma negação do materialismo, do positivismo, do
determinismo e outras atitudes científico-filosóficas que
embasaram a estética Realista/Naturalista/Parnasiana. É, por
outro lado, um retorno ao subjetivismo romântico, existencial
(sem, contudo, cair na afetação sentimental romântica) ao
predomínio do "eu", da imaginação, da emoção, ainda de
modo mais profundo e radical. É, também, uma volta à
atitude conflitual tensa do Barroco e ao espiritualismo e
religiosidade da era medieval” (MASSAUD, Moisés. in.
(1973) p. 204), 124estética que se propagou, recebendo a
denominação de Simbolismo, sugerida Jean Moréas, poeta
francês (grego de nascimento), em seu Manifesto Literário Le
Symbolismo (1886). 125
O símbolo sempre existiu na Literatura, mas somente
no século XIX é que seu emprego se difundiu e se tornou
moda com a denominação de Simbolismo. Em 1857, quando
Charles Baudelaire (1821-1867), 126precursor do Simbolismo,
124
MASSAUD, Moisés. O Simbolismo. A Literatura Brasileira, vol. IV, Cultrix,
SP, 1973.
125
MORÉAS, Jean. “Manifeste du Symbolisme”. In. Le Figaro, 18 septembre,
1886, pp. 1-2.
126
Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de abril de 1821 - Paris, 31 de agosto de
1867) foi um poeta boémio, dandy, flâneur e teórico da arte francesa. É
considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente
como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman,
embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica
também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.
publicou As Flores do Mal, as inovações começaram a
esboçar-se na literatura mundial, pois, apesar da perfeição
formal, a obra introduzia a ideia de que todas as coisas
possuíam uma correspondência entre si e podiam ser
representadas por símbolos.
O poeta francês Arthur Rimbaud (1854-1891), 127
vendo a palavra como um fim em si, concebe-a como
símbolo de experiências sobrenaturais, usando-a não pelo
propósito comum de troca, o que supõe atribuir à palavra um
valor definido, mas atribuindo-lhe o poder de evocar
associações. Como expoente do Simbolismo francês,
afirmou que “o poeta é um vidente por um longo, imenso e
irracional desregramento de todos os sentidos”
(FRIEDRICHI, Hugo, 1978, p.100). 128
A essência da concepção simbolista concebe a crença
em um mundo ideal, na acepção platônica, que só é realizável
através da beleza. Com a decadência do Realismo, surge o
gosto pela religiosidade, pelo incompreensível e pela
aproximação da concepção platônica de que o mundo
sensível não é o real. A coisa em si não será, para o
simbolista, o elemento principal a ser expresso, mas sim a
essência. Esta, porém, poderá ser apenas sugerida, e o
perfeito uso da sugestão é o que constituirá o símbolo.

127
Jean-Nicolas Arthur Rimbaud (Charleville, 20 de outubro de 1854 -Marselha,
10 de novembro de 1891) foi um poeta francês. Produziu suas obras mais famosas
quando ainda era adolescente sendo descrito por Paul James, à época, como "um
jovem Shakespeare". Como parte do movimento decadente, Rimbaud influenciou
a literatura, a música e a arte modernas. Era conhecido por sua fama de libertino e
por uma alma inquieta, viajando de forma intensiva por três continentes antes de
morrer de um câncer aos 37 anos de idade.

128
FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica moderna. Trad. Marise N. Curioni,
São Paulo: Duas Cidades, 1978.
Rimbaud, Paul Verlaine 129 (1844-1989) e Stephane
Mallarmé (1842-1867) 130 são os paradigmas do Simbolismo,
cuja maior fonte foi Baudelaire. Verlaine renovou a poesia,
abandonou as regras da versificação, recorrendo
especialmente ao verso ímpar, "mais solúvel no ar", e criou
uma poesia moderna, pela profundeza do canto e seu gosto
pela confidência. Gênio do sonho e das sutilezas da alma,
Verlaine inventou uma poesia fluida e musical graças a um
uso sutil do ritmo. Mallarmé defendia a ausência de uma
lírica do sentimento e da inspiração; a fantasia guiada pelo
intelecto; o aniquilamento da realidade e das ordens normais,
tanto lógicas como afetivas; o manejo das forças impulsivas;
a sugestionabilidade em vez da compreensibilidade. Para este
poeta francês “poetar significa renovar tão radicalmente o
originário ato criativo da linguagem que o dizer seja sempre
dizer o que não foi dito até então” (FRIEDRICHI, Hugo,
1978, p.117) 131 e ainda que poetar significa portanto “evocar
o objeto calado numa obscuridade propositada por meio de
palavras alusivas jamais diretas” (IDEM, p. 118).
A partir desses poetas, a poesia ocidental vive um
momento em que a objetividade e o tom escultural do
Parnasianismo cedem lugar à evocação sugestiva e musical.
129
Paul Marie Verlaine (Metz, 30 de Março de 1844 - Paris, 8 de Janeiro de
1896).A publicação da antologia Les poètes maudits, organizada por Paul
Verlaine, em 18841, junto com o Manifeste du Symbolisme, de Jean Moréas,
publicado em 1886, nas páginas do jornal “Le Figaro” marcam o nascimento do
Simbolismo europeu, representando os documentos fundadores da nova estética
literária que dominou o período compreendido entre os séculos XIX e XX,
influenciando, em larga escala, a poesia de diversas literaturas nacionais.
130
Stéphane Mallarmé, cujo verdadeiro nome era Étienne Mallarmé, (Paris, 18 de
Março de 1842 - Valvins, comuna de Vulaines-sur-Seine, Seine-et-Marne, 9 de
Setembro de 1898) - poeta e crítico literário francês.
131
FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica moderna. Trad. Marise N.
Curioni, São Paulo: Duas Cidades, 1978.
Em lugar da exatidão, o vago predominou. A palavra sofre
um esvaziamento de conteúdo, valendo pela sugestão verbal.
O procedimento comparativo, tão comum ao romantismo e ao
Parnasianismo, é suprimido. As imagens não são mais
paralelas, superpõem-se em riqueza associativa. Por outro
lado, a musicalidade volta a ser cultivada. A palavra, antes
presa a uma sintaxe ordenada – reflexo de uma concepção do
mundo com estrutura lógica -, com a opção do simbolista
pelo indefinido e pelo mistério, liberta-se da ordem frasal e
carrega-se de subjetividade irracional. Ela passa, então, a
valer pela sonoridade, pois atribui-se a sons e ritmos a
propriedade de estimular imaginação para que a Ideia seja
apreendida. Os últimos entraves da métrica tradicional são
rompidos, surge o verso livre, conquista da modernidade
poética.
Em síntese, são características da arte simbolista:
linguagem vaga, fluida, que prefere sugerir a nomear;
utilização de substantivos abstratos, efêmeros, vagos e
imprecisos; Subjetivismo e teorias que se voltam ao mundo
interior; interesse pelo particular; antimaterialismo, anti-
racionalismo em oposição ao positivismo; misticismo,
religiosidade, valorização do espiritual para se chegar à paz
interior; pessimismo, dor de existir; interesse pelo indefinido
e pelo mistério; desejo de transcendência, de integração
cósmica, deixando a matéria e libertando o espírito; interesse
pelo noturno, pelo mistério e pela morte, assim como
momentos de transição como o amanhecer e o crepúsculo;
interesse pela exploração das zonas desconhecidas da mente
humana (o inconsciente e o subconsciente) e pela loucura;
alienação do social; flexibilidade formal; arte pela arte;
presença abundante de metáforas, comparações, aliterações,
assonâncias e sinestesias.
2. 1. O Simbolismo no Brasil

O Simbolismo começou a manifestar-se na literatura


brasileira a partir de 1893, quando Cruz e Souza publicou as
obras Missal (prosa) e Broquéis (poesia) e estendeu-se até
1922, ano da realização da Semana de Arte Moderna. Porém,
sem os resultados da Europa, onde o Simbolismo sobrepôs ao
Parnasianismo, no Brasil, o movimento parnasiano continuou
seu prestígio entre as camadas cultas até o início do século
XX, e o simbolista foi recebido “pela incompreensão, não
contou com aplausos, mas sim com hostilidades. Eram
hostilidades e incompreensões decorrentes menos do rigor
crítico que de uma forma de comodismo mental, que
conduzia a Literatura Brasileira perigosamente para a
estagnação conformada”. (Eduardo Portela. in.
132
ALPHONSUS DE GUIMARAENS. 2001, p.15). Apesar
dessa oposição, nossa produção simbolista foi significativa e
as grandes inovações da poesia modernista foram preparadas
nesse período, especialmente pelos poetas Cruz e Souza e
Alphonsus de Guimaraens.

2. 2. O Simbolismo de Alphonsus de Guimaraens

Alphonsus de Guimaraens foi dono de um


Simbolismo ímpar, de brilho próprio. A sistemática da escola
foi um meio e não um fim único de construir sua arte poética.
Contudo, Alphonsus viveu profundamente o Simbolismo e
cultivou as diversas formas nascidas ou renascidas dele e,
132
GUIMARAENS, Alphonsus de. Melhores poemas. / Seleção de
Alphonsus de Guimaraens Filho.4a. ed. São Paulo: Global, 2001.
ainda, expressou poeticamente as inquietações técnicas e
temáticas deste movimento artístico. Sua arte simbolista tinha
um pouco de cada um dos grandes franceses, sem ter o todo
de nenhum deles. Alphonsus de Guimaraens possuía o
mistério do visionário Rimbaud, o cartesianismo da catedral
artística de Mallarmé e a fluidez do ritmo musical de
Verlaine. De acordo com Eduardo Portela, “a grandeza de
Alphonsus reside, em grande parte, no fato de que, havendo
nele alguma coisa de Verlaine, existia também de Mallarmé e
de Rimbaud. Mas existiu, acima de tudo, de Alphonsus de
Guimaraens. As experiências simbolistas ele as viveu, quase
todas sem, contudo, contentar-se com a sorte ou conformar-se
com o destino. Daí a sua quase rebeldia ao inovar além dos
cânones parisienses e até mesmo contra esses próprios
cânones” (Idem. p.17). A arte poética do autor de Kiriale é
um momento sinestésico do próprio Simbolismo, pois seus
versos exalam a mística litania, as cores, a dor e a existência
que a poesia simbolista pode construir. A partir do
pressuposto, selecionamos as marcas simbolistas que estão
evidenciadas nos Melhores Poemas de Alphonsus de
Guimaraens.

3. INTERESSE PELO INDEFINIDO E PELO


MISTÉRIO

Há na poesia simbolista um clima de mistério. A


única certeza é de que o mundo não revela o que,
efetivamente, é. As grandes experiências estão na proporção
direta do desvendamento do mistério. A palavra presta-se a
isso, sendo capaz de estabelecer relações e de criar
correspondências entre o abstrato e o concreto. Trata-se,
porém, do lado não-conceitual da palavra, ou seja, de sua
natureza significante, o que motiva o poeta simbolista a
partir do princípio de que é impossível o retrato fiel do
objeto; o papel do artista, no caso seria o de sugeri-lo, por
meio de tentativas, sem querer esgotá-lo. Assim, a obra de
arte nunca é perfeita ou acabada, mas aberta, podendo sempre
ser modificada ou refeita e a temática está voltada para o
indefinível: a morte, o espírito, a transcendência cósmica, o
sonho, o absoluto, o nada, o bem, o belo, o silêncio, o
sagrado dentre outros. Alphonsus de Guimaraens foi um
poeta que viveu intensamente o interesse pelo indefinido e
pelo mistério; sua poesia tem o clima do inexplicável, do
vago, do sinestésico, do não-conceitual, do intraduzível e
apenas do que pode ser sentido. Dentre todos esses temas de
difíceis explicações ou tradução, a morte foi matéria
expressiva na poesia de Alphonsus.

3. 1. Exploração do tema da morte

Marcado pela morte da prima Constança – sua noiva


–, a poesia de Alphonsus é quase toda voltada para o tema da
morte da mulher amada, que aconteceu apenas dois dias antes
do seu casamento. Todos os outros temas explorados, estão
de alguma forma relacionada àquele.
A presença da noiva, na poética de Alphonsus, atua
como uma imagem que representa e encerra a significação de
tendências do inconsciente. É símbolo de um amor que se foi
numa nuvem de mistério tomada de morte e de dor, mistério
metaforizado por brumas ou nevoeiros simbolizados pela cor
branca. O poema “Noiva” (Idem.p.41) exemplifica essa
tonalidade pálida, esse clima de sonho, encontro com a morte
e a incerteza de tudo:
Noiva... minha talvez... pode bem ser que o sejas,
Não me disseste ao certo o dia que voltavas.
O céu é claro como o teto das igrejas:
Vens de lá com certeza. Humilde como escravas,
(...)
(p.41)

O “eu” lírico está diante de uma situação


indeterminada e uma confusão de ideias. O primeiro verso
tem início com o vocábulo Noiva..., signo supremo do seu
desejo e angústia, seguido de reticências e a frase minha
talvez... enfatizada por outras reticências, significando a
indeterminação da sua realidade. Somente o indefinido e a
cor branca do céu claro como o teto das igrejas, estão
presentes no mundo do “eu”- poético. A morte, com seus
mistérios, ronda a poesia. Porém, o que a razão não pode
explicar ou compreender está sugerido, ao longo do poema de
treze quartetos, pelo jogo de luz e trevas: ...estrelas
amorosas;/ ....vulto branco.../... negro o cabelo/ Quando
morreste o sol era morto, e ainda agora/ Para mim se
prolonga essa noite de guerra.../Acaso vens com o teu olhar
de eterna aurora/ Aclará-la outra vez, vindo de novo à
terra? (...) corpo de neve (...). Destarte, o claro e o escuro
oscilam no poema. Da mesma forma, a imagem da noiva
surge e desaparece como num sonho a traduzir um clima de
mistério, fantasia e até misticismo.
O devaneio causado pela perda da amada integra-se
aos símbolos consubstanciados no vocábulo Noiva, numa
integração com o sagrado, com a liturgia, com o sentimento
de totalidade, com a vida cósmica, como se ela, a noiva, fosse
poesia e uma religião ou, ao contrário, numa posição
metalinguística, a poesia fosse a própria noiva e a religião do
poeta, a exprimir versos que têm o velado sussurro das
orações e das preces. Porém, no Simbolismo, as ideias são
diluídas, tudo é sugestão:

Foste de branco e vens de branco ainda trajada,


A túnica nupcial que em níveas dobras desce
Pelo teu corpo, tem a brancura sagrada
Dos alvos corporais do altar exposto à prece.
( Idem p.41)

Esse clima ebúrneo, cor de marfim ou do sonho, para


usar um vocábulo simbolista, exprime o vago, o impreciso,
característica fundamental do Simbolismo. Alphonsus de
Guimaraens transfigura sua experiência pessoal em arte
simbolista, pois cria todo um ambiente de sonho e sensações
ao exprimir sua dor e seu contato com os mistérios da morte.
A exploração da temática da morte abre ao poeta, por
um lado, o vasto campo da literatura gótica ou macabra dos
escritores ultrarromânticos, recuperada por alguns
simbolistas; por outro lado, possibilita a criação de uma
atmosfera mística e litúrgica, em que abundam referências ao
corpo morto, ao esquife, às orações, às cores roxa e negra, ao
sepultamento.
O poema “Canção de núpcias” (Idem p.44) insinua a
música da dor do noivo, um clima de angústia:
Que céu tão cheio de véus de noivas,
Que céu tão cheio de véus de viúvas...
Oh luar sublime, com quem te noivas?
Oh noite triste, de quem te enviúvas?
(...)
(p.44)
A tristeza é tom permanente nesta canção construída
em quatro quartetos. A melancolia está sugerida já na
primeira estrofe por meio do advérbio de intensidade tão
cheio de..., pelo dualismo exclamativo Oh luar sublime (...)
Oh noite triste e pela aliteração formada pela repetição da
letra V (consoante constritiva, fricativa, labiodental, sonora) a
propor uma sonoridade que se esvai, que se evapora, mas
deixa as dores intrigantes:
Por que as flores roxas engoivas
as tranças negras da cor das uvas?
(...)
Por que de prantos roxos engoivas
Os olhos negros da cor das uvas?
(p.44)

Nestes versos, Alphonsus faz experiências com a


teoria das correspondências e realiza um processo cósmico de
aproximação entre as realidades físicas e as metafísicas, entre
os seres, as cores, os perfumes e o pensamento ou a emoção,
que se expressa pela sinestesia: flores roxas engoivas/ (...)
prantos roxos engoivas. Essa operação sinestésica da mistura
de sentidos é provocada pelo neologismo engoivas. Engoiar
significa tornar-se triste. Engoiva representa a união de
engoiar + noivas, para conotar a tristeza das noivas
simbolizadas nas flores roxas, nos prantos roxos, na tristeza
rubra violeta, cor das uvas, cor da paixão, da dor, do amor
perdido das viúvas, aliás dos viúvos, como o “eu”- poético. A
alusão contínua às viúvas deve-se ao fato da relação
simbólica. Isto é, no poema, a mulher é o assunto de sua arte,
portanto, são as noivas, as viúvas e, também, a própria poesia
que executam essa triste canção de núpcias.
Alphonsus de Guimaraens foi o Poeta do Amor e da
Morte, dos frios luares, dos ocasos de sangue, mesclados de
sombras mortas e horas mortas: A suave castelã das horas
mortas/ Assoma à torre do castelo. As portas,// Que o
rubro ocaso em onda ensanguentara,/ Brilham do luar à luz
celeste e clara. // Como em órbitas de fatais caveiras/ Olhos
que fossem de defuntas freiras, //(...) (p.45). Os termos
grifados exprimem simbolismos voltados para a morte e
recuperam a literatura macabra ou gótica dos
ultrarromânticos, mas traduz antes um clima místico e
litúrgico. A poesia do autor de Pastoral dos Crentes do
Amor e Morte exibe uma prece de amor, morte e poesia. O
soneto “Pálida, de uma palidez sublime...” ( Idem p.31)
manifesta esse tom gótico mesclado de oração e lirismo:

Pálida, de uma palidez sublime,


E tão sentimental que enleva e espanta:
Santa Teresa de Jesus sorri-me
Naquela suave palidez de Santa.
(...)
Oh a minha doce, a minha doce amada...
Beija-me a branca face macerada
A palidez de quem já não existe.
(p. 31)

Este soneto denominado, pelo primeiro verso, “Pálida,


de uma palidez sublime” (Idem p.31) está vertido na essência
da falta de vida, de animação e de colorido. Paira, sobre as
imagens sugeridas nos versos, o tom desbotado, frouxo,
tênue, da falta de luz e cores. No entanto, o “eu” lírico
poetiza um ambiente sem coloração ao contemplar o clima
descorado, ao classificá-lo como sublime: Pálida, de uma
palidez sublime. Com essa adjetivação, o “eu” poético nos
transporta para um ambiente dotado de uma elevação
excepcional e para o que há de mais elevado nos sentimentos,
nas ações: E tão sentimental que enleva e espanta. Isto
porque a imagem da palidez remete o “eu” lírico ao mundo
da vida espiritual e sua noiva se transfigura na imagem de
mulher que foi canonizada: Santa Teresa de Jesus sorri-
me/Naquela suave palidez de Santa.
Alphonsus, o gótico difere dos românticos, pois o
estilo sombrio e triste é substituído por um modo peculiar de
poetizar a morte, pois esta adquire um caráter que transcende
a matéria e se eleva a um estado superior e alegórico, isto é,
simbolista. Os versos de Alphonsus transmitem um ritmo de
oração, não traduzem lamentos sentimentais, mas sugerem
uma espécie de drama musical executado por cantores em
concertos solenes ou “Responsorium” (Idem p.56):

Alma que teve quem dela se recordasse


Na ignóbil terra infiel onde tudo se esquece:
Requiescat in pace
Corpo a esperar que o Noivo-Esperado chegasse,
Rosa autunal que o sol do Amor não mais aquece:
Requiescat in pace
(…)
(p.56/57)
Os versos de “Responsorium” indicam que, na
poética deste simbolista, a morte sai da conotação sombria,
adquire a limpidez e o matiz transcendental da “Antífona”
(Idem p.58/59). Dessa forma, os versos tornam-se versículos
que se entoam, como uma antífona, no início dos salmos ou
cantos religiosos e depois é repetido em coro.

(...)
Volvo o peito para tuas Dores
E o coração para as Sete Espadas...
Dá-me, Senhora, para teus louvores
A paz das Almas bem-aventuradas.
(...)
Adorar-te, Senhora, se eu pudesse
Subir tão alto na hora da agonia!
Sê propícia para minha prece,
Mãe dos aflitos...
Ave, Maria.
(p.58/59)
A musicalidade mística está sempre ativa, ou como
“antífona”, (cantos, na missa, em que os coros se alternam)
ou “Epífona” (Idem p.70/71). Esta última é uma figura da
notação musical neumática, isto é, uma melodia curta,
vocalizada sem palavras ou sobre a última sílaba da última
palavra: Nossa-Senhora, quando meus olhos/ Semicerrados,
já na agonia, / Não mais louváramos vosso olhos.../ Valei-
me, Virgem Maria.// Por entre escolhos, por entre sirtes,/
Consolai os meus olhos tristes. / (...)/ Valei-me, virgem
Maria./ (...)/ Auxiliai os meus braços tristes./ (...)/ Valei-me,
virgem Maria./ (...)/Consolai os meus olhos tristes. / (...) /
Valei-me, virgem Maria./ (...)/Sede guia aos meus passos
tristes ( Idem p.70/71).
Assim, a poesia é sensação e música, vida e morte, fé
e amor, transcende do “eu” lírico para alguma coisa fora dele
e eleva a alma de quem consegue sentir as impressões do
momento poético.
Às vezes, também, o drama pessoal do poeta evoca a
dor do momento da cerimônia do funeral:

Hirta e branca... Repousa a sua áurea cabeça


Numa almofada de cetim bordada em lírios.
Ei-la morta afinal como quem adormeça
aqui para sofrer Além novos martírios
(...)
Expira, ao longe, o vento, e o luar, longinquamente,
Alveja, embalsamando as brancas agonias
Na sonolenta paz desta Câmara-ardente...
(Idem p.54)
A presença marcante da cor branca nesta poética,
mais do que a representação do símbolo do cândido, do alvo
e do intenso, traz a alegoria do lírico, na acepção do que
possa excitar os sentidos e todas as sensações que provocam
delírios de amor e morte:... Repousa a sua áurea cabeça
/Numa almofada de cetim bordada em lírios.
No entanto, um soneto como “Hão de chorar por
ela os cinamomos” (Idem p.109) guarda forte carga de
emoção:

Hão de chorar por ela os cinamomos


Murchando as flores ao tombar do dia
Dos laranjais hão de cair os pomos
Lembrando-se daquela que os colhia.
(...)
(p.109)
Este poema, de um lirismo comovente, demonstra a
dor da despedida. O “eu” lírico, ao prantear em versos,
deixa que os cinamomos (planta ornamental que dá flores
roxas e é também conhecido como jasmim soldado ou
paraíso) deite seu véu de viúvas e chore com seus prantos
roxos, todos as lágrimas de amor que foram poetizada pelo
noivo-poeta. O roxo, símbolo da morte, foi vivificado na
poesia de Alphonsus. A alma de sua musa subiu para a lua e,
hoje, A lua, que lhe foi mãe carinhosa,/ Que a viu nascer e
amar, há de envolvê-la/ Entre lírios e pétalas de rosa (p.109).
Os sonhos de amor venceram a morte, as lágrimas, cor de
mágoas, e as flores dos cinamomos transfiguram-se em lírios.
No entanto, o “eu” poético conclui o soneto cedendo a
palavra aos arcanjos : E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,/
Pensando em mim: - “Por que não vieram juntos?” (p.109).
Diante do exposto, a morte assume o papel de instrumento
por meio dos quais os amantes se reencontrarão logo e a
morte será apenas uma passagem para o encontro mais
poético.

4. SIMBOLISMO E METALINGUAGEM

A noiva de Alphonsus de Guimaraens constituiu


sempre o motivo de sua composição poética. Nela foram
inspiradas quase todas as peças musicais da sinfonia de amor,
de dor e de símbolos. Nem o casamento, nem o passar do
tempo ajudaram o poeta a atenuar essa tristeza. Mas, em
vários momentos, a dor parece mais uma convenção poética
do Simbolismo, do que, propriamente, um sentimento real.
Isto acontece quando o artista da palavra, ao cantar sua
história de amor, canta a própria poesia simbolista,
construindo um texto metalinguístico que reflete a si mesmo,
realizando um poema que fala do próprio poema, como por
exemplo, o soneto “O mistério imortal das olheiras de opala”
(Idem p.34):
O mistério imortal das olheiras de opala
Onde vagueiam a dor dos seus olhos proibidos,
Manda a que venham terra e céu para adorá-la...
Morre no seu olhar a vida dos sentidos.

Mesmo calada, quem a vê julga escutá-la,


Pois canta o seu olhar pelos nossos ouvidos.
De que estrela lhe desce a voz? Quando se cala,
Que rumor de orações nos olhos doloridos!
(...)
Marmoreamente branca, imaculada e fria,
Ou tem por entre o nimbo estrelado do sonho
A áurea Revelação de outra Virgem Maria.
(p.34)
Esse soneto traduz uma intencionalidade literária e
aciona uma contemplação do próprio ser poético. Essa
intenção literária produz duas consequências apresentadas
por Maurice-Jean Lefebve em Estrutura do discurso da
poesia e da narrativa (1980): “A primeira, é que esta
linguagem se designa a si mesmo na sua materialidade e que
a obra se anuncia (e se denuncia) como obra de arte: toda a
linguagem literária é necessariamente figurada; ela é o
indício da sua própria materialização” (LEFEBVE, (1980), p.
39). 133 A esta realização metalinguística, o autor chamou
também de conotação reflexiva que, segundo ele, consiste na
“propriedade que advém ao discurso através da intenção
literária, de se designar a si mesma enquanto discurso
literário, enquanto literatura” (Idem p. 39). A segunda
consequência faz par com esta materialização figurativa da
linguagem. A obra chama para si novas significações, numa
opacidade e pluralidade de interpretações, polissemia que
abre possibilidade para uma plurissignificação, inclusive,
significar as coisas do mundo, numa presença de um certo
real que foi chamada de presentificação. Isso significa que a
obra de arte realiza a contemplação de si mesma, ao mesmo
tempo em que reflete seus enigmas, suas pluralidades
interpretativas e que a torna de difícil compreensão para o
leitor.
Assim, o poema em estudo possui essa
intencionalidade literária quando exprime as metáforas dessas
“olheiras de opala” da poesia simbolista, cheia de mistério
imortal: Onde vagueiam a dor dos seus olhos proibidos, /

133
LEFEBVE, Maurice-Jean. Estrutura do discurso da poesia e da
narrativa. Trad. José Carlos Seabra Pereira. Coimbra: Livraria Almedina,
1980.
Manda a que venham terra e céu para adorá-la... / Morre no
seu olhar a vida dos sentidos (Idem p.34).
As misteriosas olheiras de opala sugerem na própria
simbologia da cor OPALA (com sua tonalidade azulada e
leitosa, mas que, conforme a incidência de raios luminosos
apresenta cores vivas e variadas) uma multiplicidade de
sentidos, isto é, o cinza-azulado, em torno dos olhos, devido
ao cansaço, pode aludir à pluralidade da poesia simbolista
marcada pelas impressões das cores e músicas, amores
naufragados pelo destino, insônia e enigmas que aguçam as
significações. Esta poesia tem uma feição metafísica, pois sua
razão de ser transcende a terra, o céu e está carregada de
sentidos.
Portanto, o “eu” lírico sugere: Mesmo calada, quem a
vê julga escutá-la, / Pois canta o seu olhar pelos nossos
ouvidos./ De que estrela lhe desce a voz? Quando se cala, /
Que rumor de orações nos olhos doloridos! (Idem p.34). A
poesia simbolista conhece o segredo da sintaxe invisível,
possui “a sabedoria do que ficou não dito, do que ficou à
margem ou talvez no centro, o que, por ser mais denso, não
pôde subir à superfície do rio da linguagem. Esta é, pois, uma
palavra que tem sabedoria poética, que traz em si, motivados,
os sentidos da língua e da linguagem, que diz e não diz,
dizendo” (Teles, G. M.1989, p.13). 134 Os textos simbolistas
põem em prática a música do silêncio, com suas contradições
e mistérios, metaforizados nos versos: Mesmo calada, quem
a vê julga escutá-la, / Pois canta o seu olhar pelos nossos
ouvidos/(..) rumor de orações nos olhos doloridos! ( Idem
p.34).

134
TELES, Gilberto Mendonça. Retórica do silêncio I. Rio de Janeiro,
José Olympio, 1989.
Os catorze versos deste soneto suscitam o ser da
poesia simbolista, pronunciado por silêncio, alegoria e
mistério: Marmoreamente branca, imaculada e fria. Ou tem
por entre o nimbo estrelado do sonho/ A áurea Revelação de
outra Virgem Maria (p.34).
Sobre a cor branca, Chevalier & Gheerbrant instruem:
“O branco é a cor dos primeiros passos da alma, antes de
alçar vôo (...). O branco é a cor da alvorada – esse momento
vazio total entre a noite e o dia, quando o mundo onírico
recobre ainda toda realidade (...) coloca-se às vezes no início
e, outras vezes, no término da vida diurna e do mundo
manifesto, o que lhe confere um valor ideal. Mas o término
da vida – o momento da morte é momento transitório, situado
no ponto de junção do visível e do invisível e, portanto, é um
outro início. (...) o branco é a cor dos mortos. Sua
significação ritual vai mais longe ainda: cor dos mortos serve
para afastar a morte. Atribui-se ao branco um poder curativo
imenso. Frequentemente, nos ritos de iniciação, o branco é a
cor da primeira fase, a luta contra a morte” (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 1990, p. 143). 135 A partir da simbologia
dessa cor, podemos entender o porquê da preferência do
branco pelos simbolistas: é a cor do momento iniciático da
arte simbolista, ou seja, representa o instante que principia a
cerimônia pela qual o poeta imerge nos mistérios da doutrina
simbolista e vivencia poeticamente os princípios dessa
construção artística, que se consagra como uma verdadeira
religião. Assim, no momento da criação, o amanhecer poético
produz um toque musical, Marmoreamente branco, cheio de
vida e morte imaculada e fria. O poema surge entre as
brumas da alvorada e segue sua canção de sentidos e
135
CHEVALIER, J. & CHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos.
Trad. Vera da Costa e Silva, et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.
sensações que transportam o leitor para o mundo do místico e
do etéreo.
Diante do exposto, o poema “O mistério imortal das
olheiras de opala” pode sugerir uma reflexão sobre a
construção da própria poesia simbolista. Sobre a posição
metalinguística do texto artístico, Maurice-Jean Lefebve
(1980) esclarece que a arte possui um “duplo movimento: o
primeiro denominado centrífugo e pelo qual ela se abre ao
mundo exterior e aos seus problemas e o segundo, centrípeto,
que tende, pelo contrário, fechar a obra sobre si mesma, a
constituí-la como seu próprio fim e como seu próprio
sentido” (MAURICE-JEAN LEFEBVE, (1980) p. 14). 136
Considerando este duplo movimento do poema,
tomamos como modelo o texto “Ouvindo um trio de violino,
violeta e violoncelo” (Idem p.46). Inicialmente, poderíamos
ver a presença da noiva morta, transfigurada na poesia:

Simbolicamente vestida de roxo


(Eram flores roxas num vestido preto)
(...)
Toda a pureza do meu amor por ela
Se foi num sopro tombar no pó.
(...)
Todos os sonhos do meu amor por ela
Vieram atormentar-me sem dó.
Mas ninguém na terra intercedeu por ela...

Para divinizá-la era bastante eu só.


(Idem p.46)

136
LEFEBVE, Maurice-Jean. Estrutura do discurso da poesia e da
narrativa. Trad. José Carlos Seabra Pereira. Coimbra: Livraria Almedina,
1980.
No entanto, mais do que um canto de amor para a
mulher dos sonhos do poeta, o texto sugere uma explosão de
um lirismo que se pode cantar e professar a si mesmo, a partir
do primeiro verso: Simbolicamente vestida de roxo. O roxo,
apesar se ser conhecido como a cor da paixão, da dor e da
morte é a cor da temperança, fica entre o rubro e o violáceo, é
a cor violeta, feita em proporção igual do vermelho e do azul,
“de lucidez e ação refletida, de equilíbrio entre a terra e o
céu, os sentidos e o espírito, a paixão e a sabedoria”.
(CHEVALIER & GHEERBRANT, (1990), p. 960). 137 Esta
cor exprime o Simbolismo, pois é a cor de um dos quatro
elementos constitutivos do universo: “o branco, a terra; o
verde, a água; o vermelho, o fogo e a violeta, o ar (...) A cor
violeta é geralmente considerada como um símbolo da
Alquimia e pode indicar uma transfusão espiritual... a
influência exercida de homem para homem pela sugestão,
persuasão, influência hipnótica, mágica enfim (...) representa
a passagem outonal da vida à morte (...) eis porque Jesus
veste uma túnica violeta durante a paixão, ou seja, quando ele
assume completamente sua encarnação, e que, no momento
de realizar o seu sacrifício (...) filho da terra que irá redimir,
com o Espírito celeste, ao qual retornará. É esse mesmo
simbolismo que cobre o coro das igrejas de violeta às Sextas-
feiras Santas. Pela mesma razão, inúmeros evangeliários,
livros de salmos e breviários, (...) são escritos com letras
douradas sobre um pergaminho violeta” (Idem, p.960). Por
esse motivo, o roxo passou a simbolizar a cor do luto nas
sociedades ocidentais. Na verdade, ele evoca não a morte
enquanto estado, mas da morte enquanto passagem.

137
CHEVALIER, J. & CHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos.
Trad. Vera da Costa e Silva, et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.
Todos esses simbolismos da cor violeta explicitam as
sugestões evidenciadas nos versos que poetizam esse mundo
de transcendência da própria poesia. Aparentemente o “eu”-
poético fala de uma mulher morta vestida de roxo e senhora
de um amor infinito que a tornou divina. No entanto, mais
precisamente, esse “eu” lírico pode estar tocando mesmo um
trio de violino, violeta e violoncelo (isto é, realizando um
ludismo linguístico e temático) e pondo em prática as
propriedades da poesia simbolista: a música, a
transcendência, o rito de passagem da morte para a vida,
como num momento de êxtase e criação, num processo
alquímico, numa realização da magia da linguagem como
pensava Baudelaire.
Sobre essa magia, Hugo Friedrich ponderou que “O
material sonoro da língua assume um poder sugestivo. Em
combinação com um material léxico apropriado para os
movimentos associativos, abre infinitas possibilidades de
sonho. (...) a linguagem determina também o processo
poético que se abandona aos impulsos ingênitos na própria
linguagem. Descobre-se a possibilidade de criar um poema
por meio de um processo combinatório que opere com os
elementos sonoros e rítmicos da língua como fórmulas
mágicas. (...) O lírico se converte em mágico do som”
(HUGO FRIEDRICH,1978, p.50). 138 Esse procedimento da
poesia de Baudelaire, enfocado por Friedrich, está presente
nesse poema em análise. Palavras como violino, violeta,
violoncelo, vestida, vestido, vida, vi, vieram, por exemplo,
além da aliteração (repetição do V), os seus significados
surgem não do esquema temático desta combinação, mas de
um significado oscilante, impreciso, cujo mistério ganha
138
FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica moderna. Trad. Marise N.
Curioni, São Paulo: Duas Cidades, 1978.
corpo, não apenas pelas significações essenciais das palavras,
mas por suas forças sonoras e marginalidades semânticas.
Enfim, este poema exprime, antes de tudo, sugestão e
hermetismo.

5. CONCEPÇÃO MÍSTICA DO MUNDO

O Simbolismo exprime a arte do mistério e


misticismo. Esse hermetismo nasce do desejo de exploração
do que transcende ao imediato. Por esse motivo, os
simbolistas fazem da intuição uma faculdade capaz de
permitir a sintonia com o lado obscuro das coisas. A busca
desse indefinível torna a linguagem indireta e nebulosa. Uma
vez que a expressão direta é considerada inapta à captação da
essência do ser, proliferam as insinuações verbais. À
metáfora é atribuída a faculdade de atingir o essencial por via
das associações de ideias, que permite a evocação de outra
realidade. Por essa razão, o poema simbolista é, antes de
tudo, metáfora e correspondências de sentidos. Nessa via
associativa, fundem-se a arte da palavra, a música e a pintura.
A imagem tem o domínio sobre o texto, é uma dona
misteriosa e uma Dona Mística, como foi denominada uma
obra de Alphonsus.
O desejo de alcançar esse poético, ou essa beleza
ideal é tão intenso que o poeta se dedica com êxtase
contemplativo e uma devoção religiosa. Esse afeto produz
uma correspondência entre o poético e o religioso. Destarte,
poesia e religião são consubstanciadas em forma de
metáforas.

5. 1. Atmosfera mística e litúrgica


Ouro Preto foi o cenário dos primeiros anos de vida
do Poeta Alphonsus de Guimaraens que, desde sua infância,
dava sinais de extrema sensibilidade e acentuada introversão.
Depois, o caráter introvertido, que já havia associado ao seu
afeto os dados sensoriais que o noivado propiciara, guardou,
para sempre, consigo, a ideia do martírio e da morte,
sobretudo das mãos da noiva morta, como atesta, por
exemplo, o soneto “Immaculata” (Idem p.110):

Quando te fores, branca, de mãos postas,


E me deixares neste val de pranto,
Deitada assim, como as demais, de costas
Sobre o teu leve esquife de pau-santo:
(...)
Ai! como Inês tu não serás rainha:
Mas amada hás de ser no céu deserto
Porque na terra nunca foste minha...
(p.110)

Os versos de Alphonsus nunca mais se libertaram da


obsessiva lembrança da noiva morta e, a partir de então, o
Poeta se fechou mais e mais consigo mesmo. Ao lado do
mundo exterior, foi edificando o seu mundo ideal, interior,
que logo se povoou das sombras dos poentes, dos palores
(palidez) das luas frias, das noites plúmbeas e nervosas, das
virgens mortas, dos sinos plangentes, dos eremitérios, das
harpas e das flautas, dos violoncelos, das flores roxas, dos
lilases, dos cinamomos. Depois, mesmo casado e pai de
catorze filhos, vivia com os olhos voltados para o passado,
como poetizou o próprio poeta: Viver com os olhos fitos no
passado/ Tem sido para mim a vida agora./ Quem saudades
não tem da luz da aurora,/ Quando agoniza o ocaso
purpureado? (Idem p.143).
Essa imagem da noiva foi sublimada em forma de
poemas, que são preces de amor, ou antífonas que são
cantadas, alternadamente, em louvor à religião, ao Senhor, à
Virgem Maria, à pureza da amada, ao Simbolismo, enfim, ao
misticismo. Os cantos de Alphonsus em louvor a Nossa
Senhora são considerados os mais belos em nossa língua. Os
livros Dona Mística (1899) e especialmente Setenário das
Dores de Nossa-Senhora (1899) são obras dedicadas à
Virgem. Poemas como “Antífona” (p.58), “Nossa-Senhora
vai...”, “Céu de esperança” (Idem p.60), “Em teu louvor,
Senhora, estes meus versos” (Idem p.61), “Mãos que os lírios
invejam mãos eleitas” (Idem p.62), “Doce consolação dos
infelizes” (Idem p.63), “Nossa-Senhora encontra-O... Se não
fora” (Idem p.65), “Se pudera, Senhora, nesse instante”
(Idem p.66), “O teu nome, Senhora, é a estrela da alva” (Idem
p. 69), “Epífona” (Idem p.70) exprimem preces de Amor à
Virgem.
A figura da noiva morta funde-se com as imagens de
Maria, ambas imaculadas, Donas Místicas. No entanto, a
poesia simbolista também é metaforizada pelo misticismo do
amor terreno e do amor Divino.
Alphonsus Guimaraens foi um poeta marcadamente
católico. Seu espiritualismo teve por alicerce, principalmente,
o drama pessoal vivido na adolescência, em Ouro Preto, mas
o ambiente místico de Mariana, cidade pacata e religiosa,
cercada de cantos e atmosfera litúrgica, edificou-lhe a
poesia simbolista de sinos e catedrais. Desta forma, a cidade
de Mariana é um portal de orações, como ilustram os poemas:
“Portas de Catedral em Sexta Feira Santa” (Idem p.52),
“Portas do Céu que dais para a outra vida” (Idemp. 69).
Portas de Catedral em Sexta-feira Santa,
Grandes olhos cristãos piedosamente erguidos
Para o Altar onde a Glória imorredoira canta...
Banco dos violões, bandos violinos dos sentidos:
(...)
(p.52)

Este soneto revela a oração de um “eu” lírico que


respira os ares da religiosidade, que vive as Sextas-Feiras
Santas com seus símbolos e poesia. O texto está carregado do
clima de misticismo e das simbologias do estilo de
Alphonsus, assinalando sua “torre de marfim”, em que o
poema se isola da sociedade para fugir às sensações vulgares
e poder, então, cultivar o belo, o sagrado e suas Torres de
eremitério onde os dobres dos sinos/ Parecem prolongar um
réquiem surdo e frouxo, / Um responso de morte
acompanhado de hinos:/ Grandes olhos cristãos de olheiras
de veludo,(...) (Idem p. 52). Dessa maneira, como um
eremita, o “eu” lírico isola-se na sua torre poética e canta
seus temas simbolistas.
Nesse poema, além da característica temática, devem
ser ressaltados os procedimentos estilísticos, como por
exemplo, a forma como são enfatizados, com letra inicial
maiúscula, os vocábulos: Catedral, Sexta-feira Santa, Altar,
Glória, Amor, Onde revive tudo. Estas palavras são símbolos
que, no texto, adquirem propriedades, isto é, qualidades
especiais do Simbolismo. Trazem, portando, a essência do
texto, um clima de misticismo e culto aos Altares quaresmais
enfeitados de roxo, / Bendito para sempre Onde revive tudo!
(Idem p. 52). A cor violácea que marca a quaresma, como já
vimos, representa a passagem da vida para a morte, mas com
a indução de que a morte não é o fim, mas o início da vida
eterna. Por esse motivo, o “eu”- poético canta: Portas do Céu
que dais para a outra vida,/ Diante de mim, de par em par,
abri-vos.../ E a oblação da minha Alma entristecida/ Chegue
ao limiar dos tronos primitivos (Idem p.69).
Alphonsus de Guimaraens foi o poeta do misticismo,
da fé, das catedrais e dos sinos. Seus versos têm o velado
sussurro das orações e das preces. O poema “Minh’alma é a
torre de uma igreja” (Idem p. 86) atesta essa fidelidade à
religião e ao poético: Minh’alma é a torre de uma igreja: /
Passa de luto o sacristão./ A coruja que nela adeja/ É o meu
próprio coração./ (...)/ Quando morre quem quer que seja,/
O sacristão põe-se a rezar./ Minh’alma é a torre de uma
igreja/ Que tem um sino sempre a dobrar.../(Idem p.87).
Esta concepção mística do mundo produz, no poeta
simbolista, um desejo de viver e conviver com os Símbolos
Sagrados. O poema “Santo Graal” (Idem p.23), exprime que:
SANTO GRAAL
Se a tentação chegar, há de achar-me rezando
Na erma Tebaida do meu sonho solitário.
(Miséria humana, humano vício miserando,
Não haveis de poluir as hóstias no Sacrário..).

Se a tempestade vier, há de achar-me chorando,


E como dobrareis, sinos do Campanário!
Subirei à montanha eleita orando, orando...
(Não és tão longa assim, ladeira do Calvário!)

Se a tentação chegar, há de achar-me de joelhos


(Miséria humana, humanidade miseranda..).
Maldizendo a traição dos seus lábios vermelhos.

Se a tempestade vier, e eu cair, nesse dia


Piedosamente irei pela terra em demanda
De ti, ó Santo Graal, Vaso da Eucaristia!
(Idem p.23),

O filólogo Heitor Megale, da Universidade de São


Paulo (USP), organizador do livro A Demanda do Santo
Graal, 139 descreve que o Santo Graal é uma lenda que
atribui poderes divinos a um cálice sagrado, que teria sido
usado por Jesus na última ceia. Essa, porém, é uma versão
medieval de um mito que surgiu muito antes da Era Cristã.
Na Antiguidade, os celtas – povo saído do centro-sul
da Europa e que se espalhou pelo continente – possuíam um
mito sobre uma vasilha mágica. Os alimentos colocados nela,
quando consumidos, adquiriam o sabor daquilo que a pessoa
mais gostava e ainda lhe davam força e vigor. É provável
que, na Idade Média, tal história tenha inspirado a lenda
“cristianizada” sobre o Santo Graal. Na literatura, os registros
pioneiros dessa fusão entre a mitologia celta e a ideologia
cristã são do século XII.
Heitor Megale afirma que : “As lendas orais
migraram para textos de cunho historiográfico, desses textos
para versos e dos versos para um ciclo em prosa”. Nesse,
sentido as referências lendárias explicitam que Santo Graal
que representa, de forma simultânea e substancialmente, o
Cristo morto pelos homens, o cálice da Santa Ceia, isto é, a
graça divina dada pelo Cristo aos seus discípulos. E, por fim,
o cálice da missa, que contém o verdadeiro sangue do
Salvador. Nesse poema o “eu” poético manifesta: Se a
tentação chegar, há de achar-me rezando/ Na erma Tebaida
do meu sonho solitário./ (Miséria humana, humano vício
139
MEGALE, Heitor, A Demanda do Santo Graal: manuscrito do século
XIII /texto sob os cuidados e organizados por Heitor Megale. São Paulo:
T.A. Queiroz : Editora da Universidade de SãoPaulo, 1988.(Transcrição,
1 –4)
miserando,/ Não haveis de poluir as hóstias no Sacrário.// Se
a tempestade vier, e eu cair, nesse dia/ Piedosamente irei
pela terra em demanda/ de ti, ó Santo Graal, Vaso da
Eucaristia! (Idem p.23). Nesse sentido, a poesia de
Alphonsus é uma oferenda de Amor pleno e disposição para
a luta pelas causas da Igreja, sem medo da demanda
inacessível do Graal, que simboliza, no plano místico, a
aventura espiritual e a exigência de integridade. Por isso, só
os corajosos, mas de espíritos e corações puros, podem
alcançar a imagem viva de Jesus Cristo.
O poeta simbolista convive com os mistérios da
natureza e transfigura toda a magia do mundo em poesia,
numa realização alquímica do verbo, acontecimento que
torna o poético, o encanto, o canto e o sagrado uma mesma
substância. É o que podemos conferir no antológico poema
“A catedral” (Idem p.120/121) de Alphonsus de Guimaraens:

Entre brumas, ao longe, surge a aurora.


O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz do céu risonho,
Toda branca de sol.
E o sino canta em lúgubres responsos:
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”
(p.120)

Este texto é um hino de amor ao Simbolismo. Além


da temática religiosa, o “eu” lírico exprime a magia e poesia
da natureza a partir do momento Fiat Lux, ou faça-se luz do
dia, a aurora. É no instante do nascimento das primeiras luzes
que o poema também vem ao mundo, entre as brumas do
simbolismo e as transparências e sublimação do orvalho,
como pode ser verificado nos dois primeiros versos: Entre
brumas, ao longe, surge a aurora./ O hialino orvalho aos
poucos se evapora. Depois, a partir do terceiro verso, o
poema explode em vida, luz, cor, sonho e acontecimento: A
catedral ebúrnea do meu sonho/Aparece, na paz do céu
risonho, / Toda branca de sol (Idem p.120).
O poema exprime correspondências sinestésicas de
cores e sons. O ato da combinação de sentidos acompanha os
encantamentos da natureza: o nascer da aurora com suas
róseas cores; o entardecer cintilante; o ocaso com seus líricos
lilases, anunciando a morte e a vida; a noite de lua e a
madrugada marcada por trevas. Enquanto realiza seu trabalho
cinematográfico, o “eu” lírico canta as mudanças da natureza.
O poema também tem mobilidade e muita ação, tudo é
movimento: a catedral surge do sonho, com sua cor de
marfim, num branco vago, etéreo. Portanto, a visão do “eu”
poético, está em agitação sucessiva, continuada, pois a
catedral surge do sonho do poeta em vários momentos do dia:
como o texto simbolista exprime sugestão, pode sentir-se
que a primeira estrofe conota o momento das cinco e meia até
sete horas da manhã; a segunda, do meio dia até as seis horas
da tarde; a terceira estrofe, das seis horas da tarde, até nove
horas da noite; e a quarta estrofe, pode referir-se ao período
da meia noite até as três da madrugada.
Além da animação das cores, a harmonia do poema
revela uma espécie de réquiem, pois canta o passar do tempo,
a vida e a morte, a natureza a explodir luz e alegria, mas
também o agonizar das trevas, num ritual eterno da
existência. Esse réquiem tem um ritmo pausado, como os
dobres de um sino a assinalar o nascimento ou a morte. Cada
estrofe possui dois dobrados juntos e um dobrado no
estribilho (os versos que se repetem depois de cada estrofe):
Por lírios e lilases desce/ A tarde esquiva: a madrugada
prece/ Põe-se a lua a rezar (primeiro dobre – nos faz vir à
mente o ressoar dos sinos “din, din, don”). A catedral
ebúrnea do meu sonho/ Aparece, na paz de céu tristonho,/
Toda branca de luar (segundo dobre) e os versos de
musicalidade e simbolismos sublimes se repetem nos
intervalos das estrofes somando, com seu aditivo inicial, a
imagem dolorida do réquiem: E o sino canta em lúgubres
responsos:/ “Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”. Nestes
versos, as duas últimas batidas do sino aludem ao drama
pessoal do poeta, sua experiência dolorida com o falecimento
da amada noiva. Sua história de amor fez de sua poesia a
transfiguração da própria vida marcada por sonho,
melancolia, tristeza. Alphonsus foi sofrimento e resignação,
misticismo, desalento, angústia, oração, responsos dos sinos
das catedrais da cidade de Mariana. Os sinos presentificam a
vivência daquele homem simples, poeta sem cobiça, sem
busca de louros terrenos, mas grande como ser humano e,
principalmente, grande como poeta. Hoje, depois do
reconhecimento mesmo tardio, talvez os sinos de Mariana
dobrem com orgulho, uma versão contrária desse momento
de Simbolismo e convivência com frios luares, ocasos de
sangue, mesclados de sombras mortas, noites plúmbeas
(pesadas como chumbo), catedrais e sinos tristes. Foi esse
ambiente que fez o “Pobre Alphonsus” o poeta das dores
surdas, das agonias lentas e, sobretudo, o poeta da fé e da
contemplação. O poema “A catedral” traduz um processo de
alquimia verbal, na qual o artista da palavra torna-se um
mago e filósofo que, enquanto contempla o mundo,
transforma sua visão em magia e encantamento por meio da
linguagem poética.
6. IMAGINAÇÃO E FANTASIA

O Simbolismo nasceu sob o signo da imaginação. A


criação de metáforas e o acionamento das imagens são
objetos essenciais na criação da arte da palavra. A
imaginação foi considerada por Kant (1724-1804) 140, autor de
Crítica da Razão Pura (1781) e Crítica da Razão Prática
(1788) como “a faculdade das intuições, mesmo sem a
presença do objeto” (in. ABBAGNANO, Nicola. (1992)
p.538). 141 Hegel (1770-1831), 142 autor de Estética: a ideia e
o ideal Estética: o belo artístico e ideal e A fenomenologia
do Espírito explicitaram a distinção entre Imaginação e
Fantasia. Ambas são determinações da inteligência, mas a
inteligência como Imaginação é simplesmente reprodutiva, ao
passo que, como Fantasia, é criadora, é “Imaginação
simbolizante, alegorizante ou poetizante” (Idem. p. 539).
Essa obra da imaginação e invocação de imagens constitui a

140
Immanuel Kant (Königsberg, 22 de abril de 1724 — Königsberg, 12 de fevereiro de
1804) foi um filósofo prussiano. Amplamente considerado como o principal filósofo da era
moderna, Kant operou, na epistemologia, uma síntese entre o racionalismo continental (de
René Descartes, Baruch Espinoza e Gottfried Wilhelm Leibniz, onde impera a forma de
raciocínio edutivo), e a tradição empírica inglesa (de David Hume, John Locke, ou George
Berkeley, que valoriza a indução).
141
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
142
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (Estugarda, 27 de agosto de 1770 -Berlim, 14 de
novembro de 1831) foi um filósofo germânico. Considerado o maior filósofo da história, sua
obra Fenomenologia do Espírito é tida como um marco na filosofia mundial e na filosofia
alemã. Hegel pode ser incluído naquilo que se chamou de Idealismo Alemão, uma espécie
de movimento filosófico marcado por intensas discussões filosóficas entre pensadores de
cultura alemã (Prússia) do final do século XVIII e início do XIX. Essas discussões tiveram
por base a publicação da Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant.
matéria prima dos simbolistas. Alphonsus fez da Imaginação
e Fantasia mecanismos de evolução e criação de sua obra
poética. O poema “Ismália” (Idem p. 101) confere, ao poeta,
os louros de um simbolista singular:
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
(...)
E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu


ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
seu corpo desceu ao mar.
(p.101)

Este poema, inserido no livro Pastoral aos crentes do


Amor e Morte, tem como essência as temáticas que sempre
pautaram a obra de Alphonsus de Guimaraens: Amor e
Morte, Vida e Morte, Terra e Céu, simbolizados ou pelo
entredom branco que representa a cor dos primeiros passos da
alma, antes de alçar vôo e pelo roxo ou violeta cor da
transcendência e passagem da vida para a morte e vice-versa.
O caráter antitético da poética de Alphonsus exprime o ser do
poeta das dores e dos amores, da matéria e do espírito, da
cidadezinha Mariana (de pura espiritualidade materializada
nas igrejas, nas festas religiosas, no roxo das procissões e nos
sinos das catedrais). Mariana é uma grande torre, na qual o
artista se isolou do mundo para realizar seu sonho de poeta
com sua sublime loucura de ser apenas ele mesmo e não
seguir as convenções e os modismos hipócritas.
O poema “Ismália” metaforiza o ser de Alphonsus a
partir da antroponímia, isto é, do plano, investigação e
criação, um tanto neológica, do nome próprio Ismália,
“antropônimo formado a partir de Ismael, com influência de
Amália” (MACHADO, José Pedro. V.II (2002), p.810). 143
Ismael significa “Deus ouve” ou “Deus ouviu” (Idem, p.810)
e Amália “laboriosa abelha” (Idem, V.I p.119). Destarte, o
nome Ismália sugere um ser dotado de uma intensa
capacidade criadora e amado por Deus, pessoa que nunca foi
abandonada pelo Senhor. Ainda no plano da sugestão, esse
ser pode reproduzir a imagem do próprio poeta, que sempre
mergulhou no reino das palavras em busca da verdadeira
poesia que é a oração. Com certeza, o Senhor sempre esteve
do seu lado e ouviu suas preces, seus sussurros de amor e dor
que nos conduzem ao seu mundo de Fantasia e Imaginação.
Construído em quadras popularizadas pelo ritmo das
redondilhas maiores, “Ismália” concebe também a imagem de
um ser imerso no seu grande sonho, denominado pela
sociedade como loucura. Evidencia, portanto, um conceito
hamleteano a questionar “o ser e o não ser” de sua existência.
Talvez, como William Shakespeare (1564-1616), o nosso
mineiro tenha, por meio de suas preces, realizado também a
“invenção do humano”: o homem com seus amores, paixões,
encantos, cantos, sonhos, desejos, imaginações, fantasias,
vida, arte, contradições, sublimes desvarios e vôos celestiais.

6. 1. O silêncio da lua

143
MACHADO, José Pedro. Dicionário onomástico etimológico da
Língua Portuguesa.Vol.I e II.Lisboa: Editorial Confluência. 2004.
A imaginação provocada pelo êxtase poético conduz
o poeta a contemplar o silêncio da lua e a classificá-la
conforme o ambiente: É uma lua de acompanhar-se
enterros. / De ver caixões banhados de luz branca./
Caminham virgens nuas pelos cerros,/ E o luar é um rio
ideal que não se estanca./ Afunda-se entre as nuvens o
minguante.// Na treva a terra sonha, o céu é mudo.../ Ai
pobre cavaleiro andante,/ No céu, no céu perdeste o teu
escudo!/ (p.79).
De acordo com o Dicionário de Símbolos “a Lua é um
símbolo dos ritmos biológicos: astro que cresce, decresce e
desaparece, cuja vida depende da lei universal do vir-a-ser,
do nascimento e da morte... o tempo vivo, do qual ela é a
medida, por suas fases sucessivas e regulares. A lua conhece
uma história patética, semelhante à do homem... mas sua
morte nunca é definitiva... Este eterno retorno às formas
iniciais, esta periodicidade sem fim fazem com que a lua seja
por excelência o astro dos ritmos da vida... Ela controla todos
os planos cósmicos regidos pela lei do vir-a-ser cíclico:
águas, chuva, vegetação, fertilidade...” (Idem. CHEVALIER
& GHEERBRANT, 1990, p. 561). A partir destas
informações sobre a posição alegórica da lua, pode ser
entendida a fixação dos simbolistas pela imagem da lua e, de
maneira especial, o poeta em estudo. A lua para Alphonsus
foi fonte de inspiração, companheira, confidente, irmã de
sonhos e fantasias e sempre esteve presente em seus
momentos mais poéticos, como testemunha o soneto “Era
noite de lua na minh’alma”:
Era noite de lua na minh’alma
Quando surgiste pela vez primeira:
Em cada estrela, pelo azul em calma,
Florescia uma flor de laranjeira.
(...)
(p.108).

A lua foi cantada pelo poeta de Mariana em todas as


suas fases: A “Lua-nova” recebeu uma canção especial:
Pobre lua-nova tão pequena, / Pelo infinito do céu perdida,/
tão magoada, tão cheia de pena,/ Da cor de uma menina sem
vida./ (...) / E serão de neve os teus noivados,/ Terás
grinaldas brancas de areia.../ Menina lua, dias passados,/
Será a senhora lua-cheia/ (p.50/51). Quem sabe não seja a
lua-nova a alma gêmea desse cantor das luas?
O texto “Ária do luar” revela essa cantiga para a lua.
O poema oferece a voz suave do “eu” lírico a executar sua
canção para o satélite da terra: O luar, sonora barcarola, /
Aroma de argental caçoula,/ azul, azul em fora rola.../ (...) /
Como lençóis claros de neves,/ Que o sol filtrando em luz
esteve/ É transparência, é branco, é leve. (...)/ Por essas
noites, brancas telas,/ Cheia de esperanças de estrelas,/ O
luar é o sonho das donzelas/ Tem cabalísticos poderes/ (...)
Cantos de amor, salmos de prece (...) (p.48/49). Este último
verso é a tradução perfeita para toda a poesia de Alphonsus
de Guimaraens: uma música suave, cheia de encantos como
os raios de lua sobre os apaixonados.
O poema que encerra essa seleção, elaborada por
Alphonsus Guimaraens Filho, denominada Melhores
Poemas, 144 foi batizado por “Últimos versos” (p.16/162).
Neste texto, além de exercitar a arte do verso livre, o poeta
explana seu lirismo estilístico e temático sobre a lua e sobre o
Simbolismo:

Na tristeza do céu, na tristeza do mar,

144
GUIMARAENS, Alphonsus de. Melhores poemas. / Seleção de
Alphonsus de Guimaraens Filho.4a. ed. São Paulo: Global, 2001.
eu vi a lua cintilar.
(...)
A abóbada celeste,
que se reveste
de astros tão belos,
era um país repleto de castelos.
(...)
envolta num sudário alvíssimo de lã,
como se fosse
a mais que pura Virgem Maria..
Lua serena, tão suave e doce,
do meu eteno cismar,
(...)
E pude ver-te, contemplar-se pude,
como a imagem da virtude
e da pureza,
cheia de luz,
como
Santa Teresa
de Jesus.
(p.161/162)

O “eu” lírico converte-se num poeta-filósofo que, ao


contemplar a natureza transfigura o mundo em ritmo
colorido, isto é, de vivas cores, de matizes que oscilam como
as imagens do céu, do mar, do cintilar da lua num mundo de
sonhos e castelos medievais. Nesse ritmo do encanto, a lua se
transforma na imagem sublime da Virgem Maria. Tudo é
sugestão e as imagens cintilam livres, como o ritmo do verso
livre, sem medo de metaforizar, de fantasiar a harmonia do
verso, dos “últimos versos” que vivificam, cada vez mais, a
poética da mística litania, das preces à Santa Maria.
O silêncio da lua é a eloquência das orações que
cantam a transcendência de forma silente/ calma/ cheia de
ais (p.161). E o poeta, que vê o invisível, ouve o que é
inaudível aos homens de pouca sensibilidade e fé. É dessa
contemplação sinestésica que nasce a poesia de Alphonsus
Guimaraens.

CONCLUSÃO

No fim do século XIX, quando já se esgotava o


ímpeto maior do Realismo, surgiu no Brasil a estética
simbolista, originária da França (1886) (com as obras de três
grandes poetas franceses, Rimbaud, Verlaine e
Mallarmé).Esses artistas foram denominados de malditos ou
decadentes. No entanto não se intimidaram, ignoram a
opinião da sociedade hipócrita, desprezam o prestígio social e
literário, fechando-se em suas “torres de marfim”, numa
quase religião da palavra e suas capacidades expressivas. A
arte foi considerada, antes de tudo, sugestão.
A nova tendência não realizava arte diretamente
envolvida com a realidade histórica e sim divergia das
exigências do Realismo e do Naturalismo. O simbolismo
contraria o cientificismo, ainda tão na moda; seus poemas
nada visavam provar; antes, insinuavam, deixavam no ar,
lembravam apenas (o que, de resto, fazia com que
contrariassem também o espírito objetivo dos parnasianos), e
os textos que surgiam revelavam-se poesia “difícil”.
No Simbolismo, as sensações mais íntimas são
investigadas em sua profundidade; vem à tona o eu escondido
nas regiões do inconsciente; reaparece o mistério, o vago, o
transcendental, o inexplicável; o símbolo reveste e dá forma
à ideia, tudo é sugerido, insinuado; são enfatizadas as
dimensões da fantasia e do sonho; a intuição prevalece sobre
a razão; a metáfora torna-se viva na música, no ritmo
colorido, na harmonia dos versos que podem também ser
livres; conferem aos versos o desvario, o difuso, e,
principalmente, a sonoridade; nos recursos de linguagem são
valorizadas: a aliteração (repetição de sons consonantais), a
assonância (repetição de sons vocálicos), a sinestesia
(mistura de sensações e sentidos ou condição em que as
impressões de um sentido são percebidas como sensação de
outro), enfim, todas as metáforas que vivificam o poema; a
ordem do Simbolismo é a criação, o novo, o neologismo, a
arte mágica e pura, sem limite.
Nada havia, no panorama cultural do Brasil, que
pudesse sustentar semelhante renovação; raros grupos sociais
estariam dispostos a consumir essa poesia, pelo menos de
maneira sistemática. Manuel Bandeira refere-se à “onda de
sarcasmo com que foi recebida essa arte há um tempo
espiritual e bárbara num meio denominado pela cautelosa
lógica parnasiana” (BANDEIRA, Manuel (s/d) p.151). 145
Daí o verso novo ter permanecido “maldito”, e terem ficado
seus autores, pelo menos os mais representativos, à margem
da intensa “vida literária” que agitava sobretudo o Rio de
Janeiro. Cruz e Souza fazia a tarefa de ponto de teatro de
mambembes. Alphonsus de Guimaraens cuidava da família e
da magistratura em Mariana. O Simbolismo ficou, assim,
como uma resistência surda, representativo de uma linha de
interpretação da realidade para a qual não havia lugar, àquela
altura, mas que haveria de se depurar, com o passar dos anos,
transformando e fazendo evoluir modos de expressão
originários do Romantismo, reconstituídos mais tarde no
conjunto de tendências do Modernismo.
O Simbolismo em Alphonsus de Guimaraens decorreu
mais de uma atitude contemplativa do que de uma busca
furiosa. O poeta confinou-se a uma torre, longe de tudo,
145
BANDEIRA, Manuel. Apresentação da poesia brasileira. Rio de
Janeiro: Ediouro, s/d.
desgostado das coisas, pois que subjugado pela saudade, feito
dor física, da amada morta. A tentativa de recuperá-la – e por
meio dela o sentido de todas as coisas – redunda em
contemplação desolada e mística da morte. Destarte, a partir
do seu drama sentimental, Alphonsus edificou sua “torre de
marfim”, seu mundo ideal, interior, que logo se povoou das
sombras dos poentes, das luas frias, das noites pesadas como
chumbo, das virgens mortas, dos sinos plangentes, dos
eremitérios, das harpas, das flautas, dos violoncelos, das
flores roxas, dos lilases, dos cinamomos, da vida, da morte,
da transcendência, da Virgem Maria, do Catolicismo e, em
fim, do próprio Simbolismo.
No entanto, Alphonsus Guimaraens foi um poeta que
fugiu da mediocridade. Não se estratificou dentro de modelos
ou de cânones rígidos, fez uma poética única no Simbolismo
brasileiro.
O artista da palavra, da cidade de Mariana ,poetizou,
com a perícia de um mestre, o Amor, a Morte, o Além, o
sonho, a contemplação, o invisível, a ausência, a distância, a
melancolia, a tristeza, o desalento, a introversão, as dores
surdas, as agonias lentas e, sobretudo, poetizou a Fé. Sua
vida foi sofrimento, resignação, misticismo, angústia e
oração. Todas as temáticas foram desenvolvidas por meio de
uma linguagem ornada, criativa e cheia de detalhes: as
palavras, em Alphonsus, são escolhidas pela sua sonoridade,
num ritmo colorido, buscando a sugestão e não a narração.
Sua poesia é uma metáfora viva a poetizar a vida e a morte.

VI - EU E OUTRAS POESIAS
DE AUGUSTO DOS ANJOS
Sofro acelaradíssimas pancadas
No coração. Ataca-me a existência
A mortificadora coalescência
Das desgraças humanas congregadas!
..............................................................
Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto
(Augusto dos Anjos)
Turbilhão teológico incoercível,
Que força alguma inibitória acalma,
Levou-me o crânio e pôs-lhe dentro a palma
Dos que amam apreender o Inapreensível!
.....................................................................
Sistematizo, soluçando, o Inferno...
E trago em mim, num sincronismo eterno
A fórmula de todos os destinos!
(Augusto dos Anjos)
Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia
roa
Todo o meu coração, depois da
morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha


sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógrama cápsula se esbroa
Ao contacto de bronca destra forte!
(Augusto
dos Anjos)

1. PRÉ-MODERNISMO

No início do século XX, a literatura brasileira sofreu


uma série de influências, quer do momento histórico
nacional, quer de novas ideias vindas da Europa.
Estas influências não foram capazes, todavia, de
desvincular a Literatura das duas primeiras décadas do nosso
século, das Escolas do fim do século XIX. Daí a dificuldade
de intitular este período. Alceu Amoroso Lima emprega Pré-
Modernismo, o mais usado. Outras sugestões: época
nacionalista, época eclética.
O Pré-Modernismo, que não chega a constituir
propriedade de uma “escola literária”, designa genericamente
esse período, no qual nem tudo eram conservadorismo e
alienação. Embora poucos alguns escritores procurassem
interpretar a realidade brasileira, revelar suas tensões e
posicionar-se diante dos problemas sócio-políticos da época,
antecipando elementos do Modernismo, pelo que foram
chamados de pré-modernistas.
Este período é denominado Pré-Modernismo,
enquanto amadurece as diretrizes da total renovação que virá
com o Modernismo; é época nacionalista, porque é nesta
fase que surge uma literatura empenhada na interpretação da
realidade nacional; é época eclética, enquanto acolhe
diversas estéticas ao mesmo tempo, nenhuma dominante,
vindas principalmente do século anterior, agora rotuladas
com o radical neo: neo-simbolismo, neoparnasianismo, etc.
Isto sem esquecer as novas ideias que estavam surgindo.
O Pré-Modernismo é um período de caracterização
difícil devido ao ecletismo que o domina, apresenta autores e
obras de significação tal que não pode ser relegado a um
plano inferior.

1. 1. O panorama da época

O período de vida de Augusto dos Anjos (1884-1914)


é assinalado por acontecimentos decisivos na história do
mundo e do Brasil.
Na história mundial, é a época das disputas
internacionais pelo domínio imperialista dos territórios
africano e asiático. Essas disputas desembocaram na 1 a
Guerra Mundial (1914 – 1918). Na história brasileira, é o
momento de maior revolução social e econômica que o Brasil
conheceu: Abolição da Escravatura (1888), seus
desdobramentos e a Proclamação da República (1889).
Nos primeiros anos da República, o Brasil foi
governado por presidentes militares – era chamada
República da espada (1889-1894). A ela se seguiu um
período caracterizado por presidentes ligados às oligarquias
rurais, constituídas por cafeicultores de São Paulo e
pecuaristas de Minas Gerais - era a chamada República do
café-com-leite (1894 – 1930).
Além da “nobreza fundiária”, que era sustentáculo do
governo civil, exerciam papel político relevante à burguesia
industrial (em formação no Rio e em São Paulo), os
profissionais liberais e os militares.
Paralelamente, aumentavam as disparidades entre as
regiões e entre as diferentes classes sociais. Os antigos
escravos, que pouco ou nada haviam conseguido desde a
Abolição, que eram marginalizados, e os imigrantes
europeus, que chegavam para trabalhar nas lavouras ou nas
indústrias recém-criadas, eram submetidos a condições de
trabalho aviltantes. O Nordeste vivia a estagnação econômica
e, já desde as últimas décadas do império, bandos de
cangaceiros assaltavam propriedades dos “coronéis”. As
secas que se repetiram de 1877 a 1915 levaram à morte
milhares de sertanejos (só na grande seca de 1877 a 1879
morreram mais de trezentos mil). Aqueles que não
ingressavam no cangaço eram facilmente arregimentados na
formação de seitas místicas, lideradas por beatos ou
conselheiros, tornando-se fanáticos, pela desesperança e
crença numa solução divina para os males que, na verdade,
tinham origem econômica.
Alguns desses grupos místicos eram apoiados por
“coronéis” latifundiários, como o movimento liderado por
padre Cícero Romão Batista, por exemplo, aliado dos
“coronéis” não só por ter atraído à fértil região do Cariri (sul
do Ceará) farta mão-de-obra para trabalhar nas fazendas
locais, como também porque o misticismo impedia que
aquela gente se revoltasse.
Mas, como nem todos podiam ser controlados, o
início da república foi marcado pela revolta e pela luta
armada: na Bahia, a Guerra de Canudos (1896-1897), na
qual milhares de sertanejos, liderados por Antônio
Conselheiro, foram massacrados pelos canhões e pelas
metralhadoras das tropas federais; no Rio de Janeiro, a
Revolta da Vacina (1903), que foi um protesto do povo,
mais contra a opressão do que contra a vacinação obrigatória,
promovida por Oswaldo Cruz, para erradicar a febre amarela;
ainda no Rio de Janeiro, a Revolta da Chibata (1910), em
que aproximadamente dois mil marinheiros, liderados por
João Cândido, apoderaram-se de navios de guerra para exigir
o fim dos castigos corporais a que eram submetidos; em
Santa Catarina, a Guerra do Contestado (1912 a 1916), da
qual participaram cerca de cinquenta mil camponeses,
liderados pelo monge José Maria. Suas vilas santas projetam
de um “reino milenarista”, foram arrasadas por tropas do
Exército, que utilizou, pela primeira vez no Brasil, a
avaliação de guerra.
Também nesse período, São Paulo é palco de
inúmeras greves operárias, as mais significativas delas
ocorridas em 1917.
O Rio de Janeiro era a Capital Federal, o centro do
país, cidade portoária e estava em contato com as novidades
europeias: modas, publicações e espetáculos. Ali coexistiam
o luxo de uns e a miséria de outros; ali viveu Augusto dos
Anjos, de setembro de 1910 a junho de 1914. Esta Capital
era, para Augusto dos Anjos, uma espécie de sereia
falaciosa, pródiga unicamente em sonoridade traidora para
os que vêm aqui pela primeira vez; é a terra dos agitados, e
das grandes nevroses da civilização; nesta cidade a política
e o carnaval, num sentido degradante, ocupam a atenção do
público, insuficientemente culto para a verdadeira
compreensão dos fins humanos; a humanidade, ao que me
parece, é a mesma de todos os ângulos deste planeta
vastamente infeliz; instintos e interesses próprios, tal é a
única expressão real dos espíritos atuais; é a bestialidade
máxima fundida na ganância superlativa. (VIDAL, A. 1967
p. 40). 146 Desta maneira, Augusto registrou sua impressão
sobre a vida da cidade carioca neste início de século.

1. 2. Literatura Conservadora e Literatura


Renovadora

Apesar do quadro histórico descrito anteriormente,


poucos foram os literatos que observaram criticamente a
realidade da época. A grande maioria repetia o que se fazia
na Europa e cultivava o beletrismo, frequentando cafés
(ponto de encontro dos intelectuais) e buscando prestígio
social através da literatura. Repetiam-se os padrões da
estética parnasiana e simbolista e preocupava-se mais com a
maneira de dizer do que com o que havia de ser dito.
Dessa forma, o que se produziu em literatura pouco
ou nada tinha que ver com a realidade social brasileira.
Lima Barreto, Euclides da Cunha e Monteiro
Lobato, fugindo à regra, foram escritores que viram com
olhos críticos a realidade nacional, construindo uma obra
renovadora. Na poesia, destacou-se Augusto dos Anjos.

2. O sincretismo de Augusto dos Anjos

Augusto dos Anjos é um poeta bastante original


dentro da tradição brasileira. De certa maneira, seus poemas
são diferentes de tudo que os antecedeu e os seguiu.
Para se compreender a posição da poesia de Augusto
dos Anjos na literatura brasileira, é preciso dizer algumas

146
VIDAL, Ademar. O Outro Eu de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro,
José Olympio. 1967.
palavras acerca das tendências poéticas da época em que ele
produziu os seus versos, isto é, de 1900 a 1914.

2. 1. O Parnasianismo

O nome Parnasianismo foi inspirado na publicação


francesa Parnasse Contemporain, que reunia poemas de
diversos autores e evocava o monte Parnasus, na Grécia.
As exigências parnasianas, do ponto de vista formal,
estão ligadas, de um lado, à organização, à composição do
poema; de outro, ao rigor da frase, à precisão e à clareza:
fala-se na nudez, riqueza e sobriedade da imagem,
semelhante à arquitetura do templo, sem deixar perceber os
andaimes do edifício. É uma poesia, sobretudo plástica: seus
modelos são a pintura, a escultura e a arquitetura, entre as
artes maiores, e, entre as menores, a arte do cinzelador, do
lapidário. Os poetas parnasianos são extremamente
cuidadosos quanto à linguagem dos poemas e quanto ao
respeito às regras da métrica: número de sílabas, rimas e
posição das sílabas. Um dos ideais da estética parnasiana era
o uso de uma linguagem culta, correta, exata.
Como os prosadores do estilo realista, os poetas
parnasianos não desejam se envolver com o tema tratado;
pretendem manter a impessoalidade científica.
No Parnasianismo são frequentes os textos
descritivos, porque os poetas preferem trabalhar no campo do
concreto, das coisas visíveis.
A intenção dos poetas parnasianos é fazer a arte pela
arte, isto é, a arte é vista como um fenômeno em si. Os
parnasianos não escrevem para reformular a sociedade, mas
para criar, para fazer arte.
Desta forma, os textos parnasianos não apresentam
problemas pessoais do autor ou da sociedade em que ele vive,
pois o sentido de se fazer arte está na própria arte.
O Parnasianismo possui como pano de fundo
filosófico, uma atitude racionalista de inspiração “positiva”,
que acredita serem a realidade natural e a sociedade humana
governadas por leis objetivas, contra as quais é impossível
lutar.

2. 2. O Simbolismo

O Simbolismo é um estilo de época nascido na França


e que atuou nas literaturas ocidentais nos últimos anos do
século XIX.
Ao contrário do Parnasianismo, o Simbolismo era
fundamentalmente irracionalista. Na origem, inspirava-se em
doutrinas místicas medievais ou orientais, muito em voga no
fim do século XIX e início deste século, primeiro na Europa,
depois em todo o mundo. Pode-se entender essa atitude como
uma crítica de fundo espiritualista à certeza científica, à
pretensão da ciência dita positiva de resolver todos os
“enigmas do universo”.
Entre nós, pelo menos desde 1893, o Simbolismo
nunca conseguiu alcançar o prestígio e a influência do
Parnasianismo. O precursor e maior poeta simbolista
brasileiro, Cruz e Sousa (1861-1898), tiveram a maior parte
de sua obra publicada apenas depois de sua morte, e um
reconhecimento literário muito tardio. Hoje, ninguém discute
a superioridade de sua poesia, comparada com a dos
parnasianos.
Para os escritores do estilo realista, a objetividade era
um dogma. Mas os simbolistas retomam o subjetivismo
romântico e colocam novamente os interesses subjetivos do
artista em primeiro lugar. A realidade objetiva não interessa
mais; o homem volta-se para uma realidade subjetiva,
retomando um aspecto abandonado desde o Romantismo. O
“eu” passa a ser o universo, mas não o “eu” superficial,
emotivo e piegas do Romantismo: os simbolistas vão à busca
da essência do ser humano, daquilo que ele tem de mais
profundo e universal - a alma. Daí a sublimação tão
procurada pelos simbolistas: a oposição entre matéria e
espírito, a purificação, por meio da qual o espírito atinge as
regiões etéreas, o espaço infinito.
Os simbolistas evocavam os temas espirituais, não
concretos, misteriosos, a sugestão, o sonho. Ao contrário dos
simbolistas, os realistas valorizavam um mundo mais
concreto. Stéphane Mallarmé, poeta simbolista francês,
disserta que: Nomear um objeto é suprimir três quartos do
prazer do poema, que consiste em ir adivinhando pouco a
pouco um objeto para mostrar um estado de alma, ou
inversamente, escolher um objeto e extrair dele um estado de
alma, através de uma série de adivinhas. (MALLARMÉ, S.
1945 p. 210). 147
A concepção do Simbolismo sobre a realidade e a arte
suscitou fortes reações na Sociedade Positivista da época. Os
simbolistas foram chamados de malditos ou decadentes. Estes
simbolistas, porém, desprezam o prestígio social e literário e
seguiram suas ideias dominando as imagens vagas,
nebulosas, incertas. Desta maneira, abandonaram o culto da
razão, que era próprio dos parnasianos e voltou-se para a
intuição, que permitia perceber a verdade instantaneamente.

147
MALLARMÉ, Stéphane. Oeuvrer Complètes. Paris, Gallimard,
Bibliothèque de La Plèiade, 1945.
A poesia simbolista procura aproximar-se, sobretudo
da música. Os versos buscam as sonoridades que resultam na
repetição de consoantes (aliterações) e de vogais
(assonâncias).
A inovação simbolista foi sufocada pela euforia
capitalista, pelo avanço científico e tecnológico. Neste
contexto, surge um período de prosperidade, de acúmulo de
prazeres materiais denominados “Belle Epoque”. A burguesia
aplaude os versos que cantam a beleza e a perfeição. O
espírito do belo suplantou o Simbolismo que foi
desvalorizado, mas abriram caminho para novas correntes
artísticas do século XX, principalmente o Expressionismo e o
Surrealismo que também se preocuparam com a expressão
das zonas inexploradas da mente, do inconsciente e da
loucura.
Neste período de transição, surge Augusto dos Anjos
que começou a escrever sob a influência do Parnasianismo
(1900); porém, seus versos mais maduros aproximam-se do
Simbolismo. Este poeta fez, através de sua poética, um
retrato deste período transitório entre o século XIX e XX.
Retratou seu tempo, sua época, pontuada de códigos literários
velhos e novos e uniu numa só obra as mais variadas estéticas
literárias. Desta maneira, o poeta pré-modernista representou
com maestria este período entre séculos marcadamente
sincrético e movimentado.

2. 3. Componentes da poesia de Augusto dos Anjos

Augusto dos Anjos é um poeta excepcional,


incomparável na Literatura Brasileira. Sua obra é a soma do
Realismo, Naturalismo, Parnasianismo, Simbolismo e de
outros ismos da segunda metade do século XIX e início do
século XX. Por ser considerado o poeta do “mau gosto”, do
escarro, dos vermes, do feio, do grotesco, do hediondo, sua
obra apresenta traços do Expressionismo (movimento
vanguardista surgido na Alemanha em 1910) sem que, no
entanto, tenha conhecido os preceitos dessa tendência da
Vanguarda Europeia. Os temas, igualmente, são inquietantes
e expressionistas: a decrepitude dos cadáveres, os vermes, a
podridão, as substâncias químicas que compõem e
decompõem o corpo humano, a prostituta, o sêmen, a
ingratidão, a traição, o pior da existência, as dores do mundo.
Seus textos chocam pela agressividade do
vocabulário, pela interpretação dramática e angustiante da
matéria, da existência, do homem, da vida, do cosmos e de
tudo.
A poesia de Augusto dos Anjos expressa a dor de ser
dos simbolistas; e o negativismo, os anseios e angústias
existenciais dos realistas. Sua sensibilidade está toda voltada
para a dor universal. Os estudiosos já apontaram, aí, ecos da
doutrina budista, retomada pelo filósofo alemão Arthur
Schopenhauer (1788-1860), 148 autor de Dores do Mundo e O
Mundo Como Vontade e Representação. Este filósofo, em
termos simples, defende que a vida é sofrimento e este pode
148
Arthur Schopenhauer (Danzig, 22 de fevereiro de 1788 - Frankfurt,
21 de setembro de 1860) foi um filósofo alemão do século XIX. É mais
conhecido pela sua obra principal O mundo como vontade e
representação (1818), em que ele caracteriza o mundo fenomenal como o
produto de uma cega, insaciável e maligna vontade metafísica. A partir do
idealismo transcendental de Imannuel Kant, Schopenhauer desenvolveu
um sistema metafísico ateu e ético que tem sido descrito como uma
manifestação exemplar de pessimismo filosófico. Schopenhauer foi o
filósofo que introduziu o pensamento indiano e alguns dos conceitos
budistas na metafísica alemã.
ser abolido com a cessação dos renascimentos e absorção do
indivíduo no Nirvana:

No alheamento da obscura forma humana,


De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero
Encontrei, afinal, o meu Nirvana!

Nessa manumissão schopenhauereana,


Onde a Vida do humano aspecto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Ideia Soberana!

Destruída a sensação que oriunda fora


Do tato - íntima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebéias -

.................................
(ANJOS, Augusto, 1997, p. 171) 149

Nirvana no Budismo é a extinção da vontade


individual e a absorção do espírito do universo; é estado de
ausência total de sofrimento. No soneto acima, denominado
O Meu Nirvana, o eu lírico afirma que encontrou no seu
Nirvana a paz e a plenitude a que se chega por uma evasão de
si, num grito de emoção. E, no último terceto conclui que:
Gozo o prazer, que os anos não carcomem, / De haver
trocado a minha forma de homem / Pela imortalidade das
Ideias! Com estes versos declara que encontrou sua
realização, sua plenitude na Sabedoria.

149
Todas as citações de poemas desse estudo sobre Augusto dos Anjos
foram retirados de: ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira. 1997.
A poesia de Augusto dos Anjos reflete a Filosofia e a
Ciência do final do século XIX. Para este poeta não há Deus
nem esperança, há apenas a supremacia da ciência; e, o ser
humano, as energias que o geraram, as substâncias, a matéria
de que ele é feito (células, sangue, carne, instinto), são
arrastadas para a decomposição, para a podridão, para o mal,
para o fim e para o nada.
Porém, o “nada” decantado por Augusto dos Anjos
não representa apenas o fim da vida, mas também, uma outra
face do ser que nos lembra as palavras de Michel Zeraffa
quando diz: O nada é a outra face do ser, e a morte a outra
face da vida, esta não pode ser recusada, nem evitada.
(ZERAFFA, M. 1971 p. 287). 150Desta maneira, de acordo
com o poeta, fatalmente o ser humano, desde o momento da
epigênese, está condenado às dores da existência e fadado ao
nada. Augusto dos Anjos não nega que o homem é um ser
que caminha para a morte e que o verme é - este operário das
ruínas - / Que o sangue podre das carnificinas / Come, e à
vida em geral declara guerra. O ser vivo é condenado à
decomposição da matéria.
A poesia do autor de EU é marcada pela união de
duas concepções de mundo distintas: de um lado, a dor
cósmica, que busca o sentido da existência humana; de outro,
a objetividade do átomo, a experiência físico-química.
Augusto dos Anjos é um poeta que não se filiou a
nenhuma Escola, mas sua poesia tem a objetividade, o
positivismo e o pessimismo dos realistas; o cientificismo e o
determinismo dos naturalistas; uma preocupação com a forma
quase que parnasiana; o esoterismo e ontologismo dos
simbolistas, além de nuances expressionistas e outros traços
150
ZERAFFA, Michel. Personne et. Personagem. Paris, Klincksick.
1971.
estéticos que anteciparam a modernidade. A sua poesia
antilírica, antipoética, isenta de sentimentalismo, abriu
discussão sobre os conceitos da “boa poesia”, e preparou o
terreno para a grande renovação modernista.
Este poeta utilizou uma poesia formalmente
trabalhada, em linguagem cientificista-naturalista e, ao
mesmo tempo, assinalada por uma popularidade acima das
expectativas. O que mais aproximou o autor de EU da grande
massa de leitores foi sua temática em torno das incertezas do
século XX, do medo da guerra, sua angústia em face de
problemas e distúrbios pessoais e seu pessimismo
schopenhauereano.
Augusto dos Anjos foi incluído numa modalidade de
poetas chamados, há um tempo, cientificistas e filosofantes.

A asserção é válida, enquanto se compreenda que,


por cientificista, não se quer senão designar quem se
volte para as questões científicas, sem, entretanto,
imbuir-se do seu método, em que o raciocínio analógico,
simbólico, alógico, emotivo e afetivo deve, na medida do
possível, ser neutralizado ou pelo menos contra-regrado,
aferido, experimentado: nesse sentido, Augusto dos Anjos
foi o contrário de um cientista; foi um cientificista.
Aquela asserção é, ainda, válida, enquanto se
compreenda que, por filosofante, não se quer senão
designar quem se volte para as questões filosóficas sem
espírito sistemático (mesmo quando esse espírito seja
negação de um sistemático eclético) e, em sendo poeta,
não pretenda em sua poesia fazer um tratado de filosofia.
(HOUAISS, a. 1968 p. 9). 151

151
HOUAISS, Antônio. Augusto dos Anjos. Poesia. Rio de Janeiro, Agir.
1968.
Este autor é um vate que registrou poeticamente seu
tempo, sua realidade, seu mundo. Através de fortes imagens,
poéticas e antipoéticas, não tiveram medo de revelar a
realidade do homem que conheceu. Para tanto, usou a
Ciência, a Filosofia, a Arte e a própria experiência de vida.
Deste conjunto, nasceu o EU e outras poesias, com seus
textos densos, profundíssimamente hipocondríacos, tensos,
doloridos, mas, antes de tudo, verdadeiros, realistas.
Dentro desta óptica reveladora do homem e do
mundo, Augusto desnudou um universo de imagens
degradantes e hediondas relativas à cidade. O poeta vivendo
no início do século XX presenciou o fenômeno das grandes
aglomerações humanas da cidade que, além de seu
crescimento normal, começava a inchar-se com as
populações rurais que procuravam melhores condições de
vida, nos centros mais populosos. Desta forma, assistiu ao
movimento migratório que teve graves consequências nos
anos seguintes e que se estende aos nossos dias.
João Pessoa, Recife, Rio de Janeiro foram as cidades
grandes assistidas pelo poeta que, captou seu mundo,
principalmente o noturno e registrou suas paisagens
degradadas, os prostíbulos, as estações rodoviárias, as
tavernas e os cemitérios. No poema Os Doentes, o poeta diz:

Como uma cascavel que se enroscava,


A cidade dos lázaros dormia...
Somente, na metrópole vazia,
Minha cabeça autônoma pensava!
.............................................................
(Idem p. 106)

Dormia embaixo, com a promíscua véstia


No embotamento crasso dos sentidos,
A comunhão dos homens reunidos
Pela camaradagem da moléstia.
................................................................
(Idem p. 108)

Era a hora em que arrastados pelos ventos,


Os fantasmas hamléticos dispersos
Atiram na consciência dos perversos
A sombra dos remorsos famulentos.
(Idem p. 111)

Este é o poema mais longo e talvez o mais importante


de Augusto dos Anjos. O vocabulário é complexo e muito
científico. Existe no poema uma narrativa: é o poeta
percorrendo a noite, até o amanhecer, os lugares doentes de
uma cidade. O poema é composto por nove partes.
Na primeira o poeta começa por sua descrição:

Mordia-me a obsessão má de que havia,


Sob os meus pés, na terra onde eu pisava,
Um fígado doente que sangrava
E uma garganta de órfã que gemia!

Tentava compreender com as conceptivas


Funções do encéfalo as substâncias vivas
que nem Spencer, nem Haeckel compreenderam...
(Idem p. 106)

Na segunda contempla sua paisagem noturna:

Minha angústia feroz não tinha nome.


Ali, na urbe natal do Desconsolo,
Eu tinha de comer o último bolo
Que Deus fazia para a minha fome!
(Idem p. 106)

Na terceira, apresenta os tuberculosos:


Oh! desespero das pessoas tísicas,
Adivinhando o frio que há nas lousas,
Maior felicidade é a destas cousas
Submetidas apenas às leis físicas!
(Idem p. 108)

Na quarta, os indígenas:
A civilização entrou na taba
Em que ele estava. O gênio de Colombo
Manchou de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba!
(Idem p. 110)

Na quinta, angústia e desejo de morte:

Naquela angústia absurda e tragicômica


Eu chorava, rolando sobre o lixo,
Com a contorção neurótica de um bicho
Que ingeriu 30 gramas de noz-vômica.
(Idem p. 112)
Na sexta, as prostitutas:

Mas, para além, entre oscilantes chamas,


Acordavam os bairros da luxúria...
As prostitutas, doentes de hematúria,
Se extenuavam nas camas.
(Idem p. 114)

Na sétima, os bêbados e os morféticos:

E a ébria turba que escaras sujas masca,


À falta idiossincrásica de escrúpulo,
Absorvia com gáudio absinto, lúpulo
E outras substâncias tóxicas da tasca.
...............................................................
(p. 116)

O fácies do morfético assombrava!


- Aquilo era uma negra eucaristia,
Onde minh’álma inteira surpreendia
A Humanidade que se lamentava!
(Idem p. 116)

Na oitava, o cemitério, os túmulos dos negros e o


amanhecer:
Em torno a mim, nesta hora, estriges voam,
E o cemitério, em que eu entrei adrede,
Dá-me a impressão de um boulevard que fede
Pela degradação dos que o povoam.
..................................................................
(Idem p. 116)

E hirto, a camisa suada, a alma aos arrancos,


Vendo passar com as túnicas obscuras,
As escaveiradíssimas figuras
Das negras desonradas pelos brancos;
.......................................
(Idem p. 117)

Manhã. E eis-me a absorver a luz de fora,


Como o íncola do pólo ártico, às vezes,
Absorve, após a noite de seis meses,
Os raios caloríficos da aurora.
(Idem p. 118)

E, na nona, a degradação e o sonho do surgimento de


um mundo novo.

E arrancara milhares de existências


Do ovário ignóbil de uma fauna imunda,
Ia arrastando agora a alma infecunda
Na mais triste de todas as falências.
............................................................
(Idem p. 119)

Os pródomos de um tétano medonho


Repuxavam-me o rosto... Hirto de espanto,
Eu sentia nascer-me n’alma, entanto,
O começo magnífico de um sonho!

(Idem p. 119)
........................................

O letargo larvário da cidade


Crescia. Igual a um parto, numa furna,
Vinha da original treva noturna,
O vagido de uma outra Humanidade!

E eu, com os pés atolados no Nirvana,


Acompanhava, com um prazer secreto,
A gestação daquele grande feto,
Que vinha substituir a espécie Humana!
(Idem p. 120)

Diante do exposto, em Os Doentes estão


representados todos os marginalizados sociais, o mendigo, a
prostituta, o índio e o negro. Para todos eles é usada à mesma
imagem: doentes, portadores de moléstia incurável e
repugnante, como os Lázaros que a sociedade esconde. É
uma fotografia horrenda, cruel, antilírica, porém, verdadeira.
É o retrato realista dessa Sociedade da hipocrisia, da
ganância, do egoísmo e do lucro. O mundo é o inferno, e os
homens dividem-se em almas atormentadas e em diabos
atormentadores. (SCHOPENHAUER, S/D. p. 23). 152 Esta é

152
SCHOPENHAUER. Dores do Mundo. Rio de Janeiro, Ediouro. s/d.
uma verdade que nem sempre a poesia quer expressar.
Augusto dos Anjos não teve medo de mostrar o mundo sem
máscaras, sem véus, sem cortinas. O autor de EU e outras
poesias desvela científica e ontologicamente a sociedade e a
existência humana.

2. 3. 1. Formas

O EU (1912), único livro publicado em vida por


Augusto dos Anjos, é um conjunto de 58 poemas. São
sonetos e poemas mais longos, escritos quase todos em
versos rimados e decassílabos, com uma única exceção
Barcarola (Idem, ANJOS, Augusto, 1997, p. 158), composta
em versos de sete sílabas (redondilha maior).
Depois de seu livro de estréia, Augusto dos Anjos
publicou uns poucos poemas em jornais, no Rio de Janeiro e
em Leopoldina - Minas Gerais. Estava preparando um livro
novo, mas morreu antes de completá-lo. Só em 1920, seis
anos depois de sua morte, saiu uma coleção dos últimos
trabalhos, com a segunda edição do EU, na Paraíba.
Preparou-a Órris Soares e denominou a coletânea EU e
outras poesias. Os 46 poemas que compõem Outras Poesias
estão menos carregados da terminologia científica do
primeiro livro, embora o vocabulário continue bastante
extenso e complexo.
Em 1971, De Castro e Silva reuniu mais de 39
poemas denominados Poemas Esquecidos, formados por
sonetos e poemas longos.
Esta 41a edição, lançada pela Civilização Brasileira,
traz ainda, Outros Poemas Esquecidos. Esta seleção é
composta por 60 sonetos, odes e outros poemas longos.
Todos os poemas da Poética Completa de Augusto
dos Anjos primam pelo cuidado com a linguagem e são
tradicionais do ponto de vista técnico.

2. 3. 2. Temas

A obra EU e outras poesias chamam a atenção por


seus poemas marcados por temáticas fatídicas como a
podridão: Podre meu Pai! A Morte o olhar lhe vidra. / Em
seus lábios que os meus lábios osculam / Microrganismos
fúnebres pululam / Numa fermentação gorda de cidra. /
Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos / Roída toda de
bichos, como os queijos / Sobre a mesa de orgíacos festins!...
(Idem p. 136); os vermes: (...) Na superabundância ou na
miséria, / Verme - é seu nome obscuro de batismo. (...)
almoça a podridão das drupas agras, / Janta hidrópicos, rói
vísceras magras / E dos defuntos novos incha a mão... / Ah!
Para ele é que a carne podre fica (Idem p. 85); a meretriz:
(...) Ouvem-se os brados / da danação carnal... Lúbrica, à
lua, / Na sodomia das mais negras bodas / Desarticula-se,
em coréas doudas, / Uma mulher completamente nua! / É a
meretriz que, de cabelos ruivos / Bramando, ébria e lasciva,
hórridos uivos, (Idem p. 176); a guerra: Guerra é esforço, é
inquietude, é ânsia, é transporte... / É a dramatização
sangrenta e dura / Da avidez com que o Espírito procura /
Ser perfeito, ser máximo, ser forte! / (...) É a obsessão de ver
sangue, é o instinto horrendo / De subir na ordem cósmica,
descendo / À irracionalidade primitiva... (Idem p. 181); a
dor: Dor, saúde dos seres que se fanam, / Riqueza da alma,
psíquico tesouro, / Alegria das glândulas do choro / De onde
todas as lágrimas emanam... / És suprema! Os meus átomos
se ufanam / Da pertencer-te, oh! Dor, ancoradouro / Dos
desgraçados, sol do cérebro, ouro / De que as próprias
desgraças se engalanam! (Idem p. 182); a morte: Agora,
sim! Vamos morrer, reunidos, / Tamarindo de minha
desventura, / Tu, com o envelhecimento da nervura, / Eu,
com o envelhecimento dos tecidos! / Ah! Esta noite é a noite
dos Vencidos! / E a podridão, meu velho! E essa futura /
Ultrafatalidade de ossatura, / A que nos acharemos
reduzidos! (p. 105); os terrores noturnos: Asa de corvos
carniceiros, asa / De mau agouro que, nos doze meses, /
Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes / O telhado de
nossa própria casa... (Idem p. 121); o epiléptico:
Perguntarás quem sou?! - ao suor que te unta, / À dor que os
queixos te arrebenta, aos trismos / Da epilepsia horrenda, e
nos abismos / Ninguém responderá tua pergunta! (Idem p.
191); o infeliz: Alma viúva das paixões da vida, / Tu que, na
estrada da existência em fora. / Cantaste e riste, e na
existência agora / Triste soluças a ilusão perdida; (...) E fica
no teu ermo entristecida, / Alma arrancada do prazer do
mundo, / Alma viúva das paixões da vida (Idem p. 210); as
trevas: Haverá, por hipótese, nas geenas / Luz bastante
fulmínea que transforme / Dentro da noite cavernosa e
enorme / minhas trevas anímicas serenas?! / Raio horrendo
haverá que as rasgue apenas?! / Não! Porque, na abismal
substância informe, / Para convulsionar a alma que dorme /
Todas as tempestades são pequenas! (Idem p. 196); o
coveiro: Numerar sepulturas e carneiros, / Reduzir carnes
podres a algarismos, / Tal é, sem complicados silogismos, / A
aritmética hedionda dos coveiros! / Um, dois, três, quatro,
cinco... Esoterismos / Da Morte! E eu vejo, em fúlgidos
letreiros, / Na progressão dos números inteiros / A gênese de
todos os abismos! (Idem p. 196); a obsessão pelo sangue:
Acordou, vendo sangue... Horrível! O osso / Frontal em
fogo... Ia talvez morrer, Disse. Olhou-se no espelho. Era tão
moço, / Ah! Certamente não podia ser! (...) No inferno da
visão alucinada, / Viu montanhas de sangue enchendo a
estrada, / Viu vísceras vermelhas pelo chão... (Idem p. 204);
o bêbado: Bebi! Mas sei porque bebi!... Buscava / Em verdes
nuanças de miragens, ver / Se nesta ânsia suprema de
beber, / Achava a Glória que ninguém achava! (Idem p.
268); o germe: Começaste a existir, geléia crua, / e hás de
crescer, no teu silêncio, tanto / Que, é natural, ainda algum
dia o pranto / Das tuas concreções plásmicas flua! (...) Antes
o Nada, oh! gérmen, que ainda haveres / De atingir, como o
gérmen de outros seres, / Ao supremo infortúnio de ser alma!
(Idem p. 174); o morfético: Era todo o meu sonho, assim
inchado, / Já podre, que a morféia miserável / Tornava às
impressões táteis, palpável, / Como se fosse um corpo
organizado! (Idem p. 116); os gemidos: Morri! E a Terra -
mãe comum - o brilho / Destes meus olhos apagou!... Assim /
Tântalo, aos reais convivas, num festim, / Serviu as carnes
do seu próprio filho! (Idem p. 126), Esta desilusão que me
acabrunha / É mais traidora do que o foi Pilatos!... / Por
causa disto, eu vivo pelos matos, / Magro, roendo a
substância córnea da unha (...) Em giro e em redemoinho em
mim caminham / Ríspidas mágoas estranguladoras, / Tais
quais, nos fortes fulcros, as tesouras / Brônzeas, também
giram e redemoinham. (Idem p. 127); o cemitério:
N’augusta solidão dos cemitérios, / Resvalando nas sombras
dos ciprestes, / Passam meus sonhos sepultados nestes /
Brancos sepulcros, pálidos, funéreos. (Idem p. 211); o
condenado: Alma feita somente de granito, / Condena a
sofrer cruel tortura / Pela rua sombria d’amargura / - Ei-lo
que passa - réprobo maldito (Idem p. 209); a noite sinistra:
A nebulosidade ameaçadora / Tolda o éter, mancha a gleba,
agride os rios / E urde amplas teias de carvões sombrios /
No ar que álacre e radiante, há instantes, fora. (...) Ficam
brilhando com fulgor sinistro / Dentro da treva onímoda e
complexa / Os olhos fundos dos que estão com medo! (Idem
p. 204). Além destes temas, o autor faz recorrência constante
a termos científicos da Química, Física e Biologia. Augusto
dos Anjos buscou com a mesma intensidade a Filosofia e
toda a sabedoria que pontuou a Modernidade.

2. A POESIA DE AUGUSTO DOS ANJOS

A primeira condição para compreender a obra de


Augusto dos Anjos é mergulhar no seu discurso poético, no
“discurso-rio”, na sua linguagem científica, naturalista,
simbolista e ontológica. O leitor deve penetrar no reino desta
linguagem poética, buscar os seus sentidos denotativos e
conotativos e descobrir novos mundos, novas interpretações.
A poesia de Augusto dos Anjos exige atenção, conhecimento
e sensibilidade. Seus textos são únicos, originais e conduzem
os leitores a um mundo de verdades doloridas que os
otimistas ocultam. Observe o soneto “Vítimas do Dualismo”
(ANJOS, Augusto, 1997, p. 190):
Ser miserável dentre os miseráveis
- Carrego em minhas células sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
E as mais opostas idiosincrasias!

Muito mais cedo do que o imagináveis


Eis-vos, minha alma, enfim, dada às bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
E à gula negra das antinomia!

Psique biforme, O Céu e o Inferno absorvo...


Criação há um tempo escura e cor-de-rosa,
Feita dos mais variáveis elementos,

Ceva-se em minha carne, como um corvo,


A simultaneidade ultramonstruosa
De todos os contrastes famulentos!
(Idem p.190)

Observe que o eu lírico é pessimista e angustiado,


encontra dentro de si contrastes terríveis: O Céu e o Inferno
absorvo... / Criação há um tempo escura e cor-de-rosa.
Atente para o contraste que se estabelece entre o inferno x
céu, entre o escuro e cor-de-rosa; observe ainda como o
poeta se declara mais ou menos impotente para atenuar o
sofrimento decorrente disso: Ceva-se a minha carne, como
um corvo, / A simultaneidade..., onde a expressão cevar-se é
extremamente forte; fazem eco, nela, ideias de alimentação,
de devoração. O poeta se declara pasto da simultaneidade,
sente-se devorado, aniquilado pelo dualismo. Observe, então,
a propriedade e a justeza do título do soneto.
Toda essa confusão pessimista começa já no primeiro
verso, quando o locutor se declara Ser miserável dentre os
miseráveis. Nos versos seguintes, o texto não faz mais do que
justificar e explicar essa confissão de ser miserável,
desiludido, sofredor.
Tudo que aqui constatamos aponta que o primeiro
traço característico da poesia de Augusto dos Anjos é o
pessimismo: o poeta se vê de forma pessimista, e se vê no
mundo de forma pessimista.
Por outro lado, uma vez constatado o pessimismo da
obra deste poeta precisamos ver ainda como este sentimento
pessimista se manifesta. Para isso, vamos retomar o texto e
analisá-lo: explicando sua qualidade de ser o mais miserável
de todos dos seres, o poeta localiza em suas células a causa
disto (Carrego em minhas células sombrias antagonismos
irreconciliáveis e as mais opostas idiosincrasias).
Observe que, num poema, falar-se de células e de
idiossincrasias não é muito comum. Estas palavras
costumam aparecer apenas em textos de cunho científico, que
tratem, por exemplo, de biologia. Assim, sua presença num
texto literário, mais especificamente num poema, é muito
rara.
Já na segunda estrofe do poema, ainda falando com
amargura de sua alma, o poeta liga-a as ideias de dualismo e
de antinomias. Se a palavra alma foi frequentemente
empregada ao longo de toda a poesia romântica, a inovação
de Augusto dos Anjos consiste em relacionar alma a um
vocabulário típico da filosofia, como dualismo e antinomia.
Observe ainda como dualismo e antinomia,
substantivos abstratos geralmente exclusivos de textos
filosóficos e dissertativos, estão relacionados no texto a
cóleras, implacáveis e gula negra.
Tudo isso que há neste soneto de Augusto dos Anjos
aponta outro de seus traços característicos: seu pessimismo é
expresso através de uma linguagem científica, o que revela
a adesão do poeta ao cientificismo tão em moda no fim do
século passado que influenciou a literatura realista e
naturalista.
Assim, a poesia de Augusto dos Anjos nos revela-nos
uma concepção de homem bastante materialista: o homem é
fruto da evolução natural, provém de formas inferiores de
vida. Como se vê, o poeta adere totalmente a uma teoria
evolucionista. O soneto que se segue, Mater Originalis,
ilustra bem o que acabamos de afirmar:
Forma vermicular desconhecida
Que estacionaste, mísera e mofina,
Como quase impalpável gelatina,
Nos estados prodrômicos da vida;

O hierofante que leu a minha sina


Ignorante é de que és, talvez, nascida
Dessa homogeneidade indefinida
que o insigne Herbert Spencer nos ensina.

Nenhuma ignota união ou nenhum nexo


À contingência orgânica do sexo
A tua estacionária alma perdeu...

Ah! De ti foi que, autônoma e sem normas,


Oh! Mãe original das outras formas,
A minha forma lúgubre nasceu!
(Idem p. 101)
Costuma-se ver, na poesia pessimista e científica de
Augusto dos Anjos, influências de dois poetas: do português
Antero de Quental e do simbolista brasileiro Cruz e Sousa. O
radicalismo com que Augusto dos Anjos leva avante seu
projeto de poesia científica é tal que, no soneto Mater
Originalis, ele menciona diretamente um dos formuladores
das teorias filosóficas e evolucionistas que ele abraça:
Herbert Spencer.
Quando Herbet Spencer (1820-1903), 153 um
engenheiro inglês que construía estradas de ferro, publicou,
em 1857, seu primeiro texto importante, um artigo intitulado
O Progresso: Sua Lei e Sua Causa, as ideias evolucionistas já
estavam difundidas na Europa. Várias obras científicas,
principalmente no campo da Geologia e da Biologia,
apresentavam o princípio da evolução como a hipótese mais
plausível para explicar o desenvolvimento da vida sobre a
Terra. Spencer ficou conhecido como o fundador do
“Darwinismo Social”. Mas, na realidade, o engenheiro inglês
se antecipou à teoria evolucionista de Charles Darwin, ao
desenvolver a tese de que toda realidade evolui à semelhança
de organismos vivos.
Envolvido pelas luzes da ciência, Augusto dos Anjos
faz constante menção a elementos químicos e utiliza um
vocabulário médico que reforça ainda mais o cientificismo e
o materialismo desse poeta, tão original dentro da tradição
literária brasileira. Observe agora o clássico soneto
Psicologia de um vencido:

Eu, filho do carbono e do amoníaco,


Monstro de escuridão e rutilância,
153
Herbert Spencer (Derby, 27 de Abril de 1820 -Brighton, 8 de
Dezembro de 1903) foi um filósofo, biólogo e antropólogo inglês, bem
como um dos representantes do liberalismo clássico. Spencer foi
admirador da obra de Charles Darwin. É dele a expressão "sobrevivência
do mais apto", e em sua obra procurou aplicar as leis da evolução a todos
os níveis da atividade humana. Spencer teve suas ideias enormemente
distorcidas. Essas distorções lhe renderam a alcunha de "Pai do
Darwinismo Social". Todavia, Spencer jamais utilizou este termo ou
defendeu a morte de indivíduos "mais fracos" assim como foi um notável
opositor de governos militares e autoritários, de qualquer forma de
coletivismo, do colonialismo, do imperialismo e das guerras. Ele estudou
o comportamento humano como um órgão biológico.
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme - este operário das ruínas -


Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,


E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
(Idem p. 82)

Verifique que a linguagem deste poema surpreende e


modifica uma tradição poética brasileira, construída em
grande parte com base em sentimentalismos, delicadezas,
fantasias e sonhos. O desenvolvimento da ciência no final do
século XIX vulgarizou muitos termos específicos da
Química, da Física e da Biologia. Neste poema percebe-se
vestígio deste cientificismo da época nos vocábulos usados
pelo poeta como: carbono, amoníaco, epigênese,
hipocondríaco, verme. Estas palavras aqui empregadas
poeticamente por Augusto dos Anjos, tradicionalmente,
seriam consideradas antipoéticas.
O poema acima pode ser dividido em duas partes: a
primeira, que trata do próprio eu lírico, e a segunda que trata
da morte. O eu lírico encara a vida e a si mesmo de forma
pessimista, pois entende que o homem é matéria, química, e
tudo caminha para destruição.
Além de ser matéria que se decompõe, o ser humano é
um ser antitético por natureza, filho do carbono (preto) e do
amoníaco (branco). O homem, o animal racional, é um ser
que é capaz de construir o mundo e destruí-lo; o homem é um
dos animais mais perigosos e traiçoeiros; é o que deveria ser
humano, mas é o mais desumano, às vezes.
O poeta acrescenta ainda, que se sente um monstro de
escuridão e rutilância, enfatizando com esta antítese, as
contradições do ser humano. O segundo verso do soneto pode
sugerir, também, o fato de o “ser” - que deveria ser humano,
demasiadamente humano - apresentar-se muitas vezes como
um animal vil. E, por outro lado, pode sugerir com a
escuridão e a rutilância, a incapacidade do homem conhecer a
si mesmo, uma vez que os conhecimentos sobre a alma são
ainda vagos e, por mais que a ciência esteja avançada, pouco
se sabe sobre a Psiquê e muito é preciso ser descoberto.
A morte é enfocada como um fato natural, como
sendo o destino final e fatal de toda forma de vida. Cabe
ressaltar também a crueza com que a morte é tratada,
representada pela imagem do verme a comer o sangue podre
das carnificinas.
A concepção de vida latente neste poema diverge da
ideia aceita por todas as religiões, uma vez que, no texto, o
homem é visto exclusivamente como matéria destinada à
decomposição. Não se aceita o espírito ou a alma como
componente do ser humano, dogma de todas as religiões.
O título, Psicologia de um vencido, é uma espécie de
síntese das ideias do soneto. Nele temos a recorrência da
visão de mundo do poeta através das imagens e palavras
antipoéticas. É também, um sugestivo auto-retrato
expressionista, que se assemelha a uma caricatura com
imagens distorcidas, rompendo com os limites estéticos do
belo e do feio, numa postura típica dos melhores
expressionistas.
Neste soneto, o eu lírico sugere a expressão da
angústia de um ser humano; mas a pessoa não tem os traços
da face bem definidos, tem um rosto distorcido, uma
máscara, uma caricatura; é um sujeito que nasceu sob a
influência do zodíaco, é um hipocondríaco nos braços da
morte.
Embora o título contenha a palavra Psicologia, o
poema detém-se a tratar da matéria, das substâncias químicas
que formam o eu, evitando maior introspecção. Apesar disso,
é possível constatar o negativismo interior do eu lírico, que se
considera “vencido” em virtude da fragilidade física do ser
humano e da força implacável da morte.
Deve ser notado, ainda, que o poema é centrado no eu,
mas, apesar disso, suas ideias são universalizantes uma vez
que, o poeta retrata a condição humana, a constituição, a
fragilidade física do “ser”, a fatalidade e a postura inexorável
da morte.
Na segunda estrofe, o poeta utiliza a palavra ânsia, que
significa “aflição”, “angústia”. Porém, esta sensação para o
eu lírico, reduz-se a uma manifestação física, uma vez que é
comparada ao estado de um cardíaco, profovada pela extrema
agonia do Nihilismo. Segundo Nicola Abbagnano 154:
NIILISMO (in. Nihilism; fr. Nihilisme, ai.
Nihilismus; it. Nichílismo). Termo usado na
maioria das vezes com intuito polêmico, para
designar doutrinas que se recusam a reconhecer
realidades ou valores cuja admissão é considerada
importante. Assim, Hamilton usou esse termo para
qualificar a doutrina de Hume, que nega a
realidade substancial (Lectures on Metaphysics, I,

154
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi.
São Paulo: Martins Fontes, 1998.
pp. 293-94); nesse caso a paiavra quer dizer
fenomenismo. Em outros casos, é empregada para
indicar as atitudes dos que negam determinados
valores morais ou políticos. Nietzsche foi o único a
não utilizar esse termo com intuitos polêmicos,
empregando-o para qualificar sua oposição radical
aos valores morais tradicionais e às tradicionais
crenças metafísicas: "O N. não é somente um
conjunto de considerações sobre o tema 'Tudo é
vão', não é somente a crença de que tudo merece
morrer, mas consiste em colocar a mão na massa,
em destruir. (...) É o estado dos espíritos fortes e
das vontades fortes do qual não é possível atribuir
um juízo negativo: a negação NIRVANA 713
NOLIÇÃO ativa corresponde mais à sua natureza
profunda" (Wille zurMacht, ed. Krõner, XV, § 24)
(ABBAGNANO, Nicola. (1992) p. 712).

O negativismo e niilismo pode ser entendido de


maneira geral como(Redução a nada; aniquilamento.
Descrença absoluta. Filos. Doutrina segundo a qual nada
existe de absoluto. Ét. Doutrina segundo a qual não há
verdade moral, nem hierarquia de valores) (FERREIRA, A.
B. H. 1990 p. 973) 155 são traços do Realismo; a visão
materialista e o cientificismo expressos no poema são marcas
do Naturalismo de Augusto dos Anjos; enquanto a visão
mórbida, pessimista, decadentista do eu lírico sobre a vida
são características do Simbolismo.
Este soneto tem uma mensagem de puro pessimismo,
mas poderíamos considerar as duas últimas estrofes mais
enfáticas, mais sem expectativas, já que o eu poético se vê em

155
FERREIRA, Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1980.
processo de deterioração, vislumbrando nada mais que a
morte para seu futuro. Seguindo essa mesma linha
negativista, o soneto Versos Íntimos acrescenta que:

Vês! Ninguém assistiu ao formidável


Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!


O homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!


O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,


Apedreja essa mão vil que afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
(Idem p. 143)

Neste poema, Augusto dos Anjos expõe sua postura


em relação à vida e, a sua concepção revela seu profundo
pessimismo e niilismo diante de uma sociedade formada por
feras e que leva o homem a ser, também, fera. O pensamento
deste poeta pré-modernista tem afinidade com as ideias de
Schopenhauer 156quando afirma:

O inferno no mundo excede o Inferno de Dante, no


ponto em que cada um é o diabo do seu vizinho; há
também um arquidiabo superior a todos os outros, é o
conquistador que dispõe milhares de homens em frente

156
SCHOPENHAUER. Dores do Mundo. Rio de Janeiro, Ediouro. s/d.
uns dos outros e lhes brada: “Sofrer, morrer, é o vosso
destino; portanto fuzilem-se, canhoneiem-se
mutuamente!” e eles assim procedem.
(SCHOPENHAUER. S/D. p. 43).

Desta maneira, conclui-se que o homem, no íntimo, é


um ser egoísta, e mais ainda, um animal selvagem, uma fera.
Este mundo é um campo de carnificina onde entes ansiosos e
atormentados vivem devorando-se uns aos outros, onde todo
o animal carnívoro se torna o túmulo vivo de tantos outros
(SCHOPENHAUER. S/D. p. 43). Este é um ponto de vista
pessimista, negativista sobre a realidade, sobre as dores do
mundo.
O poeta dirige-se a um interlocutor (que pode ser a
própria consciência ou o leitor), ressaltando a solidão de todo
o ser humano. O poema sugere que esta solidão é
consequência do egoísmo que destrói as quimeras, os sonhos,
as fantasias, os caminhos para felicidade, para vida. Com
respeito a cada um em particular, a história de uma
existência é sempre a história de um sofrimento, porque toda
carreira percorrida é uma série ininterrupta de reveses e
desgraças, que cada um procura ocultar, porque sabe que
longe de inspirar aos outros simpatia ou piedade, dá-lhes
enorme satisfação, de tal modo se comprazem em pensar nos
desgostos alheios a que escapam naquele momento
(SCHOPENHAUER. S/D. p. 43). 157 O texto expõe ainda que,
a ingratidão é a mais fiel das companheiras e o futuro é
absolutamente incerto e sem duração e o homem deve
acostumar-se ao pior, à lama, à triste sombra, ao fim.
Schopenhauer assevera que:

157
Op.cit
Assim como sob o ponto de vista físico o andar
não é mais do que uma queda sempre evitada, da mesma
maneira a vida do corpo é a morte sempre suspensa, uma
morte adiada, e a atividade do nosso espírito um tédio
sempre combatido... É preciso enfim que a morte triunfe,
pois lhe pertencemos pelo próprio fato do nosso
nascimento e ela não faz senão brincar com a presa antes
de a devorar (SCHOPENHAUER. S/D. p. 43).

Diante do exposto, o poeta e o filósofo acorrem para


uma severa realidade com nuances de negativismo,
desesperança e niilismo. O tom pessimista, pesado e triste
chega ao clímax quando o poeta apresenta o antilírico verso o
beijo, amigo, é a véspera do escarro. Aqui, mais do que uma
referência à decomposição da matéria, o texto exprime o fim
do lirismo, do amor, do belo, do sublime. O beijo (símbolo
supremo do sentimento), sendo véspera do escarro (símbolo
da podridão, do repugnante, do grotesco), anula toda poesia
que sempre representou. Da mesma forma, o eu lírico nega
qualquer espécie de solidariedade e de amor: a mão que
afaga é a mesma que apedreja. O autor doutrina que não há
sinceridade e não pode existir a ingenuidade de acreditar
numa boa ação, no amor, na virtude, no bem. O mundo é dos
maus.
O poema Versos Íntimos possui o pessimismo dos
realistas; a preocupação formal que revela vestígios do
Parnasianismo, a sugestão de vocábulos como quimera,
próprios dos simbolistas e, a valorização do feio e do
grotesco, características do Expressionismo.
O soneto O morcego é uma referência da obra de
Augusto dos Anjos e reflete com maestria as marcas deste
poeta. Observe o texto na íntegra:
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

“Vou mandar levantar outra parede...”


- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego


A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A consciência Humana é este morcego!


Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

(Idem p. 81)

No soneto acima o poeta filosofa e faz do leitor um


interlocutor das suas descobertas. No primeiro momento cria
um clima tenebroso, soturno, à meia-noite e, assustado,
chama atenção para o morcego na bruta ardência orgânica
da sede. Depois descreve o drama do morcego a morder-lhe o
pescoço e sugar-lhe o sangue. Num clima dramático, segue
fazendo a sua descrição assustadora, com tintas fortes e
escuras. O leitor é conduzido para o clímax da luta do “eu”
contra o morcego, do homem contra a própria consciência -
como foi metaforizado o morcego.
O texto pretende fazer o leitor refletir sobre uma
situação trágica: o fato de ser perseguido pela consciência.
Deste morcego, o ser humano não pode fugir, nem ocultar-se.
A preocupação de Augusto dos Anjos em revelar os
conhecimentos sobre o corpo e a alma, conduziu-o ao desafio
de poetar cientificamente A Ideia do ser humano. Verifique o
soneto:
De onde ela vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta


Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,


Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica...

Quebra a força centrípeta que a amarra,


Mas de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!
(Idem p. 82)

Nos versos acima, Augusto dos Anjos investiga a


origem das ideias em nossa mente. Por intermédio de
interrogações e exclamações, num clima pasmo, busca
questionamentos, respostas e conclui em termos científicos
(psicogenética, moléculas nervosas, encéfalo absconso,
cordas da laringe) que, uma ideia possui muitos obstáculos
para chegar a realizar-se e fazer-se em palavras. Uma ideia
percorre um longo trajeto, que de tão extenso, chega às
cordas da laringe tísica, tênue, mínima, raquítica..., quase
sem força e sem essência, mas desfazendo-se em palavras:
Mas, de repente, e quase morta, esbarra / No molambo da
língua paralítica! Isso porque faltam as palavras precisas que
impedem a ideia de apresentar-se inteira como se apresenta
na mente.
Esta falta de precisão das palavras, este limite, esta
luta com a linguagem nos faz lembrar as palavras de
Drummond quando diz: Lutar com palavras / é a luta mais
vã. / Entanto lutamos / mal rompe a manhã. / São muitas, eu
pouco. / Algumas, tão fortes como o javali (ANDRADE, C.
D. 1982 p. 153). 158 Carlos Drummond de Andrade poetiza
sua luta com as palavras usando a metalinguagem, o que não
acontece totalmente em Augusto dos Anjos. Neste, a
preocupação está mais para as descobertas científicas sobre a
mente humana.
O Monólogo de uma sombra é o poema inicial do
livro EU; é um texto de 31 sextilhas (estrofes formadas por
seis versos) e, apenas as três últimas são atribuídas ao poeta,
que nelas descreve a impressão das frases ouvidas
anteriormente. O poema se inicia com aspas, que se fecham
depois da vigésima oitava estrofe e, nestas 28 primeiras
estrofes, o monólogo da sombra alonga-se, sendo ouvido pelo
poeta e comentado por este nas três últimas sextilhas. Nesse
poema, a sombra é uma entidade parcialmente
antropomorfizada (por fazer uso da linguagem e por certas
referências humanas que faz de si mesma) e goza de muitos
atributos da natureza e da matéria:
“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!
(Idem p. 75)

158
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética. São Paulo,
Abril Cultural, 1982.
Nesta primeira estrofe, a sombra fala da sua origem,
usam uma linguagem científica e erudita como monera e
pólipo. Monera é um vocábulo que significa único, solitário
e, também, é um organismo unicelular. Para Ernest Heinrich
Haeckel (1834-1919), 159 biólogo e pensador alemão,
defensor da unidade do universo - monismo), é a primeira
forma orgânica de vida. Seu livro Os Enigmas do Universo
(1900) exerceu grande influência sobre Augusto dos Anjos.
Este poeta assimila o pensamento do biólogo alemão, no
sentido de que, no texto, monera refere-se à origem de todos
os seres que habitam o Universo, inclusive o Homem - Do
cosmopolitismo das moneras. Pólipo ou polipo (Augusto dos
Anjos sempre empregava esta palavra como se fosse
paroxítona, no entanto, a pronúncia proparoxítona é
recomendada por muitos lexicógrafos) é um animal
metazoário do ramo dos celenterados; o vocábulo está no
significado de polvo, ou de um animal que possui muitos
tentáculos e reentrâncias. Porém, no poema, o significado não
é denotativo, é uma metáfora para a mobilidade da Sombra.
O poeta acrescenta à mobilidade da sombra a
metáfora de larva do caos telúrico. O vocábulo “larva”, por
sua vez, significa, ‘fantasma’, ‘máscara’. Entre os antigos
romanos, espírito malfazejo de um morto que vagueava entre
os vivos para aterrorizá-los (FERREIRA, A. B. H. 1990 p.
821). 160 Desta forma, esta palavra, tanto no sentido
denotativo, quanto no conotativo, tem o significado de

159
Ernst Heinrich Philipp August Haeckel (Potsdam, na Prússia,
Alemanha, 16 de fevereiro de 1834 - Jena, 9 de agosto de 1919) biólogo,
naturalista, filósofo, médico, professor e artista alemão que ajudou a
popularizar o trabalho de Charles Darwin e um dos grandes expoentes do
cientificismo positivista. Descreveu e nomeou várias espécies novas,
mapeou uma árvore genealógica que relaciona todas as formas de vida.
imprecisão de forma, flutuação e, portanto, uma sombra nas
palavras do poeta, um “pólipo” que se move
assustadoramente de um lugar para outro.
O último verso desta sextilha - da substância de todas
as substâncias - a sombra expõe sua origem e deixa patente
que procede da substância original das quais todas também
procedem. Todas as substâncias vêm daquele foco de onde
deriva o universo todo, o cosmo - cósmico segredo -
monisticamente, unitariamente; uma vez que segue a doutrina
monística, segundo a qual, o conjunto das coisas pode ser
reduzido à unidade, quer do ponto de vista de suas
substâncias, quer do ponto de vista das leis pelas qual o
universo se ordena. Desta maneira, a substância não nasce
apenas do caos telúrico, mas do cósmico segredo, do gênese
universal, do princípio de tudo, do que ainda não tinha sido
devassado pelo conhecimento humano.
Na segunda estrofe do monólogo a Sombra
afirma:
A simbiose das coisas me equilibra,
Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios...
E é de mim que decorrem, simultâneas,
A saúde das forças subterrâneas
E a morbidez dos seres ilusórios! (p. 75)

O vocábulo “simbiose” significa vida em comum;


apareceu como termo de Biologia, a partir de 1877 na
Inglaterra, para designar uma associação entre dois seres
vivos que vivem em comum. A acepção ampla que o poeta
emprega à palavra, mais do que significar a pura
mutualidade, refere-se à vida reciprocamente amparada, pois
160
FERREIRA, Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1980.
afirma que a simbiose das coisas me equilibra. A sombra
acrescenta ainda que, em sua desconhecida mônada, a
unidade material fundamental de que tudo deriva, sua alma
vibra em movimentos rotatórios e de si surgem forças que
conduzem à vida e aos mais variados sonhos, bons e maus.
Assim, com o vocabulário científico, filosófico e erudito a
Sombra prossegue seu monólogo até que, na sétima estrofe
introduz uma personagem - o Filósofo Moderno:

Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias,


Trazendo no deserto das ideias
O desespero endêmico do inferno,
Com a cara hirta, tatuada de fuligens
Esse mineiro doido das origens,
Que se chama o Filósofo Moderno!
(Idem p. 76)

Nove estrofes são dedicadas a esta personagem.


Depois, entra em cena o sátiro peralta na décima sexta: são
outras nove estrofes para a nova personagem. As quatro
últimas estrofes do monólogo falam da “Dor” e da “Arte”:

Somente a Arte, esculpindo mágoa,


Abranda as rochas rígidas, torna água
todo o fogo telúrico profundo
E reduz, sem que, entanto, a desintegre,
À condição de uma planície alegre,
(Idem p. 79)

Esta sextilha traz uma concepção sobre a arte nos


moldes do pensamento schopenhauereano que entende ser a
arte uma redenção. Ela nos livra da vontade e, portanto da
dor, torna as imagens da vida cheias de encanto
(SCHOPENHAUER S/D. p. 134), 161 mesmo quando a obra de
arte expressa uma visão antiestética, um quadro que traduz o
lado feio, degradante ou até horrendo da vida. Essa arte leva
o sujeito a refletir sobre aquela situação e despertar para
aquele mundo até então encoberto com as cortinas da beleza.
A poesia de Augusto dos Anjos antecipa a Nova
Poética prescrita por Manuel Bandeira que diz:

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.


Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito
bem engomada,
e na primeira esquina passa um caminhão,
salpica-lhe o paletó de uma nódoa de lama:

É a vida.

O poema deve ser como a nódoa do brim:


Fazer o leitor satisfeito de si dar ao desespero.

Sei que a poesia é também orvalho.


Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as
virgens
cem por cento e as amadas que envelheceram sem
maldade. (BANDEIRA, M. 1974 p. 154.) 162

Assim como este poema modernista defende a ideia


do poeta sórdido e que a poesia deve ser como uma nódoa de
lama no brim branco, este poeta pré-modernista, com sua
poesia da dor, induz o leitor a meditar e até a chegar ao
161
SCHOPENHAUER. Dores do Mundo. Rio de Janeiro, Ediouro. s/d.
162
BANDEIRA, Manuel. Antologia Poética. Rio de Janeiro, José
Olympio. 1974.
desespero diante das sujeiras da vida. A arte deve revelar as
verdades por mais tristes e sórdidas que sejam.

3. AUGUSTO DOS ANJOS - O VATE DA DOR


E DO INFORTÚNIO

Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos nasceu no


engenho Pau-d’Arco, Vila do Espírito Santo, Paraíba, em 20
de abril de 1884. Vivendo numa época de grandes transições,
o poeta paraibano assistiu a decadência dos engenhos
tradicionais, em prol das usinas e presenciou o início do
processo de urbanização.

4. 1. O engenho Pau-D’Arco

Augusto dos Anjos viveu a ruína material de sua


família, proprietária de pequena propriedade rural, na Várzea
Paraibana. O sofrimento individual leva-o a ser solidário com
os sofrimentos do outro, sobretudo com as pessoas humildes.
Nos Gemidos de Arte encontramos uma referência à casa do
“finado Toca”:
Não sei que subterrânea e atra voz rouca,
Por saibros e por cem côncavos vales,
Como pela avenida das Mappales,
Me arrasta à casa do finado Toca!

Todas as tardes a esta casa venho.


Aqui, outrora, sem conchego nobre,
Viveu, sentiu e amou este homem pobre
Que carregava canas para o engenho!
(p. 130)

No poema Ricordanza della mia Gioventú


(Recordação da Minha Juventude) recorda a ama de leite
Guilhermina que Furtava as moedas que o Doutor me dava. /
Sinhá-Mocinha, minha Mãe ralhava... e lhe justifica os
pequenos furtos: Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama, /
Eu furtei mais, porque furtei o peito / que dava leite para tua
filha! (Idem p. 125).
Augusto dos Anjos gostava do contato com a natureza
e, em seus versos, cantou a presença de um pé de tamarindo,
que foi testemunha dos anos de sua infância e de sua
juventude no engenho Pau-D’Arco:
No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!

Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,


Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da Flora Brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios


De minha vida e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,


Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!
(Idem p. 85)

Em Debaixo do Tamarindo, Augusto registra suas


lembranças de Pau-d’Arco, da sua família que, no texto, foi
registrada através do jogo de palavras paleontologia dos
Carvalhos. No primeiro sentido, Carvalho refere-se a uma
espécie de planta de grande porte que produz uma madeira
resistente, utilizada geralmente em construções; no segundo
sentido, refere-se à Família Carvalho, uma vez que o poeta
chama-se Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos. Nota-se
que o vocábulo está em maiúsculo para denotar a propriedade
da palavra e a perenidade e fortaleza da Família dos
Carvalhos, em Recife. O nome da árvore foi extremamente
sugestivo, pois insere o ser humano no ser vegetal do
Tamarindo. Os dois últimos versos do soneto revigoram a
ideia da homogeneidade entre o Tamarindo, o poeta e suas
Sombras: Abraçado com a própria Eternidade / A minha
sombra há de ficar aqui!
O soneto Debaixo do Tamarindo é um documento que
testemunha as marcas do engenho Pau-d'Arco que
acompanharam o poeta, mas também, que ficaram na Paraíba.

4. 2. O curso de Direito, o Magistério, as Mudanças


e a Poética da Dor

Em 1903, Augusto dos Anjos matriculou-se na


Faculdade de Direito do Recife. Foi no contato com o
ambiente acadêmico que o poeta familiarizou-se com a
ciência em voga, especialmente com as doutrinas de Ernest
Heinrich Haeckel muito lido na época. Absorvem de tal
modo aqueles termos que passa a usá-los nas conversas
íntimas, com amigos, sem perceber. Daí, a explicação para
utilização de tantos termos científicos em seus poemas.
A 13 de janeiro de 1905, depois de uma doença que o
manteve paralisado por um longo tempo, morre o pai do
poeta. No seu livro de poemas, EU, Augusto apresenta quatro
sonetos dedicados à doença e à morte de seu pai, Alexandre
Rodrigues dos Anjos:
I
A meu Pai doente

Para onde fores, Pai, para onde fores,


Irei também, trilhando as mesmas ruas...
Tu, para amenizar as dores tuas,
Eu, para amenizar as minhas dores!

II
A meu Pai morto

Madrugada de Treze de Janeiro,


Rezo, sonhando, o ofício da agonia.
Meu Pai nessa hora junto a mim morria
Sem um gemido, assim como um cordeiro!

(Idem p. 135)

Em 1907, forma-se em Direito, mas não exerce a


profissão de advogado. Retorna a João Pessoa, onde leciona
Literatura Brasileira, até ser afastado do cargo de professor
do Liceu Paraibano em 1910, em consequência de
desentendimento com o governador. Neste mesmo ano, casa-
se com D. Ester Fialho, muda-se para o Rio de Janeiro e
passa a dedicar-se ao Magistério, lecionando no Colégio
Pedro II.
Em 1911, morre prematuramente seu primeiro filho, a
quem o poeta dedicou o seguinte soneto:

Ao meu primeiro filho nascido


morto com 7 meses incompletos.
2 de fevereiro de 1911

Agregado infeliz de sangue e cal,


Fruto rubro de carne agonizante,
Filho da grande força fecundante
De minha brônzea trama neuronial,

Que poder embriológico fatal


Destruiu, com a sinergia de um gigante,
Em tua morfogênese de infante
A minha morfogênese ancestral?!

Porção de minha plásmica substância,


Em que lugar irás passar a infância,
Tragicamente anônimo, a feder?!...

Ah! Possas tu dormir, feto esquecido,


Panteisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!
(Idem p. 84)

Augusto, o vate da dor e do infortúnio, fez de sua


poética um meio de expressar todas as dores do mundo,
inclusive as suas. Duas mortes marcaram seus versos: seu pai
e seu primogênito. Tais acontecimentos contribuíram para o
pessimismo, o negativismo e o aspecto triste e mórbido
presentes na temática deste poeta.

4. 3. O Livro Polêmico e o Final Prematuro

Em 1912, nasce sua filha Glória e, em edição


particular, financiada com recursos próprios e do irmão
Odilon, publica seu livro de poesia EU. Este livro provocou
escândalo: o público estava habituado aos elegantes e líricos
poemas que se declamavam em salões. Era o tempo da “Belle
Epoque” carioca e a Literatura deveria ser lírica, o sorriso da
sociedade; mas, o livro EU era o choro da sociedade, era
antilírico, cultuava o feio, o grotesco, o mau gosto.
A crítica reconheceu o talento de Augusto dos Anjos,
mas fazia-lhe sérias restrições. O poeta tornou-se polêmico.
A Faculdade de Medicina incluiu a sua obra em sua
biblioteca, por tratar de assuntos científicos.
Somente a partir de 1928, quatorze anos após sua
morte, o poeta paraibano encontrou a compreensão e a
aceitação; por isso, Augusto não usufruiu de uma vida
tranquila. Nomeado diretor de um grupo escolar na cidade
mineira de Leopoldina, assumiu a direção do
estabelecimento, lecionava, colaborava com a imprensa local,
lutava pela sobrevivência.
Em 31 de outubro de 1914, apanha uma forte gripe
que se complica tornando-se pneumonia, e, morre a 12 de
novembro desse mesmo ano, com trinta anos. Teve um final
prematuro.

CONCLUSÃO

Augusto dos Anjos foi o primeiro poeta brasileiro a


desnudar consciente e sistematicamente a realidade através de
seus versos. Foi um precursor das ideias modernistas quando
rompeu com a noção de que a poesia só deve expressar o que
é lírico e agradável.
O poeta pré-modernista procurou expor seus textos
através de uma forma inusitada, usando um vocabulário
científico e filosófico ou apenas erudito, combinado com
algumas expressões coloquiais. Este estilo não foi bem aceito
pela sociedade quando o poeta publicou sua obra, depois,
ganhou o gosto popular - quer seja pelo cientificismo, quer
pela Filosofia ou erudição, quer seja pela temática - o certo é
que foi popularizado, recebendo o seu devido
reconhecimento.
A crítica considera Augusto dos Anjos como sendo
um poeta cientificista e filosofante, uma vez que este artista
adotou um método de especulação ou dissertação racional
segundo a orientação de Spencer, Haeckel e Schopenhauer.
Augusto dos Anjos é considerado Parnasiano por uns
e Simbolista por outros. Parnasiano, em virtude de sua
preferência pelo soneto que executava com perfeição e rigor.
Simbolista, pela sugestão, pelo pessimismo, pela preocupação
com a Psiquê e o decadentismo. Porém, nenhuma dessas
designações é suficiente para descrever a generalidade de sua
produção, uma vez que este poeta foi o mais sincrético e
original de toda a poesia brasileira. Daí, seu enquadramento
na amplitude do Pré-Modernismo ser o mais compatível com
a sua autonomia e genialidade.
A poética de Augusto dos Anjos merece consideração
pela densidade temática, pela riqueza linguística, pela
técnica, pela forma e, enfim, por uma realização artística
excepcional, única.

VII - A POESIA DE MANUEL BANDEIRA


Teu nome é para nós, Manuel Bandeira.”
“Ontem, hoje, amanhã: a vida inteira,
Carlos Drummond de Andrade
Vai
Azulão
Azulão
Companheiro,
Vai!
Manuel Bandeira

Criou-me, desde eu menino,


Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
Manuel Bandeira

1. ITINERÁRIO
Nasci na Rua da Ventura
Colegial na Soledade,
Vai pisando a Rua da Aurora,
primairmã da Rua do Sol,
e chega à Rua da Saudade,
todas elas formando um halo
em torno à Rua da União.
No dia 19 de abril de 1886, na Rua da Ventura, atual
Joaquim Nabuco, nasce Manuel Carneiro de Souza Bandeira
Filho. Seus pais, Manuel Carneiro de Souza Bandeira e
Francelina de Souza Bandeira.
Em 1890, a família transfere-se de Recife para o Rio
de Janeiro e, a seguir, para Santos, São Paulo e, novamente,
Rio de Janeiro. Depois de passar dois verões em Petrópolis, a
família volta para Pernambuco. Manuel Bandeira frequenta o
colégio das irmãs Barros Barreto, na Rua da Soledade e,
como semi-interno, o de Virgílio Marques Carneiro Leão, na
Rua da Matriz.
Em 1896, a família, mais uma vez muda-se de Recife
para o Rio de Janeiro, onde reside na Travessa Piauí, na Rua
Senador Furtado e depois em Laranjeiras. Manuel Bandeira
cursa o Externato Ginásio Nacional (atual Colégio Pedro II).
A família muda-se para São Paulo em 1903, onde
Manuel Bandeira matricula-se na Escola Politécnica,
pretendendo tornar-se arquiteto. Estuda também, à noite,
desenho e pintura com o arquiteto Domenico Rossi no Liceu
de Artes e Ofícios. Começa ainda a trabalhar nos escritórios
da Estrada de Ferro Sorocabana.

1. 1. Lastro subjetivo, autobiográfico: a


tuberculose

No final de 1904, Manuel Bandeira fica sabendo que


está tuberculoso. Abandona suas atividades e volta para o Rio
de Janeiro. Em busca de melhores climas para sua saúde,
passa temporadas em diversas cidades: Campanha,
Teresópolis, Maranguape, Uruquê, Quixeramobim. Mas a
doença não cedia e o pai decide, em 1913, enviá-lo para a
Suíça, a Meca dos tuberculosos daquele tempo. Bandeira
escolhe Clavadel, possivelmente inspirado por versos do
poeta Antônio Nobre que ali estivera também pela mesma
razão, e criador de um poema outonal denominado “Ao cair
das folhas”, soneto predileto de Bandeira. É em Clavadel que
ambos têm a trágica revelação da gravidade da doença. É o
próprio Bandeira quem conta:

Quando caí doente em 1904, fiquei certo de


morrer dentro de pouco tempo: a tuberculose era, ainda,
“a moléstia que não perdoa”. Mas fui vivendo morre-
não- morre, e em 1914 o Dr. Bodmer, médico chefe do
sanatório Clavadel, tendo-lhe eu perguntado quantos
anos me restariam de vida me respondeu assim:
O Senhor tem lesões teoricamente incompatíveis com a
vida; no entanto está sem bacilos, come bem, dorme bem,
não apresenta, em suma nenhum sintoma alarmante. Pode
viver cinco, dez, quinze anos... Quem poderá dizer?...
(BANDEIRA, 1996. p. 101). 163

A tal declaração seca e precisa, Bandeira designaria


como revelação brutal da doença. O poema “Pneumotórax”
evidencia a presença do dado autobiográfico na obra de
Manuel Bandeira.

Febre, hemoptise e suores noturnos.


A vida inteira que poderia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:


- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
163
BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. in Poesia Completa e
Prosa. ed. Organizada pelo autor. Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar S.A,
1996.
- Respire.
.................................
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão
direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
-Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
(BA
NDEIRA, 1998. p. 74). 164

Este poema tem como tema a doença – a tuberculose –


que aumentava a expectativa da morte, acentuada pela perda de
seus entes queridos: a mãe (1916), a irmã (1918), o pai (1920), o
irmão (1922), e que marca toda a sua poesia. O poeta utiliza, em
“Pneumotórax”, procedimentos técnicos inovadores na
montagem desse poema, como a aplicação do diálogo, a linha
inteira com reticências sugerindo a respiração, a associação de
imagens, cenas, antilirismo e auto-ironia. Os versos em prosa
(tendência modernista) intercalam causa e consequência:
“Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos” – os sintomas
da tuberculose “a doença que não perdoa” – e em seguida, o
preço pago por ela: “A vida inteira que poderia ter sido e não
foi”. Este verso revela pelo menos dois significados. O
primeiro válido para o ocaso particular do poeta que é a
questão da saúde que o impediu de viver sem receios. O
segundo, que valeria para qualquer pessoa saudável que deixa
a vida passar sem aproveitar o tempo e fazer algo útil.
O poema tem a marca do trágico, realçado pelo
sarcasmo do eu lírico que apresenta como única esperança
“tocar um tango Argentino”, querendo com esta frase afirmar
164
Os poemas citados nesse estudo foram retirados da coletânea:
BANDEIRA, Manuel. Os melhores poemas de Manuel Bandeira,
seleção de Francisco de Assis Barbosa, São Paulo, Global editora,
12ª ed. 1998.
que a medicina já não poderia fazer mais nada para ajudá-lo.
Esse episódio é um exemplo de matéria antipoética na poesia
moderna. “Tocar um tango Argentino” trata-se de uma
retirada irônica diante do que poderia ser patético e
sentimental perante o inevitável. Sim, tão inevitável que o
poeta se vê na contingência de uma “Preparação para a
morte”.

A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
- Bendita a morte, que é o fim de todos os
milagres
(Idem p. 147)

Bandeira, durante a vida inteira, esperou a morte chegar,


todas as manhãs, tardes e noites, conforme afirma no Itinerário
de Pasárgada:
Continuei esperando a morte para qualquer momento,
vivendo sempre provisoriamente. Nos primeiros anos da
doença me amargurava muito a ideia de morrer sem ter
feito nada; depois forçada ociosidade.
(BANDEIRA, 1996. p. 101) 165

Sua vida era mais frágil que uma flor, que um pássaro,
mas o poeta como um milagre, continuava vivo e registrava este
milagre em versos ardentes de vivência e espera para o fim de
todos os milagres.

O poema “Consoada” (Idem p. 136), que analisaremos


depois, é um outro exemplo dessa preparação e espera pela
morte. Quando a “Iniludível” não aparece na obra de Bandeira,
o poeta assume o mau destino e transforma-o em matéria de
poesia como encontramos no poema “Epígrafe”, na obra A
Cinza das Horas (1917).

Sou bem nascido. Menino,


Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.

Foi o tempo que forçou Manuel Bandeira a


conformar-se, mas sua decepção será lembrada mais tarde
naquele poema “Testamento”:

Criou-me, desde eu menino,


Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
(Idem p. 112)

165
Op. Cit. BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. in Poesia
Completa e Prosa. ed. Organizada pelo autor. Rio de Janeiro, Ed. Nova
Aguilar S. A, 1996.
O poema “Testamento” (Idem p. 112) demonstra
o lado intimista da poesia bandeiriana. No último verso,
Bandeira classifica-se como “poeta menor”, o que significa
que sua poesia trabalha com temas intimistas. Quando o
poeta é qualificado como “poeta maior” (no caso, Carlos
Drummond de Andrade) significa que este poeta trata de
temas metafísicos ou políticos. Bandeira classifica-se
ironicamente como “poeta menor” talvez porque sua obra, em
certos momentos, busca situações muito pessoais, no caso, a
tuberculose. Sobre esse tema o poeta afirmou:
Tomei consciência de que era um poeta menor;
que me estaria para sempre fechado o mundo das grandes
abstrações generosas; que não havia em mim aquela
espécie de cadinho onde, pelo calor do sentimento, as
emoções morais se transmutaram em emoções estéticas:
metal preciosos eu teria que sacá-lo a duras penas, ou
melhor, aduras esperas, do pobre minério das minhas
pequenas dores e ainda menores alegrias. (BANDEIRA,
1996. p. 40) 166

O fato é que a tuberculose mudou o destino de


Manuel Bandeira. Quando tudo lhe parecia fugir, restava-lhe
a poesia, pois não sabia fazer outra coisa como ele próprio
chegou a declarar.
Em junho de 1913 embarcou para Europa a fim
de realizar o tratamento da tuberculose num sanatório Suíço.
Duas pessoas foram seus companheiros marcantes, nesse
espaço de cura. Um chamava-se Paul Eugène Grindel, um
jovem poeta, de “ de olhos azuis, grande cabeleira loura,
gravata preta lavalliére. (...) não tinha certeza de sua vocação
166
Op. Cit. BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. in Poesia
Completa e Prosa. ed. Organizada pelo autor. Rio de Janeiro, Ed. Nova
Aguilar S. A, 1996.
poética e por isso pensava fazer-se editor” (Op cit p. 53). A
outra foi era uma russa Mlle Diakonova, namorada do poeta
de olhos azuis. O jovem era “Paul Éluard... Casou-se com
Mlle Diakonova, a Gala que hoje é mulher de Salvador Dali.
Éluard tornou-se um grande dos poeta da França e do
mundo”. Idem p.53).
Foi em Cladavel que pela primeira vez Bandeira
pensou em publicar um livro de versos. A guerra de 1914
obriga o poeta a voltar para o Brasil. As últimas
recomendações do médico do sanatório é que deveria viver
como um valetudinário” (este era o jargão dos sanatórios). O
Sol lhe faria mal, sobretudo o terrível sol dos trópicos.
Dançar, nem em sonhos. Bandeira seguia as prescrições
religiosamente. Só saía de casa à tarde, à hora do sol-posto,
para visitas, exposições, concertos e uma passada eventual no
Bar Nacional, onde se restringia de bebida alcoólica.
No Rio de Janeiro, após paciente readaptação ao
meio trepidante da cidade, publica em 1917 seu primeiro
livro de versos, A Cinza das horas, edição de 200
exemplares por ele custeada. De acordo com o poeta:
A Cinza das horas não continha tudo que que eu
havia escrito até 1917 (...) Fizera eu uma escolha,
preferindo os poemas que mepareciam ligados pela mesma
tonalidade desentimento, pelas mesmas intenções de fatura.
O sentimento ia resumido, programado por assimdizer, nos
versos, já transcritos, de Maeterlinck. Afatura já não era
de modelo parnasiano e simsimbolista, mas de um
simbolismo não muitoafastado do velho lirismo português.
Os sonetos a Camões e a Antônio Nobre são claros
indíciosdisto. Nada tenho para dizer desses versos, senão
que ainda me parecem hoje, como me pareciamentão, não
transcender a minha experiênciapessoal, como se fossem
simples queixumes deum doente desenganado, coisa que
pode sercomovente no plano humano, mas não no
planoartístico. No entanto, publiquei o livro, ainda que sem
intenção de começar carreira literária: desejava apenas
dar-me a ilusão de não viverinteiramente ocioso.
(BANDEIRA, Itinerário de Pasárgada. 1996. p. 56) 167

Neste livro, a tuberculose já está presente, dado o


primeiro poema de 1912, no qual declara: “Eu faço versos
como quem morre”. Vejamos:

Eu faço versos como quem chora


De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...


Tristeza esperança... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca


Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre.


Teresópolis, 1912

(Idem p. 15)

Em “Desencanto”, o sentimento dominante, como o


próprio título indica, tem a marca do desencanto, do
desalento, da melancolia e da tristeza. Os versos de Bandeira,
como afirmou Drummond, são gerados por nostalgias
167
Op. Cit. BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. in Poesia
Completa e Prosa. ed. Organizada pelo autor. Rio de Janeiro, Ed. Nova
Aguilar S. A, 1996.
abissais, profundas, marcantes. Eles comovem porque são
feitos de sangue, de dor, de sofrimento, caem “gota a gota, do
coração”. São amargos, como o próprio poeta afirma, mas
também são quentes porque tocantes, de “angústia rouca”:
clamam e são ouvidos na dor e na emoção por qualquer
pessoa sensivel. Esse poema traduz uma tristeza que lembra o
Romantismo e uma musicalidade influenciada pelo
Simbolismo.
É importante observar que ainda na Suíça, Bandeira já
entrara em convalescença, as palavras pessimistas do diretor
do Sanatório não se confirmavam na prática. A tuberculose
regredia e, pela primeira vez, o doente sentia a alegria da
cura. Não importava que as radiografias mostrassem o
pulmão esquerdo velado. Esses versos não mentem e, no caso
de Bandeira, a poesia triunfava sobre o Raio X.
Nunca poeta algum exprimiu tão bem o que
significava para um tuberculoso desenganado, em volta de
uma vida que está sempre à espera de uma morte iminente.
Bandeira escreveu:

Continuei esperando a morte para qualquermomento,


vivendo sempre como queprovisoriamente. Nos primeiros
anos da doençame amargurava muito a idéia de morrer
semter feito nada; depois a forçada ociosidade. Já disse
como publiquei A Cinza das Horas para de certo modo
iludir o meu sentimento de vazia inutilidade. Este só
começou a se dissipar quando fui tomando consciência da
ação dos meus versos sobre amigos e principalmente sobre
desconhecidos. Uma tarde voltei paracasa seriamente
impressionado de ter ouvido,na Livraria José Olympio,
Rachel de Queiroz medizer:
"Você não sabe o que a sua poesiarepresenta para
nós."
Foi a força detestemunhos como esse, às vezes de
gentequase de todo alheia à literatura, que principieia
aceitar sem amargura o meu destino. Hoje naverdade me
sinto em paz com ele e pronto parao que der e vier.
Otto Maria Carpeaux, escrevendo uma vez a meu
respeito, disse, com certeira intuição, que no livro ideal em
que ele estruturaria a ordem da minha poesia, esta partia
"da vida inteira que poderia tersido e que não foi" para
outra vida que vieraficando "cada vez mais cheia de tudo".
De fatoesse é o sentido profundo da "Canção do vento eda
minha vida".
De fato cheguei ao apaziguamentodas minhas
insatisfações e das minhas revoltaspela descoberta de ter
dado à angústia de muitos
uma palavra fraterna. Agora a morte pode vir - essa morte
que espero desde os dezoito anos:tenho a impressão que
ela encontrará, como em"Consoada" está dito, "a casa
limpa, a mesa posta,com cada coisa em seu lugar". (Op.
Cit. BANDEIRA, Itinerário de Pasárgada. 1996. p.
101/102)

Bandeira continua a construção de versos em que o


Amor soluçante, / se retesa e contempla a vida /, como afirma
Carlos Drummond de Andrade, no poema “Declaração a
Manuel”, publicado em Viola de Bolso. 168
Embora não estando nos Melhores Poemas de Manuel
Bandeira, dessa seleção organizada por Francisco de Assis
Barbosa, o poema “Plenitude” do livro A Cinza das Horas,
deve ser observado por traduzir o desejo de viver e a vontade
da cura:

Vai alto o dia. O sol a pino ofusca e vibra.


O ar é como de forja. A força nova e pura

168
ANDRADE, Carlos Drummond de. Viola de bolso, in Poesia
Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 394.
Da vida embriaga e exalta. E eu sinto, fibra a fibra,
Avassalar-me o ser a vontade da cura.
A energia vital que no ventre profundo
Da Terra estuante ofega e penetra as raízes,
Sobe no caule, faz todo galho fecundo
E estala na amplidão das ramadas felizes,
Clavadel, 1914

Este poema traduz literalmente a energia vital, a força


interior, o desejo de plenitude, de realizações e de
continuação dessa ardente vida-poesia. Composto por sete
quadras, ele permite, considerando a numerologia do número
7, que a vida e arte possam se equivaler. Sete, um número
cabalístico, é o símbolo universal de uma totalidade, mas de
uma totalidade em movimento. (CHEVALIEUR &
CHEERBRANT. 1990.p. 826).169 Simboliza também a conclusão,
a plenitude dos tempos, os sete graus da perfeição e de muitas
vidas. Representa o símbolo do homem perfeitamente
realizado. Essa busca de realização, plenitude e vida longa é
uma tradução da poesia de Bandeira.
A energia vital e a recordação de tantos anos de
sofrimento não abandonariam o poeta. E a sentença fatal do
médico suíço nunca se apagaria de sua mente. A morte está
presente em toda poesia de Bandeira, embora ele se recuse
bravamente a morrer. Essa atitude do poeta é a única na
história da literatura:

O que não tenho e desejo


É que melhor me enriquece
Tive uns dinheiros – perdi-os...
Tive amores – esqueci-os.
Mas no maior desespero
169
CHEVALIEUR, Jean & CHEERBRANT, Alain. Dicionário de
Símbolos. Rio de Janeiro. José Olímpio. 1990.p. 826.
Rezei: ganhei essa prece
(Idem p. 112)

Um fato insólito ocorreu: à medida que os anos


passavam, o poeta ia sentindo cada vez mais confiança em
sua sobrevivência e mudou sua atitude diante da morte.
Passou simplesmente a esnobá-la, encarando-a, não mais
como um predestinado a cedo entregar-se em seus braços. Se
considerava agora um simples mortal, nascido em ventre de
mulher, sem aquela marca de maldição que lhe fora posta no
sanatório. Estava descompromissado do prognóstico fatal. E
passou a tratar as Parcas, com ironia, a sua inconfundível
ironia... O poema “Consoada” é um bom exemplo:

Quando a Indesejada das gentes chegar


(Não sei se dura ou coroável).
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios).
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa.
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
(Idem p. 136)

Observe que o substantivo morte e o verbo morrer não


aparecem em nenhum momento no texto. O poeta parece
aceitar a situação de esperar pela iniludível, como se
esperasse uma visita com quem pudesse conversar, jantar e
dizer que a sua vida foi boa, e que valeu a pena e que está
pronto para o fim. O título “Consoada” remete à ideia de que
o poeta recebe a Indesejada das gentes como se recebesse
alguém, também “Indesejado”, com ( I ) maiúsculo (quer
dizer próprio, singular, não aceito como algo comum). Esse
alguém, com certeza, virá para o jantar e o poeta deverá
recebê-lo com educação e compartilhar com a visita
Indesejada uma refeição amistosa, sem nada de trágico ou
doloroso. Pode ser verificado, nesse poema, uma visão
serena sobre a morte.
No dia 13 de outubro de 1968, a Iniludível chegou
numa tarde de domingo. Manuel Bandeira foi levado pela
visita Indesejável, vítima de hemorragia gástrica. Neste dia, o
poeta José Paulo Paes escreveu o seguinte poema-epitáfio:

13 de outubro, morte de Manuel Bandeira


Epitáfio
poeta menormenormenormenormenormenor
menormenormenormenormenor enorme

1. 2. Recife, figuras da infância

Bandeira afirma que foi no Recife, aos seis anos, que


entrou em contato com a poesia, através dos contos de fadas,
das Histórias da Carochinha e das cantigas de roda:
O meu primeiro contato com a poesia sob a forma de
versos terá sido provavelmente em contos de fadas, em
histórias da carochinha. No Recife, depois dos seis anos. Pelo
menos me lembro nitidamente do sobrosso que me causava a
cantiga da menina enterrada viva no conto "A madrasta":

Capineiro de meu pai,


Não me cortes meus cabelos.
Minha mãe me penteou,
Minha madrasta me enterrou
Pelo figo da figueira
Que o passarinho bicou.
Xô, passarinho!
Era assim que me recitavam os versos. E esse "Xô,
passarinho!" me cortava o coração, me dava vontade de
chorar. Aos versos dos contos da carochinha devo juntar os das
cantigas de roda, algumas das quais sempre me encantaram,
como "Roseira, dá-me uma rosa", "O anel que tu me deste",
"Bão, balalão, senhor capitão". Mas para que tanto sofrimento.
Falo destas porque as utilizei em poemas. E também as trovas
populares, coplas de zarzuelas, couplets de operetas francesas,
enfim, versos de toda a sorte que me ensinava meu pai.
Lembro-me de uns cujo autor até hoje ignoro. Ouviu-os meu
pai de um sujeito que um dia, no alpendre de uma casinha do
interior de Pernambuco, lhe veio pedir esmola. Meu pai, que
gostava de brincar, disse-lhe: "Pois não! Mas você antes tem de
me dizer uns versos." Ora, o nosso homem não se fez de
rogado e saiu-se com esta décima lapidar, cujo primeiro verso,
estropiado, mostra que a estrofe não era de sua autoria:
Tive uma choça, se ardeu-se.
Tinha um só dente, caiu.
Tive uma arara, morreu.
Um papagaio, fugiu.
Dois tostões tinha de meu:
Tentou-me o diabo, joguei-os.
E fiquei sem ter mais meios
De sustentar os meus brios.
Tinha uns chinelos... Vendi-os.
Tinha uns amores... Deixei-os.
Assim, na companhia paterna ia-me eu embebendo
dessa ideia que a poesia está em tudo – tanto nos amores como
nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas.
(Op. Cit. BANDEIRA, Itinerário de Pasárgada. 1996. p. 34)

Em “Evocação do Recife”o poeta expõe essa


influência da cantiga de roda: à distância, as vozes macias
das meninas politonavam / Roseira dá-me uma rosa /
Craveiro dá-me um botão. (Idem.p.81)
O pai e o tio João Carneiro desenvolveram o gosto e a
sensibilidade poética no garoto. O próprio Bandeira confessa
que foi com o pai que se embebeu dessa ideia de que a
poesia está em tudo – tanto nos amores como nos chinelos,
tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas (Op. Cit.
p.34). O menino aprendeu a lição e conseguiu, num processo
de pura sensibilidade, expor suas nostalgias abissais como
declara Carlos Drummond de Andrade no seguinte poema:

Teu verso límpido, liberto


de todo sentimento falso;
teu verso em que Amor, soluçante,
se retesa e contempla a morte
com a mesma lucidez
de quem soube enfrentar a vida;
teu verso em que deslizam sombras
que de fantasmas se tornaram
nossas amigas sorridentes,
teu verso de alumbramentos sábios
e nostalgias abissais,
hoje é nossa comum riqueza,
nosso pasto de sonho e cisma:
ele não te pertence mais.
(ANDRADE, Carlos Drummond de. 2002. p.
394).170

A poesia de Manuel Bandeira é simples, acessível,


quase sempre direta. Sua experiência pessoal de vida (os
fatos cotidianos, perplexidades, medos e desejos)
transfigura-se de tal modo num purismo (liberto de todo
sentimento falso), num lirismo (verso em Amor), numa

170
ANDRADE, Carlos Drummond de. Viola de bolso, in Poesia
Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 394.
preocupação com a morte e com a presença constante de
familiares e conhecidos (fantasmas sorridentes):

Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincinê na


ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada
com cadeiras, mexericos, namoros, risadas.
....................................................................................
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim que se chamava Midubin e não era
torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
(Idem ps. 82/83)

Gilda e Antônio Cândido, no Prefácio de Estrela da Vida


Inteira(1965) afirmam que se na poesia bandeiriana, há um
coloquialismo, ela não revela necessariamente um olhar
‘cotidiano’ sobre o real, mas capta o que há de “indizível”
ou complexo por detrás do aparente explícito e vidente. 171
Concordo com os críticos e acrescento, que num processo
mágico, o poeta exprime o inexprimível profundamente e
suas nostalgias abissais entram nas almas e revelam
momentos vividos, existentes que nós não percebemos ou que
não queremos perceber como: a felicidade, a nossa cidade, a
nossa rua, os nossos entes queridos. É o que está poetizado no
texto “Evocação do Recife”.

Recife...

171
MELLO E SOUZA, Gilda e Antônio Cândido. Introdução à Estrela
da Vida Inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade

Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
como a casa de

[meu avô
Rio 1925

(Idem p. 84)

Entre as evocações pessoais que, com mais


frequência, afloram a poesia de Bandeira, encontram-se
personagens e cenas de sua infância passada no Recife -
marcadas pelas figuras do avô, de Totônio Rodrigues, de
Aninha Viegas e de Rosa. Está também presente o sagrado
dos sinos que:

De repente
nos longes da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!

Totônio Rodrigues achava sempre que era São José


Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.
(Idem p. 82)

O sino surgia dentro da noite e repercutia o Poder


Divino. “Apercepção do ruído do sino dissolve as limitações
da condição temporal. (...) Pela posição do badalo, o sino
evoca a posição de tudo o que é suspenso entre o céu e a
terra, e, por isso mesmo estabelece uma comunicação entre os
dois. Mas também de entrar no mundo subterrâneo”, é uma
das leituras simbólicas do “Sino” pode ser encontrada em
Chevalieur & Cheerbrant. (CHEVALIEUR & CHEERBRANT.
1990.p. 835).172
O sino exprime a formação religiosa e evocação do
tempo de infância, dos sons das igrejas indicando o fervor e a
necessidade de voltar o pensamento a Deus, mesmo diante
dos desejos carnais da adolescência.
Pode ser percebido, que sino repicava solitário e
distante do poeta que, na adolescência, deixava de lado o
sagrado para se entrosar com as descobertas da vida, do fogo,
da paixão, da masculinidade. O profano torna-se mais forte
nesta época de sua vida e o rio aparece como uma metáfora
nessa nascente de desejos:
Capiberibe
- Capiberibe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha

Um dia eu vi uma moça nuinha no banho


Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi meu primeiro alumbramento

(Idem p. 82)

O rio reproduz a imagem do nascimento da


vontade sexual e da força criadora da natureza e do tempo,

172
CHEVALIEUR, Jean & CHEERBRANT, Alain. Dicionário de
Símbolos. Rio de Janeiro. José Olímpio. 1990.
da fluidez das formas. O Capibaribe metaforiza o erotismo
que exalava daquele corpo de menino, que se preparava para
fertilidade poética e erótica do homem adulto, que ali já
desabrochava em seu primeiro alumbramento, ao ver uma
moça nuinha no banho. Sua fertilidade seria artística, diria
algum crítico astuto, seus versos são nossos, afirma
Drummond.
De acordo com Jean Chevalier e Allain
Cheerbrant: entre os gregos, os rios eram objeto de culto;
eram quase divinizados, como filhos do Oceano e pais das
Ninfas. Costumava-se oferecer-lhes sacrifícios, afogando, em
suas águas, touros e cavalos vivos. Não se podia atravessá-
los senão após ter cumprido os ritos da purificação e da
prece. Como toda divindade fertilizante, tinham o poder de
submergir, irrigar ou inundar, e de transportar os barcos em
suas águas ou de afundá-los: suas decisões eram sempre
misteriosas. (CHEVALIEUR & CHEERBRANT. 1990.p. 780).173
Na poesia de Bandeira, o sagrado e o profano e seus
alumbramentos se misturam nas águas do rio, com as cheias,
Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu / E nos
pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos /
em jangadas de bananeiras e mais:

Novenas
Cavalhadas
Eu me deitei no colo da menina e ela começou a
passar a mão
[nos meus
cabelos
Capiberibe
- Capibaribe

173
CHEVALIEUR, Jean & CHEERBRANT, Alain. Dicionário de
Símbolos. Rio de Janeiro. José Olímpio. 1990.
(Idem p. 83)

Verifique que o poeta usa os verbos no pretérito


imperfeito e perfeito do indicativo. Neste poema, o contraste
entre os dois tempos é significativo. O pretérito imperfeito
indica uma ação continuada no passado e uma ação repetida
no passado. Na descrição de Bandeira os imperfeitos indicam
ação prolongada no passado (ficava, era, chamava,
chegava...), ação repetida no passado (ia fumar, ia pescar...).
Já o perfeito traduz ação ocorrida apenas uma vez,
completada no passado (vi, fiquei, riu, foi, deitei...). Em meio
o quadro fixo do passado revivido, destaca-se o corte
repentino do meu primeiro alumbramento, reforçado pelo
emprego verbal do foi, para significar um momento único,
inesquecível, que ficou gravado definitivamente na memória.
“Evocação do Recife” é mais evocação do que
descrição, é um texto subjetivo, intimista, em que o poeta
chama o passado, para eternizá-lo na poesia.
Neste poema, as duas formas “Capiberibe -
Capibaribe têm dois motivos. Em Itinerário de Pasárgada
Bandeira explicou que:
O primeiro foi um episódio que se passou comigo na classe
de Geografia do Colégio Pedro II. Era nosso professor o
próprio diretor do Colégio - José Veríssimo. Ótimo
professor, diga-se de passagem, pois sempre nos ensinava
em cima do mapa e de vara em punho. Certo dia perguntou
à classe: “Qual é o maior rio de Pernambuco ” Não quis
eu que ninguém se me antecipasse na resposta e gritei
imediatamente do fundo da sala: “Capibaribe!”
Capibaribe com a, como sempre tinha ouvido dizer no
Recife. Fiquei perplexo quando Veríssimo comentou, para
grande divertimento da turma: “Bem se vê que o senhor é
um pernambucano!” (pronunciou “pernambucano”
abrindo bem o e) e corrigiu: “Capiberibe”. Meti a viola no
saco, mas na “Evocação” me desforrei do professor,
intenção que ficaria para sempre desconhecida se eu não
revelasse aqui. Todavia, outra intenção pus na repetição.
Intenção musical: Capiberibe a primeira vez com e, a
segunda com a, me dava a impressão de um acidente, como
se a palavra fosse uma frase melódica dita na segunda vez
com bemol na terceira nota. De igual modo, em
“Neologismo” o verso “Teodoro, Teodora” leva a mesma
intenção, mais do que de jogo verbal.

(BANDEIRA, Itinerário de Pasárgada. 1996. p.


174
51)

Diante do exposto, o poeta, em “Evocação do


Recife”, põe em prática sua poesia livre de preconceitos e
fórmulas; realiza uma obra liberta de códigos, fala
poeticamente a língua do povo, mas com engajamento, com
as ideias revolucionárias e criativas nos moldes do
Modernismo que vivenciava. Assim seguia os preceitos de
Oswald de Andrade, que pregava: “Nenhuma fórmula para a
contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.”
175
. O criador de “Evocação do Recife” busca sua pasárgada
literária, uma liberdade para escrever e pensar, uma
Libertinagem poética para ser e expor suas evocações ou
conviver com a presença indesejada das gentes.
O poema “Profundamente” expressa recordações. As
festas de São João, as figuras da infância, os parentes
falecidos e as outras lembranças do passado são chamadas de
novo à consciência. Acompanhe o poema:
174
BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. in Poesia Completa e
Prosa. ed. Organizada pelo autor. Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar S. A,
1996.
175
ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo:
Secretaria de Estado e Cultura, 1990.
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor,
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei


Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
...................................................
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas

- Estavam todos dormindo


Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente

Quando eu tinha seis anos


Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

- Estão todos dormindo


................................................
Profundamente.
(Idem ps. 85/86)

Este texto apresenta imagens de um acontecido e do


presente. Do passado, o eu lírico mostra a festa de São João e
desenha detalhes visuais e auditivos para vivificar a cena. As
imagens visuais são sugeridas através da ausência de
vírgulas, indicando que tudo ocorria simultaneamente, sem
muita ordem: bombas explodiam enquanto luzes de Bengala
coloriam o céu; ao mesmo tempo, as luzes da fogueira
coloriam a terra e vozes politonavam com cantigas e risos. A
sonoplastia das cenas é sugerida através de repetição de sons
explosivos (/t/, /d/ e /b/) - Estrondos de bombas... de
Bengala... – combinada com os / on / sugere o barulho das
bombas a estourar.
O poeta utiliza imagens: Estavam todos
deitados/Dormindo e metáforas como Profundamente, (mortos) e
faz desenhos por meio de analogias, criando relações entre
objetos, palavras e sons. Os recursos estilísticos utilizados
pelo artista da palavra expõem a descoberta da realidade: as
ações festivas dessas cenas fazem parte de seu passado
remoto.
O verbo dormir no poema é um vocábulo polissêmico,
revela duplo significado. Na estrofe estão todos dormindo /
Estão todos deitados / Dormindo / Profundamente. Dormir
além de revelar esses dois sentidos, faz o poeta retornar
poeticamente às pessoas que marcaram efetivamente sua
infância e construíram sua mitologia.
Sobre esses personagens que adormeceram
profundamente, Manuel Bandeira em seu Itinerário de
Pasárgada escreveu:
Na “Evocação” já havia mencionado o nome de
Totônio Rodrigues, que “era muito velho e botava o
pince-nez na ponta do nariz”. Esse Totônio era sobrinho
de meu avô e me parecia muitíssimo mais velho do que
ele. Não sei se foi isso ou a maneira de usar o pince-nez,
ou o jeito de falar que o marcou tão profundamente na
minha memória. Tomásia era a velha preta cozinheira da
casa da Rua da União. Tinha sido escrava de meu avô e
fora por ele alforriada. Naquela cozinha, com seu vasto
fogão de tijolo, o seu enorme pilão, e que pelas festas de
Santo Antônio, São João e São Pedro resplandecia
quentemente com as grandes tachas de cobres areadas
até o vermelho, Tomásia, pequena, franzina e de poucas
falas, mandava sem, contraste e me inspirava um sagrado
respeito com as suas duas únicas respostas a todas as
minhas perguntas: “hum” e “hum-hum”, que eu
interpretava por “sim” e “não”. Rosa era a mulata clara
e quase bonita que nos servia de ama-seca. Nela minha
mãe descansava porque a sabia de toda a confiança.
Rosa fazia-se obedecer e amar sem estardalhaço nem
sentimentalidade. Quando estávamos à noitinha no mais
aceso das rodas de brinquedo, era hora de dormir, vinha
ela e dizia peremptória: “Leite e cama!” E íamos como
carneirinhos para o leite e a cama. Mas havia, antes do
sono, as “histórias” que Rosa sabia contar tão bem...
(BANDEIRA, Itinerário de Pasárgada. 1996. p.
79/80)

De acordo com Bandeira, um Totonho Rodrigues,


uma Aninha Viegas, a preta Tomásia, velha cozinheira da
casa do seu avô, tinham a consistência heróica das
personagens dos poemas homéricos.
O poema “Profundamente” é assinalado pela
efemeridade dos fogos, dos balões e das fogueiras, que se
extinguem com o fim da noite e o fim da festa, cria um clima
intensamente nostálgico, gerado pela saudade dos amigos e
dos parentes.

2. RITMOS, ESTILOS E VIDA

Outra marca na poesia de Manuel Bandeira é a


extrema musicalidade de seus versos. Essa musicalidade,
talvez resultante do contato do poeta com os remanescentes
do Simbolismo da época de sua estréia literária, traduz-se em
recursos inovadores e modernos. Salete de Almeida Cara
afirma o seguinte, sobre a musicalidade bandeiriana, feita em
versos livres, mas com ritmo:
A sua concepção de ritmo que está na base de
suas reflexões e, portanto, a de um sistema de
movimentos sonoros (sílabas fortes e fracas), onde
vão se comportando sons e silêncios (pausas), e que
não deve estar necessariamente estrangulado por
leis da métrica (contagem do número de sílabas).
Mas é o senso do trabalho poético que sustenta a
relação de Bandeira com a poesia. Assumir o verso
livre significa, para ele, questionar os clichês
rígidos da métrica parnasiana, mas ao mesmo
tempo, levar adiante as pesquisas da musicalidade e
do ritmo dos simbolistas brasileiros, principalmente
se pensarmos que nosso Simbolismo ainda não tinha
conseguido libertar-se da retórica parnasiana.
Assumir o verso livre é também um modo de refletir
sobre o que pode haver de trabalho efetivamente
poético (isto é, que ultrapasse a simples resposta à
imposição e regras nos versos medidos)
(CARA, S. A. 1981 p. 100). 176

176
CARA, Salete de Almeida. Manuel Bandeira. Literatura Comentada,
Abril, Educação, 1981.
Em alguns poemas como “Desencanto” (idem p. 15),
(1912), época em que Manuel Bandeira escreveu seus
primeiros versos livres, sob a influência de Apollinaire,
Charles Cross e MacFionna Leod, encontramos uma
sonoridade de forma tradicional.
Em “Desencanto” (idem p. 15), os versos distribuem-
se em estrofes regulares ( quatro versos); todos os versos têm
nove sílabas; as rimas são cruzadas (abab).
Bandeira expõe sua experiência com o verso livre da
seguinte forma:

O poema "Carinho triste" foi a minha primeira tentativa de verso-livre.


Ainda não eram versos-livres, como não o eram tampouco os do poema
de Guy-Charles Gros. Mas durante muito tempo continuei nessa prática
de aproximação, que foi a de muitos poetas (tinha sido a de Laforgue
em alguns poemas, "L'hiver quivient", por exemplo). O verso
verdadeiramente livre foi para mim uma conquista difícil. O hábito do
ritmo metrificado, da construção redonda foi-se-me corrigindo
lentamente à força de que estranhos dessenstabilizantes: traduções em
prosa (as de Poe por Mallarmé), poemas désavoués pelosseus autores,
corno o famoso que Léon Deubelescreveu na Place du Carroussel às 3
horas deuma madrugada de 1900 (Seigneur! je suissans pain, sans rêve
et sans demeure.),menus, receitas de cozinha, fórmulas depreparados
para pele, como esta:
Óleo de rícino
Óleo de amêndoas doces
Álcoolde 90º
Essência de rosas.
Versos como os do meu "Debussy", "Sonho de uma terça-Feira gorda",
"Balada de Santa Maria Egipeíaca", "Na solidão das noites úmidas",
"Bélgica", "A vigília de Hero", "Madrigal melancólico", "Quando
perderes o gosto humilde da tristeza" ainda acusam o sentimento da
medida. Ora, no verso-livre autêntico o metro deve estar de tal modo
esquecido que o alexandrino mais ortodoxo funcione dentro dele sem
virtude de verso medido. Como em "Mulheres" o alexandrino "Omeu
amor, porém, não tem bondade alguma", Só em 1921, com "A estrada",
"Meninos carvoeiros", "Noturno da Mosela" etc. fui conseguindo
libertar-me da força do hábito. Mas não sei se não ficou sempre uma
como saudade arepontar aqui e ali... Não me lembro de problemas
dentro da metrificação, que eu nãotivesse resolvido prontamente. No
entanto, os primeiros versos do poema "Gesso", que é em versos-livres,
me deram água pela barba durante anos. Originalmente me saíram
assim:
Aquela estatuazinha de gesso, quando me deram, era nova
E o gesso muito branco e as linhas muito puras
Mal sugeriam imagem de vida.
Não era possível manter aquele "ma deram", tão avesso ao gênio da
fala brasileira. Além disso, o verso soava pesado e desgracioso. (Op.
Cit. BANDEIRA, Itinerário de Pasárgada. 1996. p. 47/48)

Diante do exposto, conforme o poeta afirma em seu


Itinerário de Pasárgada, o verso livre foi uma conquista
difícil. O hábito do ritmo metrificado, da construção redonda,
foi corrigida e a nova forma foi conquistada lentamente.
Entretanto, ao longo de sua obra, o versilivrismo dominou
sua lírica e o poeta um porta-(Bandeira) das ideias
modernistas.
Em “Os Sapos”, (1918) (poema em que assume a
crítica ao Parnasianismo, repete um verso inteiro de Bilac)
abraça a postura lúcida de fazer um poema aparentemente
tradicional para criticar os tradicionais parnasianos. Lendo
em voz alta, percebemos que o poema é onomatopaico, isto é,
imita o coachar dos sapos: “Não foi!” – “Foi” – “Não foi!”. O
poeta critica a falta de criatividade da poesia parnasiana, que
aceitou fórmulas pré-estabelecidas. Todos os poetas
parnasianos cantavam no mesmo ritmo, aparecia muito em
jornais, chamavam a atenção do povo com sua retórica
erudita, sofisticada e conquistavam os leitores da época.
Na poética de Bandeira, os elementos predominantes
são as imagens e o ritmo. Esse poeta em estudo é o maestro
na harmonia de sons (sílabas tônicas, jogos sonoros de modo
em geral, rimas e outras coincidências de sons) e de pausas
(especialmente de fim de cada verso). Seu ritmo não apenas
confere beleza ao poema, mas também pode refletir o
conteúdo do texto. Leia o poema “Os Sinos” (p. 64) em voz
alta e procure perceber sua cadência:

Sino de Belém,
Sino da Paixão...

Sino de Belém,
Sino da Paixão...

Sino do Bonfim!...
Sino do Bonfim!...

Sino de Belém, pelos que inda vêm!


Sino de Belém bate bem-bem-bem.

Sino da Paixão, pelos que lá vão!


Sino da Paixão bate bão-bão-bão.

Sino do Bonfim, por quem chora assim...

Sino de Belém, que graça ele tem!


Sino de Belém bate bem-bem-bem.
Sino da paixão, - pela minha irmã!
Sino da Paixão, - pela minha mãe!

Sino do Bonfim, que vai ser de mim...

Sino de Belém, como soa bem!


Sino de Belém bate bem-bem-bem.

Sino da paixão... Por meu pai... _ Não! Não!...


Sino da Paixão bate bão-bão-bão.
...........................................
(Idem p. 65)

Quando lemos este poema em voz alta, o sentido das


palavras amplia-se, pois ouve-se também uma espécie de
música, um badalar de sinos: bem-bem-bem!. No final de
cada linha ou verso, fazemos uma espécie de pausa. Esta
parada se acentua pelos sons que se repetem: Belém /
Paixão / Belém / Paixão... Bonfim... / Bonfim..., expondo as
rimas externas ou as internas, como em Sino de Belém, Pelos
que ainda vêm! / Sinos de Belém bate bem-bem-bem. / Sino
da Paixão, pelos que lá vão! / Sino da paixão bate bão-bão-
bão.
As rimas externas apresentadas e os três primeiros
duetos sugerem que as primeiras batidas dos sinos são fortes,
mas o movimento rítmico é menor. Esses duetos são
formados por cinco sílabas métricas.
As rimas internas dos demais versos sugerem o
contínuo badalar dos sinos que, agora possuem um
movimento mais intenso. Daí os versos duetos ou não,
apresentarem dez sílabas métricas. Cinco sílabas
representando o primeiro som Belém..., e cinco, o segundo
som vem; e assim por diante: Paixão... / Vão e etc.
Desta maneira, neste poema, o poeta imita o triste
dobrar dos Sinos de sua Paixão, todos aqueles que dobraram
por seus entes queridos: por sua minha irmã, por sua mãe por
seu pai. E continua a sugerir os dobres dos sinos do Bonfim,
por ele, e ainda sino da paixão pelo seu irmão. O ritmo é
triste e desesperador quando o sino bate pelo pai do poeta.
Sobre esta morte Manuel Bandeira afirma:
A morte de meu pai e a minha residência no morro do
Curvelo, de 1920 a 1933, acabaram de amadurecer o
poeta que sou. Quando meu pai era vivo, a morte ou o que
quer que me pudesse acontecer não me preocupava,
porque sabia que pondo a minha mão na sua, nada
haveria que eu não tivesse coragem de enfrentar. Sem ele
eu me sentia definitivamente só. E era só, que teria de
enfrentar a pobreza e a morte.
(Op. Cit. BANDEIRA, Itinerário de Pasárgada. 1996. p.
60)

Neste poema, a forma é trabalhada no sentido do


aproveitamento tipográfico, os sinais de pontuação (ponto
final, vírgula, reticências e parênteses). Essa forma tem um
importante papel na construção do movimento de amplitude e
de contenção do ritmo e do sentido.
“Os Sinos”, poema publicado em 1927, traz o “Ritmo
Dissoluto” do Modernismo no aproveitamento do espaço, no
ritmo simples e popular.
O autor de “Vou-me embora pra Pasárgada” foi um
poeta que optou pelo verso livre, suas fontes de reflexão são,
no entanto o clássico Camões, as marcas simbolistas dos
portugueses Antônio Nobre, Cesário Verde, Eugênio de
Castro, e os poetas românticos brasileiros, especialmente,
Gonçalves Dias e os parnasianos Olavo Bilac, Raimundo
Correia e Alberto de Oliveira.
Neste vate, o cuidado formal é o caminho para o
despojamento e, de acordo com Antônio Cândido, é o que
talvez o faça ser visto como grande clássico da nossa poesia
contemporânea, porque como os clássicos, possui a virtude
de descrever diretamente os atos e os fatos sem os tornar
prosaicos (CANDIDO, 1993, p.4). 177
Gonçalves Dias foi o poeta romântico com quem
Bandeira aprendeu muitas lições que o ajudaram na conquista
do verso livre.
(...)um número fixo de sílabas com as suas pausas cria um
certo movimento rítmico, mas não é forçoso ficar no
mesmo metro para manter o ritmo. Quando atentei nisso,
senti-me verdadeiramente liberto da tirania métrica. A
lição está em Gonçalves Dias, no poema "Minha vida
emeus amores". O poeta vinha versejando em decassílabos
acentuados na sexta sílaba, ou na quarta e na oitava:
Outra vez que lá fui, que a vi, que a medo
Terna voz lhe escutei: — Sonhei contigo!
— Inefável prazer banhou meu peito,
Senti delícias; mas à sós comigo
Pensei — talvez! — e já não pude crê-la.
De súbito faz cair as pausas na quarta e na sétima,
aproximando o ritmo do decassílabo do ritmo do verso de
onze sílabas, que vai aparecer no quarto e quinto versos da
estrofe seguinte:
Ela tão meiga e tão cheia de encantos,
Ela tão nova, tão pura e tão bela...
Amar-me! — Eu que sou?
Meus olhos enxergam, enquanto duvida
Minh'alma sem crença, de força exaurida,
Já farta da vida,
Que amor não doirou.
O movimento rítmico de um verso pode sofrer a influência
do verso anterior ou do seguinte. (....)(Op. Cit.
BANDEIRA, Itinerário de Pasárgada. 1996. p. 48/49)

Também foi a partir de uma reflexão sobre métrica e


ritmo, no poema “Valsa” Casimiro de Abreu, que o poeta
177
MELLO E SOUZA, Gilda e Antônio Cândido. Introdução à Estrela
da Vida Inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
chega à solução rítmica de “Boi Morto”, do livro Opus 10 de
1952.

“Boi morto, boi descomedido.


Boi espantosamente, boi
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado...”

Leia o que diz Bandeira sobre estes versos:

(...) a "Valsa" de Casimiro de Abreu, poema escrito em


versos de duas sílabas, mas obedecendo ao ritmo de cinco
sílabas. Examine-se a última estrofe:
Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa...

O esdrúxulo "pálida", duas vezes empregado, levou o


poeta no primeiro caso a começar o verso seguinte por
vogal, e no segundo a usar o verso monossilábico "Rosa",
sem o que se quebraria o ritmo.
Atendendo a essas interrelações entre os versosde um
poema é que eu no poema "Boi morto",escrito em
octossílabos, quebrei a medida noterceiro verso da última
estrofe:
Boi morto, boi descomedido,
Boi espantosamente,
boi Morto, sem forma ou sentido
Ou significado...
É que o monossílabo “boi”, embora completando a
medida do segundo verso, ecoa, no entanto, arrastado
pelo enjambement, no verso seguinte, como se este fosse
em realidade “Boi” morto, sem forma ou sentido”. Nada
me seria mais fácil do que dar as oito sílabas ao terceiro
verso da estrofe, escrevendo “Morto, sem forma nem
sentido”. Preferi, porém, quebrar o verso, por amor de
umritmo um pouco mais util do que o
estritamenteestabelecido pelo número fixo de sílabas.

(Op. Cit. BANDEIRA, Itinerário de Pasárgada. 1996.


p.49/ 50)

Manuel Bandeira teve influências extraordinárias do


desenho, da pintura e da música. Foi intuitivo no poeta,
buscar no que escrevia, uma linha de frase como se fosse uma
boa linha de desenho. Cedo compreendi que o bom fraseado
não é o fraseado redondo, mas aquele em que cada palavra
tem a sua função precisa, de caráter intelectivo ou
puramente musical, e não serve senão a palavra cujos
fonemas fazem vidrar cada parcela da frase ou por
ressonâncias anteriores e posteriores (BANDEIRA, M. (1996)
p. 50)
Sobre a influência da música em sua vida, o poeta
acrescenta:
Não há nada no mundo de que eu goste mais
do que de música. Sinto que na música é que
conseguiria exprimir-me completamente. Tomar um
tema e trabalhá-lo em variações ou, como na forma
sonata, tomar dois temas e opô-los, fazê-los
lutarem, embolarem, ferirem-se e estraçalharem-se
e dar a vitória a um ou, ao contrário, apaziguá-los
num entendimento de repouso (...). Creio que não
pode haver maior delícia em matéria de Arte. (...).
(p.51) Nem sempre a melodia despertada nos
músicos pelos meus versos me parecia implícita no
texto. O que no entanto sempre me deixou perplexo
é que em certas melodias que, pelo movimento ou
pelos intervalos melódicos, pareciam distanciar-se
tanto do movimento e das inflexões orais, eu me
sentisse tão fielmente interpretado no sentimento
geral do poema. Assim em “Berimbau” de Jaime
Ovalle. O poema foi sentido e pensado em
andamento quase presto e Ovalle ouviu-me dizê-lo
dessa maneira. O andamento da música é
precisamente o contrário disso, e todavia a
adequação da música às palavras me parece
perfeita. Assim como certos poemas admitem
pluralidade de sentido ou de interpretações, como
que em qualquer texto literário há infinito número
de melodias implícitas. (...) Não tenho neste instante
elementos para fazer uma lista completa de todos
os meus poemas que foram musicados. Mas talvez
tenha havido da parte dos músicos, certa
preferência pelos poemas de fundo popular, como
“Berimbau” (Ovalle Mignone), “Trem de Ferro”
(musicado já umas quatro ou cinco vezes, e muito
bem por Vieira Brandão), “Cantiga” (Camargo
Guarniere) (...) Gosto de ser musicado, de ser
traduzido e... de ser fotografado.
(Op. Cit BANDEIRA, M. (1996) p. 71/72).

Diante do exposto, Manuel Bandeira gostava de ser


musicado, traduzido e fotografado. Sobre esse anseio, o
poeta explica que havia neles o desejo de se conhecer melhor,
“sair fora de mim para me olhar como puro objeto”:
Villa-Lobos foi o primeiro compositor a escrever música
para versos meus. Era nos tempos heroicos do modernismo e do
próprio Villa, que morava numa modestíssima casinha na Rua
Dídimo, masque noites inesquecíveis passamos ali. O poema
escolhido por Villa foi "Debussy". Eu o escrevera na doce ilusão
de estar transpondo para a poesia amaneira do autor de La
jeune filie aux cheveuxde lin (cito esta peça muito de caso
pensado, pois no meu verso repetido "Para cá, para lá..." havia
a intenção de reproduzir-lhe a linha melódica inicial). (...)
Assim como gosto de ser musicado, gosto de ser traduzido
(no fundo é quase a mesma coisa, pois não é?). Sentir-me bem
traduzido para outra língua, que delícia! Como gozei lendo a
tradução que o norte-americano Dudley Poor e fez de "Mozart
no céu!" Ficou melhor do que o original. O "fazendo piruetas
extraordinárias sobre um mirabolante cavalo branco" foi
transformado em "turning marvelous pirouettes on a
dazzlingwhite horse". Que força de expressão nesse "dazzling".
Em matéria de tradução o maior prazer que já tive foi ao
ler a tradução de "Boda espiritual" feita pelo grande Ungaretti:
fiquei feliz durante algumas semanas. (Op. Cit BANDEIRA,
M. (1996) p. 74).

Na verdade, pode ser observado na obra bandeiriana,


uma ânsia de buscar a imortalidade através da arte, uma vez
que a vida é fugaz e a dele, especialmente, parecia frágil,
tênue, marcada pela doença. Daí a necessidade de imortalizar
o instante, o prazer, o lirismo da vida e transportá-los para
seus versos “de angústia rouca”, “de tristeza esparsa”, que
caem “gota a gota, do coração”.
3. MODERNISMO

Foi por meio de Ribeiro Couto que o poeta entrou em


contato com a nova geração paulista e carioca. Em 1921,
Bandeira conheceu Mário de Andrade na casa de Olegário
Mariano, em Copacabana. Estavam presentes, entre outros,
Oswald de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Oswaldo
Orico e Ronaldo de Carvalho. Os dois, Manuel Bandeira e
Mário de Andrade, trocaram correspondências e essa relação
foi muito importante para romper as amarras da formação
intimista de Bandeira. Para surpresa de todos, Manuel
Bandeira aparece com o poema “Pensão Familiar”, publicado
na Estréia, a revista de vanguarda editada por Prudente de
Morais Neto e Sérgio Buarque de Holanda:

Um gatinho faz pipi


Com gestos de garçom de
Restaurant-Palace
Encobre cuidadosamente a
mijadinha.

O contato com os modernistas levou Bandeira a


revalorizar a cultura popular, voltar às origens e valorizar a
“língua brasileira” (a língua falada pelo povo nas ruas):
“Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil”.
Convidado a participar da Semana de Arte Moderna
de 1922, em São Paulo, Bandeira recusou. Não poderia
renegar o passado parnasiano no qual se criara. A todo
momento lhe ocorriam os versos dos velhos mestres
franceses, apesar de correr nas suas veias e na sua poesia os
ideais modernistas. Mas o grupo não desistiu e, na ausência,
Ronald de Carvalho programou “Os Sapos”, recitou para o
Teatro Municipal lotado. Imagine-se a surpresa daquele
auditório, habituado aos suaves poemas de Vicente de
Carvalho, quando Ronald começou a recitar o poema:

Enfunando os sapos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapoboi:
- “Meu pai foi à guerra!”
-“Não foi!” – “Foi!” – “Não foi”.
1918
(Idem p. 39/41)
A plateia berrava em coro, acompanhando o
desenrolar do poema: “Foi, foi não foi”.
Ao terminar, Ronald recebeu a mais estrondosa vaia
que o austero teatro já presenciara. Foi o que os antigos
chamavam: uma tremenda surriada. Quando soube do
acontecido, Bandeira riu gostosamente. E riria sempre que
conseguisse chocar o medíocre ambiente da arte oficial.
Esse poema mostra a ruptura de Manuel Bandeira
com as fórmulas parnasianas e simbolistas e sua adesão ao
Modernismo. “Os Sapos” ilustra bem o antipassadismo, o
antiparnasianismo dos poetas modernistas. Tratando dos
poetas parnasianos, Bandeira refere-se a todos eles como
sapos... quem sabe mesmo, o sapo-boi seja Bilac, cujo pai
realmente lutou no Paraguai.
Em “Os Sapos”, Bandeira satiriza a preocupação
formal, principal característica dos parnasianos e indica que,
enquanto os parnasianos fazem estardalhaço, eles, os
modernistas, trabalham silenciosamente, mal são ouvidos
pelo povo. Na terceira estrofe, o poeta critica “O sapo-
tanoeiro / Parnasiano aguado”. O adjetivo aguado no contexto
do poema significa sem graça e redundante. Aqui o poeta
refere-se a Olavo Bilac e cita versos inteiros do famoso
“Profissão de fé” do Parnasianismo. Para completar a crítica
mordaz, na Sexta estrofe Bandeira expõe a falta de vitalidade
da poesia parnasiana, que aceitou fórmulas preestabelecidas.
Com esse poema o autor fez o “sepultamento poético” da
tradição parnasiana.
De acordo com Alfredo Bosi, “Bandeira foi
naturalmente acolhido pelo grupo da Semana de Arte
Moderna como um irmão mais velho” (tinha 36 anos em
1922) e houve quem o chamasse de “O São João Batista do
movimento”. (BOSI, Alfredo. 1980, p. 408).178
Na verdade, a poesia de Manuel Bandeira serviu como
um batismo para o Modernismo que nascia. Por exemplo,
sua “Poética” batizou uma nova ideia modernista,
substituindo o “Não sabemos o que queremos” dos primeiros
tempos do Modernismo. Observe o poema:

Estou farto do lirismo comedido


Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no
dicionário
cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais


Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador


Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si

178
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo,
editora Cultrix, 1980.
(Idem p. 75)

“Poética” transmite um exemplo de metalinguagem,


de poesia sobre poesia, em que estão casados todos os
elementos da modernidade: o verso livre, o tom de manifesto
que se recusa ao lirismo comedido, bem comportado,
funcionário público – o lirismo metrificado, protocolar e
acadêmico, erudito e “purista” – e no lugar dele propõe
“todas as palavras, sobretudo os barbarismos universais /
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção /
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis...” É a nova
profissão de fé do Modernismo, em que a ordem é a busca da
liberdade de expressão, de criatividade, do novo.
Nesse afã antiacadêmico e antipassadista, a língua
literária sofre uma completa revisão. Abandona-se de vez o
apego à língua culta e vernácula, “democratiza-se” a
linguagem. Liberta-se o verso da exigência da métrica, da
miúda contagem de sílabas, da localização correta da tônica.
A poesia modernista somente quer saber do lirismo que
representa a libertação.

3.1 Modenismo e Vanguarda em Bandeira

O poema “Teresa” (BANDEIRA, M. (1996) p. 214) é


um paradigma dessa poesia libertária nascida no
experimentalismo vanguardista do modernista de Manuel
Bandeira:

A primeira vez que vi Teresa


Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo


Achei que os olhos eram muito mais velho que o resto do
corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o
resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada


Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das
águas
(BANDEIRA, M. (1996) p. 214) 179

O poema “Teresa” traduz o espírito vanguardista ao


exprimir uma jocosidade que encerra, ao mesmo tempo, a
marca do novo e da originalidade.
A novidade está na maneira diferente, nova mesmo,
de descrever uma mulher, uma musa (Teresa) de maneira nova
e marcada pela sigularização.
Singularização é o novo, a nova roupagem. De
acordo com Chklovski, em seu artigo “A arte como
procedimento”:

O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como


visão e não como reconhecimento; o procedimento da
arte é o procedimento da singularização dos objetos e
procedimento que consiste em obscurecer a forma,
aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O
ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve
ser prolongado; a arte é o meio de experimentar o devir
do objeto, o que é já “passado” não importa para a
arte. A vida da obra poética ( a obra de arte) se estende
da visão ao reconhecimento, do concreto ao abstrato ”.
( V. Chklovski , in. Formalistas Russos, p. 45) 180

179
BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. ed. Organizada pelo
autor. Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar S. A, 1996.
A originalidade reside na profundidade, na marca do
indefinível e no encantamento da descontrução do retrato da
mulher.
Na primeira visão, o eu lírico achou que a “Teresa”
(....) tinha pernas estúpidas (...) cara parecia uma perna. Na
segunda vista, (...) olhos eram muito mais velho que o resto do
corpo/ (Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que
o resto do corpo nascesse). Da terceira vez, o eu poético não
viu mais nada (...) o espírito de Deus voltou a se mover sobre
a face das águas. (Idem. 214)
Assim, o poeta desconstrói a imagem de “Teresa” e
para criar algo diferente, novo, singular, com um significado
original, utilizando o mesmo material que se fragmentou,
rompendo e recriando (do ser da Teresa), no sentido também
usado por Jacques Derrida (1973).
Derrida em suas obras, A escritura e diferença181 e
Gramatologia, 182 que são entendidas como como o marco
inicial da “Desconstrução” e que ele como uma “estratégia”
para a decomposição da Metafísica logocêntrica ocidental que
passa pela filosofia da linguagem.
Desconstruir, na acepção da filosofia de Derrida,
não significa, simplesmente, demolir, pôr abaixo, implodir
algo: ideias, conceitos, posições, princípios, objetivos, meios e
fins.

180
(Chklovski, V. in. EIKHENBAUM, Boris. Teoria da Literatura:
formalistas russos. Trad. A. M. Ribeiro. Porto Alegre: Globo, 1971et. al.
1971,p. 45)
181
Derrida, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz M.N.
da Silva. 3.ª ed., São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002.
182
Derrida, Jacques. Gramatologia. Trad. de Miriam Schnaiderman e
Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973.
Assim, uma leitura desconstrutora não seria a busca
do outro lado da moeda, não seria a negação pura e simples do
que se queria questionar, uma vez que essa estratégia conduz a
um mesmo universo, só que com sinal invertido.
Também, está presente a decomposição da imagem
romântica, idealizada por Castro Alves no poema “Adeus de
Teresa” 183 – musa, bela, apaixonante, assinalada por
inspirações e ações eróticas. Dessa forma, a imagem
romântica é desconstruída, passo a passo, de um olhar para
outro e se transforma numa imagem cheia de estranhamento e
nonada, nos moldes do utilizado por Guimarães Rosa, que
não é simplesmente, a aglutinação de (não+nada), é o desejo
de criar. A descontrução da imagem conduz a visão para
uma imagem do niih, condutor de um caos estranho e
provocador.
Também podemos observar que o poeta partindo dos
preceitos vanguardista, faz com que, a imagem de “Teresa”,
saia da visão retratada pelos “impressionistas que aspiravam
“reproduzir a variedade da vida, registrando a impressão óptica
momentânea” 184 (TORRE, (1974), p. 22) e embrenha-se na
originalidade dos expressionistas que “tendem a visualizar o
eterno, desprezando o mundo das aparências” (Idem, p.22).
Os expressionistas deixam de lado a atitude de passividade
dos impressionistas e estabelecem “ a expressão de uma
realidade espiritual” (Idem p. 22). O Impressionismo “ tende
para uma reprodução. Mais ou menos fiel, das sensações
ópticas provenientes da visão espetacular do universo”. ( Idem
p. 23).

183
CASTRO, Alves. Poesias completas. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.p.34
184
TORRE, Guillermo. História das literaturas de Vanguardas, vol. II,
Lisboa-Portugal, Presença, 1974, p.22.
O Expressionismo tende, de preferência, para o
ideológico, caracterizando-se por uma maior
independência face à natureza e à realidade. Toma em
conta não tanto o mundo exterior e a experiência
individual, como antes a imaginação e o sonho. É a
antítese entre o decorativo e o expressivo, entre a medida
apolínea e o frenesim dionisíaco, entre o classicismo e a
barbárie, entre latinismo e germanismo). (TORRE, 1974,
p. 23)

Nesse sentido, numa visão comparativa do


Impressionismo e o Expressionismo, o primeiro propunha-se a
refletir a verdade do ser, enquanto o segundo pretendia de
preferência captar a verdade da alma.
O poema “Teresa” possui também traços distintivos
do Cubismo, pois estão delineadas, ao longo do retrato de
“Teresa” esboçado pelo eu lírico, características do movimento
de Pablo Picasso 185 como o bidimiensionalismo,
interpenetração de planos e simultaneísmo da visão: a cara
parecia uma perna / (...) os olhos eram muito mais velho que
o resto do corpo / (Os olhos nasceram e ficaram dez anos
esperando que o resto do corpo nascesse) (...) Os céus se
misturaram com a terra. (Idem 214)
«O cubismo — escreveu Cassou — é um estilo de ruptura
intelectual, e as suas obras assumem o aspecto de uma
combinação de formas descontínuas. É por isso que se
aproximam da poesia moderna, que foge ao discurso, à
regularidade métrica, à pontuação, e que se manifesta
sob a forma de fragmentos ou instantâneos». Uma certa
discrepância, assinalada por Gaëtan Picon, entre o
«equilíbrio estático» dos quadros cubistas e o
«dinamismo» dos poemas de Apollinaire e outros, que se
185
Pablo Ruiz Picasso (Málaga, 25 de outubro de 1881 — Mougins, 8 de
abril de 1973), É conhecido como o co-fundador do cubismo- ao lado de
Georges Braque.
deixam arrebatar pela vertigem do Verbo, não tem o
significado que aquele autor lhe quer atribuir. A melhor
equivalência poética de certos quadros cubistas - sobretudo
os da primeira época ou analítica - encontramo-la ainda
em certos poemas a que o autor de Álcoois dava o nome de
«poemas-conversa», nos quais se misturam num mesmo
plano percepções diretas, rasgos de memória, troços de
diálogos ouvidos no café ou na rua, títulos de jornais;
poemas esses que equivalem às «collages». Mas esse
simultaneísmo só viria a tornar-se inteligível para muita
gente anos mais tarde, quando é transposto para o
romance. (TORRE, (1974),
p.101 )

O poema Teresa, sob a perspectiva do Cubismo realiza


uma transladação, uma transposição dos fatos, do retrato da
mulher, portanto “as formas de um mundo exterior, não como
se oferecem aos sentidos, mas antes como o espírito os capta;
de tal modo que o resultado — a obra — constituísse não um
reflexo mais ou menos subjetivo, mas sim uma equivalência
poética” (Idem, p.106). Assim, o texto é construído a partir das
chamadas «metáforas plásticas», que realizam uma transposição
diferente dos objectos do mundo real.
Como os cubistas, no poema de Manuel Bandeira, a
meta não é a invenção, mas a criação. “É o que nos diz —
entre outros — Pierre Reverdy, em Self--Defense (1919):
«Criar unia obra de arte que tenha vida 'independente, uma
realidade e uma finalidade próprias, afigura-se-me objectivo
mais elevado do que tentar qualquer interpretação fantasista 'da
vidareal.» ( Idem, p.107)
Manuel Bandeira compartilha dos preceitos poéticos
defensores da concepção de que a finalidade do poeta é criar uma
obra que viva fora dele, com vida própria, e que se situe num céu
especial, como uma ilha do horizonte. “ Birot: «Para fazer uma
obra, é preciso criar, e não copiar. Quanto a nós, procuramos a
verdade na realidade pensada, e não na realidade aparente.» As
obras de arte não devem ser uma representação objectiva da
natureza, mas sim uma transformação simultânea objectiva e
subjectiva da mesma. (Idem, p.107). Os cubistas eram a favor de
que a arte não devereia ser explicada ou pautada em ideais:
«... Nada de explicações. Todo o propósito de narrativa ou
explicação, que faz intervir um elemento de raciocínio, tem sem-
pre como resultado encadear a poesia à terra.» (...) «Nada
de ideias. Nada de desenvolvimento. Nada de lógica aparente.
Nada de imagens comprováveis pela plástica. É necessário
mergulhar o leitor no seu eu profundo. Dar ao leitor imagens
hiper- realistas.» ( Idem, p.112).

Essas imagens hiper-realistas são as mesmas a que


anos depois se deu o nome de imagens surrealistas, e que
eram no cubismo imagens desdobradas ou metáforas levadas a
um extremo de irrealidade. (cf. TORRE, p.112/113). Assim, o
ilogismo e o anti-intelectuamo são as características mais
acentuadas da poesia cubista, mas são também as mais
duradouras, pois são mantidas até aos nossos dias e adoptadas
por outras estéticas.

“Epstón assinalava já a importância dessa «recusa da


lógica», estabelecendo a diferença entre o «pensamento-frase»,
racional, lógico, concreto, e o «pensamento-associação», que paira
entre o consciente e o inconsciente; afirmava, de forma
aparentemente paradoxal, que este último é o que se encontra a
um nível mais profundo da consciência, sendo além disso o que pre-
valece na poesia cubista” e ainda , «incoerência no
encadeamento de sons e acordes, palavras e imagens, linhas e
cores». «Incoerência — acrescentava ainda — que naturalmente
só o é para aqueles ouvidos e olhares que não estão ainda
familiarizados com a nova maneira, e que recebem portanto um
choque desorientador.» e ainda o «continuum» lógico tradicional
desaparece. Surge-nos agora o seu contrário, o império do
descontínuo, que é tão evidente nos quadros como nos poemas do
cubismo.(TORRE, (1974) p.114/115)

O poema “Teresa”, de Bandeira inicia


desconstruindo a imagem da musa romântica de Castro Alves
desde os primeiros versos e deixa já de lado o tema
tradicionalmente do amor e do erotismo e o diálogo entre o
eu e o tu apaixonados. Assim como os cubistas, o poeta, ao
descontruir sua “Teresa”, não utiliza mais o sentimento como
expressão individual, única, mas apenas o sentimentalismo
impessoal ou plural vertido de um mas um riso que não da
ironia amarga, nem tão-pouco do otimismo. É um riso que
deriva da visão instantânea e simultaneista do mundo. Desse
forma, o eu poético assume uma jovialidade, uma alacriade,
um anti-sentimentalismo um (...) “ intento de acabar com a
tirania dos sentimentos, com as “ânsias do coração”, com as
“aspirações da alma”; em suma, esquecer esse gênero de
encantos antiquados e monótonos”.(Idem. p.125)
O poema “Teresa” ao negar a realidade (a musa
romântica “Teresa” do poema de Castro Alves), que seria
imitação de uma realidade sem reprodução, cria uma realidade
única. Portanto, não faz uma imitação nos moldes platônicos,
(Mundo das idéias). Cria a partir do nada, do nonada e produz
o momento do Fiat poético, no instante em que a palavra sai
do reino cheio de mistério e silêncio do dicionário e cria raízes
na fala, nasce para o mundo, passa a existir e ganha um nome.
Assim, o artista nega a concepção clássica da imitação
e faz um retrato, de “Teresa”, retorcido, avesso, barroco no
sentido do desalinho, adversidade imagética, da imitação
retorcida, o que nos faz lembrar uma pintura de Velásquez, 186
com suas figuras de meninas e anãs de Las Meninas (1656) de
pernas estúpidas e caras parecidas com as pernas.

Velásquez - Las Meninas (1656)

Podemos afirmar ainda que, nas três estrofes, o retrato


de “Teresa” tem analogia com algumas figuras de mulheres
pintadas por expressionistas, cubistas e susseralista.
Na primeira estrofe: A primeira vez que vi Teresa/Achei
que ela tinha pernas estúpidas/Achei também que a cara
parecia uma perna, as imagens tem analogias com figuras ou
ideias de quadros expressionistas como “Puberdade”,
(1894/95), Edvard Munch187 também a tela “Self-Portrait
with Black Vase and Spread Finger” “Auto-retrato com vaso
186
Diego Rodríguez de Silva y Velázquez (Sevilha, 6 de junho de 1599
— Madrid, 6 de agosto de 1660. Era um artista individualista do Barroco
contemporâneo, importante como um retratista.
preto e dedos abertos” (1911), entre outras, do austríaco Egon
Schile, 188 nas quais o artista faz um retrato de si mesmo.

Puberdade”, (1894/95)- Edvard Munch

187
Edvard Munch (Løten, 12 de Dezembro de 1863 — 23 de Janeiro de
1944) foi um pintor norueguês, um dos precursores do impressionismo e
expressionismo alemão.
188
Egon Schiele (Tulln an der Donau, 12 de Junho de 1890 — Viena, 31
de Outubro de 1918) pintor austríaco ligado ao movimento expressionista.
Self-Portrait with Black Vase and Spread Finger(1911)
Egon Schile
Também “A boba”, (1915-16) e “A estudante russa”,
( 1917) de Anita Malfatti 189 e o “Nu cubista” (1927) aquarela
de Isamael Nery, 190 têm imagens analógicas.

189
Anita Catarina Malfatti (São Paulo, 2 de dezembro de 1889 — São
Paulo, 6 de novembro de 1964) pintora, desenhista, gravadora, ilustradora
e professora ítalo-brasileira.
190
Ismael Nery (Belém, 9 de outubro de 1900 - Rio de Janeiro, 6 de abril
de 1934) pintor, desenhista, arquiteto, filósofo e poeta brasileiro de
influência surrealista. Sua obra icônica é Autorretrato, 1927 (Autorretrato
Rio/Paris).
191
Tarsila do Amaral (1928)

A boba”, (1915-16)- Anita Malfatti

191
https://www.bbc.com/portuguese/geral-47808327
A estudante russa, ( 1917) de Anita
Malfatti

Nu cubista (1927) - Isamael Nery,


As imagens expressas na segunda estrofe - Quando vi Teresa
de novo/ Achei que os olhos eram muito mais velho que o
resto do corpo/ (Os olhos nasceram e ficaram dez anos
esperando que o resto do corpo nascesse) – possuem
similaridade com as pinturas de Pablo Picasso: “Les
Demoiselles d'Avignon” (1907) “Mulher chorando” (1937) e
“Mulher sentada” (Marie-Thérèse Walter) (1937).

“Les Demoiselles d'Avignon” (1907) - Pablo Picasso


“Mulher sentada” (Marie-Thérèse Walter) (1937)- Pablo Picasso
Na terceira estrofe - Da terceira vez não vi mais
nada/ Os céus se misturaram com a terra/ E o espírito de Deus
voltou a se mover sobre a face das águas - o verbo poético
acionado e o mundo se fez em criação de imagens (uma
realidade onírica) nos moldes dos quadros de Salvador Dalli: 192
“Galacidalacidesoxyribonucleicacid” (1963), “Galetéia de
Esferas”, (1952), “Aparição de um rosto de uma compota de
fruta numa praia”(1938), “O Toureiro Alucinógeno” ,(1968-
70) e “Concílio Ecumênico” (1960).

192
Salvador Dalí i Domènech, 1º Marquês de Dalí de Púbol (Figueres, 11
de maio de 1904 — Figueres, 23 de janeiro de 1989) pintor espanhol,
conhecido pelo seu trabalho surrealista.
“Galacidalacidesoxyribonucleicacid” (1963)- Salvador Dalli

“Galetéia de Esferas”, (1952) - Salvador Dalli


“Aparição de um rosto de uma compota de fruta numa praia”(1938)
- Salvador Dalli

“O Toureiro Alucinógeno” ,(1968-70) - Salvador Dalli


(El concilio ecuménico) “Concílio Ecumênico” (1960)- Salvador
Dalli

Diante do exposto, o poema está aberta para um


leque de possibilidades de leituras como todo objeto artístico,
que não se esgota numa interpretação, mas permanece no
ser e no tempo do poema, na própria construção, que é em
si, um mundo de possibilidade. A arte não expressa tipos,
conceitos ou emoções, significados presentes em sua
consciência, ela existe e basta. E “Teresa” apenas é uma
obra de arte.

4. CARACTERÍSTICAS DAS OBRAS

São três as fases da poesia bandeiriana. Nessas etapas,


percebe-se uma evolução. A sua poesia são do seio do
Parnasianismo e Simbolismo e se entrosa dentro do
Modernismo de forma absoluta.

4. 1. Primeira fase: Pré-Modernismo

A primeira fase da poesia de Bandeira é constituída


pelos seus três primeiros livros: A Cinza das horas (1917),
Carnaval (1919) e Ritmo Dissoluto (1924).
Essa fase caracteriza-se pela influência do
decandentismos póssimbolista francês, da poesia
crepuscular da virada do século, e do lirismo saudosista e
melancólico do poeta português Antônio Nobre.

4. 1. 1. A Cinza das horas

A Cinza das horas apresenta 50 poemas com métrica


e rimas tradicionais seguindo a moda parnasiana, em que o
poeta extravasa seu lirismo sentimental na tematização da
melancolia, do tédio resultante do tempo que escoa e da
morte. “Segundo o próprio título, tão admiravelmente
escolhido, arranca das horas que se foram o perfume, que é,
como agora, sombra rediviva e alongada das coisas que
passam”(BANDEIRA, M. (1996) p. 116). É o que afirma
João Ribeiro na nota preliminar da obra.
Os textos de A Cinza das horas apresentam a essência
da lírica do poeta menor, impregnada de delírio que o poético
possui e que conduz o ser a uma viagem ao mundo mágico
das palavras, da música e das impressões de quem vive cada
minuto como se fosse o último, de quem produz cada poema
como se fosse o último e de quem precisa desse instante para
se imortalizar. A obra é composta de poesias intimistas, com
marcas de quem verdadeiramente faz “versos como quem
morre”.
Para Manuel Bandeira, as horas passam urgentes e
ardem como fogo que consomem a vida, deixando como
restos imortais cinzas - marcas desse fogo/vida.
Esse livro já apresenta algumas novidades
expressivas, como o tom irônico e a incorporação do
cotidiano. São exemplos; “Desencanto” (Idem p. 15) – já
analisado – o “Poemeto Irônico” (Idem p. 25) e “Poemeto
erótico” (Idem p. 34).

4. 1. 2. Carnaval

Segundo comentário do próprio autor “é um livro sem


unidade”. Prende-se ainda ao Parnasianismo e ao
Simbolismo, mas começa a nítida trajetória da ruptura com
as estéticas tradicionais.
Em Carnaval, Bandeira procura viver intensamente o
poético, mostra-se um libertino, livre de qualquer moral,
como afirma em “O descante de Arlequim”: “Eu vagabundo
sem idade / Contra a moral e contra os códigos, / Dar-te-ei
entre os meus braços pródigos / Um momento de eternidade
(...)” (Idem p. 49). Bandeira carnavaliza as normas poéticas e
morais, satiriza os excessos parnasianos, ridicularizados no
famoso poema “Os Sapos” (Idem p. 39). A partir desse
“sucesso”, Manuel Bandeira começa a se distanciar da
atmosfera etérea do Simbolismo decandentista e a procurar
uma maior identificação como a vida frenética, em sua
dionisíaca e paradoxal objetividade, transgredindo as normas
morais em poemas como “Bacanal”, abaixo citado e
“Vulgívaga” (Idem p. 42).
Essa transgressão moral é ampliada para as
transgressões do Português lusitano e a redescoberta de uma
linguagem brasileira como defendiam os modernistas da
geração de 22 e conforme o poeta afirmou, posteriormente,
em “Libertinagem”: “A vida não me chegava pelos jornais
nem pelos livros / Vinha da boca do povo na língua errada do
povo / Língua certa do povo / Por que ele que fala gostoso o
Português do Brasil / Ao passo que nós / O que fazemos / É
macaquear / A sintaxe lusíada” (Idem p. 81).
A poesia de Manuel Bandeira, a partir de Carnaval,
está livre do modismo, podendo o mesmo aplicar-lhe as
palavras que Roland Barthes emprega sobre Sade: “Estamos
começando a perceber que as transgressões da linguagem
possuem um poder ofensivo, pelo menos tão forte quanto o
das transgressões morais, e que a poesia é a própria
linguagem dessas transgressões e, desta maneira, sempre
revolucionará.”(BARTHES, R. (1977) p. 40). 193 O poeta,
nesta fase, pronuncia-se contra a palavra santa, pura,
convencional e abre o livro com o poema “Bacanal”,
dizendo:
Quero beber! Cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco...
Evoé Baco!

Lá se me parte a alma levada


No torvelim da mascarada
A gargalhar em duodo assomo...
Evoé Momo!

Lacem-na toda, multicores,


193
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução:
Isabel Gonçalves, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977.
As serpentinas dos amores,
cobras de lívidos venenos...
Evoé Vênus
......................................
(Idem p. 38)

Neste poema, o eu lírico devaneia nas “serpentinas


dos amores”, nos carnavais, nos prazeres dos vinhos e da
carne, nas orgias dionisíacas, nos desejos, nas prostitutas, nos
gozos dos sentidos, nas volúpias que dão sentido à existência.
Em “Vulgívaga”, Bandeira cria um eu lírico libertino,
uma vagabunda, uma prostituta, uma manteúda, que se
dis(puta) nos salões e é de todos: “Fui de um... Fui de outro...
Este era médico ... / Um, poeta... Outro, nem sei mais! / Tive
em meu leito enciclopédico / Todas as artes liberais. (...) Se
bate, então como estremeço! / Oh, a volúpia da pancada / (...)
Não posso crer que se conceba / Do amor senão o gozo
físico! / O meu amante morreu bêbado, / O meu marido
morreu tísico!” (Idem p. 42-3). Nestes versos, o erotismo
aparece voltado para os apelos do corpo, do instinto e do
desejo de viver plenamente o prazer carnal. Seguindo essa
mesma linha “A Dama Branca” (Idem p. 50) também é uma
vulgívaga, que se avilta, que se entrega ao amor libidinoso de
todos os homens, até dos tísicos, das amantes e dos meninos.
O erotismo e a ironia se cruzam; e a melancolia, tão
destacada nos primeiros poemas, agora é substituída por
alegria e encanto do gozo lascivo.

4. 1. 3. O Ritmo dissoluto

O Ritmo Dissoluto é de 1924, quando Bandeira


começa a explorar mais sistematicamente a simplicidade
popular e um certo prosaísmo. O próprio poeta via esse livro
como transição entre os dois momentos de sua poesia. De
fato, a partir dessa obra começam a ficar mais frequentes os
traços que caracterizavam sua obra: o cotidiano expresso
numa linguagem simples, acessível e o emprego do verso
livre. São exemplos “Os sinos” (p. 64) e “Noite Morta” (p.
70). Observe:

Noite Morta
Junto ao poste de iluminação
Os sapos engolem mosquitos.

Ninguém passa na estrada.


Nem um bêbado.
No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras

Sombras de todos os que passaram.


Os que ainda vivem e os que já morreram.

O córrego chora.
A voz da noite...

(Não desta noite, mas de outra maior.)


(Idem p. 70)

Neste poema, o eu lírico testemunha uma atmosfera


de tristeza, de uma “noite morta”. “Os sapos engolem os
mosquitos junto do poste de iluminação”, tudo parece
normal, mas esta noite parece ser mais triste do que as
demais: “Ninguém passa na estrada / Nem um bêbado”.
Somente a “procissão de sombras” passa.
Com uma linguagem simples e direta, já no primeiro e
pequeno verso, o eu poético resume o que vê: uma “noite
morta”. A descrição continua com a mesma simplicidade. O
primeiro verso da terceira estrofe é longo, sugerindo a longa
procissão de sombras de todos “os que passaram”, vivos e
mortos. O último verso aparece entre parênteses como para
chamar a atenção para o duplo sentido do verso: (Não desta
noite, mas de outra maior). A grande noite é, principalmente,
a morte.

4. 2. A Segunda fase: Modernismo

É a fase mais pronunciadamente modernista.


Encontra-se dois livros que a compõem todas as técnicas de
Modernismo, como o verso livre, a adoção de técnicas, como
as palavras em liberdade (de origem futurista), a exploração
do inconsciente, a fusão de palavras, formas e tempo
(oriundas do Surrealismo), a colagem e fragmentação da
realidade (originárias do Cubismo), a incorporação da
paródia, do poema-piada, do humor, da ironia, a exploração
da linguagem popular do prosaísmo ligado ao cotidiano.
Todas essas tendências vão ao encontro do grito de liberdade
emitido pelos poemas da primeira fase modernista como
Oswald de Andrade do movimento Pau-Brasil e Mário de
Andrade com a obra Paulicéia Desvairada.

4. 2. 1. Libertinagem

Libertinagem (1930) marca a ruptura definitiva de


Manuel Bandeira com os modelos passadistas. Devemos
lembrar, porém, que Alfredo Bosi afirma que:

Se passarmos da poética reflexiva à gênese


da sua obra, veremos que a presença do biográfico
é ainda poderosa mesmo nos livros de inspiração
moderna, como Libertinagem, núcleo daquele seu
não-me-importismo irônico, fisionomia tão cara aos
leitores jovens desde os anos 30. O adolescente mal
curado da tuberculose persiste no adulto solitário
que olha longe o carnaval da vida e de tudo faz
matéria para ritmos livres do seu obrigado
distanciamento. (BOSI, A. (1980) p. 411). 194
Sobre Libertinagem, Alfredo Bosi declara:

O livro oscila entre um fortíssimo anseio da


liberdade vital e estética (“Na boca”, vou-me
embora pra Pasárgada, “Poética”) e a
interiorização cada vez mais profunda dos vultos
familiares (“Profundamente”, “Irene no Céu”,
“Poema de Finados”, “O Anjo da Guarda”) e das
imagens brasileiras cujo halo mítico Bandeira
deverá, em parte, ao convívio intelectual com Mário
de Andrade e Gilberto Freyre (“Mangue”,
“Evocação do Recife, “Lenda Brasileira”,
“Cunhatã”). (Op. Cit. BOSI, A. (1980) p. 411).

“Vou-me embora pra Pasárgada” é um dos poemas


mais conhecidos da obra de Bandeira. Pasárgada representa
um lugar de luxúria, liberdade sexual, ausência de concepção.
Na verdade, uma mistura de liberdade com libertinagem.
Observe o poema:

Vou-me embora pra Pasárgada


Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero

194
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo,
editora Cultrix, 1980.
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada


Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que a Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
.......................................

E quando eu estiver mais triste


Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei –
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
(Idem p. 88/89)

Em Itinerário de Pasárgada o poeta explica que:

Esse nome de Pasárgada, que significa


“campo dos persas” ou “tesouro dos persas”,
suscitou na minha imaginação uma paisagem
fabulosa, um país de delicias (...) A primeira vez que
eu vi essa palavra foi aos dezesseis anos, num autor
grego. Mais de vinte aos depois, quando em morava
só na Rua do Curvelo (Rio de Janeiro), num
momento de fundo desânimo, da mais aguda
sensação de tudo o que eu não tinha feito na minha
vida por motivo de doença, saltou-me de súbdito do
subconsciente esse grito estapafúrdio: Vou-me
embora pra Pasárgada. Senti na redondilha a
primeira célula de um poema, e tentei realizá-lo,
mas fracassei (...) alguns anos depois, em idênticas
circunstâncias de desalento e tédio, me ocorreu o
mesmo desabafo da vida besta. Dessa vez o poema
saiu sem esforço como se já tivesse dentro de min.
gosto deste poema porque vejo nele, sem esforço,
toda a minha vida; e também porque parece que
nele soube transmitir a tantas pessoas a visão, a
promessa da minha adolescênciaessa Pasárgada
onde podemos viver pelo sonho e que a vida
madrasta não nos quis dar. Não sou arquiteto, como
meu pai desejava, mas reconstituí e “não como
forma imperfeita neste mundo de aparências”, uma
cidade ilustre, que hoje não é mais a Pasárgada de
Ciro, e sim a minha Pasárgada. (BANDEIRA, M.
(1996) p. 80).

Em “Vou-me embora pra Pasárgada” há uma


oposição entre um aqui e um lá, o tempo em um outro
período. Isso indica que Pasárgada, na verdade, cidade
lendária da antiga Pérsia é um outro espaço e uma outra
estação. As figuras mostram que seu tempo é similar ao da
infância estão nos versos: “E como farei ginástica / andarei
de bicicleta / montarei em burro brabo / subirei no pausebo /
Tomarei banhos de mar!”
Aqui o eu lírico se sente infeliz. Somente em
Pasárgada pode fazer o que quer, ser feliz, ter prazer, viver
plenamente. Essa busca representa uma fuga no espaço;
quando diz, por exemplo, “aqui não sou feliz” e quando fala
do triste, acontece ao mesmo tempo uma evasão espacial e
temporal. Essa postura lembra a fuga do tempo e do espaço
dos românticos. Pasárgada é o lugar ideal, um lugar e um
tempo imaginário para onde o poeta vai quando o aqui e o
agora lhe pesarem muito. O “aqui” representa submissão, o
“lá” a autonomia, o lugar de plena realização da conduta
autônoma.
Quem não quer ser amigo do rei? Ter amizade com
pessoas de influência facilita as coisas, e para o poeta essa
amizade traria todas as vantagens possíveis e imagináveis, já
que Bandeira foi um rapaz muito doente e não pôde gozar a
vida como desejou. Por meio da poesia, porém, ele cria um
mundo mágico, a sua Pasárgada, onde todos os desejos se
transformam em realidade.
Outra característica da poesia de Bandeira, presente
nessa obra, é a sensibilidade com que capta aspectos poéticos
da vida cotidiana. Nestes flagrantes da vida diária não falta
nem mesmo a percepção de sérios problemas sociais, como
da pobreza, da fome e do racismo. O poema “Irene no Céu”
exemplifica o racismo:

Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:


- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
(p. 87)

A primeira estrofe apresenta-se escrita em verso e sem


elementos de conexão característica da prosa. A Segunda
apresenta a sequência e a pontuação de um texto em prosa.
Esta mistura de verso e prosa é uma inovação do
modernismo, como ilustra a presença do diálogo.
Nesse poema, Manuel Bandeira procura enfocar os
afrodescendentes, socialmente marginalizado. Irene é preta, é
boa e está sempre de bom humor. Esta imagem realça o
social e lembra que se acostumou com essa situação.
Chegando ao céu, Irene comporta-se como tal, porém São
Pedro a trata com igualdade.

4. 2. 2. Estrela da manhã

Estrela da Manhã é de 1936, quando Manuel


Bandeira contava cinquenta anos de idade. Sem encontrar
editor, saiu em papel doado e impressão custeada por
subscritos. Só foi possível a tiragem de cinquenta
exemplares. Alguns músicos interessaram-se por seus textos,
como Jaime Ovalle, Mignone, Vieira Brandão, entre outros.
Em 1945, o poeta compôs as letras para uma série de
canções, a pedido do maestro Villa-Lobos, que queria
composições originalmente brasileiras para ser cantadas em
ocasiões festivas. Sobre o prazer de ver sua poesia musicada
Bandeira escreveu:

Sim, gosto de ser musicado, de ser traduzido


e... de ser fotografado. Criancice? Deus me
conserve minhas criancices! Talvez neste gosto,
como nos outros dois, o que há seja o desejo de me
conhecer melhor, sair fora de mim para me olhar
como puro objeto. (BANDEIRA, M. (1996) p. 74).

Além da musicalidade, Libertinagem e Estrela da


manhã consolidam os arquétipos da poesia de Bandeira: a
ternura nostálgica da infância, a convivência diária com a
morte e o profundo erotismo. Esse erotismo é caracterizado
pela expressão corporal e sexual. Observe o poema “Eu quero
a estrela da manhã...” (Idem p. 92).

Eu quero a estrela da manhã


Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã

Ela desapareceu ia nua


Desapareceu com quem?
Procurem por toda parte
......................................

Três dias e três noites


Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário

Virgem malsexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos

Pecai com os fuzileiros navais


Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e com os troianos
Com o leproso de Pouso Alto
Depois comigo
..........................................
(Idem p. 92)
Neste poema há dois aspectos a serem
enfocados. O primeiro é o fato de pedir a “estrela da manhã”,
mulher, sedução, pecadora, prostituta, que peque com todos.
Para enfatizar o pedido, o poeta usa a figura anáfora para
sugerir que ela constantemente peque, e numa gradação, que
se inicia crescente diz “pecai” com os malandros, com os
sargentos, com os fuzileiros, com o leproso de Pouso Alto –
mas também com ele, o poeta, que se arrasta aos seus pés.
Como o amante (vassalo) das cantigas de amor, o eu
lírico é marcado por absoluta humildade, aflito, apaixonado,
sofrido: “Digam que sou um homem sem orgulho / um
homem que aceita tudo”. O verso “Depois comigo” que
introduz a sétima estrofe, também assinala uma postura de
absoluta humildade.
Essa humildade é um aspecto fundamental na obra de
Bandeira. Seus textos transmitem uma ternura e um indizível
lirismo. Observe o poema “Momento Num Café”:

Quando o enterro passou


Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam os mortos distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado


Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade

Que a vida é traição


E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.
(Idem p. 99)
4. 3. Terceira fase: Pós-Modernismo
A partir da Lira dos Cinquenta Anos (1940), quando
se candidata à Academia Brasileira de Letras, reconcilia-se
com a tradição, retornando às formas poéticas que vêm desde
a Idade Média, sem, contudo abandonar experiência de
vanguarda.
Do ponto de vista temático, prossegue a linha
confessional, em que o poeta soube, como poucos,
transformar em experiência universal.
Empregando uma rigorosa capacidade de síntese,
conseguiu, com talento cada vez mais depurado, reduzir o
essencial da vida a uma visão norteada pela simplicidade em
que o sublime está contido.

CONCLUSÃO

A obra de Bandeira abrange um período de quase


cinquenta anos. Esse longo período de fertilidade literária
incorpora à sua poesia a herança simbolista do fim do século
passado, ligando às experiências da Vanguarda concretista.
Uma característica marcante de sua poesia é a extrema
musicalidade de seus versos. Outra marca também
característica é o fato de que seus poemas têm forte lastro
subjetivo, autobiográfico. Assim, várias experiências vividas
pelo poeta são documentadas em sua obra, o que dá a certos
poemas um tom confessional e íntimo.
Bandeira tem, ainda, a extrema argúcia de captar no
cotidiano o concreto da vida brasileira. Além desse lado, sua
poesia tem momentos de voos fantásticos – no espaço da
imaginação - lugar onde a obra de arte habita e a realidade
aparece deformada, envolta em simbolismos e metáforas.
Finalizando o estudo, deve ser dito ainda que,
Manuel Bandeira - o “São João Batista do Modernismo” -
muito embora não tenha participado da Semana de Arte
Moderna, viveu, junto com os organizadores dela, todo clima
efervescente do movimento modernista, participou da
demolição dos princípios parnasianos e teve importante
destaque na consolidação do Modernismo.

VIII. A POESIA DE CECÍLIA MEIRELES

“E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:


deixa seu ritmo por onde passa.”
(Cecília Meireles)

“Soltam-se os meus dedos tristes,


dos sonhos claros que invento.
Nem aquilo que imagino
já me traz contentamento.”
(Cecília Meireles)

“Sei que canto. E a canção é tudo.


Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada” (Cecília Meireles)

“Sou moradora das areias,


de altas espumas: os navios
passam pelas minhas janelas
................................................
E até sem barco navega
para que o mar foi fadada.

Deus te proteja, Cecília,


que tudo é mar - e mais nada.”
(Cecília Meireles)

INTRODUÇÃO

A linguagem poética é um processo de seleção,


preparo e busca da polissemia vocabular. A poesia nasce do
amadurecimento das ideias, porque não é fruto da simples
inspiração.
Cecília Meireles se embrenha senhora de si, nas
verdeas da arte poética, no reino sagrado das palavras e
descobre seus mistérios, seus sentidos e sua pluralidade. A
artista desvela com habilidade, os segredos da linguagem e,
como operadora da língua, experimenta os atos de uma
transformação alquímica, resultado de sua imperiosa sensível
criatividade e visão contemplativa da vida.
A poetisa usa os cinco sentidos e, através de
sinestesia, expressa o mundo. Este artifício é realizado
através de um jogo de palavras, armadilhas linguísticas que
elevam a arte ceciliana à atmosfera de transcendência.
Neste trabalho, pretende-se trazer algumas reflexões
sobre o espírito poético que envolve os textos dessa artista da
palavra. Por meio de algumas análises e comentários sobre as
marcas estilísticas e temáticas da escritora, abrimos as portas
para o desvelamento desse espaço alquímico, que tem o
poder de transferir aos leitores e aos observadores, o prazer
de contemplar a vida e a arte poética.

1. A POESIA DA SEGUNDA GERAÇÃO


MODERNISTA

Os poetas que aparecem na década de 30 já semeavam


num campo preparado pela geração de 22. Esta rompera com
o academicismo e renovara a linguagem e o estilo,
incorporara o verso livre, o prosaico e o cotidiano à poesia. A
geração de 30, despreocupada com as questões imediatas de
22 (o nacionalismo, o folclore, a destruição dos esquemas do
passado, etc.), voltava-se para as questões universais do
homem: “o desconcerto do mundo” e os problemas da
sociedade capitalista. É o que se dá, por exemplo, na poesia
de Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e Jorge de
Lima. Em Vinícius de Morais e Cecília Meireles, a temática
universalizante também estará presente, embora suplantada
por uma poesia personalista. Por outro lado, alguns dos mais
importantes poetas de 30, entre eles Murilo Mendes, Jorge de
Lima e Cecília Meireles, incorporariam a religiosidade e o
misticismo em seus poemas.
Literariamente, o período de 1930/45 corresponde a
uma reavalização do passado, com o “Neorromantismo” e o
“Neossimbolismo”. O seu caráter construtivo tem uma face
dupla: do ponto de vista estrutural, caracteriza-se por uma
revalorização de determinadas formas tradicionais, como o
soneto, e, ainda, por uma atenuação do vanguardismo dos
primeiros modernistas, conciliando a combatividade de sua
linguagem com a necessidade de polissemia, de riqueza de
significados inerentes ao texto literário. Do ponto de vista dos
conteúdos, dos significados, a preocupação nacionalista foi
uma das tônicas dos representantes da Semana de Arte
Moderna.
A geração de 30 aprofundou-se, alastrou-se e adquiriu
novo rigor, na medida em que o Brasil passou a ser visto não
“em si”, mas no contexto universal do sistema capitalista de
que faz parte.
Finalmente, é preciso observar que a geração de 30
não processou uma mudança repentina e tampouco limita-se
àquele período. Os poetas de 22, agora mais amadurecidos,
continuariam em plena atividade, paralelamente aos de 30, e
alguns desses continuariam produzindo e se renovando até
nossos dias.

1. 1. Contexto Histórico

Esse período literário surge num conturbado momento


histórico: no plano internacional, vive-se a depressão
econômica, o avanço do nazifacismo e a Segunda Guerra
Mundial; no plano interno, dá-se a ascensão de Getúlio
Vargas e a consolidação de seu poder com a ditadura do
Estado Novo.
Em 1945, com o final da Segunda Guerra, as
explosões atômicas, a criação da ONU, no plano nacional e a
derrubada de Getúlio Vargas. Abre-se um novo período na
história literária do Brasil. As pesquisas estéticas e o
universo temático se ampliam; acompanhando o processo
dos novos tempos, os artistas apresentam-se preocupados
com o destino dos homens, com o estar no mundo.

1. 2. Contexto Cultural

A cultura no Brasil de 30 revela grande


amadurecimento. Cria-se o Ministério da Educação e da
Saúde, criam-se faculdades de Ciências e Letras, escolas
públicas e particulares. A educadora Cecília Meireles
trabalha ativamente nessa reforma educacional: dirige, entre
1930/34, no Diário de Notícia, do Rio de Janeiro, uma sessão
dedicada a assuntos de ensino e organiza uma biblioteca
infantil especializada.
É nesse momento que a literatura, depois de ter
assimilado as propostas do Modernismo, produz algumas das
obras mais significativas e a poesia neossimbolista de Cecília
Meireles, entre outros, cresce em vigor associando
influências europeias à renovação de 1922.

2. O LIRISMO DE CECÍLIA MEIRELES

Cecília Meireles não se filiou radicalmente a nenhuma


das correntes modernista, produzindo uma poesia lírica cujas
raízes estão na tradição luso-brasileira.
O lirismo decorre da preocupação do poeta com o seu
próprio “eu”, o que torna evidente o predomínio da
subjetividade neste tipo de poesia. A poesia lírica é, portanto,
a expressão do mundo interior do artista e não do mundo
exterior. A realidade objetiva só interessa ao lírico na medida
em que funciona como estímulo que desperta emoções,
sentimentos, opiniões e reflexões. Pode acontecer, ainda, que
a realidade objetiva se apresente ao poeta como uma projeção
de seu próprio “eu”.
A poesia de Cecília Meireles situa-se nesta
perspectiva de lirismo em que a captação da realidade
exterior se dirige principalmente para os elementos móveis e
etéreos, nos quais, segundo Antônio Cândido “o poeta
projeta a desintegração de si mesmo ou busca o próprio
reconhecimento”. (CANDIDO; CASTELLO, 1968, p. 114).
195

É claro que, ao recriar poeticamente o mundo


objetivo, o escritor incorpora à expressão dados de sua
sensibilidade e de suas reflexões, deixando transparecer uma
determinada visão de mundo. Em Cecília Meireles, essa visão
de mundo revela:

2. 1. Preocupação com a fugacidade do tempo e


com a precariedade das coisas e dos seres, e a consciência
da imortalidade através do poético

Os dois antológicos poemas de Cecília Meireles,


“Motivo” (p.11) 196 e “Retrato” (p. 13) são marcados por
195
CANDIDO, A.; CASTELLO, J. A. Presença da literatura brasileira –
Modernismo. São Paulo: Difel, 1968.
196
Os poemas citados neste estudo em como referência: MEIRELES,
Cecília. Os Melhores Poemas de Cecília Meireles / Seleção Maria
uma preocupação constante em sua obra que é a fugacidade
do tempo.
Enquanto “Retrato” se caracteriza como poema
intimista, introspectivo, “Motivo” é um poema em que
Cecília Meireles faz uma reflexão sobre o próprio ato de
escrever, sobre a própria arte poética.
A essência de “Retrato” é a descoberta da fragilidade
e da fugacidade do tempo. Diante da consciência dessa
fragilidade decorre o tom melancólico do eu lírico que
afirma:

“Eu não tinha este rosto de hoje,


assim calmo, assim triste, assim magro
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,


tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,


tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?
(MEIRELES, Cecília. 1996. p. 13)

A partir do primeiro verso, o ritmo do poema é


reforçado por uma repetição estilística e melancólica que
conota um desencanto diante da inexorável descoberta: “eu
não tinha este rosto de hoje, / assim calmo, assim triste,
assim magro.” Observe que a descoberta da situação do rosto

Fernanda. São Paulo. Global, 1996.


é acentuada pela expressão “assim”, que reiteradamente é
acompanhada de três adjetivos “calmo”, “triste” e “magro”
que modificam o rosto e revelam a amargura do ser. Em
seguida, vem a conclusão da mudança “tão simples”, “tão
certa”, “tão fácil”. Esta constatação é reforçada pelo tom
tristonho e intensivo repetido gradativamente.
Na segunda estrofe, o eu-poético continua a sua
viagem reveladora. Agora são suas mãos que são vistas “sem
força, / tão paradas e frias e mortas”. Mais uma vez
aparecem três adjetivos transformando o estado das mãos,
numa adição gradativa que leva ao fim e a um coração pétreo,
sem vida.
A temática da rosa, tradicional desde a Idade Média, é
retomada na obra ceciliana. A rainha das flores é um símbolo
da figura fugaz, mas exprime o espírito, a pureza, a
ressurreição, a imortalidade, a vida e a morte. Exprime
também a perfeição. Os Alquimistas nos deixaram a
observação que só entreabrindo suas pétalas, poderiam
revelar o seu mais íntimo segredo da vida que estava prestes
a perecer. Exprime a vida bela e passageira.
O nome Rosa-Cruz está associado ao símbolo
hermético do Cristo. Para os adeptos da Rosa-Cruz, a cruz
contém os opostos em suas partes: Feminino e Masculino,
Lua e Sol, Morte e Vida. Quando esta vivência de opostos (o
horizontal e o vertical) se encontra em um ponto de
intersecção, acontece a Iluminação. Esta intersecção (Centro,
ponto de Unidade) da cruz (Corpo), saúda o Sol e uma rosa
colocada neste centro, no peito, permite que a Luz ajude o
espírito a desenvolver-se e florescer. Em seu símbolo ora
colocam a rosa na intersecção, ora no alto da cruz.

Para os esotéricos a Cruz é um signo masculino e espiritual,


divina energia criadora que fecundou a matéria da substância
primordial cuja imagem é a Rosa, que se inscreve nas quatro
dimensões: comprimento, largura, espessura e tempo. A
mente associada à Rosa apresenta sub-dimensões e forma:
matéria, cor e perfume, reunidos na mais completa harmonia
sendo defendidos pelos (guardiões) espinhos. Rosa,
simboliza, portanto, o centro místico e o coração.
Segundo Jean Chevalier & Alain Cheerbrant:
Na iconografia cristã, a rosa é ou a taça que recolhe o
sangue de Cristo, ou a transfiguração das gotas desse sangue, ou
o signo das chagas de Cristo. Um símbolo rosa-cruz apresenta
cinco rosas, uma no centro e uma sobre cada um dos braços da
cruz. Essas imagens evocam o Graal ou o orvalho celeste da
redenção. E, já que citei os Rosa-Cruzes, observe que seu
emblema coloca a rosa no centro da Cruz, isto é, no lugar de
Jesus. Este símbolo é o mesmo da Rosa Cândida da Divina
Comédia, que não pode deixar de evocar a Rosa Mística das
litanias cristãs, símbolo da Virgem; talvez também o mesmo do
Romance da Rosa. Angelus Silensius faz da rosa a imagem da
alma, e ainda a imagem de Cristo, de quem a alma recebe a
marca. A rosa de ouro, outrora abençoada pelo Papa no quarto
domingo da Quaresma, era um símbolo de poder e de instrução
espirituais, mas também, é claro, um símbolo de ressurreição e
de imortalidade.
A rosácea gótica e a rosa-dos-ventos marcam a passagem do
simbolismo da rosa ao da roda.
É preciso enfim observar o caso particular, na mística
muçulmana, de um Saadi de Chiraz, para quem o Jardim das
Rosas é o da contemplação: Irei colher as rosas do jardim, mas
o perfume da roseira me embriagou. Linguagem que a mística
cristã não recusaria de nenhuma maneira, como comentário do
Cântico dos Cânticos sobre a rosa de Saron.
Por sua relação com o sangue derramado, a rosa parece ser
frequentemente o símbolo de um renascimento místico:
Sobre o campo de batalha em que caíram numerosos
heróis, crescem roseiras e roseiras bravas. Rosas e anêmonas
saíram do sangue de Adônis, enquanto o jovem deus agonizava.
(Op. Cit. Chevalier J. & Gheerbrand (1990) p.
788)

A rosa é cantada em vários poemas de Cecília


Meireles, denominados de “Motivos da rosa” e marcados por
ordem. Temos aqui o “1o motivo da rosa” (p. 69):
.
“Vejo-te em seda e nácar,
e tão de orvalho trêmula,
que penso ver, efêmera,
toda a Beleza em lágrimas
por ser bela e ser frágil.

Meus olhos te ofereço:


espelho para a face
que terás, no meu verso,
quando, depois que passes,
jamais ninguém te esqueça.

Então, de seda e nácar,


toda de orvalho trêmula,
serás eterna. E efêmero
o rosto meu, nas lágrimas
do teu orvalho... E frágil.
(p. 69)

Na primeira estrofe, o eu lírico apresenta a beleza e a


fragilidade da rosa, o alvo de sua contemplação. Ao
contemplá-la, valoriza-a por seus olhos de artista, tornados
espelhos capazes de refleti-la - não visualmente apenas -
mas, principalmente, no verso.
A poetisa tenta superar a tensão entre o belo e o
transitório, pela recriação da rosa por meio da construção
poética. Desta forma, a rosa, no aspecto físico,
inexoravelmente acabará. Porém, a criação poética da artista
é imortal e o fato da rosa ter sido cantada em versos é uma
condição para que esta também alcance a eternidade. A
poesia é uma rosa eterna, que renasce em cada leitura.
Assim, como a rosa, a poesia de Cecília tem a beleza,
o amor, a perfeição poética, a espiritualidade e a poder de
renascimento. Sua poesia é um coração que pulsa vida e
imortaliza o efêmero.
O poema “Motivo” tem esta mesma visão sobre a
imortalização através do poético. Neste antológico texto
existe o depoimento de Cecília Meireles sobre o poder de
perpetualização do canto poético:

“Eu canto porque o instante existe


e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,


não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.


Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
mais nada.”
(Idem p. 11)
Ao longo do poema, Cecília Meireles demonstra a
certeza da fragilidade diante do tempo: “Irmão das coisas
fugidias ... / atravesso noites e dias / no vento”. Porém, se o
tempo é passageiro, a sua “canção é tudo. / Tem sangue
eterno e asa ritmada”. Isto é, tem a alquimia do poético que
conduz à imortalidade do artista e a leveza do ritmo
encantador do poema. A poetisa sabe que quando seu corpo
não mais existir, sua poesia ficará nos livros, nas almas
amantes da arte, nos campos, nas flores, nas montanhas, no
vento, na vida. Ela deixa ao mundo um legado: seu texto
ritmado, poético e eterno. Desta maneira, “Motivo” é um
poema sobre a própria poesia, pois discute
metalinguisticamente o valor da obra literária e expressa que
só a arte é eterna. Tudo passa, a arte fica; o homem é finito, a
arte é imortal.

2. 1. 1. A vida só é possível reinventada

Para Cecília Meireles, criar é a razão de viver. Este


testemunho renova-se em versos como os de “Aceitação”
(Idem p. 17), em que a autora assume o destino das cigarras
que, semelhante à poetisa, vivem para o seu canto, e este as
imortaliza; ou em texto inteiro como “Reinvenção” (Idem p.
48), que testemunha o poder da criação poética. Vejamos
alguns versos deste poema:

“A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas


e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vêm de fundas piscinas
de ilusionismo... - mais nada.
.......................................
Não te encontro, não te alcanço...
Só - no tempo equilibrada,
Desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.

Só - na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,


a vida só é possível
reinventada.”
(Idem p. 48-49)

O poeta não é um ser privilegiado, diferente dos


outros; não é apenas uma pessoa muito sensível que vive de
sonho e de inspiração; é, antes de tudo, um artista da palavra,
um trabalhador da linguagem que deve ter elevada técnica e
bom gosto. O poeta é, principalmente, um criador, pois dá
nova vida às palavras, inventando assim uma nova linguagem
capaz de dizer o indizível.
Cecília Meireles poetiza sobre a própria criação
literária, quando afirma que a vida só é possível reinventada.
Ora, a vida, as coisas e as palavras em estado de dicionário
são abstratas, antes de serem percebidas e sentidas pelos
homens. O poeta, através do seu trabalho linguístico e
criativo, re(vela), reinventa e dá vida ao mundo.
O processo da criação literária é semelhante ao da
criação do universo; antes da criação era o caos, as trevas: No
princípio existia o Verbo, e o Verbo estava com Deus,... Nele
estava a vida e a vida era a luz dos homens, e a luz
resplandece nas trevas,... E o Verbo se fez carne, e habitou
entre nós. (Op. Cit.BÍBLIA SAGRADA , João 1:1-3. 2012, p.
1310)
O artista, por meio de uma luta diuturna, de um
trabalho contínuo com a palavra, com o vernáculo, o verbo,
adquire um poder demiurgo de organizar o caos do silêncio e
da falta de vida das palavras em estado de dicionário. Ao
criar o poema, o poeta consegue vivificá-las, reinventá-las.
Nesse sentido, o artista literário é um criador, um deus que dá
vida ao verbo, recriando a sua polissemia, explorando sua
música, ritmos e todas suas possibilidades criativas.
No poema “Reinvenção”, a poetisa observa o sol, as
campinas, as cores, as águas, as folhas, a luz, as trevas, ou
seja, a vida, depois re(vela) sua visão e percepção desta vida
através do verbo inusitado. Utilizando as palavras, a poetisa
cria novas significações, novas interpretações, novas
metáforas. Nos versos “Anda o sol pelas campinas / e
passeia a mão dourada...” Cecília Meireles apresenta a bela
metáfora que mostra o sol com sua mão dourada pelas
campinas, pelas águas, pelas folhas. Desta forma, a simples
visão da luz do sol foi recriada e reinventada de uma maneira
singular, poética, que faz a criatura humana acordar de uma
espécie de sonambulismo, uma vez que o homem vive
mergulhado no cotidiano, na pressa, na insensibilidade e não
percebe facilmente a magia das coisas da vida e, a beleza que
está dentro da possibilidade de visão e criação.
Diante do exposto, o canto poético ceciliano reinventa
a vida e oferece aos homens o que há de mais belo na arte de
viver e de criar outros mundos: o universo das palavras.
2. 1. 2. O sangue eterno e a pluralidade dos versos
cecilianos

Quando se lê um poema de Cecília Meireles, percebe-


se que ele contém um encantamento. Algumas vezes tem-se
vontade de relê-los. Mas é difícil perceber, de imediato,
quanta elaboração existe no texto. É preciso ler o poema
várias vezes, de maneiras diferentes, para descobrir sua
polissemia. Observe a pluralidade semântica e o encanto do
poema “4o Motivo da rosa” (Idem p. 78):

Não te aflijas com a pétala que voa:


também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verás, só de cinza franzida,


mortas intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos,


ao longe, o vento vai falando em mim.

E por perder-me é que me vão lembrando,


por desfolhar-me é que não tenho fim.
(p. 78)

A polissemia dos versos está demarcada a partir do


título do poema. A autora enfatizou o tema da rosa, motivo de
vários poemas. Este é o 4 o motivo. Levando em conta a
simbologia do número quatro, que representa os elementos do
mundo: terra, fogo, ar e água e, observando ainda as
referências aos quatro pontos cardeais, quatro ventos, quatro
pilares do universo, quatro fases da lua, quatro estações e as
quatro letras do nome de Deus, concluímos que este “4o
motivo da rosa” é muito especial. E, de acordo com
Chevalieur, o quatro simboliza “a totalidade do criado e do
revelado”. Desta forma, este quarto motivo conota a magia
do quatro e sua alusão à criação poética.
Se numa leitura simples, à primeira vista, os versos
parecem referir-se a uma realidade simples e conhecida que é
o desfolhar de uma rosa e a perda de sua beleza, esta
interpretação se modifica se nos detivermos numa análise
ampla. Aí, então, veremos a grandeza de sua expressão.
Perceberemos que o texto nos apresenta uma realidade
preocupante, que é o inexorável passar do tempo, a finitude.
Desta observação, a poetisa nos dá uma preciosa
lição: é preciso que o rejuvenescimento do espírito se
contraponha ao envelhecimento físico. Só assim é possível
viver realmente a vida em toda a sua extensão, ou seja, é a
fórmula com a qual se consegue deixar “aroma até nos
espinhos” porque, enquanto o tempo passa, a pessoa vai, de
forma lenta e contúna, se realizando como ser, vai sendo
lembrada: razão pela qual a poetisa apresenta o verso “o
vento falando de mim”.
A lição de vida apresentada é análoga a uma figura
materna que, na sua missão de viver e dar a vida vai-se
transformando e se transubstanciando nos filhos, numa
corrente de vida/morte, dor/alegria. A mãe se entrega de
corpo e alma para buscar sua imortalidade vivendo através da
presença viva dos filhos.
Este texto expressa, mais uma vez, a ideia comentada
no item anterior de que Cecília Meireles entende a criação
como razão de viver, e que se preciso for, a poetisa pode até
morrer de cantar, como as cigarras. É o que afirmam os
versos de “Aceitação”: “Desenrolei de dentro do tempo a
minha canção: / não tenho inveja às cigarras: também vou
morrer de cantar.” (Idem p. 17)
Para Cecília Meireles a criação poética é doação, é um
desfolhar, é vida, é morte; são os quatro elementos, fogo,
terra, ar, água; é o mundo, é tudo o que há de sagrado.
Chevalieur e Cheerbrant acrescentam que:

A rosa, por sua relação com o sangue


derramado, parece ser frequentemente o símbolo de
renascimento místico:
Sobre o campo de batalha em que caíram
numerosos heróis, crescem roseiras e roseiras
bravas. Rosas e anêmonas saíram do sangue de
Adônis, enquanto o jovem deus agonizava.
É preciso, que a vida humana se consuma
completamente, para esgotar todas as
possibilidades de criação ou de manifestação se
vem a ser interrompida bruscamente, por uma morte
violenta, tenta prolongar-se sob uma morte violenta,
sob uma outra forma: planta, flor, fruta.
(Op. Cit. Chevalier J. & Gheerbrand (1990) p. 788)

Observando tudo isto, damo-nos conta do sentido


transcendental que os versos do “4o motivo da rosa”
oferecem, tirando-nos do meramente contingente para
transportar-nos à esferas espiritualizadas da vida humana. E
isso foi possível graças ao poder sugestivo e
plurissignificante das palavras que se espraiam em
significados superiores àqueles abstratos que elas
ordinariamente oferecem no dicionário, adquirindo, desta
forma, um sentido concreto; “um sangue eterno” que
somente os poéticos e polissêmicos versos cecilianos são
capazes de produzir. Seus versos possuem a magia de
transformar o efêmero em eterno.
2. 2. A contemplação do mundo

A noite segue o dia. As estações do ano sucedem uma


às outras. As plantas nascem, crescem e morrem. Diante
deste espetáculo cotidiano da natureza, o homem - filósofo -
poeta, ser sensível - pode manifestar diversos sentimentos:
medo, resignação, incompreensão. E também espanto e
perplexidade - sentimentos que acabam por conduzi-lo à
poesia filosófica, contemplativa. Cecília Meireles mostra-nos
que o mundo é para ser contemplado, retratado, e poetizado.
Seus poemas descritivos assemelham-se a instantes de uma
paisagem ou cena do cotidiano, como “Contemplação”
(Idem p. 59), “1o motivo da rosa” (Idem p. 69), “2o motivo
da rosa” (Idem p.71), “4o motivo da rosa” (Idem p. 78), “5o
motivo da rosa” (Idem p. 79), “Elegia a uma pequena
borboleta” (Idem p. 83), “Pássaro” (Idem p.89), “Os gatos
da tinturaria” (Idem p. 99), “Faisão prateado” (Idem p.
103), “Imagem” (Idem p.107), “A flor e o ar” (Idem p. 108),
entre outros. No poema “Sugestão” (Idem p. 63) o eu poético
sugere que devemos ter a natureza como exemplo; ter sua
calma, sua imparcialidade e sua verdade. Sugere, portanto,
que sigamos o exemplo da natureza e não o dos homens:

“Sede assim - qualquer coisa


serena, isenta, fiel.

Flor que se cumpre,


sem pergunta.

Onda que se esforça,


por exercício desinteressado.

Lua que envolve igualmente


os noivos abraçados
e os soldados já frios.

Também como este ar da noite:


sussurrante de silêncios,
cheio de nascimentos e pétalas.

Igual à pedra detida,


sustentando seu demorado destino.
E a nuvem, leve e bela,
vivendo de nunca chegar a ser.

À cigarra, queimando-se em música,


ao camelo que mastiga sua longa solidão,
ao pássaro que procura o fim do mundo,
ao boi que vai com inocência para a morte.

Sede assim qualquer coisa


serena, isenta, fiel.

Não como o resto dos homens.”


(Idem p. 63-64)

Da segunda à sétima estrofe, o eu lírico utiliza


elementos da natureza para exemplificar maneiras de ser,
citando elementos que não têm “sociedade”: plantas, nuvens,
pedras. Já na sétima estrofe, a artista aproxima o destino dos
homens aos dos animais, mas volta em seguida a reafirmar
que o ser dever ser “... assim qualquer coisa / serena, isenta,
fiel. / não como o resto dos homens”. Pelo texto, podemos
concluir que o eu poético não tem uma visão otimista sobre
os homens, sugerindo que nenhum deles é leal e que o certo é
buscar algo que preze a justiça e a verdade. Desta forma,
Cecília Meireles filosofa sobre o homem e a sociedade. E
sugere um modo de ser diferente, sereno, isento e fiel.
Esse tom tranquilo, isento, devotado e, portanto,
filosófico, por várias vezes é apresentado na poesia ceciliana.
Um excelente exemplo é o verso de “Motivo”: “Não sou
alegre nem sou triste”, em que a poeta demonstra isenção,
apresentando-se como alguém que vive simplesmente, sem
exaltações, apenas contempla a natureza, a vida e poetiza por
meio do verbo.
O poema “Elegia a uma pequena borboleta” é uma
composição de cunho triste, que revela o estado de espírito da
poetisa:

“Como chegavas do casulo,


- inacabada seda viva! -
tuas antenas - fios soltos
da trama de que eras tecida,
e teus olhos, dois grãos da noite
de onde o teu mistério surgia,

como caíste sobre o mundo


inábil, na manhã tão clara,
sem mãe, sem guia, sem conselho,
e rolavas por uma escada
como papel, penugem, poeira,
com mais sonho e silêncio que asas,
............................................................
Choro esta humana insuficiência:
- a confusão dos nossos olhos,
- o selvagem peso do gesto,
- cegueira - ignorância - remotos
instintos súbitos - violências
que o sonho e a graça prostram mortos.”
(Idem p. 83-84)
A poetisa, ao contemplar a borboleta, descreve-a
como - “inacabada seda viva!” - numa alusão a pouca idade
do filhote e numa referência à origem da seda (bicho da
seda). Ao observar este animal tão puro, meigo e indefeso,
ela se sente culpada por ter deixado suas duras mãos humanas
apertarem o pobre e pequeno ser que teria “um bordado véu
do dia”, ou seja, o desenho das asas da borboleta. Porém, a
cegueira, a ignorância e a brutalidade do ser humano
negaram-lhe o sonho. Consciente do “crime” cometido, o eu
lírico deseja de se redimir garantindo uma nova vida à
borboleta e pretendendo ser uma flor para servi-la. Na
conclusão do poema, a poetisa chora os seus desacertos
humanos. Mais uma vez Cecília Meireles se faz uma filósofa
poetisa e deixa-nos a mensagem de que o homem deve
contemplar amar a natureza, mas antes de tudo, deve respeitá-
la.

2. 3. Fusão entre o poeta e a natureza

Nem sempre, Cecília Meireles permanece


contemplativa perante o mundo exterior, por vezes, integra-o
ao mundo interior, numa identidade cujo resultado é a fusão
entre o poeta e a natureza. Observe o poema “Canção
Mínima”:

No Mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.

E no planeta, um jardim;
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro, uma violeta,
e, sobre a ela, o dia inteiro.

Entre o planeta e o Sem-Fim,


a asa de uma borboleta.
(Idem p. 40)

Este poema apresenta, inicialmente, um planeta


personificado, como se fosse uma ginasta que se equilibra
“No Mistério do Sem-Fim”. Este estranho lugar, no qual
equilibra o planeta, denominado mistério do sem-fim, sugere
duas interpretações: a primeira pode ser entendida como a
posição geográfica do planeta Terra no sistema solar, dentro
do universo infinito da astronomia; a segunda pode ser lida
como sendo os mistérios que persistem neste mundo onde
seres humanos e natureza buscam um convívio harmônico.
O verso de “Mistério do Sem-Fim”, graficamente,
confere certo tom solene aos dois versos da primeira estrofe,
através das iniciais maiúsculas. Este mesmo procedimento
reaparece na última estrofe da “Canção Mínima”.
O segundo quarteto, que ocupa o centro do poema,
apresenta uma série de elementos naturais numa gradação
semelhante à aproximação de uma câmara de cinema. O
espaço vai ficando cada vez mais próximo e mais reduzido:
planeta - jardim - canteiro - violeta. A gradativa diminuição
do espaço, na estrofe do meio, contrasta com o infinito
sugerido na outras duas estrofes. No sexto verso, aparece um
elemento indicador do tempo: o dia inteiro, isto é,
permanentemente, sem cessar. O infinito espacial coincide
com o infinito temporal, já que tanto o tempo como o espaço
é “sem-fim”.
Na terceira estrofe, reaparece o infinito, espaço
imaginário “entre o planeta e o Sem-Fim” lugar onde se
equilibra “a asa de uma borboleta”. A asa da borboleta do
verso final sugere múltipla significação: fragilidade, colorido,
beleza, fertilidade (o pólen das flores transportados pelas
borboletas); transformação (a passagem de lagarta à
borboleta). Como a borboleta se equilibra entre o planeta e o
Sem-Fim, é ela o elemento que liga o espaço graduado
(planeta - jardim - canteiro - violeta) ao espaço (sem-fim).
Ou seja, harmoniza-se o conjunto pela beleza, fragilidade,
vida e morte, colorido e possibilidade de transformação que
unem as partes do conjunto.
“Canção Mínima” propõe, poeticamente, um universo
em equilíbrio onde o lugar que é o espaço conhecido do
homem (estrofes do meio) - E no planeta, um jardim;/ e, no
jardim, um canteiro;/ no canteiro, uma violeta,/ e, sobre a ela, o
dia inteiro - está cercado pelo mistério do infinito (primeira e
última estrofe): No Mistério do Sem-Fim/ equilibra-se um
planeta.
Como anuncia o título, a canção é mínima, é
composta apenas por oito versos. Embora pequeno, o canto
poético consegue transmitir uma ampla visão de mundo.
Propõe um lugar no mundo onde os seres humanos vivem em
meio a um universo cujos mistérios eles não dominam, mas
cuja beleza e harmonia eles conseguem perceber. O poema é
mínimo, mas traduz uma enorme verdade sobre os Mistérios
do Sem-fim do Universo, do planeta, do homem e da
natureza.
O poema “Canção” (Idem p. 15) é também marcado
por esta simbiose entre o poeta e a natureza:

Pus o meu sonho num navio


e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas


do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.
(p.15)

Nos primeiros versos, a poetisa se declara uma


consciente sonhadora. E, como tal, vai em busca do seu
sonho, abre caminhos para que ele navegue pelos mares dos
desejos, sem medo de um possível naufrágio.
A segunda estrofe apresenta poeticamente as marcas
deste sonho “Minhas mãos ainda estão molhadas / do azul
das ondas entreabertas”. Porém, estas marcas não são
amargas, nem salgadas, são coloridas e desenham outros
sonhos, outros desejos, outros mundos poéticos. A natureza,
neste caso, específico, é cúmplice, ajudante dessa poetisa
sonhadora, pois serve como companhia e inspiração para as
viagens poéticas desse ser humano que acredita no poder do
sonho e do querer.

2. 4. Ênfase à condição solitária do ser humano e


aos obstáculos da vida

Cecília Meireles demonstrou em vários poemas a


constatação da condição solitária do homem. Em poemas
como “Lua adversa” (Idem p. 50), a poetisa expressa sua
solidão no mundo:

Tenho fases, como a lua.


Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,


no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém


(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...
(Idem p. 50)

Em “Lua adversa”, o eu lírico se compara com a lua,


por que às vezes fica escondida (no segundo verso); às vezes
vai para rua (terceiro verso); às vezes encontra o amado
(sexto verso) e às vezes fica sozinha (sétimo verso).
Segundo Chevalier & Gheerbrant:
A Lua é símbolo dos ritmos biológicos: Astro que
cresce, diminui e desaparece, cuja vida está submetida à lei
universal do devir, do nascimento e da morte… a Lua
conhece uma história patética, tal como a do homem… mas a
sua morte nunca é definitiva… Este eterno retorno às formas
iniciais, esta periodicidade sem fim fazem com que a Lua seja
por excelência o astro dos dois ritmos da vida… Ela controla
todos os planos cósmicos regidos pela lei do devir cíclico:
águas, chuva, vegetação, fertilidade…
(Op. Cit. Chevalier J. & Gheerbrand (1990) p.
561)

A poesia de Cecília Meireles traz o simbolimo e a


poeticidade da lua por meio de metáforas, do tempo que
passa fugidio e vivo, sempre correndo, em fases sucessivas,
regulares e cíclicas, como o o ciclo menstrual por exemplo,
no qual a lua mantém uma relação direta. A palavra
menstruação deriva do latim mensis (mês), que por sua vez é
umo termo relacionado a mene que significa “Lua” no grego
antigo. Por isso, o eu lírico afirma: Tenho fases, como a
lua. /Fases de andar escondida,/fases de vir para a rua...
Nesse sentido, o eu poético, assim como a Lua, se
movimenta em fases e lunações, uma vez que o satélite
natural da terra rege toda sua influencia sobre ciclos
femininos. O ciclo menstrual segue os direcionamentos da lua
e é concebido dentro da percepção do tempo ligada
diretamente à natureza cíclica, contando o tempo em
lunações. Cada lunação dura pouco menos de um mês (29 ou
30 dias) e inicia sempre no primeiro dia de lua nova. Nela
ocorrem as quatro fases da Lua: nova, crescente, cheia e
minguante. Assim como as estações, cada lunação do ano
carrega sua própria energia e delimita um espaço temporal:
Fases que vão e que vêm,/ no secreto calendário/ que um
astrólogo arbitrário/inventou para meu uso.
Diante do exposto, uma das funções da lua é atuar o
instrumento de medida universal e, de acordo com Chevalier
& Gheerbrant:
“O mesmo simbolismo liga entre eles a Lua, as Águas, a
chuva, a fecundidade das mulheres, a dos animais, a
vegetação, o destino do homem depois da morte e as
cerimónias de iniciação. As sínteses mentais tornadas
possíveis pela revelação do ritmo lunar põem em
correspondência e unificam realidades heterogéneas; as suas
simetrias de estruturas ou as suas analogias de funcionamento
não poderiam ter sido descobertas se o homem a lei de
variação periódica do astro”
(Op. Cit. Chevalier J. & Gheerbrand (1990) p. 561)

Por isso, o eu lírico exprime: No dia de alguém ser


meu/não é dia de eu ser sua... E, quando chega esse dia,/o
outro desapareceu...; e tem um “secreto calendário”, uma
noção de tempo diferente das outras pessoas, um mundo só
seu: sua solidão. Este discernimento da condição solitária do
ser gera um estado de melancolia: “E roda a melancolia...
não me encontro com ninguém”. Sozinha, ela encontra a
magia da poesia que lhe conforta e faz seguir o seu caminho,
suas luas e seu destino.
O poema “Se não houvesse montanhas” (Idem p.
151) também evidencia a consciência da condição solitária do
ser humano. Expõe, ainda, os obstáculos da vida e a força do
sonho. Tal força é o que leva todo poeta a superar todas
adversidades. Observe o poema:

Se não houvesse paredes!


Se o sonho tecesse malhas
e se os braços colhessem redes!

Se a noite e o dia passassem


como nuvens, sem cadeias,
e os instantes da memória
fossem vento nas areias!

Se não houvesse saudade,


solidão nem despedida...
Se a vida inteira não fosse,
além de breve, perdida!

Eu tinha um cavalo de asas,

que morreu sem ter pascigo.


E em labirintos se movem
os fantasmas que persigo.
(p. 151)

A primeira estrofe inicia com o triste reconhecimento


dos obstáculos contínuos que a vida oferece. Tais empecilhos
são conotados pelos substantivos montanhas e paredes,
seguidos de malhas e redes. Esta constatação da realidade
conduz o eu lírico para um forte desejo de buscar a fantasia,
usufruir da imaginação e da liberdade. Este desejo está
figurado através dos versos “Eu tinha um cavalo de asas”.
Porém, o eu poético não foge da evidência de que a
existência tem limites, a vida é efêmera e às vezes inútil. Os
versos apresentam lamentos que emitem uma exclamação
piegas omitida (Ah!), expressando objetivamente o
desencanto com a inutilidade da existência: “Se não
houvesse saudade, / solidão nem despedida... / Se a vida
inteira não fosse, além de breve, perdida”!
O cavalo simboliza o sentimento de se estar vivo, de
ser carregado na vida e na morte. Sua imagem também
encontra-se associada a da árvore dos mortos, pois ele é um
animal que a alma utiliza para ser cavalgada para o outro
mundo.
Essa imagem do cavalo como corcel, aparece em
várias mitologias: na nórdica, por explemplo, a mãe do
grande Odin, era um "Corcel Assustador" e Deméter, na
mitologia grega, a deusa da colheita e da agricultura e das
estações do ano (filha de Cronos e Reia) par fugir das
perseguições de Posseidon, transformava-se em cavalo.
O cavalo, portanto exprime a força, a energia e a
disposição do homem, quando as imagens giram em torno de
sacrifício, de passagem, da vida e da morte.
Na poesia de Cecília Meireles, o eu
poético se encontra diante do diante do inexorável destido: a
morte, metaforizada pelo cavalo alado: Eu tinha um cavalo de
asas,/que morreu sem ter pascigo./ E em labirintos se movem os
fantasmas que persigo./ O cavalo alado é metáfora do sonho que
se foi, de uma vida fugidia, veloz, que a morte levou e
deixou apenas os fantasmas das lembranças.

3. CARACTERÍSTICAS ESTILÍSTICAS

Na expressão deste mundo recriado por meio de


palavras, Cecília Meireles utiliza formas tradicionais ou o
verso livre, em que predominam o descritivismo (graça a
presença de elementos concretos), a captação sensorial e a
musicalidade.

3. 1. O apuro formal

Cecília Meireles é uma mestra na arte de versejar.


Lapida com habilidade versos regulares, principalmente os de
cinco (redondilha menor), os de seis, os de sete sílabas
poéticas (redondilha maior) e os de oito sílabas; ou os versos
livres, os que não obedecem às regras da métrica.
A respeito de seus versos Alfredo Bosi afirma que:
Cecília Meireles foi escritora atenta à riqueza do
léxico e dos ritmos portugueses, tendo sido talvez a poeta
moderna que modulou com mais facilidade os metros
breves, como se vê nas canções e no trabalhadíssimo
Romanceiro da Inconfidência” (BOSI, 1980, p.516). 197

Cecília maneja com maestria versos longos, como em


“Discursos” (Idem p. 12), “Conveniência”, (Idem p.14),
“Aceitação” (Idem p. 17) e “Destino” (Idem p. 22); e, versos
curtos como em Canções e em Romanceiro da Inconfidência.
Manuel Bandeira na Apresentação da poesia
brasileira, 198 observou que:

O que chama atenção nos poemas de Cecília


Meireles é a extraordinária arte com que estão
realizados. Nos seus versos se verifica mais uma vez
que nunca o esmero da técnica, entendida como
informadora e não simples decoradora da
substância, prejudicou a mensagem de um poeta.
Sente-se que Cecília Meireles está sempre
empenhada em atingir a perfeição, valendo-se para
isso de todos os recursos tradicionais ou novos
(Bandeira, M. (1964) p. 167).

Os poemas de Cecília chamam a atenção do leitor


para a em sensibilidade saber escrever o que o leitor queria
ouvir sobre si mesmo, sobre o outro, sobre o mundo com
suas cores, sons, sentidos, vida, morte, poesia, música,
palavras e um labor técnico, perfeccionista, que encanta e
torna seus versos memoráveis.
197
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo,
Cutrix. 1980.
198
BANDEIRA, Manuel. Apresentação da Poesia Brasileira. Rio de
Janeiro, Casa do Estudante do Brasil, 1964.
3. 2. A captação sensorial

A poesia de Cecília Meireles é dotada de uma sensível


percepção da realidade conduzida pelos cinco sentidos:
audição, visão, tato, olfato e paladar. Combina
sinestesicamente duas ou mais sensações, transfigurando o
real e transformando o texto numa alquimia verbal.
No poema “Marcha” (Idem p. 25/26), Cecília
Meireles faz associações sensoriais utilizando uma imagem
visual combinada com o paladar, quando afirma: “Gosto da
minha palavra / Pelo sabor que lhe deste / mesmo quando é
linda, amarga / como qualquer fruto agreste”.
A palavra poética é qualificada de linda (elemento
visual), mas é ao mesmo tempo amarga (imagem gustativa)
numa associação poética que leva a um conceito sensitivo da
palavra. Tal verbalização conota uma presente beleza no
poético misturado a um sabor de fel.
Outras associações sinestésicas podem ser
encontradas no poema “Canção do caminho” (p. 36), que
expressa:

Minha canção vai comigo,


Vai doce.
Tão sereno é o seu compasso
que penso em ti, meu amigo.
- Se fosse,
em vez da canção, teu braço.
(Idem p. 36)

Quando o eu lírico expressa: Minha canção


(elemento auditivo) vai comigo / vai doce (elemento
gustativo), temos uma interessante combinação sensorial
sugerindo uma canção doce, meiga e lírica.
O poema “Reinvenção” (Idem p. 48) apresenta a cor
do sol (visual) passeando com sua mão dourada (tato) pelas
águas, pelas folhas... formando através dessa associação
sensitiva uma imagem belíssima. Oferece metáfora do
ilusionismo da vida, completado pelos versos que afirmam:
Ah! tudo bolhas / que vem de fundas piscinas / de
ilusionismo... - mais nada. O texto embebido de imagens
sensoriais transmite com maestria a magia da cor do sol sobre
a natureza e a capacidade da luz de transmitir a ilusão da vida
diante de um olhar espectador.
O poema “Cantarão os galos” (Idem p. 81) exprime
o cantar dos grilos ao longe (audição), quebrando o frio (tato)
do silêncio. Observe os versos:

Cantarão os galos, quando morrermos,


E uma brisa leve, de mãos delicadas
Tocará nas franjas, nas sedas mortuárias
...............................................................
E os grilos, ao longe, serrarão silêncios,
talos de cristal, frios, longos ermos,
e o enorme aroma das árvores.
(Idem p. 81)

O texto sugere que o canto dos grilos parece ter uma


força, e até um calor que pode aquecer o frio do silêncio e
dos ermos. Tal calor musical supera até o aroma das árvores.
Desta forma, o poema exprime a força da canção através da
sugestão sinestésica, que une o tato (do calor e frio) ao olfato
(do aroma) à poderosa (audição) da música dos grilos.

3. 3. Musicalidade
Cecília Meireles foi amante, estudiosa e cultivadora
da música. A sua obra é um canto poético, uma profissão de
fé ao lirismo auditivo, aos sons líricos que um verso pode
exprimir.
A associação entre a música e a sua poesia está
evidenciada nos títulos de vários poemas denominados de
canção. E, no plural, Canções é o nome de uma de suas
obras, além da combinação inusitada de outra obra
denominada Vaga Música, uma vez que a autora combina o
adjetivo “vaga” com o substantivo “música”. Tal combinação
encaminha para uma ideia de indefinição “vaga”, mas
também para a amplitude sonora. Por outro lado, o
vocabulário “vaga” como substantivo - enquanto sinônimo de
“onda” - sugerindo movimento, introduz o tema mar,
frequente nessa obra e em muitas canções e outros poemas
cecilianos.
Sons musicais e água são os veículos das viagens e
dos sonhos da poetisa e de seu profundo senso de solidão.
Dessa forma, seus versos têm recorte nítido musicalidade,
combinados com flagrantes da vida, que são quase sempre,
associações entre estados de espírito e formas exteriores, que
lhe servem de contraponto e de símbolo. Raras vezes a
poetisa chega ao hermético, mas insiste na presença da
música.
Observe, por exemplo, esta sugestiva “Canção” (Idem
p. 18):

No desequilíbrio dos mares,


as proas giraram sozinhas...
Numa das naves que afundaram
é que tu certamente vinhas.
Eu te esperei todos os séculos,
Sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto.

Quando as ondas te carregaram,


meus olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo quanto existe alheias.
(Idem p. 18)

Cecília Meireles transporta para os versos a confissão


de um amor náufrago e o estigma da vida selada pelos
contrastes entre o efêmero e o eterno, entre o sonho e a
realidade, a espera e o desencontro.
A autora metaforiza tal constatação através de
procedimentos poéticos, alterando as aliterações (repetição de
sons consonantais) nasais - mares, sozinhas, afundaram,
vinhas, morri, infinitas mortes, guardando sempre o mesmo
rosto, ondas te carregaram - simbolizando tristeza e
desencanto, com assonâncias (repetição de sons vocálicos)
indicando alegria e esperança.
Os verbos que não são poucos estão no passado e no
gerúndio (giraram, afundaram, esperei, morri, guardando,
carregaram, cegaram), representando a transitoriedade de
tempo e reforçando o dinamismo da musicalidade do poema.
Esse poema “Canção” é apenas o exemplo de um
conjunto de liras que cantam o mar, a água, a vida, a
existência desta mulher poeta que, sabiamente, uniu as
palavras à música num casamento primoroso. Deste conúbio
nasce o poético de Cecília Meireles.
4. A HISTÓRIA E A TEMÁTICA SOCIAL

Fruto de dez anos de pesquisas, Romanceiro da


Inconfidência, 199 data de 1953 é marcada por de uma hábil
síntese entre o dramático, o épico e o lírico. A obra traça um
retrato da sociedade de Minas Gerais do século XVIII,
principalmente dos personagens envolvidos na Inconfidência
Mineira, abortada pela traição de Joaquim Silvério dos Reis,
o que culminou na execução de Tiradentes.
Segundo a própria autora, numa conferência proferida
no 1º Festival de Ouro Preto, em 20 de abril de 1955, ao falar
do processo de criação da obra, do seu enquadramento no
gênero “romanceiro” e o porquê da escolha para a construção
de uma produção literária sobre a Inconfidência Mineira,
explanou que
O Romanceiro foi construído tão sem normas
preestabelecidas, tão à mercê de sua expressão
natural que cada poema procurou a forma condizente
com sua mensagem. Há metros curtos e longos;
poemas rimados e sem rima, ou com rima assonante –
o que permite maior fluidez à narrativa. Há poemas
em que a rima aflora em intervalos regulares, outros
em que ela aparece, desaparece e reaparece, apenas
quando sua presença é ardentemente necessária.
Trata-se, em todo caso, de um Romanceiro, isto é, de
uma narrativa rimada, um romance: não é um
“cancioneiro” – o que implicaria o sentido mais
lírico da composição cantada. [...] O Romanceiro
teria a vantagem de ser narrativo e lírico; de
entremear a possível linguagem da época à dos
nossos dias, de, não podendo reconstituir
199
MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Coleção Folha
Grandes Escritores Brasileiros, Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008.
inteiramente as cenas, também não as deformar
inteiramente; de preservar aquela autenticidade que
ajusta à verdade histórica o halo das tradições e da
lenda.
200
(MEIRELES, 2008, p. 21)

De acordo com suas próprias palavras, a poetisa, em


Romanceiro da Inconfidência, retoma uma forma poética de
tradição ibérica, denominada romance (composição de caráter
popular; escrita em redondilhas maior e menor), para
reconstruir o episódio da Inconfidência Mineira e extrair, de
um fato passado, datado, limitado geográfica e
cronologicamente, valores que são eternos e significativos
para a formação da consciência de um povo. A própria autora
afirma tratar-se de “uma história de coisas eternas e
irredutíveis: de ouro, amor, liberdade, traições...”
(MEIRELES, 2008, p. 22).
Romanceiro da Inconfidência é formado por 19
romances. romances que narram os feitos heróicos dos
inconfidentes, o sonho de liberdade e nacionalismo. Através
dos romances, a poetisa revela as dificuldades da sociedade
da época, a trajetória dos inconfidentes, desde o planejamento
da revolta até a traição de um deles para pagar a dívida com a
Corte Portuguesa.
A descoberta do ouro, o início de uma nova
configuração social com a chegada dos mineradores e toda a
estrutura formada para atendê-los, os costumes, os “causos”,
como o da donzela morta por uma punhalada desferida pelo
próprio pai (Romance IV), ou os cantos dos negros nas catas
(VII), o folclore, a história do contratador João Fernandes e

200
MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Apresentação
Alberto da Costa e Silva. São Paulo: Global, 2012.
de sua amante Chica da Silva e o alerta sobre a traição do
Conde de Valadares (XIII a XIX). A ênfase recai na cobiça
do ouro, que torna as pessoas inescrupulosas.
Essa história é apresentada através de um fio
narrativo, em que a ação não chega a sobrepor-se à reflexão.
Acontecem súbitos cortes que determinam a mudança de
ambientes ou figuras. Existe, nos romances, a figura de um
narrador que surge, de vez em quando, para sugerir uma nova
situação dramática.

4. 1. Divisão por parte da obra completa -


Romanceiro da Inconfidência.

O poema Romanceiro da Inconfidência é dividido em


cinco partes distintas:
A primeira parte é composta por dezenove romances
(I ao XIX). Nela encontramos a ambientação, os motivos
folclóricos e tradicionais que se entrelaçam no enredo da
história.
A segunda, apresenta a trama, a frustração, a narração
da marcha da conspiração, o malogro e os prenúncios do
drama. Esses elementos estão relatados nos romances (XX ao
XLVII). Vila Rica é o “país das Arcádias”, numa alusão
direta ao neoclassicismo brasileiro, com seus principais
poetas e suas pastoras: Glauceste Satúrnio e Nise, Dirceu e
Marília. No belo Romance XXI, as primeiras ideias de
liberdade começam a circular.
Do XXVII ao XLVII, há a atuação do alferes Joaquim
José da Silva Xavier, o Tiradentes, que procurava atrair mais
gente para a conspiração, em longas cavalgadas pela estrada
que levava ao Rio. Contudo, os planos são abortados antes de
ser efetivamente colocados em prática por causa dos
delatores, principalmente Joaquim Silvério dos Reis
(XXVIII).
A terceira é formada pelos romances (XLVIII ao
LXIV) e temos as mortes de Cláudio Manuel da Costa e de
Tiradentes. O cerne desta parte é a tragédia dos
acontecimentos e a metáfora do jogo de cartas.
Segue-se uma devassa completa, prisões, confisco de
bens, falsos testemunhos, a morte de Cláudio Manuel da
Costa, o Glauceste Satúrnio, sob condições misteriosas
(XLIX), a execução de Tiradentes, antecipada na fala do
carcereiro (LII) e explicitada nos romances LVI a LXIII.
Após um período como magistrado, Tomás Antônio
Gonzaga, o Dirceu, é também preso, julgado e condenado ao
exílio em Moçambique (LIV e LV). Lá, longe de sua ex-
noiva e agora inconsolada Maria Dorotéia Joaquina de
Seixas, a Marília (LXXIII), casa-se com Juliana de
Mascarenhas (LXXI).
A quarta parte, narrada a partir do romance LXV ao
LXXX, evoca por um “cenário”, o ambiente em que vivera
Gonzaga, a maledicência, a Sátira, a antevisão da África e a
despedida da sua Marília (de Dirceu). A narrativa também
desdobra a grandeza e a miséria da vida de Alvarenga
Peixoto. Termina com o enterro de Bárbara Heliodora e o
retrato de Marília (Maria Dorotéia Joaquina de Seixas).
A quinta parte e última parte é composta pelos
romances vão do LXXXI ao LXXXV ou “Dos Ilustres
Assassinos” até “A Fala Aos Inconfidentes Mortos”. Neste
final, o Romanceiro expõe um novo plano temporal, com a
figura de D. Maria I - a louca - vivendo nas terras de onde, há
vinte anos, extirpara com a força e o degredo as raízes da
ansiada liberdade.
Nesse estudo teci alguma explanação sobre: o
primeiro “Cenário” (MEIRELES, Cecília. 2012 .p. 19),
“Romance XII ou De N. S. da Ajuda” ( Idem p. 47),
“Romance XXI ou Das ideias” (Idem p. 72), “Romance
XXIV ou Da Bandeira da Inconfidência” (Idem p. 81),
“Fala aos pusilânimes” (Idem p. 137), “Romance XLVIII ou
Do jogo de cartas” (Idem p. 141), “Romance LIII ou das
palavras aéreas”( Idem p. 150), “Romance LXXXI ou Dos
Ilustres Assassinos” (Idem p. 225), e “Romance LXXXII ou
Dos passeios da Rainha louca”( Idem p. 227)

4. 1. 1. Cenário

Na introdução denominada “Cenário” (Idem p. 19)


Cecília Meireles descreve o ambiente em que vai se passar a
história da heróica Inconfidência. A poetisa faz um quadro
das colinas, dos rios, das nuvens e dos sonhos:
Passei por essas plácidas colinas
e vi das nuvens, silencioso, o gado
pascer nas solidões esmeraldinas.

Largos rios de corpo sossegado


dormiam sobre a tarde, imensamente,
- e eram sonhos sem fim, de cada lado.

Entre nuvens, colinas e torrente,


uma angústia de amor estremecia
a deserta amplidão na minha frente.
( Idem p. 19)
Além da descrição deste quadro natural, a poetisa
demonstra a figura humana. Faz ainda, um paralelo entre as
Minas Gerais dos Inconfidentes e as Minas de hoje,
evocando, desta forma, a leitura da história deste povo.
4.1.2 Romance XII ou de Nossa Senhora da Ajuda

O Romance XII (Idem p. 47) possui quatro partes,


escritas em versos de sete sílabas métricas (redondilhas
maiores) e cinco sílabas métricas (redondilhas menores).
Cada parte é composta por três estrofes de redondilhas
maiores. Nestes versos, a poetisa faz a exposição da fé do
povo:

Havia várias imagens


na capela do Pombal:
e portadora de cortinas

e sanefa de damasco
e, no altar, o seu frontal.
........................................
Sete crianças, na capela,
rezavam, cheias de fé,
à grande Santa formosa.
Eram três de cada lado,
os filhos do almotacé.
(Idem p. 47)
Debaixo de cada grupo de estrofes, em redondilhas
menores, aparecem orações devotadas à Nossa Senhora da
Ajuda, pedindo a santa que socorresse a Tiradentes que
estava condenado à forca: (Salvai-o, Senhora,/com o vosso
poder,/do triste destino /
que vai padecer!)

4. 1.3 . Romance XXI ou Das ideias


Os versos deste romance evidenciam a revolta dos
inconfidentes diante dos ideais portugueses:
Portugal todo de luto:
triste Rainha o governa!
Ouro! Ouro! Pedem mais ouro!
E sugestões indiscretas:
Tão longe o trono se encontra! -
Quem no Brasil o tivera!
(Idem p. 72)

O texto fala, ainda, das Arcádias, da poesia, do


Arcadismo, e que os jovens mineiros mais do que praticar o
Neoclassicismo, sonhavam com a liberdade, “ainda que
tardia”:

Doces invenções da Arcádia!


Delicada primavera:
pastoras, sonetos, liras,
- entre as ameaças austeras
de mais impostos e taxas
que uns protelam e outros negam.
Casamentos, impossíveis.
Calúnias. Sátiras. Essa
paixão da mediocridade
que na sombra se exaspera.
E os versos de asas douradas,
que amor trazem e amor levam...
Anarda. Nise. Marília...
As verdades e as quimeras.
Outras leis, outras pessoas.
Novo mundo que começa.
Nova raça. Outro destino.
E os inimigos atentos,
que, de olhos sinistros, velam.
E os aleives. E as denúncias.
E as ideias
(Idem p. 75)
Nesse período, de enciclopedismo, em que os
estudantes partiam para a Europa e retornavam doutores,
“Em redor das grandes luzes /” havia “sempre sombras
perversas / Sinistros corvos” espreitavam “pelas janelas”.
Vila Rica (atual Ouro Preto) naquele tempo era uma cidade
de prestígio, ideias, rebeldia e traição.
O Barroco mineiro é, nesse romance, comentado e
descrito. Aleijadinho é citado por sua mestria e excepcional
perseverança, uma vez que, mesmo doente trabalhava. Daí os
versos: “Anjos e Santos nascendo / em mãos de gangrena e
lepra” (Ibidm Idem p. 125).

4.1.3 Romance XXIV ou Da Bandeira da


Inconfidência

A partir do Romance XXIV (Idem p. 81), a


insatisfação, a revolta contra a corte portuguesa é explicitada
com a confecção de uma bandeira (Libertas quae sera tamen).
Os versos do Romanceiro XXIV demonstram que, em Vila
Rica as ideias iluministas e o enciclopedismo se misturavam
à religiosidade e ao medo de pensar, de expor suas ideias,
porque:

Atrás de portas fechadas,


à luz de velas acesas,
brilham fardas e casacas,
junto com batinas pretas.
E há finas mãos pensativas
entre galões, sedas, rendas,
e há grossas mãos vigorosas,
de unhas fortes, duras veias,
de Evangelhos, cruzes, bênçãos.
Uns são reinóis, uns, mazombos;
e pensam de mil maneiras;
mas citam Vergílio e Horácio,
e refletem, e argumentam,
falam de minas e impostos,
de lavras e de fazendas,
de ministros e rainhas
e das colônias inglesa.
(Ibidm Idem p. 81-82)
Nesse momento histórico, marcado por um tempo
de encontros furtivos, sigilos e espionagem, acontecia a
Inconfidência e os inconfidentes procuravam um lema para
sua bandeira que severia ser hasteada no dia da “derrama”
(impostos cobrados à população).

E diz o Vigário ao Poeta:


“Escreva-me aquela letra
do versinho de Vergílio...”
E diz o Poeta ao Vigário,
com dramática prudência:

“Tenha meus dedos cortados,


antes que tal verso se escrevam...”
LIBERDADE, AINDA QUE TARDE,
(Idem p. 83)

Os versos acima registram de que forma os jovens


idealistas encontraram inspiração e a belíssima expressão
“LIBERTAS QUAE SERA TAMEN”, apartir das composições
vergilianas ou “Appendix vergiliana” formado por uma
coleção de poemas de temas muito variados, estilo e
qualidade que já desde a antiguidade eram pensadas como
sendo obras juvenis do
poeta romano Virgílio. 201 As vergilianas traduziam a poesia,
a arte e a liberdade.
A inscrição “Libertas quae sera tamen” foi trazida de um
poema de Virgílio e significa, “Liberdade, ainda que tardia”.
Esta frase foi o lema dos inconfidentes.

4. 1. 5 Fala aos pusilânimes

Esse romance mostra a indignação diante da traição


dos pulsilânimes, pessoas de alma pequena, sem força de
espírito, sem ideia e sem coragem. Esses traidores são aqui
acusados de podarem o sonho da liberdade e da
independência:

Se vós não fôsseis os pusilânimes,


revelaríeis a ânsia cordada
à vista dos córregos de ouro,
entre furnas e galerias,
sob o grito de aves esplêndidas,
...........................................
Escrevestes cartas anônimas,
apontastes vossos amigos,
201
Públio Virgílio Maro ou Marão (em latim: Publius Vergilius Maro; Andes, 15
de outubro de 70 a.C. - Brundísio, 21 de setembro de 19 a.C.), foi um poeta
romano clássico, cujo verdadeiro nome é a forma onomástica Vergilius, do indo-
europeu *uerg (cf. gr. érgon =ação; trabalho; enérgueia = energia), mas a
latinidade cristã, que admirava o seu caráter dócil e melancólico associou o seu
nome a uirgo (virgem); daí, em port. Virgílio, em fr. Virgile, em ingl. Virgil.
Embora muitos lhe atribuam outras obras, constantes da Appendix Vergiliana, sua
obra mais antiga foram as Bucólicas ou Éclogas, inspiradas nos Idílios
(‘eidýllion’, pequeno quadro poético) de Teócrito, em seguida as Geórgicas,
assimilado de Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo, e a Eneida, cuja absorção foram
os poemas homéricos: a Ilíada e a Odisséia.
irmãos, compadres, pais e filhos...
Queimastes papéis, enterrastes
o ouro sonegado, fugistes
para longe, com falsos nomes,
e a vossa glória, nesta vida,
foi só morrerdes escondidos,
podres de pavor e remorsos!
(Ibidm p. 137-138)

Os pusilânimes ceifaram a liberdade e o desejo


daquele momento, que era ser livre, mas o grande sonho não
acabou ali; a morte e degredo dos heróis apenas fortaleceram
as aspirações inconfidentes. A liberdade chegaria, talvez
tarde para o século XVIII, mas iluminaria muitos outros
séculos do futuro.

4. 1. 6. Romance XLVIII ou Do jogo de cartas

Jogo de cartas é uma metáfora da situação do Brasil


que, dominado por Portugal, era um joguete nas mãos da
Corte portuguesa.

Grandes jogos são jogados


entre a terra e o firmamento:
longas partidas sombrias,
por anos, meses e dias,
independentes do tempo...
............................................
Batem as cartas na mesa,
na curva mesa da terra.
Partida sobre partida,
perde-se renome ou vida:
mas a perdição é certa.
(Ibidm Idem p. 141)

Portugal fazia grandes e imprevisíveis jogadas com a


nação e seu o povo. Criava regras e, através delas, os
portugueses tinham as “cartas marcadas”, ou seja, brasileiros
destinados à morte e à prisão. Por outro lado, a qualquer hora,
pessoas que não pertenciam ou seguiam as ordens ou
manobras dos poderosos eram presas e assassinadas sem
justificativa.

4. 1 7. Romance LIII ou Das palavras aéreas

Esta composição enfatiza a ameaça da Inconfidência,


com relação ao poder da Coroa. Esse perigo foi extirpado
com a traição dos pusilânimes. Ficaram os sonhos e as
palavras aéreas:

Ai, palavras, ai, palavras,


que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
....................................................
Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação nem de hora...
- e estais no bico das penas,
- e estais na tinta que se molha,
- e estais nas mãos dos juizes,
- e sois o ferro que arrocha,
- e sois barco para o exílio,
- e sois Moçambique e Angola!
(Ibidm Idem p. 150-151)

Muito sangue, prisão, injustiça, lágrimas e terror marcaram os


acontecimentos daquela época, mas as palavras são potentes.
São como “fagulhas que lançadas pela língua são capazes
de incendiar grandes florestas”. As palavras lançadas voam
como o vento e, em seu percurso, adquirem novas formas e
texturas diferentes. Ao serem lançadas no ar, ou escritas,
dificilmente, voltam ao ponto de partida vazias. E, muitas
vezes, por onde passam deixam fagulhas perigosas,
principalmente se forem escritas. De acordo com o proverbio
latino: verba volant, scripta manent, que significa “as
palavras voam, os escritos permanecem”. Por isso o eu
poético exprime: Ai, palavras, ai, palavras,/ sois de vento,
ides no vento,/no vento que não retorna,/e, em tão rápida
existência,/tudo se forma e transforma.
As palavras aéreas, ditas pela boca, de forma oral,
( do grego (προφορική - comunicar-se pela boca) têm o
poder de clamar energias positivas ou negativas, trazer
oráculo (significa pequena boca). Para os romanos pareciam
dizer que a voz do destino é pequenina, é um oráculo e, por
isso, nem sempre podemos nos antecipar de modo a tirar o
melhor da vida. Isso significa que o oráculo pode trazer
desassossego para o corpo e alma. Vem dessa ideia o
significado das palavras oração, orador, (orare, usar a
boca), fazer uma prece, um discurso; clamar, rogar um
pensamento pela boca.
Daí também surgiu o nome do aedo (αέδο), que fala,
que recita, que fala) e, mais tarde, o oráculo ( o que
pronuncia) derivado do latim os, oris (boca). Segundo
Gilberto Mendonça Teles, em sua obra Defesa da poesia:
“Aedo e oráculo são portanto palavras que se identificam
semanticamente pelo sentido do culto de “boca”, e até de
“boca sagrada”, como se vê numa etimologia esotérica da
poesia (de phono = boca)” . (TELES, Gilberto Mendonça Teles,
2017, p. 18). 202
A escrita ((i)ʃˈkritɐ), latim scripta é registo ou a
representação do pensamento da palavra por meio de sinais,
que ficam cravados nas escritura. Essas palavras são ainda
mais poderosas, porque os registros ficam: - e estais no bico
das penas,/ - e estais na tinta que se molha,/- e estais nas
mãos dos juizes,- e sois o ferro que arrocha,/- e sois barco
para o exílio,- e sois Moçambique e Angola. Diante do
exposto, as palavras escritas, possuem estranha potência,
magia e enigma.

5. 1. 8. Romance LXXXI ou Dos ilustres assassinos

Dos ilustres assassinos chama atenção para o fato de


que a Corte não se importava com os brasileiros. Queria
apenas usufruir da riqueza da terra:

Ó grandes oportunistas,
sobre o papel debruçados,
que calculais mundo e vida
em contos, doblas, cruzados,
que traçais vastas rubricas
e sinais entrelaçados,
com altas penas esguias
embebidas em pecados!

202
TELES, Gilberto Mendonça Teles. Defesa da Poesia. Brasilia: Senado
Federal. Conselho editoria, 2017.
(Ibidm Idem p. 225)

Enquanto Portugal devorava a nação, era preciso que


alguém tirasse o país das garras dos “soberbos titulares, / tão
desdenhosos e altivos!”. Havia, pois, uma guerra. Muito
sangue correria. Porém, os ilustres assassinos não mataram os
ideais. Os mortos tornaram-se mitos e, portanto, ficaram mais
fortes, inesquecíveis e na memória e na alma do povo
brasileiro.

Os romances finais falam do poeta Alvarenga Peixoto,


sua esposa, Bárbara Eliodora, e sua filha, Maria Ifigênia
(LXXV a LXXX) (Idem p. 220); o retrato de Marília idosa;
lamentos pela calamidade mineira; e a loucura e morte de D.
Maria I (LXXXII(Idem p. 227) e LXXXIII(Idem p. 229)).

4. 1. 9. Romance LXXXII ou Dos passeios da Rainha


louca

A narrativa poética LXXXII (Idem p. 227) gira em


torno da Rainha I- a louca:

Entre vassalos de joelhos,


lá vai a Rainha louca,
por uma cidade triste
que já viu morrer na forca
ai, um homem sem fortuna
que falara em Liberdade...
(Ibidm Idem p. 227)
A mãe de D. João VI, 203 ao andar pelo Brasil, vê o
povo triste e acorrentado nas malhas de Portugal. Diante do
dramático quadro, D. Maria não teve, compaixão do clamor
dos brasileiros, libertando-os. Privou o Brasil da realização
de seu sonho, num acesso de sandice. E, realmente
mergulhou em sua loucura:

“Vou para o Inferno!” - murmura


“Já estou no Inferno!” “Não quero
que o Diabo me veja!”... - clama.
(É sobre chamas do Inferno
que rola a dourada sege,
com grande celeridade...)
......................................................
Toda vestida de preto,
solto o grisalho cabelo,
escondida atrás do leque,
velhinha, a chorar de medo,
Dona Maria Primeira
passeia pela cidade.

(Ibidm Idem p. 227-228)


D. Maria I - a louca - foi condenada às chamas do
inferno e do degredo de sua loucura. Nessa prisão sofreu o
medo do Diabo, do fogo, da dor e da morte. Teve um triste e
justo fim. Na falta e fraqueza da justiça dos homens, venceu e
prevaleceu a justiça de Deus.

203
A quinta parte do Romanceiro representa um novo plano temporal: D.
Maria I, a mesma que vinte anos antes lavrara as sentenças de morte e
degredo a contemplar com olhos de loucura a terra onde se desenrolou o
drama de soldados, poetas e doutores.
A obra é concluída com a “Fala aos Inconfidentes
Mortos”. Um dos romances mais significativos, o XXIV,
relaciona o ato da confecção da bandeira dos inconfidentes
com todo o movimento que eles preparavam em Ouro Preto.

Romanceiro da Inconfidência é um canto épico-lírico


que exalta os sentimentos nacionalistas e os anseios
libertários. É uma obra, cuja complexidade é atenuada pelo
tom lírico. Possuem, ao mesmo tempo, um sopro dramático
que teatralmente revela um texto magnífico, heróicos atores
(os inconfidentes) que encantam os leitores-espectadores.
Todo esse espetáculo tem como cenário
a bela e poética paisagem mineira, fechando com chave de
ouro a encenação de um tema riquíssimo: a Inconfidência
Mineira.

5. ENTRE O EFÊMERO E O ETERNO

Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu a 7 de


novembro de 1901, no Rio de Janeiro. Órfã de pai e de mãe
desde os três anos de idade, foi criada pela avó materna. A
ausência dos pais repercutiu fundamentalmente no espírito e
nos versos da poetisa. Daí nasce o signo do efêmero e do
eterno de sua poética, da consciência de que tudo é
transitório; por isso mesmo, o tempo é personagem central de
sua obra: O tempo passa, é fugaz, é fugidio.
Em sua obra Olhinhos de Gato, 204 a poetisa revela a
leitura que faz de sua infância, indicando as marcas que são
fundamentais em sua poesia, com relação à efemeridade e à

204
MEIRELES, C. Olhinhos de Gato. São Paulo: Moderna, 1983.
eternidade; e, na obra em prosa, nos conceitos de infância e
de criança.
Há uma mistura de temporalidades: uma autora adulta
que conta suas memórias de infância, a partir de fragmentos
de lembranças, que muitas vezes, em alguns pontos da
narrativa, não está claro se os fatos foram contados a ela ou
se tudo foi realmente foi testemunhado pela escritora, e é
uma real memória. Funde-se o vivido e o ouvido, do real e o
imaginário, o efêmero e o eterno; na construção da memória
de um outro tempo: da infância, do passado distante,
revivido por uma mulher experiente e que tem o poder da
palavra.
Para melhor compreensão do tema transcrevemos um
trecho de uma entrevista da autora para a Revista Manchete,
outubro de 1953:
“Essas e outras mortes ocorridas na família
acarretaram contratempos materiais, mas, ao mesmo
tempo, me deram, desde pequenina, uma tal
intimidade com a Morte que docemente aprendi
essas relações entre o Efêmero e o Eterno que, para
outros, constituem aprendizagem dolorosa e, por
vezes, cheia de violência. Em toda a vida, nunca me
espantei por perder. A noção ou sentimento da
transitoriedade de tudo é fundamento mesmo da
minha personalidade.”
205
(MENEZES, 1953, p. 49).

Cecília Meireles transfigurou, através de seus versos,


toda sua experiência com a morte e com a vida. A poetisa
sentiu profundamente a presença de ambas; desta última,

205
MENEZES, Fagundes de. Silêncio e solidão – dois fatores positivos na
vida da poetisa. Revista Manchete, Rio de Janeiro, 3 out. 1953.
guardou na memória e na poesia tudo o que viu, ouviu e
tocou.
A escritora, comentando sobre suas recordações da
infância, afirmou que:

Recordo céus estrelados, tempestades, chuvas


nas flores, frutas maduras, casas fechadas, estátuas,
negros, aleijados, bichos, suínos, realejos, cores,
tapetes... o mundo visto através de um prisma de
lustre, o encontro com o eco, essa música matinal
dos sabiás, lagartixas pelos muros, enterros,
borboletas, o carnaval, retratos de álbum, o uivo
dos cães, o cheiro doce de goiaba, todos os tipos
populares, a pajem que me contava com a maior
convicção histórias do Saci e da Mula-sem-cabeça
(que ela conhecia pessoalmente); minha avó que me
ensinava parlendas...
Minha infância de menina sozinha deu-me
duas coisas que parecem negativas e foram sempre
positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi
sempre a área da minha vida. Área mágica, onde os
caleidoscópios inventaram fabulosos mundos
geométricos, onde os relógios revelaram o segredo
do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu
olhar. (Op. Cit. MENEZES, 1953, p. 49).

Em uma crônica escrita para o jornal Diário de


Notícias, no qual a poetisa tinha uma “Página de Educação”
diária, ela menciona como a infância teve um papel essencial
para sua história:
Nós somos a saudade da nossa infância. Vivemos dela,
alimentamo-nos do seu mistério e da sua distância. Creio
que são eles, unicamente, que nos sustentam a vida, com a
essência da sua esperança. [...] As coisas que nos
impressionaram vivamente quando ainda não podíamos
definir os motivos da nossa surpresa e da nossa admiração,
quando nem sabíamos distinguir nitidamente essa
admiração e essa surpresa, deitaram raízes obstinadas nas
mais profundas regiões subjetivas; depois, foram sendo
elaboradas lentamente, e vieram à tona em dias
inesperados, afluindo, muitas vezes, em fragmentos –
porque há sempre mãos impiedosas, concretas ou abstratas
pairando sobre os destinos humanos... Somos, assim, um
outrora que se faz presente todos os dias, não porque o
presente seja a sua forma desejada como definitiva, mas
porque é a transição a que a natureza submete tudo quanto
transborda para mais longe, no tempo, e o crivo em que é
vertido o passado que se faz futuro.
(MEIRELES, 20 dez. 1930). 206

A poetisa deixa eviadenciado que as vivências da


infância ficaram enraizadas e determinaram seu futuro. A
infância foi uma época mágica em sua vida, por meio da
educação que recebeu da avó materna, Jacinta, e da ama
Pedrina.
Cecilia vivia num universos povoado de histórias
fantásticas, de músicas e sensações. Ela afiança:
Se há uma pessoa que possa, a qualquer momento,
arrancar de sua infância uma recordação maravilhosa, essa
pessoa sou eu. Já principiei a narrativa dessa infância num
pequeno livro de memórias, aparecido numa revista
portuguesa, com o título Olhinhos de Gato. Mas há muito
para contar. Tudo quanto, naquele tempo, vi, ouvi, toquei,
senti – perdura em mim com uma intensidade poética
inextinguível. Não saberia dizer quais foram as minhas
impressões maiores. Seria a que recebi dos adultos tão

206
MEIRELES, C. A infância. Publicado no Diário de Notícias, 20 dez.
1930. In: Crônicas de educação. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. v.
1.
variados em suas ocupações e em seus aspectos? Das outras
crianças? Dos objetos? Do ambiente? Da natureza?
(...)

Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas


que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim:
silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida.
Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos
mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo
do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais
tarde foi nessa área que os livros se abriram, e deixaram
sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão
harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa
estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida,
unidos como os fios de um pano. (MENEZES, 1953, p. 49).

Da meninice fantástica e dos momentos tristes,


povoados pelas de perdas de entes queridos, Cecilia Meireles
explana sobre os aspectos sinestésicos, que inspiraram sua
poesia, que se tornaram intensamente poéticos, “recordações
maravilhosas”, fáceis de serem recordadas, revividas na
memória.
A poetisa revela ainda, que não conseguiu avaliar
quais as maiores influências que teve: se o sentir o mundo por
meio das das pessoas, coisas ou das sinestesia do mundo,
das horas e do tempo.
Sobre suas leituras e seu amor pelos livros:

Muita gente hoje me pergunta quais foram as minhas


primeiras leituras. Na verdade, desde que aprendi a ler –e
nisso fui um pouco precoce –li tudo que estava ao alcance
da minha mão. Lembro-me que os livros ilustrados me
interessavam muito. Além da leitura, os livros também já
me interessavam como “objetos”, pelo seu aspecto gráfico,
sua encadernação, beiras douradas etc. Gostava muito
desse papel que se chamava “marmoreado” e que servia
para forrar as encadernações por dentro e também por
fora. (MEIRELES, 1993, p.82). 207

E acrescentava:

Sempre gostei muito de livros e, além dos livros


escolares, li os de histórias infantis, e os de adultos: mas
estes não me pareciam tão interessantes, a não ser, talvez,
Os Três Mosqueteiros, numa edição monumental, muito
ilustrada, que fora de meu avô. Aquilo era uma história
que não acabava nunca; e acho que esse era o seu
principal encanto para mim. Descobri o Dicionário, uma
das invenções mais simples e mais formidáveis e também
achei que era um livro maravilhoso, por muitas razões
(MEIRELES, 1993, p.83).

Toda vivência da escritora foi transformada numa


intensidade poética inextinguível. Sua vida está desenhada
em versos como “Desenho”:

Fui morena e magrinha como qualquer polinésia,


e comia mamão, mirava a flor da goiaba.
E as lagartixas me espiavam, entre os tijolos e as
trepadeiras.
........................................................................
O eco, burlão, de pedra em pedra ia saltando,
entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas.
............................................................................
Como a chuva caía das grossas nuvens, perfumadas!
..............................................................................
O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos
fecharam os olhos, quando queriam caçar o tempo.

207
MEIRELES, Cecília. Poesia Completa. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1993.
..................................................................................
e os grandes cães ladravam como nas noites do
Império.
..............................................................................
E minha avó cantava e cosia. Cantava
canções de mar e de arvoredo, em língua antiga.
E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos
e palavras de amor em minha roupa escritas.

Minha vida começa num vergel colorido,


por onde as noites eram só de luar e estrelas.” (Idem p.
76-77)

A menina-moça, Cecília Meireles, crescia


contemplando a natureza, as coisas, a vida e aprendendo a
amar o saber, cada vez mais. A leitura do mundo e dos livros
foi intensificada e refletida na vocação para o magistério.
Em 1917, forma-se na Escola Normal do Rio,
dedicando-se ao magistério primário. Paralelamente, Cecília
estudava línguas e música. Sua estréia na Literatura foi em
1919, com o livro Espectros. A partir da década de 30 dedica-
se ao ensino da Literatura Brasileira em várias Universidades
do Brasil e do exterior. Como jornalista, colaborou em quase
todos os jornais e revistas do Rio de Janeiro.
A Academia Brasileira de Letras, em 1965, concedeu
à Cecília Meireles, post-mortem, o prêmio Machado de Assis
pelo conjunto de sua obra: POESIA - Espectros, 1919;
Nunca Mais... e Poema dos Poemas, 1923; Baladas para El-
Rei, 1925; Viagem, 1939; Vaga Música, 1942; Mar Absoluto
e Outros Poemas, 1945; Retrato Natural, 1949; Amor em
Leonoreta, 1951; Doze Noturnos de Holanda e O Aeronauta,
1952; Romanceiro da Inconfidência, 1953; Pequeno
Oratório de Santa Clara, 1955; Pistóia, Cemitério
Brasileiro, 1955; Canções, 1956; Romance de Santa Cecília,
1957; A Rosa, 1957; Obra Poética, 1958; Metal Rosicler,
1960; Poemas Escritos na Índia, 1962; Solombra, 1963; Ou
Isto ou Aquilo, 1964; Crônicas Trovada da Cidade de Sam
Sebastiam do Rio de Janeiro no Quarto Cenário de Sua
Fundação pelo Capitão-Mor Estácio de Sá, 1965; Poemas
Italianos, 1968; Ou Isto ou Aquilo e Poemas Inéditos, 1969;
Cânticos, poesias inéditas, 1981. PROSA: Giroflê, Giroflá,
1956 e 1981, respectivamente; Quadrante 1 e Quadrante 2,
1962 e 1963, respectivamente; Escolha o Seu Sonho, 1964;
Vozes da Cidade, 1965; Inéditos, 1968; O Que se Diz e o
Que se Entende, 1980; Olhinhos de Gato, 1980.
ANTOLOGIAS: Antologia Poética, 1963; Seleta em Prosa e
Verso, 1973; Cecília Meireles, 1973; Flor de Poemas, 1972.
Cecília Meireles casou-se, em 1921 com o pintor
Fernando Correia Dias, com o qual teve três filhas: Maria
Elvira, Maria Matilde e Maria Fernanda. Viúva, casou-se em
1940 com o Prof. Heitor Grillo. Deixou cinco netos: Ricardo,
Alexandre, Fernanda Maria, Maria de Fátima e Luiz Heitor
Fernando. Morreu a 9 de Novembro de 1964, no Rio de
Janeiro, mas deixou sua canção e como a própria escritora
afirmou: “Um poeta é sempre irmão do vento e da água: /
deixa seu ritmo por onde passa”. Cecília deixou seu ritmo,
seu canto, sua obra poética vastíssima, eterna e encantadora.

6. A MULHER TAMBÉM TEM O QUE DIZER

Numa época em que a mulher era condenada a não


expressar a sua essência, a sua força e gana do ser mulher -
sensível e poético, Cecília soube mostrar seu universo lírico
e alcançou sua meta que era ”Acordar a criatura humana
dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam
arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem
pretensão filosófica ou de salvação - mas por uma
contemplação poética afetuosa e participante”. (MEIRELES,
1993, p. 80).
Cecília Meireles foi uma mulher que seguiu sua
marcha poética sem ter medo de ser poeta, nem de viver, nem
de morrer. Foi uma amante da alquimia verbal e de forma
especial amou o seu trabalho, assim como amou a vida. Seu
poema “Marcha” (Idem p. 25) traz o seguinte depoimento:
“Gosto da minha palavra / pelo sabor que lhe deste: / mesmo
quando é linda, amarga / como qualquer fruto agreste. /
Mesmo assim amarga, é tudo / que tenho, entre o sol e o
vento: / meu vestido, minha música, / meu sonho e meu
alimento.”
Diante do exposto, a poesia para Cecília Meireles é
tudo. Por meio de seus versos, a poetisa construiu um
mundo de sonhos e de realidades. Sua gama temática é
extensa; foram mais de quarenta anos de obstinada atividade
criadora, em que o exercício do verso se fez obrigação
cotidiana.
De seu empenho resultou a composição de um painel,
seguramente sem similar na lira de Língua Portuguesa, em
que a poetisa representou a vida em sua plena manifestação:
o universo e as gentes; a flor e o pássaro; os seres ínfimos e
as estações do mundo; a pedra, a cor, o mar, a criança e a
carga de sentimentos; impressões, vivências e juízos que
informam a mente e a natureza humanas. Inventário da vida
de uma doce mulher, uma obra riquíssima, grandiosa -
reflexo do ser de uma mulher especial - Cecília Benevides
Carvalho Menezes - A mulher-poeta que soube contemplar o
as coisas mundo e, filosoficamente, reinventar a vida e
marcar sua existência e sua poesia na travessia entre o
efêmero e o eterno.
Seu legado à literatura tem realmente um “sangue
eterno e a asa ritmada”. Sua poesia a cada dia que passa tem
o poder de encantar as almas amantes da alquimia poética.
Seus poemas dizem o indizível.

CONCLUSÃO

Cecília Meireles começou sua carreira poética sob o


signo do Simbolismo, com fortes e nítidas influências de
Cruz e Sousa e do misticíssimo Alphonsus Guimaraens.
Mesmo após sua adesão ao Modernismo, a poetisa
nunca se desvencilhou das marcas simbolistas, especialmente
manifestadas pela temática e pela ambiência lírica, em que se
movimenta e que é geralmente afastadas do imediato, do real
contíguo, que sua poesia exige e que está marcada pelas
alusões e pelas sugestões, pelas imagens vagas que, ora se
evolam, ora se afundam em mar indefinido.
Junto às marcas simbolistas, no plano da linguagem e
temática, alinham-se preferências por símbolos de origem
medieval (como a rosa por exemplo) e por tópicos extraídos
da cultura portuguesa, tanto de natureza popular, quanto a de
raízes cultas. Assim, a habilidade com que trabalha os versos
breves (redondilha maior e a menor) dá a muitos de seus
poemas um caráter de comunicação fácil que certamente não
teriam em vista das imagens que os integram.
Seus versos têm recorte nítido, musicalidade e, quase
sempre, trabalham associações entre estados de espírito e
formas exteriores que lhes servem de contraponto e símbolo.
A poesia ceciliana caracteriza-se pelo lirismo, pela
delicadeza com que tematiza a passagem do tempo, a
transitoriedade da vida, a precariedade das coisas e dos seres,
a condição solitária do ser humano, a falta de sentido da
existência e a consciência da imortalidade por meio do
poético.
Cecília Meireles é dona de uma temática extensa,
fruto de mais de quarenta anos de incessante trabalho
criativo. Dentro desse universo poético, um tema ceciliano
merece destaque: o nacionalismo do poema épico-lírico -
Romanceiro da Inconfidência -. Esta obra, feita a partir de
fatos históricos, de tradições e lendas pesquisadas pela
autora, resgata liricamente a Inconfidência Mineira, anseios
libertários, os amores de Tomás Antônio Gonzaga e de sua
Marília e a vida na Vila Rica, do século XVIII. Todos esses
fatos são contados através de uma narrativa rimada,
denominada Romances.
Cecília Meireles penetrou no universo caótico e
indecifrável das palavras, onde tudo são silêncio e mistério.
Desse mundo, com maestria, a artista retirou à música, as
sensações, a plurisignificação verbal, e mostrou a todos a
beleza da linguagem poética. Sua poesia expressa vida,
morte, sonho, liberdade, amor e o poder que possui seus
versos de “sangue eterno e asa ritmada”, de transformar o
efêmero e o eterno.
ANTOLOGIA POÉTICA DE
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
.
1. A POESIA DE 30

Drummond pertence ao segundo tempo do


Modernismo brasileiro, fase que amadurece as propostas de
22, através da criação de uma expressão verdadeiramente
brasileira, sem deixar de ser universal. Ou melhor, essa fase
integra sabiamente nossa expressão poética ao sistema
contemporâneo ocidental. Abranda-se o entusiasmo por
nossas particularidades exóticas de país tropical. O Brasil
passa a ser encarado como uma parcela do Ocidente, o que,
de fato, coincide com nossa condição de povo formado sob o
influxo dominante da civilização europeia. Não são
esquecidas as influências da cultura negra, mas sente-se mais
o peso do Capitalismo, do Marxismo, do Existencialismo e da
Psicanálise. Além da voz dominante de Drummond,
participaram desse processo poetas como Murilo Mendes,
Cecília Meireles, Vinícius de Moraes e Jorge de Lima, entre
outros.

2. A ANTOLOGIA POÉTICA DE CARLOS


DRUMMOND DE ANDRADE

A Antologia Poética 208 de Drummond contém os dez


melhores livros da poesia desse poeta maior. Foi editado pela
primeira vez, com o título de Reunião, em 1969, pela livraria
José Olympio Editora, quando poeta tinha 67 anos. O título
Reunião e o próprio volume foram concebidos
provisoriamente, porque o poeta pretendia ampliar o volume
e alterar o título à medida que fosse escrevendo novos livros.
208
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética organizada
(organizada pelo autor) / Carlos Drummond de Andrade; prefácio, Marco
Lucchesi – Rio de Janeiro: Record, 2002.
Isso vinha acontecendo sistematicamente com as edições
conjuntas de suas poesias e tornou a acontecer em 1983,
quando Reunião foi acrescida de nove livros e reeditado com
o nome de Nova Reunião – Nove livros de Poesia, e
posteriormente o subtítulo denominado Dez Livros de
Poesia: Alguma Poesia (1930), Brejo das Almas (1934),
Sentimento do Mundo (1940), José (1942), A Rosa do Povo
(1945), Novos Poemas (1948), Claro Enigma (1951),
Fazendeiros do Ar (1954), A Vida Passada a Limpo (1959) e
Lição de Coisas (1962).
Ao organizar a sua Antologia Poética, em 1962,
Drummond optou por apresentá-la em certos núcleos
temáticos, que seriam, segundo suas próprias palavras ,
“certas características, preocupações e tendências que a
condicionam ou definem, em conjunto. A Antologia lhe
pareceu assim mais vertebrada e, por outro lado, espelho mais
fiel. Escolhidos e agrupados os poemas sob esse critério,
resultou uma Antologia que não segue a divisão por livros
nem obedece a cronologia rigorosa”. (Op. Cit. ANDRADE C.
D. (2002) p. 17). Desta forma, o autor ainda afirma que não
selecionou os poemas pela “qualidade nem pelas fases que
acaso se observam em sua carreira poética. Cuidou antes de
localizar, na obra publicada, certas características,
preocupações e tendências que acondicionam e definem, em
conjunto”. (ANDRADE C. D. (2002) p. 17).
Os temas e as respectivas seções são os seguintes: O
indivíduo (Um eu todo retorcido), a terra natal (Uma
província: esta), a família (A família que me dei), amigos
(Cantar de amigos), o choque social (Na praça de convites),
o conhecimento amoroso (Amar- amaro), a própria poesia
(Poesia contemplada), exercícios lúdicos (Uma, duas
argolinhas), uma visão, ou tentativa de exploração e de
interpretação da existência (Tentativa de exploração e
interpretação do estar-no-mundo), outros temas
(Suplemento).
Não é difícil perceber que todos esses temas estão
estreitamente interligados. O indivíduo surge de uma família
numa terra qualquer. Cresce. Faz amigos e frequenta a praça,
onde amplia suas relações e conhece a política e o amor.
Então, descobre a poesia, na qual tanto se adestra que chega a
brincar com as palavras e compõe opinião sobre as coisas, o
mundo e a existência.
Como se vê, os oito últimos temas da Antologia
Poética de Carlos Drummond de Andrade não passam de
variações ou projeções do primeiro – o indivíduo. Assim,
deve ser lida como uma espécie de unipoema, no qual se
condensa uma das grandes biografias espirituais deste século,
a do mineiro Carlos Drummond de Andrade.

2.1. Um Eu Todo Retorcido

A poesia é a arte que se manifesta pela palavra e o seu


objeto é o reino mágico e infinito do espírito. A poesia é a
comunicação, a expressão do "eu" do artista por meio do
signo literário, isto é, da palavra plurisignificante e da
metáfora. Através deste "eu" o poeta vê o mundo e
simultaneamente volta para si próprio, numa atitude
contemplativa e filosófica. Porém, o filósofo contempla o
mundo exterior, ideias gerais, objetivas, universais.
Contempla também o mundo interior, ideias particulares,
subjetivas, dentro dos seus limites pessoais. No entanto,
paradoxalmente, ao contemplar o próprio reino, o poeta
descobre o mundo inteiro.
O artista da palavra dirige-se, pois, para dentro de seu
mundo interior, à procura daquilo que o revela, enquanto ser
dotado de fantasia criadora e vivências. Porém, no reflexo da
própria imagem, o poeta vê o sentimento do mundo refletido
nas águas da vida. Desta forma, os mundos subjetivos e
objetivo aderem-se, imbricam-se, formando uma só entidade
subjetiva e objetiva ao mesmo tempo, retratando a vida, com
a predominância do primeiro. A poesia é a revelação
espiritual da vida, revela o mundo e cria outro, o poético.
A poética de Carlos Drummond de Andrade exercita
esse imbricamento entre os mundos subjetivos e objetivo,
entre o "eu" e o mundo exterior. No entanto, logo nas
primeiras obras pode ser observado um conflito entre o eu
versus o mundo. Ao contemplar as águas da vida, viu
imagens de um indivíduo desajustado, marginalizado, à
esquerda dos acontecimentos, portanto um gauche: Quando
nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse:
Vai, Carlos! ser gauche na vida. (Idem p. 21). Gauche é um
adjetivo francês que, no caso, significa "sem jeito", de
esquerda, às avessas, tímido; é também postura peculiar ao
poeta em face de si e do mundo. Caracteriza ainda o
contínuo desajustamento entre a sua realidade e realidade
exterior. Há uma crise entre sujeito e objeto que, ao invés de
interagirem e se completarem, terminam por se opor
conflituosamente.
O “Poema de Sete Faces” (Idem p. 21) abre Alguma
Poesia (1930), a primeira obra publicada de Drummond.
Neste poema o tema do gauchismo é apresentado pela
primeira vez e contém uma síntese de vários aspectos que
caracterizarão a obra de do autor no futuro. O poema
apresenta sete estrofes que, aparentemente, nada têm a ver em
si. Porém, sete é um número mágico, alquímico, simboliza,
entre outras coisas, a arte e a perfeição.
Por meio das “sete faces” / estrofes o poeta exprime
sua solidão ante as coisas e as pessoas que o cercam. Fora de
si mesmo a realidade nada lhe diz senão que está sozinho
com sua timidez e sua falta de jeito para viver, que lhe veio
de nascença. Não fosse a inquietação dos homens, a vida
seria mais bela. De súbito, o poeta faz um comovido apelo a
Deus, nascido da consciência da sua própria fraqueza. Diante
dela o mundo lhe parece vasto e o “eu” poético não vê a
possibilidade de se fazer entender, mesmo apelando
ironicamente para uma rima como solução. No entanto, ele
sabe que vasto também é o sentimento que carrega em seu
coração. Para contê-lo, apela para um recurso típico da sua
maneira de ser, na última estrofe, atribuindo sua emoção à
bebida e a beleza da lua.
O gauchismo do “eu” lírico é anunciado por “Um
Anjo Torto”: Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem
na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida (Idem p.
21). Os anjos são comuns nas histórias religiosas, como é o
caso do anjo Gabriel, que ordena a José que fuja de Jerusalém
com o menino Jesus. Os anjos bíblicos, geralmente, são bons,
prenunciam coisas boas e auxiliam as pessoas a encontrar
melhor caminho; enfim, são anjos de luz, numa primeira
leitura da possibilidade sêmica do texto. O anjo que aparece
ao “eu” lírico é o contrário da imagem religiosa: é “torto”,
vive “na sombra”, tem um olhar incerto, expressão
enigmática e irônica. É um anjo barroco, como aqueles das
igrejas mineiras, marcados por mistérios, contradições e
linhas que oscilam entre o bem e o mal. É esta figura cheia
de estranhamento que prediz o futuro gauche do poeta e, é
este o momento que a arte adquire forma, voz , ação e revela
suas sete faces ao grande poeta Carlos Drummond de
Andrade.
Fazendo uma interpretação simples, poderíamos dizer
que o “eu lírico”, diante do sombrio anúncio, vê o mundo
vazio e superficial e as relações humanas parecem ser
mediadas apenas pelo desejo: As casas espiam os homens /
que correm atrás de mulheres. / À tarde talvez fosse azul, /
não houvesse tantos desejos (Idem p. 21). Porém, foi por
meio do verbo anunciado que o nosso artista descobriu a
palavra poética e seguiu seu caminho de sons, vocábulos,
imagens, alquimia e a marca do humano. A partir instante
descoberta do poético, o artista da palavra fez da rima, não
uma solução, mas uma ponte entre o homem e sua própria
humanidade perdida na falta de sensibilidade e arrogância.
Drummond traz na alma os sentimentos deste mundo
que é mais gauche do que o escritor. Este artista, apesar de
demosntrar um aparente “orgulho” e introspecção, traduziu
sempre o sentimento mais nobre que existe no mundo: o
amor ao próximo e fez de sua poesia a sua vitória verbal, ao
explanar nas sete faces da palavra poética, todo o lirismo que
o mundo precisava possuir.
Este sentimento de solidariedade do autor se estende
ao homem do povo chamado “José” (Idem p. 30). Esse
personagem pode ser uma encarnação do próprio poeta, mas
também a do ser humano, do seu semelhante, que sofre todas
as dificuldades e decepções desta vida, mas continua a viver
com obstinação, apesar de não ter nenhuma perspectiva, nem
mesmo para aonde ir:

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
(Idem p. 30)

José é mais gauche do que Carlos, ou qualquer outro


gauche poetizado por Drummond. É uma invenção mais
apurada. No Carlos, do poema do “Poema de Sete Faces”, o
poeta se reconhece como gêmeo, mas José está a meio
caminho entre ele e o leitor. O “eu” de José é ainda mais
retorcido, mais gauche, mais torto, mais sombrio do que o de
Carlos. Principalmente, José não tem lastro familiar, não tem
sobrenome, não sabe de onde veio nem para aonde vai. Tem a
chave na mão, mas não existe porta. Quer voltar ao passado,
mas o passado secou. Suas alternativas não passam de
hipóteses seguidas de reticências, de vazios, do nada. Até a
morte lhe é estranha. José é a essência do ser aporético, que
não encontra saída nenhuma na vida. É o chamado zero à
esquerda, pessoa sem valor, sem nada, niilizado, símbolo de
uma era de massificação, época de objetos e de não sujeitos.
José surge em 1942, como parte de Poesias. O poema
que dá título ao livro, sintetiza as preocupações básicas do
poeta neste momento: a consciência de seu ser-no-mundo e o
questionamento do sentido da existência humana.
Através da luta com as palavras, Drummond busca
expressar essa conexão eu-mundo. Relação ainda bastante
conflitiva, fruto da autonegação, da solidão que invade o
artista da palavra, culminando na necessidade de adoção da
máscara, José, a persona, por meio de quem fala o ser
qualquer.
José é um livro em que o "eu" lírico, desencantado,
percebe a sua solidão e a falta de perspectiva que o grande
mundo o oferece. O poema "A Bruxa" (Idem p. 28) expõe
esse momento de conscientização da solidão do homem no
quarto, na América, no mundo: Nesta cidade do Rio, / de
dois milhões de habitantes, / estou sozinho no quarto, / estou
sozinho na América. // Estarei mesmo sozinho  / Ainda há
pouco um ruído / anunciou vida a meu lado. / Certo não é
vida humana, / mas é vida. E sinto a bruxa / presa na zona
de luz (Idem p. 28).
A tomada de consciência da própria condição de
solitário leva a construção de um desejo de poetizar sobre a
vida, naquilo que ela oferece não de pior, mas de prazer. Daí
a necessidade de encontrar um amigo que seja leitor de
Horácio, que saiba viver secretamente os prazeres da vida e
ser, principalmente, amigo.
Porém, a realidade é um grande beco sem saída, é
uma noite de confidências assustadoras, de vozes que
ressoam como os gritos da bruxa a atordoar a paz, esperança
de ter as mãos dadas com o companheiro e ter fé no futuro. O
"eu" lírico é um “José” sem festa, sem minas, sem ouro, sem
crença e amigo, um eu todo retorcido marcado por profunda
angústia e solidão.
O poema de Drummond é uma flor, uma vida que se
contrapõe à náusea da esterilidade dos seres insensíveis e sem
essência. "A flor e a Náusea" (Idem p. 36) traduz uma forte
carga existencialista.
O existencialismo é uma variante da temática social
do livro A Rosa do Povo (1945). As inquietações existenciais
de Drummond possuem fortes conexões com o cotidiano da
grande cidade, mas também com o passado do poeta. Minas,
a família, as ligações afetivas formam a rede sutil dos
elementos que lhe fornecem a matéria – prima de suas
investigações existenciais, em cujos extremos se localizam
dois grandes mistérios, mediados pelo amor – que é sempre
amar. A expressão da crise do indivíduo em face de um
mundo também todo retorcido é evidenciada em "A flor e
Náusea" Idem p. 36):

Preso à minha classe e a algumas roupas,


vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo
Posso, sem armas, revoltar-me

Olhos sujos no relógio da torre:


Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas,
alucinações e espera.
O tempo podre, o poeta podre
fundem-se no mesmo impasse
(Idem p. 36)

“A Flor e a Náusea” traz um olhar reflexivo sobre a


própria natureza do poético e a sua função social, por meio
de metáforas. Tal reflexão exala perfume e náusea ao mesmo
tempo, faz apologia à paz, fala da guerra e dos horrores da
humanidade, ressaltando o branco, em oposição ao cinza,
para expressar as contradições e dificuldades que a poesia
social diariamente enfrenta.
Assim, “A Flor e a Náusea”, flor-poesia, revela a
consciência da limitação do poema chamado social e
considerado, por muitos, como “poema sujo”, “poesia
impura” ou “anti-poesia”. A flor-poesia é mal vista, é
considerada maldita, marginal: nasceu na rua, no asfalto,
não possui cor e nem pétalas, sua cor não se percebe./ Suas
pétalas não se abrem./ seu nome não está nos livros. / É feia.
Mas é realmente uma flor/ (Idem p. 37). Uma flor-poesia-
revolução.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da
tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em
pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e
o ódio.
(Idem p. 37).

A função da arte poética como “Rosa do Povo”, como


a poesia que fala do povo, é marcada por dificuldades, por
caminhos espinhosos e vida severina. João Cabral de Melo
Neto em Morte e Vida Severina assim poetizou sobre a
poesia dita social: É difícil defender, / só com palavras, a
vida, / ainda mais quando ela é / esta que se vê, severina.
(NETO, J. C. M. (1980) p. 112). 209 De fato é nauseante a
ideia de que o poeta pode até defender ou denunciar os
problemas da carência humana, mas não pode resolvê-los de
forma prática.
Esta circunstância de impotência diante dos
problemas da vida provoca enjôo e revolta num poeta que
tem dentro de si, um coração maior que o mundo e todos os

209
MELO NETO, João Cabral. Morte e Vida Severina e Outros Poemas
em Voz Alta. 12ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio. 1980.
sentimentos dos homens. Sua vontade é dar um grito de paz
através da sua rosa. Este ato é coerente para quem escreveu
dizendo Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. / Ao menino de
1918 chamavam anarquista. / Porém meu ódio é o melhor de
mim. / Com ele me salvo / e dou a poucos uma esperança
mínima. (Idem p. 37).
Nesses versos, de “A Flor e a Náusea”, Drummond
depõe sobre um curioso episódio de sua vida que, graças a
um incidente com um professor de Português, ele seria
expulso do colégio Anchieta, em Nova Friburgo, no Rio de
Janeiro. Tinha Drummond seus 17 anos e nesta ocasião foi
acusado de insubordinação mental e anarquista. O jovem,
denominado revolucionário, tornou-se um dos maiores
poetas da língua portuguesa e o professor de português ficou
na história marcado por sua incoerência e insensatez, por sua
visão retorcida sobre a educação e sobre o homem.

2.2. Uma Província: Esta

A terra natal, em Drummond, não é apenas a sua


Itabira de Mato Dentro - berço do poeta - mas as Minas
Gerais com suas cidades históricas, seus espíritos,
personagens e cultura. No poema “Prece do Mineiro no Rio”
(Idem p. 78).
Carlos Drummond de Andrade realiza essa
transfiguração da Terra Natal, em matéria poética: Espírito
de Minas me visita, / e sobre a confusão desta cidade, onde
voz e buzina se confundem, / lança teu claro raio
ordenador. / Conserva em mim ao menos a metade / do que
eu fui de nascença e a vida esgarça (Idem p. 78). A vida é a
maior fonte de inspiração para este poeta de alma e ofício.
Por meio da leitura de todos os mundos, o poema surge
poderoso. Sua terra e sua gente foram os primeiros mundos
observados. Por isso, a família é antes de tudo tema de sua
poesia: desde a figura paterna, passando pela mãe, irmãos,
tios e até a preta velha chamada Maria. De sua terra e família
nasce o coração maior que o mundo e toda a força evocativa
de sentimento, de harmonia e de humanismo compõem essa
poética do tempo presente e dos homens presentes.
Nos oito poemas que compõem essa seção, Carlos
Drummond de Andrade percorre o “selo de Minas” colado
em sua poética e marcando o seu jeito de ver o mundo, de
sentir as coisas, de se colocar na vida: “Cidadezinha
qualquer” (Idem p. 63), “Romaria” (Idem p. 64),
“Confidências do Itabirano” (Idem p. 66), “Evocação
Mariana” (Idem p. 67), “Canção da Moça – Fantasma de
Belo Horizonte” (Idem p. 68), “Morte de Neco Andrade”
(Idem p. 72), “Estampas de Vila Rica” (Idem p. 72), “Prece
de Mineiro no Rio” (Idem p. 78).
Através de sua viagem poética, Drummond descreve
cubisticamente a história de sua terra natal: a monotonia das
cidadezinhas, as festas religiosas, as igrejas, seus anjos tortos,
as minas, as estradas de ferro, cidades e suas histórias, os
personagens e os fatos que vivenciou ou assistiu, o gado das
Minas e do tempo confideciado no canto de um itabirano:

Alguns anos vivi em Itabira.


Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é
porosidade e comunicação
(Idem p. 66)
“Confidência do Itabirano” (Idem p.66), a partir do
título, já exprime a intenção do autor: falar de sua cidade de
origem, que tanto o marcou, e cuja lembrança continua
presente em sua vida como uma fotografia na parede.
A herança itabirana é presentificada não só nos
objetos que o cercam, mas na sua maneira de ser – a tristeza,
o orgulho, o hábito de sofrer – que atribui ao fato de haver
nascido e vivido naquele ambiente.
A doce herança itabirana é marcante na obra
drummondiana. Livros como Brejo das Almas, Confissões de
Minas, Sentimentos do Mundo, Boitempo, Menino Antigo e
Esquecer para Lembrar revelam sentimentos para com a
terra natal, revolvem o passado na tentativa, talvez, de
compreender a sua condição no mundo como homem e como
poeta.
Foi através da leitura que o jovem poeta adquiriu
informações e desenvolveu reflexões críticas sobre a
realidade. Algumas leituras foram decisivas para a formação
do Carlos poeta que, de sua Itabira do Mato Dentro,
observava o cosmopolitismo da cidade grande ou dos países
em evidência. Daí a ironia ao seu mundo interior revelado por
um anjo torto / desses que vivem nas sombras da timidez e,
talvez como o próprio poeta, também um gauche provinciano
sequestrado pela vida besta, como certa vez observou Mário
de Andrade.
É nesse ponto que podemos compreender a veia
irônica marcante do poema "Cidadezinha Qualquer" (Idem p.
63), inserido pelo poeta em "Uma Província: Esta" e
publicado em Alguma Poesia.
“Cidadezinha Qualquer” (Idem p. 63) é o retrato
descritivo da monotonia, da mesmice, da rotina sem perdão
das cidades interioranas. É o reflexo de um mundo
excêntrico, longe dos grandes centros cosmopolitas. Por isso,
o substantivo cidade, no diminutivo, ganha uma carga
semântica de inferioridade e pequenez enfatizada ainda pela
adjetivação qualquer : isto porque é uma cidadezinha
comum, reles, sem qualidades, sem determinação e nem
perspectiva, perdida nas Minas Gerais da vida.
Nesse lugar, de casas entre bananeiras / mulheres
entre laranjeiras, fora dos grandes centros, tudo vai
reiteradamente devagar: homem, cachorro, burro, coisas, tudo
sequestrado por uma vida besta. Essa mansidão faz parar o
tempo, o ar e a pontuação: metaforizada já na primeira estrofe
do poema, o que pode ser verificada no caos da falta de
vírgulas a sugerir um lugar sem lei, sem homem e sem Deus.
“Cidadezinha Qualquer” exprime um espaço solto na
existência, uma ausência de ordem e de um mundo primitivo,
sem planejamento, que pode ser resumido por meio da
locução adverbial "ao deus-dará" que significa à toa, sem
governo próprio, descuidado, a reboque, a esmo, ao acaso,
devagar, sem visão, ausente do mapa, abandonada, vaziada
de ação e movimento.

2.3. A Família Que Me Dei

Carlos Drummond de Andrade é um Poeta Maior e,


como tal, trabalha temas metafísicos ou políticos, portanto
universais. Dessa forma, a família que surge em seus poemas
não é necessariamente aquela que ele teve, num
memorialismo subjetivo, mas aquela que o tempo, depois de
passado, permite conquistar.
Essa família que agora aparece é a representação da
vida transformada em matéria de poesia. O “eu” poético que
aparece nos textos é uma transfiguração das experiências
vividas pelo próprio poeta, mas que traduzem os sentimentos
do mundo também. “Retrato de família” (p. 83), “Os bens e o
sangue” (Idem p. 86), “infância” (Idem p. 93), “Viagem na
família” (Idem p. 94), “Convívio” (Idem p. 98), “Perguntas”
(Idem p. 99), “Carta” (Idem p. 102), “A mesa” (Idem p. 104),
“Ser” (Idem p. 116) e “A Luís Maurício, infante” (Idem p.
117) são os poemas escolhidos para essa seção que é um
abrir de baús / e de lembranças violentas (Idem p. 94), uma
“viagem na família” através do poético.
Por intermédio da poesia o “eu” lírico descobre a sua
história e compreende o valor da vida. Essa descoberta não é
piegas, sentimental, ao contrário, é metafísica e, às vezes,
intolerável para o poeta que sente o desejo de abafar o
insuportável mau cheiro da memória, como no poema
“Resíduo” (Idem p. 320).
Outras vezes, reconhece a dimensão da exemplaridade
que este passado tem em sua vida e em sua poesia, como nos
poemas “A Mesa” (Idem p. 104) e “Os Bens e o Sangue”
(Idem p. 86). No primeiro, surge a vontade louca de recuperar
um tempo perdido para sempre: E não gostavas de festas... /
Ó velho, que festa grande / hoje te faria a gente. / E teus
filhos que não bebem / e o que gosta de beber, / em torno da
mesa larga, / largavam as tristes dietas, / esqueciam seus
fricotes, / e tudo era farra honesta / acabando em
confidência (Idem p. 104). No último, podemos observar a
voz dos laços familiares que evoca este poeta cantando:

– Ó meu, ó nosso filho de cem anos depois,


que não sabes viver nem conheces os bois
pelos seus nomes tradicionais... nem suas cores
marcadas em padrões eternos desde o Egito.
(p. 92)

A corrente familiar torna-se uma cadeia insuperável e,


a despeito das diferenças, está selado pelas leis reunidas num
código especial onde predominam “Os bens e o sangue”
(Idem p.86). Pela voz dos parentes visitados, negados e nunca
esquecidos, ganha som da sentença definitiva dos laços de
família.
Os sentimentos se alteram de forma insensata
expulsando a possibilidade de qualquer visão mais enfeitada
do que pode ter sido a convivência. Viajando através da
memória na história da família o “eu” poético reflete:

No deserto de Itabira
a sombra de meu pai
tomou-me pela mão.
Tanto tempo perdido.
Porém nada dizia.
Não era dia nem noite.
Suspiro? Vôo de pássaro?
Porém nada dizia.
(Idem p. 94)

O poema “Viagem na Família” (Idem p. 94) é a descrição de


uma “viagem patética” que empreende sempre guiado pela
misteriosa figura do pai, levando-o como uma muda imagem
virgiliana 210 pelo espaço antigo, onde há mortos amontoados,

210
Dante, perdido numa selva escura, percorre nela toda a noite e então
surge uma a imagem de Virgílio, que o reanima e se oferece a tirá-lo de
lá, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Canto I, abaixo está
escrito: Da nossa vida, em meio da jornada/Achei-me numa selva
tenebrosa/ Tendo perdido a verdadeira estrada./ Dizer qual era é cousa
tão penosa,/ Desta brava espessura a asperidade, / Que a memória a
casas em ruínas, ruas, relógios e baús. No deserto de Itabira/ a
sombra de meu pai
tomou-me pela mão. /Tanto tempo perdido./Porém nada dizia.
/Não era dia nem noite./Suspiro? Voo de pássaro?Porém nada
dizia.// No deserto de Itabira/a sombra de meu pai /tomou-me pela
mão. /Tanto tempo perdido./Porém nada dizia. /Não era dia nem
noite. /Suspiro? Voo de pássaro/ Porém nada dizia.
Pisando livros e cartas, lá vão os dois, o filho
angustiado indagando, o pai silencioso sugerindo mudamente
a necessidade de tais roteiros. Longamente caminhamos. /Aqui
havia uma casa./A montanha era maior. /Tantos mortos
amontoados,/o tempo roendo os mortos./E nas casas em ruína,
/desprezo frio, humildade. /Porém nada dizia. (...) Pisando livros e
cartas,/viajamos na família. Casamentos; hipotecas; os primos
tuberculosos;
a tia louca; minha avó /traída com as escravas,/rangendo sedas na
alcova./Porém nada dizia.

A viagem na família apresenta muitos momentos, ora


lirismo, recordação marcada por saudades, ora ressentimento:
Vi mágoa, incompreensão / e mais de uma velha revolta / a
dividir-nos no escuro. / A mão que eu não quis beijar, / o
prato que me negaram, / recusa em pedir perdão. / Orgulho.
Terror noturno. / Porém nada dizia. (Idem p. 96). E ainda:

Olhei-o nos olhos brancos.


Gritei-lhe: Fala! Minha voz
vibrou no ar um momento,

relembra inda cuidosa. (Beatriz, depois, o guiará ao Paraíso). DANTE,


Alighieri.(1265-1321) A Divina Comédia ; tradução, prefácio e notas
previas de Hernâni Donato. São Paulo: Abril Cultural, 1981.
bateu nas pedras. A sombra
prosseguia devagar
aquela viagem patética
através do reino perdido.
Porém nada dizia.
(...)
A pequena área da vida
me aperta contra o seu vulto,
e nesse abraço diáfano
é como se eu me queimasse
todo, de pungente amor.
Só hoje nos conhecermos!
Óculos, memórias, retratos
fluem no rio do sangue.
(...)
Senti que me perdoava
porém nada dizia.
As águas cobrem o bigode,
a família, Itabira, tudo.
(Idem p. 97).

Em outros instantes vem a vontade de voltar no tempo


ao perceber que cometeu muitos erros em não valorizar as
festas da família, o momento à mesa, as etapas da vida de
menino, de adolescente, do adulto que nunca esqueceu essa
alvura de garoto, / essa fuga para o mato, / essa gula
defendida / e o desejo muito simples / de pedir a mãe que
cosa, / mais do que nossa camisa, / nossa alma frouxa,
rasgada... (Idem p. 106).
Thomas Hobbes (1588 -1679) 211 refletindo sobre a
memória, afirma que a quando coisa percebida não está mais
presente, permanecendo dela apenas uma ilusão ou aparência
na mente, tem-se a imaginação ou memória da coisa, é o que
ele também chama de fantasia; e, completa que homem
diante do passado ou de um mundo que contemplou e
percebeu por seus sentidos, resta para “a memória e a
imaginação das magnitudes, dos movimentos, dos sons, das
cores, etc, assim como de sua ordem e suas partes” (Hobbes,
DCo , 1998, II, VII). 212
O autor de Leviatã (1651) e Do cidadão (1651) diz ainda
que “se recordamos ou temos fantasmas de alguma coisa que
havia existido antes dessa suposta desaparição das coisas
externas, e não queremos considerar como era essa coisa
senão que existia fora da mente, teremos o que se chama
espaço, imaginário é claro, porque se trata de um mero
fantasma” (Hobbes, DCo , 1998, II, VII, 2), isso porque
segundo, o filósofo, quando a coisa percebida não está mais

211
Thomas Hobbes (5 de abril de 1588 – 4 de dezembro de 1679) foi um
matemático, teórico político e filósofo inglês, autor de Leviatã (1651) e
Do cidadão (1651). Na obra Leviatã, explanou os seus pontos de vista
sobre a natureza humana e sobre a necessidade de um governo e de uma
sociedade fortes. No estado natural, embora alguns homens possam ser
mais fortes ou mais inteligentes do que outros, nenhum se ergue tão acima
dos demais de forma a estar isento do medo de que outro homem lhe
possa fazer mal. Por isso, cada um de nós tem direito a tudo e, uma vez
que todas as coisas são escassas, existe uma constante guerra de todos
contra todos (Bellum omnia omnes). No entanto, os homens têm um
desejo, que é também em interesse próprio, de acabar com a guerra e, por
isso, formam sociedades através de um contrato social.

212
Hobbes, T., Do Cidadão, São Paulo, Martins Fontes, 1998.
presente, permanecendo dela apenas uma ilusão ou aparência
na mente, tem-se a imaginação ou memória da coisa numa
espécie de fantasia, como uma percepção da percepção
passada, como a “sensação de já ter sentido” (Hobbes, D Co.,
1998, 25,1) que, segundo Nicola Abbagnano, 213 “significa
em relação ao ato de se reconhecer, naquilo que se percebe”.
Poesia sendo memória é uma forma de poetizar o que
ficou para ser re-conhecido, re-sentido, re-vivido. O “eu”
lírico é mais que aquele “ressentido” a que se referia o
próprio Drummond no poema denominado “Conclusão”
(Idem p. 254) que é finalizado com o seguinte
questionamento : se o poeta é um ressentido, e o mais são
nuvens? (Idem p. 254).
Drummond de Andrade é um indivíduo que sente e
re-sente a vida e se recria através da memória. O poeta tenta
recuperar o tempo passado, vencer a distância que o separa
das terras mineiras e da história de sua família, à medida que
percebe que o passado se torna presente, através da herança
legada pelos bens e sangue. Carlos Drummond assume a
captura do passado que, posteriormente, será desvendado
com mais ousadia em Boitempo – Boitempo & A Falta que
Ama, Menino Antigo e Esquecer para Lembrar. Nestas obras,
voltam às reminiscências da infância e juventude, de sua
cidadezinha, dos tempos de colégio, dos primeiros anos em
Belo Horizonte.
Nessa seção “A família que me dei”, a construção
dessa família é formada por antepassados, imagens reais e
fictícias do poeta e também personagens desejados como

213
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi.
São Paulo: Martins Fontes, 1998.
pode ser observado no poema “Ser” (Idem p. 116) que canta
em versos um filho inexistente:

O filho que não fiz


hoje seria homem.
Ele corre na brisa.
sem carne, sem nome.

Às vezes o encontro
num encontro de nuvem.
Apóia em meu ombro
seu ombro nenhum.
(Idem p. 116)

O poema “Ser” enfatiza a sensação de vazio e a


impotência diante de certos sonhos. A referência a essa
criança não nascida faz pensar em seu primeiro filho, Carlos
Flávio, morto momentos após o nascimento, levando o poeta
a assinalar anos depois: Interrogo meu filho, / objetos de ar: /
em que gruta ou concha / quedas abstrato? (Idem p. 116).
Esta dor profunda e sentimento de perda foram
também matéria de poesia em “O que viveu meia hora” do
livro A paixão medida. A imagem da sua paixão sem medida
– sua filha Maria Julieta é referida no poema “A mesa” (Idem
p. 104) sob as linhas da ternura maior do sentimento de um
afeto absoluto, de um pai que morreu apaixonado por essa
filha. Na bela passagem deste poema a figura de Julieta ainda
menina é pura poesia: Repara um pouquinho nesta, / no
queixo, no olhar, no gesto, / e na consciência profunda / e na
graça menineira, / e dize, depois de tudo, / se não é, entre
meus erros, / uma imprevista verdade. / Esta é minha
explicação, / meu verso melhor ou único, / meu tudo
enchendo meu nada (Idem p. 112/113). Maria Julieta foi tudo
na vida do pai, preencheu os insistentes vazios que seu lado
gauche teimava em enfatizar.
Em “A Luiz Maurício, Infante” (Idem p. 117),
Drummond esquece a contenção tão mineiramente cultivada
e deixa sua arte transbordar-se em afeto, entusiasmo e até
adjetivos. Todo lirismo que a poesia pode traduzir foi usado
para saldar o nascimento do seu neto, filho de Maria Julieta:

Acorda, Luís Maurício. Vou te mostrar o mundo,


se é que não prefere vê-lo de teu reino profundo.
(...)

Admito que amo nos vegetais a carga de silêncio,


Luís Maurício.
Mas há que tentar o diálogo, quando a solidão é
vício.
(p. 117-121)

A carga emotiva não isolou a preocupação com o


senso estético. A lógica poética da forma e conteúdo foi
construída por meio de um ritmo musicalizado coerente com
o gosto de uma criança. Porém, o poeta utiliza
moderadamente os diminutivos, constantemente associados
ao mundo da criança. O artifício do diminutivo é usado
apenas para dar um tom do universo do seu netinho e dar uma
carga semântica de ternura e muito carinho. O avô dá uma
lição não só de vida e de poesia para seu neto, mas
principalmente de sentimento familiar, de marca poética
vivenciada desses laços familiares sempre re-lembrados
através da arte de fazer versos e agora, nessa Antologia,
assim denominada “A família que me dei”.
Carlos Drummond de Andrade foi admirador e leitor
de Joaquim Nabuco e, através desta influência, adquiriu
muitas ideias cosmopolitas desse pensador nascido em
Pernambuco. Tal admiração levou o poeta de Itabira a sentir
uma aversão pelo mundo que o cercava. O poeta deixava a
imaginação impregnar-se e perder-se na exploração pelo
homem das regiões desconhecidas e imaginárias. Sentia-se
atraído pelos "espaços em branco" do mapa mundi e as
possibilidades de aventuras que eles despertavam e davam
vida: Punha o dedo em cima [do espaço em branco] e dizia:
'Quando eu crescer, irei lá'. Os mapas me fascinavam de tal
modo que eu queria ficar o tempo todo a enrolá-los e a
desenrolá-los, e tocar em todos os países e todas as
províncias com as minhas mãos. (COUTINHO,
214
Afrânio, 2003. p. 51-52).
Mário de Andrade denominou esta insatisfação do
poeta mineiro com o próprio mundo de "tragédia de Nabuco"
ou "moléstia de Nabuco". Sobre este episódio o autor de
Macunaíma escreveu:
Moléstia de Nabuco é isso de vocês [brasileiros]
andarem sentindo saudade do cais do Sena em
plena Quinta de Boa Vista e é isso de você falar
dum jeito e escrever covardemente colocando o
215
pronome carolinamichaelisticamente. Estilize a
sua fala, sinta a quinta de Boa Vista pelo que é e foi
e estará curado da moléstia de Nabuco. (in.
216
SANTIAGO, Silviano. 2006, p. 24)

214
COUTINHO, Afrânio. Nota editorial à obra completa. In:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Carlos Drummond de Andrade:
poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. p. 51-52.
215
(referência à filóloga portuguesa Carolina Michaëlis). (Lélia Coelho
Frota, Carlos e Mário, 2002, p.128).
Mário de Andrade e Drummond eram amigos e
trocaram extensa correspondência iniciada em 1924 a
partir de um encontro entre os dois em Belo Horizonte, e,
embora tenha sido interrompida em alguns períodos, se
estendeu até a morte de Mário, em 1945.
As cartas trocadas entre os dois foram publicadas
por Drummond, no livro A Lição do Amigo, de 1982. As
missivas são muito importantes para obra poética
drummondeana, pois explicitam opiniões do poeta Mário
de Andrade de sobre o seu “pupilo-amigo na construção do
ser e do poeta, do compromisso ético-estético, da vida
cultural, conforme o próprio Carlos Drummond deixa claro
em sua apresentação ao livro:
Mas fui, sem qualquer dúvida, aquele dos quatro que
mais se correspondeu com Mário, e portanto mais recebeu
dele em bens imponderáveis. Estabeleceu-se
imediatamente um vínculo afetivo que marcaria em
profundidade a minha vida intelectual e moral,
constituindo o mais constante, generoso e fecundo
estímulo à atividade literária, por mim recebido em toda a
existência. Isto sem falar no que esta amizade me deu em
lições de comportamento humano, desvelos de assistência
ao homem tímido e desarvorado, participação carinhosa
nos cuidados de família, expressa em requintes que a
memória e a saudade tornaram indeléveis.”(Drummond,
in FROTA, Lélia Coelho 2002, p. 20) 217

Entre as cartas selecionadas na obra organizada por Lélia


Coelho Frota, Carlos & Mário. Correspondência completa entre
216
SANTIAGO, Silviano. Ora (direis) puxar conversa./ ensaios
literários. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2006, p. 24.
217
FROTA, Lélia Coelho (org.). Carlos e Mário: correspondência
completa entre Carlos Drummond de Andrade (inédita) e Mário de
Andrade (1924-1945). Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002.
Carlos Drummond de Andrade (inédita) e Mário de Andrade,
confera esses exemplos:

São Paulo, 18 novembro 1925.


Carlos,
Dá-se isto: ontem me apareceu um dos redatores da Noite do
Rio aqui em casa e além de me pedir uma entrevista pra tal
propôs o seguinte: a Noite organiza um Mês Modernista.
Durante um mês todos os dias o jornal publicará um
artiguete de meia coluna assinado por um modernista
qualquer. O artiguete poderá ser crítica, fantasia, versos, o
que a gente quiser. Pagam 50$ por artigo. Os escolhidos
são: Manuel Bandeira e Prudente de Morais no Rio, eu e
Sérgio Milliet em São Paulo, você e o Martins de Almeida
em Minas. Me mande com absoluta urgência uma linha
sobre isto falando que aceitam, pra eu dispor as coisas logo.
Estou esperando. Ciao.
Mário
(.....)
Belo Horizonte, 20 novembro 1925.
Mário, Salve. Recebi hoje tua expressa fazendo o amável —
e gostoso — convite para escrever umas besteiras na Noite.
Aceito. O Martins de Almeida, avisado, também aceitou.
Diga para quando é a joça, que estamos prontos. E desde já
te agradeço o reclame e os cobres, pois estou certo que foi
você que se lembrou do meu nome.
Depois escreverei mais longamente.
Um abraço forte do
Carlos
(Lélia Coelho Frota (Org.). Carlos & Mário. 2002,
p. 159-61 (com adaptações)

Outro escritor a exercer grande influência em Carlos


Drummond de Andrade foi o romancista francês Anatole
France, leitura que Mário de Andrade também reprovava.
Em Confissões de Minas, no ensaio “Suas cartas”,
Carlos Drummond redimensiona essa amizade ao afirmar a
importância capital que Mário exerceu sobre sua vida pessoal
e artística. Ele diz que as missivas de Mário “eram torpedos
de pontaria infalível” que tinham a força de destruir
preconceitos culturais e estéticos, eliminando distorções e
interpretações errôneas.
Em um trecho da carta de 22 de novembro de 1924,
ele fala da importância que tinha Anatole France, o “gênio
francês”, em sua vida acadêmica e foi quem ensinou
Drummond “a duvidar, a sorrir e a não ser exigente com a
vida”. Essa carta, sem nenhuma ironia e humor, traz o tom de
muitas outras cartas, que marcariam a postura do gauche em
confronto com o mundo à sua volta, um jovem cético,
cansado precocemente da vida e envergonhado de ter nascido
no Brasil:

Não sou ainda suficientemente brasileiro. Mas, às


vezes, me pergunto se vale a pena sê-lo. Pessoalmente,
acho lastimável essa história de nascer entre paisagens
incultas e sob céus pouco civilizados. Tenho uma estima
bem medíocre pelo panorama brasileiro. Sou um mau
cidadão, confesso. É que nasci em Minas, quando devera
nascer (não veja cabotinismo nesta confissão, peço-lhe!) em
Paris. O meio em que vivo me é estranho: sou um exilado.
(ANDRADE, 2002: 56) 218

Nessa confissão, Mário logo percebeu de que a


influência anatoliana era um mal que contaminava os moços
de sua geração, tirando-lhes a vontade de agir, tornando-os
infelizes, contaminados pelo que chamava de “moléstia de
Nabuco”, uma doença grave que impedia o trabalho de

218
ANDRADE, Carlos Drummond de. Carlos & Mário. Correspondência
completa entre Carlos Drummond de Andrade (inédita) e Mário de
Andrade. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002.
abrasileiramento do país, pois os jovens viviam com os olhos
voltados para a Europa. Mário escreveu:
Mas meu caro Drummond, pois você não vê que é todo o
mal que aquela peste amaldiçoada fez a você! Anatole ainda
ensinou outra coisa de que você se esqueceu: ensinou a gente a
ter vergonha das atitudes francas, práticas, vitais. Anatole é
uma decadência, é o fim de uma civilização que morreu por lei
fatal e histórica. Não podia ir pra diante. Tem tudo que é
decadência nele. Perfeição formal. Pessimismo diletante.
Bondade fingida porque é desprezo, desdém ou indiferença.
[...] Fez literatura e nada mais. E agiu dessa maneira com que
você mesmo se confessa atingido: escangalhou os pobres
moços fazendo deles uns gastos, uns frouxos, sem atitudes, sem
coragem, duvidando se vale a pena qualquer coisa, duvidando
da felicidade, duvidando do amor, duvidando da fé, duvidando
da esperança, sem esperança nenhuma, amargos, inadaptados,
horrorosos. Isto é que esse filho-da-puta fez. [...] Você diz que
ele ensinou você a não ser exigente com a vida... Como isso!
Se você se confessa um inadaptado e tem um errado desprezo
pelo Brasil e os brasileiros.
(ANDRADE, 2002. Carta sem data, p. 67-
68)

Mário, disse a Drummond que faltava à juventude


brasileira o otimismo pessoal e social que edifica e, para
exemplificar seu ponto de vista e dizia que era possível
atingir a plenitude que engrandece o ser humano quando se
passa a viver a vida com religião ligado a tudo o que existe e
o segredo estava em gostar da vida. Também insistia que
Anatole representava a inteligência estagnada, a indiferença
diante do futuro, uma maneira de ser que obstruía a
construção de uma sociedade que buscava a modernidade.
Drummond foi um leitor e fazia suas viagens-pela-
leitura, para conhecer o mundo e também para fugir da
"chateação" da terra natal, e por isso dela se afastava para
poder colonizar o seu sonho. Carlos Drummond mergulhava
em sua viagem-pela-leitura, em sua dificílima
dangerosíssima viagem / de si a si mesmo: / pôr o pé no chão
/ do seu coração / experimentar / colonizar / civilizar /
humanizar / o homem/ descobrindo em suas próprias
inexploradas entranhas/ a perene, insuspeitada alegria/ de
com-viver, como cantou nos versos de “O Homem; As
Viagens”, (ANDRADE, 2002, 718)219 poema inserido no livro As
Impurezas do Branco.
Através da leitura o jovem artista descobria o mundo e
seus significados, visitava lugares inimagináveis, inventava
outros mundos. Harold Bloom em Como e por que ler afirma
que para ler bem é preciso ser inventor. (Bloom, H. (2001) p.
18). 220 Drummond foi um grande leitor e inventor e, mais
tarde diria, como epigrafe do livro O Corpo (1984) O
problema não é inventar: É ser inventada hora após hora e
nunca ficar pronta nossa edição convincente. (ANDRADE,
221
2002, p. 1230)
A capacidade inventiva Drummondiana levava o
poeta a fugir do próprio espaço, da sua cidadezinha e da
fazenda de seu pai. O poema "Infância" (ANDRADE,
Reunião. Antologia Poérica 2002, p. 93) reflete essa fuga e a
219
ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra completa (conforme
as disposições do autor) fixação de textos e notas de Gilberto
Mendonça Teles. Introdução de Silviano Santiago, Rio de Janeiro.
Ed. Nova Aguilar. 2002.
220
BLOOM, Harold. Como e por que ler. Tradução de José
Roberto O´shea. Rio de Janeiro: objetiva, 2001.
221
ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra completa (conforme
as disposições do autor) fixação de textos e notas de Gilberto
Mendonça Teles. Introdução de Silviano Santiago, Rio de Janeiro.
Ed. Nova Aguilar. 2002.
ausência de leitura consciente da "palavramundo" defendida
por Paulo Freire no artigo "A importância do ato de ler".
Sobre essa teoria pedagógica o professor defende que:

...a leitura da palavra que nem sempre, ao longo de


minha escolarização, foi a leitura da
"palavramundo".
A retomada da infância distante, buscando a
compreensão do meu ato de "ler" o mundo particular
em que me ouvia – e até onde não sou traído pela
memória –, me é absolutamente significativa. A
velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu
terraço – o sítio das avencas de minha mãe – (...),
tudo isso foi o meu primeiro mundo. Nele
engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei. Na
verdade, aquele mundo especial se dava a mim como
o mundo de minha atividade perceptiva, por isso
mesmo como o mundo de minhas primeiras leituras
(Freire, P. (1981) p. 12). 222

No poema "Infância" (Idem p. 93) Drummond faz


uma auto-crítica da desleitura da "palavramundo" que a sua
imaturidade pueril não permitia fazer. "Infância" expõe
versos aparentemente simples como pensamento de um
menino, mas é um texto carregado dessa auto-crítica, da falta
da perspicácia por não perceber que o mundo à sua volta era
mais belo que a ilha de Robinson Crusoé, comprida história
que não acabava mais. Robinson Crusoé é um protagonista
do romance do mesmo nome, escrito em 1719 pelo escritor e

222
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. In: A importância do ato
de ler: em três artigos que se completam. São Paulo, Cortez Editora.
1981.
jornalista Daniel Defoe (1660 - 1731). A obra é a narrativa
das aventuras de um homem que consegue sobreviver numa
ilha deserta.
O tema de Robinson Crusoé e da ilha aparece várias
vezes na poesia e na prosa de Drummond. Em "Infância", o
“eu” poético descreve seu pai indo e vindo, as negras, o café,
a mãe, o irmão mais novo e se põe apartado de todos
contemplativamente:
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia história de Robinson Crusoé
comprida história que não acabava mais.
(Idem p. 93)

No final, contrastando sua vida com a obra de ficção:


Eu não sabia que minha história / era mais bonita que de
Robinson Crusoé.
Existe uma relação entre a postura do gauche, isolada
de tudo, com a atitude do menino em não valorizar a
"palavramundo", quando não lia e aproveitava bem o mundo
que estava à sua volta, isolando-se em horizontes longínquos
e ilhas alcançadas por personagens fictícios.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala - e nunca se
esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

(Idem p. 93)
Esse comportamento gauche é uma variante do
conflito do "eu" versus o mundo. A ilha passa a ser o espaço
ideal e o continente a dura realidade. A ilha de Drummond é
uma espécie de Pasargada de Manuel Bandeira, um lugar da
realização de todos os sonhos impossíveis. A ilha é afinal,
como afirmou posteriormente o próprio Drummond: O
refúgio último da liberdade, que em toda parte se busca
destruir. Amemos a ilha (Andrade, C. D. In: Coutinho (1964)
p. 230). 223
Carlos Drummond de Andrade também sonhou com
sua Pasargada e como disse o próprio poeta, apartar-se para
uma ilha é inaugurar um novo espaço e novo tempo, porque
tempo e espaço ordinários lhe são adversos (...) há muito
sonho essa ilha, se é que não a sonhei sempre (Op. Cit
Andrade, C. D. In: Coutinho (1964) p. 201). Porém, mais
amadurecido, no poema "Mundo Grande" confessa: Outrora
viajei / países imaginários, fáceis de habitar, / ilha sem
problemas não obstante exaustivas e convocando ao suicídio
/ meus amigos foram às ilhas. Ilhas perdem o homem
(Andrade, C. D. In: Coutinho (1964) p. 220).
O primeiro conjunto rítmico de "Infância" (p. 93)
apresenta versos marcados por pontos continuados, a
metaforizar a monotonia e a vida limitada do pai e da mãe:
223
ANDRADE, Carlos Drummond de. In: Coutinho, Afrânio (org.).
Obra Completa Rio de Janeiro. Ed. Aguilar, 1964.
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha mãe
ficava sentada cosendo. / Meu irmão pequeno dormia. / Eu
sozinho menino entre mangueiras / lia a história de Robinson
Crusoé. / Comprida história que não acaba mais. (CDA
Idem p. 93)
O último verso encerra esta estrofe com a imagem da
comprida história do herói da ilha, para contrapor a imagem
da vida limitada dos pais do menino leitor. É o momento em
que lia as histórias de ficção; nesse instante a vida não tinha
limite e, logo em seguida, no último verso explicita que a
história de Robinson Crusoé não tem mesmo conclusão;
apesar de numa posição contraditória, concluir a estrofe, com
uma percepção realista de que a ficção tem fim também. A
vida sim, é mais bela que a literatura, por este motivo os
próximos blocos apresentam a realidade viva e poética ao
mesmo tempo.
A vida do menino leitor no continente é
sinestesicamente iluminada, cheia de canto e perfume do café
da manhã, de sua terra, de sua gente, de seus amores infantis.
A sua felicidade e a sua história são compridas que não
acabam mais.
Por último conclui sua narrativa real em dois sonoros
blocos rítmicos: Lá longe meu pai campeava / no mato sem
fim da fazenda. // E eu não sabia que minha história / era
mais bonita que a de Robinson Crusoé. (p. 94)
"Infância" é um poema em que o artista reflete sua
imaturidade por não perceber a grandeza do seu mundo físico
e metafísico e, portanto, é uma revelação explícita do seu
lado gauche inserido na “Família que me dei”.

2.4. Cantar de Amigos


A quarta parte dessa Antologia, Drummond reservou
aos seus amigos. Apesar de seu jeito tímido e aparentemente
reservado, Carlos Drummond de Andrade, o poeta de um
coração maior que o mundo, teve muitos e fieis amigos. Entre
eles, quatro poetas brasileiros: Manuel Bandeira, Américo
Facó, Jorge de Lima e Mário de Andrade. Este último foi seu
amigo e confidente, cuja amizade continuou alimentada por
correspondência de anos. Sobre esses laços assim testemunha
o próprio Drummond:

As cartas de Mário de Andrade ficaram sendo o


acontecimento mais formidável de nossa vida
intelectual belo-horizontina. Depois de recebê-las,
ficávamos diferentes do que éramos antes.
E Diferentes no sentido de mais lúcidos. Quase
sempre ele nos matava ilusões, e a morte era tão
completa que só podia deixar-nos ofendidos e
infelizes. Então reagíamos com injustiças, tolices, o
que viesse de momento ao coração envinagrado.
Mário recebia essas tolices, mostrava que eram
simplesmente tolices, e ficávamos mais amigos...
(Andrade, C. D. In: Lição do Amigo (1982) p. 27).

Mário de Andrade foi mais do que amigo, foi mestre


responsável pela formação do poeta e pelo sentimento do
mundo cultuado por Drummond. O poema “Mário de
Andrade Desce aos Infernos” (CDA Idem p. 129) é um canto
de amizade e reconhecimento pelo modo extraordinário com
que Mário de Andrade cantou a poesia, o homem, o Brasil e a
cultura em geral:

Daqui a vinte anos farei teu poema


e te cantarei com tal suspiro
que as flores pasmarão, e as abelhas,
confundidas, esvairão seu mel.
(CDA Idem p. 129)

Este poema dedicado ao amigo-poeta minucioso,


implacável, sereno, pulverizado, de tal modo extraordinário
que: cabia numa só carta, / esperava-me na esquina, / e já
um poste depois / ia descendo o Amazonas,/ tinha coletes de
música,/ entre cantares de amigo / pairava na renda fina /
dos Sete Saltos, / na serrania mineira,/ no mangue, no
seringal,/ nos mais diversos brasis,/ e para além dos brasis,
nas regiões inventadas,/ países a que aspiramos, /
fantásticos, / mas certos, inelutáveis, / terra de João
invencível, / a rosa do povo aberta... (CDA Idem. p.
130/131). Estes versos definem e aplaudem o projeto
artístico e humano de Mário de Andrade: a pesquisa cerrada
da cultura popular, a penetração concreta na vida, na arte e na
linguagem do povo brasileiro.
Cantar de amigos é composto por “Ode no
Cinquentenário do Poeta Brasileiro” (CDA Idem p. 125),
“Mário de Andrade Desce aos Infernos” (CDA Idem p. 129),
“Viagem de Américo Facó“ (CDA Idem p. 124),
“Conhecimento de Jorge Lima” (CDA Idem p. 125), “A
mão” (CDA Idem p. 136), “A Frederico Lorca” (CDA Idem
p. 138) e “Canto ao povo de Charlie Chaplin” (CDA Idem p.
140). O último poema é um manifesto de confiança do poeta
em outros projetos de participação que não seu, como fez
quando exaltou a rosa do povo aberta de Mário de Andrade,
com o homem do povo Charlie Chaplin. Referindo-se a Mário
de Andrade e Charlie Chaplin, o poeta manifesta sua
confiança e adesão a duas experiências artísticas, diferentes
de si pela própria natureza dos veículos utilizados; porém
ligadas a um ponto em comum: a penetração no ordinário e
no popular (a identificação com o homem comum).
Se Mário de Andrade faz a pesquisa cerrada da cultura
popular, Charlie Chaplin cria o personagem Carlito – o
vagabundo universal, doce, triste e revolucionário que
sobreviveu, não só por ele mesmo, por sua figura de
maltrapilho e por sua aventura desgraçada, mas também pelo
elementarismo de sua expressão e pela rudeza de sua
linguagem.
O poema “Canto do homem do povo – Charles
Chaplin” (Iden, 2002, p. 141-149) é um longo poema
dividido em seis partes e exprime a figura inesquecível de
Carlitos:

Era preciso que um poeta brasileiro,


não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa,
girando um pouco em tua atmosfera ou nela aspirando
a viver
como na poética e essencial atmosfera dos sonhos
lúcidos,
(...)
era preciso que esse pequeno cantor teimoso,
de ritmos elementares, vindo da cidadezinha do interior
(...)
Para dizer-te como os brasileiros te amam
e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece
com qualquer gente do mundo – inclusive os pequenos
judeus
de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos
melancólicos,

vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem


nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro,
Polícia, e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o
amor como um segredo dito no ouvido de um homem do
povo caído na rua.
(....)
Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz
desgosto de tudo, que entraram no cinema com a aflição de
ratos fugindo da vida, são duras horas
(...)
o cristal infrangível. Entre a mão e a fome,
os valos da lei, as léguas. Então te transformas
tu mesmo no grande frango assado que flutua
sobre todas as fomes, no ar; frango de ouro
e chama, comida geral, que tarda.
(...)
E nada dizias. E um bolo, um engulho
formando-se. E as palavras subindo.
Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo.
Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando
sopros exaustos.
Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo,
crispação do ser humano, árvore irritada,
contra a miséria e a fúria dos ditadores,
ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode
caminham numa estrada de pó e de esperança
(CDA Idem. 141-149)

Os versos de Drummond, assim como o adorável


Carlitos, são porta-vozes dos homens comuns, numa cidade
comum, dos abandonados de justiça, simples de coração,
parias, falidos, mutilados, deficientes, recalcados, oprimidos,
solitários, indecisos, líricos, cismarentos, irresponsáveis,
pueris, cariciosos, loucos, patéticos, gauches de todos os
gêneros. Falam da “rosa do povo” drummondiana e de
Carlitos todos os que estavam sujos de tristeza e feroz
desgosto de tudo (CDA Idem p.141).
Os poemas de denúncia drummondiano e a obra de
Carlito formam imagens cubistas. É como se fossem quadros
de Picasso ou de Candido Portinari. Este último foi poetizado
por Drummond como: a mão infinita/ a mão-de-olhos-azuis de
Candido Portinari, no poema “A mão” (CDA Idem p.481), em
Lição das Coisas (1962).
Estes quadros expressam cenas de seres mutilados
pela desumanidade que, através da imagem poética e
cinematográfica, se descobrem principalmente homens
sejam: aprendiz / bombeiro / caixeiro / doceiro / emigrante /
forçado / maquinista / noivo / patinador / soldado / músico /
peregrino / artista de circo / marquês / marinheiro /
carregador de piano / apenas sempre, entretanto tu mesmo, /
o que não está de acordo e é meigo, / o incapaz de
propriedade, o pé / errante, a estrada / fugindo, o amigo /
que desejaríamos reter / na chuva, no espelho, na memória /
e, todavia perdemos (CDA p. 146/147). O poeta louva a
dignidade do homem do povo, simples ou marginal, gauche,
mas que tem dentro de si a humanidade que os poderosos,
ditos donos do mundo, esqueceram.
Sobre este personagem, do cinema, o jornalista e
escritor imortal da AGL, Carlos Heitor Cony, além de
chamar a atenção para o primitivismo da carpintaria
cinematográfica de Chaplin, observou ainda que:

O primitivismo é quase sempre tomado como


simplicidade. Apologistas incondicionais da obra
chapliniana equiparam essa suspeita simplicidade
artesanal à sociedade dos clássicos de todas as
artes. Verdade que impressiona a limpeza dos meios
usados por Charlie Chaplin. Pode-se mesmo
confundi-la, em alguns de seus bons momentos, com
Shakespeare ou Racine. Seus filmes são
extraordinariamente nítidos, de uma nitidez
transparente, própria da arte popular. (Cony, C. H.
(2014) p. 29- 30). 224

O doce vagabundo consegue atravessar o povo e por


ele ser atravessado. É em si um paradoxo porque, apesar de
ser tão pequeno, tão humilde e tão simples, é grande e, à
semelhança de Drummond, tem um coração maior que o
mundo.
Daí nasce afinidade maior e a ternura assim
traduzida: tu pequeno, / tu simples, tu qualquer. / Ser tão
sozinho em meio a tantos ombros, / andar aos mil num corpo
só, franzino (CDA Idem p. 145).
Carlitos é a rosa do povo de Drummond, que faz do
seu anúncio de rosa, simples e bela, um discurso que traduz a
arte não burguesa, cujo ofício é o ofício / que assim te põe no
meio de nós todos, / vagabundo entre dois horários; não
sabida / no bater, no cortar, no fiar, no rebocar (CDA Idem p.
148). Assim, Chaplin é a tradução cinematográfica da
qualidade de gauche drummondiana. Chaplin, o ator e
brilhante cineasta, poetizou nas telas, o que Drummond
traduziu com a sua “rosa do povo”.
No poema “Consideração do Poema” - texto não
incluído nessa Antologia, mas que abre com triunfo o livro A
Rosa do Povo e é finalizado com os seguintes versos: tal
uma lâmina, / o povo, meu poema, te atravessa (ANDRADE,
2002, p. 116). Este poema é um canto de dedicação à arte
poética e ao homem do povo:
Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
224
CONY, Carlos Heitor. Chaplin e outros ensaios. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2014.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convém.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

Uma pedra no meio do caminho


ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporaram
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinícius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus,
Maiakovski.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.
(...)
Como fugir ao mínimo objeto
ou recusar-se ao grande? Os temas passam,
eu sei que passarão, mas tu resistes,
e cresces como fogo, como casa,
como orvalho entre dedos,
na grama, que repousam.
Já agora te sigo a toda parte,
e te desejo e te perco, estou completo,
me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel… Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa.
(ANDRADE, 2002, p.115-116)
A partir desse poema, A Rosa do Povo se debruça
sobre a construção do poético, com a “Procura da Poesia”
(ANDRADE, 2002, p. 117), título do segundo poema do
livro.
Drummond, que não conviveu pessoalmente com o
poeta espanhol Frederico García Lorca, mas a trajetória e
pensamento desse poeta tiveram uma profunda repercussão
em sua vida e sua obra, inseriu na seção “Cantar de amigos”,
nessa Reunião organizada por ele, o poema “A Frederico
García Lorca” (CDA Idem p. 138) publicado em 1948, no
livro Novos Poemas. Esse poema é antecedido no volume
Novos Poemas (1948) por “Notícias de Espanha” (CDA
Poesia Completa 2002, p. 235), onde também é abordada a
temática da situação sobre a guerra facista de Franco:
Aos navios que regressam
marcados de negra viagem,
aos homens que neles voltam
com cicatrizes no corpo
ou de corpo mutilado,

peço notícias de Espanha.

Às caixas de ferro e vidro,


às ricas mercadorias,
ao cheiro de mofo e peixe,
às pranchas sempre varridas
de uma água sempre irritada,

peço notícias de Espanha.

Às gaivotas que deixaram


pelo ar um risco de gula,
ao sal e ao rumor das conchas,
à espuma fervendo fria,
aos mil objetos do mar,

peço notícias de Espanha.

Ninguém as dá. O silêncio


sobe mil braças e fecha-se
entre as substâncias mais duras.
Hirto silêncio de muro,
de pano abafando boca,

de pedra esmagando ramos,


é seco e sujo silêncio
em que se escuta vazar
como no fundo da mina
um caldo grosso e vermelho.
(CDA Idem 2002, p. 235)

O poema “A Frederico García Lorca” exprime a dor a


tragicidade da violência: Sobre teu corpo, que há dez anos /
se vem transfundindo em cravos / de rubra cor espanhola,
/aqui estou para depositar / vergonha e lágrimas. (CDA
Idem p. 138).
Frederico García Lorca é o nome de um poeta
espanhol fuzilado por defender a República Espanhola contra
o golpe facista liderado pelo Gal. Franco na década de 30.
Autor também de importantes peças teatrais, como Bodas de
Sangue e Yerma, Lorca é até hoje famoso pela beleza de seus
versos e por sua vida tragicamente encerrada.
Porém, nesse texto, assim como em outros,
Drummond lança mão da imagem do amanhecer e da
chagada de um novo tempo, caracterizado pela paz e pela
justiça, como podemos observar nos seguintes versos:
(Amanhecerá.) / Esse claro dia espanhol, / composto na
treva de hoje / sob teu túmulo há de abrir-se, / mostrando
gloriosamente / – ao canto multiplicado / de guitarra, gitano
e galo / que para sempre viverão / os poetas martirizados
(CDA Idem p. 139).
A oposição entre a treva do presente e do futuro é
trabalhada com maestria. O poeta faz um contraste entre
“treva” e o “claro dia” sintetizando a oposição entre o
presente e o futuro. A presença da “guitarra”, do “gitano” e
do “galo” contribui para caracterizar atmosfera espanhola que
Carlos Drummond de Andrade quer trazer para o texto.
Estes versos dedicados a Garcia Lorca possuem
aquele denso sentido trágico da morte violenta e pública.
Sobre essa temática Affonso Romano de Sant’Anna
assevera que:

A morte em Drummond não é nunca uma


oportunidade de espetáculo, não se dá no palco, às
vistas alheias. Não é sequer a morte Severina,
social, miseravelmente de cunho social em João
Cabral de Melo Neto. Não é a morte apocalíptica,
desfecho em coreografia celeste e a alma sendo
redimida ao som de trombetas bíblicas voltando à
origem divina de onde saíra ao estilo do Jorge de
Lima. Essa morte é mais discreta e menos
percuciente que a que habitou toda a vida-obra de
Manuel Bandeira. A morte em Drummond, poder-
se-ia dizer, é muito pouco latina. Ela não é
imprompta: é uma decorrência e transformação do
fluxo, forma de fluir completamente, último lance e
um contínuo processo em entropia vital. (Sant’Anna,
A. R. (1980) p. 184). 225
225
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Carlos Drummond de
Andrade: Análise de Obra. 3ª ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
Affonso Romano defende ainda que em Carlos
Drummond de Andrade a morte dos amigos transfunde-se na
experiência de sua própria morte. Aqueles com quem ele
conheceu a vida inteira adiantaram-se na experiência
deixando-o só e com imperfeito conhecimento de fim. A
morte, tão companheira do seu amigo Manuel Bandeira, foi
mais uma vez vencida pelo “Poeta Menor” o que resultou a
“Ode no cinquentenário do poeta brasileiro” (CDA Idem p.
155). Drummond assim cantou a vitória de Bandeira:

Esse incessante morrer


que nos teus versos encontro
é tua vida, poeta,
e por ele te comunicas
com o mundo em que se esvais.

Debruço-me em teus poemas


e neles percebo as ilhas
em que nem tu nem nós habitamos
(ou jamais habitaremos!)
(CDA idem p. 125)

Os versos de sangue e de volúpia ardentes de


Bandeira inspiraram Drummond no percurso poético de vida
e morte e, principalmente, de sonhos com ilhas e pasárgadas,
onde tudo pode, mas se perdem nos cantos das sereias.

2.5. Na praça de convites

“Na Praça de Convites” tem como temática o choque


social, a poesia participante de Sentimento do Mundo (1940),
1980.
José (1942) e A Rosa do Povo (1945). A preocupação com os
problemas sociais marcou a década de 40 na evolução de
Carlos Drummond de Andrade. É o período da Segunda
Guerra Mundial, da ditadura de Vargas e da difusão de ideias
socialistas, capitalistas, existencialistas e freudianas. De um
modo geral, tudo isso ecoa nos poemas drummondianos desse
período. Paira neles uma atmosfera de medo, incerteza,
dúvida e limitações do indivíduo. O “eu” lírico fragmenta-se
e retrata uma sociedade igualmente fragmentada.
Drummond jamais fez poesia partidária ou de
engajamento político partidário propriamente dito, mas
percebe-se em A Rosa do Povo a marca de um intelectual de
fortes convicções antiburguesas e marxistas, como fazem
pensar os famosos poemas "Nosso Tempo" (CDA Idem p.
160) e "Morte do Leiteiro" (CDA Idem p. 178).
A "Morte do Leiteiro" é uma crônica poética e
dramática do cotidiano. O poema apresenta todos os
elementos da narrativa: além do narrador, temos personagens,
conflito, cenário e tempo: Há pouco leite no país, / é preciso
entregá-lo cedo. / Há muita sede no país, / é preciso entregá-
lo cedo. Estes versos exemplificam, entre muitos na obra do
autor, como se pode extrair poesia de um acontecimento da
crônica policial: um leiteiro é assassinado na madrugada pelo
dono da casa, que o tomou por um ladrão.
Os versos se sucedem com extrema clareza e
simplicidade e, no melhor estilo das baladas populares
extraídas da vida real, são apresentados os dois personagens:
o moço leiteiro e o proprietário. O primeiro é caracterizado
com os seguintes versos: empregado no entreposto; 21 anos;
cumpridor de seu dever (sai correndo e distribuindo / leite
bom para gente ruim); mora no último subúrbio. O segundo é
descrito como: preocupado com os ladrões; vive em pânico
(acordou em pânico / ladrões infestam o bairro); está sempre
armado (Ladrão se pega com tiro.); mantém-se acima da
polícia (polícia não bota a mão / nesse filho de meu pai.). Na
penúltima estrofe, o verso está salva a propriedade
"justifica", do ponto de vista do assassino, a morte do leiteiro.
É uma cena triste, sem luz, sem justiça e sem esperança.
O poeta faz uma oposição entre noite e aurora. A noite
é o símbolo da maldade, da ignorância e da injustiça dos
homens. A falta de luz alude ao mundo do proprietário, da
sociedade capitalista que coloca os valores materiais acima
dos valores humanos, do mundo de aparência, da falta da
essência, do mundo demasiadamente desumano. Aurora é
uma metáfora da esperança, do amanhecer, de uma nova
sociedade, que com seu brilho augusto, redimirá as trevas da
desumanidade. Por entre objetos confusos, / mal redimimos
da noite, / duas cores se procuram, / suavemente se tocam, /
amorosamente se enlaçam, / formando um terceiro tom / a
que chamamos aurora (CDA Idem p. 178).
"Nosso tempo" (CDA Idem p. 160) é um poema que
reflete literalmente a fragmentação do tempo e dos homens:

Este é tempo de partido,


tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,


viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

VI
Nos porões da família
orquídeas e opções
de compra e desquite.
A gravidez elétrica
já não traz delíquios.
Crianças alérgicas
trocam-se; reformam-se.
Há uma implacável
guerra às baratas.
Contam-se histórias
por correspondência.
A mesa reúne
um copo, uma faca,
e a cama devora
tua solidão.
Salva-se a honra
e a herança do gado.
(...)
(CDA Idem p. 160)
Neste poema, composto por oito estrofes. Na oitava:
o poeta / declina de toda a responsabilidade / na marcha do
mundo capitalista / e com suas palavras, intuições, símbolos
e outras armas / promete ajudar / a destruí-lo / como uma
pedreira, uma floresta, / um verme (CDA Idem p. 166).
Drummond cria seus versos com os ritmos compondo
os sentidos e as emoções, não os emoldurando e, para dar
apenas mais um exemplo da técnica magistral de corte dos
versos:
E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido
na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?
(CDA Idem p. 162)

Os versos livres, marcados por uma maleabilidade


ímpar, cantam por um tempo que precisa de construção.
Negam todas as destruições provocadas por guerras e pela
ânsia de poder da insensatez de homens perdidos na miséria
da ganância; descrevem homens que são vermes do mundo,
são destruidores de vidas e de amores.
"Nosso tempo" é um poema lírico e épico, porque ao
falar dos sentimentos, o eu lírico canta, antes de tudo, os
sentimentos do mundo; é um poema épico porque constitui
um grande painel do horror contemporâneo e traduz toda a
história dos tempos modernos com suas adversidades e
desejos. A Rosa do Povo é a poesia que emana do desejo do
povo, que fala a alma do povo e do caos do mundo. O poeta
evoca essa rosa poesia para que todos, juntos, sigam de
“Mãos Dadas” (CDA Idem p. 158) anunciando:

Não serei o poeta de um mundo caduco.


Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
(CDA Idem p. 158)

Este é um dos mais comentados poemas políticos de


todo o Modernismo. É um texto engajado, comprometido,
participante, e, ao mesmo tempo, de grande força poética,
ritmo intenso e imagens intensas. O tom da fala, a oralidade,
a linguagem coloquial muito expressiva, é acentuada pela
pulsação livre dos versos que são marcas estilísticas
importantes na criação do texto.
Na construção deste poema observa-se a maestria da
enumeração de negações – que recusam as variadas formas
de escapismos românticos, de fuga da realidade. A estilística
da repetição, em especial da palavra presente, carrega ainda
mais o texto de alta tensão poética.
Em “Mãos Dadas”, o poeta reafirma sua consciência
da existência de outros homens, seus companheiros. Com
eles é que se sente de mãos dadas – e renuncia aos seus temas
pessoais: Uma mulher, uma história, os suspiros ao
anoitecer, a paisagem vista da janela. O eu lírico não mais se
refugiará na solidão, porque o que lhe interessa é o tempo
presente em que se acha inserido, e os homens que o cercam.
“Os Ombros Suportam o Mundo” (CDA Idem p. 182)
é outro poema político e existencial de grande intensidade,
representante da poesia social de Drummond, aquela que o
coração é maior, muito maior que o mundo. Neste texto, o
“eu” poético conclui: Chega um tempo em que não se diz
mais: meu Deus. / Tempo de absoluta depuração. / Tempo
em que não se diz mais: meu amor. / Porque o amor resultou
inútil. / E os olhos secaram. / (...) E o coração está seco
(CDA Idem p. 182).
Este poema está inserido no livro O Sentimento do
Mundo (1940). O título do livro se faz presente a partir do
momento em que o poeta fala na renúncia dos seus desejos e
inquietações pessoais, que só o deixarão na mais absoluta
solidão. Não importa sua própria vida, o tempo que passa e a
velhice que avança, em face dos problemas do mundo, dos
quais ele tem uma dolorosa consciência. Sente-se solidário
com os que ainda não se libertaram do sofrimento. Sua vida
se impõe como uma ordem: ela deve continuar para enfrentar
a realidade de um mundo que ele imagina carregar nos
ombros e que não deve pesar mais do que a mão de uma
criança.
O Poeta é, antes de tudo, um questionador da
realidade conflituosa e do mundo, numa perspectiva
antirromântica, antilírica convencional, chamando à vida para
o que há por se fazer.
“Os Ombros Suportam o Mundo” é um texto que
exemplifica como a linguagem coloquial e as imagens diretas
podem ser altamente expressivas, no reconhecimento da
necessidade de perceber que a vida é uma ordem, sem
mistificação (CDA Idem p. 182, sem ilusões vãs, com
sobriedade, clareza e desencanto irônico, amargo, embora
não resignado.
No poema "Sentimento do Mundo" (CDA Idem p.
154) seu canto ressoa dizendo: Tenho apenas duas mãos / e o
sentimento do mundo, / mas estou cheio de escravos, /
minhas lembranças escorrem / e o corpo transige / na
confluência do amor.
O "eu" poético apresenta uma preocupação sócio-
política face a época cheia de conflitos: eclosão da Segunda
Guerra Mundial, da Guerra Civil espanhola e da ascensão do
nazi-facismo. O mundo não está apenas desajustado, está
fragmentado e caótico.
O poeta sente as dores do mundo e seus versos cantam
os sentimentos da humanidade. A poesia é a sua contribuição
para minimizar a falta de luz nessa grande noite da guerra e
do desamor. O “eu” lírico é uma testemunha e um sujeito
ativo que procura contribuir para melhorar, de alguma
maneira, os sentimentos desse mundo enlouquecido. Embora,
às vezes, tenha a sensação de incapacidade e escreva que:
Quando os corpos passarem, / eu ficarei sozinho / desfiando
a recordação / do sineiro, da viúva e do microscopista / que
habitavam a barraca / e não foram encontrados / ao
amanhecer / / esse amanhecer / mais noite que a noite (CDA
Idem p. 154-155).
A compreensão da vida presente conduz o poeta a um
estado de melancolia irônica e a uma tentativa de exploração
e de interpretação do estar-no-mundo, como podemos
observar em "Os Mortos de Sobrecasaca" (CDA Idem p.
268):
Havia a um canto da sala um álbum de fotografias
intoleráveis,
alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,
em que todos se debruçavam
na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.

Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes


e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos
retratos.
Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava
que rebentava daquelas páginas.
(CDA Idem p. 268):

A Canção Amiga (CDA Idem p. 188) é outro poema


inserido nessa parte na “Praça de Convites”. Esse poema é
um canto de ritmo fluente, construído em versos redondilhos
maiores (sete sílabas), que encanta pela sua musicalidade,
construção e mensagem:

Eu preparo uma canção


Em que minha mãe se reconheça,
Todas as mães se reconheçam,
E que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua


Que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
E saúdo velhos amigos.

Eu distribuo segredos
Como quem ama ou sorri
No jeito mais natural
Dois caminhos se procuram.
(...) (CDA Idem p. 188)

Este poema, também musicado por Milton


Nascimento, traduz o desejo de todo canto: dar alegria e uma
unidade harmônica à vida. Minha vida, nossas vidas/Formam
um só diamante./Aprendi novas palavras/E tornei outras mais
belas.// Eu preparo uma canção/Que faça acordar os homens/E
adormecer as crianças (CDA Idem p. 188).
Nesse sentido, estes versos distribuem um segredo do
jeito mais natural, acordam os homens para um mundo
melhor, adormecem as crianças e as conduzem ao mundo
encantado dos sonhos.
A força de expressão poética em torno dos estágios da
construção da lírica social é exemplificada no poema “O
Elefante” (CDA Idem p. 168). Construído por estrofes
irregulares, quanto ao número de versos, este texto
metaforiza a “antipoesia”.
Este poema descreve o processo de construção de um
“elefante” poético: Fabrico um elefante / de meus poucos
recursos. / Um tanto de madeira / tirado a velhos móveis /
talvez lhe dê apoio. / E o encho de algodão, / de paina, de
doçura. / A cola vai fixar / Suas orelhas pensas. / A tromba
se enovela, / é a parte mais feliz / de sua arquitetura. O
“estranho” elefante é construído através de um processo de
montagem de materiais heterogêneos: “orelha”, “tromba”,
“presas”, “olhos”, (partes próprias do elefante); “madeira”,
“velhos móveis”, “algodão”, “paina” e “doçura” (materiais
estranhos).
Esta colagem de materiais heterogêneos instaura não
só a ideia de fragmentação, como de “impureza” da imagem
construída poeticamente, inclusive porque contém elementos
do sistema denotativo (elefante) ao lado de elementos da
conotação de obra de arte. A “matéria pura” (marfim das
presas), o poeta diz não saber figurar: Mas há também as
presas, / dessa matéria pura / que não sei figurar. Sobre este
artifício Iumna Maria Somon escreveu:
Ao declarar a impossibilidade linguística de
figuração da arte pura, absoluta, o poema está se
referindo àquela contradição característica da arte
verbal: se aspira à absolutização, necessariamente
recorre a um sistema de signos linguísticos, cuja
finalidade básica é a comunicação; se aspira à
comunicação, não pode, todavia, render-se inteira à
função prática e utilitária do sistema linguístico.
Configura-se, portanto, no nível da operação
metalinguística, a tensão dialética própria do signo
poético. (Simon, I. M. (1978) p. 76). 226

A impureza e a fragmentação são traços


caracterizadores da criação poética: Assim como há o risco
de se perder a poesia, há também o risco de não se atingir o
objetivo visado (comunicação através da imagem recriada
poeticamente). Manifesta-se, desde logo, a desconfiança do
poeta em relação ao projeto de construção da lírica
participante. Assim defendeu Iumna ao analisar os poemas de
A Rosa do Povo.
À medida que “O Elefante” é construído a operação
metalinguística é ampliada. Ao contemplar a própria criação,
o poeta fica descrente do seu projeto poético e afirma:
Eis meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê nos bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo massa impotente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético

226
SIMON, Iumna Maria. Drummond: uma Poética do Risco. São
Paulo, Ática, 1978.
onde o amor reagrupa as formas
naturais
(CDA Idem p.168/169)

Assim, as dúvidas em torno da capacidade de total


ação da lírica participante são metaforizadas e ficam
explícitas ao longo do poema composto por cinco conjuntos
rítmicos e cem versos.
Entretanto, apesar do aparente ceticismo do mundo e
da dúvida em torno do poder da poesia dita social, o texto é
concluído com a imagem do mito poético desmontado, mas
insere uma ideia de recomeço que assim finaliza: Exausto de
pesquisa, / caiu-lhe o vasto engenho / como simples papel. /
A cola se dissolve / e todo seu conteúdo / de perdão, de
carícia, / de pluma, de algodão / jorra sobre o tapete, / qual
mito desmontado. / Amanhã recomeço (CDA Idem p.171).
Neste ritmo de começar de novo, segue a poesia de A
Rosa do Povo, sem medo de falar da vida, dos homens, do
tempo e, principalmente, da poesia que surge na rua ou em
toda parte, em todos os sentimentos do mundo.
Iumna Maria Simon em Drummond: Uma Poética do
Risco disserta que: O risco do engajamento em Drummond,
não chega à prática radical da “antipoesia”: Sua lírica
“impura” até certo ponto, mais no sentido de busca de uma
clareza próxima da prosa, de abertura à informação
semântica, como se pôde verificar pela análise das líricas de
combate. (Op. Cit. Simon, I. M. (1978) p. 77). Isto significa
que Carlos Drummond tem consciência das contradições que
envolvem seu “canto” compromissado: desconfia da eficácia
comunicativa de sua forma de expressão, como suporte do
projeto participante. Tanto que, em poemas metalinguísticos
como “O Elefante”, faz uma reflexão sobre o “Anúncio da
rosa” (CDA Idem p.183):
Imenso trabalho nos custa a flor.
Por menos de oito contos vendê-la? Nunca.
Primavera não há mais doce, rosa tão meiga
onde abrirá? Não, cavalheiros, sede permeáveis.

Uma só pétala resume auroras e pontilhismos,


sugere estâncias, diz que te amam, beijai a rosa,
ela é sete flores, qual mais fragrante, todas exóticas,
todas histórias, todas catárticas, todas patéticas.
Vêde o caule,
traço indeciso.
Autor da rosa, não me revelo, sou eu, quem sou?
Deus me ajudara, mas ele é neutro, e mesmo duvido
que em outro mundo alguém se curve, filtre a paisagem,
pense uma rosa na pura ausência, no amplo vazio.
Vinde, vinde,
olhai o cálice.
Por preço tão vil mas peça, como direi, aurilavrada,
não, é cruel existir em tempo assim filaucioso,.
Injusto padecer exílio, pequenas cólicas cotidianas,
oferecer-vos alta mercância estelar e sofrer vossa irrisão.
Rosa na roda,
rosa na máquina,
apenas rósea.
Selarei, venda murcha, meu comércio incompreendido,
pois jamais virão pedir-me, eu sei, o que de melhor se compôs
na noite,
e não há oito contos. Já não vejo amadores de rosa.
Ó fim do parnasiano, começo da era difícil, a burguesia
apodrece.
Aproveitem. A última
rosa desfolha-se.
(CDA Idem p.183):
O poeta de A Rosa do Povo não é apenas um artista
engajado. O lirismo social e político também não é uma
etapa definitiva de sua criação: o fracasso o fascina, mesmo
nos momentos em que se afirma a crença, ou se realiza a
participação. A leitura dos poemas do poeta de Itabira
permite verificar a afirmação explícita da crença na
possibilidade de atuação da palavra poética sobre "a vida" e a
própria poesia.
A poesia é a expressão da verdade mesmo que a
palavra seja insuficiente para expressá-la. A palavra poética
é uma rosa que perfuma, chamando a atenção para sua
existência e beleza. O poema é a sua vitória verbal e visual.
A rosa é símbolo de perfeição e simboliza a taça da
vida, a alma, o coração, e o amor. De acordo com Chevalier e
Gheerbrant pode-se contemplá-la como uma mandala e
considerá-la como centro místico. (Op.Cit. Chevalier J. &
Gheerbrand (1990) p. 834).
Segundo Northrop Frye no Ocidente a rosa ocupa
tradicional posição de prioridade entre as flores
apocalípticas: o uso da rosa como um símbolo de comunhão
do Paradiso vem-nos facilmente no espírito. ( Frye, N. (1973)
p. 119). 227 Diante do exposto, a rosa é, de acordo com
Northrop Frye , uma imagem do mundo apocalíptico, o céu
da religião que apresenta as categorias da realidade como
forma do desejo humano.
Nesse sentido, a rosa é ao mesmo tempo a palavra
poética em busca da verdade e da realização dos desejos do
povo. É rosa, perfume, sensação, poesia e desejo do povo. É a
flor-palavra abrindo-se numa reflexão do mundo de forma
mimética, como a imitação ou, numa representação artística
227
FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica: quatro ensaios. Trad. de
Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo, Ed. Cultrix, 1973.
sinestésica expressa por som, cor, perfume, tato e paladar,
num universo de sentidos e sensações; num cosmo de
princípios históricos, psicológicos, autobiográficos,
contextuais da vida do povo que o poeta observa.
Voltada para o presente, a obra A Rosa do Povo
resgata preocupações anteriores do poeta, tais como a terra
natal e a família, integrando-as ao drama do cotidiano, ao
canto comprometido com os problemas sociais de então. O
poeta também se pergunta sobre os problemas do quotidiano,
e sobre o sentido do fazer poético, enquanto instrumento
capaz de questionar e modificar as relações humanas e a
realidade social.

2.6. Amar – amaro

A seção “Amar – amaro” composta por 23 poemas


retrata poeticamente as concepções do amor drummondianas.
O poeta tematiza a pluralidade do sentimento que liga o
homem e a mulher, os problemas das relações humanas, as
incertezas, as inconstâncias e os desacertos do amor. Todavia,
como o próprio poeta questiona: Que pode uma criatura
senão, / entre criaturas, amar / amar e esquecer, / amar e
malamar, / amar, desamar, amar / sempre, e até de olhos
vidrados, amar (CDA Idem p.230). O amor é indissociável
de certo saber, apresenta-se como enigma e nunca se deixa
decifrar inteiramente. O amor suscita o poeta à metáfora da
obscuridade (afetiva, intelectiva, existencial), em que se
debate ou se tranquiliza. A carga de mistério do sentimento
não se assemelha àquela promessa de felicidade arrebatadora
com que os românticos sonhavam. O enigma nessa poesia é
sintoma de impossibilidade, é sinal de irrealização como pode
ser observado em “Entre o Ser e as Coisas” (CDA Idem p.
231):

N’água e na pedra amor deixa gravados


seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

E nem os elementos encantados


sabem do amor que os punge e que é, pungindo,
uma fogueira a arder no dia lindo.
(CDA Idem p. 231)

O amor além de ser um enigma é, antes de tudo, um


paradoxo já descrito por Camões como contentamento
descontente. Seus poderes são amargos, conduzem o sujeito
à destruição, sugerindo o aniquilamento. Por esse motivo o
“eu” lirico ironiza essa situação poeticamente em “Amar –
amaro” (CDA Idem p. 239):

Por que amou por que a!mou


se sabia
proibido passear sentimentos
ternos ou soparedsesed
nesse museu do pardo indiferente
me diga: mas por que
amar sofrer talvez como se morre
de varíola voluntária vágula ev
idente
ah PORQUEAMOU
e se queimou
todo por dentro por fora nos cantos nos ecos
lúgubres de você mesm(o, a)
irm(ã, o) retrato espéculo por que amou
(CDA Idem p. 239)

O questionamento inicial: Por que amou por que a!


mou revela uma indagação do “eu” lírico, direcionada a um
interlocutor, sobre o porquê o sujeito ter amado, uma vez que
tinha conhecimento da complexidade que envolve amor.
O poema é marcado pelo ludismo sígnico e criativo
do vocábulo “a!mou”, que pode ser lido, num relance do
olhar ou leitura, como “amou”, ou “almou”, (palavra que
não existe). No entanto, a letra “a” está adicionada ao ponto
de exclamação “!”. Esse configuração sugere que o “a” é
abreviatura de amor, seguida de um grito ou som penetrante,
simbolizado pelo sinal exclamativo “!”, para expressar
emoção, ou surpresa, ou admiração, ou indignação, ou raiva,
ou espanto, ou susto, ou exaltação, ou entusiasmo. O “a”
pode sugerir ainda o prefixo de oriegem grega “negação,
afastamento, privação, negação, insuficiência ou carência”,
enfim ausência de amor, ou da ação de ter amado, daí o
sofrimento. Uma vez que a palavra amor que dizer não à
morte; a(mou). Seguindo a história mitológica que Eros ou
Cupido quando luta e contra Tânatos (a morte), o amor
sempre nega a morte.
No entanto, amor-dor-morte formam um conjunto de
fundamental importância na complementação de uma grande
paixão. O amor sem a morte não existe. Ama-se mais que a
própria vida, morre-se de amor e por amor. Morrer de não
morrer, dizia Santa Teresa de Ávila (1515-1582) insistindo
no paradoxo de que morrer seria viver. Para a religiosa,
morrer pelo amado era viver: Vivo sem viver em mim/E tão
alta vida espero,/Que morro por não morrer/Vivo já fora de
mim,/Depois que morro de amor,/Porque vivo no
Senhor,/Que me quis só para si./Meu coração lhe
ofereci/(...)Que morro por não morrer./Esta divina
prisão/Do amor em que hoje vivo,/Tornou Deus o meu
cativo/(...) /Deus meu prisioneiro ver,/Que morro por não
morrer. 228
Para Bataille, Eros é definido como o impulso, e por isso
não se contrapõe a ele, mas o incorpora em sua essência, porque,
citando o fenômeno biológico da concepção, que é a base da vida
humana, mostra que com a morte do espermatozóide é dada a
origem a um novo ser. Daí, a morte se toma vida (cf
BATAILLE, G. (1980), p. 120). 229 Vida e morte estão, portanto,
na origem da existência erótica e são a oposição entre o caráter
contínuo do ser e a descontinuidade dos indivíduos.
Julius Evolas professa que “ao amar e desejar, o homem
procura afinal, a confirmação de si próprio, a participação no ser
absoluto e na destruição da steresis, privação e da angústia
existencial a que ela está ligada” (JULIUS, E. (1976), p. 72). 230
Através do amor, o homem se unifica e se eterniza.
Numa análise psicanalítica, na teoria das pulsões, Sigmund
Freud (1893-1895) descreveu antagônicas: a de eros, Eros - uma
pulsão com vocação à preservação da vida; e a pulsão de morte,
Tânatos - que provocaria à discriminação de tudo o que é vivo, à
destruição.
Nessa análise, o amor e ódio, desejo e agressividade, vida e
morte, são forças que habitam no ser humano e estão presentes no
cotidiano. Essa bipolaridade é o centro dos conflitos psíquicos e
sociais que tem como base a interpretação da mitologia grega que
228
http://www.nicoladavid.com/literatura/santa-teresa-de-vila/vivo-
sem-viver-em-mim
229
BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Antônio Viana. Porto
Alegre, L & PM, 1980.
230
EVOLA, Julius. A metafísica do sexo. Trad. Elisa Teixeira Pinto
Lisboa, Quadrante, 1976.
narra a história Eros como o deus do amor e Tânatos, como deus
da morte. 231
Numa síntese a respeito de pulsão da morte
encontrada wikipeia, pode ser visto que:
Pulsão de morte (em alemão: Todestrieb), também conhecida
como Tânato, é um termo introduzido pelo psicanalista austríaco
Sigmund Freud em 1920.Na teoria psicanalítica freudiana
clássica, a pulsão de morte é a pulsão em direção à morte e à
autodestruição. Foi originalmente proposta por Sabina Spielrein
em seu artigo "Destruição como a causa do surgimento" (Die
Destruktion als Ursache des Werdens) em 1912, que foi então
adotada por Sigmund Freud em 1920 na obra "Além do Princípio
do Prazer". Este conceito foi traduzido como "oposição entre os
instintos do ego ou da morte e os instintos sexuais ou de vida".
[
Em "Além do Princípio do Prazer", Freud usou o plural "pulsões
de morte" (Todestriebe) com muito mais frequência do que no
singular. A pulsão de morte se opõe a Eros, a tendência à
sobrevivência, propagação, sexo e outras pulsões criativas e
produtoras de vida. A pulsão de morte às vezes é chamada de
"Thanatos" no pensamento pós-freudiano, complementando
"Eros", embora esse termo não tenha sido usado no próprio
trabalho de Freud, sendo introduzido por Wilhelm Stekel em
1909 e depois por Paul Federn no contexto atual. Na sua teoria
das pulsões Sigmund Freud descreveu duas pulsões antagônicas:
Eros, uma pulsão sexual com tendência à preservação da vida, e
a pulsão de morte (Tânato) que levaria à segregação de tudo o
que é vivo, à destruição. Ambas as pulsões não agem de forma
isolada, estão sempre trabalhando em conjunto segundo o
princípio de conservação da vida. Como no exemplo de se
alimentar, embora haja pulsão de vida presente - sendo a
finalidade de se alimentar a manutenção da vida - ela implica-se
à pulsão de morte, pois é necessário que se destrua o alimento
231
Eros, o mais belo dos deuses, possui arco e flecha com os quais costuma
lançar de amor homens, mulheres e deuses. Mas certo dia Eros adormeceu
numa caverna, embriagado por Hipno, relaxou e suas flechas se espalharam,
misturando-se com às flechas de morte. Assim, Eros passou a carregar as
flechas de amor e de morte, os dardos de Tânatos.
antes de ingeri-lo. Aí presente um elemento agressivo, de
segregação, este se articula à pulsão primeira, como sua
necessária contraparte na função geral de conservação.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Puls%C3%A3o_de_morte

Sobre Eros e Tânatos Freud afirmou que: “nossas


concepções, desde o início, foram dualistas e são hoje ainda mais
definidamente dualistas do que antes, agora que descrevemos a
oposição como se dando, não entre pulsões do eu e pulsões
sexuais, mas entre pulsões de vida e pulsões de morte” (Freud,
1920, p. 73) 232
A pulsão de morte está para além do princípio do prazer e
do aparelho psíquico. Na visão de Freud, Tânatos simboliza um
comportamento autodestrutivo, uma expressão da energia criada
pelos instintos de morte. E quando essa energia é remetida para
fora e para os outros, é impulsionada como agressão e violência.

Noutra visão, o sinal de explamação está dentro do


verbo amar, no pretérito perfeito: “amou” – a!mou. Disposta
assim, a palavra “a!mou” insinua que esse amor que passou
foi marcado por muitas dores.
Ainda, “a!mou” pode ser visto como um SEMEMA,
que, seguindo a ideia de análise componencial de Bernard
Pottier. Segundo este linguista francês, o semema é o
resultado da soma dos semas que formam o significado
global de um lexema. Assim, o semema <cadeira> é o
resultado de Sema1 "para sentar", mais o Sema 2 "com pés",
mais o Sema 3 "com encosto", mais o Sema 4 "sem braços":
(Cf. LOPES, Edward. 2003, p. 264-267). 233

232
FREUD, S. (1893-1895). 1920). “Além do princípio de prazer”.
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de
Janeiro: Imago, 1976. vol. XVIII, p. 11-85.
Seguindo a visão de Pottier e considendo “a!mou”
como semema, teremos: o semema < a!mou > é o resultado
de Sema1 " verbo amar no pretérito; mais o Sema 2 "
sentiu a emoção de amar ", mais o Sema 3 " exclamou um
amor ", mais o Sema 4 " se entregou de corpo e alma".
Logo, o Semema < a!mou > = S1 (verbo amar no
pretérito) + S2 (sentiu a emoção de amar) + S3 (exclamou um
amor) + S4 (se entregou de corpo e alma).
Essa rede de relações acionam a polissemia da
palavra poética “a!mou”. Para Rehfeldt "polissemia (...)
segundo os próprios componentes (poly + sema + ia), é
palavra que comporta várias significações" Rehfeldt, 1980,
p.77). 234 E, um significado polissêmico é quando num
mesmo significante unem-se vários feixes de semas ou
sememas, que se diversificam pelas combinações diferentes
de semas. Dessa forma, uma lexia polissêmica é aquela que
preserva uma unidade de significado, isto é, a sua unidade é
garantida pelo núcleo sêmico comum aos múltiplos setores de
semas. Com efeito, esse núcleo sêmico comum é que permite
ao falante identificar um único signo linguístico em suas
diferentes realizações no discurso. (cf. Para Barbosa 1996 p.
245-249). 235
O poético é constituído pela plurissignificação, pela
polissemia. Ezra Pound instrui que “grande literatura é

233
LOPES, Edward . Fundamentos da linguística contemporânea. São
Paulo: Cultrix. 2003.
234
REHFELDT, G. K. Polissemia e campo semântico (estudo aplicado
aos verbos de movimento). Porto Alegre:
EDURGS/FAPA/FAPCCA.1980.
235
BARBOSA, M. A. Léxico, produção e criatividade: processos do neologismo.
3ª.ed. São Paulo: Plêiade, 1996.
simplesmente linguagem carregada de significado até o
máximo grau possível”.(POUND E. 1990, p.32). 236
Diante do exposto, o poético é a explosão de
pluralidade de sentidos. O crítico Gilberto Mendonça Teles,
afirmou numa entrevista que: Há três mil anos que os poetas
vêm definindo a poesia. Para ele a poesia é o que revela o
invisível. “Você lê um poema uma vez, na segunda vez,
pode descobrir alguma coisa, ou um sentido que não
observou ou sentiu na primeira leitura”. (cf. TELES, M. G.
Entrevista para PUC TV, 2018) 237
Ao longo do poema “Amar – amaro” , “eu” lírico que
como já afirmei, se dirige a um ser que amou, cometeu erros.
Esse interlocutor ou o sujeito da ação de amar, não soube
seguir os caminhos perigosos desses sentimentos, “ternos” ou
desesperados. Esse indivíduo é marcados pelo gauchismo do
poeta, que fogue do lado destro e segue sempre lado
esquerdo, canhestro; é inseguro no amor, e sem sem
determinação: daí a palavra “desesperados”, está disposta ao
avesso, do contrário: “desesperados”.
A ironia poética do “eu” lírico segue quando faz outra
pergunta: nesse museu do pardo indiferente/ me diga: mas
por que/amar sofrer talvez como se morre/de varíola
voluntária vágula ev/idente A sonoridade museu do pardo
ironicamente alude ao famoso Museu do Prado, um dos
mais importantes do mundo, localizado em Madrid, Espanha.
Foi construido por Carlos III e inaugurado somente no
reinado de Fernando VII. Nele estão expostas preciosas
obras do mundo das artes. Aqui, o “eu” poético lembra que
236
POUND, Ezra. ABC da Literatura Trad. de Augusto de Campos
e José Paulo Paes. São Paulo, Ed. Cultrix, 1990.
237
https://youtu.be/NVFfNI3b7us
o amor guarda a história da humanidade, é um “museu de
tudo”, é a própria história da vida e morte: tudo viu e
testemunhou, com indiferença sombria, parda, sem claridade,
sem temperamento ou cor definida: museu do pardo
indiferente. Sugere também que todos querem viver o amor,
conhecê-lo, mesmo correndo o risco de sofrer, de morrer
voluntariamente pelo vírus errante do amor, que vagueia
invisível e traiçoeiro, embora evidente. No entanto, colocado
separadamente nos versos do poema, ev/ idente, sugere que
não se indentifica de forma tão fácil, não é tão visível, porque
é um vírus e se transforama numa virose ou varíola,
ameaçadora.
Daí, o “eu” poético retorna a fazer nova inquirição
exclamativa, em caixa alta e tudo ligado, numa grande
palavra-interrogação: ah PORQUEAMOU/ e se queimou.
Esse tom irônico em torno do desacerto do amor que,
como poeta é também um gauche, avesso e cheio de conflito,
está retratado no poema "Quadrilha" (CDA p. 193). Esse
antológico texto é poema-piada, portanto é carregado de
antilirismo, e da ironia amarga e seca sobre os desconcertos
do amor, sobre a rede de desencontros e inconstância das
relações amorosas. Ironiza ainda, a constante falta de
correspondência das cirandas de amores e desgostos. E, um
toque especial de humor irônico é enfatizado ao dar um
casamento final para Lili, única personagem que não amava
ninguém na história.
Construído em versos livres, o poema é dividido em
duas partes: na primeira, são observados os caóticos
desencontros amorosos de João que amava Teresa que
amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim
que amava Lili / que não amava ninguém. Nestes versos só
existe o ponto final.
Esses três primeiros versos são construídos com uma
oração principal (João amava Teresa) e cinco orações
adjetivas. O pronome relativo retoma sempre o objeto da
oração anterior e projeta-o como oração que introduz, de
maneira a configurar um interminável desencontro, que
culmina no nada, na ausência de ser, indicada pelo pronome
indefinido ninguém, que encerra o período.
Entre os vários recursos estilísticos, apontados pela
crítica, está a poeticidade do primeiro bloco que é acentuado
pelo ritmo bem marcado dos dois primeiros versos que
lembra a cadência da quadrilha. O final da dança (que não
amava ninguém) tem o ritmo ligeiramente alterado. A
metáfora da quadrilha está também no encadeamento das
orações do primeiro bloco rítmico e sua estrutura sintática,
em que o objeto do verbo é sujeito do verbo seguinte,
simbolizando a constante troca de pares da quadrilha.
A segunda parte da dança não tem o ritmo cadenciado
da primeira, é escrita de maneira prosaica, é o desfecho da
história dessas personagens e, portanto, traduz a ruptura entre
o mundo do desejo e o da realidade: João foi para os Estados
Unidos, Teresa para o convento, / Raimundo morreu de
desastre, Maria ficou para tia, / Joaquim suicidou-se e Lili
casou com J. Pinto Fernandes / que não tinha entrado na
história. Cada personagem vinculou-se ao seu destino: Longa
viagem, convento, morte trágica e física, morte metafísica e
trágica (naquela época ficar para titia era morrer tragicamente
para o mundo), suicídio e casar com quem não tinha entrado
para a história.
Muitos estudiosos da obra de Drummond chamam
atenção para o fato da outra parte da história ser construída
com orações coordenadas. Sua única oração subordinada é
que não tinha entrado na história. A coordenação indica a
não - relação dos fatos expressos pelas orações, o que mostra
que as ocorrências na vida das pessoas não guardavam
qualquer relação com o que elas desejavam. O verbo ir é
intransitivo, concorre para indicar que a ação por ele
expressa, não incide sobre nada ou sobre ninguém.
Algumas leituras de “Quadrilha” sustentam que as
figuras “ir para os Estados Unidos” e “ir para o convento”
remetem ao tema da “evasão espacial”. Nos verbos morrer e
ficar, o sujeito é paciente, o que revela que ele não age, mas
sofre os acontecimentos. O verbo suicidar-se tem um objeto
expresso por pronome reflexivo, mostrando que o ser humano
só tem controle sobre as ações que dizem respeito a si
mesmo. Suicidar-se remete também ao tema da evasão.
Só o verbo casar indica ação que incide sobre alguém.
No entanto, Lili não se casou com uma pessoa (um nome),
mas com um sobrenome. Pinto Fernandes é um sobrenome
tradicional, o que conota posição, dinheiro. O primeiro
sobrenome remete, além disso, à ideia de masculinidade, com
toda a carga conotativa que ela possui numa visão
estereotipada do casamento tradicional: segurança, apoio,
capacidade de liderança.
“Quadrilha“ é jogo amoroso que retrata a vida e a arte
de compor versos polissêmicos, carregados de sentidos até o
máximo grau possível. Mais do que interpretar as possíveis
conotações o poema deve ser sentido. “Quadrilha” traduz o
amor pela arte da palavra e remete ao leitor comum ou ao
crítico especializado, um desejo de descobrir as artes e as
manhas desse Amar-amaro drummondiano que sensibiliza e
salva a humanidade das dores amargas da ignorância e do
desamor.
Em Drummond, o amor é poetizado em todas as fases,
desde a descoberta dos primeiros sentimentos até o amor
serôdio, tardio, um amor semelhante ao fruto que vem ou
amadurece nos fins da estação própria, ou depois dela, como
pode ser contemplado no poema “Campo de Flores” (p. 214).
Nesses versos o poeta reflete:

Deus me deu um amor no tempo de madureza,


quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a
verme,
Deus – ou foi talvez o Diabo – deu-me este amor
maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor
Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
(CDA Idem p.214)

Carlos Drummond expõe em diversos poemas as


dimensões do amor, aborda entre vários temas, sobretudo a
inquietação que amor traz o desassossego, as dúvidas e
ansiedades diante da impossibilidade de realizar o projeto
desejado como nos mostra o poema “Ciclo”: Nosso desejo,
de ainda não desejar, não se sabe o desejo, / e espera. /
Como um bicho espera outro bicho. / (...) O amor atinge
raso, e fere tanto. / Nu a nu, / fome a fome, / não confiscamos
nada e nos vertemos. / (...) cargueiros adernando em mar de
promessa / Contínua. (CDA Idem p. 219 / 222).
Ao roubar serenidade do sujeito que ama, o amor
pode levar também o controle do poeta que, assumindo o
delírio da febre amorosa, ignora todos os limites e transgride
muitas regras. Os amantes, muitas vezes, ficam desesperados
quando são atingidos pelos poderes infernais e amargos do
deus sem caridade que é isso Amar-amaro, amor amargo,
doce amargo, paradoxal, confuso e sem explicação. Talvez a
explicação que se possa oferecer seja inútil, porque a
aprendizagem do sentimento surge como uma espécie
privilegiada da solidão. A comunhão que parece é inviável,
porque se mostra impossível qualquer troca de conhecimento:
O amor no escuro, não, no claro, / é sempre triste, meu filho,
Carlos, / mas não diga nada a ninguém, / ninguém sabe nem
saberá. Estes versos de “Não se Mate” (CDA Idem p. 196)
exemplificam também um diálogo do eu com o mundo,
embora esse "eu" funcione como um outro que fala pela
própria boca do poeta: Carlos sossegue, o amor / é isso que
você está vendo: / hoje beija, amanhã não beija / depois de
amanhã é domingo / e segunda-feira ninguém sabe / o que
será.
É como se fosse uma "outra voz", a própria
consciência, outra pessoa ou a natureza humana com seus
deuses e demônios aconselhando, o poeta:
Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
Reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,


a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.
Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.
(CDA Idem p. 196)

Drummond foi um poeta que cantou dentro do espírito


moderno “As Sem – Razões do Amor” (CDA Poesia
completa 2002 p.1238/ 1239), do livro Corpo (1984)e aliás,
título de um poema não inserido nesta Antologia, mas que
resume também a pluralidade ou a falta das razões do Amor
que foge a dicionários / e a regulamentos vários:
Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,


é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo


bastante ou de mais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.
(CDA Poesia completa 2002 p.1238/ 1239)

A ação de “Amar” (CDA Idem. Antologia Poérica p.


230) foi filosofada poeticamente como explicita o poema
“Amar”:

Que pode uma criatura senão,


entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,


sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o amar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,


o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,


distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
(CDA Idem. p. 230)

Este poema, com ritmos carregados, densos e


fluentes, que seguem uma cadência musical, metaforiza a
complexa rede de metáforas enumeradas em seus 5 blocos
rítmicos. Este texto poético funde o lírico da temática
amorosa ao épico da conexão coletiva, universal, sobre a
necessidade de amar. A linguagem adere unificando o
coloquial – amar e malamar – e o culto e amar o inóspito.
Enfim amar a nossa falta mesma de amor, e na secura
nossa / amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede
infinita de amar e sempre Amar.

2.7. Poesia contemplada

“Procura da Poesia” (CDA Idem p. 247) é o poema de


Carlos Drummond de Andrade mais analisado pela crítica
literária por expressar, por meio da metalinguagem, uma
tradução perfeita dos pressupostos teóricos da lírica
moderna.
Neste poema, Drummond contempla o ato poético e
teoriza com maestria sobre a arte da palavra. Entre as suas
orientações, evidencia que não se faz literatura com ideias e
sentimentos: O que pensas e sentes isso ainda não é poesia,
mas pode vir a ser. É necessário que o eventual assunto do
poema (o que pensas e sentes) encontre a forma de expressão
linguística adequada. Mas essa linguística não pode surgir por
um trabalho apenas da inteligência: deve nascer
espontaneamente da contemplação das palavras. O poeta
deve aguardar que as palavras se revelem e, como numa
gestação, se unam formas e fundo, dando o nascimento ao
poema. Então, sim, o que pensas e sentes se terá transmutado
em poesia.
O primeiro segmento de “Procura da Poesia” é todo
estruturado pela repetição (anáfora) de frases interrogativas
que condenam a busca da poesia por um caminho
equivocado, ou seja, confundida com aquilo que ”ainda não é
poesia”: é apenas o assunto do poema, o mundo físico ou
sentimentos individuais entre si. Entre ambos, a poesia e seu
eventual assunto, existe o instrumento da arte poética, que é a
palavra. Só a palavra organizará o poema. Mas a palavra tem
suas características peculiares e suas limitações:

Não faças versos sobre acontecimentos.


Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais
não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso
à efusão lírica.
(CDA Idem p. 247)

Pode-se interpretar, à luz do contexto, as proibições


de Drummond contidas nessas frases imperativas, marcadas
pelo signo do não, da seguinte forma: essas restrições
representam uma advertência de Drummond àqueles que
pretendem iniciar-se na arte poética. Esta é a lição, para que
não se deixe iludir pela presença do mundo físico, dos
acontecimentos ou dos sentimentos individuais em si, a ponto
de confundi-los com a poesia. A poesia só pode ser
descoberta na contemplação das palavras. Elas têm o poder
de atuar sobre o mundo, sobre as coisas, sobre os sentimentos
individuais e deles extrair o poético. Sem essa atuação da
palavra, as coisas, as ideias não significarão nada em termos
literários e ainda exprime:

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro


são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.


O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das
casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto
à linha de espuma.

O canto não é a natureza


nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,


não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
(CDA Idem p. 247-248)

Carlos Drummond de Andrade, nesse texto, põe em


prática conceitos poéticos de vários teóricos e filósofos da
linguagem, entre eles Mallarmé. Hugo Friedrich, em
Estrutura da Lírica Moderna afirma que:
A lírica de Mallarmé encarna o isolamento
total. Proíbe a si mesma qualquer intromissão do
presente. Repele o leitor e se recusa a ser humana.
“o poeta não tem outra coisa a fazer senão
trabalhar misteriosamente, tendo em vista o
jamais”. A realidade é sentida como algo
insuficiente, a transcendência como o Nada, a
relação entre uma e outra como uma dissonância
insolúvel. O poeta está só com sua linguagem. Nela
tem sua pátria e sua liberdade, com o risco de que
tanto o possam entender ou não.
(Friedrich, H. (1978) p. 139). 238

O poeta deve mergulhar no reino das palavras, no rio


da linguagem e, numa incessante perquirição à procura do
poético, chegar às profundezas do discurso, onde tudo é
silêncio. O artista chega mais perto e contempla as palavras,
então deverá saber decifrá-las, encontrá-las nesse rio da fala,
do discurso. O silêncio conduz o indivíduo à sabedoria, à
razão, está ligado à retórica. Por meio do silêncio o invisível
se revelará, pois a falta de visão inicia a busca da verdade
poética, no próprio poema:
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
(CDA Idem p. 248)

238
FRIEDRICH, Hugo. A Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo,
Duas Cidades, 1978.
O poeta submerge no reino da linguagem à procura
das palavras que estão paralisadas, sem pressa de sair de lá;
invade esse reino tentando decifrá-las, pois elas anunciam, tal
como a famosa esfinge de Tebas: “Decifra-me ou devoro-te”.
239
O artista deve tomar cada palavra, uma por uma e conhecer
a magia de cada uma, com suas múltiplas combinações
sintáticas e semânticas; deve percorrer todo o reino e, palmo
a palmo, ter conhecimento daquele terreno, pois, se assim não
proceder será devorado pelas próprias palavras. Depois,
conviver diuturnamente com a linguagem até encontrar a
sintaxe invisível do conceito, da melodia do canto poético.
Após descobrir as artes e manhas da poesia e dos
mistérios do verdadeiro ouriço que é o poema, o artista cria o
texto que não deve, necessariamente, falar do mundo pré-
existente. O sentido literário é o fíat, que significa criação.
O mundo físico, os acontecimentos, o corpo, os
sentimentos individuais em si, nada disso é ainda poesia.
Tudo deve ser recriado, graças ao poder misterioso da
palavra, numa nova realidade, em que o mundo se apresente
reformulado em termos humanos e o homem se encontre
liberto e universalizado (integrado ao mundo). Da nova
realidade, só possível pela palavra, surge a poesia.

239
A Esfinge era um monstro fêmea que era descrito de diversas formas
diferentes, mas foi popularmente conhecida com corpo de leão, peito e cabeça de
mulher, asas de águia e segundo alguns, uma cauda de serpente que afligia a
cidade de Tebas. Havia apenas uma esfinge na mitologia grega, considerada um
demônio de mau agouro, azar e destruição. Essas criaturas eram tidas como
traiçoeiras e impiedosas, as pessoas que não conseguiam responder seu enigma
sofriam um destino bem comum nos contos e histórias mitológicas, eram mortos e
totalmente devorados por esses monstros.
O Enigma da Esfinge é um dos mais famosos quebra-cabeças de todos os tempos:
Ela dizia ‘’Decifra-me, ou devoro-te’’. – Qual o ser que pela manhã tem quatro
pés, ao meio dia tem dois, e a noite tem três?
O poeta deve penetrar surdamente no reino das
palavras sem nenhuma ideia preconcebida, humildemente,
com atenção e receptividade, buscando a intimidade dos
vocábulos, atento a sugestões que deles se desprendem,
esperando que as palavras se revelem e mostrem aquela face
secreta em que, como num molde, se ajuste à ideia poética.
O reino das palavras implica poder e autonomia. Ora,
as palavras são ricas de sentido e potencialidade de
comunicação; além disso, possuem aquela face secreta capaz
de, unindo forma e fundo, construir o poema. As palavras são
independentes do poeta para existir, uma vez que fazem parte
do código social, a língua.
O poeta não pode adiantar-se, querendo escolher com
a inteligência as palavras que formarão o poema. O que lhe
cumpre fazer é, contemplando as palavras, esperar que elas se
revelem e extraiam da consciência os elementos poéticos que,
com ela fundidos, façam surgir o poema que comunicará a
poesia.
Assim, o poder de silêncio é a capacidade que as
palavras têm de, sozinhas, sem a participação organizada da
inteligência do homem, agir como estímulo para extrair do
inconsciente o material poético. O poder da palavra é, no
poema, a capacidade que o vocábulo possui para comunicar a
poesia.
As palavras guardam a impressão, o rastro, o eco, a
figura, a face de todas as vivências humanas no mundo. Na
verdade, o interior da palavra é o reflexo da alma do homem
e do mundo. O ser é manifestado através da linguagem, como
afirma Martin Heidegger (1889 – 1976) na obra Carta sobre
o humanismo 240 (Über den humanismus)90, escrita em 1946:
A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser
mora o homem. Os pensadores e os poetas são os
guardas desta habitação. A guarda que exercem é o ato
de consumara manifestação do ser, na medida em que a
levam à linguagem e nela a conservam. Não é por ele
irradiar um efeito, ou por ser aplicado, que o pensar se
transforma em ação. O pensar age enquanto exerce como
pensar. (...) (HEIDEGGER, Martin. Sobre o
humanismo. 2005, p. 55) 241
De acordo com a sua Essência, a linguagem é a casa
do Ser, edificada em sua propriedade pelo Ser e disposta
a partir do Ser. Por isso urge pensar a Essência da
linguagem numa correspondência ao Ser e como uma tal
correspondência, isto é, como a morada da Essência do
homem.(Op. Cit. 2005 p. 55).

Assim, os poetas são os guardiões da linguagem


movimenda pelas palavras, que moram dentro do ser que
poeta e que tem o domínio de lutar contra as intempéries da
linguagem poética, que não se edifica de repente. O poeta se
contrói ao longo de um trabalho diuturno com as palavras,
como certifica o poema:

240
Heidegger escreve Carta sobre o humanismo em resposta ao existencialista Jean
Beaufret que havia lhe enviado uma carta solicitando um esclarecimento acerca do
significado do humanismo após o acontecimento das duas guerras mundiais. Heidegger
nunca escrevera uma obra de conteúdo diretamente humanístico ou ético, tendo, inclusive,
se recusado a admitir que se faça qualquer relação das suas obras com a corrente
existencialista – tentativa constante de Beaufret -, uma vez que era contrário à classificação
do pensamento. Em Carta sobre o humanismo ele critica o processo de decadência do
homem ocorrido a partir do momento em que a concepção técnico-científica foi se firmando,
promovendo assim o esquecimento do sentido do Ser.
241
Heidegger, Martin, Carta sobre o humanismo .Tradução de Rubens
Eduardo Frias. São Paulo: Centauro. 2005.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.


Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
(CDA Idem p. 248-249)

A contrução de um texto poético poderia ser


comparada a um poliedro de mil faces. Cada face teria a
capacidade de comunicar uma ideia ou um sentimento. As
faces secretas não se revelam facilmente, a não ser no
momento em que o poeta está psicologicamente preparado
para receber a mensagem do inconsciente.
Em Trazer a chave significa que o poeta deve
apresentar-se psicologicamente preparado para receber a
revelação das palavras, sem nenhuma ideia preconcebida,
humilde, disposto a receber, atento às sugestões. Caso
contrário, não abrirá as portas do “segredo”: as palavras
reagirão desfavoravelmente e nada revelarão.
Essas lições de poesia drummondianas levaram
muitos críticos a afirmar que o poeta mineiro é o mais
importante teórico da moderna poesia brasileira, uma vez que
os princípios de sua Poética (é claro, de sua retórica) provêm
simultaneamente do mesmo ato criador da poesia. De acordo
com Gilberto Mendonça Teles:
A atenção do poeta se torna intransitiva, volta-se
para si mesma, observando a criação de dentro para
fora, na sua raiz de modo que a linguagem é que se
torna objeto da especulação poética. Daí a
metalinguagem, o poema sobre o poema, sobre a
poesia, sobre a linguagem, sobre a gramática, enfim
sobre os elementos do discurso poético. (Teles, G. M.
1989, p. 237). 242

O poema “O Lutador” (p. 243) é outro exemplo da


melhor Poética – retórica do Modernismo. É um metapoema
que dá lição da concepção universal da poética moderna, da
luta diuturna através do reino das palavras e da descoberta de
suas faces secretas e enigmáticas. Ao falar das dificuldades
na relação com as palavras, o poeta filosofa sobre a arte
poética dizendo:

Lutar com palavras


242
TELES. Gilberto Mendonça. Retórica do Silêncio I. Rio de
Janeiro, Ed. José Olympio, 1989.
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
(CDA Idem p. 243)

A opção por versos curtos estruturando o poema


confere ao texto um ritmo de tensão, refletindo o momento de
luta que o poema procura captar.
Para escrever poesia não basta ter boa intenção, é
preciso mais do que isso: é necessário muita luta, lucidez e
uma certa frieza para realizar essa obra de arte.
Em “O Lutador”, Drummond de Andrade desmistifica
o conceito de poesia como algo mágico e como tarefa divina.
O trabalho poético, na lição do poeta, é uma atividade
produtiva, igual a tantas outras na sociedade, é uma luta pelo
sustento, daí afirmar: mas lúcido e frio, / apareço e tento /
apanhar algumas / para meu sustento / num dia de vida. E
completa:

Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.
Preferes o amor
de uma posse impura
e que venha o gozo
da maior tortura.

Luto corpo a corpo,


luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.
(CDA Idem p. 244-245)

“O Lutador” reitera a teoria que Drummond


apresenta em “Procura da Poesia”, de que o poeta deve
penetrar no reino da palavra através de uma luta corpo a
corpo; todo o tempo sem nenhuma ideia pré-concebida,
humildemente, com atenção e receptividade, buscando a
intimidade das palavras, atento às sugestões que delas se
desprendem, esperando que as palavras revelem aquela face
secreta em que, como num molde, se ajuste a ideia poética.
Nessa seção denominada “Poesia Contemplada”, além
dos poemas “Procura da Poesia” (CDA Idem p. 247) e “O
Lutador” (CDA Idem p. 243) que fundamentam as teorias de
uma nova Poética e de uma nova Retórica do modernismo
brasileiro, Drummond escolheu outras lições importantes:
“Brinde no Banquete das Musas” (CDA Idem p. 250),
“Poema-Orelha” (CDA Idem p. 252), “Conclusão” (CDA
Idem p. 254) e “Oficina Irritada” (CDA Idem p. 251).
Em “Oficina Irritada” o poeta expõe: eu quero
compor um soneto duro / como poeta algum ousara
escrever. / eu quero pintar um soneto escuro, seco, abafado,
difícil de ler. Este poema é um exemplo da fase
neoclassizante de Drummond que adere às normas fixas,
como soneto e o recurso à chamada “expressão nobre” do
clássico, filosófico e perfeccionista. Essa adesão foi vista
com certo azedume pelos críticos de vanguarda. Por outro
lado, foi bem recebida pelos críticos em geral e pelo grande
número de admiradores da poesia de Carlos Drummond de
Andrade.

2.8. Uma, duas argolinhas

Esta seção “Uma, duas argolinhas” corresponde aos


exercícios lúdicos. Os poemas escolhidos por Drummond
para esta parte foram: “Sinal de Apito” (CDA Idem p. 257),
“Política Literária” (CDA Idem p. 258), “Os Materiais da
Vida” (CDA Idem p. 259), “Áporo” (CDA Idem p. 260) e
“Caso Pluvioso” (CDA Idem p. 261).
O poema “Sinal de Apito” (CDA Idem p. 257),
publicado no livro Alguma Poesia (1930), explana a marca da
renovação literária de 1922 e incorpora o humor e o tom de
piada do primeiro período do Modernismo brasileiro que
marcou influência na poesia drummondiana da primeira fase:
Um silvo breve: Atenção siga. / Dois silvos breves: Pare /
Um silvo breve à noite: Acenda a lanterna. / Um silvo longo:
Diminua a marcha. / Um silvo longo e breve: Motorista a
postos (CDA Idem p. 257).
Estes versos além de assinalarem a rebeldia às formas
de versificar consagradas até então, buscam uma linguagem
direta, pessoal, mas tangenciando o “poema-piada” posto em
voga pelos modernistas, num jogo poético marcado por
ironia, humor, ideias, ação e, antes de tudo, criação.
“Áporo” é um antológico exercício poético carregado
de lições e jogos cheios de maestria. Este poema de arte e
manha assim expressa a arte da palavra:

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
(...)

em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se .
(CDA Idem p. 260)

O poema “Áporo” é um dos disfarces do poeta


gauche que atravessa toda a obra drummondiana, é a
expressão do ser desajustado, solitário, estranho, aporético,
portanto sem saída, cheio de dúvida. O termo áporo deriva
(do grego a, “sem” + poros, “passagem”). Significa uma
situação sem saída, problema difícil. O poeta gauche está
sempre em estado de aporia. Esta palavra vem do grego e é
usada no sentido de dúvida racional, isto é, de dificuldade
inerente a um raciocínio, e não do estado subjetivo de
incerteza. Aporia, portanto, é a dúvida objetiva, a dificuldade
efetiva de um raciocínio ou da conclusão que leve a um
conceito. O gauche é este ser aporético, que fica procurando
saída, vivendo um jogo de esconde-esconde, de pergunta sem
resposta ou com respostas escondidas, num jogo de ideias, de
procura sem encontro, numa angústia contínua.
O ser do poeta foi metaforizado, ludicamente,
através da polissemia da palavra áporo que, por sua vez,
também significa inseto cavador relativo aos aporídeos
platelmintos cestóideus, desprovidos de canais ou poros
genitais, com escólex de quatro ventosas e rostelo armado,
(Michaelis (1998) p. 191). 243 Além do inseto, áporo também
significa plantas das orquidáceas. O poema contém, pois, a
história de um “áporo” (inseto) que, num áporo (situação sem
saída), se transforma em áporo (orquídea), que no final é a
transfiguração do ser gauche.
Áporo é uma intrincada tecitura verbal reveladora de
um fantástico exercício lúdico. Os jogos verbais imperam na
densa trama deste poema. Esse trabalho singular foi analisado
por Décio Pignatari no artigo intitulado “Áporo – Um inseto
semiótico”, in Contracomunicação (1971). 244
Conforme o poeta-crítico, Inseto procede de uma
palavra latina que se seccionada assim: prefixo in (ideia de
interioridade), raiz sec (do verbo seccionar), sufixo nominal e
desinência tum (que passa em português a to, como sec se
reduz a se: insectum  inseto), isto porque o inseto tem o
corpo seccionado em anéis.
As seções da palavra inseto são in, se e to, cada uma
das quais correspondentes a uma “trilha” que Pignatari
desvenda no texto. Basta-nos aqui seguir a trilha central, o se
(e suas variantes ou fonológicas: ce, es, is, zé, ez, ex) ícone
sutil do inseto e verme, signo-inseto que, lodo ge início, se
apresenta sitiado em si mesmo, in-se-to, e que, ao longo de
243
MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São
Paulo, Melhoramentos, 1998.
244
PIGNATARI, Décio. “Áporo”: Um inseto semiótico. In:
Contracomunicação. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971. p. 131-137.
(Col. “Debates”, 44)
seu processo subterrâneo de metamorfose, cava sua saída em
forma de orquídea (reparar que único se não “bloqueado” no
interior do verso é o último, que desponta na extremidade do
poema como uma flor no alto do seu caule): Um inSEto cava
/ cava SEm alarme / perfurando a terra / SEm achar
EScape. / que faZEr, EXausto, / em paÍS bloqueado, /
enlaCE de noite / raiZ E minério? / EiS que o labirinto / (Oh
razão, mIStério) / prESto SE dESata: / Em verde soZinha, /
antieuclidiana, / uma orquídea forma-SE. (cf. PIGNATARI,
Décio. 1971. p. 131-137).
O impasse, a aporia de “Áporo” não simboliza
apenas o beco-sem-saída existencial de vários outros poemas
de Drummond. Seu sentido político, de abertura
revolucionária do “país bloqueado” (e o país vivia as
esperanças decorrentes do fim da ditadura Vargas, após o
término da guerra), se encontra magistralmente sugerido num
dos dois pontos em que há alguma estranheza vocabular no
texto: preso se desata, onde presto palavra que foge a
coloquialidade do resto do vocabulário do poema
(excetuando o neologismo antieuclidiano), sugere um sutil
anagrama, em que é celebrada a libertação do líder do Partido
Comunista, Luís Carlos Prestes.
Outro ponto em que Drummond se afasta do que seria
de esperar, do ponto-de-vista léxico, é na expressão sem
alarme (o habitual seria sem alarde). Aqui é inevitável ler,
ou entreler, o nome do Mestre: seM ALARME, Mallarmé, o
mestre da escavação poética no “chão mineral” a expressão é
de João Cabral da página branca (“o vazio papel que a
brancura defende”), solo obscuro e rigoroso (enlace de noite
/ raiz e minério) de onde pode brotar a revolucionária flor do
poema. (Cf. PIGNATARI, Décio. 1971. p. 139).
O poeta francês Stéphane Mallarmé foi o ponto
máximo da caminhada da lírica moderna e ensinava que o
poeta precisa buscar suas armas dentro da própria linguagem
da poesia, mesmo sabendo que nada é definitivo e “Um
lance de dados jamais abolirá o acaso” – título do longo e
elaboradíssimo poema visual e musical escrito em l897. 245
Décio Pignatari, ao lado dos irmãos Haroldo e
Augusto de Campos, liderou a Poesia Concreta no Brasil. 246
Com a sua experiência teórica e prática, o concretista
mergulha nesse intrincado exercício lúdico drummondiano e
exercita a arte e fazer mediações entre o significante e o
significado do signo mágico e alquímico que é a poesia.
A poesia é a arte que se manifesta pela palavra, como
a música é a arte que se manifesta pelos sons e a pintura
pelas cores e linhas. (Op. Cit POUND E. 1990, p. 38). Como
se vê a palavra é a matéria-prima da poesia, e a arte do poeta
é saber lidar com ela, elegendo, dentre as inúmeras que o
léxico lhe oferece, aquelas que valham por si mesmas, em
termos de situarem de maneira original as particularidades e
especialíssimas circunstâncias que tocam o espírito humano.
Daí que a preocupação do leitor deva ser, sobretudo,
descobrir nas palavras todos os significados e sugestões que
elas possam oferecer, uma vez que é justamente nesse
aspecto que reside o caráter grandioso da poesia: conectar
com perfeição o lúcido e o lúdico, oferecendo com mínimo
de termos e expressões o máximo de expressividade e
significados, porque o poeta recorre ao emprego de artifícios
245
MALLARMÉ, Stéphane. Um lance de dados. Tradução e notas de
Álvaro Faleiros. Cotia: Ateliê editorial, 2013.
246
CAMPOS, Haroldo de. Tradução de Un coup de dés, de Stéphane
Mallarmé. In: CAMPOS, Augusto de, PIGNATARI, Décio, CAMPOS,
Haroldo de. Teoria da poesia concreta. São Paulo, Duas Cidades, 1975.
tais como a alusão ou a conotação múltipla deixando ao
cuidado do leitor o pleno significado; e é também com essa
finalidade que a poesia faz o som ecoar o sentido. (Ibidem
Idem POUND E. 1990, p. 135).
Ao caracterizar-se o texto literário um como uso
específico e complexo da língua, os signos linguísticos, as
frases, as sequências assumem significado variado e múltiplo.
Assim, afastam-se, por exemplo, da monossignificação típica
do discurso científico, só para citar um caso.
É nesse sentido que alguns estudiosos situam o
distanciamento que a linguagem literária assume em relação
ao que chamam grau zero da escritura. Entenda, a princípio,
grau zero como discurso preocupado, sobretudo com a plena
clareza da comunicação nele veiculada e com a obediência às
normas usuais da língua, (Cf. Barthes, R. (1971) p. 184) 247 é
o que orienta Roland Barthes em Novos Ensaios Críticos
Seguido de o Grau Zero da Escritura.
A literatura, na verdade, cria significantes e fundos
significados. Apresenta seus próprios meios de expressão,
ainda que se valendo da língua como ponto de partida.
Superposto ao da língua, o código literário, em certa medida,
caracteriza alterações e mesmo oposições em relação àquele.
É um desvio mais ou menos acentuado em relação ao uso
linguístico comum.
Em termos literários, por exemplo, assegurada a
coerência do conjunto em que inseríssemos a afirmação, teria
o sentido frases como em verde, sozinho, / euclidiana, / uma
orquídea formas. Ora a poesia é uma orquídea anti-
euclidiana, cheia de estranhamentos, sem os raciocínios

247
BARTHES, R. O Grau Zero da Escritura. São Paulo Cultrix, 1971.
lógicos pregados por Euclides, o grande matemático
discípulo de Platão.
A arte não precisa por a geometria em ordem como
fez Euclides, mas reflete a desordem do mundo, com os
silêncios e os gritos dissonantes dos porões da humanidade.
A poesia é um jogo lírico, é uma flor original e
plurissignificante, que comunica a essência do ser do homem.

2.9. A Tentativa de exploração e de interpretação


do estar no mundo

Em “Especulações em “Torno da Palavra Homem”


(CDA Idem p. 295) o poeta questiona: Que milagre é o
homem? / Que sonho, que sombra? / Mas existe o homem? O
“eu” poético apresenta uma inquietação em consequência do
momento da auto-análise e do mergulho metafísico em torno
da sua história, do seu passado, do caminho para o
entendimento da própria existência.
Nos 28 poemas escolhidos por Drummond para essa
parte da Antologia denominada “Tentativa de exploração e de
interpretação do estar-no-mundo” o autor busca entendimento
sobre o sentido da vida e do homem, ao mesmo tempo que
filosofa sobre a própria linguagem poética e seu Claro
Enigma (1951).
Os textos de Claro Enigma são mais conceituais que
os de A Rosa do Povo. Nesse sentido, o melhor e o mais
conhecido exemplo é “A Máquina do Mundo” (CDA Idem p.
281) em que o "eu" lírico contempla filosoficamente o
mundo:

É como eu palmilhasse vagamente


uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos


que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo


na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu


para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
(CDA Idem p. 281).

Nestes versos, o poeta volta-se para investigação do


sentido do universo, do seu conhecimento pelo homem e das
relações dos homens com ele.
“A Máquina do Mundo” é o título da última parte de
Claro Enigma (1951), que engloba dois poemas. O primeiro,
com o nome “A Máquina do Mundo” (CDA Idem p. 281),
narra o encontro do poeta numa estrada de Minas, como um
ser / objeto que se dirige a ele oferecendo a chave de todos os
mistérios da vida.
O poeta assiste à fala daquele Ser Estranho, mostra-se
relutante em responder, e diante de seu desinteresse, a
máquina se recolhe e desaparece como surgiu, enquanto o
gauche poeta continua pelo crepúsculo.
Já no segundo poema, “Relógio do Rosário” (CDA
Idem p. 289), ouve-se a voz do poeta como num monólogo
mediante fundamento sobre o Eu, o Mundo e o Nada,
enquanto soa o relógio na igreja do Rosário: Era tão claro o
dia, mas a treva, / do som baixando, em seu baixar me leva /
pelo âmago de tudo, e no mais fundo / decifro o choro pânico
do mundo, / (...) Mas, na dourada praça do Rosário, / foi-se
o som, a sombra. (...).
Outro exemplo de poema conceitual ou filosófico é o
poema “Cantiga de Enganar” (CDA Idem p. 271). Neste texto
o poeta dá um conceito pessimista ao mundo e, no misto
filosófico – irônico diz:

O mundo não vale o mundo,


meu bem,
Eu plantei um pé-de-sono,
brotaram vinte roseiras,
Se me cortei nelas todas
e se todas se tingiram
de um vago sangue jorrado
ao capricho dos espinhos,
não foi culpa de ninguém.
O mundo
meu bem,
não vale
a pena, e a face serena
vale a face torturada.
Há muito aprendi a rir,
de quê de mim ou de nada
O mundo, valer não vale.
(CDA Idem p. 271)

Esse pessimismo irônico sob o signo do não aqui


adotado perpassa todo o livro Claro Enigma.
A poesia filosófica de Carlos Drummond de Andrade
reflete sobre temas universais de caráter metafísico como:
vida, morte, tempo, velhice, amor, além, é claro, dos temas
sempre presentes, como a família, a infância e a própria
poesia.
O pessimismo com que esses temas são abordados
chega a ser maior do que a fase inicial do poeta, denominada
de gauche; é um pessimismo corrosivo, ácido, uma vez que
esperança de um tempo de harmonia e homens presentes já se
frustrou.
O desejo de autoconhecimento, que guiava o poeta
através das sete faces daquele poema de abertura Alguma
Poesia (1930), mantém-se e as cenas da vida vão sendo
projetadas numa tela imaginária que a poesia focaliza.
O cultivado hábito de se auto-admirar não significa
necessariamente um engano: o poeta jamais perde a
consciência da relatividade de tudo, inclusive da sua própria
capacidade de investigar as coisas. Por isso, muitas ilusões se
perdem e mesmo a madureza, que poderia trazer alguma
quietude, é vista sobe outro ângulo.
O poema “A Ingaia Ciência” (CDA Idem p. 316)
ilustra essa tendência filosófica e ao mesmo tempo
classicizante de Drummond: A madureza, essa terrível
prenda / que alguém nos dá, raptando-nos, com ela, / todo
sabor gratuito de oferenda / sob a glacialidade de uma
estela. (A expressão “ingaia ciência”: neologismo criado
pelo autor a partir da negação de gaia ciência, arte de poetar
entre os provençais da Idade Média.
O filósofo Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 -1900)
248
também escreveu um livro intitulado A Gaia Ciência
248
Friedrich Wilhelm Nietzsche (Röcken, Reino da Prússia, 15 de outubro de
1844 - Weimar, Império Alemão, 25 de agosto de 1900) foi um filósofo, filólogo,
crítico cultural, poeta e compositor prussiano do século XIX, nascido na atual
Alemanha. Escreveu vários textos criticando a religião, a moral, a cultura
contemporânea, filosofia e ciência, exibindo uma predileção por metáfora, ironia e
aforismo.
(traduzida também com Alegre Sabedoria, ou Ciência Gaiata
(Die fröhliche Wissenschaft, 1882), no qual o pensador
reflete sobre questões como a moral, a necessidade de crença,
o sentimento de potência, etc).
Este poema evidencia que associado à noção de
maturidade, o poeta assume o exercício da memória,
buscando, através dela, conquistar a compreensão das coisas
que o atormentam: os problemas da família, as angústias que
trouxe da terra, a perplexidade diante do amor. E se mostra
convicto da inviabilidade do mundo gauche com seus
avessos.
Entretanto, foi esse avesso do avesso que nos legou o
polêmico "No Meio do Caminho" (CDA Idem p. 267). Sobre
esses versos Drummond afirma: Sou o autor confesso de
certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928
vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir
no Brasil as pessoas em duas categorias mentais. (Op. Cit.
Andrade, C. A. In: Coutinho, A. (1964) p. 525).
"No Meio do Caminho" causou grande escândalo e
muita divergência quando publicado e, mesmo depois, a tal
ponto que o próprio poeta organizou, em 1968, uma
antologia, Uma Pedra no Meio do Caminho – Biografia de
um Poema, onde reuniu tudo que se publicou a respeito, ou se
fez, parodiando seus versos.

A Gaia Ciência, traduzida também com Alegre Sabedoria, ou Ciência Gaiata


(Die fröhliche Wissenschaft, 1882). - No terceiro capítulo deste livro é lançada o
famoso diagnóstico nietzschiano: "Deus está morto. Deus continua morto. E
fomos nós que o matamos", proferido pelo Homem Louco em meio aos
mercadores ímpios (§125). No penúltimo parágrafo surge a ideia de eterno
retorno. E no último, aparece Zaratustra, o criador da moral corporificada do Bem
e do Mal que, como personagem na obra posterior, finalmente superará sua
própria criação e anunciará o advento de um novo homem, um Além-Homem.
O poema "No Meio do Caminho", sem dúvida, fez
história no Modernismo como o mais polêmico texto poético,
construído através de uma estrutura revolucionária, de caráter
aparentemente irônico e caótico para os leitores mais
desavisados. A arte é estranhamento e, é também, na
concepção de Ezra Pound novidade que permanece novidade.
(Pound, E. (1990) p. 32). “No Meio do Caminho” foi essa
novidade estranha e poética formada por versos que se
repetem, circulares, em torno da pedra: No meio do caminho
tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho /
tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra.
Uma leitura inocente leria apenas uma frase que vai
até a pedra e volta (no meio do caminho tinha uma pedra,
tinha uma pedra no meio do caminho). No entanto, tal leitura
não passa da mais pura insensatez, porque o texto sugere
muitas interpretações, menos esta visão denotativa e direta da
frase. A organização sintática e cheia de repetição é o fíat,
isto é, a maior criação do poema.
O poema é, antes de tudo, literatura e, como tal, é
linguagem carregado de conotação ou de sentido figurado,
portanto difere da linguagem denotativa, porque sua função
não é só comunicar, mas também expressar emoções
particulares do autor, ser original.
A famosa "pedra" no meio do caminho pode significar
inúmeras coisas: pedra mesmo, no sentido abstrato e restrito
do dicionário; dificuldade, o que atrapalha; coisa marcante,
duradoura, eterna; coisa que corta pétrea e, enfim, um mundo
de significações.
Entre os vários recursos de estilo utilizados por
Drummond neste genial poema, vários críticos literários
realçam a caprichosa disposição das palavras em cada verso.
Estudiosos da obra drummondiana enfatizam a colocação
estratégica da palavra “pedra”. Apontam que sobre a sílaba
tônica “pé” se descarrega o ímpeto do fluxo rítmico e sonoro
crescente formado pela sequência de nasais envolvendo e
arrastando sons vocálicos fechados.
O dinamismo desse movimento imita o ritmo e o
rumor de sucessivos golpes de martelo. A pedra, símbolo da
dificuldade para a expressão poética, é que recebe as
investidas. O primeiro verso corresponde à primeira
martelada, desferida por quem ainda está excessivamente
confiante ou ainda não percebeu a dureza da pedra; assim,
revela-se inútil. Então se sucede a segunda martelada,
desferida com maior violência, mas que patenteia, no recuo
do martelo (observe-se a colocação da palavra “pedra” no
meio do verso), a impotência do golpe; a terceira, breve, de
preparação talvez para novo ímpeto, pode representar a
concentração das forças mirando alvo bem determinado (o
verso é curto, seguido de uma espécie de pausa ou silêncio de
atenção concentrada); a quarta e última confirma
definitivamente a invulnerabilidade da pedra e o despreparo
do que descarregou os golpes.
E a mensagem – a dificuldade do poeta em penetrar
no reino das palavras – encontra-se esclarecida nos versos
que seguem: o poeta humildemente confessa que jamais se
esquecerá da experiência difícil que teve com as palavras no
início de sua atividade de artista (com certeza ainda não se
julgava psicologicamente preparado, ainda não tinha “trazida
a chave...”).
Esta é uma interpretação coerente, por outro lado, a
arte traz a marca do enigma e as marteladas doloridas e
sonoras das dificuldades labirínticas da vida. “No Meio do
Caminho tem uma Pedra” expressa toda a pluralidade de
imagens e sentidos que o texto artístico metaforiza, com uma
simplicidade singular.
Carlos Drummond demonstrou também que o belo e
o poético residem basicamente na criatividade, não precisam
da retórica e da técnica do poeta-escultor como defendiam os
parnasianos.
Nesse sentido, pode-se interpretá-lo como uma crítica
às teorias passadistas, que comparavam a criação do artista da
palavra, com o trabalho do ourives com seus martelos e suas
pedras preciosas lapidadas, como enfatizou Olavo Bilac no
poema “Profissão de fé”. Entre o poeta e o artesão tinha uma
pedra no meio do caminho, uma vez que, se o segundo
buscava a perfeição e a cópia fiel de uma realidade, o
primeiro deveria tem como meta a criação de um mundo
cheio de significados.
No meio do caminho tinha uma pedra é um verso que
se repete circularmente, como as situações da vida: más e
boas. Já foi dito que se os versos iniciais formam um
crescendo de intensidade, os finais retrocedem, num
minuendo (o oitavo repete o terceiro; o nono, o segundo; o
décimo, o primeiro), sugerindo ritmicamente o eco, a
lembrança da luta que volta a seu lugar na memória.
Ora, vida é um círculo contínuo e os acontecimentos
são marcados na memória: das retinas tão fatigadas.
Memória é a capacidade de voltar no tempo. O vocábulo
repetir vem do latim repetitione e deriva, segundo a
etimologia, do verbo latino petere, que significa procurar, e
buscar de novo, procurar uma vez mais, esforçar-se por
alcançar de novo.
Affonso Romano de Sant'Anna analisando a obra de
Drummond escreve que memória é re-sentir. O ato de repetir
é basicamente uma atitude contra o tempo, necessidade de
fixar a essência do que passou e reexperimentar sensações
do prazer antigo diante do desconforto do tempo presente.
(Op. Cit Sant’Anna, A. R. (1980) p. 201). Memória é a
tentativa de reviver um momento, recordar os acontecimentos
que de alguma forma marcaram nossa vida. Heidegger
assinala que:
Investigar: o que há com o Ser? – não significa
nada menos do que re-petir o princípio de nossa
existência espiritual-Histórica, a fim de transformá-lo
em um outro princípio [...] Um princípio, porém, não
se re-pete, voltando para ele como algo de outros
tempos e hoje já conhecido, que meramente se deve
imitar. Um princípio se re-pete, deixando-se que ele
principie de novo, de modo originário, com tudo o que
um verdadeiro princípio traz consigo de estranho,
obscuro e incerto. (Heidegger, A. R. 1987, p. 65). 249

Recordar é a reiteração desejada de momentos


importantes da existência. Alguns críticos estudaram a
repetição drummondiana, entre eles Antônio Houaiss e
Emanuel Moraes e, de forma singular, Gilberto Mendonça
Teles, com a sua obra Drummond a Estilística da Repetição.
250
Nesta obra, o poeta-crítico assinala que a repetição é uma
constante na poética do criador de ”No Meio do Caminho” e
se verifica tanto na estrutura formal (versos, rimas, etc...),
quanto nos mínimos fonemas. Gilberto Mendonça Teles
defende que a repetição parece originar-se dessa ânsia de
superação do indizível. (Teles, G. M. 1976, p. 35).

249
HEIDEGGER, Martins, O Que é Metafísica? São Paulo, Duas Cidades
1969.
250
TELES. Gilberto Mendonça. Drummond – A Estilística da Repetição.
2ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1976.
"No meio do caminho" apesar de ser um retrato
irônico e antilírico da vida, demonstra uma verossimilhança
que sangra a realidade com suas pedras sonoras e, por meio
de metáforas, diz o indizível e desperta o homem para sua
humanidade adormecida.
Se o poema tem uma tonalidade avessa, torta, gauche,
meio caótica e repetitiva, tem os tons da vida, que nem
sempre são claros, coloridos e belos. "No Meio do Caminho"
traduz os sentimentos do mundo que o poeta posteriormente
vai falar através da misteriosa voz de seus poemas, porque
como definiu Otávio Paz em O Arco e a Lira a criação
poética é um mistério porque consiste em falar dos deuses
pela boca humana. (Paz, O. 1982 p. 196). 251

2.10. Suplemento

Esta Antologia Poética é finalizada com a seção


denominada “Suplemento” composto por 15 poemas que
trazem lições de vida e de coisas. Nesses textos Carlos
Drummond de Andrade retoma elementos de sua poética
como as raízes de seu ser, a própria história, as contradições
do amor, o estar no mundo e até mesmo as questões sociais
como a paz, como no poema “Apelo a Meus Dessemelhantes
em Favor da Paz” (CDA Idem p. 368).
O poema “O Relógio” (CDA Idem p. 344) marca as
batidas da poética deste poeta maior que, com ironia e
lirismo, expõe sua visão crítica do homem e sua inquietação
diante da vida: Nenhum igual àquele. / A hora no bolso do
colete é furtiva, / a hora na parede da sala é calma, / a hora

251
PAZ, Otávio. O Arco e a Lyra. Trad. de Olga Savary. Editora Nova
Fronteira.1982.
na incidência da luz é silenciosa. / Mas a hora no relógio da
Matriz é grave / como a consciência / E repete. Repete.
Nesta Antologia, o autor – privilegiado autor leitor de
sua obra – apresentou-nos aqueles poemas que ele considerar
os principais núcleos de sua poesia e, como afirmou, algumas
caberiam talvez em outra seção que não a escolhida, ou em
mais de uma. A razão da escolha está na tônica da
composição, ou no engano do autor. ( Op. Cit Andrade C. D.
(2001) p. 17). O certo é que Drummond conduz o leitor numa
viagem cujo destino é, sem dúvida, o maior conhecimento do
perfil da obra de um dos maiores poetas da Língua
Portuguesa.

3. Quem foi Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira,


Minas Gerais, a 31 de outubro de 1902, filho do fazendeiro
Carlos de Paula Andrade e D. Julieta Augusta Drummond de
Andrade.
Fez os estudos primários em Itabira e secundários em
Belo Horizonte e Nova Friburgo. Aos 13 anos de idade já
pertencia ao Grêmio Dramático e Literário Artur Azevedo, de
sua Cidade natal, e aí pronunciou uma conferência. Suas
tendências literárias aparecem cedo, já no Grupo Escolar
Coronel José Batista, onde esteve inicialmente.
Ainda adolescente, começou a colaborar em jornais e
revistas de Belo Horizonte e do Rio. Em 1916 matriculou-se
no Colégio Arnaldo, de Belo Horizonte, onde conheceu
Gustavo Capanema e Afonso Arinos, que continuariam a ser,
pela vida afora, dois de seus grandes amigos.
Em 1925, funda, com Martins de Almeida e Emílio
Moura, A Revista que desde o primeiro número se tornou
órgão representativo do Modernismo em Minas Gerais.
Nesse mesmo ano, o poeta casa-se com Dna. Dolores
Dutra de Morais e conclui o curso de Farmácia. Contudo,
desinteressado da profissão de farmacêutico, inadaptado à
vida de fazendeiro, leciona Português e Geografia no Ginásio
Sul-Americano de Itabira.
Mas não é ainda a carreira do magistério que o atrai.
Por iniciativa de Alberto Campos, Drummond volta a Belo
Horizonte, para ocupar o cargo de redator e, logo em seguida,
o de redator-chefe do Diário de Minas. Itabira se tornaria,
agora, apenas lembrança... uma fotografia na parede. / Mas
como dói!
Vive, então, a alegria da paternidade misturada à dor. Seu
primeiro filho, Carlos Flávio, morre momentos após o
nascimento, levando o poeta a assinalar anos depois:
Interrogo meu filho, / objeto de ar: / em que gruta ou concha /
quedas abstrato?
Em 1928, nasce sua filha, Maria Julieta; é ainda neste
mesmo ano que o poeta se torna “pedra de escândalo”,
quando a Revista Antropofágica, de São Paulo, publica, em
julho, seu poema “No Meio do Caminho”. Diz o cronista,
falando do poeta: (...) sou o autor confesso de certo poema,
insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem
escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no
Brasil as pessoas em duas categorias mentais (...)
A partir de l930, com Alguma poesia, o poeta mineiro
inicia a publicação de uma das maiores Obras Poéticas da
Literatura Brasileira, em extensão e labor artístico. Publicou
acerca de vinte e oito livros de poemas em vida e uma obra
póstuma. Além de poeta, Drummond foi admirável prosador
(contista). Entre 1944, com a publicação de Confissões de
Minas, até 1987 com Moça Deitada na Grama, lança
dezesseis livros de crônicas, além de duas obras de literatura
infantil, uma charge brasileira intitulada O Pipoqueiro da
Esquina (1981) em parceria com Ziraldo. (Andrade, Carlos
Drummond de; Pinto, Ziraldo Alves - O Pipoqueiro da
esquina. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. 111 pp. Brochura
conservada, charges brasileiras; ilustrações do Ziraldo.)

Entre 1979 e 1981, Carlos Drummond de Andrade


publicou em sua coluna no caderno B do Jornal do Brasil as
famosas “pipocas”, nome que dera a seus chistes, frases-
relâmpagos cheias de humor que retratavam criticamente o
país. Admirador e amigo de Drummond, o artista, escritor e
jornalista Ziraldo percebeu que as sátiras das “pipocas” à
vida brasileira eram potencialmente charges – faltavam
apenas os desenhos que se associassem às palavras. Ziraldo
disse isso ao poeta, que, entusiasta do trabalho de seu
conterrâneo, concordou com o convite que se seguiu:
juntassem palavra e traço. Surgiria, a seguir, “O pipoqueiro
da esquina”, publicado pela Codecri em 1981, livro no qual
várias “pipocas” ou chistes retratam um país sempre
desconcertante e desconcertado. O que reitera a atualidade
de Drummond. Os chistes e as ilustrações das charges de
Ziraldo expressam o Brasil do agora agora. Assim comprova
a visão aristotélica sobre o historiador e o poeta em Poética,
quando prescreveu que a poesia (arte) é superior à história
porque é mais filosófica, mais séria e mais universal, pois o
artista atribui a um indivíduo de determinada natureza
pensamento e ações, por liame, e transfigura realidades. O
historiador, ao escrever a história de uma pessoa, narra
sua vida em particular e de acordo com a conveniência
(Aristóteles, 1987, p.209). O artista é um filósofo-criador.
Assim, Aristóteles define que a diferença entre Heródoto
e Homero é que o historiador conta os fatos que sucederam
e o poeta narra os fatos que poderiam acontecer. Portanto, o
artista da palavra é mais filosófico e mais sério do que o
cientista, uma vez que o texto do poeta se refere ao
universal, (dotando às suas personagens naturezas,
pensamentos e ações a um liame de necessidade e
verossimilhança) e o historiador narra fatos particulares,
acontecidos, que são registrados a partir da versão teórica -
científica do cronista da história de um povo.
A narrativa do poeta (do artista da palavra) funciona como
um “ritual”ou a imitação da ação humana como um todo, e
não simplesmente como uma mímesis praxeosou imitação de
uma ação, traduz um mito. Assim, o conceito de mito advém
de sua relação originária com o enredo da narrativa (mythos),
extraído dos componentes da poesia codificada por
Aristóteles, ligado ao sentido primitivo de "trama" e que
passou a significar crescentemente "narração", acompanhando
uma propensão da narrativa de passar de uma "ênfase
ficcional" primitiva para uma tendência "temática" posterior.
Diferente do sentido comum e sobrenatural: uma tendência
para narrar uma estória que é originalmente uma estória a
respeito de personagens que podem fazer qualquer coisa
(Ricouer, (1994, p.80).
Assim reitero que, como já afirmei anteriormente,
literatura, portanto, é ficção – palavra latina que significa
“fazer”, “moldar” e ainda “fingir”, “imaginar”, portanto, é
criação e enigma. Por isso, o texto artístico traz em si o
enigma da Esfinge, “decifra-me ou te devoro”. Além do
caráter enigmático, a arte literária é em si um paradoxo, uma
vez que mesmo fazendo referência a alguma realidade é, antes
de tudo, criação e não quer expressar necessariamente
nenhum mundo preexistente. No entanto, a arte de
Drummond é eterna porque é sugestão e ao mesmo tempo
transfigura o real, sua poesia é plural, pois que expressa
uma realidade do passado, do presente, do agora agora e do
futuro com arte, humor e antes, de tudo, poesia.
https://www.google.com/search?
q=charge+o+pipoqueiro+da+esquina+Drummond+1981&clie
nt=firefox-b-
d&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwjdhbjn0M
rqAhUSHbkGHa_XB0IQ_AUoAXoECAsQAw&biw=1047
&bih=501#imgrc=2QObR4CZ8o4xUM.

A importância de sua obra completa de Drummond


pode ser avaliada pelas palavras de Otto Maria Carpeaux, na
Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira, Rio de
Janeiro, Editora Letras e Artes, 1964, p. 298:
“A bibliografia sobre Carlos Drummond de
Andrade é muito numerosa. Nenhum outro poeta
moderno provocou discussão tão apaixonada, seja dos
admiradores que lhe interpretam de maneira diferente a
poesia, seja dos ‘conservadores’ que o escolheram como
alvo de ataques: discussões que não passam de sintomas
da forte influência exercida pela originalidade e
personalidade do poeta, hoje quase geralmente
reconhecido como o maior do Brasil”. (CARPEAUX, O.
M., 1964, p. 298)

No dia 17 de agosto de 1987, dois meses antes do


aniversário de 85 anos, por insuficiência cardiorrespiratória,
morre o Poeta Maior Carlos Drummond de Andrade.
Todavia, o seu coração maior que o mundo continua a bater
através da sua divina obra que é eterna e sempre traduz uma
novidade que permanece novidade: na tendência, no material,
no procedimento, nas temáticas, nas lições das coisas da vida
e, principalmente, na arte poética deste poeta de alma e
ofício.

CONCLUSÃO

Contrariando os críticos que defendem a tese de que o


poeta não nasce poeta, mas se constrói diuturnamente, Carlos
Drummond de Andrade já nasceu poeta. É, verdadeiramente,
um poeta de alma e de ofício. Em 1930 quando publicou
Alguma Poesia, o mineiro de Itabira já era um poeta maduro.
Ao longo de sua carreira publicou 27 livros de poesia, 16 de
prosa, 2 obras de literatura infantil, 1 charge, 8 Antologias
organizadas pelo autor e 2 conjuntos de obras.
Nos seus 56 anos de carreira poética, grande parte da
crítica dividiu sua obra, quanto à temática, em quatro fases: a
fase gauche (anos 30); a fase social (1940-1945); a fase do
“não” (anos 50-60) e a fase da memória (anos 70-80). A
crítica também selecionou dois modos drummondianos de ver
poesia. Na primeira fase, (concepção barroca da palavra) a
poesia é a expressão irônica e sentimental do mundo. A
palavra é mais do que suficiente para expressão do mundo.
Na segunda fase, (concepção romântica da palavra) a poesia é
a expressão da verdade. A palavra é insuficiente para a
expressão da verdade.
Drummond participa da segunda geração modernista,
a de 1930-1945; no entanto, sua obra representa a síntese, a
unidade entre a primeira (a fase “heróica”, de 1922 a 1930) e
a segunda geração. A partir de Alguma poesia (poemas
típicos de ruptura das convenções, em especial das
acadêmicas e parnasianas), o poeta assume novas linguagens,
até a coloquial e aborda temas do cotidiano, das pequenas
cidades e das metrópoles.
Drummond escreve também uma poesia típica da
segunda fase modernista, sempre com inconfundível voz
pessoal. É uma poesia menos voltada para a ruptura, com
maior universalidade de temas, de linguagens, e de imagens,
desenvolvendo novos caminhos (filosóficos, políticos,
sociais) e superando certa atitude maniqueísta da vanguarda,
que negava em bloco e indiscriminadamente a herança
passada. Drummond publica Sentimento do Mundo (1940),
José (1942), A Rosa do Povo (1945), Novos Poemas (1948).
Nessas obras, apresenta poesia e política do mais alto
nível, de denúncia das dilacerações do mundo, de resistência
diante dos totalitarismos (principalmente do nazismo
fascismo). Poesia que questiona e chama à ação, poesia
pública, para ser lida em voz alta, falada até em comícios,
participante, altamente expressiva, com vigorosos versos
livres, com intensa fabulação de imagens, sem se desfigurar
em panfleto de propaganda.
Com Claro Enigma (1951), seguido de Fazendeiro do
Ar (1954) e A Vida Passada a Limpo (1959), outra face de
Drummond prevalece: uma poesia de grande elaboração
formal, fundindo o clássico e o moderno com grande rigor de
construção, muitas vezes hermética, de acentuada
preocupação filosófica e mesmo metafísica.
Essa poética de escavação, que predomina agora e que
se dissemina por toda sua obra, parece o avesso do desejo de
totalização harmônica da vida, desejo sempre de transpor a
cisão entre a palavra e a coisa, para além do mistério e da
precariedade do destino humano.
Com Lição de Coisas, em 1962, já é outra a fase
predominante: Drummond retoma temas sociais e subjetivos,
retoma os versos livres, e abre um campo de reiterada
experimentação com as palavras.
A multiplicidade de ritmos de sua poesia não tem
paralelo entre os modernistas; a densidade emocional,
semântica e imagística a torna uma espécie de síntese da
moderna poesia brasileira, matriz de muitos outros poetas.
Carlos Drummond de Andrade, sem dúvida, é um dos mais
importantes poetas da Língua Portuguesa e, tivesse essa
língua mais trânsito internacional, caberia a ele um lugar de
destaque no panorama poético mundial. Drummond é
riqueza, é ouro em pó, diamante reluzente das Minas Gerais
do Brasil e da Arte Poética.
Mário Quintana de Bolso –
RUA DOS CATAVENTOS E OUTROS POEMAS

1. O LIRISMO DE MÁRIO QUINTANA

Esse estudo tem como desígnio traçar uma leitura e


compreensão geral da obra de Mário Quintana. 252 Para isso
busquei algumas reflexões de estudiosos sobre o autor, tendo
como ponto de partida seu lirismo moderno, suas imagens
252
As edições, da obra de Mário Quintana, consultadas e citadas estão
relacionadas a seguir, mas apenas a primeira possui sigla: 1.Mário Quintana de
bolso – L ‫ع‬Pm , 1997, (MQb) 2.Mário Quintana - Poesia Completa - Aguillar,
2005. (MQ Oc)
poéticas, sua metalinguagem, sua poesia, sua essência e a
função de sua poesia. E, embora Jung professe que aquilo
que um poeta diz acerca de sua obra, nem sempre e nem
muito menos, é o que melhor se possa dizer sobre ela,
(JUNG, (1940), p. 342) verifiquei também de alguns
conceitos ministrados pelo poeta gaúcho.
Mário Quintana é um poeta que se recusa a ser
enquadrado em qualquer escola literária e orgulha-se de não
ter “frequentado” nenhuma. (Cf. PEIXOTO, S. A. (1994) p.
31). 253 Sua obra não segue nenhum modismo específico, mas
percorre os caminhos da mais pura poesia lírica moderna.
A poesia de Quintana tem correspondências com o Pré-
Simbolismo de Charles Baudelaire (1821 -1867), primeiro
poeta moderno a sistematizar o poema como relações entre
sons, ritmos e imagens. Esse francês foi o primeiro a
reconhecer a nova cidade e o homem nas multidões quando
escreveu sobre “O pintor da vida moderna”, texto que
incorpora a seus conceitos estéticos os dados dos novos
tempos das metrópoles, abandonando o interesse pelo belo
absoluto.
Baudelaire iniciou O pintor da vida moderna
elogiando quadros e textos antigos, vinculados à história da
arte e literatura, embora afirmando que seria um erro
negligenciar “a beleza particular, a beleza de circunstâncias e
a pintura de costumes” (BAUDELAIRE, Charles, 2006, p.
851). 254 Para justificar sua ideia, ele afirmou que “o passado é
interessante não somente pela beleza que dele souberam
extrair os artistas para os quais ele era o presente, mas

253
PEIXOTO, Sérgio Alves. A Poesia de Mário Quintana. Belo Horizonte:
Editora Lê, 1994.
254
BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.
igualmente como passado, por seu valor histórico” e que “o
mesmo ocorre com o presente.” (idem).
Escrito a partir de 1863, O pintor da vida moderna
(ensaio sobre o desenhista, aqualelista e gravador Constantin
Guys de Sainte-Hélène (foi publicado originalmente no
Fígaro (26 e 29 de novembro e 3 de dezembro de 1863. (Cf.
Op. Cit. BAUDELAIRE, Charles, 2006, p. 1090). Assim,
construído em três fases, no primeira em Le Figaro, mais
tarde, integrariam a coletânea de escritos de Baudelaire,
editado em l868, sob o título de L’Art Romantique.
A noção de modernidade, para o poeta e teórico,
estaria associada à missão contemporânea da arte e
estabelece uma nova ideia de modernidade, a tentativa de
teorização da arte inspirou diversos comentários posteriores.
Na miscelânea de sua arte poética com a projeção teórico-
científica característica do ensaio, Baudelaire constrói uma
imagem do pintor da vida moderna, mostra espaços nos quais
atividades e fatos aparentemente corriqueiros como a moda,
as viaturas, a mulher e outros se transformam em objetos da
arte atemporal.
Em síntese, O pintor da vida moderna, de
Baudelaire, apresenta, poeticamente, uma visão sobre o
objeto da arte, sua possível técnica e suas condições de
produção; a arte para seria uma constante busca do novo em
todas as esferas da vida econômica, política, social, cultural,
descobrindo-a ou inventando-a, à forma dos materiais da
modernidade daquele contexto ou de outros quaisquer e em
vários momentos estão presentes a busca eterna pelo fugitivo,
pelo original em vários momentos. À modernidade associa-
se sempre o ousado, o inovador, o original, aquilo que dá o
tom de transformação de um conceito anterior.
Assim, o poeta fixa o irrepetível da vida que,
sequestrado num determinado momento e ponto, transforma-
se em elemento singular, intemporal e teoria a obra de arte
com forma e conteúdo, enquanto a primeira representa o
corpo, o segundo remete à alma da obra, à qual se relaciona a
questão do intemporal, defindindo, assim a modernidade ao
mesmo tempo que produz uma obra de arte.
De acordo com Friedrich, Baudelaire reúne o gênio
poético e a inteligência crítica. Suas ideiass a cerda do
procedimento da arte estão no mesmo nível do seu próprio
poetar e são, em muitos casos, até mesmo mais avançadas,
como ocorreu também com Novalis. (Friedrich H. (1978) p.
36), 255
Diante do exposto, Baudelaire preconiza o
impressionismo e afirma que a modernidade está também na
possibilidade de transformar em poético tudo aquilo de
artificial, grotesco e feio que a grande cidade pode oferecer
ao artista: o caminho para uma estética do feio. Este poeta, ao
lado de Edgar Allan Poe (1809 - 1949), o criador de O
Corvo, defendem que a poesia associa-se a inteligência
crítica.
Os herdeiros de Baudelaire e Poe são os poetas
mágicos - inspirados e os lógicos-construtores do
Simbolismo: Verlaine, Rimbaud e Mallarmé, para ficar
apenas com os franceses. Destes três, Stéphane Mallarmé
(1842 - 1898) foi o ponto máximo dessa caminhada contra
uma sociedade que tudo automatiza. Por isso o poeta precisa
buscar suas armas dentro da própria linguagem da poesia

255
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna: Da Metade do Século XIX
a Meados do Século XX. Trad. Do texto por Marise M. Curione; trad. das poesias
por Dora F. da Silva. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
(Idem Friedrich H. (1978) p. 95), mesmo sabendo que nada é
definitivo.
Mário Quintana trilhou nos caminhos poéticos de
Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Verlaine, Verhaeren,
Rollinart e Antônio Nobre. Deste último, a influência foi
notória e explícita quando escreveu alguns sonetos em
homenagem ao poeta português. Entre eles, o soneto XI “Para
Antônio Nobre”: Contigo fiz, ainda em menininho,/ Todo o
meu Curso d”Alma...E desde cedo/ Aprendi a sofrer
devagarinho,/ A guardar meu amor como um segredo... (Op.
Cit. QUINTANA, M. Poesia Completa, 2005, p.95)

1. 1. O sujeito lírico moderno

Ao contrário do poeta que ainda acredita na poesia


como expressão do “eu”, o poeta moderno sabe perfeitamente
que qualquer recorte do mundo será apenas linguagem e não
lhe é possível mais do que isto: o poeta moderno se vê
projetado no mundo exterior sabendo que desse mundo só
poderá fazer apenas uma tradução parcial.
Na poesia moderna, o sujeito explicitado como “eu”
não se refere a uma pessoa particular. A poesia não alimenta
nenhuma ilusão de ser um armazém de emoções reais. Existe
uma distinção entre o poeta do texto e o poeta real, isto é,
entre aquele que fala no poema e o homem comum que
escreve o poema. Aquele que fala no poema é o eu poético,
que é a presença do poeta no texto, enquanto sentimento que
se revela.
A poesia de Mário Quintana segue os preceitos
modernistas. Nem sempre o “eu” poético coincide com o
profissional da palavra que produz o texto; é como se fossem
personalidades diferentes. Quando afirmamos que o “eu”
poético está triste, é porque a tristeza é evidente ao nível do
texto e não podemos afirmar que o poeta escreveu o poema
quando estava triste. Um exemplo desse procedimento é
poema “Da Primeira Vez em Que Me Assassinaram” (MQb
p. 19):

Da vez primeira em que me assassinaram


Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram.
Foram levando qualquer coisa minha...

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou


O mais desnudo, o que não tem mais nada...
Arde um toco de vela, amarelada...
Como único bem que me ficou!
.....................................
(MQb p. 19)
Verifique que o assassinato do poeta não é real, é
apenas simbólico, pois o “eu” lírico afirma ter sido
assassinado várias vezes. Cada assassinato para o “eu”
poético significa uma perda para o poeta.
O “eu” lírico é composto de muitos cadáveres. Esta
comparação com cadáveres é significante, pois revela que o
“eu" emotivo está sentindo-se roubado, empobrecido e morto
- um defunto.
O “eu” poético revela um sentimento de desencanto,
simbolizado pelo clima de morte e da vela amarelada. A vela
acesa é segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant:

como o símbolo da individuação ao cabo da vida


cósmica elementar que nela se vem concentrar. É na
lembrança da acolhedora vela simples que devemos
reencontrar nossos devaneios de solitários, escreve
Bachelard. A chama é só, naturalmente só, e deseja
permanecer solitária. [...] As velas que ardem ao pé
de um defunto - os círios acesos - simbolizam a luz
da alma em sua força ascensional, a pureza da
chama espiritual que sobe para o céu, a perenidade
da vida pessoal que chega ao zênite. (Op. Cit.
Chevalier, J. e Gheerbrant, A. (1990) p. 934).

A vela amarelada no poema simboliza a chama


espiritual que queima agoniada, desesperada, em busca da
paz de espírito do além-túmulo, último bem que me ficou. A
vida terrena foi manifestada por perdas, desencantos e
perseguições.
Apesar desse clima sombrio, o poeta transmite uma
força interior, não se curva diante dos inimigos, como se vê
nos tercertos:

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!


Ah! desta mão, avaramente adunca,
ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!


Que a luz, trêmula e triste com um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!
(MQb p. 19)

Este poema explora uma temática existencialista. Fala


da morte, da essência interior do ser, de sua desumanização, e
de sua niilização. Deixa evidente ainda, o poder que a poesia
tem de vencer todas as barreiras, todas as pedras que
atrapalham a humanização do homem.
1. 2. A imagem poética

O poeta vê o invisível. Percebe e cria relações entre as


coisas que vê, imagina, sente e pensa. Ele cria analogias, que
são os pontos de semelhança entre coisas diferentes. Desta
forma, o poeta é um criador de metáforas, de contrastes e
comparações. Através das imagens metafóricas o poeta diz o
indizível e pensa o impensável, atribuindo, desta forma,
novos sentidos à realidade, criando novas ideias e novos
mundos. O poeta é antes de tudo um criador de mundos.
Poesia é construída com palavras polissêmicas e
procedimentos metafóricos, imagens. Muitas vezes a imagem
relaciona-se à percepção sensorial. Quando diferentes órgãos
dos sentidos são evocados, são misturados, temos um efeito
denominado sinestesia. Perceba a sinestesia no poema
“Presença” (MQb p.57):

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas


perfeitas, '
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frémito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
a folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma
janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu te sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da
vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e
imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te!
(MQb p.57)

No soneto acima o “eu” lírico exprime a sinestesia da


presença, personifica a saudade e atribui-lhe as sensações de
vários órgãos dos sentidos, como o tato e olfato (a saudade
desenhe tuas linhas perfeitas, '/teu perfil exato e que, apenas,
levemente, o vento /das horas ponha um frémito em teus cabelos...).
O “eu” poético cria imagens sinestésicas para expressar a
presença do ser querido: (Mas é preciso, também, que seja como
abrir uma janela /e respirar-te, azul e luminosa, no ar./ É preciso a
saudade para eu te sentir /como sinto - em mim - a presença
misteriosa da vida... .).
Sob o campo imagético da poesia desse vate gaúcho,
se esconde uma teia de infinitas raízes, uma tecelagem
semântica, vários procedimentos estilísticos como: alusões,
elipses, sutilezas verbais, soluções rítmicas e infinitas
sugestões. Sua poesia, de aparente simplicidade formal,
esconde uma riqueza de diamante. Carlos Drummond de
Andrade traduziu da seguinte forma a lírica de Quintana, em
um artigo de jornal é uma tradução para o simples, de
muitos mistérios. Drummond escreveu ainda que:

A simplicidade de meios, a cantante


seqüência de versos que, mesmo se esquivando ao
metro fico, estão sempre banhados numa atmosfera
de música subordinada, o poder de extrair de um
incidente mínimo de vida a centelha de poesia que
ilumina uma extensão ilimitada, eis alguns dos
segredos do bolso de Mário Quintana. Porque o
segredo grande, este não se revela. O segredo deve
ser o poeta que ele é, e não outro, sem embargo das
influências que agiram em sua formação e das
afinidades que o ligam a uma família de espíritos; a
organização especial, o jeito quintanar e único, a
arte de aprofundar sua experiência convertendo sua
poesia num bem geral de tantos que nunca o viram e
que entretanto o amam à fé destes versos. Pois esta
é uma poesia que, “na sua ardente solidão”,
provoca imediata empatia, e se faz objeto de amor.
Correio da Manhã, 31/07/66. 256

O artista é um inventor de quadros, de cenas e de


palavras. Cria o inusitado. Alguns poemas de Quintana
revelam um realismo mágico ou fantástico, visões oníricas, o
que leva a crítica a enquadrá-lo dentro do Surrealismo. O
poema “O Dia” , do livro O Aprendiz de feiticeiro – 1930-
exemplifica esse aparente Surrealismo:

O dia de lábios escorrendo luz


O dia está na metade da laranja
O dia sentado nu
Nem sente os pesados besouros
Nem repara que espécie de ser... ou
deus...
ou animal é esse que passa no
frêmito da hora
Espiando o brotar dos seios.
(MQb p.195)

256
(https://vermelho.org.br/prosa-poesia-arte/carlos-drummond-andrade-
o-poeta-quintana/)
Este inventor de imagens, por meio de palavras ricas
em significados, expõe a ideia de um dia repleto de luz, em
pleno zênite do meio dia, na hora aberta. O dia, apresentado
nos versos, está desnudo, nem sente os pesados besouros, os
dissabores da vida. É um dia pleno, intocável e inesquecível.
As imagens surrealistas na obra de Quintana não
possuem o automatismo psíquico puro, fórmula pela qual
André Breton dá início à sua definição de Surrealismo. A
poesia deste poeta não possui a recusa sistemática ao Belo e à
Arte e nem busca a simples manifestação do inconsciente e
do sonho através de algo disforme e gratuito.
Por outro lado, Quintana não nega a importância do
Surrealismo em sua formação de poeta. Assim como não
esconde que o Surrealismo, junto com o Simbolismo,
constitui em confluências poéticas:
Eu me criei lendo os poetas simbolistas,
depois fui libertado pelos poetas surrealistas da
excessiva musicalidade à forma pela forma. E
assim o poeta vai-se fazendo. Quanto às
influências, não há influência propriamente. Há
confluência. A gente só gosta de quem se
parece com a gente. (In. CARVALHO, 1977,
p.5) 257
No entanto, Mário Quintana foi influenciado deveras
pelo poder das imagens poéticas que existem na verdadeira
poesia. O texto poético é imagético por natureza, deve
possuir uma intensa magia e dizer o indizível.
Deve ser ressaltado ainda, que as imagens constantes
na obra de Quintana aparecem em primeiro plano, aquelas
provenientes do mundo urbano procedentes da rua, do
257
CARVALHO, Maria Angélica. Um poeta não é um macaco sábio. O
Globo. Rio de Janeiro. 15 de maio de 1977.
movimento, das pessoas, dos objetos, dos animais e dos
vegetais que povoam a realidade. A poesia de Quintana é
predominantemente visual e óptica. No entanto, o
poetapintor não expressa apenas o exterior, ao contrário, as
imagens observadas pelo eu lírico são símbolos da condição
interior do poeta. No soneto abaixo Quintana expõe sua
poesia pictórica:

Escrevo diante da janela aberta.


Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!

Não sei que paisagista doidivanas


Mistura os tons... acerta...
desacerta...
Sempre em busca de nova
descoberta,
Vai colorindo as horas
quotidianas...

Jogos da luz dançando na folhagem!


Do que eu ia escrever até me
esqueço...
Pra que pensar? Também sou da
paisagem.,

Vago, solúvel no ar, fico sonhando...


E me transmuto... iriso-me...
estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando!
(MQb. p. 7)
Neste poema o eu emotivo exprime sua capacidade de
desenhar com palavras, ao mesmo tempo transmite a
atmosfera da paisagem . Ao descrever a cena, o pintor - poeta
converte o objeto da pintura em uma invenção da natureza.
Desta maneira, faz uma transmutação da sua interioridade,
pois a cena é uma representação do universo inventivo do
poeta que retrata a natureza, tão poeticamente, que a
realidade pode ser transformada em uma pintura sonhada. Ao
traduzir de forma poética e pictórica a realidade, o eu lírico
confunde o real com o onírico, ao mesmo tempo que realiza
uma alquimia verbal. O mesmo procedimento pode ser
encontrado no poema “Magias” (MQb p. 134):

Os antigos retratos de parede


não conseguem ficar longo tempo abstratos

Às vezes os seus olhos te fixam, obstinados


porque eles nunca se desumanizam de todo.

Jamais te voltes para trás de repente.


Não, não olhes agora!

O remédio é cantares cantigas loucas e sem fim...


Sem fim e sem sentido...

Dessas que a gente inventava para enganar a


solidão dos caminhos
sem lua.
(MQb p. 134)
Os sonhos, produtos da divagação do poeta que
compõem o mundo ideal, humanizam e imortalizam as
coisas, como acontece neste poema. Aqui os retratos são
vivificados e parecem observar atentamente o mundo que
está à sua volta.
Os retratos, na ilusão do poeta, dão a impressão de
quererem flagrar os homens na sua incredulidade do
impalpável, de outras vidas, de outros mundos, dos seus
próprios devaneios. Por esse motivo o poeta dá conselho para
que Jamais te voltes para trás de repente / Não, não olhes
agora.
A poética de Mário Quintana valoriza o devaneio, o
sonhar acordado e rejeita os valores materiais. O poema em
análise afirma que: O remédio é cantares cantigas loucas e
sem fim... / Sem fim e sem sentido... / Dessas que a gente
inventava para enganar a / solidão dos caminhos sem lua.
A valorização da imaginação sem limite, em Mário
Quintana, justifica a preferência do poeta gaúcho pelo mundo
infantil no qual domina a inocência, o sonho, a liberdade e o
avesso. “A Canção da primavera” (Primavera cruza o rio/
Cruza o sonho que tu sonhas./ Na cidade adormecida. (MQb
p.24. ) e, o soneto IV, (Entre os Loucos, os Mortos e as
Crianças, / É lá que eu canto, numa eterna ronda,/ Nosso
comuns desejos e esperanças. (MQb p.10. ) exemplificam
esse reverso da lógica.
Observa-se, ainda, em Quintana o desejo de regressar
a condição pueril que brinca, que corre, que grita, que pula,
que extrapola as leis lógicas dos adultos. A criança dança,
canta, sonha, fala sem medo de expressar o próprio ser. Os
meninozinhos e as meninazinhas vivem um mundo onírico
que foge da razão do material. Daí a preferência de Mário
Quintana pela natureza, enquanto esta pode ser a projeção do
eu sonhador do poeta. Por isso, as imagens de nuvens, de
animais, de lua, de manhãs, de noites, de tardes, de dias, de
sol, de estrelas, de estrelinhas, de céu, de cores, do azul, do
verde, de anjos, de arcanjos, de ventos, de sonos, de verão, de
primavera, de outono, de pássaros, de abelhas, de
animaizinhos, de sapos, de grilos, de lobos, de salamandras
mágicas, de vacas, de cavalos de circo, de touros, de
cachorros, de flores, de rosas, do ar, de árvores, de florestas,
da luz, da aurora, de vôos altos, de asas, do mar, da água, de
rios, da grama, de campos verdes, de gotas pequeninas do
orvalho, de filmes coloridos, de horizontes, de arcos da
manhã, de pintores, de frutas, de laranjas, de cristais, de ouro,
de alturas, de silêncios, de invernos, de ocasos, de Deus, do
tempo, da eternidade da vida, do encanto, da magia, do
espelho, da hora, da morte, da vida e do mundo:

Queridas unhinhas róseas...


bocas de úmida, fresca avidez,
de onde todas as notas, loucas,
querem fugir de uma só vez...
Olhinhos de água tão pura
que nada há que os espante...
Sensível narina aflante...
Inquieta mão que procura...
Indeciso quadril, mas já
com aquele femíneo encanto...
Sobrancelhínhas: um veludo...
Orelhas, dedinhos... Ah,
nem queiras saber tudo quanto
elas prometem à vida...
(MQb p. 99)
Este poema, denominado “As meninazinhas”
exemplifica a preferência de Quintana afetividade, oriunda da
presença de diminutivos, de adjetivos afetivos. O poema
acima apresenta uma linguagem carinhosa, (Queridas
unhinhas ... Olhinhos .... Sobrancelhínhas.... dedinhos... ) de um
adulto falando a uma criança, assim como o poeta se dirige
ao mundo que descreve.
Nessa medida, fica circunscrita a imagem poética de
Mário Quintana sempre no âmbito de duas realidades: uma
vida sonhada e uma vivida. Na realidade o eu lírico valoriza
mais o devaneio, o sonho, a idealização do que não mais
existe, porque não pode ser restaurado ( como o passado e a
infância), o que desencadeia o desconforto do poeta com o
momento atual, que se apresenta triste, melancólico,
desencantado, uma vela amarelada. Por esse motivo o artista
poetiza o mundo empregando imagens poéticas do universo
infantil ou filosofa sobre o ser e a importância do poema, da
poesia, e do poeta para este mundo tão cheio de verdades e
certezas. É o que filosofa “O Poema” (MQPc.p. 393):

O poema é uma pedra no abismo


O eco do poema desloca os perfis:
Para bem das águas e das almas
Assassinemos o poeta.
(QUINTANA, M. Poesia completa, 2005. p.393 )

O eu emotivo leva o sujeito a verificar o barulho que


faz o poema no abismo da desumanização; faz o homem
refletir sobre sua condição e sobre a linguagem poética. O
artista da palavra é o agente responsável por esse despertar,
por esse barulho produzido pelo poema e que pode ser
perigoso para os homens que não querem aceitar as verdades
doloridas de sua condição de desumano e de sujeito de um
mundo caótico.
O poeta é aquele que obriga o indivíduo a ouvir a
música da vida e pensar sobre sua existência. As figuras
reveladas por meio do poético descrevem a imagem do
homem e o conduz ao encontro da sua humanidade perdida
no silêncio das palavras e que, só a poesia tem a magia e o
poder de organizar o caos, nomear os seres, preencher o
mundo com sons, música, lirismo, devaneio, vida, cores, céu,
estrelas, manhãs, tardes, noites e dias seguintes. A poesia é a
salvação da humanidade, o homem precisa de poesia para
humanizar-se, para ser e criar um mundo cada vez melhor e
mágico, um mundo de imagens poéticas cheias de eternidade
e certeza de um amanhã melhor.

2. METALINGUAGEM E POESIA
Uma das preocupações dos poetas de todos os tempos
tem sido a de tentar definir a poesia. Dessa forma, seus textos
tematizam o próprio fazer poético. A esse fenômeno dá-se o
nome de metalinguagem.
Metalinguagem é a utilização da linguagem para tratar
da própria linguagem. É a reflexão da obra de arte sobre a
obra de arte.
A arte da palavra de Mário Quintana sempre trilhou os
caminhos da essência da poesia. Esse poeta principiou sua
carreira literária com A Rua dos Cataventos (1940), obra
composta de 35 sonetos impregnados de renovações métricas,
rítmicas e formais. A linguagem modernizada, com acentos
coloquiais e populares, demonstrava influências do
Simbolismo na sutileza dos símbolos e dos ritmos. Neste
livro, a metalinguagem aparece tímida, mas já faz da
linguagem objeto do poema.
Em Canções (1946), a consciência metalinguística
começa concentrar-se na palavra, melhor dizendo, começa a
abstratizar a palavra na direção do puro nome. Do Mário
Quintana pintor que nomeava o mundo através de descrições
coloridas, surge em Canções o Mário Quintana poeta
preocupado com a substância da linguagem, filosofando
sobre a essência da poesia e fazendo experiências linguísticas
e poéticas.
Nas Canções, Quintana aparece mais solto, mais
liberto das formas tradicionais, mais criativo, mais engajado
aos experimentalismos da poética vanguardista:
Impressionismo, Surrealismo, Cubismo. Seu Modernismo
ficava evidente nos versos brancos, nos versos livres, na
sintaxe rebelde, na rima toante, na expressão do absurdo, na
mistura do lógico com o racional, nas imagens surrealistas, na
mistura do erudito com o popular e do grave com o cômico,
na simplicidade da linguagem.
O título Canções é justificado pela preferência da
redondilha maior e pelo lirismo musical que popularizam os
poemas encantam a todos: “Canção da primavera”(p.24),
“Canção de Domingo”( MQb p. 31), “Canção de um Dia de
Vento”(MQb p. 25), “Canção de outono”(MQb p. 26 ),
“Canção do suicida” (MQb p. 27), Pequena crônica policial
(MQb p. 28), “Canção de barco e de olvido ” (MQb p. 29),
Porém nem todas as canções são escritas em redondilhas,
muitas são trabalhadas em versos livres ou métrica irregular,
porém todas possuem muito ritmo e musicalidade.
A métrica, as rimas, alternância de sílabas fortes e
fracas (cadência), os jogos de som, a extensão dos versos, a
presença de assonância (repetição de sons vocálicos),
aliteração (repetição de sons consonantais) e onomatopeia (1
Gram. Vocábulo cuja pronúncia lembra o som da coisa ou a
voz do animal que designa. 2 Frase constituída para causar
efeito fonético imitativo) (Op. Cit. Michaelis (1998) p. 262)
são os elementos que formam a expressão sonora de um
poema. Descobrindo esses elementos o leitor identifica o
ritmo do texto.
O ritmo é uma espécie de desenho que o texto poético
faz para o leitor. Acompanhe o ritmo “Canção de um Dia de
Vento” (MQb p. 25):
O vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule.

As mãos da menina morta


Estão varadas de luz.
No colo, juntos, refulgem
Coração, âncora e cruz.
(MQB p. 25)

Observe que na primeira estrofe temos a imagem


sobro do vento nas cortinas de tule. Esta imagem é
alcançada através das aliterações (repetição do v) e também
pela duplicação do verso O vento vinha ventando.
O Aprendiz de Feiticeiro (1950) possui uma intensa
inquietação metalinguística. Este livro oferece as diretrizes
de uma Poética e de uma Retórica particulares. Nesta obra o
poeta deixa aflorar claramente a preocupação com a parte
teórica da poesia e com a prática do discurso. Aqui
encontramos o poeta dominando a sua expressão mágica,
não é mais um simples aprendiz. Nesta obra o autor já é um
mestre da feitiçaria verbal. Nessa seleção Mário Quintana de
Bolso obra podemos encontrar poemas que revelam a
feitiçaria e a alquimia poética de Quintana como por
exemplo: O poema (MQb 30), O poema do amigo (MQb 31),
Obsessão do Mar Oceano (MQb 32), Ao longo das janelas mortas
(MQb 33), No silêncio terrível (MQb 34).
Em Espelho Mágico (1951), Mário Quintana expõe
com maestria conselhos sobre estilo, sobre a preocupação de
escrever sobre o cuidado com as formas, sobre as belas
frases, sobre análise, livros, sistemas, ideias, sátira etc... No
meio desses elementos retóricos há concepções poéticas
retoricamente planejadas, como quarteto sobre o belo, sobre
o prazer, sobre a arte e sobre a própria obra (Cf. PEIXOTO,
S. A. (1994)p. 40). O próprio poeta não considerou os textos
deste livro como poemas. Veja o que diz Quintana “I. Da
observação” e “ VI Do cuidado da forma”:

Não te irrites, po r mais que te fizerem...


Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio...
(MQb p.35)

Teu verso, barro vil,


No teu casto retiro, amolga, enrija, pule...
Vê depois como brilha, entre os mais, o imbecil,
Arredondado e liso como um bule!
(MQb p.35)

Examine o que pensa o poeta “V Das Belas Frases”,


(MQb p.35) “III Do Estilo” (MQb p. 35) “CVII Da
Condição Humana” (MQb p.42) e “CXI Da própria
obra”( MQb p.42):
Frases felizes... Frases encantadas...
Ó festa dos ouvidos!
Sempre há tolices muito bem ornadas...
Como há pacóvios bem vestidos.
(MQb p.35)

Fere de leve a frase... E esquece... Nada


Convém que se repita...
Só em linguagem amorosa agrada
A mesma coisa cem mil vezes dita.
(MQb p.35)

Se variam na casca, idêntico é o miolo,


Julguem-se embora de diversa trama:
Ninguém mais se parece a um verdadeiro tolo
Que o mais sutil dos sábios quando ama.
(MQb p.42)

Exalça o Remendão seu trabalho de esteta...


Mestre Alfaiate gaba o seu corte ao freguês...
Por que motivo só não pode o Poeta
Elogiar o que fez?
(MQb p.42)

Na última estrofe está objetivado o humor irônico de


Mário Quintana. Os quartetos anteriores evidenciam as
experiências literárias e lições de vida, arte e artimanhas do
poeta.
As quatro quadras apresentadas acima são exemplos de um
conjunto de 111 quartetos, numerados em algarismos
romanos, que integram o livro Espelho Mágico, nos quais à
filosofia da arte e da vida se mesclam notas de humor e
ceticismo. Para Quintana os textos deste livro são máximas
ou sentenças na forma de quadras. Nesta seleção Mário
Quintana de Bolso – encontramos, além dos quartetos
apresentados acima, as estrofes que falam “VIII Dos mundos”
(MQb p. 36), “XI Das corcundas” (Idem p. 36), “XII Das
utopias” (Idem p. 36), “XLIV Dos Livos” (Idem p. 36), “
XLVDa saberoria dos livros”(Idem p. 37),”XIX Dos milagres”
(Idem p. 36), “XXI Das ilusões” (Idem p. 37), “XXIII Dos
nossos males” (Idem p. 37), “XXXV Da eterna procura” (Idem
p. 37), “XXXIX Do pranto” (Idem p. 37), “XL Do sabor das
coisas” (Idem p. 38), “XLVI Dos sistemas” (Idem p. 38),
“XLVII Do exercício da filosofia” (Idem p. 38), “XLVIII Das
ideias” (Idem p. 38), “ L Da amizade entre as mulheres” (Idem p.
39), “XVIII Da felicidade” (Idem p. 39), “LXXIII Da realidade”
(Idem p. 39), “LXXIV Do amoroso esquecimento” (Idem p. 39),
“LXXVI Da discrição” (Idem p. 40), “ LXXVIII Da preguiça”
(Idem p. 40), “LXXX Do ovo de Colombo” (Idem p. 40),
“LXXXIII Do mal da velhice” (Idem p. 40), “LXXXIV Da
moderação” (Idem p. 41), “XCVIII Da calúnia” (Idem p. 41),
XCVII Da experiência (Idem p. 41) e “CIII De como perdoar aos
inimigos” (Idem 41).

2. 1. O poema e a poesia

Poema é uma composição em verso caracterizada por


uma forma artística superior, o uso do ritmo e o emprego de
linguagem elevada para exprimir uma interpretação
imaginativa de uma situação ou de uma ideia. Poema é o lado
físico da poesia e a poesia é alma do poema.
Mário Quintana afirma, em “O poema”,
inserido em O Aprendiz de feiticeiro, que:
Um poema como um gole d’água bebido no
escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida
para sempre na floresta
noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua
misteriosa
condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.
(MQb p. 30)

O poema é uma revelação de uma realidade interior


que atravessa abstratamente a realidade perceptível através
dos sentidos, é a materialização do desejo de um porto
sonhador a traduzir angústia do poeta à procura do seu
próprio ser no mundo. A poesia é a essência do verso. O
poema, composto por versos metódicos, não tem alma, é uma
coisa triste, solitária, vazia. A poesia é ser do poema, é
alegria, imaginação, criação, e imortalidade dos versos.
Para Quintana, a poesia é produto da alma humana, é
reflexo dessa alma. Ela não é simplesmente uma maneira de
escrever, é uma maneira de ser (FONSECA (1977) p. 6). 258
Portanto, a poesia é uma maneira de ver e de sentir o mundo.
Embora não sendo uma simples maneira de escrever,
é através da linguagem que o interior do poeta vai realmente
se desvelar. De acordo com o conceito heideggeriano A
linguagem é a morada do ser. (in. NUNES, B. (1986) p.275).

258
FONSECA, Juarez. Mário Quintana. Revista ZH. Porto Alegre: 16 de
outubro 1977.
Quintana afirma também, sem querer ser filosófico, que a
259

poesia confunde-se com alma do poeta, ela faz parte de seu


ser. Desta forma, a maneira de escrever será a expressão do
ser do poeta.

No seu livro Caderno H, Quintana escreve:

Falam em decadência da arte de escrever. Mas


isso que por aí se vê, essa imprecisão, essa
desconexão, é tudo um símbolo gráfico do espírito do
autor. Não me venham, porém, dizer que ele não tem
estilo. Tem-no e muito seu. O estilo continua sendo o
homem. O que existe é crise de pensamento
(QUINTANA, M. Poesia completa, 2005. p.340 )

É difícil definir poesia, porque a poesia está no


homem. Para expressá-la exige a ruptura de barreiras que há
em nós mesmos, é preciso extirpar o nosso impulso natural de
buscar as coisas fáceis, sobretudo nos domínios da expressão
através da língua. Sérgio Alves Peixoto, escrevendo sobre a
poesia de Mário Quintana, diz que:

O ser humano é múltiplo, virtual, inacabado.


Busca-se a cada instante sem nunca se encontrar.
Configurando sua poesia como “uma maneira de
ser”, Quintana a identifica ao homem, ao criador.
Por isso, todas as vezes que procura dela falar, que a
procura conceituar, não faz nos termos da crítica que
tanto condena. Não a reduz, não a classifica, não a
rotula. Pelo contrário, fala dela poeticamente,
259
NUNES, Benedito. Passagem Para o Poético (Filosofia e Poesia de
Heidegger). São Paulo: Ática. 1986.
através de imagens sugestivas que aumentam a carga
misteriosa de encantamento. Esse seu vício triste /
Desperdiçado e solitário / Que [faz] tudo pode
abafar essa misteriosa e envolvente quinta estação
em que viveram, entre outros C ecília Meireles, e que,
talvez, possa ser um dia também habitada pelo poeta
e pelo leitor não admite uma classificação redutora.
(PEIXOTO, S. A. (1994) p. 40).

A poesia não é para ser definida, é para ser sentida,


vivida. Ela se confunde com o próprio homem e com a vida;
portanto, está em toda parte, guarda em si todo um mistério.
Sendo, como o próprio poeta diz, um estado d’alma, deve ser
traduzida como profunda, misteriosa, verdadeira e humana,
demasiadamente humana.

2. 2. A poesia e sua essência

Sérgio Alves Peixoto expõe o seguinte sobre essência


da poesia de Quintana: Se procurássemos resumir em um
único vocábulo o que é, para Mário Quintana, a essência da
poesia, esse vocábulo seria imaginação. Para Quintana,
poesia e imaginação se confundem; são, na realidade, uma
mesma coisa. ( PEIXOTO, S. A. (1994) p. 15).
Imaginação é exclusividade da criatura humana,
porém alguns homens usam mais intensamente esta
capacidade. O poeta é guiado pela imaginação e criatividade.
Gaston Bachelard assevera que essa faculdade aproxima o
poeta da criança. Ambos são imaginativos, inventam
verdades e criam mundos mágicos.
Sobre a imaginação humana Jean-Paul Sartre filosofa
da seguinte maneira:
O ato de imaginação [...] é um ato
mágico. É um encantamento destinado a fazer
aparecer o objeto em que se pensa, a coisa que
se deseja, de modo que possamos dela tomar
posse. Há neste ato, sempre, qualquer coisa de
imperioso e de infantil, uma recusa em aceitar
a distância, as dificuldades.
Assim, o garotinho de seu leito age sobre
o mundo através de ordens e preces. A essas
ordens da consciência, os objetos obedecem:
eles aparecem (Sartre, J. P. 1996. p. 236- 239 ). 260
O filósofo e o poeta têm aparentemente o
mesmo conceito sobre a imaginação, ato mágico de
encantamento. Porém, Quintana tem uma forma particular
de conceituar sua imaginação: é a memória que
enlouqueceu (QUINTANA, M. Poesia completa, (2005)
p.340 ).
Memória, porque o poeta só pode, na realidade a ela
recorrer; louca, porque, proposital e teatralmente, perde a
noção das coisas e recria inventivamente fatos e
acontecimentos.
A poesia superpõe duas realidades: uma sonhada e
uma vivida. O eu lírico não procura provar nada, inventa sua
verdade. Para este artista vivemos o verdadeiro real quando o
vivenciamos pela imaginação. Apenas os nossos cinco
sentidos não são capazes de captar todas as verdades de cada
coisa. A ausência revela mais do que a presença, pois permite
ao poeta imaginar e imaginar-se. Sentir a presença de algo ou

260
SARTRE, Jean-Paul. O Imaginário. Psicologia Fenomenológica da
Imaginação. Trad. Duda Machado. São Paulo: Ática, 1996.
de alguém, pensá-lo presente, imaginá-lo frente a nós
mesmos torna-o mais real, mais verdadeiro.
A poesia não é apenas a verdade, é muito mais: é a
invenção da verdade. Imaginar é transformar, recriar,
inventar mundos novos, mitologias novas. Todavia, esse
mundo de sonho, de encantamento não foge do real. A poesia
não pode ser dissociada do real, pelo contrário, deve
conscientizar o homem e fazê-lo conhecer o melhor da vida,
um mundo melhor, mais humano e mais imaginativo. O texto
poético deve despertar a criatividade do homem. Daí a
questão enfocada por Quintana de que o poeta é um ser
perigoso, que por isso mesmo é assassinado, várias vezes,
pela sociedade.
Platão expulsa os poetas da República, 261 por achar a
sua função menor. De acordo com este filósofo grego, a
realidade humana é basicamente imitativa e distante da
essência do ser - o mundo das ideias - e os artistas não
representam a verdade do mundo nas suas imitações. Nesse
mundo imitativo, em primeiro lugar está o artesão e só
depois, de modo degradado a imitação do artista.
Já para Aristóteles, imitar, representar, criar são
marcas naturais do ser humano. A obra de arte é uma
realidade especial, podendo ser mais importante que própria
história: é preferível o impossível que verossímil ao possível
(Aristóteles, (1987) p. 16) 262 que é incrível uma vez que a

261
PLATÃO. Diálogos e A República. Seleção de textos de José Américo
Mota Pessanha; trad. e notas de José Cavalcante de Sousa, Jorge Paleikate
e João Cruz Costa. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
262
ARISTÓTELES. Tópicos. Dos Argumentos Sofísticos. Ética a
Nicômaco. Poética. Seleção de Textos de José Américo Mota Pessanha.
Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. A.
Pickard. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
obra de arte não tem necessariamente um compromisso com a
verdade. Dessa forma, a arte pode se dar ao prazer de retratar
o impossível, ou puramente o fictício. Porém, embora não
tenha esse compromisso com a veracidade dos fatos, a arte é,
muitas vezes, mais verossímil que a própria realidade, que é
considerada possível, mas são apresentadas, inúmeras vezes,
como impossível, incrível e absurda.
Tanto para Platão como para Aristóteles, no entanto,
coloca-se o impasse entre o discurso lógico da razão e o
discurso alógico inventivo da arte poética. Enquanto o
Geômetra Platão é radical na sua insatisfação, o Biólogo
Aristóteles experimenta compreender a arte e sua especial
relação entre o homem e o mundo.
O poeta é um ser sensível que vê o invisível aos olhos
comuns, percebe a poesia de todos os lugares: do silêncio dos
velhos corredores, de uma esquina, de uma lua, do primeiro
olhar da primeira namorada, de todas as namoradas do
mundo inteiro.
Este poeta, tão livre de expressão e criatividade, é
muitas vezes aprisionado pelos grilhões dos desumanos que
não suportam a poesia. Estes funcionam como grilos
perturbando a paz e o lirismo dos poetas e, às vezes,
assassinam o poeta que existe dentro deles mesmos e todos os
poetas do mundo: “A noite dorme um sono entrecortado,
alfinetado de grilos” (QUINTANA, M. Poesia completa,
(2005) p.274 ), “Os grilos são os poetas mortos”.
(QUINTANA, M. Poesia completa, (2005) p. 639 ). Desta
forma, o vocábulo grilo, simboliza também o poeta que
perturba a boa vida daqueles que não querem ver certas
realidades consideradas desagradáveis.

2. 3. Função da poesia
A função da poesia, antes de tudo, é despertar o
homem para a humanidade. A obra deste vate gaúcho é uma
reflexão sobre o mundo, o homem e sua existência. É uma
poética que tem uma forte irmandade com filosofia.
O poeta Mallarmé dizia que a poesia se faz com
palavras, e que é poeta quem lhes cede à iniciativa de que
elas falem por si mesmas. O filósofo Heidegger, no
empreendimento de auscultação da linguagem, filosofou
sobre sua essência. O poeta e o filósofo buscaram a
linguagem poética em sua pura essência dizente. Por estas e
outras experiências e pensamentos, a Filosofia se avizinhará
da poesia tanto quanto a filosofia da ciência. E ambas
falarão sempre do ser; os textos dos poetas e dos filósofos
rememoraram, reiterada e veladamente, mas de maneira
diferente, essa mesma experiência congênita à própria
linguagem e à humanidade do homem (Nunes, B. (1986) p.
260). Heidegger afirma mesmo que a Filosofia está mais
próxima da poesia do que da ciência.
A poesia de Mário Quintana literalmente filosofa
através das palavras, observe o soneto “Ah Os relógios”
(MQb p.146):

Amigos, não consultem os relógios


quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios...

Porque o tempo é uma invenção da morte:


não o conhece a vida - a verdadeira –
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.
Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.

E os Anjos entreolham-se espantados


quando alguém - ao voltar a si da vida –
acaso lhes indaga que horas são...
(MQb p.146)

Neste poema, o eu lírico filosofa sobre a existência.


Observa que o tempo é uma invenção da morte, mas a poesia
eterniza o homem. Ao perceber esse espetáculo do cotidiano
e da natureza, o eu lírico manifesta dois sentimentos: de
compreensão e de resignação diante da fugacidade das horas.
O texto conduz o leitor a verificar a existência das
coisas, a ordem de tudo. O poema faz o leitor pensar sobre o
ser e o estar das coisas e dele mesmo; a buscar perguntas
intrigantes e respostas inteligentes, a filosofar. O texto
poético eleva o homem à Filosofia e esta, por sua vez,
encaminha o ser a uma passagem para um poético mágico,
para uma alquimia verbal, para uma descoberta da magia e do
poder das palavras. A palavra é que leva uma coisa a ser
coisa (Op.Cit. Nunes, B. (1986) p. 267). As palavras são
poderosas, e, de acordo com a interpretação de Heidegger:
As palavras não são simples vocábulos
(Wörter), assim como baldes e barris dos quais
extraímos um conteúdo existente. Elas são antes
mananciais que o dizer (Sagen) perfura,
mananciais que têm que ser encontrados e
perfurados de novo, fáceis de obturar, mas que,
de repente, brotam de onde menos se espera.
Sem o retorno sempre renovado aos
mananciais, permanecem vazios os baldes e os
barris, ou têm, no mínimo, seu conteúdo
estancado (in.NUNES, B. (1986) p. 199).

A poesia efetua esse retorno sempre renovado. O


poeta é aquele que perfura os mananciais, tomando os
vocábulos como palavras dizentes. Seu caminho não vai além
das palavras; ele caminha entre elas, de uma a outra,
escutando-as e fazendo-as a falar. O retorno se opera no
intervalo do silêncio, que vai de palavra a palavra, quando o
poeta nomeia o discurso dizente. É a nomeação que leva a
coisa a ser.
Antes da nomeação, as palavras assim como a
natureza apenas estavam imersas no caos aparente da
existência. O poeta desvela a existência das coisas por meio
do texto poético, quebrando assim o silêncio das palavras,
nomeando a existência das coisas e fazendo tudo emergir aos
olhos do leitor: a nuvem, a asa, o vento, a árvore, a pedra, o
morto, o curto prazo da vida, o curto prazo da morte, como
no poema acima transcrito. O poeta desvela o poder do
raciocínio, da observação, das palavras, da Filosofia e da
Poesia.
O texto poético transporta o homem do simples estar,
para o eterno ser; conduz a criatura a perceber sua
humanidade, inteligência, criatividade, existência dentro
desse universo tão amplo, tão cheio de perguntas e respostas,
aparentemente hermético, mas compreensível para o homem
que contempla a vida e filosofa sobre a existência de tudo.
3. A VIDA E OBRA DE MÁRIO QUINTANA E
SEU AUTORRETRATO

Mário de Miranda Quintana nasceu em 30 de julho de


1906, na cidade de Alegrete no Rio Grande do Sul. Ingressou
na vida literária escrevendo sonetos e traduzindo para Editora
Globo Marcel Proust, Virgínia Woolf, Morgan, Guy de
Maupassant, André Gide, Aldous Huxley, etc.
Seu primeiro livro de poesia, A Rua dos Cataventos
(1940), teve ótima repercussão de crítica e público. Entre
suas obras publicadas figuram: Canções (1946), Sapato
Florido (1947), Espelho Mágico (1948), O Aprendiz de
Feiticeiro (1950), Poesias (1962), Antologia Poética (1966),
Caderno H (1973), Pé de Pilão (obra infantil - 1975),
Apontamentos de História Sobrenatural e Quintanares
(1976), A Vaca e o Hipogrifo (1977), Na Volta da Esquina e
Objetos Perdidos Y Otros Poemas (1979), Esconderijos do
Tempo (1980), Lili Inventa o Mundo (1983), Nariz de Vidro e
O Sapato Amarelo (publicação infantil 1984), O Baú de
Espantos e 80 Anos de Poesia (1986), Preparativos de
Viagem e da Preguiça com o Método de Trabalho (1987),
Porta Giratória e A Cor do Invisível (1988).
O poeta ganhou vários prêmios literários, seus textos
brilham em inúmeras antologias nacionais e estrangeiras, em
livros escolares, em dicionários e em enciclopédias. Nos
últimos anos sua obra foi descoberta com louvor e vinha
recebendo sucessivas homenagens.
No dia 1º de maio de 1994 o poeta faleceu. Deixou
este mundo de realidades e sonhos que inspirou suas imagens
poéticas, mas sua obra ficou imortalizada nos livros e nas
almas dos amantes da arte literária. Quintana, pensando nesse
momento escreve:
Quando eu morrer e no frescor da lua
Da casa nova me quedar a sós,
Deixai-me em paz na minha quieta rua...
Nada mais quero com nenhum de vós!

Quero é ficar com alguns poemas tortos


Que andei tentando endireitar em vão...
Que linda a Eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da Expressão!...

Eu levarei comigo as madrugadas,


Pôr-de-sóis, algum luar, asas em bando,
Mais o rir das primeiras namoradas...

E um dia há de fitar com espanto


Os fios de vida que eu urdi, cantando,
Na orla negra do seu negro manto...
(MQb p.23)
O poema apresenta imagens poéticas de grande
intensidade para expressar a morte, o encontro com a nova
morada, com a solidão iluminada de lua. O eu lírico deseja a
paz da eternidade e o distanciamento com a fria realidade que
ele tanto recusou. Seu desejo agora, mais do que nunca, é
ficar com seus poemas imaginários, avessos ao mundo
material e lógico.
No segundo quarteto, o poeta expressa que deseja
continuar com seus poemas de puros devaneios, com seus
anjinhos, seus menininhos, suas avezinhas, seus diminutivos,
suas luas, suas estrelas, sua linda eternidade, seus amigos
mortos, seus fantasmas e suas contínuas experiências poéticas
e linguísticas.
O primeiro terceto revela o desejo do eu emotivo levar
consigo a suas líricas madrugadas, seus pôr-de-sóis, suas
brilhantes luas, suas asas em bando e revoada e, os mais
poéticos risos, os das primeiras namoradas. Depois apresenta
reticências, simbolizando que aspira muito mais... Deseja
levar, enfim, todos os bons momentos da vida, todas as
belezas do mundo.
Finalmente, no último terceto, o poeta expõe que sua
vivência, suas experiências e visões foram tantas durante a
vida, que a morte há de ficar espantada com essas lembranças
que o poeta guardou do passado. Durante a vida cantou tanto
a existência, que mesmo depois da morte, continua cantando
e espantando os males na região negra da morte. A
vivacidade do poeta gaúcho é tão intensa, cheia de cores,
música, canções, sóis, estrelas e dias que espantará o negro
manto que cobre o fim da vida.
Destarte, o soneto acima traduz a alma poética desse
artista que soube viver intensamente o lirismo da vida e fez
da vida poesia e arte. Este poeta foi uma criatura sensível
enfeitiçado pelas palavras e um feiticeiro da linguagem. Sua
obra está cheia de menininhos, menininha, meninazinhas,
avozinhas, cidadezinhas, ruazinhas, estrelinhas, mundo
infantil, delicado, pequenino, mas cheio de criatividade, de
imaginação, de imagens poéticas. O poeta devaneia através
das palavras e cria mundos insólitos e assim, em
Apontamentos de história sobrenatural, faz o seu “Auto
Retrato”:

No retrato que me faço


 traço a traço 
Às vezes me pinto nuvem,
Às vezes me pinto árvore...
Às vezes me pinto coisas
De que nem há mais lembrança...
Ou coisas que não existem
Mas que um dia existirão...

E, desta lida, em que busco


 pouco a pouco 
Minha eterna semelhança

No final, que restará


Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!
(MQB p.47)
Em seu auto retrato a pintura feita pelo artista
expressa um Realismo Mágico ou Fantástico. As imagens são
indefinidas, porque não se prendem a nenhum forma e
conceito definidos ou exigidos pela sociedade. Esse retrato
traduz o próprio Mário Quintana que nunca seguiu fórmulas
pré-estabelecidas ou Escolas. Este poeta gaúcho teve como
escola apenas a poesia que existe em todos os lugares: nos
devaneios de uma criança, num por do sol, numa lua, numa
esquina, num sorriso, na palavra, no ritmo, na canção, nas
lembranças, no passado, no presente, na vida, na morte e em
tudo.

CONCLUSÃO

A poesia de Mário Quintana é caracterizada por uma


“difícil simplicidade”. É um mundo poético impregnado de
ternura, misticismo, melancolia, nostalgia da infância, pureza,
simplicidade, mundo infantil, criancinhas, vovozinhas,
estrelinhas, luas, sois, noites, dias, estações, humor irônico,
canções, ritmos, poema em prosa, criação, vida, morte e
renascimento.
A poética desse vate gaúcho é assinalada por imagens
inventivas, às vezes, inusitadas. A imaginação é a tônica da
sua poesia. Tanto o poeta, quanto o leitor precisam trabalhar
com a faculdade de imaginar. O próprio Quintana oferece a
receita de um leitor ideal:

O leitor ideal para o cronista seria


aquele a quem bastasse uma frase.
Uma fase Que digo Uma palavra!
O cronista escolheria a palavra do dia:
Árvore”, por exemplo, ou “Menina”.
Escreveria essa palavra bem no meio da
página, com espaço em branco para todos os
lados, como um campo aberto aos devaneios
do leitor.
Imaginem só uma meninazinha solta no
meio da página.
Sem mais nada
Até sem nome.
Sem cor de vestido nem de olhos.
Sem se saber para onde ia...
Que mundo de sugestões e de poesia
para o leitor!
E que cúmulo de arte a crônica! Pois
bem sabeis que arte é sugestão...
E se o leitor nada conseguisse tirar
dessa obra-prima, poderia o autor alegar,
cavilosamente, que a culpa não era do
cronista.
Mas nem tudo estaria perdido para esse
hipotético leitor fracassado, porque ele teria
sempre à sua disposição, na página, um
considerável espaço em branco para tomar
seus apontamentos, fazer os seus cálculos ou
a sua fezinha...
Em todo caso, eu lhe dou de presente,
hoje, a palavra “Ventania”. Serve?
(QUINTANA, M. Poesia completa,
2005. p.802 )

A obra poética de Quintana desperta o homem para a


sua capacidade de usar sua imaginação, seus devaneios, sua
sensibilidade e ser humano, verdadeiramente humano.
Concluiremos este trabalho seguindo ainda o
ensinamento de Quintana, este maestro da poesia brasileira,
que aconselhou o seguinte:
Essa mania de ler sobre autores fez com que no
último centenário de Shakespeare, se atravesse
entre uma professorinha do interior e este
escriba o seguinte diálogo:
- Que devo ler para conhecer Shakespeare
- Shakespeare.
(QUINTANA, M.Poesia completa, 2005. p.294 )

Diante do exposto, parodiando o mestre,


aconselhamos aos intelectuais, vestibulandos ou não, ou as
pessoas de bom gosto, que leiam Mário Quintana. Nessa
leitura conhecerão o poeta, o lirismo do mundo e descobrirão
o homem.
XI -A EDUCAÇÃO PELA ÁGUA DE JOÃO CABRAL

Escrever é estar no extremo de si


mesmo.
Como um ser vivo
pode brotar
de um chão mineral?
Um galo sozinho não tece
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos
João Cabral de Melo Neto

1. A arte da Palavra e a renovação da poesia pela


forma e pela linguagem da Terceira Fase do
Modernismo Brasileiro
A chamada geração de 30 ou segunda geração do
Modernismo foi marcada pela poesia politicamente
engajada, a tematização que realçava problemática
existencial, a linguagem mais simples e direta com a
finalidade de conscientizar os leitores sobre as coisas da vida
e do mundo.
A partir de 1945, os artistas da palavra aderem à ideia da
necessidade de renovação, principalmente no que diz
respeito às convicções estéticas sobre a restauração das
formas poéticas que valoriza, o rigor formal (semânticos,
estilísticos), da emoção lírica e beleza poética e erudição, do
vocabulário, a reabilitação do soneto, numa visão
denominada “neoparnasiana”. João Cabral de Melo Neto é
poeta exato, preciso, em cujos versos, não falta ou sobra
nenhuma palavra. E, sem dúvida, influenciou vários outros
poetas brasileiros e é o maior representante dessa geração.

2. Vida e obra do Poeta das Palavras

O poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto (1920-


1999) nasceu no Recife, Pernambuco, no dia 9 de janeiro de
1920, filho de Luís Antônio Cabral de Melo e de Carmem
Carneiro Leão Cabral de Melo, irmão Evaldo Cabral de
Melo e primo de Manuel Bandeira e Gilberto Freyre. Viveu
infância entre os engenhos da família nas cidades de São
Loureço da Mata e Moreno. Estudou até concluir o
secundário no Colégio de Ponte d’Uchoa, dos Irmãos
Maristas Colégio Marista, no Recife. Leitor voraz, lia tudo o
que tinha acesso, na casa da avó ou no colégio. Em 1938
frequentou o Café Lafayette, ponto de encontro de
intelectuais que residiam no Recife. Dois anos depois a
família transferiu-se para o Rio de Janeiro, mas a mudança
definitiva só foi realizada em fins de 1942, aos vinte e dois
anos. Também neste ano publicou o seu primeiro livro de
poemas - Pedra do Sono.
Nessa obra, duas tendências já eram predominantes
em sua poesia, e que guardavam as sementes de obras
futuras: o consciente afastamento do “eu”, que o faz distante
de uma poesia confessional e pessoal, no dizer do próprio
poeta, Eu penso o poema, Eu me anulo me suicido, ou Saio
de meu poema / como quem lava as mãos (JCML (1994)
p.93); 263 e a tendência de criar atmosferas, aproximando-se do
clima onírico proposto pelos surrealistas, mas escapando do
automatismo deles: Esta folha branca / me proscreve o sonho
(Idem p.93). Sobretudo a primeira dessas características se
perpetuou na obra do poeta, excessivamente preocupado com
a objetividade, com o concreto, com o real do poema.
Em 1941, João Cabral participou do Primeiro
Congresso de Poesia do Recife, lendo o opúsculo
Considerações sobre o poeta dormindo:
É o fato de estarmos adormecidos que dá ao sonho
aquelas dimensões, aqueles ritmos de escafandristas
às coisas que se desenrolam diante de nós. Aquelas
distâncias, aqueles acontecimentos nos quais não
podemos intervir, diante dos quais somos
invariavelmente o preso, o condenado, o
perseguido. Contra os quais não podemos de
nenhum modo agir.
Não sei se será adiantar-se demais pelo terreno do
"literário", dizer que é possível reconhecer em todos
esses elementos que compõem o clima do sonho,
esse clima que como o da poesia, é um clima de

263
Todos os poemas de João Cabral inseridos nesse estudo foram
retirados da obra MELO NETO, J. Cabral. Obra Completa. vol. único.
Rio de Janeiro: Ed.Nova Aguilar S.A., 1994.
tempestade, uma imagem da própria aparência do
homem adormecido. Ambos: os acontecimentos do
sonho e o homem adormecido, profundamente
marcados pela presença mesma do sono, essa
presença que não é de nenhum modo, apenas a
ausência de nossas vinte e quatro horas, mas a
visão de um território que não sabemos, do qual
voltamos pesados, marcados por essa nostalgia de
mar alto, de "águas profundas", para empregar a
tradução que Américo Torres Bandeira faz das
desconhecidas sensações nele provocadas por uma
anestesia de clorofórmio. Como não reconhecer
essa presença do sono na atitude do corpo de quem
dorme, nessas poses não raro trágicas (irônicas),
nas palavras que se quer balbuciar, na fisionomia
em que adivinhamos, inegavelmente, os sinais de
uma contemplação, e que é sob outro aspecto, um
sinal de vida?
(...)
Além de tudo, porém, uma observação se faz
necessária: a poesia não está no sono, no sentido
em que ele constitua um reservatório, do qual, em
sucessivas descidas, o poeta nos aporte os materiais
de seu lirismo. O sono predispõe à poesia.
Reconheço que o próprio elemento, o sono em si, a
própria palavra: sono (feita de sons que parecem se
prolongar no escuro; a voz do homem falando no
escuro), são coisas enormemente poéticas.
Entretanto, a ação do sono sobre o poeta se dá em
outro nível que o de simples material para o poema.
Num terreno em que ele deixa de ser um objeto e se
transforma como que num exercício, num apronto
para o poeta (no sentido esportivo do termo),
aguçando nele certas aptidões, certa vocação para
o sobrenatural e o invisível, certa percepção do
"sentido oculto das forças inertes", da fórmula de
Pedro Nava. (...)
Uma outra observação a fazer (...) é a de que o sono
promove esse amálgama de sentimentos, visões,
lembranças, que segundo Cocteau fará o verdadeiro
realismo do poeta. Pode-se dizer do sono que ele
favorece a formação de uma certa zona obscura (um
tempo obscuro), onde essa fusão se desenvolve (os
nossos sentidos oficiais adormecidos) e de onde
subirão mais tarde esses elementos que serão os
elementos do poema e que o poeta surpreenderá um
dia sobre seu papel sem que os reconheça.
Sobretudo, favorece aquele recolhimento, aquela
presença em si (o poeta andando a longas pernadas
dentro de sua noite), cujo efeito sobre o poeta, um
grande poeta comparou ao de uma verdadeira
purificação do espírito (Raissa Maritain).(...)
Assim, pode-se adiantar que o sono não inspira uma
poesia (a poesia moderna, por exemplo, coisa que
se dá inegavelmente com o sonho, cuja mitologia é a
da própria poesia moderna), no sentido em que o
poeta se sirva dele como uma linguagem ao seu uso.
Apenas, fecunda-a com o seu sopro noturno - o
hálito da própria poesia em todas as épocas.
[João Cabral de Melo Neto. Considerações sobre o
poeta dormindo. Tese apresentada ao
Congresso de Poesia do Recife, 1941]

Em 1945 inscreveu-se no concurso para a carreira de


diplomata. Daí por diante, já enquadrado no Itamarati, inicia
uma larga peregrinação por diversos países, incluindo, até
mesmo, a República africana do Senegal. Em 1984 é
designado para o posto de cônsul-geral na cidade do Porto
(Portugal). Em 1987, volta a residir no Rio de Janeiro.
Também em 1945 publica O engenheiro, influenciado
pela concepção arquitetônica do suíço Le Corbusier, 264
ganha notoriedade, escrevendo poesias que assinalam seu
profundo antilirismo, sua frieza e preocupação formal,
exercitando o verso que busca retirar a passividade do leitor,
solicitado a raciocinar, a deduzir as mensagens do enigma
poético.
Dessa forma, João Cabral passa a conceber a poesia
do não dar, vai construindo linha por linha um poema-
geometria, quase físico, capaz de forçar a inteligência
daquele que o irá fruir. A inspiração cede lugar à confecção
racional e edificante, e, como diz em “O engenheiro”,
enfatizando a luz, a claridade, o ar livre: A luz, o sol, o ar
livre/envolvem o sonho do engenheiro./O engenheiro sonha
coisas claras:/superfícies, tênis, um copo de água (Idem
p.69).
Preocupado com a confecção do poema – estrutural e
fisicamente – publicou, em 1947, Psicologia da composição
com a Fábula de Anfion e Antiode. Outra de suas constantes
surge a partir daí, quando parte em busca de imagens que
revelem o quente / seco do deserto, o tratamento duro da
pedra. Em sua proposição estética está suposto que há um
mundo e que ele é visto pelo avesso, as coisas são construídas

264
Charles-Edouard Jeanneret-Gris, mais conhecido pelo pseudónimo
de Le Corbusier (La Chaux-de-Fonds, 6 de Outubro de 1887 -
Roquebrune-Cap-Martin, 27 de Agosto de 1965), foi um arquiteto,
urbanista, escultor e pintor de origem suíça e naturalizado francês em
1930. É considerado, juntamente com Frank Lloyd Wright, Alvar Aalto,
Mies van der Rohe e Oscar Niemeyer, um dos mais importantes
arquitectos do século XX. Conhecido por ter sido o criador da Unité
d'Habitation, conceito sobre o qual começou a trabalhar na década de
1920.
a partir de formulações das negativas: Cultivar o
deserto/como um pomar às avessas./(A árvore destila/a
terra, gota a gota;/a terra completa/cai, fruto!/Enquanto na
ordem/de outro pomar/a atenção destila/palavras
maduras.)/Cultivar o deserto/como um pomar às
avessas:/então, nada mais/destila; evapora;/onde foi
maça/resta uma fome;/onde foi palavra/(potros ou
touros/contidos) resta a severa/forma do vazio (Idem p.97).
Com O cão sem plumas, O rio e Morte e vida
severina respectivamente de 1950, 1953 e 1954-55, compõe
uma amostragem tríplice da realidade social do Nordeste.
O cão sem plumas (1950) é uma grande metáfora que
espelha a contínua luta pela sobrevivência empreendida ao
mesmo tempo pelo rio e pela população ribeirinha.
Em O rio (1953), procurou expressar o impacto, o
golpe (faca) de saber que no Nordeste a expectativa de vida é
ainda menor do que na índia. Distante, pois se encontrava
desde 1947 em missão diplomática na Espanha, mas
verdadeiramente preocupado com a obscura realidade de
Pernambuco, buscou associar a expressão seca, a linguagem
direta e reduzida à denúncia. A paisagem presente nesses
volumes é a do Nordeste, em especial a do Recife, as águas
presentes são as do Capibaribe que, personificadas em O rio,
tomam a palavra para mostrar friamente, em uma viagem que
vai de sua nascente até o Recife, a miséria que suas águas
banham: Para trás vai ficando/a triste povoação daquela
usina/onde vivem os dentes/com que a fábrica
mastiga./Dentes frágeis, de carne,/que não duram mais de
um dia;/dentes são que se comem/ao mastigar para a
Companhia;/de gente que, cada ano,/o tempo da safra é que
vive,/que, na braça da vida,/tem marcado curto o limite
(Idem p.132).
Morte e vida severina – um Auto de Natal (1954-55)
tem como temática nos seus 1241 versos a vida e a morte. A
água que representa um símbolo da vida, aparece na figura
do Rio Capibaribe e do mar em 102 referências. Assim, essa
obra exterioriza o Capibaribe com suas mortes e símbolos, e
o mar com sua vida e renascimento: o Capibaribe,/ como os
rios lá de cima,/ é tão pobre que nem sempre/ pode cumprir
sua sina/ e no verão também corta,/ com pernas que não
caminham (Idem p.176). O retirante sonha com o Recife do
ideal: Recife, onde o rio some/ e esta minha viagem se fina
(Idem p.187). Chegando aos cais, entra em desespero e
deseja: caixão macio de lama,/ mortalha macia e líquida,/
coroas de baronesa/ junto com flores de aninga,/ e aquele
acompanhamento / de água que sempre desfila/ (que o rio ,
aqui no Recife,/ não seca, vai toda a vida) (Idem p. 193).
Depois, com o nascimento do menino, o mar transforma-se
em poesia e música da vida por meio da figura do recém-
nascido. Ambos sintetizam a poesia da vida e das águas: é
belo como um coqueiro/ que vence a areia marinha./ (...) -
Belo como a última onda/ que o fim do mar sempre adia./ -
É tão belo como as ondas/ em sua adição infinita./ (Idem
p.200/20l).
A partir da década de 50, as composições de João
Cabral oscilam entre duas vertentes: a criação poética, o
poema-arquitetura, por um lado; e o enriquecimento da forma
e do conteúdo com a vivência do diplomata e o contato com a
tradição cultural da Espanha, mas sem abandonar a influência
que sobre ele exerce o meio pernambucano. Paisagens com
figuras (1954), Uma faca só lâmina (1956), Quaderna (1960)
entre outros, atestam o referido comportamento do escritor.
Mais do que nunca, porém, sobressai no poeta a necessidade
de conceber a poesia de forma plena, maior. E ainda em torno
da busca da composição perfeita que estão centradas as
preocupações do autor.
Nesse sentido, a atividade literária acompanhou-o
durante todos esses anos no exterior e no Brasil, o que lhe
valeu ser contemplado com numerosos prêmios, entre os
quais - Prêmio José de Anchieta, de poesia, do IV Centenário
de São Paulo (1954); Prêmio Olavo Bilac, da Academia
Brasileira de Letras (1955); Prêmio de Poesia do Instituto
Nacional do Livro; Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do
Livro; Prêmio Bienal Nestlé, pelo conjunto da Obra e Prêmio
da União Brasileira de Escritores, pelo livro "Crime na Calle
Relator" (1988).Em 1990 João Cabral de Melo Neto é
aposentado no posto de Embaixador.
Em Educação pela pedra (1966), João Cabral reflete a
preocupação com o trinômio trabalho-processo de criação
formal-simetria entre linguagem e realidade. O poema –
gerado como objeto – parte do objeto: são recorrentes
imagens que têm como ponto de partida a pedra, o rio, o
canavial, o poço, o vento, entre outras, da multiplicidade de
sentidos que cada poema objeto pode ter.
João Cabral foi eleito para a ABL em 15 de agosto de
1968 e ocupava a cadeira número 37, que já havia sido
ocupada, entre outros, por Getúlio Vargas e Chateaubriand.
Recebido por José Américo. Em seu discurso de posse
homenageou o jornalista Assis Chateaubriand:
Assim, para compensar o laconismo de um
“muito obrigado” e expressar meu
reconhecimento de outra maneira, quero dizer
que me sinto muito honrado em vir a ser um de
vós. E não apenas pelo que cada um de vós
representa em nossa vida intelectual como
porque a Academia, que vós todos, em conjunto,
constituís, é uma de nossas instituições em que se
tem mantido mais vivo o respeito pela liberdade
do espírito. Daí (e não sei de maior elogio que se
possa fazer a um corpo de escritores, homens
para quem a liberdade de espírito é condição de
existência) meu empenho em declarar que,
entrando para a Academia, não tenho o sentido
de estar abdicando de nenhuma das coisas que
me são importantes como escritor.
Na verdade, venho ser companheiro de escritores
que representaram, ou representam, o que a
pesquisa formal, no nível da textura e da
estrutura do estilo, tem de mais experimental;
escritores outros cuja obra é uma permanente, e
renovada, denúncia de condições sociais que
espíritos acomodados achariam mais
conveniente não dar a ver; escritores que, em
momentos os mais diversos de nossa história
política, têm combatido situações políticas
também as mais diversas; escritores que, já
acadêmicos, têm julgado livremente a Academia,
patronos de suas Cadeiras e membros de suas
Cadeiras. E tudo isso sem que a Academia tenha
procurado exercer nenhuma censura e sem que
a posição de acadêmicos tenha levado esses
escritores a qualquer autocensura." (Trecho do
Discurso de Posse, 6 maio de 1969)

João Cabral sempre teve tendências para a elaboração de


uma linguagem concisa, elíptica, de acentuada economia de
meios e a preocupação de fazer da imagem o núcleo do
poema. Essas tendências são definidoras para que
permanecem em volumes imediatamente posteriores a
Educação pela Pedra: Quaderna (1960) e Dois parlamentos
(1961).
Depois de dez anos sem ser editado, publicou em 1975, o
longo poema narrativo “Museu de Tudo”, a cartilha do
conceber poesia como “facas” em Escola das facas (1987).
Em auto do frade (1984) retoma os autos e exalta a figura de
Frei Caneca, líder revolucionário que procurava a
Independência do Brasil em 1724. Agrestes (1985), Crime na
Calle Relator (1987), Sevilha Andando (1987-1993) e
Andando Sevilha (1987-1989) são produções instigantes, em
que permanece o gosto de fazer do leitor um parceiro a
conceber um poema a quatro mãos. Para decifrá-lo, o leitor
necessitará recorrer às mesmas imagens, e por meio da faca,
da lâmina, da pedra e da água poderá chegar ao
encantamento da descoberta
João Cabral de Melo Neto como diplomata, execerceu
também o cargo de embaixador no Senegal e na Colômbia.
Seu último posto na carreira diplomática foi o de cônsul-geral
do Brasil na cidade do Porto, em Portugal, em 1985, quando
se aposentou.
A um importante trabalho de pesquisa histórico-
documental, editado pelo Ministério das Relações Exteriores,
deu João Cabral o título de "O Brasil no arquivo das Índias de
Sevilha". Com as comemorações programadas neste final do
século, relacionadas com os feitos dos navegadores espanhóis
e portugueses nos anos que antecederam ou se seguiram ao
descobrimento da América, e, em particular ao do Brasil, a
pesquisa de João Cabral assumiu valor inestimável para os
historiadores dos feitos marítimos, praticados naquela época.
Quando faleceu, em outubro 1999, estava com 79
anos e como problemas de visão. Afirmam que, embora
ateu, dizia ter medo da morte, sob influencia da educação no
colégio de padres, na infância, que passavam ideia de inferno.
O noticiário, informou que morreu de mãos dadas com sua
segunda mulher, Marly de Oliveira, rezando. Partiu deixando
cinco filhos e a imortalidade de sua obra, que é um universo
comprometido com a poesia, um mundo poético impregnado
de pontos a serem descobertos, pesquisados e nomeados,
apesar de sua vasta fortuna crítica.

3. O discurso do Poema “O Rio” de João Cabral

O rio de João Cabral de Melo Neto exterioriza uma


narrativa poética que traz a poética história do rio Capibaribe,
o narrador-poeta-personagem dessa prosopopéia. Para seguir
os elementos de análise desse discurso-rio, foram tomados
por princípio os pressupostos da semântica gerativa de
Greimas, (1979) 265 apresentados por José Luiz Fiorin (2000)
266
no seu projeto teórico de análise do discurso. Adotando
como modelo o percurso gerativo de sentido, a análise deste
poema será feita a partir das estruturas discursivas e sêmio-
narrativas nos seus componentes sintáticos e semânticos. Do
primeiro, será feita uma abordagem da sintaxe e da
semântica discursivas, quanto a espacialização, tematização
e procedimentos estilísticos; do segundo, o nível superficial
será enfatizado a partir da semântica da narrativa até chegar
ao nível profundo, que conduzirá à semântica fundamental e
à essência do poema.
265
GREIMAS, A. J. Semântica Estrutural – Pesquisa de Método. Trad.
Haquira Osakabe e Isidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1977. ( 1ª ed. fr.
1966).
266
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo:
Contexto, 2000.
3.1 O nível discursivo

O poema narrativo “O Rio” tem as características


do romance medieval. Esta espécie poemática ibérica,
transmitida por via oral durante a Idade Média, normalmente
era anônima e se caracterizava pela cursividade narrativa.
Ao narrar a própria história, este texto preserva
os traços da tradição, uma vez que a voz poemática expõe
suas impressões, lembranças, experiências e sentimentos.
Existe um eu que narra poeticamente uma realidade vivida:
preferi essa estrada/ de muito dobrar,/ estrada bem segura/
que não tem errar/ pois é a que toda a gente/ costuma
tomar/(na gente que regressa/ sente-se cheiro de mar)
(JCML (1994) p.120). Por outro lado, o eu poemático fala
também das dores do mundo. Espécie de filósofo moderno,
questiona a realidade sem medo de revelar o mundo do
homem que conheceu. Para tanto, usa a geografia e a história
da bacia do Capibaribe; utiliza a filosofia para refletir sobre
aquela realidade e põe em prática a arte, quando poetiza
aquele cenário e a própria experiência de vida. Deste
conjunto, nasce um poema que narra a odisséia dos rios e dos
homens, a caminho do mar. O rio, no papel de Odisseu,
desnuda o universo das palavras, do homem e dos rios do
sertão de Pernambuco.
Os versos deste poema, ao descreverem as dores
daqueles sertanejos, configuram um pessimismo que
lembra o pensamento Arthur Schopenhauer, quando este
afirma: “O mundo é um inferno, e os homens dividem-se em
almas atormentadas e em diabos atormentadores”
(Schopenhauer, A. s/d, p.33). 267 A figura antropofágica dos
usineiros faz da Usina símbolo do poder e destruição; os
donos da terra comandam tudo e todos, numa ação contínua
e desumana. Nesse movimento de poder e violência, os
homens e a natureza são tragicamente consumidos: Mas na
Usina é que vi/ aquela boca maior/ que existe por detrás/ das
bocas que ela plantou; (Idem p.131).
A natureza daquele sertão está fadada à destruição
e à morte. A inexorabilidade deste destino vem demarcada
por imagens que, de maneira progressiva, fazem-nos
visualizar um espaço cada vez mais restrito e afastado, desde
as matas à cova sepulcral:O canavial é a boca/com que
primeiro vão devorando/matas capoeiras,/pastos e
cercados;/com que devoram a terra/onde um homem plantou
seu roçado;/ (Idem p.130).
Esta estrofe é um exemplo do pessimismo no estilo
Shopenhaueriano que assinala em Dores do mundo ( s/d) a
seguinte concepção:
Assim como sob o ponto de vista físico o
andar não é mais do que uma queda sempre
evitada, da mesma maneira a vida do corpo é a
morte sempre suspensa, uma morte adiada, e
atividade do nosso espírito um tédio sempre
combatido (...) É preciso enfim que a morte
triunfe, pois lhe pertencemos pelo próprio fato do
nosso nascimento e ela não faz senão brincar
com a presa antes de a devorar” ( Idem. p. 43).

267
SCHOPENHAUER, A. Dores do Mundo. Trad. Assis Brasil, Rio de
Janeiro: Tecnoprint, s/d.
Desta forma, o rio, poeta e filósofo, acorre para
uma severa realidade, com nuances de negativismo,
desesperança e, até mesmo, um certo nihilismo: para a gente
que desce/ é que nem sempre existe esse mar,/ pois eles não
encontram/ na cidade que imaginavam mar/ senão outro
deserto/ de pântano perto do mar (Idem p.142). Nestes
versos da penúltima estrofe, por exemplo, essa desesperança
é bem marcada e a própria voz poemática tem a sensação de
incapacidade - não sabe como ajudar essa gente: É gente que
assim me olha/ desde o sertão do Jacarará;/ gente que
sempre me olha/ como se, de tanto me olhar,/ eu pudesse o
milagre/ de num dia ainda por chegar,/ levar todos comigo,/
retirante para o mar (Idem p.142).
O discurso do rio interroga essa realidade e sua
pergunta (que lhe posso deixar,/ que conselho, que recado?)
(Idem p.143) pode estar respondida na própria linguagem
que, mesmo sem ter, necessariamente, o interesse e a
eficácia do discurso comum, presentifica uma realidade por
meio de metáforas, analogias e de uma retórica que transmite
uma série de lógica e de significações, numa polissemia que
pode ser compreendida por meio de leitura silenciosa, ou em
alto e bom som, como aliás é a leitura ideal para o discurso
deste rio. No final da última estrofe, apesar da gratuidade
inerente ao texto artístico, a voz poemática põe em
evidência que o seu discurso pode traduzir alguma relação
metafórica entre os rios e essa gente: somente a relação/ de
nosso comum retirar;/ só esta relação/ tecida em grosso tear
(Idem p.143). Esta conexão analógica é o ponto de partida
para a presentificação do mundo real a ser revelado e, ao
mesmo tempo, a materialização do texto artístico, num
trabalho de pura metalinguagem. Esta dupla realização
concebe a metáfora do mundo da arte.
O Rio, um poema narrativo com 60 estrofes de 16
linhas tem composição assimétrica, totalizando 960
versos. A extensão do poema, combinada com sua
assimetria, metaforiza o mundo da bacia do Capibaribe que,
realmente, nasce no município de Poção, limítrofe com o
município de Jatuaúba/PE. A extensão desde a nascente até
Recife é de aproximadamente 220 a 240 km. Estes números
podem sugerir o sentido de que os 960 versos aludam a
uma imagem quadrangular, por meio do número quatro,
uma vez que 240 x 4 = 960. O quadrado é, segundo Jean
Chevalier e Alain Gheerbrant (1990), “o símbolo da terra por
oposição ao céu, mas é também, num outro nível, o símbolo
do universo criado, terra, céu, por oposição ao incriado; é
antítese do transcendente” (Chevalier e Gheerbrant (1990)
p.750). 268 Desta maneira, o quadrado é símbolo do terrestre,
do sólido, do tangível e também da totalidade do criado e do
revelado. Assim, o quatro é símbolo do mundo físico do
sertão de Pernambuco, representa as terras de sede (...) terra
desertada/ vaziada, não vazia,/ mais que seca, calcinada./
De onde tudo fugia,/ onde só pedra é que ficava,/ pedra e
poucos homens/ com raízes de pedra, ou de cabra (Idem
p.120). Enfim, é um mundo dominado pela sede e pela
dureza. Neste espaço, o Capibaribe nasce e caminha para o
mar. Porém, logo aprende que é preciso lutar contra as
intempéries do sólido, e que este comanda todo aquele
espaço: seja através da imagem do leito de areia/ com suas
bocas multiplicadas (Idem p. 119), ou nos dentes das usinas,
ou na ferocidade da ambição do usineiro, ou na presença de
qualquer natureza daquela paisagem - do mar de cana aos
capinheiros. O quatro também significa a palavra em
CHEVALIER,J. & CHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Trad.
268

Vera da Costa e Silva, et al. Rio de Janeiro: José OLYMPIO, 1990.


situação dicionária (Idem p.351), parada, estagnada em si
mesma. É a palavra no sentido denotativo, real, limitada de
sentido, ainda no estado bruto, sem a fluidez da conotação.
Em contradição ao estado sólido do sertão e da
posição estática da palavra em situação de poço, está a
polissemia e fluidez da linguagem poética e do rio
Capibaribe com sua imensa bacia e dinamismo. Todos os
rios caminham para o mar, todos representam o movimento
para a transcendência, e também a marca do brando que
consegue vencer o sólido: numa usina se assiste/ à vitória de
dor maior, do brando sobre o duro,/ do grão amassando a
mó (Idem p.132). A água, símbolo, fonte da vida,
metaforiza o renascer contínuo, da reiterada vitória da
brandura do fluxo das águas sobre as pedras.
No plano da realidade, a oposição entre a água e a
pedra transfigura a luta pela sobrevivência do homem
sertanejo que batalha continuamente contra a seca, contra
todos os vazios (a fome, a desumanidade), contra todas as
negativas. Contraditoriamente, portanto, encontro da água
com a pedra torna-se um momento produtivo, um instante
menos perigoso do que o contato com o leito de areia. Não
existe neste uma definição de direção,um caminho concreto,
uma situação sólida contra a qual se possa lutar,
caracterizando-se como negativa profunda, mortal e
aporética. Existe só o vazio, o nada, o caos total do
desconhecido. Na terra desértica não há perspectiva de luta,
de direção, de caminho a seguir. A vida buscada no encontro
com a solidez da pedra sertaneja, ainda que Severina,
franzina ou pétrea está condicionada a ter raízes de pedra, ou
de cabra (Idem p.120).
No sentido simbólico, a água exprime a
transcendência e o espírito que marcam o signo da arte.
Significa o Fiat, o ponto inicial do gênese, quando “o
espírito de Deus pairava sobre as águas” (Bíblia Sagrada, s/d.
p. 550). 269 Representa o movimento da ação que parte do
principio, antes do incriado. Parte do zero, com a sua forma
de ovo cósmico, numa germinação, num início de
acontecimento, na formação da fonte de uma unidade
suprema e dinâmica: o rio da linguagem literária que sai do
estado de poço e caminha para outras margens de
significações. Neste instante de contemplação e mergulho no
império silencioso das palavras e da realidade do
Capibaribe, surge o canto desse discurso do rio da
linguagem e o instante supremo da criação.
Se, de fato, o rio se identifica com o princípio,
pode, por analogia, representar-se pelo número um e este
significa, antes de tudo, o ser humano, em especial o homem
sertanejo, que é também o próprio verbo. “O um é símbolo
do homem de pé: único ser que usufrui essa faculdade, a
ponto de certos antropólogos fazerem da verticalidade um
sinal distintivo do homem, ainda mais radical do que a razão”
(Chevalier, J. & Gheernrant, A. 1990, p. 918). Destarte, o
numeral um representa o ser humano ativo, a palavra em
ação, lutando contra uma dura realidade, mas com toda a sua
força criativa. É deste ponto que emanam vida e arte, e a
manifestação de ambas que “a ele que retorna, esgotada a sua
existência efêmera: como o princípio ativo; o criador. O um
representa o local simbólico do ser, fonte e fim de todas as
coisas, centro cósmico e ontológico” ( Idem, 1990, p. 918).
O rio pode representar o homem sertanejo e ao
mesmo tempo sua arte, e, como tal, torna-se sujeito e número

269
BÍBLIA SAGRADA, Trad. Centro Bíblico de São Paulo: Ave Maria,
1981.
um, aquele ser que inicia a ação desse discurso e o conduz à
totalidade. Ao simbolizar este numeral pode-se fazer uma
analogia entre o simbolismo do homem e desse numeral.
Sobre este último, Chevalier, J. & Gheernbrant, A. (1990)
expõem que o numero um tem a capacidade de assumir a
posição de sujeito e “ toda a energia do símbolo unificador
para realizar a si a harmonia do consciente e do inconsciente,
o equilíbrio dinâmico dos contrários reconciliados, a
coabitação do irracional com o racional, do intelecto com o
imaginário, do real com o ideal, do concreto com o abstrato.
A totalidade unifica-se na sua pessoa e a sua pessoa
desenvolve-se na totalidade” (Idem, 1990, p. 919).
Este sujeito, rio ou homem ou palavra, simbolizável
pelo número um está inserido dentro de uma realidade: o
sertão ressequido, sólido - representado pelo quadrado.
Portanto, o um não é a única representação desse espaço
recriado. Existe um outro quatro vezes maior; um lugar
pétreo, cabral: marcadamente sólido. Portanto, o número
quatro pode ser assumido como a marca deste discurso,
porque é a transfiguração física e metafísica do mundo do
Capibaribe e da palavra poética.
Diante do exposto, “O Rio” tem o número quatro
como múltiplo e é, nesta multiplicidade, que reside o
significado dos 960 versos, das 60 estrofes, todas elas
formadas por 16 versos e dos 28 quadros ou cenas compondo
o seguinte desdobramento quaternado: 960÷ 4 = 240 ÷ 4 =
60 / 60÷ 4= 15/ 16÷ 4 = 4/ 28÷ 4 = 7.
A composição da estrofe por 16 versos tem um
simbolismo significativo, uma vez que, sendo o quatro
símbolo de solidez, materialização e metáfora da realidade
do sertão nordestino, e posição estática da palavra em
situação de poço, o dezesseis (quatro x quatro) indica, sem
dúvida, a realização firmeza e da força material. Quatro ao
quadrado representa a essência da força e solidificação do
criado e revelado que não resulta de uma intenção humana.
Esta força sólida e direcionada para um sentido, se opõe à
polissemia e fluidez da linguagem literária e das águas
deste rio da linguagem, que é um campo de ação,
movimento e vontade humana. Tal intenção realiza uma
obra literária composta por 60 estrofes de 16 versos e 28
cenas ou quadros.
Estas cenas ou quadros realizam a transfiguração da
realidade do sertão de Pernambuco, na bacia do Capibaribe.
Porém, este mundo real retratado nestes quadros não é uma
simples cópia ou representação. É, na verdade, a criação de
uma outra realidade: o discurso literário. E este, enquanto
linguagem artística, pode repousar sobre uma realidade pré-
existente, mas “admite-se, sem dúvida, que esta linguagem
possa, de certa maneira refletir, na sua estrutura, os objetos,
as ideias, as sensações que comunica, que ela possa, de algum
modo, imitar o seu conteúdo” (Lefebve, M. J. 1980, p.18). 270
Maurice-Jean Lefebve expõe ainda que “a matéria da
linguagem é, assim, convocada a pôr-se a si mesma em cena,
o que leva muitas vezes a dizer que é a própria linguagem
que fala” (Idem, 1980, p. 21).
A linguagem literária não se contenta em fotografar
simplesmente uma realidade pré-existente; pelo contrário, o
mundo real é um ponto de partida para a sua criação e para as
interrogações que a arte se propõe, uma vez que de acordo
com Lefebve, “a arte interroga o mundo sobre a sua

270
LEFEBVE, Maurice-Jean. Estrutura do Discurso da Poesia e da
Narrativa. Trad. José Carlos Seabra Pereira. Coimbra: Livraria Almedina,
1980.
realidade e a linguagem sobre a sua obsessão de uma
adequação perfeita ao ser do mundo” (Idem, 1980, p. 63).
Roland Barthes acrescenta que a linguagem literária é um
“sistema semântico muito particular cujo fim é pôr “sentido”
no mundo, mas não “um sentido”. Daí resulta a tamanha
força para fazer perguntas sem jamais lhes responder... e, por
outro lado, que ela se ofereça a uma decifração Infinita”
(Barthes apud Lefebve, 1980, p.63.), na plurissignificação
que reside no poético.
A imitação do mundo físico, dos acontecimentos ou
mesmo a presença dos sentimentos individuais não é
propriedade da arte poética. A poesia só pode ser descoberta
na contemplação das palavras e estas têm o poder de atuar
sobre o mundo, sobre as coisas, sobre os sentimentos
individuais e deles extrair o artístico. Sem essa atuação das
palavras, as coisas, as ideias não significam nada em termos
literários. É necessário que o eventual assunto do poema (a
dura realidade do sertão pernambucano, o curso do rio
Capibaribe e a criação literária) encontre a forma de
expressão linguística adequada. Mas, essa forma linguística
não pode surgir por um trabalho apenas de inteligência: deve
nascer espontaneamente da contemplação das palavras (aqui
metaforizada pela concretude do sertão e pelo verbo
criador). É neste contemplar que nasce o discurso do rio da
linguagem artística que, quadro a quadro, cena por cena, (28
vezes) nos 960 versos, vai revelando o poético, unindo
forma e fundo, até a conclusão do curso do rio no mar de
múltiplas ondas, margens e significações.
Neste final encontramos a marca da arte, o número
7, símbolo da perfeição e do mistério. Se dividirmos as 28
cenas por 4 (o número do sólido, da criação e revelação),
chegaremos ao número 7, “símbolo universal de uma
totalidade, mas de uma totalidade em movimento ou de um
dinamismo total ( Chevalier, J. & Geheernrant, A. 1990,
p.750), a tradução da arte e símbolo de toda a criação.
Esta totalidade do poema O rio está expressa na
reunião das 60 estrofes. Cada estrofe significa um conjunto
de unidades ou versos do poema. Cada verso é uma imagem
poética que, somada aos versos seguintes, ganha um reforço
discursivo, sai do significado inicial e adquire novas
significações e possibilidades de leitura. Esta polissemia
provoca uma força no discurso poético análoga ao afluxo
das águas excitadas pelo encontro com as pedras. Depois do
choque entre o líquido e o sólido, o primeiro explode numa
energia provocada pelo contato, causando as vozes líquidas
do poema (Idem p.55) com o seu barulho de acontecimento e
ação. No texto poético, o mesmo procedimento pode ser
observado em todas estrofes e apresentado como um
exemplo, no primeiro verso da 31ª estrofe do poema O rio,
denominada “Encontro com a Usina”: Mas na Usina é que
vi (p.131). Na leitura desta unidade, a imagem acústica da
usina surge na memória do leitor, seguida do conceito
(significado). Porém, a possível acepção da usina como um
estabelecimento industrial, fábrica ou oficina, na significação
denotativa, designativo do mundo real, ganha novos
significados nas reiterações e associações concebidas nos
versos seguintes: aquela boca maior/que existe por detrás
/das bocas que ela plantou;/que come o canavial/que contra
as terras soltou; (Idem p.131).
No segundo verso, o leitor se vê diante de novo
significado da usina que, agora, não aparece com o conceito
abstrato de indústria, mas com o de um de ser detentor de
uma enorme boca devoradora, uma espécie de monstro, um
símbolo do mal. Aquela boca maior (Idem p.131) devora
outra uma boca também muito perigosa: o canavial. Cada
verso traz nova ideia do que poderia representar a usina,
uma vez que aquele conceito denotativo, agora é uma
conotação, é uma metáfora, explicada em forma de
informações, traduzindo o todo em partes, num processo
metonímico: a usina é uma boca maior. Tal boca mastiga
outra boca, que mastiga as terras, as casas, as caldeiras, tudo
reiteradamente.
O ato de triturar com os dentes é representado por
uma série de versos que ruminam repetidamente, como se
estivesse mastigando o problema que está sendo
explicado:boca maior/ que existe(...) que come (...) que
contra(...) que come(...) e tudo (...) que come (...) e tudo(...)
que come (...) (Idem p.131). Toda a seção de versos é
iniciada pela tradução de verbos que indicam certeza e pela
adição de mais informações, para que o discurso, apesar de
literário e, portanto, pouco transparente, seja comunicado.
A aludida reiteração de ideias e informações, além
de produzir o espelho do ato de ruminar, repisar a imagem
da violência e destruição provocada contra a vida daquela
região, reflete também a própria imagem fluvial: o
movimento ondulatório e sinuoso do fluxo das águas batendo
nas pedras, expondo perturbações da massa fluida. Os versos
são as linhas paralelas da corrente das águas formando
curvas, tomando outras formas e rumos.
Esta imagem fluvial percorre todo o poema O rio,
porém em algumas estrofes elas refletem as próprias ondas do
mar, como pode ser observado na estrofe 32: Na/vi/la/ da
U/si/na / é/ que/ fui/ des/co/bri/r a /gen/te / que as/ ca/na/s
ex/pul/sa/ram / das/ ri/ban/cei/ra/s e/ va/zan/tes; / e/ que
e/ssa/ gen/te/ mes/ ma / na/ bo/ca/ da U/si/na/ são /os/
den/tes / que/ mas/ti/gam /a/ ca/na / que a/ mas/ti/gou/
en/quan/to/ gen/te (Idem p.131) Os versos desta estrofe,
assim como de todas que compõem o poema “O Rio”,
possuem uma métrica irregular ou imperfeita, uma vez que
existe uma pequena variação no número de sílabas poéticas
de verso para verso. A métrica desse poema oscila entre, 5,
6,7,8,9 e 10 sílabas. Esta aparente irregularidade significa a
imagem das correntes do curso do rio, que na fluidez
espalha fluxos variados, porém carregados de ritmo. O ritmo
determina essa fluviometria do poema. Quase todos os
versos apresentam um ritmo que deixa evidente uma força
sonora, no início e no final de cada verso. O mesmo processo
acontece de forma cíclica em toda a estrofe: que nessa gente
mesma/ nos dente (...) arrenda/ as moendas estrangeira. Ao
lado dessa acentuação no princípio e fim de cada verso
existe um jogo entre os sons das vogais e consoantes, ora
prevalecendo a aliteração, ora a assonância. Porém, mesmo
quando o primeiro recurso está em evidência, os sons
vocálicos chamam mais atenção. É o que pode ser chamado
de vozes líquidas do poema, também já referidas nos versos
de “O poema e a água” (Idem p.55), numa alusão à
capacidade de percepção de ideias e evocação que
possuem os sons abertos. Tais sons, podem ser considerados
fluidos e detentores de uma grande capacidade
comunicativa. Ao contrário dos sons consonantais, que
exceto o (s), (com o seu poder de sugerir pluralidade), têm
um poder de reter a mensagem. Numa analogia, podemos
comparar as consoantes com as pedras: duras, sólidas,
firmes, quase que intransponíveis. Por outro lado, as vogais
têm a fluidez das águas: transparentes ou opacas,
comunicativas, soltas, leves, transcendentais.
Na leitura em voz alta, o poema “O Rio” deixa os
sons vocálicos fluírem como o barulho das águas batendo nas
pedras: Por esta grande usina/ olhando com cuidado vou,
que esta foi a usina/ que toda esta Mata dominou. Numa
usina se aprende/ como a carne mastiga o osso,/se aprende
como mãos/ amassam a pedra, o caroço (Idem p.132); As
águas quando encontram alguma dificuldade produzem um
barulho de sonoridade aberta, semelhante aos sons vocálicos.
Aqui também pode ser vista a metáfora da vitória do brando
sobre o duro, aludida na imagem dos versos acima. Efetiva-
se assim o resultado vitorioso do rio, sobre a dura realidade
enquanto, história e o triunfo do poético sobre a dura
realidade.
(Em poesia) “o som”, diz Pope, deve ser um eco do
sentido ( Pop, apud Lefebve, 1980, p.69). Lefebve acrescenta
que “em verdade, o som deveria ser o próprio sentido. Mas
somos forçados a contentarmo-nos com aproximações e com
quase. A encarnação é ideal que só se aproxima na imitação
ou na semelhança” (Idem. p. 69.) Esta aludida encarnação
realiza uma representação do espírito e esse momento
provoca a ilusão de que os sons das vogais podem ser
ouvidos por meio do barulho das águas. Este instante fica
carregado de impressionismo e idealização, uma vez que as
vozes liquidas (Idem p.55) do poema são fluídas e cheias de
opacidade. O som das vozes líquidas é quase virtual e
mítico, imaterial e inexplicável. Existe apenas a sugestão ou
imagem vocálica. Porém, no momento que a sugestão está
sendo praticada, ou encarnada, acontece “a tentativa de
superar a contradição opacidade – transparência e de
reaproximar a linguagem literária dessa linguagem adequada
e original, essa linguagem em que o significante e o
significado coincidem, essa linguagem dos deuses que é o
mito da literatura” (Idem. 1980, p. 69), conforme defende
Maurice-Jean.
Mas a arte aqui representada na canção fluvial,
não está apenas na sonoridade vocálica, ou fluída,
comunicativa e branda. E, como já citamos no capítulo
anterior, a arte nasce justamente “onde a comunicação se
quebra,- ou, pelo menos se altera -, como a faísca nasce de
um curso-circuito” (Idem. 1980, p. 36.) O discurso do rio
realiza um jogo entre o brando e do duro, entre o som
vocálico e o consonantal, num processo alquímico que
exprime uma realidade e traduz o mundo nas suas aparências
e estrutura. Todo esse artifício criativo fica marcado pela
abundância de significação inerente ao inscrição artístico.
Em quase todo o poema pode ser percebida ainda
a imagem das águas em ação, quer seja em corredeira, como
já sugerem estes primeiros versos: Sempre pensara em ir /
caminho do mar/ Para os bichos e rios/ nascer já é caminhar
(Idem p.119), ou ondas nas estrofes que apresentam o
“Encontro com a Usina”: que mastigam a cana/ que
mastigou enquanto gente;/ que mastigam a cana/ que
mastigou anteriormente (Idem p.131). A ideia de uma
situação- onda puxar outra, está reiterada nas estrofes 31 e
32, e em outras também, especialmente as que exprimem o
mar de cana. Desta forma, a arte reflete o real na própria
imagem discursiva.
Nesta ação imagética, muitas vezes aparece uma
sintaxe invisível e calada, refletida no próprio silêncio do
discurso. Este processo pode ser observado na quadragésima
sexta estrofe: Um velho cais roído/ e uma fila de oitizeiros/
há na curva mais lenta/ do caminho pela Jaqueira,/ onde
(não mais está)/ um menino bastante guenzo/ de tarde olhava
o rio/ como se filme de cinema;/ viam-me, rio, passar/ com
meu variado cortejo/ de coisas vivas, mortas,/coisas de lixo
de despejo (Idem p.137). Na descrição da curva mais lenta, o
discurso do rio é compassado e transmite uma imagem
nostálgica e triste, sombreada pelos oitizeiros e pela
aparência da ancianidade e decrepitude do cais consumido
pelo tempo.
Com uma nostalgia profunda, o rio contempla
aquele espaço e vê, inserido na realidade severina, a figura
franzina de um menino, também Severino. Este menino
olhava o rio e descobria no curso das águas a caminho do
mar, o próprio destino. Porém, o menino era uma palavra/
pedra em situação dicionária, estava estagnado, parado,
apenas Severino: não possuía a força daquele curso de água
que ganhava novos sentidos em cada fluxo de ação. Ele, o
menino, era um rio que não se fez, não tinha força suficiente
para realizar seu sonho de buscar outras margens. Ele, o rio,
olhava o menino e, também naquela figura humana e guenza,
se reconhecia: Sempre pensara em ir / caminho do mar (...)
Rio menino, eu temia/ aquela grande sede de palha/ grande
sede sem fundo (Idem p.119). O rio olhava no menino e,
como num filme, via passar a sua história de rio menino, num
estado de poço ou numa pequena nascente na Serra do
Jacarará. Como o menino, o rio também não tinha
consciência da sua situação dicionária, por isso afirmou
( não consigo me lembrar/ dessas primeiras léguas / de meu
caminhar (Idem p.119). O menino exprime a transfiguração
do rio da Serra do Jacarará e também símbolo dessa
realidade severa. Por outro lado, o menino via no rio a
imagem do seu ideal refletida em forma de acontecimento,
ação e construção de um mundo novo. Desta forma, a arte,
ao contemplar a realidade, não fica encantada com a
simples aparência da natureza, mas faz um mergulho na
própria imagem e, através dela, descobre os traços de um
possível real ofuscado pela visão da irrealidade da sua
criação. A natureza por sua vez também busca na arte sempre
o reflexo do si mesma numa posição narcisista. No entanto,
neste reflexo fica evidenciada uma irrealidade, uma ilusão,
um ideal distante de ser realizado.
Tal procedimento traduz a chamada “metáfora
do abismo”, que expressa uma espantosa e imensa
diferença entre o menino e rio, entre a realidade e a arte, entre
o real e o imaginário, apesar das possíveis analogias. Neste
momento, os dois páram e fazem mútua contemplação: um
menino bastante guenzo/ de tarde olhava o rio/ como se filme
de cinema e, vice-versa, o rio olha o menino, no processo
denominado por Lefebve (1980) de “reflexo abissal: o mundo
como espelho de si mesmo e a obra como espelho do mundo
coincidem” (Idem. p. 54). Mas neste encontro narcíseo,
cada um mergulha no próprio mundo: o menino – na sua
realidade severa e estática; a arte - na sua irrealidade, fluidez
e criação. Por este motivo, o discurso do rio nesta estrofe
transmite uma sensação de estar parado ou de construir um
abismo profundo de nostalgia, sentimento, lembranças num
variado cortejo/ de coisas vivas, mortas,/coisas de lixo de
despejo (Idem p.137). Estamos diante do fascinante encontro
entre a realidade pétrea e a fluidez da arte, num jogo
antitético gerador de energia e força produtora do poético e,
portanto, de imagens encantadoras que realizam a criação
de um mundo de significações.

3.2 Do nível narrativo ao fundamental

Os versos de O rio de João Cabral exteriorizam um


discurso poético dotado de narratividade, uma vez que pode
ser observado um estado inicial, uma transformação e um
estado final, apesar de não acontecer assim necessariamente
de forma cronológica, mas o discurso aparece travestido de
uma narrativa mínima por meio de um enunciador que expõe
suas experiências, razões e sensações profundas. O autor da
voz que enuncia é o agente da pseudo-narrativa, o sujeito
das ações e funciona como um narrador intradiegético, uma
vez que entra no texto, mas também, figura o próprio
discurso e o próprio texto ao mesmo tempo.
Uma vez caracterizada como uma narrativa
mínima, o poema O rio desenrola-se dentro do fluxo do
tempo, tanto no plano dos acontecimentos aparentes, (tempo
da história, tempo do significado) quanto no discurso (que
conforma os acontecimentos), (tempo da narrativa, tempo do
significante) pois este se organiza como a sucessão de
palavras e frases.
O advérbio de tempo sempre principia o discurso
do rio e sugere, antecipadamente, o próprio movimento
contínuo: Sempre pensara ir/ a caminho do mar (Idem
p.119). Aos possíveis sentidos que o vocábulo sempre traduz,
foi acrescido um verbo no pretérito mais-que-perfeito,
indicando um pensamento, um fato vagamente situado no
passado, mas que não foi esquecido, e continuou sendo
repetido na memória como os acontecimentos de água,
poetizados em “O poema e a água” (Idem p. 55).
Este começo do discurso, iniciado nos oito
primeiros versos, funciona como um elo, uma espécie de
linha imaginária, um meridiano que une de forma cíclica o
passado ao presente e vice-versa. Na ordem temporal da
narrativa, é também “uma espécie de grau zero, que seria um
estado de perfeita coincidência temporal entre narrativa e
história” (Genette, 1984, p.34). 271 Estes primeiros versos do
poema expõem o tempo presente e uma fase já avançada da
diegese. É estado de reflexão, amadurecimento de um ser
que percorreu um árduo caminho, tem muita experiência e
atingiu todos os objetivos, no caso do rio, já chegou ao mar.
Encontra-se aqui o momento da realização do discurso
literário, quando todas as travessias foram transpostas e o
instante manifesta pura reflexão e vivência.
Desta forma, os oito versos que abrem esta
prosopopéia totalizam uma vida e uma obra e, portanto,
trazem as chaves de dupla criação, uma vez que o numeral
oito representa a multiplicação de dois vezes quatro. Este,
por sua vez, simboliza a universalidade da ação no espaço
e no tempo, e também chave do universo. “Entre os o
dogons, o número-chave da criação não é o quatro, mas o
oito, por sua qualidade de quatro duplos. É sabido que para os
dogons tudo o que é puro, justo e ajustado, é duplo. E, a
tradição cristã faz do oito um acabamento, uma completude”
( Chevalier, J. & Gheernrant, A. 1990, p.652): Sempre
pensara em ir/caminho do mar.
(p.119.
Nos dois primeiros versos, o rio sintetiza seu ideal.
Depois, nos seis versos seguintes, apresenta uma operação
lógica abrangendo certeza em confronto com dúvida: na
primeira, afirma que os rios e os bichos já nascem
caminhando, seguindo o próprio destino; depois, expõe sua
dúvida sobre a analogia entre os rios e os homens do mar;
finalmente, chega à conclusão que ambos são aventureiros e
que sentem o mesmo e exigente chamar (Idem p.119). Em

271
GENETTE,Gérard. Discurso da Narrativa. Trad. Fernando Cabral
Martins. Lisboa: Vegas, 1984.
síntese, numa primeira assertiva, o enunciador apresenta a
relação analógica entre rios e bichos para, em seguida,
questionar a semelhança entre rios e marinheiros e, por
último, expõe que ambos se irmanam na aventura, (numa
relação certeza x dúvida x certeza). Estas asserções levaram-
no a concluir que os rios, os bichos e os homens do mar têm
um plano em comum: possuem uma natureza dinâmica, no
aspecto físico ou metafísico.
Esta lógica introduz esse discurso que, usando uma
voz poemática, discorre as travessias e os ideais de um ser-
rio amadurecido pelos acontecimentos, que já realizou todo o
seu percurso, que correu terras, contornou obstáculos,
venceu as pedras do seu curso, ultrapassou todos seus
limites. O momento presente tem a marca da maturidade e,
pelo tempo de meditar sobre sua existência, de considerar
suas próprias ações, seja como conhecimento que o intelecto
tem de si mesmo; como consciência; ou como abstração. Para
tanto, a voz poemática rememora seu nascimento e faz um
“flash-back”, retornando à sua primeira descida de serra e
caraibeiras lendárias: volta ao seu ponto de partida, ao
princípio do seu movimento, à nascente do rio Capibaribe na
serra do Jacarará, município de Poção no limite com a
Paraíba: Eu nasci descendoa serra que se diz do
Jacarará,/ entre caraibeiras/ de que só sei por ouvir contar.
(Idem p.119.)
Contemplando sua existência, o rio torna-se sujeito
de suas ações e, tomado pelo signo de uma antropomorfia,
adquire atribuições e caráter humanos, como a contemplação
das coisas e da natureza. Como um ser humano, observa o
espetáculo da vida e manifesta diversos sentimentos: medo,
resignação, incompreensão, espanto e perplexidade.
Esta constatação encontra-se traduzida por meio de
um discurso que examina a origem, natureza e transformação
do próprio mundo, numa alusão, muitas vezes, à filosofia de
Heráclito que concebe o mundo como um fluxo contínuo de
mudanças, um eterno fluir como um rio, onde se torna
impossível banhar-se duas vezes na mesma água; ou ainda,
defende o mundo como constante fluir, em movimento
perpétuo, e também como unidade dos opostos, sempre em
contradição entre si como uma guerra (Cf. Nicola A.1998,
p.497). 272
Transformado em um ser pensante, o rio realiza a
ação de contar poeticamente seu percurso, suas viagens pelo
mundo dos rios, agora que suas águas se movimentam no
grande mar. Os oito primeiros versos que iniciam
demonstram a conclusão da travessia das ações praticadas por
este sujeito que passa, a partir do nono verso, a contar seus
predicados. Começa aqui a anacronia defendida por Genette
(1984), como “uma discordância entre a ordem da história e
a da narrativa” ( p.20).Como já afirmamos anteriormente,
até a metade da primeira estrofe existe uma espécie de “grau
zero”, uma sincronia entre o tempo da história e o tempo da
narrativa. Na segunda metade do primeiro segmento, pode
ser percebida uma espécie de “sintaxe narrativa, em que uma
narrativa temporalmente segunda, é subordinada à primeira”
(Idem. 1984, p. 47), ou mesmo num enxerto temporal entre
o presente e o passado, entre o sujeito enunciador e as
ações praticadas: nascimento, infância, juventude, fase
adulta e a idade da razão – início, meio e fim de uma história,
que se encaixa de maneira cíclica com o início do discurso
do rio.
272
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi.
São Paulo: Martins Fontes, 1998.
A partir do nono verso, a voz poemática retorna à
sua nascente na serra do Jacarará onde, na realidade, ali o rio
brota protegido por uma mata e vai escorrendo até formar
uma lagoa, turva e espessa, tal qual na foz, em Recife. Graças
ao olho-d’água que mantém a terra úmida, aquele lugar não
conhece êxodo. Porém, o rio, os animais e os marinheiros têm
vida nômade, não ficam parados nas nascentes.
Na segunda estrofe, o momento presente está
tomado pelas lembranças dos caminhos percorridos. Os
verbos oscilando entre o presente o passado são
acompanhados de metáforas que traduzem um mundo
caótico, seco, ainda sem existência, ressequido, inimigo de
vida e água: Desde tudo que lembro,/lembro-me bem de que
baixava/entre terras de sede/que das margens me vigiavam/
Rio menino, eu temia / aquela grande sede de palha,/
(Idem p.119).
O rio representa um sim, nesta terra de negativas e
uma alegoria da criação do mundo, a partir do caos. A
imagem do rio menino diante do nada, metaforizado por
(aquela grande sede de palha,/ grande sede sem fundo)
(Idem p.119) expressa o momento do Fiat , em que o verbo
deu origem à existência e, com as artes e manhas da retórica,
venceu a grande sede sem fundo (Idem p.119) do nada, deu
luz à vida , ao mundo, ao rio que, para sobreviver às
intempéries dos vazios das areias inconstantes, tomou o
caminho do sólido, das pedras, do tangível, do verbo, da arte
e fez a história. O eu poemático retratou na sua narrativa os
caminhos do Alto Sertão, da estrada da Ribeira, Apolinário,
Poço Fundo, Os rios de Pernambuco, o Couro d’Anta, da
estrada da Paraíba, do riacho das Éguas ao Ribeiro do Mel, da
terras de Limoeiro a Ilhetas e desta ao Petribu, do trem de
ferro, do canavial, de outros rios, usinas,pontes, cidades,
ilhas, recifes e mares: o mundo do Capibaribe e sua
prosopopéia.
A terceira estrofe traz notícia do Alto Sertão, de
uma terra desertada,/ vaziada, não vazia,/ mais que seca,
calcinada./De onde tudo fugia,/ onde só pedra é que ficava,/
pedras e poucos homens/ com raízes de pedra, ou de cabra
(Idem p.120). Os versos rememoram terras companheiras do
sol e das sombras da morte.
Nos dois primeiros versos da quarta estrofe,
denominada “A estrada da Ribeira”, a voz poemática
retoma o verbo no pretérito-mais-que-perfeito, numa alusão
ao sonho acalentado: a busca do seu destino de mar ( Idem
p.120). A estrada da Ribeira foi a primeira travessia
consciente para o destino de mar. Foi neste espaço que o eu
poemático sentiu o contraste entre este início, condensado
num mar de cinza e o porvir estendido num mar de mar,
entre sua existência ressequida e a perspectiva de futuro.
Na estrofe seguinte, a voz poemática deixa a
primeira infância, as areias e a natureza de pedra do Alto
Sertão e percorre caminhos de brejos, não menos severos,
mas seu fluir acompanha a mudança dos espaços, dos nomes
e das coisas. O rio desfila ao lado do tempo, dos homens e de
outros rios, que aliás, apresentam-se como temática da
sétima estrofe: os rios são de água pouca,/em que a água
sempre está por um fio (Idem p.121). Estes rios são
animizados e zoomorfizados na própria história, uma vez
que possuem realmente nomes de gente, de santos e de
bichos: mas todos como a gente /que por aqui tenho visto:/ a
gente cuja vida/ se interrompe quando os rios (Idem p.121).
“De Poço Fundo a Couro d’Anta” motiva a oitava
estrofe. Nestes versos, o rio descreve o despovoamento da
ribeira:Vê-se alguma caieira/tocando fogo ainda mais na
terra;/vê-se alguma fazenda/com suas casas desertas: vêm
para a beira da água/ como bichos com sede (Idem p.122).
Descreve também a decadência das vilas de poucas casas,
nenhuma escola e uma pequena igreja (Idem p.122). A nona
estrofe descreve o desfile de Vilas com seus santos
padroeiros. Os versos apresentam o dinamismo do fluir do rio
que vai passando e observando o cenário: Primeiro é Poço
Fundo,/(...) Depois é Santa Cruz/ que agora é Capibaribe(...)
(Idem p.122). Na estrofe seguinte, a estrada da Paraíba fica
muito bem explicada, para não haver erro, num estilo muito
popular, numa prosa de um viajante experiente , senhor
daquele sertão, vilas, serras, rios, estradas e descida a
caminho do mar.
O tom popular do romance medieval está
evidenciado em cada verso da décima primeira estrofe. O rio
conta sua odisséia rumo ao mar, ao mesmo tempo que
afirma ser um viajante calado,/ para ouvir histórias bom,/ a
quem podeis falar/ sem que eu tente me interpor (Idem
p.123). Desta maneira, tem as características de um filósofo:
bom ouvinte, observador, sensível, racional e dono de uma
habilidade de comunicação e expressão: o rio é o
companheiro melhor (Idem p.123).
A viagem continua no 12º segmento por Caruaru
e Vertentes. Nesta altura, a narrativa alude a manhã,
fornecendo a imagem da passagem dos dias, do fluir das
horas, combinado com o movimento dos espaços
geográficos, das paisagens com suas denominações e suas
isotopias: Entretanto a paisagem,/ com tantos nomes, é quase
a mesma./ A mesma dor calada,/ o mesmo soluço seco,
/mesma morte de coisa/ que não apodrece mas seca (Idem
p.123).
As vilas desfilam seu cenário e coronéis na 13ª
estrofe: Cheos, Malhadinha, Salgadinho ( com pobres águas
curativas), São Vicente ( muito morta e muita antiga), Pedra
Tapada (com poucos votos e pouca vida), Pirauíra segue a
ladainha dos nomes de vilas, sempre com a mesma paisagem
( reduzida à sua pedra). Assim, tem início a estrofe seguinte,
continuando este discurso que exprime a dura realidade do
sertão nordestino nos versos: Vou na mesma
paisagem/reduzida à sua pedra./A vida veste ainda/sua mais
dura pele./Só que aqui há mais homens/ (Idem p.124.) Nesta
14ª estrofe, a voz narrativa faz um mergulho na paisagem
humana daquele espaço mirado pelos olhos da medusa,
lugar reduzido à pedra, mas habitado por homens
destemidos, que desmoronam mitos, apesar de acreditarem
nos santos padroeiros. Esses homens lutam contra pedra e
sabem lidar com penhasco.
A marca dos dias está presente neste poema
narrativo, que representa a própria imagem do fluir das águas,
do passar dos tempos: Dias depois, Limoeiro,/ cortada faca
na ribanceira (Idem p.124). Assim, tem início o 15ª estrofe
desse poema, que apresenta Limoeiro, cidade considerada
melhor, com duas feiras, cadeia segura e “bela”, melhores
fazendas, inúmeras bolandeiras, igreja maior e mais “feia” e
ainda possuidora da serra do Urubu. Depois, na estrofe
seguinte, são apresentados os defeitos deste cenário: região
de secura extrema e sede profunda e infinita:Pois, aqui, em
Limoeiro,/com seu trem, sua ponte de ferro,/com seus
algodoais,/ (Idem p.125.)
A secura de Limoeiro vai sendo deixada para trás
com evidente prazer. E outras cidades formam o cenário da
17ª estrofe: Ribeiro Fundo (onde só vivem ferreiros), Boi-
Seco, Feiticeiro, Gameleira, Ilhetas, todas ao pequenos
arruados/ plantados em terra alheia, onde vivem as mãos/
que calçando as outras, de ferro,/ vão arrancar da terra/ os
alheios frutos do alheio (Idem p.125). Na próxima porção
desse todo, o rio deixa definitivamente o município de
Limoeiro com o pensamento no trem de ferro, também
viajante a caminho do mar, mas dono de maior velocidade,
pois os rios , como os bois, são ronceiros (Idem p.126),
seguem sua lentidão sem pressão, sem diligência, ao sabor do
progresso da natureza.
Na 19ª estrofe, a presença do trem pode ser ouvida
quando o rio se aproxima de Carpina. E, outra vez aparece o
contraste entre a máquina com o seu grito de poder e
velocidade, e o caráter indolente, pachorrento e silencioso
do rio: Diversa da dos trens /é a viagem que fazem os
rios:/convivem com as coisas/entre as quais vão fluindo;/sem
se apressar em fugir/ (Idem p.126).Na 20ª
estrofe, a audição do rio torna-se mais aguçada, porque agora
não fica apenas a ouvir o trem de ferro; no momento em
que deixa o agreste, tem a impressão de ouvir vozes: “Rio
Capibaribe,/que mau caminho escolhestes/Vens de terras de
sola,/curtidas de tanta sede / (Idem p.126/127). Neste ponto,
a sensibilidade do rio está à flor da pele e das águas, e o
medo do desconhecido assola do inconsciente em forma de
presença sombria, mas a luz do ideal que brilha no
consciente fica mais forte quando exprime: Penso: o rumo
do mar / sempre é o melhor para quem desce (Idem p.127).
Nova marca temporal aparece no 21ª seção: No
outro dia deixava / o agreste, na Chã do Carpina./ Entrava
por Paudalho,/ terra já de cana e usina. Aqui, a paisagem
toma ares de canavial. A cana adquire características que
oscilam entre homem e animal, com cabeleira ou crina. O
eu narrador retrata a lâmina fina da folha de cana, a
aparência franzina da soca e qualifica aquelas terras como
mais brandas e femininas (Idem p.127).
Este cenário tem história, agora silenciosamente
ouvida pela voz poética no 22º e 23º segmentos: Foram
terras de engenho,/ agora são terras de usina./ É o que
contam os rios/ que vou encontrando por aqui (Idem p.127).
Desta maneira, são apresentados os “Outros rios”, que
segundo o narrador são diferentes dos que já o
acompanharam, mas que são bem vindos. Os primeiros eram
tímidos e todos não possuíam grandes ideais: eram
trabalhadores de eitos ou operário das usinas como os
homens daquele lugar. O sonho de outras águas parou para
movimentar os trabalhos dos engenhos e nas usinas. Os rios
operários apresentados são: Petribu (que trabalha para uma
usina), Apuá, Cursai (trabalhavam para engenhos), Cumbe ,
Cajueiro, Camilo, (trabalhadores de eito) Muçurepe, (que
trabalhava para outra usina), Goiatá,(dos lados da chã da
Alegria), Trapacurá (dos lados da Luz, freguesia/ da
gente do escrivão/ que foi escrevendo o que eu dizia) (Idem
p.128).
“A conversa de rios” é travada nas estrofes 24 e 25.
O rio narrador apresenta os “segredos”dos novos
companheiros, revelados depois de uma boa caminhada.
Aqui, na antroponímia dos rios, o enunciador revela o
caráter social da sua narrativa: Contam por que
possuem/aquela pele tão espessa;/por que todos
caminham/com aquele ar descalço de negros;/por que
descem tão tristes/arrastando lama e silêncio. (Idem p.128).
O discurso dos rios exprime a história dos
engenhos com seus fogos mortos, acompanhados da usina,
da moenda e da ruína do banguê velho. As impressões sobre
as usinas são pessimistas. Estas, são qualificadas como
portadoras de urtigas, morcegos e destruição.
A paisagem “Do Petribu ao Tapacurá” é descrita
nas estrofes 26 e 27. Na primeira, é enfatizada a vegetação:
tudo planta de cana/nos dois lados do caminho;/ e mais
plantas de cana/ nos dois lados do caminho/ por onde os rios
descem(...) e outras plantas de cana/ há na ribanceira dos
outros rios (...) Tudo planta de cana(...) Tudo planta de
cana/ e assim até o infinito(...) (Idem p.129). A reiteração da
imagem das plantas de cana, não quer enfatizar a extensão
do canavial, mas sim o poder dos usineiros que comandam
aquelas terras. Esta atividade econômica não trouxe
benefícios para aquela região, pelo contrário; o canavial
provoca o despovoamento, como está explicitado na 26ª
estrofe: As casas não são muitas/ que por aqui tenho
encontrado/ (os povoados são raros/ que a cana não tenha
expulsado) (Idem p.129). Os pequenos povoados citados são:
Rosarinho, Desterro, Paudalho e Santa Rita.

João Cabral entre os canaviais


Aparece nesse ponto da narrativa poética o começo
de uma nova experiência na caminhada da voz poemática, a
partir da descoberta e o encontro com usina. Estes
momentos foram registrados nas estrofes 28, 29, 30, 31, 32,
33, 34 e 35. Segundo o narrador, até nesse ponto de seu
percurso, a usina era uma espécie de lenda narrada pelos
rios caminheiros. Por isso, era preciso conhecer mais de perto
a grande devoradora de terras, homens e engenhos: O
canavial é a boca/ com que primeiro vão devorando/ matas
capoeiras,/ pastos e cercados.(...) Mas na Usina é que vi/
aquela boca maior/ que existe por detrás/ das bocas que ela
plantou;/ que come o canavial/ que contra as terras soltou;/
que come o canavial/ e tudo o que ele devorou (Iden p.131).
A imagem criada para descrever a devastação provocada
pelas usinas analogia com a de dragão medieval ou um outro
animal feroz, de boca enorme e inúmeros dentes, mas pode
ser também de uma máquina futurista, que tritura o
ecossistema, destruindo toda a natureza. Na boca da Usina
são os dentes/que mastigam a cana/que mastigou enquanto
gente;/que mastigam a cana/que mastigou anteriormente
(Idem p.131). A aliteração do fonema nasal, apresenta várias
sugestões. Entre elas, está o som do ato de mastigar
gemendo de prazer, acrescido da ação contínua e repetitiva
no sentido literal e histórico, de suprimir vidas, destruir a
natureza humana e vegetal daquela região tão calcinada pelo
homem e pelos deuses.
O eu poemático torna-se testemunha de uma
situação apocalíptica e constata os ensinamentos desumanos
da usina: Numa usina se aprende/ como a carne mastiga o
osso/ se aprende como mãos/ amassam a pedra, o caroço;/
numa usina se assiste/ à vitória, de dor maior,/ do brando
sobre o duro,/ do grão assado a mó (Idem p.132). A usina
inverte os valores, uma vez que o homem está sendo usado
como objeto, como peça na engrenagem e dente desta
máquina e, como tal, torna-se também um monstro
antropofágico. Para trás vai ficando/ a triste povoação
daquela usina/ onde vivem os dentes/ com que a fábrica
mastiga./ Dentes frágeis, de carne,/ que não duram mais que
um dia; dentes são que se comem/ ao mastigar para a
Companhia (Idem p.133).
O discurso do rio retirante não representa apenas
uma simples narrativa poética, mas manifesta, antes, uma
denúncia da vida e da morte severina, daquele povo
desafortunado: E vi todas as mortes/em que esta gente
vivia/via morte por crime,/pingando a hora na vigia;/a morte
por desastre, (Idem p.133).
O rio faz de sua história uma musa que prega a
vida e a liberdade. Ao narrar os acontecimentos, o eu
poemático pode comunicar a todos as injustiças e
arbitrariedades do sertão de Pernambuco: a morte em vida, a
morte que apodrece ao natural, a morte por crime, por
desastre e por febre. A narrativa da voz que enuncia não
tem o objetivo de apenas reproduzir o fato mas,
principalmente, emite juízos sobre esta realidade apresentada
e levanta uma interrogação sobre o problema demonstrado.
O cenário apresenta-se dantesco, o questionamento
em tornos dessas questões sociais está sendo exposto, porém,
o tempo não pára e o rio precisa concluir sua travessia.
Destarte, seu itinerário continua “Da Usina a São Lourenço
da Mata” (estrofes 36 e 37): Outra vez vou baixando/ entre
infindáveis partidos;/ entre os mares de verde/ que sabe
pintar Cícero Dias (...). A extensão do canavial,
metaforizada por mares de verdes (Idem p.133), combina
com a paz das colinas mansas/ de uma terra sempre em cio
(Idem p.133) e com presença calma do vento a transformar
o canavial em ondas de mar/ multiplicadas (...) como ondas
do mar de mar (Idem p.133) dos sonhos desse rio retirante.
Depois, sua odisséia continua por outros mares de canavial e
outras usinas com os encontros de seus inúmeros canaviais
dominando aquele espaço.
Esta paisagem desenvolve ainda o tema das estrofes
38, 39, 40, 41, 42, e 43, (De S. Lourenço à Ponte de Prata e
da Ponte de Prata a Caxangá). Nestas estrofes, o itinerante
narra, descreve, disserta, poetiza, aquela região que surge
transfigurada num mar de cana e dores. A extensão do
problema é também muito grande como o mar do canavial,
das usinas e do próprio mar. Por outro lado, o rio mergulha
nestes mares a caminho dos seus sonhos, indo ao encontro
de vida melhor. E, segundo este eu poemático, ele não
está sozinho nesta viagem em busca de uma outra margem
cheia de perspectiva: não pensem que ando só, /Entra
comigo a gente/ que comigo baixou/ por esta estrada/ que
vem do interior (Idem p.134). Portanto, todos aqueles que
acreditam e têm coragem de ir ao encontro da esperança,
seguem-no: rios/ a quem o mar chamou,/(...) gente/ que com
o mar sonhou,/ e também retirantes/ em quem só o suor não
secou;/ e entra essa gente triste,/ a mais triste que já baixou,/
a gente que a usina,/ depois de mastigar, largou (Idem
p.134).
O rio leva consigo todos os oprimidos e
humilhados: entra aquele usineiro/ que o outro maior
devorou;/ entra esse banguezeiro/ reduzido a fornecedor;/
entra detrás deste,/ que agora é simples morador;/ detrás, o
morador/ que nova safra já não fundou (Idem p.134/135) . E,
como as corredeiras de um rio, essa gente desce veloz
para o mar, engrossando correntes e ganhando mais
afluentes: A gente das usinas/foi mais um afluente a
engrossar/aquele rio de gente/que vem de além do Jacarará.
(Idem p.135). Assim, os retirantes vão margeando os mares
de cana pela Várzea e por Caxangá, até a entrada no Recife
pelo engenho São Francisco. O narrador descreve o itinerário
das terras de Várzea: já em terras de várzea,/ está São João,
uma antiga usina./Depois se atinge a Várzea,/ a vila
propriamente dita, com suas árvores velhas (Idem p.135).
Faz também a descrição da velha e recolhida Caxangá, da
estrada dita Nova/ ou de Iputinga, que quase reta à cidade,
mas estas direções levam ao mar os retirantes rios e gentes
de todas as classes, que comungam o ideal de um mundo
novo, salvador.
A planície aterrada/ que desce os pés de Olinda/
até os montes Guararapes, vai ficando para trás, à direita. O
narrador retrata o cenário dos rios formando o Recife:
Os rios vão sempre atulhando./Com água densa de
terra/onde muitas usinas urinaram,/água densa de terra/e de
muitas ilhas engravidadas. (Idem p.136).
De Caxangá a Apipuco descreve a paisagem da
estrofe 44. O canavial com suas ondas ficou para trás; agora
é outro o verde . Folhas duras dominam o mangue e as
gentes que habitam a região vegetam sobre a lama preta,
cortando os capinheiros grosseiros. Mais uma vez se assiste/
à vitória, de dor maior,/ do brando sobre o duro, do grão
amassando a mó(...) que é a pedra dura/ furada pelo suor
(Idem p.137).
No seguimento 45, o rio ao sabor da própria
lentidão vai entrando no Recife pitoresco, sentimental,
histórico de Apipucos e do Monteiro, do Poço da Panela, da
Casa Forte, do Caldeireiro, de sant’Ana de Fora, de Sant’Ana
de Dentro.Desta forma, o rio enuncia o caminho de
Madalena.Na estrofe seguinte faz a seguinte descrição
poética: Um velho cais roído/e uma fila de oitizeiros/ há na
curva mais lenta/do caminho pela Jaqueira,/onde (não mais
está)/um menino bastante guenzo/ de tarde olhava o rio/
como se filme de cinema; (Idem p.137). Nesta estrofe, o rio
narrador descreve o que viu no encontro com o Recife e,
nesse retrato, fez sua narrativa fluir para o rio poético e
existencial de Manuel Bandeira, de nostalgias abissais e
“tristeza esparsa” de seu “Desencanto” (Bandeira,
1996,p.119). 273 Recife chegou para o rio que o atravessou
pausadamente, cheio de outros rios, lixos, vidas e mortes. E,
no 47º bloco, o eu poemático olha a cidade histórica com a
vaidade de um vencedor, mas faz uma apreciação crítica,
não muito favorável aos os casarões de escada para o rio:
todos sempre ostentando/ sua ulcerada alvenaria;/ todos
porém no alto/ de sua gasta aristocracia;/ todos bem
orgulhosos,/ não digo de sua poesia,/ sim, da história
doméstica/ que estuda para descobrir, nestes dias,/ como se
palitavam/ os dentes nesta freguesia (Idem p.137).
“As primeiras ilhas” são descritas no 48º segmento:
Rasas na altura da água/ começam a chegar as ilhas./
Muitas a maré cobre/ e horas mais tarde ressuscita/ (sempre
depois que afloras/ outra vez à luz do dia/ voltam com chão
mais duro/ do que o dantes havia) (Idem p.138). As ilhas vão
surgindo, nominadas ou não, concluídas ou inconclusas: Ilha
Joana Bezerra, do Leite, do Retiro e do Maruim.
“O outro Recife” tematiza a 49ª estrofe que
apresenta a cidade anfíbia, ausente nos guias turísticos, a
realidade das casas plantadas na lama negra (na enchente da
maré / elas navegam como ilhas) (Idem p.138). A lama negra
BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova
273

Aguilar, p. 119-120.
nesse Recife afoga os sonhos dos desafortunados e
retirantes que buscaram o mar e somente encontraram chão
de lama/ entre água e terra indecisa (Idem p.138), nesse
terreno que não é Canaã, nem Pasárgada, nem a ilha de
Robinson Crusoé.Porém, a tensão desta questão social foi
suspensa por enquanto. O narrador salta literalmente para
outros caminhos de seu discurso: Vou naquele caminho/que
pelo hospital dos Coelhos./ por cais de que as vazantes/
exibem gengivas negras,/ leva àquele Recife/ de fundação
holandesa (Idem p.138). Aqui, são citadas as pontes
portuguesas, o anúncios luminosos, o Palácio do Governo, o
caminho “Dos Coelhos ao cais de Santa Rita”, apresentado na
estrofe 50.
As seções 51 e 52 expõem a lentidão das águas
espessas do rio, águas pesadas de terra preta, de ilhas e dores
dos moradores daquele lamaçal. Na próxima estrofe, desfilam
os cais com seus sobrados ossudos (Idem p.139). O rio
parece parado de tanto peso e, por ele, parece passarem
muitos sobrados/ com seus telhados agudos (Idem p.139), os
armazém de açúcar do Brum, barcaças a caminho de
Itapissuma e Igaraçu. O mar finalmente desponta no cais de
Santa Rita, como enorme montanha azul (Idem p.139). Este
encontro com o mar foi acompanhado do reflexo de uma
imagem poética, que traduz o despertar do estado de
embriaguez e sonolência, um mundo de imaginações, para
uma realidade. Na primeira impressão, o mar de tanto azul,
é, no inconsciente, montanha, e só depois aparece a como
uma paisagem marinha de Recife que tanto inspirou
Joaquim Cardozo. Porém, esta pintura levou o discurso do
rio voltar à cidade tão cantada nos versos do matemático,
poeta e amigo Joaquim Cardozo. É preciso contar sobre
Recife: Tuas refeições de peixe;/ teus nomes / femininos:
Mariana; teu verso/ medido pelas ondas;/ a cidade que não
consegues/ esquecer/ aflorada no mar: recife,/ arrecifes,
marés, maresias (Idem p.80); como foi descrita num poema
do livro O Engenheiro, dedicado à engenharia verbal do
referido poeta daquela paisagem. A estrofe 53, o enunciador
explica que vai contar da cidade/ habitada por aquela gente/
(Idem p.140) que o acompanhou de quem foi confidente: Lá
pelo Beberibe/aquela cidade também se estende/ prefere se
fixar aquela gente/sempre perto dos rios/
(Idem p.140).
Da 53ª até a 58ª, o rio desfila sua experiência e
conhecimento a respeito dos rios da região e dos homens
que moram naquele espaço. O enunciador afirma que todos
os habitantes dali são seus conhecidos: rios e gente do
Agreste, da Caatinga,da Mata vomitada pelas usinas / gente
também daqui/ que trabalha nestas usinas,/ que aqui não
moem cana,/ moem coisas muito mais finas (Idem p.140).
Aqui, o eu poemático denuncia uma questão citadina: a
escravidão dos trabalhadores das fábricas.
Por meio da sua narração, o rio vai demonstrado a
intimidade entre ele e aquela gente: entro-lhes pela cozinha;/
como bicho de casa/ penetro nas camarinhas (Idem p.140). O
rio é amigo, é amante, é o defensor, é a voz dos que vivem
sob o avesso do Recife e desvela “As duas Cidades”.O
discurso do rio questiona, em poética voz, a história de um
Recife que não está nos livros, da sua metade pode/ que
com lama se edifica (Idem p. 141). Evidencia a cidade das
sombras, sem nome, mendiga, que, de outra qualquer
cidade/ possui apenas polícia./ Desta capital podre/ só as
estatísticas dão notícia,/ ao medir sua morte,/ pois não há o
que medir em sua vida (Idem p.141).
A voz poemática conclui a exposição enfatizando
seu conhecimento sobre essa gente que deságua nestes
alagados (Idem p.141). Segundo o rio, esse povo o
acompanhou desde a serra do Jacarará: gente que sempre me
olha/ como se, de tanto me olhar,/ eu pudesse o milagre/ de,
num dia ainda por chegar,/ levar todos comigo,/ retirantes
para o mar (Idem p.142).
“Os dois mares” dominam o assunto da penúltima
estrofe. O rio segue seu itinerário lentamente, como num
cortejo fúnebre, pausadamente vai filosofando sobre o
destino dos rios e daquele povo. O primeiro sempre alcança
o mar imenso; o segundo, é detido pelo mar de lama, sem
perspectiva, sem vida, num fim dolorido. O rio sofre as dores
dessa gente.
A voz narrativa conclui seu percurso. Entra agora
pelos caminhos comuns do mar (Idem p.142), avista barcos
e corre junto de barcaça e rios vindo de outros lugares. Deixa
para trás a gente desses alagados e, no discurso, sua
indignação, sua pergunta, concebida como uma substância
ou uma essência da linguagem artística. Essa interrogação
tem um caráter concreto uma vez que o rio o questiona a si,
num exame de consciência, numa constatação de um destino
comum dessa gente.
Por outro lado, a referida pergunta está marcada
por uma multiplicidade sêmica, já que pode ser dirigida a
alguém ou a ninguém; aos leitores, a todos que interessem
pela humanidade; ou evidencia a irrealidade da sua
materialidade por meio de uma conotação reflexiva. Maurice-
Jean Lefebve (1980) afirma que “a conotação reflexiva
insere-se precisamente nesta ambiguidade: dá-nos o discurso
como literário, logo, inseparavelmente, como matéria de
linguagem e realidade do mundo” (Idem p. 53). Pode ainda ir
além, e evidenciar “a sua natureza artificial e irreal
recorrendo a um processo manifesto: o do reflexo abissal”
(Idem, p. 54) expondo na própria imagem discursiva o
reflexo visível da irrealidade da sua criação: a linguagem
real do rio Capibaribe configura o espelho do discurso
literário do poema O rio.
Finalmente, nos quatro últimos versos, conclui:
Somente a relação/ de nosso comum retirar;/ só esta relação/
tecida em grosso tear (Idem p.143). Destarte, com maestria,
o rio cumpre a sua função: construir a narrativa e a história
desse mundo real sob o signo da arte da palavra.
Toda essa história narrada pelo eu poemático
compõe-se por uma sequência de situações vivenciadas pela
voz narrativa e de ações por este sujeito, implantadas num
certo espaço, durante um determinado tempo.
De início, o caráter ficcional pode ser percebido
uma vez que a voz anunciada pertence ao próprio rio
Capibaribe, constituindo-se portanto numa prosopopéia. As
situações vivenciadas pelo sujeito são as constatações
experimentadas durante percurso, da sua nascente até o
oceano, num jogo ficção x realidade. Este dualismo traduz
as duas faces desta narrativa, uma vez que o rio expressa
ficção e realidade ao mesmo tempo.
A realidade pré-existente do rio Capibaribe está nas
experiências do personagem ficcional. Desde a nascente do
rio, todos os espaços citados: a lagoa da Estaca,
Apolinário, Alto Sertão, estrada da Ribeira, Poço Fundo,
Couro d’Anta, estrada da Paraíba, riacho das Éguas, ribeiro
do Mel, terras de Limoeiro, Ilhetas, Petribu, o canavial, os
rios citados, o Tapacurá, as usinas e sua problemática, São
Lourenço, Ponte de Prata, Caxangá, Apipucos, Madalena,
primeiras ilhas, os cais de Santa Rita, as duas cidades
descritas. Estas paisagens e questionamentos formam a
verdadeira história do rio Capibaribe. Por outro lado, os
personagens dessa narrativa são rios e homens. Porém, estes
últimos não têm voz, são narrados pelo rio Capibaribe que,
por sua, vez insere uma ideologia de caráter revolucionário a
caminho do mar e de outras margens de vida. Entretanto, no
final os rios alcançam o ideal, chegam ao grande mar, mas os
homens ficam estacionados no mar de lama. A voz narrativa,
depois de contar sua odisséia, interroga sua participação e
ideologia neste fim de história e segue seu inexorável
caminho. Contudo, ao partir, narra a história dessa gente, por
meio da sua experiência poética e narrativa e, nesta
realização, revela a condição humana.
Esta ação praticada pelo sujeito poético, não possui,
evidentemente a eficácia e o interesse, nem a transparência
do discurso quotidiano. “O discurso literário não se dirige,
em geral, a nenhum interlocutor preciso: no limite, dir-se-ia
que ele se fala sozinho. Trata-se, ainda, de um sinal de
gratuidade” (Idem, p. 36). Por outro lado, o rio exprime a
difícil travessia do homem sertanejo e questões sociais e
históricas de Pernambuco e utiliza o próprio discurso para
falar sobre este mundo. Desta forma, a narrativa do rio
Capibaribe apresenta duas faces: Ficção – a prosopopéia x
Realidade – o mundo real do rio Cabiparibe.

3. Nível profundo

O poema O rio, do poeta pernambucano, não


ficou detido numa simples representação do mundo exterior,
numa espécie de cópia de um espaço histórico-geográfico. O
rio representa o Capibaribe, mas também conota uma visão
de mundo sobre a concepção da própria criação literária.
Destarte, ele transfigura um mundo real e, como tal, deixou
de ser apenas natureza, foi personificado, ganhou voz e
pensamento, para também ser traduzido numa
intencionalidade literária.
Esta intenção literária produz duas consequências
apresentadas por Maurice-Jean Lefebve em Estrutura do
discurso da poesia e da narrativa (1980). “A primeira, é que
esta linguagem se designa a si mesmo na sua materialidade e
que a obra se anuncia(e se denuncia) como obra de arte: toda
a linguagem literária é necessariamente figurada; ela é o
indício da sua própria materialização” (Idem p. 39). A esta
realização metalinguística, este autor chamou também de
conotação reflexiva que, segundo este crítico, consiste na
“propriedade que advém ao discurso através da intenção
literária, de se designar a si mesma enquanto discurso
literário, enquanto literatura” (Idem p. 39).
A segunda consequência vai de par com esta
materialização figurativa da linguagem. A obra chama para
si novas significações, numa opacidade e pluralidade de
interpretações. Esta polissemia abre possibilidade para uma
plurissignifação, inclusive, significar as coisas do mundo,
numa presença de um certo real que foi chamada de
presentificação.
O poema narrativo do rio Capibaribe enuncia a
denominada “conotação reflexiva”, quer seja pela
intencionalidade literária, ou em todo conjunto metafórico
que compõe espírito do texto artístico. O rio, é antes de tudo,
literatura. Porém, ao refletir-se, realiza a presentificação de
um espaço geográfico e humano real. Presentifica,
artisticamente, a história, a problemática econômica e social
da bacia do rio Capibaribe. Nesta criação, existe um
mecanismo denominado “realizante-irrealizante”, defendido
por Maurice-Jean Lefebve ao comentar a fascinante
posição da “imagem mental que parece ganhar uma certa
consistência e dá a impressão de estar prestes a “realizar-
se”(Idem, p. 12). E que, aplicado ao contexto do poema O
rio, esse jogo entre o real e o imaginário é expresso no
discurso da voz que enuncia uma verdade presente na bacia
do Capibaribe. Todas as paisagens e todos os problemas
formam a mais pura realidade e vivência. É história, ciência,
verdade. No entanto, este real, torna-se irreal, quando narrado
por um sujeito que é, artisticamente, o próprio Capibaribe.
Este personagem principal, narra poeticamente a história
de heróis, dos rios e dos homens, seus companheiros
retirantes, aventureiros.O rio representa uma espécie de
Ulisses, vive sua odisséia imaginária e ao mesmo tempo
real, num jogo “realizante-irrealizante” construtor de
efeitos fascinantes, só encontrados no mundo da arte.
Estes efeitos são estabelecidos por níveis diversos
e complexos mecanismos, o que provoca na obra literária
um caráter de “duplo movimento: o primeiro, denominado
centrífugo e pelo qual ela se abre ao mundo exterior e aos
seus problemas e o segundo, centrípeto, tende , pelo
contrário, fechar a obra sobre si mesma, a constituí-la como
seu próprio fim e como seu próprio sentido” (Idem, p. 14).
Na obra O rio, a constituição desse duplo
movimento pode ser comprovada. Quando o discurso
literário levanta as questões sociais do Nordeste,
especialmente os problemas sofridos pela população
ribeirinha do Capibaribe e regiões vizinhas, a obra produz
um movimento centrífugo: levando os problemas da realidade
à tona, num retrato realista. Nesse momento, a voz
poemática deixa de lado a questão essencial da literatura e
faz um desvio, aparente, do centro da questão do artístico.
Neste movimento, o rio expõe o questionamento sobre a
realidade humana daquela região, faz uma denúncia das
condições de vida miserável e da escravidão que apodrecem
aqueles homens: E vi todas as mortes/em que esta gente
vivia:/via a morte por crime,/pingando a hora na vigia;/
(Idem p.132/133).
Por outro lado, quando o discurso do rio usa o
mundo real, apenas como um ponto de partida, para pensar na
própria essência e no ser da arte, está diante do movimento
centrípeto. Nesse momento, a arte é manifestada como o
centro da existência do discurso do rio que dobra sobre si
mesmo, em puro objeto de linguagem.É o instante
denominado de materialização.
O discurso do rio Capibaribe traduz toda uma
dialética em tono da criação literária uma vez que na
semântica fundamental do seu discurso , partindo do mais
concreto para o mais abstrato foi constatado que existe um
jogo dialético entre Rio Capibaribe x Rio poético, História x
discurso, Real x imaginário, Ciência x arte, Linguagem
eficaz ou interessada x linguagem gratuita, Significado x
Significante, Denotação x conotação, Transparência x
opacidade, Movimento centrífugo x movimento centrípeto,
Presentificação x materialização, Intencionalidade de
comunicação (denúncia) x intencionalidade literária,
Conteúdo x forma, Coletivo x individual.
Sobre esse tema Lefebve (1980) argumenta que “a
literatura é precisamente o campo dialético que se desdobra
entre estes dois pólos, entendendo por dialética o fato de que
nenhum destes pólos existe separadamente, que um é
necessariamente a condição do outro, e que a materialização
e a presentificação estão numa estreita relação de
solidariedade: são elas que, no espaço assim aberto,
constituem a imagem” ( Idem p. 47).
Nessas constatações sobre os elementos de análise
desse discurso, o rio produz uma questionamento essencial,
que está numa categoria ainda mais abstrata do que a
dialética apresentada: o motivo que levou a voz poética
encarnar-se em rio. E esta causa realiza um prazer inerente à
arte moderna, uma vez que, nessa prosopopéia, o prazer
artístico triunfa sobre o humano, num processo denominado
de “desumanização”. “Esta se manifesta no abandono de
estados sentimentais naturais, na inversão da ordem
hierárquica, antes válida entre objeto e homem, deslocando
agora o homem para o degrau mais baixo e na representação
do homem partindo de um prisma que o fez parecer o menos
possível com o homem” (Friedrich, 1978, p. 169). 274
Fundamentado nestas observações pode-se dizer que nessa
obra, O rio, está solidificada a simulação de uma renúncia
ao humano. Contudo, esta desumanização aqui presente
constitui-se na renúncia do discurso humano, ou seja, àquela
fala que constitui o instrumento da elite que se apossou
das coisas e dos seres humanos para destruí-los em proveito
próprio. Por esse motivo a arte se consubstancia no rio
Capibaribe, O cão sem plumas, rio viajante, indigente,
proletário, único ser capaz de ouvir o discurso dos outros
rios, também operários, ouvir as dores daquele mundo de rios
indigentes e homem desumanizados pela usura e pelo poder
que a máquina afirma lhes proporcionar.
O rio, com o seu silêncio e harmonia, passa a
representar um sábio poeta que não pertence ao mundo dos

274
FRIEDRICH, H.A Estrutura da Lírica Moderna. Trad. Marise N.
Curioni, S. P. Duas Cidades, 1978.
homens e, por isso, está isento de responsabilidades e críticas
da realidade. E, no posto de sua margem, isenção e arte, O
rio pode contemplar o mundo poética e filosoficamente. De
sua contemplação nasceram os versos do seu discurso-rio,
nos quais a voz poética exprime o desacerto do mundo por
meio das marcas estilísticas de seus versos, que refletem
sobre própria construção literária.
O nível discursivo desse trabalho artístico
evidenciou a irregularidade métrica dos versos do poema.Tal
irregularidade metaforiza toda a disjunção de um mundo
caótico e desumano observado por esse rio-poeta-filósofo.
Ora, como poderia esse poeta expressar, por meio de versos
marcados pela regularidade, ações e realidades tão estranhas
e inconcebíveis para os olhos humanos? Qual seria a melhor
maneira para exprimir em versos a desumanidade do próprio
homem? Com certeza, o nosso rio-poeta-filósofo e, ao
mesmo tempo, a própria arte em sua plena realização,
transfigurou, com coerência, as imagens inusitadas que
contemplou. Daí nasceu essa prosopopéia que, no seu
estranhamento próprio da arte, presentifica uma realidade que
poderia ser estranha se não fosse tão real. Tal concepção
conduz ao célebre questionamento, a vida imita a arte, ou a
arte imita a vida. Da primeira assertiva está patente um
princípio certo e verdadeiro, a vida talvez seja muito mais
estranha do que a arte. Por isso, as imagens aparentemente
inusitadas do poema O rio exprimem o estranhamento do ser
da arte, que não se presta a uma simples imitação da
realidade, tem sua autonomia e singularidade. Ela existe e
basta. Cabe ao homem, que se diz humano, contemplá-la e,
neste encontro, resgatar sua humanidade perdida no deserto
de sua modernidade imaginada e cheia de poder e
conquistas. Quem sabe nesse encontro, o homem perceba que
a sua maior vitória está dentro do seu próprio rio existencial,
e que este talvez seja também um Capibaribe a cantar
versos irregulares de uma desumanidade perdida? Neste
reflexo o homem pode ter salvação e nem tudo está disperso.
Entretanto, torna-se necessário esse mergulho no
discurso-rio da linguagem para que se descubra este rio
inexaurível do ser do qual Nietzsche escreve que “ninguém
pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar,
para atravessar o rio da vida – ninguém, exceto tu, só tu.
Existem, por certo, atalhos sem números, e pontes, e
semideuses que se oferecerão para levar-te além do rio; mas
isso te custaria a tua própria pessoa; tu te hipotecarias e te
perderias. Existe no mundo um único caminho onde só tu
podes passar. Onde levas? Não perguntes, segue-o”
(Nietzsche, F. 1950, p. 608). Desta forma, O rio de João
Cabral de Melo Neto nos 960 versos procede por meio de
raciocínios imagéticos toda uma metáfora viva da existência
do homem e da natureza em geral. Na fala proferida para o
ser humano, o rio o conduz a uma reflexão sobre todas as
coisas e, como um filósofo, mostra as verdades de forma
abstrata e concreta. Cabe aos homens efetivar essa
conscientização.
.

4. O CÃO SEM PLUMAS

O discurso do rio constitui a matéria objetivada em


O Cão Sem Plumas (Idem p.105). O eu poético, ao
descrever o rio, apresenta imagens como se estivesse de
posse de uma lente ou de um instrumento óptico a ser
voltado para o objeto da observação. Nessas imagens, as
formas vão sendo oferecidas cinematograficamente, uma
vez que a capacidade da informação visual é muito mais
ampla do que aquelas transmitidas ou assimiladas pelos
outros sentidos.
O poético em O cão sem plumas apresenta um sistema
de leitura visual da forma do objeto por meio de
semelhança, simetria, contrastes: movimento x
passividade e ritmo.
O poema formado por quatro blocos ou partes,
apresenta as duas primeiras com a mesma denominação:
“Paisagem do Capibaribe”; a terceira traz o título de
“Fábula do Capibaribe” e a última, “Discurso do
Capibaribe”. A primeira é constituída por 15 cenas ou
quadros, a segunda por 13, a penúltima por 14 e o
último conjunto de imagens possui 9 cenas.
Descortinando as cenas iniciais da paisagem do
Capibaribe aparecem analogias que visualizam as relações
de semelhança entre coisas que têm alguns traços em
comum - o contraste/ passividade x movimento:
§ A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro
uma fruta
por uma espada.
(Idem p.105)

Os objetos observados virtualmente: cidade, rua e


fruta representam a passividade, definida como o estado
natural de um ser que sofre uma ação sem reagir, é inerte e
submisso, não toma parte ativa, não exerce ação. Do outro
lado, o rio, o cão e a espada simbolizam o contraste por
movimento, que cria a sensação de mobilidade e rapidez.
As sensações de movimento são acontecimentos que se
dão em sequência, através de estimulações momentâneas,
registrando uma mudança do estado estático. Nesse
aspecto, as palavras cidade, rua, fruta figuram aquele
ambiente de aparência inerte e sem muita vida. O
movimento inerente ao rio, cão e espada vivifica a
paisagem, acionando o discurso do seu conteúdo imaginal.
De acordo com Susanne Langer (1980):
Aquilo que chamamos de movimento na arte
não é necessariamente mudança de lugar, mas é
a mudança tornada perceptível, isto é,
imaginável, de alguma maneira. Qualquer coisa
que simbolize a mudança de modo que a nós nos
pareça está-la observando, é o que os artistas,
com mais intuição do que convenção chamam
elemento “dinâmico”. (Langer, S. (1980) p.
70) 275
A dinâmica é uma ilusão e uma forma de dar vida e
sentidos a uma realidade estática. O movimento atrai a
visão para a superfície que ele adorna. Diante do que foi
apresentado, o rio, o cão e a espada vão compor um
artifício visual para expressar com certa “estranheza”,
“transparência”, ou ainda, “autonomia”, um ambiente
mundano. Para criar a impressão de “alteridade” diante da
realidade, o eu lírico registra imagens marcadas por um ar
de ilusão, como se estivesse entre o sonho e a realidade.
O discurso do eu poético apresenta sua visão sobre a
cidade e o rio, numa posição de quem sobrevoa aquele
espaço geográfico e, de cima, vê as imagens. A visão se
275
LANGER, Susanne, K. Sentimento e Forma. Trad. Ana M. Goldberger
Coelho e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1980.
consubstancia numa imaginação formal na qual, a cidade,
a rua e fruta (símbolos referentes a elementos estáticos)
são passados pelo rio cachorro, espada, (símbolos
referentes a elementos dinâmicos) obedecendo a um
estado contíguo, numa proximidade imediata e uma
vizinhança sêmica e proporcional. A cidade (dimensão
maior) é passada pelo rio (dimensão maior); a rua
(dimensão média) é passada por um cachorro (dimensão
média); a fruta (dimensão menor) é passada por uma
espada (dimensão menor).
Maria Lúcia Pinheiro Sampaio, em sua
tese sobre os Processos retóricos na obra de João Cabral
de Melo Neto (1978), 276 tendo como suporte uma
terminologia e uma conceituação adquirida na abordagem
da Linguística, faz uma explanação sobre os principais
recursos retóricos utilizados por Cabral. Seu trabalho,
estruturado em três partes, acompanha a classificação das
figuras confiada ao Grupo de Liège. Na parte, nomeada
por metassememas, a autora explicitou vários estilos de
metáforas, a prosopopéia, a imagem e o símile. Embora, a
proposta deste estudo não seja, necessariamente a análise
dos processos retóricos, nesta investigação sobre o objeto
do olhar em O cão sem plumas, estão sendo valorizados
alguns procedimentos de construção da metáfora que dão
suporte à imaginação formal.
Este processo conduz ao exame do próprio conceito
da metáfora do grupo de Liège, (citado por Maria Lúcia
Pinheiro, 1978) que parte das teorias de Pottier e Greimas
para conceituar a metáfora como uma modificação do
conteúdo sêmico e não uma simples substituição de
276
SAMPAIO, Maria Lúcia Pinheiro. Processos Retóricos na Obra de
João Cabral de Melo Neto.Assis, São Paulo : ILHPA-HUCITEC, 1978.
sentido. Esta modificação resulta da conjunção de duas
operações básicas: adição e supressão de semas. Destarte,
a metáfora é composta por um termo de partida (R), um de
chegada (E) e um intermediário (C, H e F) que marca a
interseção entre os dois termos. No poema em análise esse
procedimento metafórico pode ser esquematizado da
seguinte forma):

Cão (C)
Homem (H) Espada
Rio (R) Fruta (F) (E)

O Rio é o primeiro comparativo dessa travessia, logo


é o ponto de partida (R); A espada aparece na última
comparação, é o termo de chegada (E); Entre comparação
da passagem do rio e a passagem da espada por dentro da
fruta, um cachorro (homem) passa pela rua. Neste centro
de convergência, na passagem do meio, mora a metáfora.
Desta maneira, o cachorro que, ao mesmo tempo, reproduz
a ideia do rio e do homem, retrata também a imagem da
espada que corta e fere mortalmente, descortinando aquela
matéria/ objeto do olhar dos donos do poder. Essa
intrincada construção imagética representa a metáfora e a
imaginação formal que, alquimicamente, na ótica do
poético, funde os semas do rio, ao cachorro, ao homem, à
espada, ao discurso, ao olhar de quem tem sensibilidade.
Por conseguinte, entre o rio e a espada está a
metáfora, isto é, todas as semias do cão sem plumas e suas
alusões, trazidas pelos símiles:
§ O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
§ Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
(Idem p.105)
Este comportamento metafórico exercitado nessa
construção literária denomina-se - metáfora “in absentia”.
Tal designação é motivada pelo fato de aparecer, afastando
do correspondente, no código, o termo substituinte ou
irreal, isto é, aquele que sofreu modificações na estrutura
sêmica. Essa metáfora é chamada também de “pura” ou
“de primeiro grau”, ou ainda a verdadeira. Assim, segue-se
as teorias do grupo de Liège, quando este teórico garante
que “uma metáfora, por exemplo, somente é percebida
como metáfora, quando ela remete ao mesmo tempo ao
sentido próprio e ao sentido figurado e portanto é
realmente a relação norma-desvio que constitui o fato de
estilo e não o desvio como tal.” (J.Dubois et alii, 1980, p.
22). 277 Sobre a redução desse desvio Jean Cohen (1969)
nos lembra que:
A metáfora não é o desvio, mas surge da redução
deste. A norma e a redução do desvio se situam
no plano paradigmático, ao passo que o desvio
em si está no plano sintagmático. A
impertinência de sentido criada pela metáfora é
uma violação do código, que resolve esse
impasse, reduzindo a impertinência e se
reestruturando, ao aceitar que o lexema
provocador do desvio modifique sua estrutura
semântica, passando do sentido próprio (dado
pelo código) ao sentido figurado (criado pelo
autor). (p. 127). 278
Partindo dos preceitos apresentados sobre a metáfora,
pode-se afirmar que o rio Capibaribe, pela relação
analógica dos traços comuns entre um pobre animal,
lembra a língua mansa, o ventre triste, os olhos de um cão
sem plumas, que nada sabia da chuva azul, / da fonte cor-
de-rosa, / da água do copo de água / da água do cântaro /
dos peixes de água, / da brisa na água (Idem p.105); ou
ainda, um indivíduo que foi zoomorfizado, niilizado, que
perdeu a essência:

§ Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
(...)
277
DUBOIS, Jacques et. al. Retórica da Poesia. Trad. de Carlos Felipe
Moisés. São Paulo: Cultrix, 1980.
278
COHEN, Jean. A Plenitude da Linguagem ( Teoria da Poeticidade).
Trad. José Carlos Seabra Pereira. Coimbra: Livraria Almedina, 1987.
§ Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
(...)
§ Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.
(p.109/110)
O termo rio foi modificado “in absentia”, baseado na
semelhança dos semas conotativos entre o termo
modificado e o substituído: Aquele rio / (...) Sabia dos
caranguejos / de lodo e ferrugem. / Sabia da lama / como
de uma mucosa. / Devia saber dos polvos. / Sabia
seguramente / da mulher febril que habita as ostras (Idem
p.105). Na redução do desvio o termo substituinte sofre
supressão de quase todos os seus semas nucleares,
substituindo-os pelos semas do termo substituído.
Considera-se, portanto, de um lado - o rio; do outro, a
espada e, no centro, o cão sem plumas - o homem, que é
ao mesmo tempo, o rio e a fruta.
O rio corta uma paisagem que, no poema, é
representada pelas partes Paisagem do Capibaribe I e
Paisagem do Capibaribe II. Depois, tem a “Fábula do
Capibaribe” na qual se observa a cena que a cidade é
fecundada / por aquela espada (p.111). Em seguida, “O
discurso do Capibaribe” evidencia os estados de
consciência ou movimentos interiores daquela metáfora
viva que pode ser reconhecida inicialmente pela
visualização do seguinte quadro:
A norma (plano paradigmático) – no nível do código
Sememas Semas nucleares Class Semas conotativos
emas
Cão Mamífero animado despojamento
(Ter quadrúpede, animal miséria
mo
substi carnívoro material concreto pobreza
tuinte domesticado fidelidade
)
desprezado desprezo
Diabo
sem (Pluma) adorno inanimado material concreto
(Sem plumas)
plum
as de aves. ausência,

(term Pena de exclusão,


o escrever. falta,
substi privação,
tuinte Flâmula. negativa
)
Cabos náuticos. (de calor,
Macio ou fofo. humanidade,

Algodão riqueza)
Estr inanimado despojamento
utur
Paisa a material miséria,
gem físic pobreza
do concreto
a fidelidade
Capib
aribe de desprezo
I uma
(term
o pais
modif age
icado m
) mar
cada
por
mis
éria,
lodo
e
lam
a.
Paisa Estr inanimado despojamento,
gem utur
II. a material miséria,
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Rio- Narr inanimado despojamento


Fábula do aço
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A redução do desvio (plano paradigmático): A metáfora

Semema Semas Classema Semas


s nucleares s conotativos

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Essa mudança de sentido ou redução do desvio, no qual se


restitui à figura sua unidade profunda, se consubstancia na
imagem de um cão sem plumas, porque no plano
paradigmático os semas nucleares aludem para uma
paisagem, uma fábula e um discurso e, concomitante, os
semas conotativos conduzem para significações que
encaminham para o despojamento, a miséria, a pobreza, a
fidelidade, propriedades inerentes a um animal dessa estirpe.
Entre os semas nucleares e os conotativos, o cão expressa
a essência daquele ser que desconhece o que há de belo ou
bom na natureza, como chuva azul ou a fonte-cor-de-rosa
(p.105). Somente sabe do mundo cão dos caranguejos / de
lodo e ferrugem (p.105), por exemplo. O cão sem plumas
expressa a forma daquele mundo que:
§ Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespas
como um negro.
(Idem p.106)
A forma aqui assenta o significado que Bergson
conferiu a essa palavra, como sendo “um instante de uma
transição”, ou seja, uma espécie de imagem intermediária
da qual se aproximam as imagens reais em sua mudança e
que é pressuposta como “a essência das coisas”. Nicola
Abbagnano (1998), a respeito dessa concepção de forma
acrescenta que esse raciocínio de Bergson “aproxima-se
do sentido com que essa palavra é usada por Hegel, como
”totalidade das determinações”, que é a essência no seu
manifestar-se como fenômeno ( Enc., § 129). Nesse
sentido, forma é o modo de manifestar-se da essência ou
substância de uma coisa, na medida em que esse modo de
manifestar-se coincide com a própria essência”.(Op.Cit.
Nicola Abbagnano (1998) p. 469).
As formas da paisagem do Capibaribe foram abstraídas e
liberadas de seus usos comuns para serem colocadas em
novos usos. Agora agem como símbolos, tornam-se
expressivas ao sentimento humano. A primeira paisagem
levanta a bandeira do social; a segunda e terceira partes
trazem a insígnia do histórico / social e, a última, do
discurso do rio e da poesia. Como numa representação dos
quatro pontos cardeais ou dos quatro elementos do mundo,
o quaternário marca o espaço e o tempo daquele objeto do
olhar: visto, alegoricamente, sob ótica de um sentimento
animado por um mamífero quadrúpede, carnívoro,
domesticado, desprezado, um pobre diabo, um cão sem
adorno, reduzido ao nada, aniquilado, absolutamente
descrente.
O vocábulo pluma, inicialmente, significa adorno de
aves, mas, possui denotativamente outros significados,
entre eles: pena de escrever, flâmula, cabos náuticos,
macio ou fofo, algodão. No plano conotativo, entre os
vários sentidos, pluma significa riqueza, calor, presença;
“sem plumas” representa ausência, exclusão, falta,
privação, niilismo, negativa (de calor, de humanidade, de
riqueza). Na redução do desvio, o termo substituinte
tomou a forma da estrutura física de uma paisagem
marcada por miséria, lodo, lama e dor de um ser que
perdeu sua essência, que foi esfacelado pelos desacertos
do mundo. Essa situação trágica transforma-se em uma
narração imaginária e artificiosa sobre a cidade, para por à
vista o próprio discurso e o ser do rio.
Conforme o exposto, O cão sem plumas tem essa
função de transmitir a forma, a essência ou substância
daquele universo do rio Capibaribe. Em toda a primeira
parte da paisagem I, essa forma é reiterada sob a égide do
social e existencial do rio como expõem, por exemplo, as
seguintes imagens:
§ Liso como o ventre
de uma cadela fecunda
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.
(...)
§ Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas,
fluíam como as ondas
densas e mornas
de uma cobra.
(Idem p.106)

O aspecto social e o espaço físico e


ontológico do presente são mesclados ao passado histórico
do rio:
§ Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
algo da estagnação
do hospital, da penitenciária
dos asilos, da vida suja e abafada/
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.

§ Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo de estagnação
das árvores obesa
pingando os mil açucares
das salas de jantar pernambucana
por onde veio arrastando.

§ (É nelas,
mas de costas para o rio,
que “as grandes famílias espirituais” da cidade
chocam seus ovos gordos
de sua prosa./...).
(Idem p.107)
Aqui estão reiterados os aspectos da negatividade
que não aparecem explicitados na história dos cartões
postais ou guias turísticos. Este rio representa uma
realidade velada, porque não interessa às salas de jantar
pernambucanas/ (...) às grandes famílias espirituais (p.
107), como ironicamente foi exposta a nobreza
pernambucana.
Na “Paisagem do Capibaribe II”, o elemento humano
é fundido ao rio e ao cão. Aliás, o cão é metáfora do
homem que, desprovido de ser e linguagem, tornou-se o
objeto do olhar do eu poético. E, nesse conjunto ritmo e
imagético dessa paisagem de anfíbios / de lama e lama
(p.108), cada verso flui como as águas pesadas do rio,
como o andar dolorido do cão, refletindo a cada passo, a
cada ritmo de reiteração cheia de intensidade e desvios. Os
versos vão ora oscilando, ora fazendo uma parada num
momento de reflexão, obrigando o pensamento a voltar
sobre si mesmo para examinar o seu próprio conteúdo:
§ Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.

§ Um cão sem plumas


é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).
(Idem p.108)
A repetição das fatídicas assertivas produzem uma
carga de intensidade e dor e, citando Cohen (1987), “soa
como um dobre a finados” (Idem p.211). Entre o silêncio
de um verso e outro, de uma estrofe e outra, as imagens do
rio, do cão, do homem, da fruta e da espada se misturam
na paisagem do rio / difícil é saber / onde começa o rio; /
onde a lama/ começa o rio; / onde a terra / começa da
lama; / onde o homem, / onde a pele / começa da lama; /
onde começa o homem / naquele homem (Idem p.110).
Deste jogo imagético, nasce a “Fábula do Capibaribe”.
Além das imagens refletidas nas descrições, o
discurso agora, traduz as alegorias que, vertidas de
reflexões, contam histórias e lendas daquela cidade
guerreira: o Recife, a rocha escarpada à beira do mar; o
rochedo ou grupo de rochedos nas proximidades da costa
do mar e à flor da água e das revoluções. A rocha-capital
de um Estado ostenta a bandeira usada na Revolução de
1817. Este estandarte é formado pelas cores azuis e
brancas, adornadas pelo arco-íris, uma estrela, o sol e uma
cruz. O arco-íris significa a união dos pernambucanos. O
azul simboliza o céu e o branco o estado, a paz. O sol
representa a força do estado, a fé na justiça. Na magia das
imagens poéticas, o rio tornou-se um cachorro/ homem,
num mundo cão. Nessa representação, o mar surge como
uma bandeira/ azul e branca/ dobrada/ no extremo do
curso/ - ou mastro - do o rio (Idem p.111) que pode ser
quando detentor da espada da bravura do verbo criador.
“A espada possui duplo aspecto destruidor e criador.
Ela é símbolo do Verbo, da Palavra. O khitab
muçulmano costuma segurar uma espada de madeira
durante sua predicação; o Apocalipse descreve uma
espada de dois gumes a sair da boca do Verbo. Esses
dois gumes relacionam-se ao duplo poder. (...) A
espada está também relacionada com a água e como
dragão: a têmpera é a união da água e do fogo;
sendo o fogo, a espada é atraída pela água”.
(Chevalier & Gheerbrant, 1990, p. 392).
Nesse sentido, a força do rio está no seu discurso que
faz história de vitórias e ações. Apesar de seus feitos, o rio
é dominado pelo mar. Aquele representa a fonte, a água;
este a força do dragão:
§ o mar com seu incenso,
o mar com seus ácidos,
o mar e boca de seus ácidos,
o mar e seu estômago
que come e se come,
sua carne
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alçando
à custa de sempre dizer
a mesma coisa,
o mar e seu puro
professor de geometria.)

§ O rio teme aquele mar


como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta.

§ Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.

§ Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta.
(Idem p.112/113)

O mar significa o dragão que destrói e, como tal, pode


simbolizar também a espada que corta a fruta, que corta o
rio que se detém / em mangues de água parada. / Junta-se
o rio / a outros rios / numa laguna, em pântanos / onde,
fria, a vida ferve. //... Juntos todos os rios / preparam sua
luta / de água parada, / sua luta / de fruta parada (Idem
p.113). Os rios exibem a força do verbo criador que, com
o seu poder de ação, discorre sobre as suas vidas de rios
refletidas nos homens: cães sem plumas, frutas que são
cidades, todos eles fecundados pelas dores do mundo, pela
espada da miséria e do poder que violenta a humanidade.
Desta maneira, o rio atua como um ator coletivo, como
um herói que exprime o discurso do seu povo. E a força
desse discurso do rio se evidencia no contraste provocado
pelo contato da espada com a fruta: A mesma máquina/
paciente e útil / de uma fruta; / a mesma força / invencível
e anônima / de uma fruta / - trabalhando ainda seu açúcar
/ depois de cortada (Idem p.113). A poeticidade do
discurso do rio, não está na descrição da bandeira do mar,
mas do encontro do rio com o mar, no ludismo linguístico
cheio de imagens e polissemia e, ainda na conformidade
de semas entre o rio, o cão, a fruta, a espada enfim, o
homem, não apenas de Pernambuco, mas de qualquer ser
humano marcado pela ausência de tudo, inclusive do
próprio ser. No olhar do eu lírico perpassa a fábula do
Capibaribe, transmitida em forma da linguagem poética,
por meio do discurso do rio.
Na quarta parte, intitulada “Discurso do Capibaribe” o
rio adquire um movimento lento e dolorido quando
encontra os mangues estacionados como enorme fruta
madura. Dominando a espada do verbo, o rio poético, o
cão sem plumas, também representação do homem, toma
várias formas e, como a vivacidade do reflexo do sol sobre
as águas, torna-se um demiurgo e onipresente. O Rio está
na memória / como um cão vivo / dentro de uma
sala /...Como um cão vivo / debaixo dos lençóis, / debaixo
da camisa, / da pele (p.114). O rio é linguagem poética e
por isso tem a energia de uma metáfora viva que flutua
entre o real e o imaginário. Por ser real, sua liquidez não é
completa, não corre plenamente pelo mundo dos sonhos.
Por isso é espesso, corre devagar como o tempo, uma
maçã, um cachorro, um homem (p.115). A vida corre
como o rio, espesso; o sangue do homem também é
espesso; e ainda, a paisagem, as ilhas negras de terra
(p.116) são espessas.
A realidade tem a natureza, pétrea, condensada,
severa, a arte não. Ela tem a fluidez das águas, do sonho,
corre levemente por mundos inimagináveis. A arte, como
o sonho, vive o mundo do imaginário e cria nele um
mundo autônomo, auto-suficiente para criar uma ilusão do
real, mesmo espesso. Porém, a fluidez das águas do
discurso poético conduz o mundo real para uma
ponderação sobre as vicissitudes causadas pelos
pedregosos caminhos construídos pela própria
desumanidade.
O discurso do rio em O cão sem plumas está nessa
intrincada rede de metáforas, de imagens que fluem como
as águas de um rio, mesmo, como o Capibaribe na sua
travessia final: espesso, lento, triste. Mas, desde a primeira
vista, o discurso se enuncia nos versos irregulares, de
aparência livre que, ora numa fluidez harmônica se tornam
mais curtos, ora se alongam mansamente, parte por parte,
seção por seção, discurso por discurso, parágrafo por
parágrafo, pontuando suas reiteradas pausas e reflexões.
Enquanto isso vai tecendo sua rede de metáforas, que
aparentam correntes de água ou onda, jogando imagens,
numa brincadeira séria que evoca a vida com seu ritmo
cadente e pausado e contínuo.
Diante do que foi afigurado, esse poema analisado
expressa o rio, a paisagem, o homem, enfim a realidade,
mas também a plenitude da linguagem poética. E, como
metáfora, O cão sem plumas não deixa seu discurso de rio/
homem estacionar como a água parada, com uma rua, ou
uma fruta, corre para outras margens, entre pelo mar/
dragão levando imagens e símbolos com alto grau de
sentidos e, na sua fala, constrói um mundo de imaginação.
Porém, de sua irrealidade, aciona sua objetiva como uma
espada que atravessa uma fruta, ou um rio que corta a
paisagem, ou cão que corta a rua, fluindo num movimento
que desvela um espaço pré-existente, com sua história:
enfim, desvenda as dores daquele mundo. Por meio do
olhar de uma observação poética, um cenário real adquire
um contexto literário e uma outra existência se realiza,
agora com mais “auto-suficiência” e uma irrealidade/ real
que perturba e delicia, que fere e cura, que chora e
acalanta, numa unificação estranha, um tanto insólita mas
que presentifica e transfigura uma realidade.
Diante de todas essas assertivas, pode-se concluir que
O Cão Sem Plumas, este objeto do olhar, pode ser
contemplado sob quatro visões:
Na primeira está inserida a ontologia: o rio
Capibaribe em si. O cão sem plumas marcado pela
estrutura física de uma paisagem estigmatizada pela
miséria, pelo fogo, pela lama e pela dor. Neste caso, o rio
Capibaribe traduz a posição de um ser que tem sua
negatividade dissimulada nos atrativos do mapa turístico
da Capital de Pernambuco. O rio, objeto deste olhar, tem
semelhança com um cão, uma animal pobre e desprezado
pelos olhos dos poderosos que são insensíveis à realidade
do rio e transmite um falso retrato para atrair mais lucro e
influência. Esse rio, enquanto ser, vai reproduzir como a
fluidez de suas águas todo um tecido de imagens que já
estão condensadas na primeira estrofe, como num
processo de passagem do estado gasoso ao líquido. Desse
modo pode-se dizer que toda a organização do rio (o
discurso do poema) começa a fluir na primeira estrofe.
A partir de então, pode-se afirmar que, na segunda
visão, o rio representa a metáfora do homem
marginalizado pelas negativas de humanidade, condições
de uma vida digna, justa, sem discriminação. Este homem
é também um cão sem plumas que reside na lama do rio e
da sociedade.
Na penúltima visão, este rio Capibaribe, que
representa também o homem (objeto do olhar similar ao
rio que corta a cidade) exprime ainda a própria
coletividade: a cidade, a rua , as casas, as frutas. Aqui,
existe toda uma intrincada coletividade que forma uma
rede ações metafóricas, pois da mesma forma que a
cidade é passada pelo, a rua é passada por um cachorro/
uma fruta/ por uma espada (p. 105). Em cada sucessão de
acontecimento, o poema realiza uma corrente a fluir
imagens que vão transmitindo a correnteza do rio
Capibaribe, que enquanto toda a cidade se movimenta
vagarosamente, ele também se anima com a mansidão do
amadurecimento de uma fruta que vai ser cortada pelo
mar/ espada. E, neste encontro acontece a tensão das
forças entre o rio e o mar(espada/ dragão), o jogo entre a
vida e a morte. Estas forças opostas vão produzir uma
transcendência e gerar o poético, o que nos lembra duas
afirmações de Jean Cohen (1987) “O significado poético é
totalitário. Não tem oposto. (p.113) e “É poético o
ilimitado. Como tal, invade o espaço e expulsa qualquer
negação fora do campo do seu aparecer” (Jean Cohen
(1987)p.239). Assim, o discurso do rio, como um herói
coletivo, vence as forças opositivas do mar, isto é, todas as
dificuldades da passagem para o poético. Finalmente,
domina o mar da linguagem e alcança a plenitude da arte
da palavra.
Assim, esse estado de poeticidade plena conduz à
quarta visão que o olhar pode perceber: o rio como
existência, que no encontro com o mar transforma-se
numa fruta, passada por uma espada do grande dragão.
Neste caso, essa existência traduz também toda uma rede
de relações metafóricas, ou seja o destino do rio
Capibaribe, do homem, da coletividade e da linguagem
poética. Esta última, transfigura e dá voz, por meio do seu
discurso metafórico, a todo este mundo representado em
forma de rio, ou seja de um cão sem plumas. Destarte, esta
quarta parte que remete à plenitude existencial do
nascimento ou do pré-nascimento da fruta que caminha
contra a espada (morte) e, neste embate, encontra
finalmente a essência da poesia (a vida), o mar da
linguagem e da plurissignificação: a plenitude da
linguagem poética.

5. Imaginação material

Gaston Bachelard (2002) acredita “possível


estabelecer, no reino da imaginação, uma lei dos quatro
elementos, que classifica as diversas imaginações
materiais conforme elas se associem ao fogo, ao ar, à água
ou a terra” (Bachelard, G. (2002) p. 4). 279Ademais, afirma
ainda que toda poética deve receber componentes de
elementos materiais, fundamentais para poesia. O texto

BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos. Trad. Antonio de Pádua


279

Denesi. São Paulo: Martins Fontes, 2002.


poético precisa encontrar sua matéria, isto é, seu elemento
material que lhe proporcione sua substância.
Na obra cabralina, esses quatro elementos materiais
estão presentes. Todavia, a terra e a água são
materializadas ao longo da poética desse artista da palavra.
A reiterada referência à pedra, põe em evidência sua
inquietação sobre o caráter de firmeza calma, densidade e
condensação que deve possuir a poesia. “A terra é a
substância universal, o caos primordial, a prima matéria
separada das águas, segundo o Gênesis, levada à superfície
pelo javali de Vixenu; (...) matéria de que o criador
(China, Niukua) molda o homem. Universalmente, a terra
é uma matriz que concebe as fontes, os minerais, o metais”
(Chevalier & Gheerbrant, 1990, p.879). Desse princípio de
poder, força e criação própria da terra, a poesia João
Cabral tem como proposta a operação intelectual
discursiva, o encadeamento de ideias e metáforas e uma
teoria poética marcada pelas leis do raciocínio. Em
contraparte, a água que precedeu a criação do cosmo e
caracteriza-se como símbolo da fonte, produção e invento,
é emblemática na arte de João Cabral de Melo. Infere
dessas assertivas, que a poesia desse autor situa-se entre
“Fazer o Seco, Fazer o Úmido” (Idem p.340),
aproveitando o sugestivo título do poema e o que
corresponde à verdade: existe realmente uma dualidade
temática e material.
Conquanto esse paralelo seja tentador, a proposta
desse estudo consiste na análise específica do rio e suas
relações diretas com a produção textual, com o que foi
designado de discurso do rio. E é nessa composição de
ideias que está examinada a relação entre a palavra e a
água. Em um outro capítulo, já foi citada a informação de
Chevalier & Gheerbrant (1990) que os dogons faziam
distinção entre a chamada “palavra seca” e “palavra
úmida”. Aquela foi considerada sem consciência de si,
inda sem uma organização preconcebida, mas guarda o
anseio da ordem, disposta com método; esta última
desenvolveu a semente da vida. Por esse motivo, foi dada
aos homens. Essa noção da palavra fecundadora, como
manifestação divina de verbo que traz o germe da criação,
colocado no despontar da gênese, como a primeira
manifestação divina, se encontra nas concepções
cosmogônicas de muitos povos. Chevalier & Gheerbrant
(1990) explanam ainda que:
Na tradição bíblica, o Antigo Testamento
conhecia o tema da Palavra de Deus e o da
Sabedoria, que existia antes do mundo em Deus; pela
qual tudo foi criado; enviado a terra para aí revelar
os segredos da vontade divina; retornando a Deus,
com a missão terminada.Do mesmo modo, para São
João, o Verbo (a Palavra) estava em Deus;
preexistente à criação; ele veio ao mundo, enviado
pelo Pai, para desempenhar uma missão: transmitir
ao mundo uma mensagem de saudação; terminada a
sua missão, ele retorna ao Pai. Cabia ao Novo
Testamento e particularmente a João, graças ao fato
da Encarnação, destacar claramente o caráter
pessoal dessa Palavra (Sabedoria), subsistente e
eterna (BIBJ, João, 1,1; encontrar-se-ão nesta nota
todas as referências aos textos bíblicos nos quais se
apóia esta síntese).
No pensamento grego, a palavra, o logos,
significou, não apenas a palavra, a frase, o discurso,
mas também a razão e a inteligência, a ideia e o
sentido profundo de um ser, o próprio pensamento
divino. Para os estóicos, a palavra era a razão
imanente na ordem do mundo. É com base nessas
noções que a especulação dos Padres da Igreja e dos
teólogos desenvolveu e analisou no decorrer dos
séculos o ensinamento da Escritura e, muito
particularmente, a teologia do Verbo. (Idem p.680)
Pelo exposto, a palavra, na essência ou condição própria
de um ser, constitui um símbolo de sabedoria, manifestação
da inteligência na linguagem, na natureza dos seres e na
criação contínua do universo. Pode-se dizer ainda que a
palavra tem uma estreita analogia com o mito de Palas Atena,
símbolo de luta e sabedoria.
Em qualquer crença ou dogma, a palavra, o logos,
exprime sempre a simbologia da mais pura manifestação do
ser, do pensamento, da criação e da luta pela vida. Esta fonte
de vida e conhecimento materializa-se nessa poética das
águas de João Cabral. A poesia desse autor transfigura a
imaginação formal dos rios, como já foi apresentado. Porém,
além das formas, esse poeta inclina-se com maestria na
imaginação material e, como se explicitou, a matéria
discorrida é a água, que representará a palavra úmida, o verbo
criador. Desta maneira, João Cabral faz um mergulho na raiz
da fala, do discurso desse rio da linguagem. O poema “Rio
Sem Discurso” (Idem p.350/351) resulta desse ato de imergir
nas águas da palavra, produzindo uma linguagem sobre a
linguagem. Esse texto, mais do que um símbolo da linguagem
poética, tornou-se um ícone da metalinguagem do discurso
do rio cabralino, no sentido de trazer a imagem material da
linguagem da poesia. Como matéria e poesia, ou vice-versa,
este trabalho metalinguístico pode ser entendido conforme
prescreve Bachelard (2002): “a matéria, aliás, se deixa
valorizar em dois sentidos: no sentido do aprofundamento e
no sentido do impulso. No sentido do aprofundamento, ela
parece insondável, como um mistério. No sentido do impulso,
surge como uma força inexaurível, como um milagre” (Op.
Cit.Idem p. 3).
O curso do rio metalinguístico do poema “Rio sem
discurso” é insondável e inexaurível, muitas análise já foram
edificadas sobre esse ícone da poesia de João Cabral; entre
elas, consideramos o artigo intitulado “Linguagem &
Metalinguagem em João Cabral” inserido na obra A metáfora
crítica (1974) de João Alexandre Barbosa. 280Os argumentos
plausíveis marcados pela competência e experiência deste
mestre ensaísta encaminharam o percurso do discurso desse
estudo crítico. Também, a objetividade teórica de Maria
Lúcia Pinheiro Sampaio (1978) foi tomada como preparo
para a reflexão sobre a rede metafórica em Cabral. Além
desses estudiosos de João Cabral de Melo Neto, Aguinaldo
Gonçalves, com a sua obra Transição & permanência Miro/
João Cabral: da Tela ao texto (1989), 281muito embora não
tenha analisado esse poema em particular, serviu como um
espelho que direcionou muitas teorias e reflexões aqui
manifestadas. E é com base nessa indicação de rumo, que se
pode aprofundar as ponderações sobre o signo linguístico
realizadas por este poeta crítico, no capítulo intitulado “Entre
a mobilidade e o enigma”, na primeira parte, “O Símbolo e o
Ícone: duas setas para o mesmo alvo”.
Saussure (1995) fez uma distinção entre língua e
linguagem e, segundo seus preceitos, a palavra seria a
manifestação linguística do indivíduo. Diferentemente da
280
BARBOSA, Língua & Metalinguagem em João Cabral de
Melo Neto. in A Metáfora Crítica. São Paulo: Perspectiva. 1974.
p.137-159.
281
GONÇALVES, Aguinaldo. Transição & Permanência : Miro/
João Cabral – da tela ao texto.São Paulo: Ed. Universidade de São
Paulo, 1994, 331 p. ( Col. Texto e Arte.)
língua, que é uma função social, registrada passivamente pelo
indivíduo. A fala ou parole - a palavra ou linguagem é “o ato
individual de vontade e inteligência, no qual convém
distinguir: as combinações nas quais o falante utiliza o código
da língua para exprimir seu pensamento; 2º o mecanismo
psicológico que lhe permite exteriorizar essas combinações”
(Saussure (1995) p. 22). 282 Em síntese, a língua é a parte
social da linguagem, exterior ao indivíduo, a linguagem tem
um lado individual, mas tem também um lado social, implica
ao mesmo tempo um sistema estabelecido e uma evolução: é
uma instituição atual e um produto do passado, portanto tem
a natureza heterogênea. Por outro lado, a língua possui uma
natureza homogênea e “constitui-se num sistema de signos
onde, de essencial, só existe a união do sentido e de imagem
acústica, e onde as duas partes do signo são igualmente
psíquicas” (Saussure,1995, p.23). Enfim, o linguista francês
definiu a língua como um sistema de signos e de regras,
tesouro coletivo depositado em cada cérebro, conjunto de
convenções próprias de todos os locutores de um mesmo
idioma, código único e homogêneo que lhes permite
comunicar-se, excluindo dessa foram, os outros componentes
da comunicação que não o próprio código.
Ao definir o signo linguístico, esse estruturalista chamou
de signo a entidade psíquica de duas faces ou total resultado
da associação de um significante (imagem acústica) e de um
significado (conceito abstrato). Explicitou ainda que a aliança
que une a imagem acústica ao conceito abstrato é arbitrária.
“Assim, a ideia de ”mar” não está ligada por relação alguma
à sequência de sons m-a-r que lhe serve de significante;
282
SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral. Trad.
Antônio Chelini, José Paulo Paes e Isidoro Blikstein. São Paulo:
Cultrix, 1995..
poderia ser representada igualmente bem por outra sequência,
não importa qual” (Op.cit. idem p.81/82). Desta forma, o
signo é imotivado, com exceção dos dois casos de
motivações, como as exclamações e as onomatopéias
autênticas. Ademais, esse teórico da linguagem sustenta
ainda que a origem simbólica dessas motivações seja
contestável em parte.
Émile Benveniste, (1991) analisando as teorias saussureanas
entendeu que a relação entre significante e significado é
realmente indissolúvel, mas não é arbitrário, pelo contrário, é
necessário. “Juntos os dois foram impressos no meu espírito;
juntos evocam-se mutuamente em qualquer circunstância”
(Émile Benveniste, (1991) p.58). 283 Isto se realiza porque o
espírito contém formas que se expressam por palavras,
portanto não são vazias. Benveniste conclui, que a
arbitrariedade só existe entre o significante e o referente ou a
realidade, já que Saussure mesmo definiu a língua como
“forma” e não como “substância”.
Tendo como suporte essas teorias, Aguinaldo José
Gonçalves, no citado capítulo de sua pesquisa, deu seu
parecer sobre a natureza da linguagem poética, que segundo
ele:
Ela desrealiza” da função normativa da língua dos
comunicados, mobiliza a necessária relação entre
significante e significado além de recuperar ou nomear
(indiretamente) aquilo que era apenas nebuloso no
pensamento ou espírito. Desta forma, um novo mundo
surge diante de nós. O processo da criação poética vai

283
BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. Trad.
de Maria da Gloria Novak e Maria Luiza Néri. Campinas- São
Paulo : Pontes / Editora da Universidade Estadual de Campinas,
1991.
mais além de reorganização das convenções, e não
significa conferir “expressividade” ao já conhecido.
Benveniste ao dizer que “ o espírito só acolhe a forma
sonora que serve de suporte a uma representação
identificável para ele; senão. rejeita-a como
desconhecida ou estranha”, nota-se que a visão do
linguista , marcada pela categorização, acaba
fornecendo subsídios férteis para a reflexão sobre o
poético. Muitas e muitas vezes, mesmo não conseguimos
encontrar uma relação lógica entre os significados das
palavras de um poema, o nosso espírito acolhe o que
aprende como nomeado pela primeira vez, embora já não
mais pelas palavras-signos, mas pela profusão
hieroglífica dos elementos constituintes. (Op. Cit..Idem
p.166)

Diante desta tese, essas conotações - cujas relações se


dão por mecanismos internos de linguagem - na teoria de
Hjelmslev (1974) 284 passam para o domínio da Semiótica.
Assim, os conceitos abstratos ocorrem na esfera da
virtualidade poética, na potencialidade evocadora do objeto
intencional criado; originando, dessarte, as possibilidades de
várias semias para um mesmo signo. Aqui, reside a natureza
da palavra poética, daquela denominada acima por palavra
úmida: a que tem o poder da criação e do logos - já que o
signo e a realidade vão passar por um processo considerado
dialético, uma vez o signo não é a coisa, a substância, mas
sim a forma. Porém, para a criação da arte literária o artista
da palavra “se vale de infinitos recursos, todos eles influindo
na motivação do signo linguístico enquanto material primeiro
284
HJELMSLEV, Louis. Prolegómenos a una Teoría del
Lenguaje. Trad. esp. José Luis díaz de Liaño. Madri: Gredos,
1977.
para a realização poética”. (Aguinaldo Gonçalves, 1989,
p.167)
Tendo por preceito as informações apresentadas, pode-se
deduzir que o poema “Rios sem Discurso” aciona a produção
de imagens que conduzem as sensações visuais da fluidez do
curso de um rio, com suas vozes líquidas ou como silêncio da
linguagem petrificada. Tal petrificação é realizada pela ação
dos olhos da medusa do isolamento e da solidão da palavra
estagnada em estado de poço, metáfora do signo linguístico
solitário, fechado nas suas duas faces - tendo por companhia
apenas o seu sentido denotativo. Nesse imovimento, a palavra
fica estancada no poço dela mesma. É o que teoriza
poeticamente “Rios sem Discurso”.
Este texto, ao despertar as imagens sinestésicas do
silêncio, ou a comunicação limitada do poço ou ainda a ação
e as vozes das águas de um rio, dá lições da fluidez da
linguagem, especialmente da poética. A poesia é a produção
de um movimento complexo e intenso. A imagética do
literário, nesse poema, confere a consistência das teorias
linguísticas explicitadas.
Os versos: Em situação de poço, a água equivale/a
uma palavra em situação dicionária: / isolada, estanque no
poço dela mesma, / e porque assim estanque, estancada;
(Idem p.350/351) fazem um jogo didático-poético para
exprimir que, no texto artístico, o conceito Saussureano do
signo como entidade psíquica de dupla face, (formada pelo
significante e significado, conceito e imagem acústica),
adquire uma pluralidade de sentidos. O exemplo do vocábulo
“mar”, utilizado por Saussurre, inserido numa frase poética
de João Cabral, pode emitir outras imagens que fogem da
convencional. A simples referência do substantivo, indica
apenas a relação do conceito com a imagem acústica. Porém,
a palavra “mar” inserta como uma imagem poética gera na
frase uma fluidez predicativa. Alfredo Bosi (2000) sustenta
que “sem a predicação, o discurso emperra. Sem discurso, a
predicação perde o seu melhor apoio para sustentar-se.
Pré(dic)ar é admitir a existência de relações: atribuir o ser à
coisa; dizer de suas qualidades reais ou fictícias; de seus
movimentos; de seus liames com as outras coisas; referir o
curso da experiência. Predicar é exercer a possibilidade de ter
um ponto de vista” (Alfredo Bosi (2000) p.33). 285 Desta
maneira, dependendo do sentido atribuído à palavra e seus
predicados, o objeto referido poderá ter outro conceito, ou
outra imagem ou conceito, distante daquela convencionada.
“Quanto à forma de predicação: ela se perfaz e se “vê” no
desenho da frase, na sintaxe, cujo diagrama aponta para uma
ordem que só “imita” o espaço do visual através da
temporalidade. A disposição dos sintagmas, sobre a qual
assenta todo discurso, diz o quanto a linguagem humana é, ao
mesmo tempo, sequência, movimento e forma, curso e
recorrência” (Bosi, 2000, p. 33).
Destarte, no poético o conceito denotativo do signo
mar sai do estado de poço da palavra em situação dicionária e
é acionado para outras margens da comunicação. Esta ação é
construída por meio do desenho da frase, da sintaxe. No texto
artístico, este desenho é muito complexo, mais cheio de
movimento e de mais forma. O texto poético forma-se por
uma teia feita de plurissignifcação. Esta teia de significados
que compõe o discurso que, por sua vez, constrói um tecido
de enunciados integrados por níveis extremos, como o
simbólico e o sonoro. No encontro destes níveis é acionada a
corrente do poético, que funciona com um movimento de
BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. São Paulo:
285

Companhia das Letras, 2000.


cargas elétricas de um condutor de sentidos. Essa corrente
poética acontece por meio de artifícios formados por
regularidades morfossintáticas, sinonímia, paronímia,
correspondências semânticas, ritmos, metros, rimas,
aliterações, assonâncias, reiterações num tecido vivo de
imagens e sons. Cohen assevera que:
É sobre o eixo sintagmático que o verso
desempenha o seu papel principal – como imagem
icônica do significado. Com efeito, a sua função
essencial é essa. Na sua relação diagramática com o
significado, segundo a fórmula:
(Ste1 = Ste2 → (Sdo1 = Sdo2).
É o que Sausure chamava “motivação relativa”.
Com o verso, este tipo de modificação alarga-se à
totalidade textual.O significante age como um
“analogon” do significado. O “versus” ou o retorno
fônico reenvia para a equivalência semântica. Na
linguagem tudo é sentido. A identidade fônica significa,
mas de maneira autônoma. Ela mesma remete para os
sentido, assinalando a obediência deste ao princípio
der identidade. E é por isso que sem identidade
semântica o verso, por mais perfeitamente conforme as
suas normas que seja, fica poeticamente ineficaz. É o
caso dos “versos de pé quebrado”. E é também por isso
que a poesia pode prescindir dessas normas. Mas
quando a identidade existe nos dois níveis, dá o
sentimento de perfeito êxito poético, de que o poema
des-versificado de hoje ficou nostálgico. (A Plenitude
da Linguagem (Teoria da Poeticidade) Jean
Cohen, p. 190/191)
A arte não pretende ser comunicativa, sua finalidade é
expressão, movimento, ação; porque, “as frases não são
linhas. São complexos de signos verbais que vêm e vão
expandindo e desdobrando, opondo e relacionando, cada vez
mais de som-significante” (Bosi, 2000, p. 36). A poesia faz o
signo sair do estado de poço do dicionário para ser
movimentado num dis(curso) original, numa construção
magistral que é ampliada a cada onda que esta linguagem
polissêmica propicia.
Sobre os recursos metafóricos construídos pelo poeta, João
Alexandre Barbosa (1974) analisa que são edificados por
uma aproximação repetida ao núcleo básico de deflagração
do texto: a relação entre discurso, enquanto qualificação de
rios, a percepção da palavra enquanto integrando um universo
de reflexão literária – assim o segundo verso em que
“discurso-rio” e, desde já, a congeminação radical entre
palavra e entidade metaforizada. (Op. Cit. p.152). Nesse
estudo que investiga o processo metalinguístico cabralino,
vale conferir a seguinte análise sobre a segunda parte do
poema:
“Iniciando-se pela reiteração da imagem central com
base numa estratégia frásica / vocabular de inversão /
prefixação (curso → discurso), os versos terceiro e quarto
apontam para uma abertura de significado
importantíssima: agora o eixo ideativo é deslocado para a
imagem da recomposição em que o sistema fio de
água/sintaxe, da primeira parte, é retomado, ampliado,
pela justaposição de uma perspectiva integralizadora que
exige a participação de todos os elemntentos: um rio
precisa de muito fio de água/para refazer o fio antigo que o
fez. É o mesmo tipo de construção que orienta os verso
sétimo e oitavo, embora aí já não se trate apenas de fio
(palavra) mas poços (frases): um rio precisa de muita água
em fios/ para que todos os poços se enfrasem. Novamente,
o processo de inversão vocabular (fios de água/ água em
fios) atua reiteradamente na configuração do sistema mais
amplo caçado pelo poeta: rio/linguagem”. (João
Alexandre, 1976, p.152/153).
Diante de todas essa indagações sobre a edificação desse
texto poético, que por si só traduz toda uma teoria sobre arte
da palavra, ao transmitir saber e perícia na tessitura de um
poema, se faz necessário citar o pensamento de Hugo
Friedrich (1978) que poderá explicar o ser dessa poesia
altamente intelectualizada e atualíssima: “uma criação auto-
suficiente, pluriforme na significação, constituindo um
entrelaçamento de tensões de forças absolutas, as quais agem
sugestivamente em estratos pré-racionais, mas também
deslocam em vibrações as zonas de mistérios dos conceitos”
(Op. Cit. Hugo Friedrich (1978) p.16). Nesse sentido, pode-se
afirmar que a arquitetura do poema em análise torna material
e realizada a sabedoria da palavra poética que sabe dizer, não
dizendo, afirmar para negar conhece a retórica do silêncio
que se esconde no espaço vazio entre o significante e o
significado. Neste silêncio, está plantada a raiz da fala, que
tem um reino flutuante que percorre o rio do discurso da
sintaxe invisível formada por imagens, ideias, emoções,
sonoridades e grafismos. No rio da sintaxe invisível flutua e
oscila como as ondas, o movimento contínuo das correntes e
corredeiras da linguagem, formando uma usina geradora de
jogos imagéticos e uma energia poética.
O folguedo cheio de ludismo da linguagem literária que
realiza os chamados jogos verbais faz, nesse texto, uma série
de brincadeiras com o significante. Este flutua
imageticamente sobre o seu significado (da sua função
referencial), e, dele se desliga e ressurge com outro
significado.
Tomando como paradigma o verso: O curso de um rio,
seu discurso-rio (Idem p.351) e, em particular, inicialmente,
o termo curso, o primeiro significado seria “ação de correr”,
“carreira”, “movimento rápido” ou “caminho”, “rumo”,
“rota”, “percurso”, “trajetória do rio” (numa função
referencial). No recuo livre das ondas da linguagem, quando
à palavra curso foi anexado o prefixo latino (dis) passou
expressar a coordenação da linguagem ou raciocínio da ação
das palavras no percurso do seu discurso-rio.
Assim, ao termo discurso foi agregado à palavra rio,
formando um novo vocábulo marcado por uma hifenização e
se constituindo num termo composto: discurso-rio. Nesta
composição, a palavra rio pode obter uma adjetivação ou
funcionar como substantivo. Na primeira hipótese, o discurso
será qualificado como o rio da linguagem, isto é, tem apenas
as qualidades de um rio; na segunda proposição, o discurso é
um rio que flutua nas ondas da linguagem, com sua
polissemia. Nesta circunstância, o discurso, ao mesmo tempo
em que, qualitativamente pertence ao rio, está inserido como
propriedade do rio, designando a própria substância, o
próprio ser real ou metafísico do rio. No entanto, o vocábulo
discurso-rio pode ser também uma composição construída
por derivação prefixal, ficando discurso, como prefixo do
rio, uma vez que este último, como natureza poética, sempre
esteve presente, mas não podia ser apreciado pelo sentido da
visão, não se deixava ver. Cabe ao discurso proferido pelo
verbo poético, a ação de exteriorizar - com as imagens e as
correntes que procedem por meio de raciocínios - a sentença
desse rio da linguagem e, que, por sua vez realiza a
sentença-rio.
E, então, uma nova corrente começa, determinando
sempre os vários sentidos da linguagem das águas, correndo
sempre para outras margens, especialmente, para a terceira
margem da palavra como poetizou Guimarães Rosa (1972)
em “A Terceira Margem do Rio”. Estas corredeiras que
oscilam de um lado e de outro do sentido das palavras põem
em ação e efetivam a sentença absoluta desse rio perpétuo – a
plenitude da linguagem poética.
Esta poeticidade gera uma eletrização instaurando, na
sentença-rio, um momento iluminado, o instante alquímico da
criação, o Fiat Lux. Esta luz que irradia da arte poética corre
livre sobre o rio da linguagem.
“Os jogos de palavras são um exercício de liberdade” é o
que assevera Eduardo Prado Coelho (1968) em seu artigo
denominado “João Cabral de Melo Neto: A Educação Pela
Pedra”. A assertiva desse crítico tem fundamentação sólida, e
neste discurso do rio a liberdade das imagens das águas
expressa esses jogos imagéticos. Em João Cabral, além do
tecido de imagens visuais, existe uma tessitura lúdica sonora
que exprime as vozes líquidas do poema e o próprio discurso
do rio:

Quando um rio corta, corta-se de vez


o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em suitação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma.
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhum comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.

O curso de um rio, seu discurso-rio,


chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloquência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença- rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.
(Idem p.350/351)

O poema é formado por um jogo de aliterações e


assonâncias. As aliterações que chamam mais atenção na
primeira parte são formadas pelo fonema / d / consoante
linguodental explosiva sonora (homorgânica de t); pela
consoante oclusiva linguodental surda / t /; ainda pelo fonema
oclusivo, velar, surdo / q / e uma participação do / l /,
consoante constritiva, lateral, sonora e líquida. Essa
sonoridade / d /, / t /, / q /, / l / no conjunto sugere o barulho
de pedaços de água se quebrando, caindo num poço sem
discurso, sem corredeiras. Ao sugerir a queda de pedaços de
água, o som agudo soa doído, num tilintar tão metálico, que
ensurdece, operando da mesma forma que a luz, quando
ofusca e obscurece a visão.
A segunda estrofe, além das aliterações concebidas a partir
das citadas consoantes, exercita o som nasal dos fonemas /
m /, / n /, o / r / (caracterizado como consoante alveolar,
vibrante, simples, sonora e líquida) e principalmente o / f /,
consoante labiodental fricativa surda, cujo timbre sugere
fricção das águas em fios saindo do estado de poço, se
enfrasando, esfregando, se reatando, de um para outro poço,
num roçar leve em frase curtas, então frase e frase, / até a
sentença-rio do discurso único. A assonância, por sua vez
pode ser visualizada da seguinte forma:
a / o/ u/ io/ o/ a/ e/e/e
o/i /u/o/io/e/a/ua/e/e/e/a/a
o/a/o/a/a/ua/e/ue/a/e/e/a/o
E/o/o/e/a/ ua/e/a/ua/a/a/i/i/a
E/i/ua/ao/e/o/o/a/a/ua/e/ui/a/e
a/u/a/a/a/a/e/i/a/ao/i/io/a/ia
i/o/a/a/e/a/eu/o/o/o/e/a/e/a
e/o/eu/a/i/e/a/eu/e/a/a/a
e/ai/o/eu/a/i/e/a/eu/e/a/a/a
e/u/a/o/eu/o/e/u/o/u/i/a
o/eu/o/e/a/i/a/e/e/e/io
o/io/e/a/ua/o/eu/e/e/e/i/o/ia

O/u/o/e/u/io/eu/i/u/o/io
e/a/a/a/e/a/e/e/a/a/e/e
u/io/e/i/a/e/ui/o/io/e/a/ua
a/a/e/a/e/o/io/a/i/o/eu/o/e
a/o/a/i/o/uê/ia/e/u/a/eia
e/i/o/o/i/e/i/a/ou/a/i/ua/e
u/io/e/i/a/e/ui/a/a/ua/e/io
a/a/eu/o/o/o/o/o/e/e/a/e
e/a/e/u/a/e/ao/a/e/e/a/e
a/e/a/e/e/a/io/o/i/u/o/u/i/o
e/eu/e/e/o/a/e/a/e/e/o/a/e

A presença da assonância fundamenta as vozes líquidas:


em todo o poema, como pode ser visualizado acima, todas as
vogais cantam a canção dos riachos: iiii, aaaa, eeee, uuuu,
oooo, reiteradamente, como uma imaginação aberta, com
frescor, claridade e uma alegria passarinheira, são tagarelas
que gorjeiam brincando com os diamantes líquidos que
moram nos sons vocálicos. Conforme Bachelard “esses risos,
esses chilreios são, ao que parece, a linguagem pueril da
Natureza. No riacho quem fala é a Natureza criança”. A voz
da fonte canta a arte da natureza. Do outro lado, o poético
exprime semioticamente essa voz que canta e encanta àquele
que pode ouvir e perceber a vida que nasce da fonte da
palavra, da raiz da fala e percorre os labirínticos caminhos da
sintaxe invisível desse discurso do rio cabralino.
Assim, o poema “Rios Sem Discurso” evoca e materializa
uma rede metafórica que, como as águas, oscila como ondas,
ou correntes, trazendo luz, sabedoria e doutrinas de como
vencer obstáculos, lutar contra as pedras, combater os vazios
e alcançar a imortalidade: esta é a sentença-rio - a mensagem
da teoria poética das águas da linguagem.
O poema metalinguístico “Rio e/ou Poço” (Idem p.251)
reitera a teoria das águas. O rio, não existe dúvida, figura
travessia, passagem, movimento, ação e continuidade. O
poço, por sua vez, tem como símbolo principal a marca do
estático, mas também simboliza segredo e dissimulação da
verdade, além de ser também um sinal de profundidade e
silêncio. Este texto manifesta um pensamento sobre a
natureza da poesia, mas também de todas as coisas e suas
relações entre si. Pode ser percebida ainda uma ponderação
sobre os valores, o sentido, os fatos e princípios gerais da
existência, bem como a conduta e destino do homem.
Inicialmente, percebe-se que o discurso do eu lírico é
dirigido para um interlocutor, que pode ser a poesia, ele
mesmo ou qualquer pessoa: Quando tu, na vertical, /te
ergues, de pé em ti mesma, /é possível descrever-te / como a
água de correnteza; / tens a alegria infantil. / popular,
passarinheira, de um riacho horizontal / (e embora de pé
estejas) (Idem p.252). Em qualquer dessas opções,
encontramos o mito de narciso, o que remete esta exposição
crítica ao pensador Bachelard (2002) quando torna segura a
ideia de que: “Narciso, na fonte, não está entregue somente à
contemplação de si mesmo. Sua própria imagem é o centro de
um mundo. Com Narciso, para Narciso, é toda a floresta que
se mira, todo o céu que vem tomar consciência de sua
grandiosa imagem. Em seu livro Narciso, que por si só
mereceria um longo estudo, Joachim Gasquet oferece a
fórmula admiravelmente densa de toda uma metafísica da
imaginação (Op. Cit. Bachelard (2002) 45): ‘O mundo é um
imenso Narciso ocupado no ato de pensar’ p. (Ibidem Idem
27)”.
Diante desta assertiva, verifica-se que o poema “Rio e/ ou
Poço” exprime esse olhar profundo que se estende muito para
baixo ou abaixo da superfície. É um olhar de poço muito
fundo, que penetra muito, investiga e observa com
perspicácia, tudo à sua volta. Como um poço de
conhecimento, se evidencia ou se caracteriza por grande
erudição e discernimento.
Parado em si mesmo, pode encontrar o céu ou o inferno,
pode morrer sugado pela própria imagem da água paralítica.
Mas quando na horizontal,
em certas horas, te deixas,
que é quando, por fora, mais
as águas correntes lembras,

mas quando à tua extensão,


como se rio, te entregas,
quando te deitas em rio
que se deita sobre a terra,
(Idem p.251)

O fluir das águas é uma canção da liberdade da poesia


e do próprio ser. Na melodia horizontal dos versos estão as
imagens do poético, assim como se percebe
sinestesicamente que a vida é um entregar-se ao rio da
existência, a olhar primeiro para o mundo e todas as coisas
nele inseridas, inclusive a si mesmo. A linguagem pode
enfrasar-se, um poço pode alcançar a sentença-rio, frase
após frase, verso após verso, numa espiral que corre para
outras margens, não morre em si mesmo, torna-se rio.
O ser humano é mais poço do que rio: um Narciso por
natureza, nesse sentido os versos cabralinos exprimem:
então, se é da água corrente, / por longa, tua aparência, /
somente a água de um poço // expressa tua natureza (Idem
p.251).
Por este motivo, estamos mais uma vez diante de uma
lição das águas, que correm para o mar buscando a
imortalidade, pois a verticalidade, ou o estado de poço,
quase sempre conduz à morte ou no mínimo à estagnação,
porque:
só uma água vertical
pode, de alguma maneira,
ser a imagem do que és
quando horizontal e queda.

Só uma água vertical,


água parada em si mesma,
água vertical de poço
água toda em profundeza,

água em si mesma, parada,


e que ao parar mais se adensa,
água densa de água, como
de alma tua alma está densa.
(Idem p. 251/252)

O mergulho no poço de si mesmo leva o ser às águas


densas e profundas que despertam os fantasmas interiores.
Para fugir do suicídio, a poesia preceitua o seguimento das
vozes da água corrente, cheia de ação e movimento. E
claro, que a existência de fonte não é um “mar de rosas”,
como costumam expressar: tem pedras, dificuldades.
Entretanto, no encontro das pedras com as águas nascem
as cachoeiras: espetáculos vivos realizados a partir desse
encontro de forças da natureza.
Essa teoria da linguagem que produz um
movimento contínuo está renovada no poema “Os Rios de
Um Dia” (Idem p.352):

Os rios, de tudo o que existe vivo


vivem a vida mais definida e clara;
para os rios, viver vale se definir
e definir viver com a língua da água.
O rio corre; e, pois que com sua água,
viver vale suicidar-se, todo o tempo

(Idem p.352)

A poesia da água de João Cabral alude à existência


humana, lembrando também o que foi observado por Gaston
Bachelard (2002):
O conto da água é o conto humano de uma água
que morre. O devaneio começa por vezes diante
da água límpida, toda de reflexos imensos,
fazendo ouvir uma música cristalina. Ele acaba no
âmago de uma água triste e sombria, no âmago de
uma água que transmite estranhos e fúnebres
murmúrios. O devaneio à beira da água,
reencontra os seus mortos, morrer também ele,
como um universo submerso” (Op. Cit. Gaston
Bachelard (2002) p. 49).

O homem ao mergulhar no seu poço, ou nos seus rios


de um dia, na falsa imagem que faz de si mesmo, está
acorrendo para o “complexo de Ofélia”, uma vez que,
perdendo a razão, a linguagem e a palavra permanente, se vê
impulsionado ao suicídio. Desorientado, erra o caminho do
discurso e da vida e perde-se no caminho da morte. Sobre o
“complexo de Ofélia” Bachelard (2002) expõe:“ Ofélia
poderá, pois, ser para nós o símbolo do suicídio feminino. Ela
é realmente uma criatura nascida para morrer na água,
encontra aí, como diz Shakespeare, “seu próprio elemento”.
A água é o elemento da morte jovem e bela, da morte florida,
e nos dramas da vida e da literatura é o elemento da morte
sem vingança, do suicídio masoquista” (Op. Cit. p.85).
A perda do movimento do rio existencial manifesta-se na
atração pela morte, da vida que quer morrer. “A água fornece
o símbolo de uma vida especial atraída por uma morte
especial” (Bachelard, 2002, p. 50). Assim, a água é um
convite à morte especial, sem a presença de uma razão que
reflete a dor do não ser, do limite de seu estado de poço ou de
sua palavra em estado de dicionário, sem voz, sem vez, sem
discurso, sem perspectiva: aporética.
Esse ser mergulhado no seu próprio suicídio metaforiza,
além do humano, a própria linguagem poética quando
mergulha no vazio de um significante limitado, não flui para
outras margens, não tem a força da palavra úmida, guerreira e
imortal: seu discurso vazio refletirá o vazio de si mesmo:
Por isso, que ele se define com clareza,
o rio aceita e professa, friamente,
e se procuram lhe atar a hemorragia,
ou a vida suicídio, o rio se defende.
O que um rio do Sertão, rio interino,
prova com sua água, curta nas medidas:
ao se correr torrencial, de uma vez,
sem alongar seu morrer, pouco a pouco,
sem alonga-lo, em suicídio permanente
ou no que todos, os rios duradouros,
esses rios do Sertão falam claro
que induz o suicídio a pressa deles:
para fugir na morte da vida em poças
e pega quem devagar por tanta sede.
(Idem p. 352)

A poesia de João Cabral infere a intuição heraclitiana que


via na morte um devir hídrico, a morte como a própria água.
Este princípio do devir incessante das coisas foi exposto no
famoso fragmento de Heráclito de Éfeso (SÉC. V a.C.): 286
“Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio, nem tocar
duas vezes uma substância mortal no mesmo estado; graças à
velocidade do movimento, tudo vem e vai” (Fr.91, Diels).
Heráclito, todavia, admitia um princípio único, subjacente ao
movimento: o fogo; admitia, outrossim, uma ordem rigorosa
nas mudanças, que garantia um retorno constante e periódico.
Bachelard (2002) explica que Heráclito “imaginava que, no
sono já, a alma, desprendendo-se das fontes do fogo vivo e
universal, ‘tendia momentaneamente a transformar-se em
unidade’” (Op. Cit. Bachelard (2002) p.59).
286
Heraclito ou Heráclito de Éfeso (Ἡράκλειτος ὁ Ἐφέσιος, Éfeso,
aproximadamente 500 a.C. - 450 a.C.) foi um filósofo pré-socrático
considerado o "Pai da dialética". Recebeu a alcunha de "Obscuro"
principalmente em razão da obra a ele atribuída por Diógenes Laércio,
Sobre a Natureza, em estilo obscuro, próximo ao das sentenças
oraculares.
Na vulgata filosófica, Heráclito é o pensador do "tudo flui" (em grego,
πάντα ῥεῖ; transl.: panta rei, sintetizando a ideia de um mundo em
movimento perpétuo, em oposição ao paradigma de Parmênides) e do
fogo, que seria o elemento do qual deriva tudo o que nos circunda.
Heráclito foi chamado desde cedo – por Sócrates e depois por Aristóteles
–de o Obscuro. E isso por duas razões: inicialmente por sua recusa à
pontuação; em seguida por inventar um estilo feito de versos que imitam
o movimento da contradição e exprimem a tensão própria da harmonia.
No poema “Na Morte dos Rios” (Idem p. 336/337) a
morte paira como um corvo assombrando o Alto Sertão com
sua marca natural. O rio seco metaforiza a morte que deixa
como legado apenas a múmia esgotada da carência de vida a
evidenciar o nada:

Desde que no Alto sertão um rio seca,


(...)
o rio de ossos areia, de areia múmia.
(...)
o homem ocupa logo a múmia esgotada
com bocas de homem, para beber as poças
que o rio esquece, e até a mínima água;
com bocas de cacimba, para fazer subir
a que dormem em lençóis, em fundas salas;
e com bocas de bicho, para mais rendimento
de seu fossar econômico, de bicho lógico.
Verme de rio, ao roer essa areia múmia,
o homem adianta os próprios, póstumos.
(Idem p.336/337)

Essa morte inexorável e que pode ter um fundamento


cíclico, está representada pela existência de um discurso-rio
vazio de criação, mas tem a faculdade de ser combatida com
a palavra poética, o verbo criador de discurso-rio imortal,
que atemoriza a morte, habita os vazios de muitas semias e
imaginações. Esta palavra úmida se mostra revestida de “luz
que brilha nas trevas”, como foi associada nos cinco
primeiros versículos do Evangelho de São João. Foi também
esta palavra úmida e iluminada. Gilbert Durand, em seu livro
As Estruturas Antropológicas do Imaginário (2001) expõe
que:
“Constantemente, os textos upanixádicos
associam a luz, algumas vezes ao fogo, e a palavra, e
nas lendas egípcias, como para os antigos judeus, a
palavra preside a criação do universo. As primeiras
palavras de Atum ou de Javé são um Fiat Lux. Jung
mostra que a etimologia indo-européia de ”aquilo
que luz” é a mesma que a do termo que significa
“falar”, e esta semelhança também se encontraria em
egípcio” (Durand, G (2001) p.154). 287

Diante do que foi explicitado, reitera-se a tese de que


a vida humana/ poética fica sem interrupção no tempo ou no
espaço se tiver domínio sobre a palavra que desvela o
silêncio que diz, não dizendo, que se encontra entre o
significante e o significado. Neste lugar nasce a fonte da vida
que não se interrompe em suicídio permanente // não tem
vida em poças como está explicitado no poema” Os Rios de
um Dia” (Idem p.352) mas fonte de rios duradouros (Idem
352), porque não têm medo do deserto vazio de palavras e de
criação.
O poema “O Relógio” (Idem p.324/327) recobra essa
vertente existencialista em torno da privação da linguagem
que salva o ser do aniquilamento ou da morte:

Ao redor da vida do homem


há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como jaula,
se ouve palpitar um bicho
(Idem p.324/325).

287
DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário:
introdução à arquetipologia geral. Trad. Hélder Godinho. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
Esse texto aperfeiçoa a imagem da água vertical que,
mesmo funcionando maquinalmente como um monjolo
continua sem o seu discurso real e efetivo: quem sabe se
algum monjolo/ ou antiga roda de água / que vai rodando,
passiva, / graças a um fluído que a passa // que fluido é
ninguém vê: da água não mostra os senões: / além de igual,
é contínuo, / sem marés, sem estações (Idem p. 326).
Esse poema explora a metáfora do rio interior que
corre dentro do homem: outra máquina de dentro, / imediata,
a reveza, / soando nas veias, no fundo / de poça no corpo,
imersa (p.327). Esse rio material e interior tem a sina dos
rios de um dia, possui sua existência limitada no tempo e
no espaço. Porém, o movimento desse rio pode ter
continuidade se tomar a posse do discurso dos rios
duradouros (Idem p.352) que sem a bomba motor/ (coração
linguagem) // extenua gota a gota (Idem p.327) a íntima
poça do homem. Assim, mergulha no ser do homem / lavra e
desvenda seus mistérios, para se consubstanciar em
linguagem e movimento contínuo, como um relógio entre o
ser tempo e espaço. Nesta unificação, a vida e a poesia
permanecem na imaginação material.
Esta imaginação exterioriza-se também em “O
poema” (Idem p. 76/77), que perscruta os mistérios
da criação poética:

A tinta e a lápis
escrevem-se todos
os versos do mundo.

Que monstros existem


nadando no poço
negro e fecundo?
Como o ser vivo
que é um verso,
um organismo

com sangue e sopro,


pode brotar
germes mortos?
(Idem p.76)

“O poema” investiga o mistério da imaginação


material da palavra que tem o poder de desvendar o enigma
do silêncio e relevar, no deserto da folha em branco, toda
uma existência pretérita e a que há de vir a ser:

Como um ser vivo


pode brotar
de um chão mineral?
(Idem p.76/77)

Este ser vivo foi germinado pela palavra úmida que,


laboriosa e iluminada, realizou sua criação e, do poço vazio,
ou do deserto, a poesia percorreu os caminhos labirínticos da
tessitura verbal, mas fez da sua voz fluida e imagética uma
expressão de acontecimento e realização.

6. Os Rios paradigmáticos em João Cabral

Os rios pernambucanos Capibaribe, Beberibe, o


próprio mar ou o sevilhano Guadalquivir - conteúdos
poéticos constantes na obra de João Cabral de Melo Neto,
são rios paradigmáticos. Porém, estes modelos são
transfigurados, recriados sob nova linguagem: em forma de
metáfora do discurso - rio. Nas correntes, ondas, ou no
movimento contínuo dos rios está a expressão do literário.
Nesse sentido, os rios vivenciados pelo artista são inseridos
como matéria da poesia e, como o próprio discurso, são
materializados em forma de rios. Este procedimento já foi
constatado nos poema O rio (Idem p.117/ 143), O cão sem
plumas (Idem p. 103/116), no auto Morte e vida severina
(Idem p.171/202) que acompanham a poesia das águas do rio
Capibaribe, ou o Beberibe, como em “Uma mulher e
Beberibe” (Idem p.341), além de outras referências ao longo
do discurso-rio.
O poema “Pregão Turístico do Recife” (Idem p. 147),
da obra Paisagens com figuras (1954-1955), exprime uma
descrição poética da paisagem Recifense:

Aqui o mar é uma montanha


regular redonda e azul,
mais alta que os arrecifes
e os mangues rasos ao sul.

Do mar podeis extrair,


do mar deste litoral,
um fio de luz precisa,
matemática ou metal.

Na cidade propriamente
velhos sobrados esguios
apertam ombros calcários
de cada lado de um rio.
(Idem p.147)

A cidade de Recife metaforiza uma obra de arte


formada de propriedades e relações de quantidades e
grandezas; Recife tem a feição de uma poesia que busca,
nessa realidade pré-existente, um cálculo determinado nos
calcários, rochedos ou grupos de rochedos nas proximidades
da costa do mar. A capital pernambucana, de muitas lutas e
histórias, surge poetizada à flor das águas. Desta forma, este
espaço aparece materializando os poemas do artista,
compondo imagens poéticas de paisagens com figuras:
mundos que foram visualizados pelo poeta.
Em sua mente figuram todos os discurso dos rios
paradigmáticos, até aqueles sem discurso, de um dia - os
marcados pela morte. Desses protótipos, nasce o discurso-rio
da linguagem com sua lição de vida e morte, harmonia e
silêncio:
E neste rio indigente,
sangue-lama que circula
entre cimento e esclerose
com sua marcha quase nula,

e na gente que se estagna


nas mucosas deste rio,
morrendo de apodrecer
vidas inteiras a fio,

podeis aprender que o homem


é sempre a melhor medida.
Mais: que a medida do homem
não é a morte mas a vida.
(Idem p.147)

O Capibaribe foi imortalizado na paisagem poética do


cão sem plumas, que tem na própria figura o ser da poesia, do
homem e daquele espaço geográfico. O cão sem pluma, ao
metaforizar o homem ribeirinho, exprime a melhor medida do
ser: o desejo de viver. E este anseio tem sua realização
confirmada em cada maneira de exteriorizar os conceitos, os
sentimentos, os estados de consciência ou movimentos
interiores do ser, na sua forma tão demasiadamente humana,
zoomorfizada pelos desumanos poderes, donos das Escolas
das facas que ferem para deixar a dor viva, numa agonia
maior. João Cabral registrou a seguinte opinião sobre esta
matéria em estudo: “ O homem para mim é, precisamente, o
homem sofredor do nordeste. O homem que me interessa é o
cidadão miserável do nordeste, cujo futuro, menos miserável,
está ligado ao desenvolvimento do Brasil” (TV. Cultura. Alô
Escola. p7.html Document).
O poético do Recife confirma uma contiguidade
visível com a linguagem literária, seja num estado de
adjacência; seja numa grande distância, no espaço ou até
mesmo no tempo. Em muitos poemas, transformações de
conceitos abstratos em imagens reais são observadas nas
descrições panorâmicas ou expressivas em textos como: “ De
um Avião (Idem p.227/232), “Paisagem com cupim” (Idem
p.235), “Litoral de Pernambuco” (Idem p.240) “Águas do
recife” (Idem p.386).
O poema “ De um Avião (Idem p.227/232) faz uma
descrição panorâmica da Cidade do Recife no momento da
decolagem. Este poema está dividido em 5 partes de oito
quadras. Cada estrofe forma um conjunto harmônico com
dois versos de oito e dois de seis sílabas. Na primeira secção
o texto descreve as primeiras sensações da partida e
impressões causadas pela paisagem, embora já agitada pela
distância no denominado primeiro círculo (Idem p.227).
Depois, o círculo continua seu giro na segunda parte e,
enquanto a distância vai aumentando, a paisagem se
descortina ainda mais:
eis todos os verdes do verde
submarinos, sobremarinos:
dos dois lados da praia
estendem-se indistintos;
(Idem p.228)

À medida que o avião vai elevando seu vôo, as


seções 3, 4 e 5 e os seus círculos vão sendo simultaneamente
descortinados, até que:

Penetra por fim o avião


pelos círculos derradeiros.
A ponta do diamante
perdeu-se por inteiro.
(Idem p.231)

Este texto traz conjuntos de imagens que vão se


formando, uma sobre a outra, de maneira fluente. Cada parte
expõe suas imagens que exprimem círculos e conduzem suas
ideias descritivas para outros círculos, até o ponto mais alto,
na última parte. É quando a cidade do Recife cristaliza-se na
memória como um diamante, ficando seu brilho contínuo
marcado na lembrança de quem conheceu aquele lugar.
O poema “Paisagem com cupim” (Idem p.235) faz
um retrato de Recife e Olinda. Realiza também uma
descrição da paisagem marinha e suas relação com essas
duas cidades. Assim, Pernambuco, com sua paisagem típica,
vai sendo transformado num exercício lúdico e imagético
para expor minuciosamente o “Litoral de Pernambuco” (Idem
p.240) onde:
O mar se estende pela terra
em ondas que se revezam
e se vão desdobrando até
ondas secas de outras marés:
(Idem p. 240)

O discurso desse poema de seis estrofes vai sendo


estendido a cada verso. O primeiro quando exprime: O mar
se estende pela terra (Idem p.240) tem sua relação
determinada no segundo verso, por meio da preposição em:
em ondas ondas que se revezam (Idem p.240). Esta
preposição pode indicar tanto a relação do modo como as
ondas se alternam, ou a relação da quantidade de água ou
areia deslocadas quando são adicionadas a outras ondas. Por
isso, o terceiro verso se inicia por uma conjunção aditiva: e
se vão desdobrando até (Idem p.240) e termina com a
preposição até, para designar ou limitar o fim da ação
daquelas ondas e o princípio de outras: ondas secas de outras
marés (Idem p.240).
A segunda estrofe, além de iniciar a demonstração de
como acontece a fluidez do mar de água e de areia, dá
continuidade e maior vivacidade e energia na ação ou
proporciona intensidade a essa corrente da linguagem:

as da areia, que mais adiante


se vão desdobrando nos mangues
que se desdobram (quase palha)
num capim lucas, de limalha,

que se desdobra em canaviais,


desdobrando sempre em outros mais,
e desdobrando ainda mais longe
o campo raso do horizonte.
(...)
(Idem p.240)
O verbo desdobrar, no sentido de “abrir ou estender o
que estava dobrado”, vai sendo empregado, de preferência,
no gerúndio para enfatizar a ação contínua: se vão
desdobrando até/ ondas secas de outras marés:/ (...) se vão
desdobrando nos mangues,/ que se desdobram (quase
palha)/(..) e desdobrando ainda mais longe/ (...) como se
tudo fosse o mar/ em mais ondas a desdobrar(...) (Idem
p.240/241). Assim, em ondas, a linguagem poética vai se
desenvolvendo em outras imagens e personificando, destarte,
as “Águas do recife” (Idem p.386):

O mar e os rios do Recife


são touros de índole distinta:
o mar estoura no arrecife,
o rio é um touro que rumina.

Quando o touro mar bate forte


nele há o medo de não ficar,
te ter saído, de estar fora,
de quem se recusa a ser mar.

E há outro touro, o rio,


entre mangues, remansamente,
mil manhas para não parir:
anda e desanda, ainda, sempre.
(...)
Eis por que dentro do Recife
as duas águas vivem lutando,
jogando de queda de braço
entre os muros dos cais urbanos

A que é mar porque, obrigada,


saltou o quebra-mar do porto
vem, cada maré, desafiar
a água ainda rio para o jogo.
(...)
(Idem p.386/387)

O mar e o rio são as duas águas que estouram no


arrefice e, nesta reunião de águas, reside a poética cabralina.
O próprio autor dividiu sua obra em “duas águas” que,
segundo sua explicação, seriam a composição das duas
facetas da sua poesia: uma marcadamente metalinguística,
numa contemplação do próprio ser poético e de difícil
compreensão; enquanto a outra, tem um caráter mais popular,
de percepção mais imediata. Nesta última, se incluem os
seus “poemas em voz alta”, que foram escritos para serem
lidos a um público ouvinte.
Esta divisão em “duas águas” tem a sua lógica, até
porque o próprio discurso da linguagem poética oscila, como
ondas, de uma água para outra, como já foi aludido
anteriormente, quando referiu-se aos movimentos centrípeto e
centrífugo característicos da obra de arte. No Recife, essas
duas águas são materializadas no encontro do rio com o mar
e, desta ação e reação, nasce a poesia das águas cabralinas
que, ao presentificar uma realidade social, reflete ao mesmo
tempo, sobre a própria linguagem artística, como pode ser
visto em Morte e vida severina, no poema O rio e em O cão
sem plumas. Da mesma forma, quando o rio da linguagem
encontra com o mar da poesia, é difícil saber separar o
movimento destas águas, ou o grau de profundidade, ou
compreensão, porque tudo será polissemia e como encerra
esse poema “As águas do Recife”:

Um certo instante estão imóveis,


nem maré alta nem baixa, ao par;
até que uma derruba e vence,
e ao vencer, perder: se exilar.
(Idem p.387)
Portanto, as águas já estão noutra margem da
linguagem, não são mais das margens do rio, nem do mar,
são da poesia. E neste ponto, a cidade do Recife tem vital
importância na gênese dessa poesia adornada pela metáfora
das águas que conjugam suas diferenças nas ondas da
linguagem.
De Pernambuco nasce a poesia que exprime o
homem, na dor, na voz, no ser. Num poema de A escola das
facas denominado “AutoCrítica” (Idem p. 456), João Cabral
exprime como a realidade cortante foi transfigurada em arte,
no seu discurso- rio que penetra os vãos da linguagem e
revela seus movimentos e as vozes da arte:

Só duas coisas conseguiram


(dês)feri-lo até a poesia:
o Pernambuco de onde veio
e o aonde foi, a Andaluzia.
Um, o vacinou do falar rico
e deu-lhe a outra, fêmea e viva,
desafio demente: em verso
dar a ver Sertão e Sevilha.
(Idem p.456)

Outrossim, é matéria póetica desse discurso do rio


cabralino, a poesia da velha Espanha de história farta. Este
espaço marca os planaltos e as montanhas que delineiam as
bacias do Ebro, ao norte e do Guadalquivir, ao sul. A
pluralidade caracteriza seus diversos tipos climáticos, a um só
tempo continental (pelas amplitudes térmicas) e mediterrâneo
(pelo ritmo das precipitações) no centro; o clima é
nitidamente mediterrâneo no litoral oriental e oceânico no
noroeste. Sua população, composta de diversos grupos
distinguidos por suas particularidades (catelhanos, catalões,
andaluzes, galegos e bascos) vivifica e materializa, na
própria linguagem poética da existência, toda essa
polissemia geográfica e cultural. A Espanha expressa a
literatura em todos os gêneros e formas, do épico ao lírico, na
forma e na cor, no ritmo, no compasso, na fluidez da
linguagem pluriforme, nas ondas do Barroco cheio de formas
e história. Na opinião do escritor e ensaísta Décio Pignatari “
é preciso compreender o barroco para entender a Espanha. E
isto ajuda a compreender a obra de João Cabral porque ele
vai assimilar o barroco enquanto conceito e levar isso ao
extremo. Um barroco que tenta resgatar o homem, assim
como o barroco da Espanha tinha de resgatar Deus. Ele fez
um esforço extraordinário de tentar juntar a visão marxista, o
problema pré industrial do nordeste, a miséria do nordeste, o
barroco espanhol... buscando uma solução conceitual do seu
poema” (TV. Cultura. Alô Escola. p7.html Document). A
Espanha representa todo um jogo de linguagem e imagens,
discurso-rio que corre com suas ondas polissêmicas e
oscilando sempre, num movimento contínuo.
Sevilha, a capital da Andaluzia, carrega em suas terras
os principais monumentos da Espanha, tem a peculiaridade
de ser o berço do flamenco e dá vida às touradas - sua grande
força de atração. Sevilha é uma cidade labirinto, repleta de
vielas passagens e encruzilhadas e caminhos tortuosos, como
os bairro de Santa Cruz, antigo gueto judeu com suas casas
de fachadas brancas, flores nas janelas e frescos pátios
internos forrados com azulejos pintados. Esta capital
marcada pela autenticidade, ainda que um tanto moura e
considerada como a esquina do mundo, oferece os encantos
da Catedral de Sevilha, com a famosa torre La Giralda e o
Alcázar de Sevilha, da Torre del Oro e das inúmeras lojinhas
vendendo coisas tipicamente espanholas, como castanholas,
xales, leques, azulejos pintados e muitas outras novidades.
Sevilha expressa vida, poesia em ação, máquina de
comover, que promove um movimento contínuo de luz,
ondas e metáforas, na Andaluzia. Este lugar, foi escolhido
por João Cabral, por estabelecer uma ponte entre a sua
pluralidade e ação e a da linguagem literária. E, partindo
desse princípio, afirmamos que esse “topos” da Espanha
representa, enquanto imagem formal, uma espécie de
metáfora de um rio cheio de imagens e corredeiras,
movimento e ação.
Por outro lado, Sevilha tem literalmente seu rio: o
Guadalquivir, que corta essa região fértil da linguagem
literária. O Guadalquivir cujo nome árabe, Wadi al-kebir,
significa rio grande, possui de 900 quilômetros de costa
atlântica e mediterrânea, de azeitonas , embutidos e
mariscos. Este rio está referido nos poemas “Cais do
pescador” p. 454, “Sevilha em Casa” (Idem p.638) e
“Sevilha e Progresso” (Idem 679/680). Este último, formula
em palavras um desenho de como o progresso caminhou
pacificamente com esta cidade. Em seis dísticos, o progresso
anda lado a lado com um dos principais centros urbanísticos
da Espanha:

Sevilha é a única cidade


que soube crescer sem matar-se.

Cresceu do outro lado do rio,


cresceu ao redor, com os circos,

conservando puro se centro,


intocável, sem que seus de dentro

tenham perdido a intimidade:


que ela só, entre todas cidades,

pode o aconchego de mulher,


pode o macio existir do mel,

que outrora guardava nos pátios


e hoje é de todo antigo bairro.
(Idem p.679/780).

O ”Cais do Pescador” explana A escola das facas e o


jogo de vida e morte que, na contra luz, se embatem. O peixe
e a faca se encontram em lugares de água e sol como na
praia do Pina no Recife ou nos cais do Guadalquivir. Ambos,
como podemos observar, estão poetizados nos versos desse
poema oscilam pelo (...) ar navalha (...) mas bom tempero,/
magnético, das peixadas.// Não sei qual dos dois faz ímã,
porque se atraem peixe e faca (p.454). Esse poema, traz
analogias entre Recife e Sevilha, da mesma forma que
“Sevilha em Casa” (Idem 638/639) quando exprime: Sevilha
veio a Pernambuco/ porque Aloísio lhe dizia/ que o
Capibaribe e Guadalquivir/ são de uma só maçonaria
(p.638).
“O Outro Rio: o Ebro” (Idem p. 165/166) desfila seu
discurso descrevendo esse outro rio espanhol:
Vou quase sempre entre o gesso
do esqueleto do animal
que veio cair de sede
nestas terras de Aragão.
(...)
entre casas extraviadas
no deserto literal
a que ao passar alinhavo
com água de meu carretel,
(...)
(sem que a água jamais reflita,
água de cego cristal,
as torres de barro opaco
que o mouro abriu a cinzel).
(Idem p.165)

Assim, o Ebro assume suas ações, sua história, seu


discurso de rio e da poesia afirmando: sou destas terras
ossudas/ líquida espinha dorsal/ (Idem p.166). Desta
maneira, luta e vive por seu discurso que exprime o ser
das fortalezas do homem, com sua batalhas e acontecimentos.
A capital andaluza figura a imaginação formal desse
movimento, ação, polissemia, discurso de um rio, o próprio
discurso-rio a traduzir uma sentença, não de uma inspiração,
mas da construção de duas obras que trazem nos títulos o
movimento da cidade e da linguagem poética: Sevilha
andando (1987-1993) e Andando Sevilha (1987-1989).
Enquanto imagem formal, Sevilha representa uma espécie de
rio da linguagem poética, desde o cubístico retalho de
natureza, as gentes, as carruagens, as mantilhas, as
castanholas, os monumentos, (grande número de
edifícios históricos, palácios, igrejas e catedral), praias,
paisagem azul num sol branco, os perfumes de jasmins e
madressilvas, os olhos negros gitanos, a impressionante
carnalidade, o flamenco e o seu sentido de vida, a tradição
oral e a música popular, o cálculo perfeito do toureiro, o
movimento rápido e certeiro do touro, o jogo de ações , a
mudança, o impulso, a agitação, os sentidos e o raciocínio
rápido das touradas, o espetáculo, cores e luzes. Como num
caleidoscópio, todos esse elementos são agitados numa
sucessão rápida e cambiante (de impressões, sensações) em
ritmo plurissignificativo a visualizar Sevilha andando, ou
Andando Sevilha, formando um círculo, ou o centro desse rio
poético.

Só com andar pode trazer


a atmosfera Sevilha, cítrea
o formigueiro em festa
que faz o vivo de Sevilha.

Ela caminha qualquer onde


como se andasse por Sevilha
Andaria até mesmo o inferno
em mulher da Panadería.

Uma mulher que sabe ser


mulher e centro do ao redor,
capaz de na Calle Regina
ao até num claustro ser o sol.
(Idem p.639)

Enquanto imagem material, Sevilha metaforiza a


melhor-palavra, a mulher-palavra/ poesia cheia de
movimento e ação, como um rio em seu curso de corredeiras
e fluidez. Como o discurso-rio, a palavra segue no ritmo
que sabe compor uma linguagem fluída, que sempre pulsa
semia, metáforas e vida. Como um rio, Sevilha
continuamente se movimenta, como pode ser comprovado
com os versos de “Ainda Sevilha ao Telefone” (Idem p.646)
quanto manifesta os seguintes versos:

Quando pelo telefone


quero falar com Sevilha
e Sevilha, por acaso,
está no instante dormida,
(...)
Ninguém fala ao telefone,
mas há pulsação longínqua:

onde há um pregão de tudo,


onde há pragas de vizinhas,
e se ouve o arfar de cidade
que sabe dormir feminina.
(Idem p.647).

Em Sevilha andando, todos os poemas


descrevem o movimento desse rio poético-cidade com o seu
discurso-rio que caminha sobre os ares daquela paisagem
andaluza, tão viva e movimentada como deve ser o discurso-
rio da linguagem poética. Este vivacidade está explicita no
poema “Cidade Viva” (Idem p.647):

Sevilha é uma cidade viva


como a sevilhana que a habita,,

e que, andando, faz andar


tudo o por onde ela passar.
(...)
Ora, vi que a Sevilhana andava
ou fazia andar quem a andasse.
(...)
é em tudo tão sevilhana
no ser e no modo com que anda,

que leva consigo sevilhana


e traz ao ambiente que habita.
(Idem p.647)

O movimento da cidade é proporcional ao de sua


habitante. Ambas, seguem seu curso existencial. Esta,
exterioriza sua maneira de ser Sevilhana, no modo ágil de
andar e viver. Aquela, também não pára o curso de sua
existência, se movimenta continuamente. Nesse sentido,
encontramos aqui também a analogia entre modo de existir
de Sevilha e o movimento do discurso do rio da linguagem a
seguir seu caminho sempre para outras margens; estar
sempre em movimento contínuo, na palavra, na frase, no
verso e na composição; sempre plural, a traduzir uma
incessante interpretação.
Este lugar, enquanto símbolo de um rio poético, foi
transfigurado em forma de poesia, mas não necessariamente
interiorizado de forma intimista no poeta, como
erroneamente, por ser interpretado no poema “Presença de
Sevilha” (Idem p.651), no qual o eu lírico se exprime em
primeira pessoa:

Cantei mal teu ser e teu canto


enquanto te estive, dez anos;
cantaste em mim e ainda tanto
cantas em mim teus dois mil anos.
Cantas em mim agora quando,
ausente, de vez, de teus quantos,
tenho comigo um ser e estando
que é toda Sevilha caminhando
(Idem p.651)

Não se trata aqui de um saudosismo, mas da


lembrança do visual poético que experimenta Sevilha, como
cidade, mas principalmente como um rio da linguagem, cheio
de movimentos e significações. Nesta metáfora da cidade
como linguagem, Sevilha anda nos versos, na lembrança, nos
movimentos dessa sentença-rio.
Andando Sevilha retorna a onda do discurso-rio do
Sevilha andando, como recurso poético e como matéria.
Todos os poemas desta obra expressam a poeticidade da
Espanha com sua polissêmica história como “Sevilha e a
Espanha” (Idem p. 658/659):

O catelhano e o catalão
têm pobreza e riqueza tristes.
assim desprezam a Andaluzia:
vêm na africana ou sacrílega.

Em Castilha, ambas são viúvas,


um manto de beata as recobre
(...)
a Catalunha, tira a tristeza
de querer ser muito mais França,
(...)
A Andaluzia é de mouro e cobre,
mas nenhum dura mais que um dia:
se alteram, como em seu cantar
à soleá, segue a alegría.
(Idem p.658/659)

O perfeccionismo de “Manolo Gonzalez”(Idem


p.671), no limite entre a vida e a morte representa um
exemplo ambulante de como deve consistir a linguagem
poética assim exprimida no segundo dístico desse poema: no
extremo do ser,/ no limite entre a vida e a morte (Idem
p.671). Ainda da linguagem fluída do “Touro Andaluz”
(Idem p. 656) que surge:

(...)de cabeça alta,


seu desafio é a toda a praça.
(...)
Depois, se campa, o olhar derrama,
olhar de carvão, brasa, drama,

chama que dá calafrio


mesmo em que mais longe do risco.
( Até o memento em que os toureiros
canalizam seu ímpeto cego,

se apoderam dele: e o calafrio


muda de curso, como um rio.).
(Idem p.656)

A poesia tem essa necessidade de buscar o risco, a


finura de um Manolete, fazendo sempre o máximo possível,
apesar de estar sempre num instante suscetível de
aperfeiçoamento, de conhecimento, de esforço diuturno.
Sobre esta necessidade de maestria, o próprio João Cabral
narra o seguinte episódio: “Uma vez eu estava num lugar de
flamenco com uma sevilhana e tinha um sujeito cantando. Eu
perguntei: “Te gusta este catador?” E, ela disse: “No! No
expone! “ Não se expõe! Não faz no máximo. E o sevilhano
quer sempre a coisa feita no máximo. Fazer no extremo,
onde o risco começa” (http: www.giros.com.br/projeto
joãocabral/joao cabral depoim touradas.htm 16/8/2003).
Assim, o sevilhano imita a perfeição da poesia e esta por sua
vez busca as lições da bailadora “Carmem Amaya, de Triana”
(p. 675) que ensina os caminhos do poético com a sua dança,
no segundo conjunto de dísticos:
“Dançar não é coisa aprendida,
mas o aprender-se cada dia.

assim é que entendo a lição;


sabê-la, não.

Fugir do que ela faz de gesso,


dançá-la mas sempre do avesso”.
(Idem p.674)
A dança faz par com a perfeição, aqui expressa pelos
dísticos que também inferem sobre a essência da dança, com
suas ondulações, seus gestos extremos, suas cores quentes
como labaredas, sua harmonia, ritmos que exigem o máximo
da bailadora, que assim se fez diuturnamente .
Todas essas lições de vida e arte refletem a teoria de que
“o poeta não nasce poeta”( José Fernandes, 1984, p.179), 288

ele se constrói ao longo de sua obra, aprimorando-a na luta


consciente, diuturna, até chegar ao ideal da forma. Nessa
construção duradoura, que amadura a forma, a poesia/ dança
com as palavras, leva o artista um ser intimorato e
confiante no futuro. Daí surge o poder de penetrar senhor de
si e da arte no reino sagrado das palavras. Desta forma, não
mais participa em sua criação como pessoa particular, porém,
como inteligência que poetiza, “ como operador da língua,
como artista que experimenta os atos de uma transformação,
de sua fantasia imperiosa ou do modo irreal de ver um
assunto qualquer, pobre de significação em si mesmo” (Op
cit Hugo Friedrich. 1978, p. 17).
Andando Sevilha exibe em cada cena/ verso um rio de
imagens, de ideias desse discurso-rio cabralino que,
amadurecido, quer poetizar o mundo como da mesma forma
que propôs “Servilhar o Mundo” (Idem p. 663):

Como é impossível, por enquanto,


civilizar toda a terra,
o que não veremos, verão,
de certo, nossas tetranetas,

infundir na terra esse alerta,


288
FERNANDES, José. O Poeta da Linguagem. Rio de Janeiro:
Presença Edições, 1984.
faze-la uma enorme Sevilha,
que é a contra-pelo, onde uma viva
guerrilha do ser, pode a guerra.
(Idem p.663)

Sevilha, portanto mais do que o portal da Espanha e


esquina do mundo se afigura de um rio poético, no sentido
ideal, o mundo inteligível defendido por Platão. Daí a
necessidade de “sevilhar” o mundo que só percebe o mundo
sensível. Este mundo que é como uma caverna onde os
homens se encontram acorrentados de modo a não poderem
ver os objetos projetados nas paredes: são a única realidade
que conhecem, continuidade de vagas imagens e de palavras
escolhidas ao acaso para designa-la. Mas se um prisioneiro
conseguir escapar, ele verá que há objetos para além de suas
sombras, perceptíveis por meio de sentidos e sobre os quais
se podem formular opiniões. Um pouco, o fugitivo já pode
ver a claridade da luz que vem da entrada da caverna, que o
ofusca no início, mas que aos poucos lhe permite conhecer
melhor a realidade. A última etapa situa-se fora da caverna,
onde o sol brilha em todo o seu esplendor, eliminando a
verdadeira realidade formada de ideias, das quais a mais
importante é o Bem. Mas a viagem do fugitivo não termina:
ele não pode deixar de praticar o Bem. Por isso, deve voltar à
caverna, a fim de organizar os que lá ficaram de acordo com
o modelo ideal – mesmo que seja incompreendido e, em
última instância, ser até assassinado.
O poeta corre esse perigo uma vez que, maravilhado
com a paisagem do rio Sevilha/palavra, tenta mostrá-la
àqueles que não a conhecem, mesmo correndo o risco de não
ser compreendido, de ser assassinado, ser considerado
hermético por ignaros ou leitores obtusos. Porém, apesar das
sombras, existe a luz da palavra poética que Sevilha o mundo
e corre sempre para outras margens.
A arte de João Cabral não se propõe a fazer uma
representação do mundo, numa simples cópia. O espaço
geográfico é apenas um ponto de partida para sua criação. Os
espaços se cruzam na linguagem, rio do signo poético.
Assim, aparece sua terra natal, Recife, seu Nordeste, que
possui lição de poesia densa, uma Educação pela pedra, A
escola das facas e tem semelhança com Sevilha, na
luminosidade, na vida tocada pelo impulso do exercício da
conversa, pela vivacidade. As analogias nestes espaços estão
formuladas em palavras no poema “Sevilha em Casa” (Idem
p.638) quando expressa: Aloísio lhe dizia/ que o Capibaribe
e o Guadalquivir/ são de uma só maçonaria (Idem p.638).
Isto porque ambos, antes de tudo, são rios de signos desta
poética das águas. Conforme o apresentado, os rios
paradigmáticos de Cabral como o Capibaribe ou
Guadalquivir ( Wadi al-kebir) - o rio grande, são mais pontos
de referência, ou mesmo, nascente desse discurso-rio
maior: o poético. O rio cabralino, mais do que uma corrente
de água, um curso de rio, constitui-se num discurso-rio ,
cuja sentença maior pode ser desaguada num mar de
significações. Este discurso tem a plenitude da linguagem
poética.
João Cabral e o canavial

CONCLUSÃO

Na obra João Cabral de Melo Neto (2001) de João


Alexandre Barbosa, este ensaísta instrui sobre a publicação
do livro Duas águas (1956) de Cabral, no qual este poeta
reuniu os livros dos anos 40 a 55. Este livro trazia a sugestão
de uma divisão da obra em duas vertentes: a dos poemas
voltados para a expressão orínica e de vigília e a da poesia
social. Segundo este ensaísta esta divisão não pode ser
tomada ao pé da letra, mas que:
...as “Duas Águas” ao mesmo tempo que localizavam a
poesia num espaço regional, o do Nordeste, e por força do
trabalho poético que se definia pelas tensões entre as duas
águas, criavam também o espaço para que esse regional
fosse apreendido de modo mais crítico e, por aí, mais
universal.
Desse modo, talvez a melhor leitura a fazer do título da
antologia seja a de revezamento ou, no mínimo, de mistura,
em que a predominância seja antes da existência de águas
do que de duas a da poesia que se espraia e que unifica
emoções, efetividades e pensamentos do poeta por entre a
variedade dos estímulos da realidade.
Realidade que, para ele, parece ser tanto a da própria
poesia, como a sua história e sua linguagem, por onde
passam leituras de outros poetas e outras tradições
poéticas, e a reflexão sobre elas no corpo do próprio poema
que está sendo escrito, quanto a da sua região de origem,
também com a sua história e sua linguagem.
A articulação entre as duas, propiciando o aparecimento
de ambiguidades e tensões específicas do trabalho poético,
vai estar no núcleo da sua poética, e, por isso mesmo,
aquele livro de 1956 não é só um resumo da obra produzida
até então, mas um módulo, ou mapa de orientação, para o
que virá em seguida. (BARBOSA, J. A. (2001) p.10). 289

Assim, João Alexandre sintetizou a marca da poesia


cabralina que fez de sua literatura seguir um caminho de
feição original, muito particular, que se enquadra na
“geração de 45” apenas por um simplismo cronológico.
Destarte, João Cabral não é um poeta que segue os
preceitos neo-modesnistas, mas um artista que cria um
espaço poético sem negar as conquistas da aprendizagem
anterior, ainda que negativas e que dá expressão a
significados social e historicamente mais amplos. De acordo
João Alexandre Barbosa (2001), com João Cabral:

Criava-se, e é o que o poema vem fixar pela primeira


vez em sua obra, uma estreita dependência entre a
poética e a ética, ou entre poesia e conhecimento
social e histórico, como uma maneira de inserção das

289
BARBOSA, João Alexandre. João Cabral de Melo Neto. São Paulo:
Publifolha, 2001.
relações entre criação poética e expressão da
realidade.
As respostas iniciais de João Cabral, portanto,
serão as marcas tensas de uma poesia que, querendo-
se consciente do fazer e da construção, se abre, cada
vez mais, para dizer da experiência dos homens e do
mundo (Op. Cit BARBOSA, J. A. (2001) p.14).

Desta forma, João Cabral de Melo Neto tem uma


original visão de mundo: visão de engenheiro, geométrica,
sólida, “educado pela pedra”, como ele próprio afirmou.
Destarte, possui total domínio sobre a arte da palavra e
uma teoria sobre o poético. E, desta teoria surge o João
Cabral Clássico. Desta maneira, Cabral é clássico porque
humanista, lúcido, racional, objetivo. Do racionalismo da sua
poética surge uma arte essencialmente humana, uma vez ao
presentifica uma realidade severa, dura, pétrea em forma de
linguagem poética. O mundo real se transforma num mundo
poemático. Assim, seus poemas trazem as lições silenciosas
da pedra, com sua didática e construção. Porém, ao lado
desta realidade denominada de “fazer seco”, surge o
discurso do rio em sua poesia, que presentifica os rios e as
águas de um mundo pré-existente, mas que também
metaforiza a fluidez e a plussignificação da linguagem
poética.
E o poético cabralino expressa a transfiguração de um
mundo real, de pedras, escolas de facas, vidas severinas;
esta dura realidade se transforma, por meio da alquimia do
verbo, num discurso que, à semelhança das águas de um rio,
corre sempre para outras margens da polissemia. Esta
alquimia verbal, foi denominada de o poético, realizada a
partir da vitória do brando,( as águas, a linguagem
polissêmica, ou o discurso do rio ), sobre o duro (as pedras,
realidade ou ainda palavras em “estado de poço”). Este
embate vai produzir uma energia, que transfigura as pedras,
ou palavras em “estado de poço”, numa linguagem fluída
como águas, ou como ondas que se espraiam em
significações e movimentos.
Para comprovar essa constatação, depois do capítulo
estatístico sobre a presença do aquático e da pedra, quando
verifiquei que a dimensão da existência de uma poética das
águas em Cabral era mais considerável do que a presença
da pedra, analisei o texto teatral Morte e vida Severina
publicado em O discurso do rio em Cabral 290.
Esse estudo Morte e vida Severina sobre não inseri
nesse conjunto de ensaio, mas devo comentar aqui que, à
medida que realizava esta pesquisa sobre o auto de natal , de
joão Cabral, eu ficava mais convencida que esta peça teatral
traduz, em sua totalidade, um símbolo ambivalente por
corresponder à força criadora da natureza poética e da
travessia existencial cheia de desertos, pedras e dificuldades.
E que o fluir das águas de um rio foi representado nesta
peça teatral cabralina na temática e na forma. No aspecto
temático, este auto de natal flui vida, morte e renovação,
como as correntezas de um rio, uma vez que o curso de suas
águas é própria corrente da vida e da morte. O personagem
Severino tem o Capibaribe como o seu rio guia, mas deseja
alcançar o mar e uma vida menos Severina. Em relação ao
rio, pode-se considerar: a descida da corrente em direção ao
oceano, o retomar o curso das águas, ou a travessia de uma
margem à outra.

LIMA, Maria de Fátima Gonçalves. O discurso do rio em João


290

Cabral. Salmanca: Lusoedições, 2016.


A descida para o oceano é ajuntamento das águas, o
retorno à indiferenciação, o acesso ao Nirvana: o remontar
das águas significa, evidentemente, o retorno à Nascente
divina, ao Princípio. Em relação ao percurso do itinerante,
primeiro ele se depara com o corte do rio Capibaribe que,
antecipa, na psicologia do retirante e na proposta ao leitor, os
vários encontros que Severino terá com a morte, sempre que
caminha por onde não há água. Somente ao chegar ao Recife,
quando novamente reencontra a água, é que ocorre a imagem
da vida, pelo nascimento do menino.
Considerando ainda mais a totalidade do texto, este
estudo conclui que existem dois planos de fundo aos quais se
sobrepõe uma estrutura mais imediata:
O primeiro, é a estrutura tradicional do auto. Sobre
esta, o autor monta a realidade da vida Severina, que é o
mesmo que a morte severina. Desta forma, sobre um auto de
natal se sobrepõem as condições de vida do “pernambucano”,
o retirante que, fugindo da seca (a morte) chega ao Recife e
encontra a vida (o rio, o mar), mas esta é a vida severina. No
final apenas, o nascimento do menino fecha o lastro do auto
natalino que suporta a saga do retirante. O auto, portanto, se
faz por dois movimentos contraditórios e o menino que
nasce, na realidade é uma paródia do Menino Jesus.
O segundo, é a estrutura metalinguística do auto,
uma vez que seu autor à medida que transmite uma
mensagem de morte, vida e renovação põe em prática sua
religião: rezar seu rosário com as fileiras de pérolas
(palavras) num fio do discurso. Através desta oração, com
raciocínio, cálculo, precisão e paciência, o poeta descobre o
poder criador das palavras. O discurso do rio da linguagem
de João Cabral nasce na pedra estática, amorfa, sem lógica,
parada em si mesma, como a água em estado de poço,
poetizada pelo próprio poeta. Depois, ganha forma na lógica
da linguagem, mas percorre um árduo caminho, de pedras,
redemoinhos, conflitos e enigmas. Mas é exatamente este
percurso complexo que vai gerar a energia que nasce do
texto poético. É transpondo todas dificuldades, que o rio do
discurso atinge o poético, que é um mar significações, que é o
fim e o princípio de tudo, que é um renascer contínuo.
Ao estudar “O discurso do poema O rio” conferi um
processo que reiterava esta fenomenologia da arte cabralina,
na qual a severidade do mundo real, pétreo é vencida pela
linguagem poética, no seu caminho de mar. O rio é espécie
de ensaio sócio-político expresso em forma de prosopopéia,
no qual o mundo real é transfigurado num mundo poemático.
Assim, O rio conta a história dos rios pernambucanos,
que são Severinos como os homens daquela região, são
como as palavras perdidas no deserto do silêncio do seu
estado de poço, são também reflexão sobre a construção do
próprio discurso, da própria palavra. O rio personagem
expõe por meio do seu discurso poético um ensaio sócio-
político traduzindo o seu mundo de rio de uma realidade pré-
existente, o mundo do Capibaribe.
Esta voz poética encarnada em rio exprime uma
observância para a desumanização da nossa sociedade.
Assim, o rio representa uma renúncia ao discurso daqueles
que são considerados humanos, mas que se apossaram das
coisas e dos seres humanos, demasiadamente humanos, para
destruí-los em proveito próprio. Nesse poema, a arte se
transfigura no rio Capibaribe. Este rio proletário e às vezes
indigente tem, como tal, competência e possibilidade de
exprimir as dores daquele mundo de rios e homens severinos.
E, ao presentificar sua realidade, o rio materializa o discurso
da obra de arte, com seus estranhamentos e
plurissignificação, porque enquanto poetiza sua realidade,
reflete sobre a própria construção literária.
Destarte, o rio representa a própria obra de arte e um
filósofo/ poeta ao mesmo tempo. E, como tal, examina as
dores e as vitórias dos rios e dos homens que lutam contra as
intempéries das pedras e toda sorte de dificuldades. Ao
transmitir estas vidas em forma de poesia, alcança sua
alquimia verbal, em transformar aquela dura realidade em
arte. Deste modo, as palavras “em estado de poço” alcançam
a sintaxe invisível do discurso poético e discorrem para o
mundo da polissemia.
Desta maneira, o filósofo-poeta dá suas lições de rio
aos homens e prega poesia e humanismo, além de despertar
o ser humano para sua humanidade perdida no deserto da
insensatez e ignorância.
As ideias introduzidas nos estudos anteriores foram
confirmadas e concretizadas em “A metáfora da água em
João Cabral de Melo Neto” . E, nesta parte, seguindo os
postulados de Gaston Bachelard, pudemos examinar como a
presença da água, na obra cabralina, figura como força
imaginante: formal e material.
Assim, concluí que a arte de João Cabral exprime por
meio da imaginação formal, um desenho poético do discurso
do rio em forma de metáfora nas imagens, ritmos e
construção textual. Para exemplificar nossa tese analisamos
os poemas “Imitação das Águas”, “Uma mulher e Beberibe”
e “ O Canavial e o Mar” e “O Cão Sem Plumas”. Deste
último, percebi que o processo metafórico expressa imagens
insólitas, numa construção que transmite a imagem do
próprio rio, na lentidão, na força do discurso do ser deste rio
e todo o seu poder de construção de uma linguagem real, ao
presentificar uma realidade; e literária ao transfigurar e
metapoetizar sobre a construção da arte da palavra. Neste
poema também foi constatada a reiterada vitória do brando
sobre o duro que marca a arte cabralina.
Ao examinar a imaginação material, tomei como
paradigma o poema que traz a teoria-poética desse discurso
do rio no poema “Rios sem discurso” e em outros poemas nos
quais o discurso poético e a água aparecem como tema
principal ou como tema secundário, sob o símbolo de
transparência e liquidez ou como matéria de chuva e
poesia.
Que a pedra representa um dos elementos materiais
importantes na obra de João Cabral, não é novidade, mas o
elemento água, mais do que isto, é essencial, exprime a
própria criação poética, que considerei como a “palavra
úmida”, uma vez que desenvolve a semente da vida e o dom
da criação. Esta palavra representa a linguagem saída do “
estado de poço”, a denotativa, quando adquire conotação e
pluralidade na fluidez das ondas da linguagem, em seu
discurso a acionar um rio poético marcado pela polissemia.
Neste ponto, concordei com João Alexandre Barbosa quando
afirma que o livro Duas águas (1954) de Cabral traz a
essência da poesia deste autor, e que em sua poética não
exprime “duas águas” simplesmente, mas águas, conforme
já citei anteriormente. As águas dessa poesia nascem da
“palavra- úmida”, que representa a nascente dessa arte,
surgida da pedra sertaneja, mas que flui para um discurso
que expressa um sentido ilimitado. Estas águas, estão
metaforizadas nos rios, mas também nas cidades, como foi
conferida na relação entre Sevilha e a poesia, quando esta
cidade é configurada no signo do poético, a partir da
pluralidade de ações, linguagem e acontecimentos. Isto quer
dizer que a vivacidade da cidade de Sevilha traduz as ondas
da linguagem de João Cabral, nascidas da “ palavra-úmida’.
O próprio poema “Rio sem discurso” traduz uma
teoria didático-poética da “palavra-úmida” e da ação do rio
da linguagem ou do discurso-rio a caminho da sentença
absoluta: a plenitude da linguagem poética que reside das
águas da linguagem, quando esta realiza o Fiat Lux da
criação. E esta ação efetua-se a partir da colisão das forças
opostas, o que materialmente acontece em Cabral: a
oposição entre o duro x brando, pedra x água, realidade x
arte, mundo real x mundo poemático, palavra em estado de
poço x discurso rio. Enfim, a partir destas oposições, o
poético se instaura nas ondas da linguagem, produzindo uma
eletrização. Esta linguagem poética de alta voltagem, ou “
‘alta linguagem’ ” (Jean Cohen (1987), p. 16) , como diria
Mallarmé, realiza uma poesia clássica, pela racionalidade,
harmonia, luminosidade, fluência e um humanismo que se
traduz nas meditações fenomenológicas. O discurso
cabralino é um rio inesgotável de interpretações, mas em
cada versão, o humano brota das palavras úmidas de arte
poética. E, neste instante, um novo mundo de reflexão passa
a ser acionado. Este é o grande legado deixado por João
Cabral e o seu diferencial: no brilho da poesia das águas, o
homem pode encontrar o rio inexaurível que mora na arte da
palavra e também no próprio ser.
MARIA DE FÁTIMA GONÇALVES LIMA
“Talvez tenha sido picada pela abelha dos
ensinamentos de Clarice Lispector, que dizia ter
nascido para três coisas e para as quais daria sua
vida: Criar seus filhos, Amar os outros e
Escrever. Essas três coisas também são minhas e
nelas insiro minha Fé. [...] A fé me possibilita
também a segunda coisa para a qual nasci: amar
a humanidade. Esse amor eu o desenvolvo na
educação. [...]. A terceira coisa que a fé me
conduziu e para qual nasci foi escrever. Escrevo
porque no ato da escrita posso falar de mundos e
criar outros. O mundo que mais me encanta é o da
poesia. Gosto de jogar com o ludismo enigmático
do poético e com sua construção solitária
e solidária”.

Nasceu no dia 12 de fevereiro de1960 em Araguaína,


norte de Goiás, hoje, Tocantins. Filha de Manoelina
Gonçalves Leitão e Francisco das Chagas Leitão. Seus avós,
materno e paterno, foram pioneiros naquela cidade. Fez seu
primário na Escola Evangélica de Araguaína, o ginásio e
ensino médio (análises clínicas) no Colégio Santa Cruz.
Sempre foi uma intelectual, amante da poesia e integrada às
artes, especialmente o teatro. Em 1979, o sonho de ampliar
seus estudos arrastou a idealista à Capital – Goiânia. No ano
seguinte ingressou na Faculdade de Direito da Universidade
Católica de Goiás, mas a paixão pela literatura induziu a
jovem ao ingresso de outra graduação: Letras Vernáculas,
também na UCG, hoje Pontifícia Universidade Católica de
Goiás. Em 1985, concluiu as graduações Direito e Letras. No
ano de 1986 prestou exame da ordem dos Advogados e
começou a trabalhar na área jurídica e cursinhos
preparatórios para vestibular. No mesmo período, ingressou
no Mestrado em Letras – Literatura da UFG. No início de
1989, defendeu sua dissertação de Mestrado: O signo de
Eros na Poesia de Gilberto Mendonça Teles, obra que mais
tarde ganharia o concurso dos Novos Valores da Literatura
( Prêmio da Fundação Jaime Câmara). É casada com o
engenheiro Everaldo Correia de Lima e mãe de três filhos:
Everaldo Correia de lima Júnior, Cecília Menezes Gonçalves
Lima e Diana Gonçalves Lima. A advogada se revelou uma
palestrante movida por sua capacidade comunicativa e seu
dom para recitar poemas que encantavam as plateias dos
cursinhos e seminários da época. A partir de 1990, passou a
integrar a equipe que escrevia o Vestilivros, depois,
Vestiletras (Suplemento Literário do Popular) analisando
obras literárias. Nesse período também já publicava artigos
em grandes revistas nacionais. Em 1998, foi trabalhar no
Departamento de Letras da UCG, como professora convidada
até 2000, quando foi aprovada no concurso para docentes
efetivos. Nesse período já fazia doutorado na pela
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP) Campus de São José do Rio Preto. Em 11
fevereiro de 2004, com a tese sobre O discurso do Rio em
João Cabral de melo Neto, recebeu o título de Doutora em
Teoria e Crítica Literária. Entre 2008 e 2009, realizou seu
Pós-Doutoramento pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro (PUC - Rio com a tese “As três margens da
arte Roseana (Seis autores contemporâneos no curso da
terceira margem da palavra)”, sob a orientação do professor
emérito doutor Gilberto Mendonça Teles. Em 2014, concluiu
outro Pós-doutorado pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo- PUC SP (2014) com a pesquisa com o estudo
Poética e Performatividade. É docente na Graduação e Pós-
Graduação Curso de Letras da PUC Goiás atuando
especialmente em temáticas referentes a estudos sobre a
linguagem do texto poético, poéticas do imaginário,
ecocriticismo, Escritas contemporâneas, arte e performance.
Foi Vice-Coordenadora período [01/07/2008 a 09/03/2009] e
exerce o cargo de Coordenadora do Pós-Graduação em Letras
(PPGLETRAS) - Mestrado em Letras - Literatura e Crítica
Literária da PUC Goiás desde 10/03/2009. Liderou o Grupo
de Pesquisa sobre A linguagem Jurídica, Direito e
Literatura; É Vice-líder do Grupo de Pesquisa CNPq –
Estudos Literários e também do Grupo de pesquisa do
CNPq – Poéticas do Imaginário, Memória e História; Fez
parte, como pesquisadora, do projeto de pesquisa O Romance
em Goiás. Coordenou o projeto de pesquisa A
transfiguração da injustiça e o silêncio obra de Carmo
Bernardes e Bernardo Élis e Linguagem Poética e
Performatividade; Coordena atualmente o Projeto
Perfomance, Imaginário e Ciberecopoesia em Movimento.
Faz parte do Comitê Editorial da Revista Texto poético (GT-
Teoria do Texto Poético - ANPOLL). Integrou a equipe de
Editores do LL Jounal; É Membro do editorial da Revista
LHM da UNIOESTE, PR e do conselho editorial da Revista
Guará da PUC Goiás; Parecerista das revistas LL Journal
(USA) e Teoria do Texto Poético, entre outras. Membro
efetivo do GT- Teoria do texto poético (ANPOLL). Membro
efetivo da ABRALIC. Consultora Ad-hoc CAPES.
Desenvolve um estudo sobre A teoria da linguagem poética
sobre o qual tem ministrado muitas palestras em Congressos
e Encontros Literários e Científicos por todo o Brasil e outros
países. Recebeu vários prêmios, entre os quais são destaques:
Novos valores da literatura – da Fundação Jaime Câmara
(2002), e a Câmara Municipal de Goiânia deu-lhe o diploma
de Título Honorífico de Cidadã Goianiense (2012), pelo
relevante serviço prestado ao município e às Letras e Troféu
Goiazes – gênero crítica literária da Academia Goiana de
Letras (2013). Reconhecimento Pelos Relevantes Serviços
Prestados ao Estado De Goiás, Assembleia Legislativa do
Estado de Goiás, 2019. Diploma de Honra ao Mérito
Câmara Municipal de Goiânia, 2019; Diploma Honra ao
Mérito Troféu Jaburu. 2019; Diploma Honra do Mérito
Troféu Buriti 2019; Homenagem aos Acadêmicos -
Prefeitura de Goiânia Pelos 80 Anos da Academia Goiana
de Letras, 2019; Homenagem aos Acadêmicos - Do
Tribunal de Justiça de Goiás Pelos 80 Anos da Academia
Goiana de Letras, 2019; Certificado de Mérito Artístico do
HUGOL - Hospital Estadual de Urgências da Região
Noroeste de Goiânia Governador Otávio Lage de Siqueira.
2020 – Diploma de membro efetivo da Academia Goiana de
Letras - Empossada no dia 20 de setembro 2018 na Cadeira
nº 5; Além dos grupos de pesquisas, pertence a várias
associações culturais; É membro do Conselho de Ensino,
Pesquisa Extensão e Administração da PUC Goiás. Membro
do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio
Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de Goiânia;
Membro da União de Escritores, Secção Goiás (UBE). É
membro da Academia Goiana de Letras, (AGL) titular da
cadeira nº 5. Na ocasião de sua posse no dia 21 de setembro
de 2018, o Poeta-crítico Gilberto Mendonça Teles, no
discurso de saudação da nova acadêmica proferiu traçou a
seguinte síntese sobre a autora:
“A Academia Goiana de Letras engalana-se hoje
para a recepção da Profa. Doutora MARIA DE FÁTIMA
GONÇALVES LIMA, eleita em 7 de junho deste ano.
Natural de Araguaína (hoje Estado do Tocantins),
Maria de Fátima vive há trinta e quatro anos em
Goiânia, com frequentes saídas para congressos e
conferências em universidades de vários Estados e do
Exterior - Portugal, Espanha, França, Itália e Rússia.
Pode-se dividir a vida intelectual da Profa. Dra. Maria
de Fátima em três fases bem definidas: a da Formação
em Araguaína; a da Transformação em Goiânia; e a da
Confirmação na PUC de Goiás -- espaço goianiense e
lugar universitário de produção científica e humanista
de repercussão no País. Na verdade, as três fases podem
mesmo ser vistas como duas, como aliás está no título
deste discurso que se denomina DA FORMAÇÃO À
CONFIRMAÇÃO, ocultando o termo
“Transformação”, implícito no próprio sintagma, uma
vez que o que se vai mostrar adiante é pura
“transformação”, é a essência de tudo aquilo que existe
de “confirmação” na vida cultural da Profa. Maria de
Fátima Gonçalves Lima.
O termo Formação entra aqui com ênfase no
sentido complementar dado pelo sufixo – ção, isto é,
ato de ou maneira como se organiza uma realidade,
física ou psíquica. Ou, no caso concreto, período em
que se criou a personalidade do sujeito: seus anos
iniciais de aprendizagem, a sua escolaridade cumprida
na cidade natal, ao lado dos pais e avós maternos e
paternos, proprietários rurais e pioneiros da cidade de
Araguaína. É a fase em que se iniciou os seus estudos.
Fez seu primário na Escola Evangélica da Cidade; o
ginásio e o ensino médio no Colégio Santa Cruz.
Influenciada pela mãe, professora Manoelina
Gonçalves Leitão (presente nesta solenidade), muito
cedo teve contato com a poesia. A novel acadêmica
conta, com bom humor, que aos quatro anos, foi
preparada para recitar um poema. No momento da
apresentação, movida pelo medo ou pela timidez,
inventou que estava com dor no pé, começou a chorar e
com isto se livrou da primeira perfórmance em sua
vida. Para acabar com o acanhamento nas
apresentações da escola, a sua mãe a incentivou na
leitura de poesia e na participação de um grupo de
teatro, como o que encenou a Dança Esquálida de
Hugo Zorzetti, ocasião em que, aos dezesseis anos,
recebeu o prêmio de melhor atriz no ginásio do Colégio
Santa Cruz. Não há dúvida de que esse aprendizado
conduziu a adolescente no sentido do amor à arte da
palavra e à formação cultural do bom gosto pelas aulas
e conferências performáticas, como pude assistir há
dois anos na Sorbonne. No fundo tem algo de analogia
com o belo romance de Goethe sobre a aprendizagem
do jovem Wilhelm Meister no seu desenvolvimento
espiritual, psicológico e social.
A fase de Transformação [que não se quer
ficar oculta] se dá quando alguém, por si mesmo ou por
influência cultural, muda de uma posição A para uma
situação B, na qual permanece em perspectiva de outras
mudanças para melhor. Aos dezenove anos, Maria de
Fátima decide vir morar na Capital do Estado, iniciando
assim a fase de grande atividade e de grande
transformação em sua vida intelectual. Em Goiânia,
com o objetivo maior de completar os estudos e ampliar
os conhecimentos, imediatamente ingressou na
Faculdade de Direito da Universidade Católica de
Goiás. Acontece que a paixão pela literatura a levou
também simultaneamente ao curso de Letras
Vernáculas na mesma Universidade. Naquela época,
vista de hoje, tudo parecia mais fácil e Maria de Fátima
soube aproveitar bem o seu tempo. Já havia o celular,
mas não havia ainda o whats App, que eu faço questão
de nunca usar. Para aproveitar mais ainda o seu tempo,
casou-se em 1984 com o engenheiro Everaldo Correia
de Lima, com quem vive rodeada de livros, de alunos,
de plantas ornamentais e dos três filhos que, afinal,
chegaram. Everaldo Jr., Engenheiro; Cecília Lima,
bailarina e Engenheira; e Diana Gonçalves Lima no
segundo ano de Medicina. Concluindas as duas
graduações (de Direito e de Letras), Maria de Fátima
imediatamente prestou exame na Ordem dos
Advogados e começou a exibir a sua carteira
profissional e a trabalhar como advogada. Não sei se
chegou a trabalhar muito, pois intelectualmente
irrequieta, foi logo atraída para o curso de Mestrado em
Letras da Universidade Federal de Goiás. Sob
orientação do insigne Prof. Dr. José Fernandes, meu
compadre e meu ex-orientando no Doutorado da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. José
Fernandes foi o responsável pelo aprimoramento
teórico de Maria de Fátima, levando-a à leitura dos
principais estudos da Poética e ao conhecimento de
destacados poetas do Brasil e do exterior. Dois anos
depois, no início de 1989, defendeu sua dissertação de
Mestrado: O signo de Eros na Poesia de Gilberto
Mendonça Teles, obra que ganharia o concurso dos
Novos Valores da Literatura Goiana (Prêmio da
Fundação Jaime Câmara), editada em Goiânia, com
prefácio da eminente acadêmica Augusta Faro Fleury
de Melo. A capacidade comunicativa e o dom de recitar
poemas de Maria de Fátima prendiam as plateias e
fizeram com que logo a advocacia fosse substituída
pelos famosos e ricos cursinhos preparatórios para os
vestibulares de Goiânia. A professora brilhava, crescia
na popularidade entre os alunos e, seguindo o seu
talento de escritora, passou a integrar a equipe que em
1990 escrevia o Vestilivros, depois, o Vestiletras (do
Suplemento Literário de O Popular), com o objetivo de
analisar obras literárias para os vestibulares. Nesse
período também já publicava artigos nas grandes
revistas universitárias do País.
Em 1998 encontramo-la, na qualidade de
professora convidada, no Departamento de Letras da
Universidade Católica de Goiás. O ano 2000 será,
talvez por seus números redondos, um ano cheio de
expectativas e de esperanças, abrindo uma fase – direi
mais elevada - da vida de nossa ilustre recipiendária.
Começa por ser aprovada no concurso para docentes
efetivos na agora Pontifícia Universidade Católica de
Goiás (PUC Goiás). Já cursava o doutorado sobre
Teoria e Crítica Literária na Universidade Estadual
Paulista (UNESP), de São José do Rio Preto,
concluindo-o em 2004 com a tese sobre O discurso do
Rio em João Cabral de Melo Neto, reeditado na
Espanha, na Universidade de Salamanca. Entre 2008 e
2009 realizou seu Pós-Doutoramento na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
com o estudo “As três margens da arte Roseana: Seis
autores contemporâneos no curso da terceira margem
da palavra”. Coube-me o privilégio de supervisionar
esse estudo, sobre o qual dei, ao final, a nota dez (10) e
o seguinte parecer:
A Autora valeu-se da famosa imagem roseana da
“terceira margem” para estudar cinco poetas e um
contista do Estado de Goiás [...] e se destaca por uma
trajetória séria nos estudos literários em Goiás, [...] com
doutorado sobre o discurso do rio em João Cabral e,
agora, com o seu pós-doutoramento num volumoso
estudo sobre escritores de Goiás” [...] “A imagem de
Guimarães Rosa serve de bordão para acompanhar a
leitura de sua pesquisa e desliza como uma sombra ao
longo dos escritores de sua terra”.
Ademais desse pós-doutorado soube em 2014 que
Maria de Fátima fez outro [“Poética e
Performatividade‘] na Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, penso que batendo o recorde de “pós-
doutoramento” no âmbito das letras em Goiás. Finda-se
aí o período agitado da fase de Transformação na vida
cultural de Maria de Fátima.
Finda-se, mas concomitantemente se inicia a
sua fase – direi culminante -- de Confirmação. Toda a
sua produção intelectual passará daqui por diante a ser,
não só a confirmação em nível superior do trabalho de
literatura e de magistério, mas também a atuação em
uma nova proposição social no sentido maior da
Universidade em que trabalha, e engrandece. É claro
que usamos o termo confirmação no sentido latino da
confirmatio, ou seja, consolidação, afirmação que se
confirma, como na crisma ou como na retórica a parte
da argumentação que demonstra a justeza de nosso
próprio ponto de vista. Ao sair do radical forma-
(presente em Formação e Transformação) estamos
também sugerindo em Confirmação uma nova maneira
de pensar e praticar a vida cultural e espiritual, num
grau sublime, bem acima do que praticava no ensino
dos cursinhos de vestibular.
Docente superestimada na Graduação e Pós-
Graduação do Curso de Letras da PUC Goiás, atua
especialmente em temas referentes a estudos sobre a
linguagem do texto poético, como Poéticas do
Imaginário, Ecocriticismo, Escritas contemporâneas,
Arte e Perfórmance. Além disso, exerce há dez anos o
cargo de Coordenadora da Pós-Graduação do Mestrado
em Letras, com especialidade em Literatura e Crítica
Literária, o que não quer dizer que não estimule
também os estudos sobre ficção: sobre crônica, conto,
romance, sobre o teatro e sua performatividade e -
quem sabe? – sobre pesquisas histórico-literárias, à
venir.
Maria de Fátima Gonçalves Lima Publicou ensaios
literários no jornal O Popular de Goiânia (Participou,
entre 1990-2006 , da equipe que escrevia O
Vestiletras)./Publicou mais de 130 artigos de crítica
em jornais e revistas de Goiás, de outros estados e
países. Publicações inseridas no currículo lates .

I – OBRAS DA AUTORA
1. CRÍTICA / ENSAIO

1.1. LIVROS
O signo de Eros na poesia de G.M.T. Goiânia: Editora
Kelps, 2005
Três Líricas Performativas. Coleção Prosa e Verso,
Goiânia: Editora Kelps/ UCG, 2007.
Leitura & Poesia I,. Coleção Prosa e Verso, Goiânia:
Editora Kelps/ UCG, 2009/
Leitura e Poesia II. Coleção Prosa e Verso, Goiânia:
Editora Kelps/ PUC, 2011/
Leitura & Poesia III. Coleção Prosa e Verso, / Goiânia:
Editora Kelps/ PUC, 2012/
O Discurso do Rio em João Cabral. Salamanca: Editora
Lusoedições, 2016
O discurso do rio em João Cabral. Goiânia: Kelps 2016.
2ª edição 2020
O signo de Eros na poesia de G.M.T e outros ensaios.
Goiânia: Editora Kelps, 2020.
A poesia brasileira do Barroco ao Modernismo. Teoria e
Prática. Goiânia: Editora Kelps, 2020
Arte e Poesia em Goiás. Teoria e Prática. Goiânia. Kelps,
2020.

1.2. ALGUNS ARTIGOS PUBLICADOS EM


REVISTAS ESPECIALIZADAS:
O Cão sem plumas de João Cabral de Melo Neto. Glauks.
(UFV), v. 12, p. 20, 2015.
O discurso do poema "O rio" como expressão do eu-lírico
na poesia de João Cabral. Texto Poético, v. 10, p. 06, 2011.
O discurso do rio de João Cabral como didática da poesia
das águas. LIMITE - Revista de Estudios Portugueses y de la
Lusofonía, Cárceres. v. 5, p. 195-214, 2011.
A Poética das águas em Educação pela Pedra de João
Cabral de Melo Neto. Revista Babilônia, Portugal. v. 5, p.
40-55, 2014
Saciologia Goiana: o sentido da arte de a (r) mar o
poema. Guará: Linguagem e Literatura, v. 3, p. 79-89, 2013

2. LITERATURA INFANTO-JUVENIL
O castelo de Branca de Neve. Goiânia: Editora Kelps. 2004
Renato e as bananas Ourinhos. Coleção Histórias que
vovó Maria contava. Goiânia: Editora Kelps/ Learte 2006;
O papagaio e a rocodela. Coleção Histórias que vovó
Maria contava. Goiânia: Editora Kelps/Leart. 2007;
Sopa de pedras. Coleção Histórias que vovó Maria
contava Goiânia: Editora Kelps/Leart. 2005 e em 2007
A sopa de Viaro e outras estórias. Goiânia: Editora
Kelps/Leart. 2007.
O bezerro e a rainha. Coleção Contos para crianças.
Goiânia: Editora PUC Goiás/ Kelps, 2009.
A pedra furada. Coleção Contos para crianças. Goiânia:
Editora PUC Goiás/ Kelps, 2009.
Os cabelos de Rebeca. Coleção Contos para crianças.
Goiânia: Editora PUC Goiás/ Kelps, 2009.
O Canto de Iguaçu Coleção Contos e Cantos das Águas.
Goiânia: Editora PUC Goiás/ Kelps, 2014.
Pelo Amor de uma Tapuia Coleção Contos e Cantos das
Águas. Goiânia: Editora PUC Goiás/ Kelps, 2014.
O Papagaio Pintor e o Castelo de Baobá. Coleção Contos e
Cantos das Águas. Goiânia: Editora Kelps. 2014.
A Odisseia de Nívea e os sete anões. Goiânia: Editora
Kelps, 2016.
Contos e Recontos Infantis. Coletânea. Goiânia: Editora
Kelps, 2017.
Contos e Recontos Infantis. Coletânea. Goiânia: Editora
Educart. 2018.
Contos e Recontos Infantis. Coletânea. Goiânia: Editora
Educart, 2019.
Aninha e o concílio das musas. Coleção Contos e cantos de
Aninha. Goiânia: Editora Kelps,
2018.
Cora coralina e a cidade de pedras. Coleção Contos e
cantos de Aninha. Goiânia: Editora Kelps, 2018.
O Mundo Encantado de Amaury Menezes. Cora coralina
e a cidade de pedras. Goiânia: Editora Kelps, 2020.
Dois Mundos. Goiânia: Editora Kelps, 2020.

3. ANTOLOGIAS ORGANIZADA PELA AUTORA

Literatura para PAS/ UnB - 2004. Goiânia: Editora Kelps/


Learte, 2004.
Literatura para PAS/ UnB 2005. Goiânia: Editora Kelps/
Learte, 2005.
Literatura para PAS/ UnB 2006. Goiânia: Editora Kelps/
Learte, 2006.
Literatura para PAS/ UnB v1 2007. Goiânia: Editora
Kelps/ Learte, 2007.
Literatura para PAS/ UnB v2 2007. Goiânia: Editora
Kelps/ Learte, 2007.
Literatura para PAS/ UnB v3 2007. Goiânia: Editora
Kelps/ Learte, 2007.
Literatura para PAS / UnB v 1 2008. Goiânia: Editora
Kelps/ Learte, 2008.
Literatura para PAS/ UnB v 2 2008. Goiânia: Editora
Kelps/ Learte, 2008.
Literatura para PAS/ UnB v 3 2008. Goiânia: Editora
Kelps/ Learte, 2008.
Literatura para PAS/UnB v 1 2009. Goiânia: Editora
Kelps/ Learte, 2009.
Literatura para PAS/UNB, v2 2009. Goiânia: Editora
Kelps/ Learte, 2009.
Literatura para PAS/UnB v3 2009. Goiânia: Editora
Kelps/ Learte, 2009.
Ecocrítica, Performance, Imaginário e Ciberecopoesia
em Movimento. Coleção Prosa e Verso. Goiânia: Editora
Prime, 2019

4. EM COLABORAÇÃO

Estudos de Literatura e Crítica. Coleção Prosa e Verso.


Goiânia: Editora PUC Goiás/ Kelps, 2011
Palavras Sobre Literatura e Crítica. Coleção Prosa e
Verso. Goiânia: Editora PUC Goiás/ Kelps, 2011.
Literatura e Poéticas do Imaginário. Coleção Prosa e
Verso. Goiânia: Editora PUC Goiás/ Kelps, 2013.
Literatura, Imaginário e Tradução. Coleção Prosa e
Verso. Goiânia: Editora PUC Goiás/ Kelps, 2013
Transfiguração, Literatura e Identidade. Coleção Prosa e
Verso. Goiânia: Editora PUC Goiás/ Kelps, 2013
Estudos de Literatura e Filosofia. Coleção Prosa e Verso.
Goiânia: Editora PUC Goiás/ Kelps, 2013
Literatura Poética do imaginário. (organizado por Antonio
Donizeti Cruz e Maria de Fátima Gonçalves Lima) Cascavel:
EDUNIOESTE, 2012
Interpretação e Múltiplos Olhares. Vol II (organizado por
Acir Dias da Silva, Lurdes Kaminski Éris Antônio Oliveira e
Maria de Fátima Gonçalves Lima) Cascavel: PR.
UNIOESTE, Goiânia: Editora PUC Goiás - 2012.
Imaginário e Performatividade. (organizado por Maria de
Fátima Gonçalves Lima, Iêdo de Oliveira Paes e Antonio
Donizeti Cruz ), Goiânia: Editora Kelps, 2016.
Arte e Performance. (organizado por Isabel Ponce Leão e
Maria de Fátima Gonçalves Lima). Goiânia: Editora Kelps,
2016.
Performance e Voz em O Cão sem Plumas e o O rio de
João Cabral. (Ana Maria Carrijo Barbosa e Maria de Fátima
Gonçalves Lima), Goiânia: Editora Kelps, 2018

II – OBRAS SOBRE O AUTOR

1. DISSERTAÇÕES, TESES, ARTIGOS E OUTROS ESTUDOS

1. ANDRADE, Cirlene da silva, Dialogismo e


Recepção Estética obra de Maria De Fátima
Gonçalves Lima. Coleção Prosa e Verso. Goiânia:
Editora PUC Goiás/ Kelps, 2011.
2. COSTA, Simone Rames Abrahão Basílio da. O
Maneirismo na Literatura Infantil. Coleção Prosa
e Verso. Goiânia: Editora PUC Goiás/ Kelps, 2011
3. COSTA, Simone Rames Abrahão Basílio da O
castelo de Branca de Neve de Maria de Fátima
Gonçalves Lima.
https://www.yumpu.com/pt/document/view/
50490800/o-castelo-de-branca-de-neve-de-maria-de-
fatima-goncalves-lima-
www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao15.
4. Eliane Regina Belloto Bisconsini. COMPREENSÃO
LEITORA NAS SÉRIES INICIAIS: Uma leitura da
obra infanto-juvenil de Maria de Fátima Gonçalves
Lima.
http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/caderno
spde/pdebusca/producoes_pde/
2010/2010_unioeste_port_pdp_eliane_regina_belloto
_bisconsini.pdfBelotto
5. Eliane Regina Belloto Bisconsini. Artigo.
COMPREENSÃO LEITORA NAS SÉRIES INICIAIS:
uma leitura da obra infantojuvenil de Maria de
Fátima Gonçalves Lima
https://docplayer.com.br/21825963-Compreensao-
leitora-nas-series-iniciais-uma-leitura-da-obra-
infantojuvenil-de-maria-de-fatima-goncalves-
lima.html

FOTOS
1. Lançamento de Livros e momentos de
autógrafos:
Lançamento de O Castelo de Branca de Neve, como seus
filhos Everaldo Júnior, o ilustrador, Cecilia Menezes e
Diana Gonçalves Lima. Em 2004
Lançamento de A sopa de Viaro e outras estórias como seu
filho Everaldo Júnior, o ilustrador, e a presença da
escritora Augusta Faro, em 2004
Outros lançamentos
Coleção Contos para crianças (2009)
Três Líricas Performativas.(2007) Leitura & Poesia I
(2011) A pedra furada

O bezerro e a rainha

Os cabelos de Rebeca
Recebendo o Título Honorífico de Cidadã Goianiense
(2012), com sua mãe, Manoelina Gonçalves, seu esposo
Everaldo Correia de Lima e seus três filhos.
Outros momentos de lançamentos e homenagens.

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