Você está na página 1de 19

REVISTA DA FACUL-

DADE DE DIREITO
DA UNIVERSIDADE
DE LISBOA

VOL. XXXII
1991
COMISSAO DE REDACCAO

PRESIDENTE

Prof. DOUTOR. PAULO DE PITTA E CUNHA

VOGAIS

Prof. DOUTOR CARLOS PAMPLONA CORTE-REAL


MESTRE JOSE LUIS SALDANHA SANCHES
I. Doutrina

Armando M. Marques Guedes — Os contratos administrativos .............

José de Oliveira Ascensio — Integragao empresarial e centros comerciais .

Friedrich-Karl Beier — The principle of «exhaustion» in national patent and


copyright law of some european COUntri€s ..........sssseseesseseeestertescenaeees 71

Diogo Freitas do Amaral — Apreciagdo da dissertagao de Doutoramento


do licenciado Fernando Alves Correia: «O plano urbanistico e 0 princtpio da
GDNMTERMED: «.-osanccovagecsonsceissacsassecscasterscnseessnnassadsecaipuslgpinsitaiinsuke 91

Arruda Alvim — O antigo recurso extraordindrio e 0 recurso especial (na Cons-


tituigdo Federal de 1988) .........sccccscsessscssssserrecccsenssceesepanseaeesenesens 107

Pedro Soares Matinez — Dispersos Econdmicos (cont.): Evolugao da estru-


tura agrdria portuguesa; Planeamento Econémico e Savde Priblica; A lavoura
alentejana, a Politica Agrdria e as ténicas de planeamento; O pensamento
islamico e a expansao socialista; O lucro e a responsabilidade empresarial; Sobre
a inflagao monetdria e as suas causas; Economia Keynesiana e planeamento;
Estado de Direito e estruturas econémicas; A crise de 1929 — perspectiva de
meio século; Pressupostos polttico-econdmicos de uma Reforma Fiscal; A situagdo
financeira e€ 05 impOstos ..........0ccssssrssessscsesssonserscssssoseudibdgpenbassaonens 129

Fausto de Quadros — Direito Internacional Piblico I — Programa, contetidos


© ltadas be HOMO coccsveccesssccnevcgeuseppepsennsscedesesssondlecaeseepsbtesessarea 351

Il. Textos e Documentos

José de Oliveira Ascen¢io — O anteprojecto de lei da nacionalidade de Cabo


VME vu swnsvecensenvesecisehanaenstannsqanetensxconunanseatbisni ysvegiecsweuesbapesigi
Jorge Miranda — Um anteprojecto de proposta de lei do regime do refe-
POND snesraciinexnsexelaacsdysarexecurmaesstonstetmceniiaxenmnisetiasiliayteniaie
684 {INDICE

il. Vida da Faculdade


— Equivaléncia de doutoramentos .............2000ccesssessseessseesseseeesssesssees
— 7.° Centendrio da Universidade Portuguesa ............cccscccsseeeeeeeeeeeeeee
— Posigao do Conselho Cientifico face 4 chamada «Escola Superior de Advocacia»
— Representagdo ao Governo no sentido da reintegracdo a titulo péstumo do
Professor Doutor José Maria Vilhena Barbosa de Magalhdes ...............
— Mestrado em Ciéncias Juridico-Internacionais ............00cccccccccsesececeeees
— Estatutos da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa ..............
APRECIACAO DA DISSERTACAO
DE DOUTORAMENTO
DO LICENCIADO FERNANDO ALVES CORREIA

«O plano urbanistico e o principio da igualdade»

DIOGO FREITAS DO AMARAL

Versdo escrita da intervencao oral efectuada,


na Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, em 5 de Novembro de 1990.

Apresenta-se a provas de doutoramento em Direito (ciéncias


juridico-politicas) na Universidade de Coimbra o Licenciado Fer-
nando Alves Correia.
Alves Correia nao é um desconhecido na literatura adminis-
trativa portuguesa: j4 em 1982 publicou um trabalho de muito
mérito — As garantias do particular na expropriagao por utilidade publica.
Desta vez, resolveu debrugar-se sobre o Direito do Urbanismo
e produziu outra obra de boa qualidade sobre O plano urbanistico
e o principio da igualdade.
Comego por felicitar 0 candidato pelo tema escolhido. De facto,
dentro dos varios sub-ramos do Direito Administrativo especial,
o Direito do Urbanismo assume cada vez maior importancia. Na
92 DIOGO FREITAS DO AMARAL

generalidade dos paises europeus, a producio cientiffica dos ultimos


anos em matéria de Direito do Urbanismo tem sido enorme.
O mesmo nfo sucede em Portugal. Fazia falta uma obra como
esta, de cardcter monografico, sobre um tema central do Direito
do Urbanismo.
Nio se pode dizer, em todo 0 caso, que os principais temas
do Direito do Urbanismo fossem desconhecidos da literatura juri-
dica portuguesa.
Eu préprio tive a oportunidade de publicar, em 1971, uns
sumérios desenvolvidos (com 38 p4ginas) sobre Ordenamento do ter-
ritério, urbanismo e habitagéo, onde segundo creio pela primeira vez
no nosso pais se procurou dar estrutura juridica a essas matérias.
O Lic. Alves Correia nio teve conhecimento deste meu trabalho,
e por isso nao o cita no seu livro: ai teria encontrado, no entanto,
uma primeira tentativa de sistematizacio e definigao de conceitos
com os quais lida frequentemente na sua obra.
Por outro lado, nao se podem esquecer os numerosos estudos
de Direito do Urbanismo publicados pelo Lic. José Osvaldo Gomes,
bem como a extensa obra colectiva que sob a epigrafe Direito do
Urbanismo foi editada em 1989 pelo Instituto Nacional de Admi-
nistragao, da qual tive a honra de ser coordenador.
A existéncia de todos estes antecedentes talvez devesse ter acon-
selhado ao candidato uma redac¢30 um pouco diferente para a frase:
«Esta dissertagdo parece (...) ter um mérito inegavel: o de ser a
primeira tentativa, no nosso pais, de uma abordagem sistematica
de alguns dos princfpios juridicos» do Direito do Urbanismo (p. 17).
Ninguém nega os méritos que este trabalho possui, mas afigura-
-se que teria ficado bem reconhecer o esforgo dos que antes trilha-
ram os mesmos caminhos com espirito pioneiro.

II

A dissertagao apresentada pelo Lic. Alves Correia revela alguns


tracos caracteristicos francamente positivos. Destacarei de entre eles
o rigor da linguagem, a clareza do raciocinio, a capacidade de inves-
tigacio, a ordenacao légica das matérias, o conhecimento aprofun-
APRECIACAO DA DISSERTACAO DE DOUTORAMENTO 93

dado da doutrina nacional e estrangeira, o escripulo na citagao


dos autores estudados, e a compreensdo da esséncia dos problemas
e das discussdes tedricas suscitadas em torno deles.
Contudo, o trabalho em apreciagZo apresenta também algu-
mas deficiéncias genéricas, que me compete enunciar aqui.
Em primeiro lugar, se o Lic. Alves Correia é sempre muito
completo na exposi¢ao das opinides alheias, revela no entanto uma
certa falta de criatividade e imaginacao na elaboracdo de solugdes
préprias. O seu trabalho é um longo e sério repositério de concei-
tos e teorias de outros autores, mas deixa algo a desejar no plano
do esforgo de originalidade pessoal. Isto é particularmente verda-
deiro, a meu ver, em toda a parte II da dissertagao, dedicada ao
estudo dos «instrumentos de garantia do principio da igualdade
em face das medidas do plano urbanistico» (p. 385 e segs). Aj,
o autor menciona solugées extraidas do direito comparado e solu-
gdes vigentes no direito portugués, mas nao propde verdadeira-
mente nenhuma solugio original, antes se limita a recomendar uns
quantos aperfeigoamentos aos esquemas em vigor no nosso direito,
apesar de ao mesmo tempo declarar — e com razio — que o «legis-
lador portugués (revela) uma confrangedora falta de sensibilidade
para a criagio de técnicas de perequagao dos beneficios e encargos
resultantes dos planos» (p. 657).
Em segundo lugar, é de lamentar uma certa fuga do Lic. Alves
Correia 4s tarefas da construc3o dogmiatica sobre os dados do direito
positivo. O autor move-se com inteiro 4 vontade na descri¢io e
interpretagao dos regimes juridicos, mas mostra uma tal ou qual
aversao 4 construgao tedrica. Basta dizer, para o comprovar, que
acerca da natureza juridica do plano urbanfstico — decerto o tema
tedrico mais nobre de toda a dissertacio — o autor expde a sua
opiniio em apenas duas paginas (p. 241-243)... e nao apresenta
uma conclusao liquida e clara. E manifestamente pouco como esfor¢o
de construgio dogmitica! Adiante voltarei a este ponto.
Em terceiro lugar, nota-se ainda nesta obra do Lic. Alves Cor-
reia uma quase total auséncia de referéncias 4 jurisprudéncia do
nosso Supremo Tribunal Administrativo, que todavia contém algu-
mas espécies sobre planos de urbanizacao e seus efeitos que teria
sido util mencionar. Sou dos que entendem que se justifica dar
94 DIOGO FREITAS DO AMARAL

o maior relevo nas obras de caracter tedrico ao contributo da juris-


prudéncia para a elaboragao do direito.
Por tltimo, e antes de entrar na andlise da especialidade, nao
posso deixar de fazer uma breve mencio a alguns pecadilhos de
linguagem que maculam, aqui e além, uma obra no geral escrita
em bom portugués:
— Na p. 41, refere-se o «plano de reconstrugao da baixa lis-
boeta, aprovado em 1758 por Marqués de Pombal», quando
devia dizer-se «pelo Marqués de Pombal»;
— Nap. 115, diz-se que em Franga as «places royales... consti-
tufam um meio de exaltar o fervor monarca», quando devia
dizer-se «o fervor monirquico»; ;
— Na p. 393, cita-se como obra de Aristételes a Etica Nico-
mdquea, quando a tradug3o portuguesa consagrada nas nossas
universidades é a de Etica a Nicémaco;
— Na p. 512, utiliza-se a expressio «despoletar um procedi-
mento de expropriacio», quando em bom rigor «despole-
tar» nao significa iniciar, mas sim neutralizar ou desarma-
dilhar;
— Enfim, alguns neologismos desnecessarios sio usados com
alguma frequéncia, nomeadamente «analiticidade» (p. 200),
«concreteza» (p. 221 e 229), «jurisgénica» (p. 243) e «com-
pletude» (p. 248).

Ill

E passo agora ao exame na especialidade.


Na impossibilidade de abordar aqui todas as passagens de maior
relevo que seria interessante comentar, vou limitar-me a referir cinco
questdes fundamentais em relacao as quais tenho divergéncias impor-
tantes a assinalar face ao pensamento do candidato.
APRECIACAO DA DISSERTACAO DE DOUTORAMENTO 95

A) Distingao entre Direito do Urbanismo e Direito do Ordena-


mento do Territério

Alves Correia mostra-se céptico quanto 4s possibilidades de


fazer a distincZo entre estes dois sub-ramos do Direito Administra-
tivo.
Na p. 64 afirma que «as relacdes entre estas duas disciplinas
juridicas sio tio intimas que os seus contornos sao praticamente
imperceptiveis»; na p. 67 acrescenta que os critérios de distin¢io
entre ambas nao permitem tracar «uma linha rigorosa de delimita-
¢4o»; e na p. 73 declara mesmo que h4 «impossibilidade de se obter
um critério seguro e rigoroso de distingao entre os dois».
Mas, mesmo assim, 0 autor acaba por se abalangar a propor
um critério: no seu modo de ver, as normas de ordenamento do
territério nado s4o directamente vinculativas para os particulares,
mas somente para os municipios; pelo contrario, as normas urba-
nisticas contém disposigdes directamente vinculativas tanto para a
Administragio como para os particulares (p. 74).
Ora, em minha opiniao, este critério nao pode ser adoptado:
na verdade, e ao contr4rio do que tal critério pressupde, h4 normas
de Direito do Urbanismo que nao tém como destinatdrios os parti-
culares — por exemplo, as normas organicas que regulam a estru-
tura da administra¢4o urbanfstica, ou as normas procedimentais que
disciplinam a elaboraco dos planos de urbanizacga0 — e, por outro
lado, ha normas de Direito do Ordenamento do Territério que
vinculam directa e imediatamente os particulares — por exemplo,
as normas que regulam a localizacao das indistrias.
Pela parte que me toca, julgo que o critério mais adequado
para distinguir os dois sub-ramos em causa é 0 critério do objecto,
que assenta sobre a distin¢ao material entre ordenamento do terri-
tério e urbanismo: 4 luz deste critério, serio normas de Direito
do Ordenamento do Territério aquelas que visam assegurar, no
quadro geogr4fico nacional, a melhor estrutura das implantacées
humanas com vista ao desenvolvimento harménico das diferentes
regides do Pais; diferentemente, serio normas de Direito do Urba-
nismo as que visam garantir, no quadro de uma dada orientacio
96 DIOGO FREITAS DO AMARAL

em matéria de ordenamento do territério, a melhor organizacao


e expansao de cada aglomerado populacional.
Em funcao destes conceitos, assim definidos — e que j4 eram
os que eu prdéprio defendera em 1971 nos meus citados sumérios
sobre Ordenamento do territério, urbanismo e habitagao — pode concluir-
-se que Alves Correia nao tem razio quando afirma que o Direito
do Ordenamento de Territério constitui um prolongamento do
Direito do Urbanismo (p. 73). Quanto a mim, é precisamente o
contrério que acontece na realidade: o Direito do Urbanismo é
que é um prolongamento do Direito do Ordenamento do Territé-
rio: este tem prioridade légica sobre aquele. Sao os Planos Directo-
res Municipais que tém de observar as disposic¢des dos Planos Regio-
nais de Ordenamento do Territério, e nio o contrario.
Mas é claro que tudo isto pressupde, da minha parte, a adop-
gio de um conceito de urbanismo mais restrito que o proposto
por Alves Correia: para mim, o urbanismo diz respeito 4 urbe,
isto é, ao aglomerado urbano. Neste sentido, portanto, sé h4é um
urbanismo local; nao h4 — contra o que defende Alves Correia —
um urbanismo regional ou nacional (p. 48).

B) Natureza juridica dos planos de urbanizagao

Ja ha pouco comentei 0 escasso desenvolvimento conferido por


Alves Correia 4 discussdo sobre a natureza juridica dos planos de
urbaniza¢cao. Analisarei agora o contetido das solugées por ele pro-
postas acerca do tema.
A primeira critica que me cumpre fazer é a de que nesta maté-
ria o Autor mostra alguma hesitacZo e cai mesmo em certas con-
tradigdes. Assim, a dada altura declara que «as categorias tradicio-
nais do Estado de Direito Liberal sAo incapazes de abranger» o
plano urbanistico, uma vez que o plano «nao é enquadravel nem
no conceito de norma, nem no de acto de intervengio» (p. 234),
mas mais adiante o Autor acaba por concluir, em contradigao com
estes pressupostos, que na sua parte regulamentar os planos urba-
nisticos tém «uma natureza essencialmente normativa» (p. 243).
APRECIACAO DA DISSERTACAO DE DOUTORAMENTO 97

Outra contradi¢4o que se nota é que, primeiro, Alves Correia


opina que os planos urbanisticos assumem «uma posi¢ao intermé-
dia entre os actos normativos e os actos administrativos gerais»
(p. 233), mas depois vem dizer-nos que, afinal, «tanto a tese que
atribui natureza materialmente regulamentar as correspondentes dis-
posicdes dos planos urbanfsticos, como a que as considera como
actos administrativos gerais de contetido normativo (...) se apre-
sentam idéneas para traduzir» a natureza juridica desses planos
(p. 243). Afinal — cabe perguntar — em que ficamos? O plano
urbanistico est4é numa posicio intermédia entre o acto normativo
e 0 acto administrativo geral, nao se identificando com nenhuma
destas categorias, ou identifica-se com ambas?
Constitui para o leitor motivo de bastante perplexidade a con-
cluso final a que cheja sobre este tema o Lic. Fernando Alves
Correia: sabendo-se que é impossivel o plano urbanjfstico ser simul-
taneamente norma juridica e acto administrativo, como pode o Autor
sustentar que tanto a tese da natureza regulamentar como a tese
da natureza de acto administrativo geral so idéneas para retratar
a natureza juridica dos planos urbanisticos?
Nao representa isto uma confissio da incapacidade de chegar
a uma conclusdo definida?
E nao se pense que o problema se situa apenas no campo teé-
rico: a verdade é que a solug3o que for adoptada tem implicacées
praticas muito relevantes. Porque uma coisa é impugnar conten-
ciosamente um regulamento, outra coisa é recorrer de um acto
administrativo: os meios processuais a utilizar sao diferentes, os
prazos de impugnagio sao distintos, as condicgdes de legitimidade
nao s4o as mesmas, etc., etc.
Por conseguinte, e por muito que se queira dar a impress3o
de que as categorias tradicionais estao ultrapassadas, a verdade é
que, por razGes praticas insuperaveis, se torna necessario optar pela
qualificagao do plano urbanfstico como regulamento ou como acto
administrativo. Alves Correia nao o faz — e isso diminui bastante
o valor do seu trabalho neste capitulo.
Gostaria de o convidar a precisar melhor o seu pensamento
sobre este ponto.
98 DIOGO FREITAS DO AMARAL

Nio basta, alids, sublinhar o car4cter inovador das disposigées


do plano para poder concluir pelo seu caracter normativo (p. 242):
com efeito, h4 normas juridicas que nao sao inovadoras (por ex.,
os regulamentos complementares ou de execug4o) e ha actos admi-
nistrativos que inovam na ordem juridica (por ex., os actos de
contetido discricionério).

C) O problema da constitucionalidade da sujeigao dos planos urba-


nisticos a ratificagdo governamental

O Lic. Alves Correia discute, na nota 173 da p. 271, o pro-


blema de saber se h4 ou nao inconstitucionalidade do artigo 6.°,
n.° 3, do Decreto-Lei n.° 77/84, de 8 de Marco, que sujeita 4
ratificag3o do Governo os planos directores municipais, bem como
os planos gerais e parciais de urbanizacio.
O Doutor Sérvulo Correia pronunciou-se recentemente pela
inconstitucionalidade; o Lic. Alves Correia, pelo seu lado, sustenta
a constitucionalidade, mesmo entendendo aquela ratificagio como
uma forma de tutela de mérito e nao apenas como tutela de legali-
dade.
Pela parte que me toca, nado posso concordar com esta posi¢ao
do candidato. Segundo o artigo 243.°, n.° 1, da Constituicio,
a tutela administrativa sobre as autarquias locais consiste na verifi-
cacao do cumprimento da lei por parte dos érgaos autarquicos.
Constitucionalmente, portanto, s6 pode haver tutela de legalidade
em relac3o 4s autarquias locais.
De modo que de duas, uma: ou a disposi¢do legal acima citada
é objecto de uma interpretagao conforme 4 Constitui¢ao, e nesse
caso a ratificacio governamental dos planos urbanisticos tem de
cingir-se a um mero controle de legalidade; ou aquela norma é
entendida como facultando ao Governo um controle de mérito,
e nesse caso tem de ser havida por inconstitucional.
O que nao pode é aceitar-se a solug30, preconizada por Alves
Correia, de legitimar uma forma de tutela governamental de mérito
sobre os planos urbanfsticos de origem municipal.
APRECIACAO DA DISSERTACAO DE DOUTORAMENTO 99

D) Natureza juridica do «jus aedificandi»

Um dos temas mais interessantes focados pelo candidato na


sua dissertacio é, sem divida, o da natureza juridica do «jus aedifi-
candi» — ou seja, o problema de saber se o direito de construir
constitui uma faculdade privada, inerente ao direito de propriedade
do solo, ou pelo contrario traduz um direito subjectivo publico
atribuido pelo plano urbanistico.
Nesta vexata quaestio, tio abundantemente discutida na dou-
trina, o Lic. Alves Correia opta pela segunda caracterizagio; eu,
pelo meu lado, inclino-me para a primeira. Vejamos porqué.
O Autor comega por analisar o problema 4 luz do direito
privado — e cita a propédsito os artigos 1305.° e 1344.° do Cédigo
Civil, que versam respectivamente sobre o «contetido do direito
de propriedade» e sobre os «limites materiais» da propriedade de
imoveis.
Mas, quanto a mim, a prova mais evidente de que o «jus aedi-
ficandi» constitui uma faculdade inerente ao direito de propriedade
do solo — ainda que sujeita, no seu exercicio, a uma autoriza¢ao
ou licenga administrativa — nao est4é em nenhum desses preceitos,
mas sim nos artigos 1524.° e seguintes do Cédigo Civil, que tra-
tam do «direito de superficie».
O direito de superficie consiste — como é sabido — na facul-
dade de construir ou manter uma obra ou plantag4o em terreno
alheio (art. 1524.°), e pode ser constituido pelo proprietario a favor
de terceiro mediante contrato ou testamento (art. 1528.°).
Ora, se o proprietério do solo pode ceder a outrem o direito
de construir sobre o seu préprio terreno, é porque, como proprie-
tario, dispde desse direito. O «jus aedificandi» é, pois, uma facul-
dade inerente ao direito de propriedade do solo, que existe na esfera
juridica do proprietdrio (ou do superficidrio) antes que qualquer
plano urbanistico o venha regular.
Outro argumento que se me afigura comprovativo da tese
que perfilho é o de que o proprietario do solo goza de «jus aedifi-
candi» mesmo no caso de nfo existir plano urbanistico aprovado
para a zona, © que mostra que o direito de construir nao é atri-
buido pelo plano, antes constitui uma faculdade inerente ao direito
100 DIOGO FREITAS DO AMARAL

de propriedade e anterior ao plano. A jurisprudéncia do nosso


Supremo Tribunal Administrativo é categérica no sentido de que
nao é licito 4s camaras municipais recusar uma licenga de constru-
¢io com fundamento na inexisténcia de plano urbanistico apro-
vado ('). HA pois «jus aedificandi» independentemente de qualquer
plano urbanistico.
E certo que, como nota Alves Correia, perante um plano urba-
nistico aprovado, «o proprietério nao possui a faculdade de decidir se
pode construir e como pode construir no seu terreno» (p. 375). Mas
isso nao significa que o seu direito de propriedade nao comporte um
«jus aedificandi»: significa apenas que o «jus aedificandi» inerente
ao direito de propriedade sé pode ser exercido se e nos termos
em que isso for permitido por autoriza¢ao ou licenga administrativa.
Sabe-se como varios direitos fundamentais do cidadao depen-
dem, para poderem ser exercidos, de autorizagao ou licenga da Admi-
nistracio Publica. E ninguém vai concluir daf que esses direitos
fundamentais nao existem antes da outorga da autorizagio ou da
licenca: estas sio actos que permitem o exercicio de um direito
preexistente, nao sao elas préprias os actos criadores desse direito.
O mesmo acontece com o «jus aedificandi». Alids, se este nZo
existisse antes e independentemente do plano, integrado no con-
tetido natural do direito de propriedade, como se explicaria 0 prin-
cipio do deferimento tacito regulado no Decreto-Lei n.° 166/70,
de 15 de Abril, bem como o princfpio da taxatividade dos funda-
mentos do indeferimento?
Isto mesmo reconhece honestamente o Lic. Alves Correia, a
p. 379-380 do seu livro, quando admite que uma parte importante
da legislacio portuguesa vigente «parece ter subjacente a filosofia
de que o propriet4rio detém um verdadeiro «jus aedificandi», estando
apenas o seu exercicio dependente de uma autorizac¢4o permissiva
da Administragio» (p. 379).

(') Ver nesse sentido, inter alia, os acérdaos do STA-1 de 13 de Janeiro de 1972,
de 29 de Novembro de 1973 e de 21 de Fevereiro de 1974 (casos JOAO CANDIDO
BELO & Companhia, Ltd*.; VITORINO DE OLIVEIRA CRUZ; e MANUEL DE
SA ALVES ), in AD-STA, n.° 123, p. 331; n.° 146, p. 192; e n.° 148, p. 495.
APRECIAGAO DA DISSERTACAO DE DOUTORAMENTO 101

Mas entdo importa perguntar como é que, com base no nosso


actual direito positivo, o Lic. Alves Correia pretende sustentar a
natureza publica do «jus aedificandi», quando ele préprio confessa
que ha diplomas em vigor dos quais emana a solug%o contraria.
Ali4s, quanto 4 natureza do «jus aedificandi», notam-se varias
contradicgdes no livro do Lic. Alves Correia: se no capitulo em
apreciagao o Autor se pronuncia pela natureza publica do referido
direito, j4 noutras passagens da sua obra acolhe solugdes que apon-
tam inequivocamente para a tese da natureza privada do direito
de construir. E o que se passa, nomeadamente, quando na p. 524
o Autor declara que, se o plano reservar certas zonas com voca¢ao
edificatéria para espagos verdes privados, o propriet4rio tem direito
a uma indemniza¢4o, porque essa medida do plano «esvazia o direito
de propriedade do solo do seu contetido essencial, na medida em
que impossibilita o respectivo titular de dar ao bem uma utili-
zacao correspondente 4 sua vocac’o edificatéria». E na p. 543 o
Autor confirma que sé ha justa indemnizacio se for levada em
conta a potencialidade edificativa dos terrenos, esclarecendo bem
na nota 145 que a indemnizacao por expropriacao «inclui o valor
do ‘‘jus aedificandi’’.»
Ora isto comprova claramente — contra a posi¢io do Autor —
que o «jus aedificandi» integra o direito de propriedade do solo.

E) As técnicas de garantia do princtpio da igualdade em face do


plano urbanistico: o caso especial da «associagaéo da Administra-
¢do com os proprietdrios»

Na parte II da sua obra o Lic. Alves Correia ocupa-se dos


«instrumentos de garantia do principio da igualdade em face das
medidas do plano urbanistico» (p. 385 e segs.).
Depois de um capitulo I de caracter introdutério, a matéria
desdobra-se em dois capitulos fundamentais — um que versa sobre
«as medidas expropriativas do plano urbanistico e o principio da
igualdade» (p. 471 e segs.), e outro que trata «das medidas nao
expropriativas do plano urbanjstico e o principio da igualdade»
(p. 583 e segs.).
102 DIOGO FREITAS DO AMARAL

Se os dois primeiros capitulos me parecem francamente satis-


fatérios e contém algumas das paginas mais conseguidas desta dis-
sertacao, j4 o mesmo no poderei dizer do capitulo III, sobre o
qual me debrucarei agora mais detidamente.
Comega o autor por enunciar «algumas técnicas de garantia
do principio da igualdade em Direito Comparado» (p. 593 e segs.).
Nesta sec¢4o estuda seis técnicas diferentes, a saber, a socializac4o
do solo urbanizvel, a solucao tributdria, a experiéncia italiana de
socializagao do «jus aedificandi», a proposta de Jean-Paul Gilli, o
sistema francés de transferéncia de coeficientes de ocupacio do solo
e, finalmente, a técnica do aproveitamento médio do direito espa-
nhol.
O primeiro reparo que se pode fazer a esta parte do trabalho
é que o Autor descreve e aprecia criticamente quatro destas seis
técnicas, mas quanto a duas delas (a proposta de Jean-Paul Gilli
e a técnica espanhola do aproveitamento médio) limita-se a descrevé-
-las sem formular qualquer aprecia¢ao critica. O leitor fica assim
sem saber qual a opiniio do Autor sobre essas duas técnicas.
Pressente-se uma certa simpatia por elas, mas a verdade é que nem
uma nem outra so expressamente louvadas ou criticadas. O Autor
nao nos diz, em especial, se alguma dessas técnicas merece as suas
preferéncias «de jure condendo» — e por isso esta secco dedicada
ao Direito Comparado fica a constituir um excercicio um tanto
ou quanto initil. Dela nao se extraem quaisquer sugestdes ou pro-
postas concretas para o que o Autor considera a necessdria reforma
do direito urbanfstico portugués.
A seccSo seguinte ocupa-se dos «instrumentos de garantia do
principio da igualdade em face das medidas nao expropriativas do
plano urbanistico no direito portugués» (p. 625 e segs.). E aqui
avulta a figura juridica da «associagio da Administragio com os
proprietdrios», figura pela qual Alves Correia nutre a maior simpa-
tia: «no hesitamos em advogar — escreve — que a «associa¢do
da Administracio com os proprietérios» se transforme, entre nds,
num sistema geral de execucio dos planos urbanfsticos situados
nos ultimos degraus da escala hierdrquica» (p. 638-639).
Pela minha parte, tenho porém fundadas dtividas acerca da
bondade desta solugio. E certo que o Autor critica com razio o
APRECIACAO DA DISSERTACAO DE DOUTORAMENTO 103

regime juridico a que actualmente essas associagGes estao submeti-


das, e propde algumas alteragdes que reduzam os poderes excessi-
vos da Administracio, que afastem o dirigismo administrativo ins-
pirador do modelo legal, e que por essa forma permitam captar
a confian¢a dos proprietdrios.
Mas nada disso é suficiente, a meu ver, para fazer da «associa-
¢a0 da Administraga0 com os proprietarios» a técnica ideal em maté-
tia de execucao dos planos urbanisticos.
Nao 6, aliés, por acaso que todas as experiéncias feitas até
hoje em Portugal em que se lancou mio de tal figura redundaram
em completo fracasso: veja-se, paradigmaticamente, o desastre finan-
ceiro a que chegou a EPUL, em Lisboa.
Trés criticas me parecem dever ser feitas 4 figura da «associa-
¢4o0 da Administragio com os proprietdrios».
Em primeiro lugar, trata-se de uma solucao altamente buro-
cratizadora, que coloca as operagdes urbanisticas fundamentais a
cargo da Administracio Publica, em vez de as manter no campo
da iniciativa privada, como sucede na generalidade dos paises oci-
dentais.
Em segundo lugar, trata-se de uma soluc4o cujo financiamento
se mostra particularmente dificil de assegurar. Ou todos os investi-
mentos de construgio urbana ficam a cargo da Administra¢ao
— e entSo a operacao é ruinosa para o er4rio municipal — ou
ficam a cargo dos proprietarios. Mas nada garante que, entre estes,
todos tenham a necess4ria capacidade financeira: e se alguns a nao
tiverem, o problema torna-se insoltvel.
Em terceiro lugar, diz a lei que os particulares integram a
associacio com quotas de participagio, correspondentes ao valor
dos seus terrenos na zona a urbanizar (p. 628); e no final da opera-
¢ao urbanistica para que se constituiu a associacao, haver4 uma
distribuicio dos beneficios proporcional a participacio de cada um
na associaca4o (p. 636). Simplesmente, isto levanta o problema de
saber com que valor é que os terrenos entram para a associa¢io
— écom o valor anterior ao do plano urbanistico ou com o valor
posterior? Uma vez que a associa¢ao se constitui para executar
um determinado plano, parece que se tem de contabilizar o valor
104 DIOGO FREITAS DO AMARAL

posterior. Mas, sendo assim, haver4 terrenos muito valorizados (por-


que neles se permite uma construgo intensa) e terrenos muito des-
valorizados (porque neles se impde uma baixa densidade de cons-
trucio ou um espaco verde). Os proprietarios entram pois com
quotas de participacio profundamente desiguais, e esta desigual-
dade é criada pelo prdéprio plano urbanistico. Se no final a distri-
buicio de beneficios é proporcional 4 participagao de cada um na
associacao, a desigualdade mantém-se, e portanto a associagao nao
funcionou de todo em todo como instrumento de garantia do prin-
cipio da igualdade face 4s medidas do plano.
Isto sé no seria assim se os proprietarios entrassem para
a associacio com os seus terrenos pelo valor destes anterior ao
plano. Mas nesse caso pergunta-se qual seria o interesse econd-
mico dos propriet4rios em participar numa associacao deste tipo.
A maior parte deles certamente nao participaria. E, sendo assim,
a associaco nao se poderia constituir, ou daria lugar a uma expro-
priacio sistematica dos solos urbanos (p. 628), solugio que Alves
Correia — e bem — considera fortemente inconveniente (p. 593
e segs.).
Tenho para mim, por conseguinte, que a figura da «associa-
cio da Administragio com os proprietarios» nZo constitui pana-
ceia capaz de resolver o problema do restabelecimento da igualdade
entre os proprietdrios de terrenos abrangidos por um plano urba-
nistico.
No meu modo de ver, a tnica solugao possivel para este pro-
blema, nos quadros de uma economia de mercado respeitadora da
funcao da iniciativa privada, consiste na tributag3o das mais-valias
realizadas pelos proprietdrios beneficiados pelo plano, acompanhada
da consignacao especffica dessa receita ao pagamento de indemni-
zacoes justas aos proprietdrios prejudicados pelo plano. Tributagao
mais indemnizacio — eis, quanto a mim, a unica formula capaz
de assegurar a igualdade dos cidadaos perante as medidas discrimi-
natérias do plano urbanistico.
Foi pena que o candidato nao tivesse ponderado melhor este
esquema na sua dissertacao.
APRECIACAO DA DISSERTACAO DE DOUTORAMENTO 105

IV

Sr. Licenciado Fernando Alves Correia:


Peco-lhe que nao interprete estas minhas criticas como sin-
toma de menos apreco pelo seu trabalho, mas antes como expres-
sio do meu respeito por uma obra que, tendo inegavel qualidade,
merece ser apreciada e criticada objectivamente.
Estou certo de que na sua resposta procurara esclarecer as
minhas diividas e demonstrar a falta de fundamento das minhas
discordancias.

Você também pode gostar