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D
esde 1988, a cultura passa a ser conside-
rada um direito, inclusive relacionado aos
direitos humanos fundamentais no Brasil.
Porém, na prática, esta teoria parece ser norteadora: “o que é cultura?”. Não é o
diferente, uma vez que nem todas as pes- problema de se definir cultura em um tra-
soas têm condições equitativas de acesso balho ou artigo acadêmico, nos quais se
ou provimento de bens e serviços cultu- estabelece a área que se deseja trabalhar e
rais, apesar de o Estado indicar garantir se aplicam os conceitos pertinentes àquele
isso em sua Constituição. campo. Aqui é colocada a inquietude sobre
Antes da pandemia de covid-19, foi o que responder de imediato a alguém – a
observado um progressivo desmonte dos um leigo, por exemplo – que perguntasse o
arranjos públicos institucionais no setor que é cultura. Não obstante, esta resposta,
cultural e retrações no fomento das ativi- mesmo ainda incompleta, não deve causar
dades culturais. Os motivos dessa retração contradição entre os inúmeros conceitos
por parte dos governos que representam e definições de cultura existentes. Dessa
o Estado em ação são diversos, incluindo forma, após vários anos atuando no meio
crises fiscais, ambientais, políticas e eco- cultural e estudando sobre cultura, em um
nômicas, além dos efeitos da pandemia que momento de reflexão surgiu a seguinte
têm afetado os setores culturais e criativos proposição: enquanto grupo e/ou sociedade,
nas cidades (Emmendoerfer; Fioravante, cultura é tudo aquilo que cultivamos e/ou
2021). Frente a isso, resgatar e refletir tudo aquilo pelo qual somos cultivados.
sobre os sentidos da cultura em uma so- A partir dessa afirmativa, este ensaio
ciedade pós-pandêmica, ou seja, após a (Burgoon, 2001) foi desenvolvido. Para isso,
instauração mundial da covid-19 como são apresentados os significados e origens
pandemia reconhecida pela Organização do termo em que a palavra “cultivar” é
Mundial da Saúde (OMS, 2020), revela- usada (por vezes, em seu sentido lato e, por
-se algo relevante no contexto brasileiro. outras, de forma metafórica) para ilustrar
Definir cultura não é tarefa simples. O o que está sendo proposto. Posteriormente
termo evoca interesses multidisciplinares, argumenta-se a afirmativa a partir de alguns
sendo estudado em áreas como sociologia, teóricos que estudaram e desenvolveram
antropologia, história, comunicação, admi- suas próprias definições de cultura. As-
nistração, economia, entre outras. Em cada sim, buscou-se mostrar que, independente
uma dessas áreas, é trabalhado a partir de da definição dada à cultura, essa pode ser
distintos enfoques e usos, sendo que par- incluída na afirmativa supracitada.
te dessa complexa distinção semântica se
deve ao próprio desenvolvimento histórico
do termo, resultando em vários conceitos ANTECEDENTES, APROXIMAÇÕES
que, às vezes, são contraditórios. Isso torna E DIFERENÇAS NAS
“cultura” um dos termos principais nas ci-
DEFINIÇÕES DE CULTURA
ências humanas, a ponto de a antropologia
se constituir como ciência quase somente
em torno desse conceito (Canedo, 2009). Ao procurarmos nos dicionários o sig-
O presente trabalho surge da inquie- nificado e origem do termo “cultivar”,
tação gerada ao ouvir a seguinte questão encontramos uma variedade de significa-
gado – para Crespi e Cardoso (1997), a pela sua cultura e avalia-se a cultura pe-
palavra “cultura” deriva do latim cole- lo progresso que traz a uma civilização”
re. O termo foi sucessivamente alargado, (Chauí, 2008, p. 55). O modelo que servia
em sentido metafórico, até a “cultura do como referência aos iluministas era o da
espírito”. Esse termo humanista foi am- cultura capitalista da Europa ocidental, em
plamente usado pelos filósofos Cícero e que os processos de exploração e domina-
Horácio e posteriormente retomado por ção eram justificados e legitimados ao se
Santo Agostinho, sendo possivelmente usar parâmetros de avaliação e hierarqui-
o que melhor corresponde ao conceito zação da cultura (Chauí, 2008). A partir
grego de paideia, um modo de cultivar da França, o termo “civilização” estende-
o espírito. A utilização, em sentido figu- -se rapidamente à Inglaterra (civilization),
rado, do termo “cultura” veio a alargar-se enquanto na Alemanha é, sobretudo, a pa-
ulteriormente até incluir, além do culti- lavra Kultur que assume um significado
var das próprias faculdades espirituais, análogo (Crespi; Cardoso, 1997).
também o da língua, da arte, das letras Por sua vez, a palavra “culto” vem do
e das ciências (Crespi; Cardoso, 1997). particípio passado de colo: cultus, que é
A partir da consolidação do Iluminis- aquilo que já foi trabalhado. Depois, pas-
mo, no século XVIII, o significado do sou a ter um sentido espiritual/religioso,
termo “cultura” é alargado, integrando o ou o contrário – não se sabe ao certo
patrimônio universal dos conhecimentos se o significado religioso foi anterior ou
e valores formativos ao longo da história posterior ao significado material. Contu-
da humanidade, e, como tal, é aberto a do, “cultura” passou de um significado
todos, constituindo, enquanto depósito da material para um significado ideal e in-
memória coletiva, uma fonte constante de telectual (Bosi, 2008).
enriquecimento da experiência. Contudo, Assim, a gênese do conceito de cultura
é nesse período que igualmente se afirma em termos científicos tem, por um lado, a
o conceito de “civilidade ou civilização, transformação do significado de cultura,
exprimindo o refinamento cultural dos ocorrida no século XVIII, de formação
costumes, em oposição à pretensa barbárie do espírito para um conjunto objetivo de
das origens ou a dos povos considerados representações, modelos de comportamen-
não civilizados” (Crespi; Cardoso, 1997, to, regras e valores enquanto patrimônio
p. 15). No Iluminismo, a cultura é uma comum realizado ao longo da evolução
forma de avaliar o quanto uma sociedade histórica e, por outro lado, a nova cons-
é civilizada. Dessa forma a cultura pas- ciência que se distingue do caráter histó-
sa a ser percebida como um conjunto de rico – relativo às diversas configurações
práticas artísticas, científicas e filosóficas culturais, conforme o tipo de sociedade
que permite a existência de uma hierar- e as diferentes épocas (Crespi; Cardoso,
quização dos valores de cada indivíduo 1997, p. 16). Tais observações etimológi-
ou classe na sociedade. Assim, a cultura cas são necessárias ao observarmos que
passa a ser associada ao progresso: “[...] ambos os significados sobreviveram nas
avalia-se o progresso de uma civilização línguas modernas. Pode-se falar em cul-
práticas de vida, que são resultado dos mais importante que outra, isso depende
costumes historicamente estabelecidos e do que cada grupo ou sociedade cultiva
dos hábitos que, à primeira vista, eram para si e considera importante do seu
extravagantes, podendo surgir como acei- ponto de vista.
táveis se for considerado o ambiente so- Tudo aquilo pelo qual um dia fomos
cial no qual encontraram as suas origens. “cultivados” ganha novos significados ao
longo de nosso crescimento, de nossa vida
e, sem perceber ou saber ao certo quando
CULTURA COMO PRÁTICAS, isso acontece, passamos a ser não mais
SOCIABILIDADES E ORIENTAÇÕES apenas cultivados, mas também cultiva-
dores do que acreditamos ser importante.
SIMBÓLICAS E MATERIAIS
Quanto a isso, Crespi e Cardoso (1997,
pp. 25-6) assinalam:
Crespi e Cardoso (1997) notam que sur-
gem diversos elementos no termo “cultura”, “Na prática, surge como confirmado o fato
ressaltando, por um lado, a dimensão des- de que cada indivíduo nasce no seio de um
critiva e cognitiva da cultura e, por outro, contexto social já formado e de uma cul-
a prescritiva. A primeira dimensão evoca tura específica que lhe é transmitida pelos
“as crenças e as representações sociais da adultos através da linguagem, dos hábitos
realidade natural e social, ou as imagens alimentares, das expressões de afeto, das
do mundo e da vida, que contribuem para regras para a educação, das narrações inter-
explicar e definir as identidades indivi- pretativas da vida e do mundo, da definição
duais, as unidades sociais, os fenômenos dos papéis e de tantos outros aspectos. Só
naturais”; já a segunda, um conjunto de num segundo momento o indivíduo cons-
valores que “indicam os objetivos ideais a ciente, através de uma elaboração pessoal
perseguir, e de normas (modelos de ação, dos significados que lhe foram transmiti-
definição dos papéis, regras, princípios dos, e levando à prática a capacidade de
morais, leis jurídicas etc.) que indicam o negação, que inicialmente referimos, pode
modo segundo o qual os indivíduos e as transformar tais significados até à produção
coletividades devem comportar-se” (Crespi; de novos significados”.
Cardoso, 1997, p. 14).
Metaforicamente, podemos verificar Não obstante, tudo que é cultivado neces-
que, apesar de o quilo do café ser mais sita de ferramentas para o cultivo. A cultura
caro que o do feijão ou do arroz no mer- surge então como um conjunto polivalente,
cado, não podemos dizer que o café tem diversificado e frequentemente heterogêneo
mais valor que os demais produtos. Ele de representações, códigos, leis, rituais, mo-
apenas adquiriu um valor de troca ou, delos de comportamento, valores que cons-
nesse caso, um valor financeiro maior tituem, em cada situação social específica,
que os dos outros, pela lei socioeconô- um conjunto de recursos, ou ferramentas,
mica da oferta e da procura. Também cuja função própria surge de acordo com
não podemos dizer que uma cultura é as contingências (Crespi; Cardoso, 1997).
tura, mas igualmente produtor de cultura Uma cultura de café existe quando
(Laraia, 2001). um agricultor a cultiva. E isso se aplica
Assim, poderíamos ter uma variedade a qualquer cultivo agrícola. Quando um
de possibilidades para conceber ao menos compositor cria uma música, ele pretende
uma noção de cultura que faça sentido. cultivar aquela mensagem ou sentimento
Pensada como um conjunto de ideias, va- transmitido pela música em outras pes-
lores e conhecimentos, o termo “cultura” soas. Assim como quando um ator ao en-
envolve, em primeiro lugar, a dimensão cenar, ou um pintor, usa de seus recursos
do passado, aproximando-se da noção de para transmitir algo. Eles estão fazendo
patrimônio. Isso porque, a cada ano que cultura, ou seja, estão cultivando algo em
passa, acumula mais conhecimentos que alguém. Em contrapartida, uma plantação
foram herdados de outras gerações. Con- de arroz é uma cultura, porque ela foi
tudo, ao voltarmos à etimologia, cada vez cultivada. Quando consumimos algum bem
mais nos preocupamos com a dimensão cultural, aquilo é cultivado em nós. Todo
de futuro, que é a dimensão do projeto. ensinamento, crenças, modos de pensar e
Logo, não basta que herdemos do passado agir são considerados uma cultura, por-
todas essas riquezas, é preciso continuar que nos foram cultivados e os tornamos
aprofundando discussões como esta em- nossa cultura, assim como nós cultivamos
preendida neste texto; se a cultura está aquilo para as gerações futuras, mesmo
sempre in progress, ela está sempre em em situações de crises e de mudanças de
fase de desvios, não é algo estabelecido hábitos, quando comparadas às situações,
para sempre. Na contemporaneidade, é antes e depois, da instauração da pande-
importante direcionarmos nossas preo- mia de covid-19.
cupações para criar projetos e políticas
de cultura; além desta criação, os nossos CONSIDERAÇÕES FINAIS
ideais democráticos exigem socialização
de conhecimentos. Dessa forma, “não só
cavar na matéria em si da cultura, mas A partir da questão norteadora deste
também estendê-la na linha da comuni- artigo, observou-se que para se definir
cação, na linha da socialização; e fazer cultura há necessidade de se contemplar
com que este bem seja repartido, distri- diversos elementos, inclusive em interse-
buído, da maneira mais justa e mais ampla ções, para ser completa, a depender de
possível, o que é próprio da sociedade qual área esteja sendo discutida; de forma
democrática” (Bosi, 2008). sintética, ela abrange todos os conceitos
Através do exposto, vemos a cultura de cultura, incluindo os dos setores agrá-
como aquilo que cultivamos, no senti- rios e organizacionais.
do do que buscamos para o futuro, co- Se pensarmos no campo das organiza-
mo projeto, e cultura como aquilo pelo ções, a partir dessa afirmação, poderemos
qual somos cultivados, aquilo que nos refletir sobre o que é cultura organiza-
foi transmitido ao longo dos tempos, no cional (Schein, 2016); ou sobre quando
sentido de passado. ela é o que os proprietários ou acionistas
REFERÊNCIAS
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pandugiha.wordpress.com/2008/11/24/alfredo-bosi-a-origem-da-palavra-cultura/.
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