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O que é cultura?

Reflexões para uma


sociedade (pós-)pandêmica

José Ricardo Vitória


Magnus Luiz Emmendoerfer

D
esde 1988, a cultura passa a ser conside-
rada um direito, inclusive relacionado aos
direitos humanos fundamentais no Brasil.

Este trabalho contou com o apoio do Conselho Nacional


de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq – Pro-
cesso 309363/2019-5), da Fundação de Amparo à Pesquisa
de Minas Gerais (Fapemig – Processo PPM-00049-18) e da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes – Financiamento 001).

JOSÉ RICARDO VITÓRIA é produtor cultural,


arte-educador e pesquisador do Grupo de
Pesquisa em Gestão e Desenvolvimento
de Territórios Criativos (GDTeC) do Núcleo
de Administração e Políticas Públicas (NAP2)
da Universidade Federal de Viçosa (UFV).

MAGNUS LUIZ EMMENDOERFER é professor do


Programa de Pós-Graduação em Administração
Pública da UFV e coordenador do Grupo de
Pesquisa em Gestão e Desenvolvimento
de Territórios Criativos (GDTeC) do Núcleo de
Administração e Políticas Públicas (NAP2) da UFV.

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Porém, na prática, esta teoria parece ser norteadora: “o que é cultura?”. Não é o
diferente, uma vez que nem todas as pes- problema de se definir cultura em um tra-
soas têm condições equitativas de acesso balho ou artigo acadêmico, nos quais se
ou provimento de bens e serviços cultu- estabelece a área que se deseja trabalhar e
rais, apesar de o Estado indicar garantir se aplicam os conceitos pertinentes àquele
isso em sua Constituição. campo. Aqui é colocada a inquietude sobre
Antes da pandemia de covid-19, foi o que responder de imediato a alguém – a
observado um progressivo desmonte dos um leigo, por exemplo – que perguntasse o
arranjos públicos institucionais no setor que é cultura. Não obstante, esta resposta,
cultural e retrações no fomento das ativi- mesmo ainda incompleta, não deve causar
dades culturais. Os motivos dessa retração contradição entre os inúmeros conceitos
por parte dos governos que representam e definições de cultura existentes. Dessa
o Estado em ação são diversos, incluindo forma, após vários anos atuando no meio
crises fiscais, ambientais, políticas e eco- cultural e estudando sobre cultura, em um
nômicas, além dos efeitos da pandemia que momento de reflexão surgiu a seguinte
têm afetado os setores culturais e criativos proposição: enquanto grupo e/ou sociedade,
nas cidades (Emmendoerfer; Fioravante, cultura é tudo aquilo que cultivamos e/ou
2021). Frente a isso, resgatar e refletir tudo aquilo pelo qual somos cultivados.
sobre os sentidos da cultura em uma so- A partir dessa afirmativa, este ensaio
ciedade pós-pandêmica, ou seja, após a (Burgoon, 2001) foi desenvolvido. Para isso,
instauração mundial da covid-19 como são apresentados os significados e origens
pandemia reconhecida pela Organização do termo em que a palavra “cultivar” é
Mundial da Saúde (OMS, 2020), revela- usada (por vezes, em seu sentido lato e, por
-se algo relevante no contexto brasileiro. outras, de forma metafórica) para ilustrar
Definir cultura não é tarefa simples. O o que está sendo proposto. Posteriormente
termo evoca interesses multidisciplinares, argumenta-se a afirmativa a partir de alguns
sendo estudado em áreas como sociologia, teóricos que estudaram e desenvolveram
antropologia, história, comunicação, admi- suas próprias definições de cultura. As-
nistração, economia, entre outras. Em cada sim, buscou-se mostrar que, independente
uma dessas áreas, é trabalhado a partir de da definição dada à cultura, essa pode ser
distintos enfoques e usos, sendo que par- incluída na afirmativa supracitada.
te dessa complexa distinção semântica se
deve ao próprio desenvolvimento histórico
do termo, resultando em vários conceitos ANTECEDENTES, APROXIMAÇÕES
que, às vezes, são contraditórios. Isso torna E DIFERENÇAS NAS
“cultura” um dos termos principais nas ci-
DEFINIÇÕES DE CULTURA
ências humanas, a ponto de a antropologia
se constituir como ciência quase somente
em torno desse conceito (Canedo, 2009). Ao procurarmos nos dicionários o sig-
O presente trabalho surge da inquie- nificado e origem do termo “cultivar”,
tação gerada ao ouvir a seguinte questão encontramos uma variedade de significa-

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dos e sinônimos, cada qual com algumas -uro e -ura são formas verbais de indi-
variações. O dicionário Michaelis (2021) car projeto, algo que pode acontecer. Por
define “cultivar” como: 1) Na agricultu- sua vez, o termo “cultura” tem origem
ra: preparar a terra, removendo-a, ferti- no verbo colo, em latim, que significava
lizando-a e regando-a; amanhar, lavrar. “eu cultivo”, especificamente, “eu culti-
Fazer o cultivo de determinadas plantas vo o solo”. A primeira acepção de colo
ou espécies vegetais; desenvolver a agri- estava ligada ao mundo agrário, pois os
cultura. 2) Criar algo artificialmente com antigos romanos começaram efetivamente
o emprego de técnicas especiais. 3) Criar pela agricultura. Assim, o termo “cultura”
animais. 4) Desenvolver aptidões físicas, envolvia “aquilo que deve ser cultivado”.
intelectuais ou morais. 5) Dar a alguém Era um modo verbal que tinha sempre
ou a si mesmo um bom nível de educação alguma relação com o futuro; tanto que a
e erudição; educar(-se), formar(-se). 6) própria palavra tem essa terminação -ura,
Criar ou passar a ter algo. O Dicionário que é uma desinência de futuro, daqui-
Priberam da Língua Portuguesa (2021) lo que vai acontecer, da aventura. Então
define cultivar como: verbo transitivo. 1) a cultura seria, basicamente, o campo a
Preparar e cuidar da terra para que pro- ser arado, na perspectiva de quem vai
duza. 2) [Por extensão] Aplicar-se ao de- trabalhar a terra (Bosi, 2008).
senvolvimento de. 3) Dedicar-se a ou co- Os romanos colonizaram a Grécia e
mo verbo pronominal. 4) Desenvolver-se; tiveram muita influência da cultura gre-
aperfeiçoar-se. Ainda foram encontradas ga, mas não queriam usar os termos gre-
outras definições, todavia, todas giram em gos. Assim, na busca de uma palavra que
torno dos mesmos sentidos aqui expostos. substituísse a paideia, que significava o
Na maioria dos casos, sua etimologia está “conjunto de conhecimentos que devia ser
relacionada ao latim medieval cultivàre, transmitido às crianças” (paidós), os ro-
ou variações em outras línguas. manos passaram a usar a palavra “cultu-
Segundo Bosi (2008), “cultura” exprime ra”, que anteriormente tinha um sentido
a ideia de compartilhamento de conhe- puramente material, em relação à vida
cimentos e valores entre gerações, insti- agrária, para um sentido intelectual e
tuições e territórios, subsistindo sempre moral, indicando um conjunto de ideias
a ideia de algo estabelecido em um pas- e valores (Bosi, 2008).
sado – que pode ser próximo ou remoto. De acordo com Crespi e Cardoso
Dessa forma, “cada vez mais a dimen- (1997), os gregos, ao utilizarem o con-
são cumulativa, de passado, se impõe, e ceito de paideia, consideravam “culto”
nossa memória tem que ficar cada vez o indivíduo que, assimilando os conhe-
mais enriquecida, porque o tempo passa cimentos e valores socialmente transmi-
e a memória cresce proporcionalmente” tidos, conseguisse traduzi-los em quali-
(Bosi, 2008). Todavia o autor enfatiza que dades pessoais. Este mesmo conceito é
etimologicamente a palavra “cultura” tem igualmente usado na Roma antiga sob o
um sentido de futuro, que é a dimensão termo “cultura”, que indicava inicialmen-
do projeto. As palavras terminadas em te a ação de cultivar a terra e criar o

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gado – para Crespi e Cardoso (1997), a pela sua cultura e avalia-se a cultura pe-
palavra “cultura” deriva do latim cole- lo progresso que traz a uma civilização”
re. O termo foi sucessivamente alargado, (Chauí, 2008, p. 55). O modelo que servia
em sentido metafórico, até a “cultura do como referência aos iluministas era o da
espírito”. Esse termo humanista foi am- cultura capitalista da Europa ocidental, em
plamente usado pelos filósofos Cícero e que os processos de exploração e domina-
Horácio e posteriormente retomado por ção eram justificados e legitimados ao se
Santo Agostinho, sendo possivelmente usar parâmetros de avaliação e hierarqui-
o que melhor corresponde ao conceito zação da cultura (Chauí, 2008). A partir
grego de paideia, um modo de cultivar da França, o termo “civilização” estende-
o espírito. A utilização, em sentido figu- -se rapidamente à Inglaterra (civilization),
rado, do termo “cultura” veio a alargar-se enquanto na Alemanha é, sobretudo, a pa-
ulteriormente até incluir, além do culti- lavra Kultur que assume um significado
var das próprias faculdades espirituais, análogo (Crespi; Cardoso, 1997).
também o da língua, da arte, das letras Por sua vez, a palavra “culto” vem do
e das ciências (Crespi; Cardoso, 1997). particípio passado de colo: cultus, que é
A partir da consolidação do Iluminis- aquilo que já foi trabalhado. Depois, pas-
mo, no século XVIII, o significado do sou a ter um sentido espiritual/religioso,
termo “cultura” é alargado, integrando o ou o contrário – não se sabe ao certo
patrimônio universal dos conhecimentos se o significado religioso foi anterior ou
e valores formativos ao longo da história posterior ao significado material. Contu-
da humanidade, e, como tal, é aberto a do, “cultura” passou de um significado
todos, constituindo, enquanto depósito da material para um significado ideal e in-
memória coletiva, uma fonte constante de telectual (Bosi, 2008).
enriquecimento da experiência. Contudo, Assim, a gênese do conceito de cultura
é nesse período que igualmente se afirma em termos científicos tem, por um lado, a
o conceito de “civilidade ou civilização, transformação do significado de cultura,
exprimindo o refinamento cultural dos ocorrida no século XVIII, de formação
costumes, em oposição à pretensa barbárie do espírito para um conjunto objetivo de
das origens ou a dos povos considerados representações, modelos de comportamen-
não civilizados” (Crespi; Cardoso, 1997, to, regras e valores enquanto patrimônio
p. 15). No Iluminismo, a cultura é uma comum realizado ao longo da evolução
forma de avaliar o quanto uma sociedade histórica e, por outro lado, a nova cons-
é civilizada. Dessa forma a cultura pas- ciência que se distingue do caráter histó-
sa a ser percebida como um conjunto de rico – relativo às diversas configurações
práticas artísticas, científicas e filosóficas culturais, conforme o tipo de sociedade
que permite a existência de uma hierar- e as diferentes épocas (Crespi; Cardoso,
quização dos valores de cada indivíduo 1997, p. 16). Tais observações etimológi-
ou classe na sociedade. Assim, a cultura cas são necessárias ao observarmos que
passa a ser associada ao progresso: “[...] ambos os significados sobreviveram nas
avalia-se o progresso de uma civilização línguas modernas. Pode-se falar em cul-

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turas do arroz, da soja, do trigo, enten- o caráter de aprendizado da cultura em
dendo-se que é uma terra cultivada; mas, oposição à ideia de transmissão biológica:
com frequência, tem-se usado a palavra “[cultura] tomada em seu amplo sentido
“cultura” na acepção ideal, que é muito etnográfico, é este todo complexo que in-
rica, porque traz dentro de si, na forma clui conhecimentos, crenças, arte, moral,
verbal terminada em -ura, as ideias de leis, costumes ou qualquer outra capaci-
projeto e de futuro (Bosi, 2008). dade ou hábitos adquiridos pelo homem
como membro de uma sociedade” (Laraia,
PLURALIDADES NAS 2001, p. 25). Nesse sentido, os conheci-
mentos são cultivados pelos ensinamentos
DEFINIÇÕES DE CULTURA dos pais e familiares, pelo que se ensina
nas escolas, ou pelas várias outras formas
Rapport (2014) argumenta que a cultura através das quais adquirimos conhecimen-
pode ser vista de maneira contrastante to ao longo de nossas vidas.
quando discutida sob os pontos de vista As crenças existem porque foram cul-
singular e plural. O ponto de vista singu- tivadas ao longo do tempo por outras pes-
lar é parecido com o dos iluministas, no soas, passando de geração em geração. Uma
sentido progressista e desenvolvimentista, pessoa só é cristã, muçulmana ou judia se
em que, quanto mais a criatividade e a alguém lhe ensinou e ela foi por um longo
racionalidade são cultivadas, mais cul- tempo cultivada por esses ensinamentos.
tas são as sociedades. Assim, “os seres Mesmo que sua “conversão” seja tardia, só
humanos se tornaram mais ‘cultivados’ ocorreu porque, em algum momento, a pes-
à medida que progrediam ao longo do soa foi cultivada por aquela ideologia, seja
tempo intelectualmente, espiritualmente por outras pessoas ou pelo conhecimento
e esteticamente” (Rapport, 2014, p.19). adquirido dos “livros sagrados”.
Por outro lado, culturas vistas como algo A moral é reflexo daquilo que a socie-
plural – ponto de vista da antropologia dade cultiva ao longo da história, assim
moderna – expressam-se apenas como di- como as leis são reflexos dos parâmetros
ferentes e não como superiores, em que morais e éticos construídos (cultivados)
cada povo cultiva aquilo que acredita ser ao longo do tempo. Dessa forma, tanto
o melhor modo de viver. Assim, “cada as leis quanto o que é considerado mo-
cultura pertence a um modo de vida espe- ral e/ou ético são mutáveis e passíveis
cífico, historicamente contingente, que foi de serem revistos e recultivados, assim
expressa através de seu conjunto específi- como as definições de cultura.
co de artefatos, instituições e padrões de Quanto à arte, podemos destacar dois
comportamento” (Rapport, 2014, p. 20). pontos: de preservação e de ruptura. O
Uma das concepções de cultura mais primeiro vem no sentido de cultivar aqui-
difundidas é sintetizada por Edward Bur- lo que é tradicional, e por meio da arte
nett Tylor (1832-1917), o primeiro a for- pode-se despertar o interesse dos mais
mular o conceito de cultura do ponto de jovens (bem como dos mais velhos) e
vista antropológico, em 1871, marcando transmitir tradições e conhecimentos

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apreendidos por determinado povo. Já o suas experimentações e de suas rupturas,


sentido de ruptura está vinculado ao papel inclusive, com a tradição”.
da arte de cultivar novos pensamentos,
gerar novas reflexões, despertar novos Outro sentido muito comumente atri-
sentimentos nos demais, como se culti- buído à palavra “cultura” é aquele que
vasse um novo “cultivar” – como expresso a define como produção artística e inte-
na agricultura. Nesse sentido, Bourdieu lectual. Assim, podemos falar de cultura
(2007, p. 11) afirma que: erudita, cultura popular, cultura de massa,
ou seja, todas as expressões que desig-
“A intenção pura do artista é a de um nam conceitos específicos para a produção
produtor que pretende ser autônomo, ou intelectual de determinados grupos so-
seja, inteiramente dono do seu produto, ciais (Silva; Silva, 2009). Segundo Cunha
que tende a recusar não só os ‘progra- (2003), esse sentido costuma ser encontra-
mas’ impostos a priori pelos intelectuais do no âmbito do poder público em suas
e letrados, mas também com a velha hie- organizações (ministérios e secretarias de
rarquia do fazer e do dizer, as interpreta- Cultura), nos meios de comunicação, em
ções acrescentadas a posteriori sobre sua instituições educativas e em mercados de
obra: a produção de uma ‘obra aberta’, arte e de entretenimento.
intrínseca e deliberadamente polissêmi- Com esse enfoque, Bourdieu (2007)
ca, pode ser assim compreendida como o indica a existência de uma ideologia ca-
último estágio da conquista da autonomia rismática onde os gostos, em matéria de
artística pelos poetas e – sem dúvida, a cultura legítima, são considerados um dom
sua imagem – pelos pintores, que, durante da natureza. Contudo, a observação cien-
muito tempo, permaneceram tributários tífica mostra que as necessidades culturais
dos escritores e de seu trabalho de ‘fazer- são produto da educação e por isso de-
-ver’ e de ‘fazer-valer’. Afirmar a auto- vem ser cultivadas. Com isso, as famílias
nomia da produção e conferir o primado mais abastadas têm melhores condições de
àquilo de que o artista é senhor, ou seja, consumirem e usufruírem dos bens cultu-
a forma, a maneira e o estilo, em relação rais, bem como cultivar em seus sucesso-
ao ‘indivíduo’, referente exterior, por on- res novas necessidade culturais. Condições
de se introduz a subordinação a funções essas que as famílias menos afortunadas
– ainda que se tratasse da mais elemen- não possuem, podendo cultivar nos seus
tar, ou seja, a de representar, significar e descendentes apenas aquilo que lhes foi
dizer algo. E, ao mesmo tempo, recusar oferecido (cultivado) anteriormente.
o reconhecimento de qualquer outra ne-
cessidade além daquela que se encontra “A pesquisa estabelece que todas as práticas
inscrita na tradição própria da disciplina culturais (frequência a museus, concertos,
artística considerada; trata-se de passar de exposições, leituras etc.) e as preferências
uma arte que imita a natureza para uma em matéria de literatura, pintura ou música
arte que imita a arte, encontrando, em sua estão estreitamente associadas ao nível de
história própria, o princípio exclusivo de instrução (avaliado pelo diploma escolar ou

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pelo número de anos de estudo) e, secunda- dança, dos sistemas de relações sociais,
riamente, à origem social. O peso relativo particularmente os sistemas de parentesco
da educação familiar e da educação pro- ou a estrutura da família, das relações
priamente escolar (cuja eficácia e duração de poder, da guerra e da paz, da noção
dependem estreitamente da origem social) de vida e morte. A cultura passa a ser
varia segundo o grau de reconhecimento compreendida como o campo no qual os
e ensino dispensado às diferentes práticas sujeitos humanos elaboram símbolos e sig-
culturais pelo sistema escolar; além dis- nos, instituem as práticas e os valores,
so, a influência da origem social, no caso definem para si próprios o possível e o
em que todas as outras variáveis sejam se- impossível, o sentido da linha do tempo
melhantes, atinge seu auge em matéria de (passado, presente e futuro), as diferen-
cultura livre ou de cultura de vanguarda” ças no interior do espaço (o sentido do
(Bourdieu, 2007, p. 9). próximo e do distante, do grande e do
pequeno, do visível e do invisível), os va-
O conceito de cultura contemplado nas lores como o verdadeiro e o falso, o belo
obras de Marilena Chauí é entendido como e o feio, o justo e o injusto, instauram
algo próprio do ser humano: o conjunto a ideia de lei e, portanto, do permitido
de atividades e costumes humanos que e do proibido, determinam o sentido da
tem ligação com o meio em que ele vive. vida e da morte e das relações entre o
sagrado e o profano” (Chauí, 2008, p. 57).
“[...] Em sentido amplo, cultura é o cam-
po simbólico e material das atividades As diferenças culturais são ressaltadas
humanas, estudada pela etnografia, etno- por Chauí (2008) indicando a importância
logia e antropologia, além da filosofia. de observar a pluralidade cultural de ca-
Em sentido restrito, isto é, articulada à da sociedade, e o quanto os “dominados”
divisão social do trabalho, tende a iden- vivem em constante e dinâmica interação
tificar-se como a posse de conhecimentos com a estrutura social e a cultura domi-
e habilidades e gostos específicos, com nante, e não podem ser compreendidos
privilégios de classe, e leva à distinção como algo à margem ou isolado que deve
entre cultos e incultos, de onde partirá ser superado por um suposto progresso. O
a diferença entre cultura letrada erudita reconhecimento de que cada cultura tem
e cultura popular” (Chauí, 1986, p. 14). sua própria validade e coerência e não
pode ser julgada a partir dos critérios que
“[...] A partir de então, o termo cultura nos forem familiares, também conhecido
passa a ter uma abrangência que não pos- como relativismo cultural, vai colocando
suía antes, sendo agora entendida como as bases da difusa percepção de cultura.
produção e criação da linguagem, da re- Assim, segundo Crespi e Cardoso (1997),
ligião, da sexualidade, dos instrumentos gradualmente aumenta a consciência de
e das formas do trabalho, das formas da que os conceitos utilizados na representa-
habitação, do vestuário e da culinária, ção e interpretação da realidade dependem
das expressões de lazer, da música, da da diversidade dos lugares, bem como das

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práticas de vida, que são resultado dos mais importante que outra, isso depende
costumes historicamente estabelecidos e do que cada grupo ou sociedade cultiva
dos hábitos que, à primeira vista, eram para si e considera importante do seu
extravagantes, podendo surgir como acei- ponto de vista.
táveis se for considerado o ambiente so- Tudo aquilo pelo qual um dia fomos
cial no qual encontraram as suas origens. “cultivados” ganha novos significados ao
longo de nosso crescimento, de nossa vida
e, sem perceber ou saber ao certo quando
CULTURA COMO PRÁTICAS, isso acontece, passamos a ser não mais
SOCIABILIDADES E ORIENTAÇÕES apenas cultivados, mas também cultiva-
dores do que acreditamos ser importante.
SIMBÓLICAS E MATERIAIS
Quanto a isso, Crespi e Cardoso (1997,
pp. 25-6) assinalam:
Crespi e Cardoso (1997) notam que sur-
gem diversos elementos no termo “cultura”, “Na prática, surge como confirmado o fato
ressaltando, por um lado, a dimensão des- de que cada indivíduo nasce no seio de um
critiva e cognitiva da cultura e, por outro, contexto social já formado e de uma cul-
a prescritiva. A primeira dimensão evoca tura específica que lhe é transmitida pelos
“as crenças e as representações sociais da adultos através da linguagem, dos hábitos
realidade natural e social, ou as imagens alimentares, das expressões de afeto, das
do mundo e da vida, que contribuem para regras para a educação, das narrações inter-
explicar e definir as identidades indivi- pretativas da vida e do mundo, da definição
duais, as unidades sociais, os fenômenos dos papéis e de tantos outros aspectos. Só
naturais”; já a segunda, um conjunto de num segundo momento o indivíduo cons-
valores que “indicam os objetivos ideais a ciente, através de uma elaboração pessoal
perseguir, e de normas (modelos de ação, dos significados que lhe foram transmiti-
definição dos papéis, regras, princípios dos, e levando à prática a capacidade de
morais, leis jurídicas etc.) que indicam o negação, que inicialmente referimos, pode
modo segundo o qual os indivíduos e as transformar tais significados até à produção
coletividades devem comportar-se” (Crespi; de novos significados”.
Cardoso, 1997, p. 14).
Metaforicamente, podemos verificar Não obstante, tudo que é cultivado neces-
que, apesar de o quilo do café ser mais sita de ferramentas para o cultivo. A cultura
caro que o do feijão ou do arroz no mer- surge então como um conjunto polivalente,
cado, não podemos dizer que o café tem diversificado e frequentemente heterogêneo
mais valor que os demais produtos. Ele de representações, códigos, leis, rituais, mo-
apenas adquiriu um valor de troca ou, delos de comportamento, valores que cons-
nesse caso, um valor financeiro maior tituem, em cada situação social específica,
que os dos outros, pela lei socioeconô- um conjunto de recursos, ou ferramentas,
mica da oferta e da procura. Também cuja função própria surge de acordo com
não podemos dizer que uma cultura é as contingências (Crespi; Cardoso, 1997).

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Um olhar parecido com o que aqui liberdade e necessidade, à ideia de um
se coloca foi contemplado por Eagleton projeto consciente e um excedente não
(2011). Para este autor, a cultura pode planeável (Eagleton, 2011).
ser vista como um meio de autorreno- A cultura se volta, então, para duas
vação constante da natureza e, assim, a direções opostas, indicando uma divisão
própria natureza produz os meios de sua dentro do próprio indivíduo, entre o que
transcendência, sendo sempre, de uma se cultiva e se refina, e aquilo de que
maneira ou outra, cultural. As culturas, se constitui a matéria-prima para esse
portanto, são construídas com base em refinamento. Como “cultura”, a palavra
uma incessante relação com a natureza “natureza” significa tanto o que está ao
ou o trabalho. Etimologicamente, “cul- nosso redor como o que se encontra em
tura” remete ao crescimento espontâneo, nosso interior, constituindo uma questão
como em “cultivo agrícola”, e, portanto, de autossuperação e de autorrealização.
cultural é aquilo que é mutável, forma- Nesse sentido, se somos seres culturais,
do por um material autônomo, dotado também somos parte da natureza que tra-
de certa obstinação advinda da natureza balhamos. A cultura já deve representar
(Eagleton, 2011). um potencial dentro da natureza humana,
Por outro lado, “cultura” também é um se for para que vingue, mas a própria
conceito que envolve regras e promove necessidade de cultura sugere que há al-
uma interação entre a regulação e a não go faltando na natureza (Eagleton, 2011).
regulação. Não se deve, porém, interpretar A cultura, mais do que a herança ge-
toda ação como um seguimento de regra, nética, determina o comportamento das
pois tanto as regras como as culturas não pessoas e justifica suas realizações em
são regidas estritamente por determina- seu contexto social. Por meio da cultura
ções, nem mesmo puramente aleatórias: o ser humano é capaz de superar obstácu-
envolvem a ideia de liberdade. Portanto, a los e situações complicadas e modificar
ideia de cultura envolve uma dupla recusa: o seu hábitat, embora tal modificação
do determinismo orgânico e da autono- nem sempre seja a mais favorável para
mia do espírito, rejeitando o naturalismo a humanidade. Desse modo, a cultura
(pois há algo na natureza que a excede e pode ser definida como algo adquirido,
a anula) e o idealismo (pois mesmo o mais aprendido e também acumulativo, resul-
nobre agir humano tem raízes humildes tante da experiência de várias gerações.
na biologia e no ambiente natural). Dessa Enquanto aprendiz, o ser humano pode
forma, é um termo descritivo e analítico, sempre criar, inventar, mudar, podendo
que compreende uma tensão entre fazer ser também um criador de cultura. Por
e ser feito, racionalidade e espontanei- isso, a cultura está sempre em processo
dade. Cultura alude ao contraste político de mudança, podendo, em muitos ca-
entre evolução (orgânica e espontânea) e sos, ser modificada com muita rapidez
revolução (artificial e forçada), sugerindo e violência, dependendo dos processos
como se poderia ir além desta antítese a que for submetida. Dessa forma, o ser
batida, ao combinar crescimento e cálculo, humano não é somente o produto da cul-

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tura, mas igualmente produtor de cultura Uma cultura de café existe quando
(Laraia, 2001). um agricultor a cultiva. E isso se aplica
Assim, poderíamos ter uma variedade a qualquer cultivo agrícola. Quando um
de possibilidades para conceber ao menos compositor cria uma música, ele pretende
uma noção de cultura que faça sentido. cultivar aquela mensagem ou sentimento
Pensada como um conjunto de ideias, va- transmitido pela música em outras pes-
lores e conhecimentos, o termo “cultura” soas. Assim como quando um ator ao en-
envolve, em primeiro lugar, a dimensão cenar, ou um pintor, usa de seus recursos
do passado, aproximando-se da noção de para transmitir algo. Eles estão fazendo
patrimônio. Isso porque, a cada ano que cultura, ou seja, estão cultivando algo em
passa, acumula mais conhecimentos que alguém. Em contrapartida, uma plantação
foram herdados de outras gerações. Con- de arroz é uma cultura, porque ela foi
tudo, ao voltarmos à etimologia, cada vez cultivada. Quando consumimos algum bem
mais nos preocupamos com a dimensão cultural, aquilo é cultivado em nós. Todo
de futuro, que é a dimensão do projeto. ensinamento, crenças, modos de pensar e
Logo, não basta que herdemos do passado agir são considerados uma cultura, por-
todas essas riquezas, é preciso continuar que nos foram cultivados e os tornamos
aprofundando discussões como esta em- nossa cultura, assim como nós cultivamos
preendida neste texto; se a cultura está aquilo para as gerações futuras, mesmo
sempre in progress, ela está sempre em em situações de crises e de mudanças de
fase de desvios, não é algo estabelecido hábitos, quando comparadas às situações,
para sempre. Na contemporaneidade, é antes e depois, da instauração da pande-
importante direcionarmos nossas preo- mia de covid-19.
cupações para criar projetos e políticas
de cultura; além desta criação, os nossos CONSIDERAÇÕES FINAIS
ideais democráticos exigem socialização
de conhecimentos. Dessa forma, “não só
cavar na matéria em si da cultura, mas A partir da questão norteadora deste
também estendê-la na linha da comuni- artigo, observou-se que para se definir
cação, na linha da socialização; e fazer cultura há necessidade de se contemplar
com que este bem seja repartido, distri- diversos elementos, inclusive em interse-
buído, da maneira mais justa e mais ampla ções, para ser completa, a depender de
possível, o que é próprio da sociedade qual área esteja sendo discutida; de forma
democrática” (Bosi, 2008). sintética, ela abrange todos os conceitos
Através do exposto, vemos a cultura de cultura, incluindo os dos setores agrá-
como aquilo que cultivamos, no senti- rios e organizacionais.
do do que buscamos para o futuro, co- Se pensarmos no campo das organiza-
mo projeto, e cultura como aquilo pelo ções, a partir dessa afirmação, poderemos
qual somos cultivados, aquilo que nos refletir sobre o que é cultura organiza-
foi transmitido ao longo dos tempos, no cional (Schein, 2016); ou sobre quando
sentido de passado. ela é o que os proprietários ou acionistas

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acreditam; ou, ainda, quando ela é um ou sociedade, cultura é tudo aquilo que
acumulado da cultura de seus colaborado- cultivamos e/ou tudo aquilo pelo qual
res. Também no campo das organizações somos cultivados. E, nesse sentido e na
governamentais, pode-se questionar o pa- atual conjuntura brasileira, as interseções
pel da cultura nas políticas públicas; o que culturais se revelam essenciais, podendo
deve ser cultivado para que determinada ser cultivadas com base em valores virtu-
política pública alcance seus objetivos; ou osos como a solidariedade democrática,
até o que as políticas públicas de cultura de forma saudável, equitativa, inclusiva e
têm cultivado. resiliente. E se, com base nesse cultivo,
Não obstante, diante do exposto, acre- tratarmos a cultura como prática, segundo
dita-se que, quando alguém for questio- Lewin (1952), seu conteúdo pode compor
nado sobre o que é cultura, pode-se res- uma boa teoria para orientar nossas ações,
ponder sem aflição: enquanto grupo e/ instituições e políticas públicas.

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