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ENGENHOS DO DEMÔNIO, ENGENHOSIDADE HUMANA

Plácido Cali 1

Os engenhos de roda que executam trabalhos,


gestos e coisas estranhas, vêm diretamente do
demônio.
Crônica de Nurembergue, datada de 1394

Dando continuidade à série de artigos sobre arqueologia e história de Ilhabela, com


intuito de divulgar nosso patrimônio e fornecer material para pesquisa a estudantes e
professores, detemo-nos agora sobre os engenhos, parte importante da história do
arquipélago e mecanismo que possibilitou a economia do açúcar e, mais tarde, da
aguardente.

A frase acima citada, da crônica de Nurembergue, reflete um pensamento que vem


desde a Antiguidade até o século XVII: o tabu do “natural”. Já em 1949, Robert
Lenoble, em Histoire de l’idée de nature, investigava o fenômeno, constatando que a
criação de algo que reconstituísse movimentos e tarefas de um ser natural,
desrespeitava a ordem natural das coisas. Já a sua vinculação com o demônio é um
caso extremo e fruto de uma época. Os engenhos também eram associados à engodo,
engano e trapaça. Mesmo a palavra grega mekhanos também tinha sentido de ardil e
engodo.

Tempos depois, contemporaneamente ao desenvolvimento do capitalismo, iniciou-se


um período de prestígio para as máquinas e para a técnica, predominando uma visão
mais concreta e buscando-se definir este novo universo.

Os engenhos apareceram anteriormente, com a manufatura, que caracteriza um


período que vai desde o século XVI até fins do XVIII. Esses engenhos diferenciavam-
se, sendo alguns pequenos, de produção artesanal e outros de maior porte, com a
divisão do trabalho. No segundo caso, buscava-se também meios para a substituição
de trabalhadores pela máquina. A história da indústria têxtil européia mostra-nos mais
claramente que as pesquisas do século XVIII voltaram-se, principalmente, para a
automatização, a eliminação do operador humano.

Os engenhos coexistiram com outras manufaturas paralelas e anexas. É o caso da


existência de olarias para a fabricação de fôrmas e de caixotaria ou tanoaria para a
fabricação de caixas ou barricas de embalagem.

A manufatura do açúcar vai desde a moagem da cana à obtenção do açúcar refinado


como produto final. Entretanto podemos entendê-la em duas frações. A primeira é a
fabricação, que inicia-se com a moagem e vai até o melado ou até a produção de
açúcares brutos. A segunda é a do refino que, a partir do melado ou dos açúcares
brutos, atinge melhor qualidade.

1
Arqueólogo, Coordenador do Centro de Estudos e Defesa do Patrimônio Cultural – Cedepac.
Coordenador do Projeto Arqueológico de Ilhabela.
CALI, Plácido. Engenhos do demônio, engenhosidade humana. Jornal da Ilha. Ilhabela, mai. 2001. n.
48.
Engenhos no Brasil

A fabricação do açúcar nos engenhos associa-se, no Brasil e nas Américas, à


escravidão, ao contrário do processo na Europa, que estava apoiado no trabalho livre,
familiar e artesanal. Envolta em segredos de ofício, ela empregava, segundo Ruy
Gama, , em Engenho e Tecnologia, 1983, ingredientes como o sangue e a clara de
ovos.

Em 1711, um pequeno livro escrito pelo jesuíta toscano João Antônio Andreoni e que
se chama Cultura e Opulência no Brasil por suas drogas e minas, permitiu-nos
conhecer melhor este ofício. Andreoni viveu no Brasil de 1681 até 1716, quando
morreu na Bahia.

Sua descrição do velho engenho Sergipe do Conde, apresenta as atividades e


operações naquele engenho que, em menor ou maior grau, estavam presentes em
quase todos engenhos. Em síntese, as seqüências de operações descritas por
Andreoni eram as seguintes:

1. Limpeza prévia e preparação da cana;


2. Moagem da cana (primeira passagem pela moenda; repasse do bagaço);
3. Armazenamento do caldo;
4. O cozimento, com as seguintes operações: limpeza do caldo cru; evaporação do
caldo limpo; purificação do caldo evaporado; cozimento do caldo purificado;
formação dos cristais de açúcar; batedura da massa para o enchimento das
formas; enchimento das formas;
5. Purga. Parte do mel e do material não-cristalizado escorria pelo furo existente na
forma;
6. Retirados das formas, os pães eram quebrados para separação das camadas de
diferentes qualidades;
7. Pesagem, repartição e encaixotamento.

Sobre o tipo de moenda, com mós de pedra que rodam sobre um piso onde se colocam
as canas a serem esmagadas, correspondia a denominação de trapiche. Fernão
Cardim registrou no século XVI, no livro Tratado da terra e da gente do Brasil, que os
trapiches eram os moinhos que utilizavam bois. Com o emprego das moendas de
entrosas, de cilindros verticais, os trapiches caíram em desuso. Ainda assim, eles
sobreviveram fora dos engenhos de açúcar, utilizados para moer conchas (para a
fabricação da cal), na fabricação da pólvora, azeite de oliva ou mesmo no
beneficiamento do café. Pedras desse tipo foram encontradas em Ilhabela.

Retornando à produção do açúcar, as moendas de rolos, ou “engenhos de eixos”,


segundo Frei Vicente do Salvador, eram as mais utilizadas e, no final do século XVIII,
aperfeiçoadas voltaram sob a forma de rolos horizontais.

Os engenhos d’água aparecem desde o início da colonização, recebendo maior


importância. A roda d’água podia ser empregue para movimentar as moendas de
entrosas, e outros tipos de moendas, como as de pilão ou mesmo os trapiches.

Os engenhos d’água produziam mais que os de tração animal (moenda de almajarra).


As moendas tracionadas por bois giravam lentamente. O sistema de transmissão exigia
uma volta completa dos animais para cada volta dos rolos. Os cavalos impunham mais
velocidade, mas eram pouco resistentes, exigindo a sua substituição a cada duas
horas.
Os engenhos de Ilhabela

Existiram vários engenhos de cana em Ilhabela. Hoje, através do Projeto Arqueológico,


foram identificados vinte e um. Feitos quase todos em alvenaria de pedra e cal, em sua
maioria encontram-se em ruínas. Dois deles são tombados, juntamente com as
fazendas nas quais estão inseridos. É o caso do Engenho d’Água, tombado em nível
estadual pelo Condephaat, e da Fazenda São Mathias, tombado em nível federal pelo
Iphan. Nessa última, o edifício abrigava tanto as atividades industriais quanto a de
moradia dos proprietários. A parte destinada ao fabrico do açúcar era de pedra e cal e
a residencial de taipa de mão. Algumas reformas alteraram parte de seus elementos
originais. A construção possuía também um retábulo que hoje se encontra no Museu
de Arte Sacra de São Paulo.

Já o Engenho d’Água encontra-se mais preservado, apesar das restrições impostas


pelos proprietários à visitação de interessados ao local. Caso oposto à Fazenda
Siriúba, que também preserva o prédio do engenho e uma capela com um retábulo do
século XVIII, pois o local funciona como Hotel-Fazenda, tendo como atrativo o seu
patrimônio histórico, iniciativa elogiável e rara em Ilhabela.

Destacamos, também, as ruínas do engenho da Feiticeira, que, apesar do seu estado,


possui o local da roda d’água, da moenda e do alambique. Ao norte da Ilha de São
Sebastião, há também ruínas de engenhos na Pacuíba, Furnas e Jabaquara. Os
demais localizam-se nas proximidades de Água Branca, Castelhanos, Laje Preta,
Serraria e Cocaia, onde situa-se um engenho mais recente, mas que manteve
cristalizado o processo de produção, preservando a roda d’água, a moenda, os tonéis,
o alambique, etc., local digno de ser musealizado e aberto ao público.

Sempre é bom lembrar que esses locais constituem-se em patrimônio histórico,


protegidos pela Lei Orgânica do Município de Ilhabela, e estão cadastrados como sítios
arqueológicos no Iphan, sendo protegidos pela Lei Federal 3924/61.

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Publicado em:
Jornal da Ilha. Ilhabela, abr. 2001. n. 47, p. 05.

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