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Fantasticheria (Picturesque lives),


Giovanni Verga
Contextualização:

Doutrina antiga da divisão dos estilos


Teoria clássica que prevê a diferenciação dos níveis estílisticos/variação entre níveis
estílisticos, assuntos tratados e personagens —» noção de estilos superiores e inferiores;

Ex: Em Virgílio a Eneida é considerada enquanto pertencente a um nível superior


(aborda reis, heróis e aristocratas) do que as Geórgicas (estilo médio- temáticas ligadas
a agricultores) ou as Bucólicas (estilo considerado humilde- temáticas pastoris);

Ex: No teatro grego, a tragédia representa os deuses, heróis e classes superiores, ao


passo que, a comédia integra protagonistas de classes inferiores;

A representação do quotidiano só podia ter lugar na Literatura baixa (de forma cómica
ou grotesca; entretenimento “leve e colorido”);

Teoria retomada por cada época literária classicista (aparece e desaparece):

Ex: Milton em Lycidas: passa dos “forc ´d fingers” aos “pastures new”- da elegia
pastoral, à épica (Paradise Lost);

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Auerbach, no seu ensaio em dois volumes Mimésis, diz que a mistura dos estilos surge
primeiro com Os Evangelhos;
A teoria dos estilos desfaz-se na primeira metade do séc. XIX- passamos a ter personagens
de uma classe social inferior a protagonizar o estilo trágico.

Novos protagonistas na arte- séc. XIX


Na História do romance, é o romance realista francês que se impõe no séc. XIX que faz cair
por terra a teoria da divisão dos estilos:
-As pessoas pertencentes a classes mais humildes da sociedade merecem mais do que ser
objeto de narração cómica, merecem pertencer a histórias sérias, problemáticas, trágicas
(droit au romance);
Ex: Comédia Humana de Dante (série de romances com o fito de representar a vida francesa
da época)- os proletários são, contudo, praticamente ausentes;
Realismo de Balzac- raras vezes leva a sua investigação para além da baixa burguesia
(criadas, prostitutas, etc…) que, por sua vez, surgem numa posição de dependência face a
classe dominante.
Em suma: mesmo com as inovações que o realismo francês acarreta, não se apresentam os
trabalhadores com uma fisionomia social autónoma (não são eles os verdadeiros
protagonistas): os operários, por exemplo, surgem como uma espécie de apêndice das
classes mais altas.

Modos de representação das classes sociais na Literatura de meados do séc. XIX:

A perspetiva idílica: Literatura rústica ou campestre em que está presente o conflito entre a
dicotomia cidade/campo, sendo que se identificam, nos camponeses, os valores perdidos e
corrompidos pela cidade moderna - ex:George Sand;
A perspetiva melodramática: (típica do folhetim) representação das classes populares no
interior da própria metrópole (pobres perseguidos VS ricos que os oprimem); identificação
paternalista dos valores verdadeiros do povo; esta linha melodramática de romances oferece
ao leitor uma imagem pictoresca ca do exótico do mundo do proletariado, tendo o intento de
transmitir emoções fortes e de identificar os valores traídos pela modernidade (o herói, no

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entanto, continua a ser um aristocrata)- ex:Charles Dickens; Eugène Sue, Os Mistérios de
Paris;
Com grande consciência artistica, mas com a mesma intenção patética (pathos), a Paris do
subúrbio surge em Les Miserables de Victor Hugo, prosseguindo com a identificação, no
povo, dos valores traídos pela civilização moderna das metrópoles;
Em 1965 os irmãos De Goncourt escrevem Germinie Lacerteux: história de uma criada (com
um prefácio que se tornou clássico na História da Teoria Literária —» reivindicam o
romance para as classes populares) retratada à luz de uma certa curiosidade intelectual que a
torna objeto de experimentação artística na escrita em vez de objeto de análise social—-» o
narrador “espia” as perversões da protagonista;
As ações das personagens, por exemplo, são sempre atribuídas a razões patológicas, não
sociais:

Ex: Irmãos De Goncourt: prostituição como expressão da histeria e desejo sexual


desenfreado da personagem; VS Zola (L ´Assommoir): protagonista tenta prostituir-se em
consequência da fome;

O romance dos irmãos De Goncourt não aborda, portanto, questões sociais, principalmente
quando contrastado com a obra de Zola.

“ (…) uma obra verdadeira, o primeiro romance que não mente e


cheira a povo.”

--Émile Zola (sobre L ´Assommoir, no seu prefácio )

Novas técnicas narrativas: poética do ponto de vista

Mesmo nos romances em que a representação das classes sociais é realizada de um modo
inovativo, continuamos a encontrar-nos perante um narrador omnisciente em posição de
domínio sob a obra (olha o mundo do romance por cima): superioridade de conhecimento
em contraste com as personagens e expressão do ponto de vista ideológico e linguístico do
autor—-» cria-se um fosso entre o leitor aristocrata e o universo narrativo;

Essa superioridade narrativa expressa-se, também, por meio de operações linguísticas (por
exemplo, em Germinie Lacerteux lemos um francês que expressa a linguagem e cultura da
alta sociedade da época); Zola, contudo, introduzindo novas técnicas narrativas na escrita do
romance, marca a sua obra com uma enorme experimentação linguística: um francês
contaminado de estruturas sintáticas da língua falada pelas classes sociais de Paris

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(paralelismo com o argot que Victor Hugo aplicara na escrita do discurso direto—-» Zola
alarga a adaptação linguística a toda a obra);
O caráter revolucionário (quer temático como linguístico) em Zola reflete-se também na
renúncia ao narrador omnisciente, partindo, por isso, da focalização interna——» “contar a
história por dentro”;

A função mediadora do narrador omnisciente é abolida, pelo que o leitor de Zola “dá de
caras” com este mundo, linguagem e ponto de vista diferente sem preparação——-»
autonomia linguística e moral;
Enquadrando-se também na escola naturalista a que pertence Zola, surge-nos Giovanni
Verga——» escreve o primeiro conto naturalista italiano Il Malavoglia (é contudo, até certo
ponto, preocupado com a burguesia, apesar de partilhar da poética do ponto de vista iniciada
com Zola);

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O conto:

Primeiro conto da coletânea Vita dei Campi (Life in the Fields);

Expressão da poética realista e da poética do ponto de vista;

Perceção da distância entre a vida citadina e o “mundo primitivo” do campo—-» busca pela
compreensão;

Conto teórico em 1ª pessoa por vezes interpretado enquanto coincidente com o autor ( teoria
da poética do ponto de vista que é, depois, colocada em prática com Rosso Malpelo);

Mesmo não integrando a técnica da focalização interna, é abordada a necessidade de


compreensão das classes subalternas (por meio da mudança de ponto de vista);

Um dos contos mais comentados da Literatura italiana;

Antecipa o cenário e personagens de Il Malavoglia:

“The drama of which I speak, which perhaps one day I shall unfold to you
in its entirety, would seem to me to depend essentially on this: that
whenever one of the underprivileged, being either weaker, or less cautious,
or more selfish than the others, decided to break with his family out of a
desire for the unknown, or an urge for a better life, or curiosity to know

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the world, then the world, like the voracious fish that it is, swallowed him
up along with his nearest and dearest.”

Ambiguidade quanto à mulher (1ª leitora do conto que se torna alusão para a figura do leitor
aristocrata)—-» pronome formal, “voi”;

O inimigo desta comunidade é, sobretudo, a Natureza (a luta por sobrevivência torna-se,


também, uma luta contra a Natureza)—-» “(…) the sea is not always as calm as it is when it
was planting kisses on your gloves.”

O pictoresco: tradição figurativa de Acci Trezza

Acci Trezza (aldeia de pescadores siciliana cuja população é marcada pela pobreza) tem
uma larga História artística——-» pinturas de aguarelas disseminadas por toda a Europa e
expostas nos salões da alta sociedade;

A janela do comboio, de onde a figura feminina vê inicialmente a aldeia, emula uma


moldura (”piscar de olho à pintura”)—-» dada a sua posição social é plausível estabelecer o
paralelismo entre a Acci Trezza dos salões artísticos e o local real;
Incidência na linguagem relativa às cores: “mauve coloured”, “dark green”, “dark (…)
sky”;
“A truly pretty picture” ——» a figura feminina aprecia a aldeia com uma perspectiva
pictoresca;

A mulher gosta de Acci Trezza à distância pela sua aparência idílica —-» a fruição
pictoresca, contudo, cansa e, eventualmente, aborrece a fig. feminina (partira do princípio
que uma aldeia tão esticamente bonita e deleitosa, encerra uma realidade que lhe
corresponde);
Aparência/superficialidade (visão panorâmica e pictoresca da mulher) VS Realidade
(descrição da aldeia pelo narrador);

Idealismo em contraste com a corrupção das grandes cidades

Os habitantes da aldeia encontram nas suas vidas e comunidade aquilo que ela (fig.
feminina) procura em Paris, Nice, Nápoles (as grandes metrópoles europeias);
“to search” (mulher em busca de completitude) VS “to find” ( comunidade na sua
necessidade por sobrevivência);

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Carnaval eterno que procura um sentido infindamente e nunca o encontra VS Vida árdua e
heróica da aldeia (heroismo do quotidiano, da sobrevivência);

Construção desta comunidade é “o outro/o duplo” da vida da mulher (o outro lado da moeda
da vida burguesa, percecionada negativamente);
Pensar a vida como a comunidade de Acci Trezza tem um efeito calmante—-» “(…) simple
uncomplicated feelings (…)”;
A ideia harmoniosa desta comunidade cai por terra quando mudamos, realmente, de ponto
de vista—-» Rosso Malpelo e Il Malavoglia;

Compreensão: “(…) farci piccini ache noi (…)”/”tornarmo-nos pequeninos nós também”

“I don´t understand how people can live the whole of their lives in a place like this.” ——»
aquilo a que se procura responder, principalmente no fim, do conto;
O próprio narrador aparenta, de certo modo, não compreender em todo as motivações e
vivências destes habitantes (”I can ´t tell you how or why they do it.”);
Questão do ponto de vista (quanto mais próximo, mais “pequenino”—-» mais próximo da
compreensão das classes mais baixas):

Narrador mais perto da compreensão do que a mulher (economicamente mais próximo);

Identificação da personagem feminina com o leitor (italiano, em particular—-» é, para


Verga, “uma besta”) —-» tom acusatório (”(…) you, and all the others like you (…)”);
Necessidade de “encolhimento” para chegar à compreensão: But in order to understand (…)
which in some respects is heroic, we have to reduce ourselves to the same level (…)”; —-»
“tornarmo-nos pequeninos nós também”;
Distância dos pontos de vista (Leitor aristocrata VS Mundo narrativo e classes subalternas)
tem que ser diminuída para dar lugar à compreensão—-» mudança de ponto de vista
narrativo (presente nos restantes contos desta coletânea);
“(…) place their tiny hearts under a microscope to discover what makes them beat
(…)”—-» oposto ao estético pictoresco com um entendimento e perspetiva científica
(transformação da Literatura num estudo científico);
“You´ll think it´s a curious spectacle, and it might amuse you perhaps.” ——» um certo
pessimismo e condescendência (opinião: diria mesmo patronização ou mansplaining haha);
“(…) so far from you in every sense, inebriated as you are with feasting and flowers, will
bring a refreshing breeze (…)”——» o narrador diz que, as memórias que escreve (este

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conto teórico), não resultariam em compreensão para a destinatária, mas, antes, uma “certa
brisa” no eterno carnaval que é a sua vida (possível leitura: também o leitor não conseguiria
chegar à compreensão daquilo que Verga lhe escreve);
Temos que nos tornar “pequeninos” para compreender e representar as classes subalternas
—-» temos que adaptar o nosso ponto de vista a este mundo representado, alheio ao nosso;
Contradição entre a tentativa de compreensão e o “tornarmo-nos pequeninos”/olhar ao
microscópio——» inferem uma ideia de superioridade face a comunidade;

Verga diz, numa carta, que procura fazer o seu leitor “dobrar-se e olhar de perto os seus
heróis pequeninos”;

Definições:

Pictoresco: ameno/deleitoso; digno de ser pintado——» na época a expressão ganhara


um cariz negativo (forma superficial de olhar para as obras);

Oyster ideal: consequência da crença de Verga na imobilidade social, partindo do


princípio que, aqueles que fogem às suas origens sociais (a rocha onde estão “presos”)
encontrarão maior infortúnio em vez da felicidade almejada: as pedras podem ser duras
e desconfortáveis (como a vida das classes subalternas) mas, desde que estejamos
agarrados a elas, estamos seguros (deixar essa rocha é estar aberto a um mar de
possíveis tormentos, piores do que a dureza da rocha de outrora);

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