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PROCESSOS CRIMINAIS
Em uma quarta feira de novembro de 1859, o escravo João Batista levava para a
casa de seu senhor uma garrafa de aguardente para entregá-la à sua irmã, Paula, forra, que o
esperava. Por volta das seis horas, passou por trás do cemitério da cidade para não ser visto e
entrou pelos fundos do sobrado. Depois de dar a garrafa a Paula, ficou esperando por seu
sobrinho José, filho de Paula, sentado em uma tábua na cozinha.
Enquanto isso, Paula deu aguardente às crianças Alexandrina e Joaquim, seus
outros filhos, e à Monica, agregada - todos, escravos de Abranches Brandão. Nesse dia,
dormiriam na cozinha, afastada do resto da casa, não no quarto onde estavam acostumados a
ficar com a mãe. José chegou um pouco depois, entrando por dois rachões que tinha feito na
cerca do quintal e, encontrando Batista, disse-lhe que fosse ficar na sala do sobrado, enquanto
voltava para buscar Manoel Francolino, seu amigo e escravo de Antonio José Dias Carneiro
que havia ficado na horta.
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corpo de Abranches, passaram com ele pelos rachões da cerca, e amarraram-no pela cintura,
pelos ombros e pelas pernas com uma corda de varal de estender roupa. Depois, colocaram-no
em cima perna de um cavalete, conduziram-no por detrás do quintal. Passaram, no caminho,
pelo ribeirão da Sesmaria, e finalmente largaram-no perto do muro do senhor Teixeirinha.
Abandonado o cadáver, José disse a Batista que fosse ao sítio pegar abóboras,
cambuquiras, café, para ninguém suspeitar ser ele um dos autores do crime. Assim foi Batista,
e voltou à uma hora da manhã; José e Francolino já haviam se recolhido.
No dia seguinte, ao levantar-se, Paula foi ao quartinho para examinar se havia
sangue. Nada encontrando, pegou a candeia apagada a um canto e fechou a porta. Varreu a
casa, pôs almoço no fogo e deitou-se em sua esteira na cozinha, à espera da notícia da morte
de Abranches.
são próprias. No caso dos processos criminais, é fundamental ter em conta o que é
considerado crime em diferentes sociedades e como se dá, em diferentes contextos e
temporalidades, andamento de uma investigação criminal, no âmbito do poder judiciário.
O direito penal define os atos proibidos, ou crimes, aos quais são atribuí- das
penas ou castigos. O direito processual penal, por sua vez, regulamenta modo como um crime
é investigado, as formas de comprovação de verdade (provas, etc.) e os critérios de tomada de
decisões judiciais. É aqui, portanto, que se estabelecem as regras de andamento dos processos
criminais.3
De maneira geral, um processo criminal origina-se a partir de uma queixa ou
denúncia de um crime, quando se institui o sumário de culpa. Antes dele, tem lugar um
inquérito policial (denominado dessa maneira desde 1871), para com- provar a existência do
crime. Ato verificado, a denúncia é feita por inspetores de quarteirão, promotores, delegados
ou subdelegados de polícia, ou então pela própria vítima, segundo o que estipula a legislação
em cada momento. A partir daí, faz-se o auto de corpo de delito, a qualificação do acusado e
as partes envolvidas, bem como as testemunhas por elas arroladas são interrogadas. O sumário
termina com o cumprimento de todas essas fases, quando a autoridade responsável (juiz de
paz, delegado ou subdelegado de polícia, dependendo da época) considerar que existem
informações suficientes para pronunciar o acusado. Caso não existam, ou caso o juiz
municipal não aceite as acusações, o processo é encerrado.
Se as acusações forem aceitas, tem início a segunda fase, o julgamento, quando o
acusado é pronunciado com base na legislação criminal e seu nome é lançado no rol dos
culpados. A partir de então, o juiz de direito autoriza e encaminha a sequência do processo, na
seguinte ordem: libelo crime acusatório redigido pelo promotor público , contrariedade do
libelo crime acusatório feito pelo advogado defensor do réu, novo parecer do juiz de direito.
Quando o juiz se dá por satisfeito os argumentos apresentados por ambas as partes, ele
encaminha os autos para a reunião seguinte do júri, composto por pessoas da localidade
(dependendo da época e do tipo de crime, o júri é convocado). Quando não, ele pode solicitar
mais provas, ou advogado ou promotor podem recorrer de alguma ação da outra parte,
interpondo recursos e fazendo anovas petições. Ao fim, a sentença é proferida.4
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Vê-se, portanto, que os processos criminais são aqueles relativos a ato criminosos
considerados como tais pelo Estado, cujas definições variaram a longo do tempo. Os
processos, portanto, correm no âmbito da Justiça que hoje seria denominada comum. Na
maior parte do período colonial brasileiro, os crimes eram definidos pelo famoso Livro v das
Ordenações Filipinas, publicada em 1603, mais duradouro código legal português-e, por
extensão, também brasileiro. No caso da legislação penal, o Livro v foi revogado em 1830,
quando da promulgação do Código Criminal do Império do Brasil, logo seguido pelo Código
de Criminal, de 1832.
Em 143 capítulos no Livro v das Ordenações Filipinas eram estabelecidas a ações
consideradas criminosas, as penas e castigos passíveis de aplicação, ber como as regras
processuais penais. Os crimes iam desde os de "lesa-majestade "assassinato" e "adultério" a
outros mais inusitados, como o de "benzer cães ou outros bichos sem autorização" ou
"comprar pão para revender". Na época as penas eram decididas com base no juízo que se
fazia sobre a condição criminoso, a de seu crime e a condição da vítima. Entre as condenações
a morte, por exemplo, havia algumas variações, como a pena de "morrer por isso morte
natural" (morte por veneno ou instrumentos de ferro ou fogo "morte natural na forca ou no
pelourinho" ou "morte natural na forca para sempre", que se distinguia da anterior por a forca
ser montada fora da cidade, depois do enforcamento ou suplicio, deixar-se o cadáver exposto
até o d 1º de novembro, para só então proceder ao sepultamento. Havia ainda out variações,
como a "morte cruel", com suplícios, e a "morte atroz", com confisco de bens, queima do
cadáver etc.5
No período imperial, já sob a regulamentação do código criminal de 18 embora a
pena de morte continuasse a fazer parte do cotidiano da Just foram introduzidas algumas
mudanças fundamentais. Prime em relação aos tipos de crime, que passaram a ser três: crimes
públicos, "contra a ordem pública instituída, o Império e o imperador" (revoltas, rebeliões ou
insurreições, dependendo da abrangência); crimes particulares, "contra propriedade ou contra
o indivíduo"; e crimes policiais, "contra a civilidade os bons costumes" (incluindo vadiagem,
capoeira, sociedades secretas, prostituição, crimes de imprensa). Ao contrário do período
colonial, em qu penas eram definidas com base não apenas no crime em si, mas também
condição da vítima e do criminoso, no caso do Código de 1830, as penas eram
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em 1986, saiu Trabalho, lar e botequim, de Sidney Chalhoub, e, no ano seguinte, Crime e
escravidão, de Maria Helena Machado10
Não por acaso, esse foi justamente o momento de difusão da História Social no
Brasil, como se delineava no plano internacional desde meados dos anos 1960, com a
aproximação entre História e Antropologia, principalmente a geertziana, 11 os estudos sobre a
Europa setecentista, levados a cabo pelos marxistas britânicos, que cunharam a expressão
"história vista de baixo", além do grande impacto da obra de Michel Foucault, cujo livro
Vigiar e punir fo traduzido para o português em 1977, No caso específico das análises
baseadas em processos judiciais, tiveram grande influência na historiografia brasileira as
obras de Carlo Ginzburg, Natalie Davis, Michelle Perrot e E.P. Thompson12
No âmbito dos debates teóricos e metodológicos da História Social e das
discussões políticas brasileiras havidas na década de 1980, em pleno processo de
redemocratização, o interesse em ler e analisar processos criminais veio justamente na
expectativa de que flagrassem homens e mulheres, principalmente trabalhadores, "agindo e
descrevendo relações cotidianas fora do espaço do movimento operário, do lugar da fala
política articulada".13
Assim, os processos criminais foram usados nesses primeiros trabalhos como
forma de se recuperar o cotidiano dos trabalhadores, seus valores e for- mas de conduta. Por
trabalhadores, aqui, entende-se não só os trabalhadores livres, estudados principalmente no
período da Primeira República, mas também os escravos, objeto de análise em livros
posteriores do próprio Chalhoub de Maria Helena Machado, Hebe Maria Mattos, Silvia Lara e
tantos outros, interessados nas relações de amizade, parentesco, vizinhança e sobrevivência
vislumbrados nos processos criminais.14
Os processos criminais são fundamentalmente fontes oficiais, produzidas pela
Justiça, a partir de um evento específico: o crime e seu percurso nas instituições policiais e
judiciárias. Por conta disso, é fundamental que os processos sejam tomados também como
"mecanismos de controle social", marcados necessariamente pela linguagem jurídica e pela
intermediação do escrivão. Conforme já alertavam na década de 1980 as antropólogas Mariza
Correa e Yvonne Maggie, é impossível analisar processos criminais sem refletir sobre as
atividades e crenças dos "profissionais do sistema jurídico-policial", ou, no dizer de Correa,
dos "manipuladores técnicos", que decidiam o que
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devia constar nos autos, de acordo com as regras legais preestabelecidas nos códigos penais.15
O debate sobre a forma adequada de uso dos processos criminais foi mui- to
intenso na década de 1980. Entre a recuperação da voz dos "subalternos", como então se
denominava, e a reflexão sobre a Justiça, vários estudos, a partir de então, contemplaram as
duas dimensões, produzindo análises profícuas e originais sobre temas distintos,
Esse foi o caso, principalmente, dos trabalhos sobre os processos inquisitoriais,
gerados a partir de supostas heresias cometidas contra a Igreja Católica, e por ela julgadas no
Tribunal da Inquisição do Santo Ofício 16, e das análises sobre crimes sexuais na virada do
século XIX para o XX, em especial as de Martha Abreu e de Sueann Caulfield. Essas autoras
produziram trabalhos funda- mentais para a construção da abordagem de questões
relacionadas a valores morais de diferentes grupos sociais-como o conceito de honra, por
exemplo, enquanto discutiam os encaminhamentos desses processos no âmbito da história do
direito e das ideias jurídicas. Nesse sentido, as duas abriram novas possibilidades de análise
ainda hoje bastante profícuas: a das relações entre os diversos grupos sociais e a das relações
destes com as instituições judiciais.17
O uso inventivo dos processos criminais por historiadores, como os citados acima,
não impediu que a fonte fosse vista, à época, com um certo ceticismo por alguns
pesquisadores. Afinal, um processo criminal é uma investigação na qual se interrogam a
vítima (quando possível), o réu, as testemunhas, e do qual ainda participam advogados, juízes
demais agentes da lei e da ordem. O objetivo primeiro da produção do documento não é
reconstituir um acontecimento - o que, de resto, jamais poderia ser - mas buscar ou produzir
uma verdade, acusando e punindo alguém. Nessa perspectiva, todos os depoimentos seriam
"ficções", papéis desempenhados por personagens, cada qual procurando influenciar o
desfecho da história. Além do mais, aquilo que muitos historiadores veem como a
possibilidade de recuperar a "fala" de pessoas que, na maioria dos casos, não deixaram
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registros escritos de suas existências, para outros seria uma conquista impossível, por conta de
o depoimento de réus, vítimas e testemunhas ter, sempre, a mediação do escrivão, agente da
lei.
As objeções levantadas, todas relevantes, trazem à tona a discussão sobre a
própria natureza da fonte, uma vez que, como os processos criminais têm necessariamente
contradições, incoerências e mentiras, refletir sobre processo de produção é fundamental.
Afinal, é impossível descobrirmos, em um processo criminal, "o que realmente se passou" 18.
Por maior que seja a tentação, é importante lembrar, sempre, que nós não somos os detetives.
Ou melhor, somos um tipo diferente de detetive, cujo objetivo não é descobrir o culpado de
um crime. Nossa tarefa é outra.
Sem esquecer que não existem fatos criminais em si, mas um julgamento criminal
os funda, e um discurso criminal que o fundamenta, o que precisamos saber é como esse
discurso criminal "funciona e muda, em que medida exprime o real, como aí se operam as
diversas mediações”19. E justamente na relação entre a produção de vários discursos sobre o
crime e o real que está a chave da nossa análise. O que nos interessa é o processo de
transformação dos atos em autos, sabendo que ele é sempre a construção de um conjunto de
versões sobre um determinado acontecimento.
Para ler processos criminais, portanto, é preciso saber trabalhar com as versões,
perceber a forma como elas são construídas. Analisar como os diversos agentes sociais
apresentam diferentes versões para cada caso e ficar atento, principalmente, às narrativas que
se repetem, às histórias nas quais as pessoas acreditam e àquelas nas quais não se acredita. É
necessário trabalhar com a verossimilhança. Saber o que é e o que não é plausível em uma
determinada sociedade nos leva a compreendê-la melhor. E, nesse caso, até a mentira mais
deslavada vira categoria de análise. Como já afirmou Sueann Caulfield:
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É nesse sentido que a mesma autora ajuda a refutar outra crítica: a de que os
processos criminais revelariam apenas experiências de sujeitos considerados marginais em
dada sociedade, e não práticas comportamentais consideradas normais. A partir da análise dos
perfis de vítimas, réus e testemunhas, ela chega à conclusão, assim como outros autores o
fizeram, que os dramas das salas de audiência eram comuns a vários grupos sociais.
Ao adotar esse procedimento, a autora nos faz lembrar, também, que, apesar de os
processos criminais serem versões construídas sobre um determinado evento, a respeito do
qual nem sempre sabemos sequer se o mesmo realmente aconteceu, as pessoas envolvidas
são, ou eram, "de carne e osso", reais, e sobre elas a documentação judiciária nos deixa saber
muito. Os processos criminais contêm dados preciosos a propósito de acusados, vítimas e
testemunhas, o que possibilita análises quantitativas e qualitativas sobre o perfil dessas
pessoas; contém nomes e atribuições de advogados, juízes, escrivãos e outros agentes da lei
de diversas instâncias, o que nos permite avaliar suas atuações em diversos casos, as
interpretações recorrentes, legislação citada, o funcionamento da Justiça em várias épocas. Ou
seja: através dos dados obtidos em processos criminais, podemos saber onde as pessoas
envolvidas viviam, quem eram seus vizinhos, quantas pessoas moravam em uma casa, e daí,
com os cuidados necessários, chegar a conclusões mais gerais sobre os vários contextos
aplicáveis à cena. Vejamos um exemplo concreto.