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Música e Política:
a Nona de Beethoven
Esteban Buch
Tradução
Maria Elena
Ortiz Assumpção
EDUSC
EDUSC
Editora da Universidade do Sagrado Coração
ISBN
Inclui bibliografia e índice onomástico.
Traduçãode: La Neuviême de Beethoven: une histoire
politique.
CDD. 78().()92
l.}.IVF.RBITARIA
Sumário
5
Introdução
Os estados da alegria
9
Pouco depois, inspiradas
com a comunidade nacional. pelosescritos
da França revolucionária
de Rousseau,os rituais fundam uma
nova
do simbólico etn que conva fornva, especialmente
política graçasa I
o mito da voz única de unva nação. Esse
Mctrçci/hdiçe, novo tipo de
explorado pelo Estado austríaco contra-revo_
canto político será logo
lucionário, sob espécie de hino imperial que um funcionário de polí_
cia encornendoua Franz Joseph Ilaydn. Mais tarde, Beethovencom_
binará as vozesdo povo e o sublinne barroco na cantata 0 lustcoue glo-
rioso, escrita em 1814, para o "Concerto da Europa" de Matternich.
Assim, essa retórica serve às vezes para exprimir uma forma de opo-
sição,ou para propagar a revolta ou a revolução; mas ela pode,igual-
mente, contribuir para garantir a legitimidade do poder constituído
e a adesãoda ordem estabelecida, sob a forma de uma músicado Es-
tado —isto é, uma música reconhecida como constituindo um gesto
ou um discursopolítico, cuja produção ou interpretaçãotem lugar
por ação do Estado.
Se, escrevendo a Nona, Beethoven pôde realizar esse sonho mo-
numental, é porque a evolução da linguagem musical lhe permitiu
levar bem longe a sugestão narrativa das formas instrumentais e tam-
bém porque ele conhecia muito bem a música política e a músicado
Estado.E igualmente porque ele sabia o que um grande músicopode
representar na vida das nações. À época em que o hino britânicofaz
sua aparição, a obra de Georg Friedrich Haendel impõe na Inglater-
ra a idéia de que um compositor pode estar associado à identidade de
todo um povo. Escrevendo o hino austríaco, Haydn agiu como o mais
fiel servidordo Imperador, "pai dos súditos", mas ele próprio é tam-
bém honrado como o "pai da harmonia". O Congresso de Viena é esse
momentoem que Beethoven, já reconhecido como o maior composi-
tor de seu tempo, impõe-se junto aos poderosos como uma verdadei-
ra figura pública. No momento da criação da
Nona, ele é objetode
elogiosque lhe conferem um estatuto de herói civil propriamente
metafísico: para seus admiradores,
ele representa a grandeza nacional
de maneiramais autêntica
que os mestres do poder real. Sua morte,
em 26 de março de 1827,
marca sua entrada na imortalidade, istoé,
o relê da apoteose pelas
biografias e comemorações que, todas as ten-
dências políticas confundidas,
dar-lhe-ão o posto de maior músico
dos Tempos modernos.
Isso não ocorre sem algumas reservas.O Congressode Viena,
por exemplo, é lembrado como o instante menos glorioso de sua bio-
grafia, aquele em que compôs as piores obras de sua carreira. E que,
com o declínio da aristocracia, nada pior que a acusação de ser o "mú-
sico oficial" desse ou claquele regime, e o de Matternich, especial-
mente, síntese de tudo o que trava a ascensãoda modernidade. Mais
digno de elogio parecerá o autor de Odeà alegria, composta num pe-
ríodo de sua vida em que os admiradores são menos numerosos e mais
marcadas suas próprias distâncias frente ao poder político. A música
de Estado será relegada às periferias de sua obra enquanto que a Nona
Sinfoniaserá saudada como uma exaltação da liberdade humana em
que qualquer traço do Estado é, por definição, ausente. Esses julga-
mentos de valor são dificilmente contestáveis do ponto de vista esté-
tico, mas é forçoso aí reconhecer também uma ideologia, aquela que
quer que o artista esteja próximo do povo ou da nação, mas afastado
do poder. Isso vale para os Estados reacionáriosou opressores,mas
também para os Estados liberais ou democráticos, eventualmente
saudados como fiadoresda expressãoartística, mas nunca como seus
inspiradores ou seus intérpretes.
A questão das relaçõesde Beethoven com o poder de seu tem-
po prolonga-se, assim, na das relações de sua figura com a posterida-
de. "Tudo o que o Estado toca, ele o mata" escreve Romain Rolland
para criticar a incorporação do compositor à "compostagem oficial da
glória". I Contudo, é precisamente para o suporte de tal discurso que
Beethoven vai ser honrado pelos homens políticos e as instituições
oficiais da era burguesa. Na vida e na obra do grande surdo capaz de
ultrapassar ao mesmo tempo sua enfermidade física e as regras musi-
cais do Antigo Regime, os estados burgueses encontraram e cinzela-
afir-
ram um músico à medida de seu ideal de luta e de progresso, de
universal.
mação da vontade individual e de aspiração à reconciliação
pri-
E, aliás, no diálogo entre uma vocaçãopública e um refúgio na
os
vacidade, simbolizados, respectivamente, pela última sinfonia e
beetho-
últimos quartetos que se constrói a metáfora política da obra
aque-
Vianaem seu conjunto. À vista dessa canonização,poucos são