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20042017 3527
ARTIGO ARTICLE
com deficiência: barreiras de acesso e lacunas intersetoriais
Jeni Vaitsman 1
Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato 2
Abstract The 1988 Constitution approved the Resumo A Constituição Federal de 1988 apro-
Continuous Cash Benefit (BCP) directed to el- vou o Benefício de Prestação (BPC) para idosos
ders and disabled persons with a household per e pessoas com deficiência com renda familiar até
capita income of 25% of the minimum wage, 1/4 do salário mínimo, que alcançou em 2015
and around 4 million people received this benefit cerca de 4 milhões de pessoas. Para pessoas com
in 2015. The design of BPC for disabled persons deficiência, a implementação do BPC envolve or-
involves organizations of social security, social ganizações da previdência social, assistência social
welfare and health. This paper discusses how e saúde. O trabalho discute como algumas lacunas
some intersectoral coordination mechanisms gaps nos mecanismos de coordenação intersetorial en-
between these areas produce access barriers to tre essas áreas produzem barreiras de acesso aos
potential beneficiaries. Results stem from a quali- potenciais beneficiários. Os resultados são de pes-
tative study performed with physicians, adminis- quisa qualitativa realizada com médicos, técnicos
trative staff and social workers from the Nation- administrativos e assistentes sociais do Instituto
al Institute of Social Security (INSS) and of the Nacional do Seguro Social (INSS) e dos Centro de
Social Welfare Reference Center (CRAS) in three Referência da Assistência Social (CRAS) em três
municipalities of different Brazilian regions. In- municípios de diferentes regiões do país. A coor-
tersectoral coordination and cooperation are more denação e a cooperação intersetoriais mais estru-
structured at the Federal level. At the local level, turadas ocorrem no nível federal. No nível local,
they rely on informal and horizontal initiatives, dependem de iniciativas informais e horizontais,
which produce immediate but discontinuous solu- o que produz soluções imediatas, mas descontínu-
tions. The role of the CRAS remains contingent as. O papel dos CRAS permanece contingente na
on the implementation. The need to establish in- implementação. Ficou patente a necessidade de es-
stitutionalized mechanisms for coordination and tabelecimento de mecanismos institucionalizados
1
Escola Nacional de cooperation between social welfare, health and so- de coordenação e cooperação entre os setores da
Saúde Pública, Fiocruz. R. cial insurance to improve the implementation and assistência social, saúde e previdência para me-
Leopoldo Bulhões 1480,
reduce barriers to access to the BCP is apparent. lhorar a implementação e diminuir as barreiras
Manguinhos. 21041-210
Rio de Janeiro RJ Brasil. Key words Continuous Cash Benefit, Implemen- de acesso ao BPC.
vaitsman@ensp.fiocruz.br tation, Access barriers, intersectoriality, coopera- Palavras-chave Benefício de Prestação Continu-
2
Escola de Serviço Social,
tion, Coordination ada, Implementação, Barreiras de acesso, interse-
Universidade Federal
Fluminense. Niterói RJ torialidade, cooperação, Coordenação
Brasil.
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Vaitsman J, Lobato LVC
nente individual, o sociofamiliar e o organizacio- tação de políticas intersetoriais no nível local po-
nal. Neste artigo, discutimos especificamente as dem, em maior ou menor grau, se aproximar das
barreiras para o acesso ao BPC produzidas pelo formas horizontais de gestão, cuja coordenação
componente organizacional. Introduzimos a dis- pode ser mais ou menos frouxa e a cooperação
cussão relacionada a lacunas na coordenação e ultrapassa as fronteiras entre órgãos e organiza-
cooperação intersetorial, entre as organizações de ções. Sobretudo no nível local, as relações hori-
distintos setores envolvidos na implementação. zontais são respostas aos processos de implemen-
tação nos quais o cidadão tem que se relacionar
Cooperação e coordenação intersetoriais com órgãos de diferentes setores sociais. Hopkins
O estabelecimento de ações para se alcançar et al.21 argumentam que, embora difusa, a ges-
um objetivo de política pública é tratado pela tão horizontal pode ser um meio crucial para se
ciência política como um problema de ação co- administrar questões transversais relacionadas a
letiva12-14. Isso implica que a provisão de um bem certas políticas ou na prestação de alguns servi-
público não ocorre voluntariamente, mas depen- ços. Podem envolver diferentes tipos de vínculos
de de mecanismos de cooperação e de coorde- entre os atores e as organizações envolvidas: vín-
nação, sem os quais é improvável que se alcance culos informais que facilitam as trocas mútuas;
resultados sustentáveis15,16. coordenação para reduzir ou eliminar a sobrepo-
No caso de políticas ou programas com inter- sição e a duplicação e colaboração por meio de
faces em diferentes setores, coordenação e coope- recursos, o trabalho ou os processos decisórios
ração são ainda mais cruciais para que se alcance estão integrados em todas as organizações envol-
resultados17. Peters17 define coordenação como a vidas. Mecanismos de gestão inadequados pro-
necessidade de se garantir que as várias organi- duzem importantes barreiras, enquanto iniciati-
zações envolvidas em prestar algum serviço pú- vas mais adequadas produzem sinergias e mino-
blico em conjunto não produzam redundâncias ram os problemas de implementação, favorecen-
ou lacunas. Os níveis de coordenação podem ser do tanto as agências implementadoras quanto os
mínimos ou máximos. Nos mínimos, as organi- requerentes. Os resultados a seguir apresentam
zações simplesmente conhecem as atividades de barreiras de acesso ao BPC relacionadas a lacunas
todos os envolvidos e procuram não duplicar na cooperação/coordenação intersetoriais.
ou interferir. Nos níveis máximos, há controles
mais rígidos sobre as atividades das organiza-
ções e meios para fazer com que as lacunas nos Resultados
serviços sejam supridas17. Mecanismos de coor-
denação permitem ajustar políticas e programas As lacunas na coordenação e cooperação inter-
intersetoriais para aumentar suas interconexões setoriais serão discutidos com foco nas relações
horizontais, com o possível compartilhamento entre a) o INSS e a assistência social e b) o INSS
de fontes financeiras18,19. e a saúde.
Cooperação é a ação em conjunto de um gru- a) Relações entre o INSS e a assistência social
po de indivíduos para alcançar um objetivo co- As relações entre o setor previdenciário e o
mum14. Trata-se de uma interação entre setores assistencial podem se dar dentro de um mesmo
para se conseguir maior eficiência em suas ações, nível federativo, como por exemplo, entre o MDS
envolvendo a otimização de recursos ao mesmo e o INSS, nas comissões e reuniões para tratar da
tempo que se estabelecem formalidades nas rela- gestão nacional do benefício; entre níveis fede-
ções de trabalho. O compartilhamento de infor- rativos distintos, entre os gestores nacionais do
mação é o primeiro passo para a cooperação18,19. INSS e gestores e gerentes municipais da assistên-
Ainda que dentro de um arcabouço jurídico- cia social; dentro de um mesmo município, entre
normativo, as atividades relacionadas à imple- as agências locais do INSS e os CRAS.
mentação de uma política podem ser organiza- A coordenação e a cooperação intersetoriais
das de diferentes maneiras. Os mecanismos e os mais estruturadas ocorrem no nível federal, entre
processos podem conformar distintos arranjos, INSS e MDS. Várias iniciativas conjuntas foram
dependendo do contexto local15,20. O modo como tomadas em diferentes áreas relacionadas à im-
os atores envolvidos agem e criam soluções, a plementação do BPC, como na regulamentação,
partir das regras, produzem as formas locais de no orçamento, na elaboração do novo modelo de
implementação. avaliação, na capacitação de quadros do INSS e
Ainda que dependentes de relações top-down nas relações com os CRAS. Como instância for-
que seguem as hierarquias setoriais, a implemen- mal de coordenação, foi constituído um Comitê
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Vários entrevistados sugerem que o CRAS Não há arranjos formalizados nem qualquer
poderia ter algum mecanismo de cadastramento sistema de informações sociais sobre o reque-
antes que o requerente chegasse até a agência do rente compartilhado entre INSS e CRAS. Existe
INSS. Inclusive porque, se o requerente não leva um formulário, o Sistema de Informações Sociais
a documentação completa quando dá entrada no (SIS), que diante de alguma dúvida o assistente
requerimento, ele tem prazo de 30 dias para re- social do INSS preenche e encaminha pelo pró-
tornar com as exigências atendidas, ou o proces- prio requerente para que o do CRAS complete
so é indeferido. Considerando que os requerentes com algumas informações. Mas é o próprio re-
são pessoas com deficiência, além da vulnerabili- querente quem tem que levar o formulário e tra-
dade social e econômica e que grande parte vive zê-lo preenchido, o que torna o processo bastante
longe dos centros onde estão as agências, o custo aleatório e lento.
financeiro e emocional do deslocamento é alto. Os contatos entre CRAS e INSS são iniciati-
Tanto do ponto de vista do INSS quanto do vas individuais e limitadas pelos prazos e metas
requerente, tempo e recursos são desperdiçados instituídos pelo próprio atendimento do INSS,
porque as organizações envolvidas não conse- pois não há servidores disponíveis para uma ar-
guem estabelecer mecanismos sólidos de coope- ticulação permanente com os CRAS. O planeja-
ração interorganizacionais. Para isso acontecer mento organizacional do INSS não contempla as
seriam necessários outros mecanismos de coor- relações com os CRAS e as ações individualiza-
denação por parte das instâncias superiores, além das podem atrasar os prazos de atendimento das
dos já existentes. agências e ameaçar as metas de desempenho. O
Diante da falta de informação, da vulnerabili- desempenho institucional e pessoal dos servido-
dade, do medo de enfrentar a burocracia, recorrer res do INSS é avaliado e mensurado semestral-
a um intermediário torna-se uma solução à mão mente a partir de um plano de ação anual, sendo
para os requerentes. Os servidores do INSS têm o tempo médio de atendimento monitorado pela
escassa capacidade de interferência em relação gerência local. A cooperação entre INSS e CRAS é
aos intermediários, porque não podem impedir iniciativa local e informal, produzindo formas de
que um requerente venha acompanhado de outra gestão horizontais. Porém, mais do que institu-
pessoa, que não é colocado como intermediário, cionalizadas, são os esforços individuais e os vín-
mas sim como “amigo”, “vizinho”, “conhecido”. culos informais que permitem as trocas mútuas.
Os técnicos administrativos se queixam mui- Como a coordenação entre as agências locais
to dos intermediários, a quem os requerentes do INSS e os CRAS são precárias ou inexisten-
devem pagar se o benefício é deferido. Também tes, tampouco há qualquer acompanhamento
apontam o potencial dos CRAS para a orientação regular dos requerentes indeferidos por parte
dos requerentes como um caminho para minorar do CRAS sobre o resultado do requerimento.
esse problema. É bem difundida a visão, entre os A área assistencial não toma conhecimento dos
profissionais do INSS, de que se houvesse uma casos encaminhados e indeferidos, tampouco o
rede articulada entre INSS e CRAS o papel dos porquê do indeferimento. O conhecimento sobre
intermediários diminuiria muito. o resultado dos processos poderia evitar novos
encaminhamentos às agências do INSS de pesso-
Avaliação social as não elegíveis, assim como favorecer o apoio a
indeferimentos considerados incorretos.
Uma vez habilitado o requerimento, são Muitas vezes o benefício é negado por um
agendadas a avaliação social e a perícia médica. A pequeno excedente na renda ou, no caso da pes-
avaliação social consiste em uma entrevista com soa com deficiência, se já há outra pessoa com
a assistente social do INSS, que tem total auto- deficiência beneficiária do BPC na mesma famí-
nomia para pontuar os quesitos do formulário lia. Esses, embora não elegíveis, são vulneráveis e
social, o qual, junto com o da perícia médica, com dificuldade de acesso a renda. No momen-
compõem uma soma de pontos que determina o to da pesquisa houve a informação por parte de
deferimento do requerimento. Há muitas críticas um gestor nacional do INSS de que eles estavam
ao processo de avaliação social feito na agência trabalhando junto com o MDS para o requerente
do INSS. O fato da assistente social do CRAS não indeferido ser encaminhado para outra política e
participar do processo de avaliação, nem de sua não ficar abandonado.
opinião ser levada em consideração no processo, Nesse processo, as relações construídas de-
foi visto por um entrevistado como uma falha pendem do contexto local e do envolvimento dos
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Colaboradores
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p. 207-245. Versão final apresentada em 25/08/2017