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A Ansiedade e a psicoterapia: alguns

aspectos básicos

Ênio Brito Pinto 2024


www.eniobritopinto.com.br
11976476941 1
Minha compreensão da ansiedade neste texto
está fundamentada na minha prática clínica em
Gestalt-terapia e conta com forte influência dos
trabalhos de quatro autores que se debruçaram
profundamente sobre o tema: Kurt Goldstein,
Fritz Perls, Rollo May e Paul Tillich.
2
A compreensão de fenômenos e de vivências em
psicologia e, especialmente, em psicopatologia, é
fundamentada na visão de ser humano de cada
abordagem.

3
“Vemos o comportamento das outras pessoas, mas não a sua experiência. Isto
levou alguns a insistirem em que a psicologia nada tem a ver com a experiência
do outro, e sim, exclusivamente, com o seu comportamento.
O comportamento do outro é uma experiência minha. O meu comportamento é
uma experiência do outro. É tarefa da fenomenologia social relacionar a minha
experiência do comportamento do outro com a experiência que o outro tem de
meu comportamento. Seu estudo é a relação entre experiência e experiência:
seu verdadeiro campo é a interexperiência.” )
(Laing, A política da Experiência e a Ave do Paraíso”

Em outros termos: a ansiedade é vivência, muito mais que comportamento.

“Esses que me veem com essa calma de cemitério não imaginam que dentro de
mim há um terremoto” (Mário Quintana)
4
A ansiedade é inerente ao ser humano.

A vivência dela é que vai variar segundo cada pessoa e segundo cada situação

ansiedade saudável (“ansiedade normal”, para May [1977], “existencial”, para


Tillich [1967], também chamada de funcional pela psiquiatria biomédica). Eu
chamo de ansiedade atualizadora.

ansiedade patológica (“neurótica”, para May [1977], “patológica”, para Tillich


[1967], ou disfuncional), dependendo de como ela é vivida. Eu chamo de
ansiedade paralisadora.

O fator mais importante para que uma ansiedade seja vivida como saudável ou
não é a qualidade do contato que a pessoa tem consigo, com o ambiente e com
o fenômeno potencialmente gerador de ansiedade. 5
A vivência da ansiedade sofre também

influências do ambiente, da história da pessoa,

de sua situação, de seu campo.


6
Kurt Goldstein:

angst => anxiety

7
A ansiedade é uma vivência de sobressalto, ou, como a
define o Houaiss,

“um estado afetivo penoso, caracterizado pela expectativa


(grifo meu) de algum perigo que se revela indeterminado e
impreciso, e diante do qual o indivíduo se julga indefeso”.

8
A ansiedade sempre se manifesta primeiramente através da
corporeidade.

Em outros termos: o corpo é o mensageiro da ansiedade.

9
Algumas manifestações corporais da ansiedade:

mudanças neurovegetativas e hormonais ligadas à tensão:


mudanças no ritmo cardíaco,
mudanças no sono e no apetite,
aumento da sudorese,
certa agitação psicomotora,
sensações de opressão no peito, de falta de ar,
tensão muscular,
manifestações psicossomáticas.

Outros possíveis sinais: quem pode indicar?

Sempre vivências que têm diferentes intensidades para diferentes pessoas e,


na mesma pessoa, diferentes intensidades a cada situação ansiogênica.
10
Algumas manifestações corporais da ansiedade:

cada pessoa em cada época de sua vida tende a perceber sua ansiedade mais
claramente em um dado órgão corporal. Chamaremos aqui esse órgão de

“órgão mensageiro”.

Qual foi seu órgão mensageiro na infância?


Qual foi seu órgão mensageiro na puberdade?
Qual foi seu órgão mensageiro na adolescência?
Qual é seu órgão mensageiro hoje?
11
Há 11 transtornos de ansiedade descritos no DSM-5:

1) transtorno de ansiedade de separação;


2) mutismo seletivo;
3) fobia especifica;
4) ansiedade social;
5) transtorno de pânico (≠ do ataque de pânico);
6) agorafobia;
7) transtorno de ansiedade generalizada (TAG);
8) transtorno de ansiedade induzido por substância/medicação;
9) transtorno de ansiedade devido a outra condição médica;
10) outro transtorno de ansiedade especificado;
11) transtorno de ansiedade não especificado.
12
A ansiedade pode também derivar de consumo de medicamentos
ou outras substâncias, além de ser sintoma de algumas patologias
(lúpus, hipertireoidismo, etc).

O DSM-5 traz uma lista de transtornos de ansiedade e, além disso,


traz descrições da ansiedade como fator importante em muitos
sofrimentos emocionais e patologias, os quais, se não são
transtornos de ansiedade, têm nela fator relevante.

Dentre esses sofrimentos destacam-se os transtornos de humor e o


TOC, nos quais a presença de ansiedade, geralmente a ansiedade
paralisante, é facilmente notada, praticamente obrigatória.
13
A ansiedade é uma qualidade humana, é inescapável ao
longo da existência.

Cada ansiedade é vivida em algum ponto entre duas


polaridades que tenho denominado como atualizadora
ou paralisadora. (em vez de saudável ou patológica)
14
o fator mais importante para que uma ansiedade seja
vivida mais próxima da forma atualizadora ou
paralisadora é a qualidade do contato que a pessoa tem
consigo, com seu ambiente e com o fenômeno
potencialmente gerador de ansiedade.
15
Para um olhar fenomenológico é preciso, mais que tudo, compreender
a pessoa que vive a ansiedade, além de compreender como é sua
vivência a cada situação. Mais, muito mais, que a própria ansiedade.

O sentido dessa vivência é sempre pessoal e circunstancial, único,


refratário a interpretações baseadas apenas na análise do
comportamento observado.
16
Vivemos em uma cultura na qual mais e mais a
ansiedade aparece como fenômeno importante e
frequente.

Talvez em nenhuma outra época ela tenha


estado tão perceptível como neste começo do
século XXI, o que tem provocado inúmeras
tentativas de compreendê-la e de encontrar
meios para lidar com ela de maneira criativa e
facilitadora de crescimento. 17
Vivemos hoje em uma cultura hiper-estimuladora.

Atenção e concentração são prejudicadas desde a infância, cada vez


mais privada do tempo de Aión.

Os ritmos existenciais estão apressados, especialmente na infância.

A adolescência invade cada vez mais a infância e a idade adulta. (Carlos


Byington)

Ódio ao ócio e à gratuidade.

Extrema competitividade. Alta performance.

Atuações políticas incrementadoras da ansiedade paralisadora. 18


Como perceber a diferença entre desejo e
necessidade?

Os algoritmos são fonte de ansiedade?

Qual a relação do celular com a ansiedade?

Como temos lidado com a espera?


19
Há uma tendência em nossa cultura para compreender a ansiedade como se ela
fosse um defeito, precisando, assim e sempre, de controle, de luta contra ela, de
recursos medicamentosos. É como se a na/s fosse sempre um sintoma
psicopatológico sem nada a ensinar.

Há a fantasia cultural de que se poderia viver sem ansiedade, e pior: que isso
seria bom!

Não seria! O bom é viver distante da polaridade paralisadora, não sem


ansiedade. Uma vida sem ansiedade seria uma vida sem cuidado e sem
coragem.
20
Embora geralmente vivida como defeito, a ansiedade é importante e
sensível defesa. É amiga. Amiga chata!

Precisamos desenvolver modos de dialogar com a ansiedade. Ouvi-la


e responder a ela a cada situação em que ela puxa a prosa.

Pontualmente, um bom autocontrole e exercícios podem favorecer


esse diálogo. Medicamentos criteriosamente prescritos podem
também ser úteis temporariamente. Intervenções ambientais podem
ser necessárias.

Quando se pode dialogar com a ansiedade ela cumpre sua função e


nos conduz à coragem e ao cuidado, pontos essenciais para o bem
viver. 21
A coragem está
sempre acompanhada
pelo medo. 22
A linguagem da ansiedade se utiliza da dor, ou da possibilidade da
dor ou do sofrimento para despertar a atenção em direção a
mudanças necessárias para que a autoatualização continue a se dar.

Como a da fome, a linguagem da ansiedade é baseada em


provocação através do desconforto. A ansiedade nos retira de nossas
acomodações em prol de novos e mais criativos ajustamentos, ela
nos desaloja de acomodações e de conservadorismos anacrônicos,
propondo novos ares, cuidado e coragem. 23
A linguagem da ansiedade é semelhante à dos sonhos, comunica
mais através de símbolos que de concretudes ou literalidades.

Compreender essa linguagem muitas vezes é difícil e trabalhoso,


mesmo em terapia. Leva tempo.

Esse é um dos motivos pelos quais é mais comum as pessoas


buscarem mais abafar a ansiedade que a compreender.
24
Se não ouvimos nossas ansiedades, pode haver dois tipos de consequências, ambas danosas se muito repetidas.

1. um retardamento no processo de desenvolvimento e de autoatualização, raiz


de impasses e de sofrimentos que só se atenuarão quando o diálogo com a
ansiedade puder ser restabelecido em outras bases.

2. um recrudescimento da ansiedade, que passa do nível saudável para outro,


patológico, um nível que traz profundos prejuízos existenciais para quem o
alcança e para quem está próximo daqueles que vivem essa ansiedade
paralisante. 25
A ansiedade tem um sentido, aponta uma necessidade de mudança, desloca de
confortos conhecidos.

Cada estilo de personalidade e cada época histórica da pessoa e da cultura


favorecem a composição de determinados sentidos para as ansiedades vividas.

A ansiedade gera uma espécie de não-contato (embora vivida como contato) na


medida em que está sempre fundamentada em uma antecipação, ou seja,
remete sempre a pessoa para o futuro.
26
O sentido da antecipação presente na raiz da ansiedade é de
proteção (cuidado).

Sua forma de manifestação varia de pessoa para pessoa, de


situação para situação.

Quando conseguimos dialogar com nossas ansiedades, elas


não precisam exagerar na forma de se manifestar. 27
A ansiedade é uma amiga teimosa.

Ela fala suavemente a princípio.

Se não é ouvida, fala mais alto.

Se ainda assim não é ouvida, fala mais alto, e mais alto, e mais alto,
até que alcance a polaridade da paralisação, fonte de intensos
sofrimentos. 28
Grosso modo, a ansiedade tem três raízes, as quais
podem ser combinadas:

1. nossa consciência da própria mortalidade;

2. a ameaça a algum valor significativo;

3. a possibilidade de não ter recursos para lidar


com alguma tarefa relevante para a pessoa. 29
O fato de uma pessoa viver ansiedade quando imagina que pode não ter
habilidade ou recursos para manejar determinada situação importante para si,
remete também à ameaça ao ser ou seus valores mais relevantes.

Se ela confia o suficiente em seu autossuporte e no suporte


ambiental do momento, pode correr o risco e crescer, e aí temos a
ansiedade existencial/atualizadora – a pessoa confia em que tem (ou
terá) recursos suficientes para começar algo novo e em que, uma vez
iniciado o processo, saberá desenvolver, em compasso com o campo a
cada situação, novos recursos para dar cabo da tarefa a que se
propõe. 30
A ansiedade pode ser existencial, natural, inerente à vida, mais
próxima da polaridade que podemos chamar saudável/atualizadora,
ou, ao contrário, mais próxima da polaridade patológica/paralisadora.

A diferenciação entre uma e outra não é exatamente a ansiedade,


mas o suporte para o diálogo com ela, ou seja, a forma como ela é
vivida, a coragem e o cuidado com que se dialoga com ela, pois há
uma diferença importante entre as pessoas e na mesma pessoa em
diferentes situações a respeito do quanto de ansiedade se pode
tolerar e de como fazer esse diálogo.
31
Ansiedade e medo
Santo Agostinho, em “Confissões” (p. 310):

Poucas são as coisas que exprimimos


com terminologia exata. Falamos
muitas coisas sem exatidão, mas
entende-se o que pretendemos dizer.
32
Ansiedade e medo
Muitas vezes é difícil diferenciar se estamos vivendo uma situação de ansiedade ou de medo.

Medo: há contato aqui e agora com um objeto que pode ser removido ou do qual se pode fugir.
Temos consciência do objeto e de nós mesmos, e, por isso, podemos escolher como nos
comportar.

A ansiedade não tem exatamente um objeto, mas se caracteriza mais por um vazio ou por uma
ameaça vaga à existência.
Há um pseudo-contato, apenas fantasiado, em que não percebemos (ou não temos como
perceber) nuances importantes de nós mesmos ou do ambiente no aqui e agora.
33
critérios para a diferenciação (mais qualitativa que quantitativa) entre ansiedade e medo:

o medo é provocado por e dirigido para conteúdos bem definidos do ambiente,


os quais podem ser percebidos e removidos no aqui e agora;

o medo é uma emoção ativa, nos impulsiona à ação, ao passo que a ansiedade
tende a gerar preparação, paralisação, impasse;

a ansiedade é mais primitiva que o medo, por isso uma das saídas dela é
alcançar o medo e então provocar ação;

a vivência da ansiedade não se torna menos intensa com tranquilizações


racionais, diferentemente do medo;
34
na ansiedade pode haver uma sensação de que a pessoa não é capaz
de lidar com a situação, enquanto que no medo há mais esperança na
lida com o perigo;

a defesa mais comum ante a ansiedade é a evitação de situações que


imaginamos poder provocar ansiedade,

Evitação: um temor que não se esgota nem se transforma em luta ou


fuga. Tende a ser vivido como sem sentido, embora irresistível –há um
impasse, a pessoa evita o contato com o que pode provocar a vivência
da ansiedade e ao mesmo tempo deseja este contato como meio para
transformar a ansiedade em medo e, aí sim, poder reagir.
35
Que exemplos podemos ter de
manifestações corporais de
evitações?

6 exemplos, dentre tantos:


tremor nas mãos ou nos membros; rubor (vergonha); deflexão do olhar; limitação
involuntária da respiração; ‘travamento’ muscular (costas e pélvis, especialmente);
manifestações psicossomáticas (diarreia, constipação, alergias, etc.).
36
Uma das coisas que diferenciarão a
qualidade do diálogo com a ansiedade
são seus frutos – se ele gerar cuidado e
coragem, é atualizador; se gerar evitação
repetida, é cristalização. 37
Pessoas criativas têm mais vivências de ansiedade,
especialmente a atualizadora, pois tendem a ter mais
suporte para a lida com ela e, motivados pela necessidade
de desenvolver ainda mais a criatividade, tendem a se
colocar em mais situações ansiogênicas.

Todo ato criativo envolve ansiedade, pois coloca em contato


com a possibilidade de mudanças e, por óbvio, de perdas,
de ameaças ao ser tal qual conhecido e vivido.
38
A ansiedade sempre deriva de expectativas
pessimistas, as quais, por sua vez, são um salto ao
futuro.

As expectativas pessimistas não são por si o problema.


O problema é como elas são vividas.

Ter expectativas pessimistas é típico do humano e é


sabedoria, pois elas geram também cuidado e atitudes
preventivas.
39
A presença de fantasias pessimistas é típica da ansiedade.

Essas fantasias tendem a ser vividas na ansiedade patológica


praticamente como fatalidades, ainda que racionalmente a própria
pessoa rejeite as possibilidades imaginadas. É que nem sempre o
vivido e o pensado se encontram harmoniosamente.
40
Uma pessoa que só pensasse positivamente no que pode acontecer
seria extremamente ingênua, nunca sábia; estaria muito mais sujeita
a riscos desnecessários e a prejuízos do que aquela pessoa que vive
atenta tanto para as suas expectativas catastróficas quanto para as
anastróficas.

Da mesma maneira, uma pessoa que só se atentasse para as


expectativas catastróficas estaria sujeita a prejuízos imensos,
gerados pela quantidade de evitações que acabaria por fazer. 41
As fantasias pessimistas geram uma tensão entre o agora e o
depois, típica da ansiedade. A vivência dessa tensão entre o
momento atual e o momento futuro vai ser saudável, ou não, a
depender de como a pessoa lida com essa capacidade de
tentar prever o futuro.

Grosso modo, se prevê como hipótese, há ansiedade


atualizadora; se prevê como certeza, há ansiedade paralisante.
42
A ansiedade sempre se sustenta na possibilidade de não ser, na possibilidade de
não-contato.

Porque somos seres destinados à morte; porque todas as nossas habilidades não
têm a garantia de constância;

porque nosso ambiente sempre pode ser transtornado por fenômenos naturais
ou culturais;

porque nos modificamos inevitavelmente ao passar pelo tempo, o que nos


ameaça com delicadas impermanências, nossas e de quem nos é caro; porque
não temos a possibilidade de certezas com relação ao nosso futuro, etc. 43
Expectativa x ansiedade
A principal diferença entre a expectativa e a
ansiedade é que a primeira se apoia em fantasias
otimistas e a segunda em fantasias pessimistas.

A vivência corporal é parecida, e esse detalhe faz


muita diferença na compreensão do vivido. 44
Que sinais/contatos/toques nos aproximam mais da ansiedade
atualizadora?
Olhar confirmador; abraços, toques na nuca, sorriso cúmplice, dar as mãos, esticar a mão, fala mansa ....

Que sinais/contatos/toques nos aproximam mais da ansiedade


paralisante?
Olhar reprovador, olhar e voz professorais ou julgadores, apontar moralista de dedos, sorriso de escárnio, movimentos de
menosprezo, gestos desconfiados e/ou preconceituosos (ainda eu sutis), ...

45
46
O tempo e a temporalidade

47
A ansiedade e a temporalidade

No que diz respeito à ansiedade, um dos critérios mais importantes


que temos para nossas compreensões diagnósticas em psicoterapia
é o tempo, ou melhor, a vivência do tempo.

Como essa pessoa lida com o tempo?

Como passa pelo tempo?

Como vive a sua temporalidade?

Como dialoga com os três deuses do tempo, Cronos, Kairós e Aión?


48
A ansiedade e a temporalidade
Cada um de nós pode viver três tempos, o tempo compartilhado, mostrado nos
relógios e nos calendários, simbolizado pelo deus Cronos da mitologia grega; o
tempo próprio, único, o tempo vivido, representado por Kairós, na mitologia
grega um dos filhos de Cronos; e o tempo da intensidade de presentificação e
concentração, Aión, que Heráclito compara a uma força de entrega infantil.

Os três tempos têm inúmeros encontros e desencontros pela vida afora.

Talvez o diálogo mais difícil entre Cronos e Kairós (Aión intermedeia os outros
dois deuses) em cada pessoa é aquele que se dá no dia a dia, que busca um bom
ritmo entre o tempo do ser e o tempo do fazer, as atividades que nos são
exigidas e o necessário tempo para contemplar, para deixar a vida fluir sem
obrigações, para o ócio criativo.
49
A ansiedade e a temporalidade

Como se transita entre os três tempos que usamos para


compreender nossa existência, o passado, o presente, o futuro?

Na ansiedade, de maneira geral é o trânsito entre o presente e o


futuro que está em foco, dado que a ansiedade surge quando nos
imaginamos no futuro, ainda que essa fantasia possa vir de maneira
vaga e pouco definida.

Quando há tensão entre o presente e o futuro imaginado, há


ansiedade; quando não há tensão, não há ansiedade (Perls, 1977a).
Se imagino que posso ser reprovado ou aprovado em uma entrevista de emprego que farei amanhã, há risco, há tensão e
há ansiedade (que pode ser perfeitamente saudável nesses casos); se imagino que daqui a pouco vou me sentar a uma
mesa de um lugar conhecido e desfrutar com tempo de meu almoço, não há risco, não há tensão, não há ansiedade50
significativa.
A ansiedade e a temporalidade
Embora haja quem pense que a maneira mais saudável de se lidar
com o tempo seja a busca de uma intensa presentificação, eu
discordo disso, ao menos em parte, pois penso que essa ideia precisa
de ampliação.

Não quero negá-la, haja vista que presentificar-se é, sim, importante


para uma vida plena, mas quero ampliar esta conceituação.

Temos que ter a consciência de que só existimos no presente, sem


perder de vista que há aqui um paradoxo notável: o presente não
existe.

Mal percebemos o presente, e ele já é passado. 51


A ansiedade e a temporalidade

Da mesma maneira, passado e futuro também não existem (santo Agostinho, 2015).

Então, de certa forma, a presentificação não é estritamente possível.

Por isso, penso que a ênfase nela deixa de lado uma das nossas melhores
qualidades, a possibilidade que temos de flutuar entre os tempos, indo do
presente para o passado, deste de volta para o presente ou em um salto indo
para o futuro, para depois voltar ao passado e de novo ao presente ou ao
futuro, num movimento sem fim que todos fazemos por toda a vida.

Para além da desejável presentificação, me parece que é também crucial o


conhecimento cotidiano sobre como fazemos este trânsito entre os tempos,
com que ritmo e com que sentidos ou significados nos movemos pelos tempos
ao longo das situações vividas.
52
A ansiedade e a temporalidade

na verdade, não temos a possibilidade de transitar entre os tempos,


dado que tudo o que é possibilidade pode se tornar impossibilidade.

O trânsito pelo tempo, a não ser em casos extremos de psicoses ou


de lesões cerebrais, é inevitável para nós, humanos.

É obrigatoriedade, não possibilidade.

Nunca podemos deixar de fazer essa caminhada, para a qual usamos


nossa memória, nossa imaginação, nosso continuum de consciência,
nossas fantasias, nossos sentimentos.
53
Para compormos nossa identidade e nossa

autonomia precisamos de nossa história

(passado), de nossa vivência na situação

(presente) e de nossos horizontes

existenciais (futuro). 54
A ansiedade e a temporalidade

O que importa mesmo, então, é com que ritmo e com que sentido
transitamos pelos tempos, ou seja, como transitamos pelos tempos.

É por isso que podemos dizer que a ansiedade surge quando


transitamos com tensão em direção ao futuro.

Dado que todo crescimento envolve uma perda e um risco, para que
haja crescimento é preciso que haja tensão, para que possamos nos
desenvolver a tensão é necessária.

Dessa forma, mais uma vez percebemos que a ansiedade é inerente


a cada ser humano. 55
A ansiedade e a temporalidade
Na ansiedade, o trânsito enfatiza mais a direção ao futuro, e a maneira como vivemos essa
tensão é um dos aspectos que vão determinar se a ansiedade será atualizadora, ou não.

Essa maneira varia de pessoa para pessoa, de época para época, de campo para campo, de
situação para situação e sempre será uma co-criação da pessoa com seu campo.

É sempre bom lembrar que o futuro não é uma boa morada, mas um ótimo lugar para se
visitar

56
Nossa cultura atual é marcada pela pressa e pela tão
elogiada correria.

Não discriminamos a pressa da rapidez, vivências tão


diferentes. A pressa é inimiga da rapidez!

A paciência virou quase que um pecado.


57
Como lidar com os sinais corporais da passagem
pelo tempo?

Alma jovem em corpo velho?

Quem tem tempo para brincar?

58
59
Ansiedade e espacialidade

60
Espacialidade
A ansiedade tem relação com a insegurança quanto à
ocupação de espaços, e temor com relação a espaços
novos.

A ansiedade que vai dar o tom dos caminhos: se eles


tenderão a ser curtos e longos ou longos e curtos. 61
Espacialidade
A ocupação de espaço de maneira simbólica é um tema
bastante comum em terapia, geralmente sob a queixa de que
a pessoa não está usufruindo adequadamente o espaço que
poderia aproveitar por causa de uma vivência de ansiedade.

A apropriação (simbólica e concreta) dos espaços é um dos


principais desafios que vivemos hoje na cultura ocidental. 62
Espacialidade:

SER UM CORPO

SER NO MUNDO
63
Espacialidade e corporeidade:

vivência corporal em um lugar.

64
Na vivência da ansiedade o ground fica
modificado.

Na ansiedade, mais se olha que se vê.

Na ansiedade mira-se mais a chegada que o


caminhar.
65
Corporeidade
tensão muscular, às vezes crônica, dificuldade para relaxar e descarregar.

em terapia: dificuldade em perceber ou validar nuances corporais: sentimentos,


desejos, necessidades de toque, de carinho, de colo, de vivências que possam
trazer um relaxamento, excitações que encontrem seu estado natural de
descarga e realimentação.

Muitas vezes encontramos o corpo negado, ou também submetido a máscaras,


o gesto controlado/contido em vez do gesto espontâneo, gracioso. 66
Na vivência da ansiedade os gestos tendem a ser pouco
graciosos.

O tom de voz tende a ser hipnótico ou dissonante.

O odor pode se tornar invasivo.

A qualidade do toque pode ficar prejudicada.

A fala pode ficar apressada ou mal articulada.

O elogio ao cansaço. 67
O corpo a ser modelado em vez de aceitado.

O elogio ao corpo sem ritmo, sempre energizado.

A medicalização do corpo no lugar da atenção a ele.

A negação da morte, ou, no mínimo, sua transformação em


problema, a negação da visão da morte como fatalidade.

A fuga ao corpo simbólico.


68
Espacialidade e corporeidade:
CONSTRUÇÕES AO LONGO DA HISTÓRIA PESSOAL

os gestos (e os movimentos) permitidos e os proibidos


os toques permitidos e os proibidos
os sons permitidos e os proibidos
as palavras permitidas e as proibidas 69
Espacialidade e corporeidade:
CONSTRUÇÕES AO LONGO DA HISTÓRIA PESSOAL

a beleza
expectativas quanto ao corpo
o desempenho corporal na espacialidade
o corpo herdado
70
Espacialidade e corporeidade:

percepção corporal :

interocepção: o que acontece dentro do corpo;

exterocepção: os dados de fora do corpo;

propriocepção: sensação percebida do lugar e da posição relativa das partes do corpo em


relação a coisas e pessoas;

cinestesia: movimentos do corpo.

Ao caminhar, por exemplo, o contato dos pés com o solo provoca a percepção consciente
exteroceptivamente das características da superfície tocada, e a interocepção relativa ao
conforto, ou não, desse toque para a pessoa que caminha. (Brownell, 2018 [em Robine])
71
Espacialidade, corporeidade, ansiedade:
ground
pernas e joelhos
quadril e genitalidade
72
Espacialidade, corporeidade, ansiedade:

vísceras
abdome
costas
braços e ombros
73
Espacialidade, corporeidade, ansiedade:

pescoço
cabeça
voz
nariz
ouvidos
olhos 74
Espacialidade, corporeidade, ansiedade:

pele

75
Espacialidade, corporeidade, ansiedade:

intuição

76
Espacialidade, corporeidade, temporalidade, ansiedade:

o corpo que passa pelo tempo: bebê, criança,


púbere, juventude, adultez, terceira idade, velhice.

77
Awareness

perfeccionismo, temor desproporcional à rejeição ou humilhação,


expectativas pessimistas, medo do palco (temor de ocupar lugar que
provoque a atenção de outros na vida cotidiana).

O perfeccionismo é, talvez, um dos maiores riscos de ansiedade para


muitos clientes, pois há uma exigência ambiental, geralmente
introjetada, bastante forte nesse sentido.

Dificuldade para lidar com os erros, para demonstrar imperfeições,


dúvidas, temores, curvas, o que facilita uma busca ansiosa e o
estabelecimento de metas onde deveria haver horizontes.
78
Na ansiedade, é comum uma carga significativa de
projeções não reconhecidas, boas e más.

Também introjeções não moldadas.

Dificuldade com as frustrações.

Especialmente: dificuldade com a aceitação, com a


negociação serena com a realidade.
79
vida afetiva

dificuldade de se entregar aos sentimentos e aos ambientes, dificuldade em


confiar em seus afetos ou em como eles podem ser recebidos pelo ambiente,
especialmente aqueles afetos que nossa cultura erroneamente classifica como
ruins.

Não temos controle sobre nossos sentimentos, eles são acontecimentos, só


podemos ter controle sobre nossos atos, e, assim mesmo, nem sempre.

Não há sentimento ruim, há gestos ruins.

Os sentimentos são sinais de nosso corpo em reação ao vivido; quando


proporcionais às situações vividas e não cronicamente repetitivos, são
protetores, são orientadores, são reveladores, são humanizadores, são
antídotos para a ansiedade patológica e alimento nutritivo para a saudável.
80
O que se deve sentir X o que se sente

A sexualidade desafetada.

O corpo que se tem e o corpo que se é.

A tentativa de perenizar os sentimentos, de não aceitar que


eles são situacionais.

O sofrimento mal alojado.


81
O morrer como fim do tempo e do espaço:
concretudes e simbolismos

82
83
Ansiedade: tentativa de síntese em 16 aspectos
relevantes

84
01. A ansiedade é inalienável. Transita entre as polaridades
atualizadoras e as paralisadoras.

02. A ansiedade é vivência desagradável.

03. A ansiedade é fruto de nossa sabedoria, deriva da capacidade


para imaginar o futuro.
85
04. ansiedade é vivência, não só comportamento.

05. ansiedade é diferente de medo. Ela deriva de expectativas


pessimistas, ele é do momento. Ela prepara para a ação, ele é
ação.

06. a ansiedade denuncia necessidades de mudanças, às vezes


mudanças muito doloridas. Pede quebra de hábitos e de
identidades. 86
07. a ansiedade é mobilização não voluntária e não racional.

08. a ansiedade nos leva à coragem e ao cuidado.

09. a ansiedade se manifesta sempre no corpo, mas é


eminentemente existencial. Assim, o corpo é o mensageiro da
ansiedade, raramente sua origem ou, menos ainda, causa.
87
10. O corpo é mensageiro da ansiedade e para a ansiedade: há
enorme possibilidade de trabalhos corporais para incrementar o
diálogo com a ansiedade.

11. o efeito existencial e corporal das drogas e dos psicofármacos.

12. a confiança no corpo.

88
13. a ansiedade tem 3 raízes mais importantes: nossa condição
abissal, a ameaça a valores importantes, a possibilidade de não ter
competência para alguma tarefa importante.

14. a fronteira de valor e a ansiedade.

15. a ansiedade tem imensa relação com a aceitação.

16. a ansiedade emerge de relações e deve ser lidada em relações.


89
Mais quatro aspectos relativos à ansiedade:
1. ela sempre está presente onde haja liberdade;
2. não há criatividade sem ansiedade;
3. a pausa é potencialmente geradora de ansiedade;
4. a ansiedade nos conduz para a coragem e o cuidado,
embora o desespero seja sempre possível como
alternativa a essas vivências. 90
91
Ansiedade e liberdade

A ansiedade só aparece quando existem alternativas, quando


há possibilidade de escolha – quem não pode escolher não
vive ansiedade, tampouco liberdade.

May: “a ansiedade acompanha a liberdade como uma sombra.”

Sempre que há a possibilidade ou a necessidade de escolha,


há conflito interior e/ou com o ambiente.

Para May quanto mais este conflito se aproxima do confronto


“entre o que chamamos ser e não-ser”, mais ansiedade tende a
gerar. Atenção especial aos valores. 92
a ansiedade é vivida “no momento do aparecimento de alguma
potencialidade ou possibilidade diante do indivíduo; mas essa
possibilidade implica a destruição da segurança atual, o que por
sua vez provoca a tendência a rejeitar a nova potencialidade.”

a possibilidade de realização de algum potencial provoca


ansiedade, pois atualizar potenciais implica em perda escolhida,
uma escolha que se dá tanto melhor quanto maior forem a
liberdade e o desapego da pessoa.
93
Ansiedade ante a liberdade vivida de maneira saudável
depende da qualidade da conscientização no exercício
de escolher, além de confiança na autonomia vivida e da
capacidade para a responsabilização.

A saúde emocional é transgressora (transgredir:


atravessar).
94
diálogo entre ansiedade e liberdade: a obediência libertadora

Paradoxo: a obediência precisa ser um ato de liberdade para que seja integrada e
livre da ansiedade patológica. A obediência sadia precisa da desobediência.
Etimologia: obedecer quer dizer dar ouvidos, estar atento ao que o outro diz.
Isso permite sair do lugar comum e – quem sabe? – encontrar o lugar da verdadeira
obediência. Permite também compreender que a boa obediência precisa conviver
com a possibilidade da desobediência.
Lugar comum: obediência no sentido de que aquilo que o outro diz é para ser
cumprido.
Um preceito que dura há séculos tem que continuar a ser obedecido mesmo que haja novos conhecimentos ou outras
possibilidades hermenêuticas. É o lugar do tradicionalismo – mas não da tradição, pois esta se renova ao longo das gerações.
95
A obediência acrítica tem muito espaço em nosso mundo, alimentando principalmente
religiões e autoritarismos que buscam principalmente o poder sobre, a possibilidade
de manter as outras pessoas submetidas e ansiosas.

Os detentores do poder sobre encontram diante de si aqueles que preferem abdicar


do próprio poder e o delegar, além daqueles que, por imaturidade emocional, não
podem ver outro caminho.
Essas escolhas se fazem por diversos motivos, desde a falta de autoestima, até a
falta de oportunidade de educação crítica que possibilite a libertação ante sutis
manipulações e adulações.
A ansiedade patológica é sempre companheira dessas escolhas pela aparente não-
escolha. 96
Sempre há a possibilidade da desobediência, haja vista que a necessidade de crescimento é inerente
ao ser humano, e não há crescimento sem a possibilidade da desobediência.

Erich Fromm: “a liberdade e a capacidade de desobediência são inseparáveis.” A possibilidade


da desobediência é mãe da autonomia.

É a possibilidade da desobediência que faculta o trânsito para a introjeção bem moldada.

a introjeção tende a gerar um dever. Em um movimento saudável, essa introjeção é seguida por uma
configuração e uma moldagem que possibilitará a apropriação dela ou de parte dela. A moldagem gera
a obediência autônoma.

O final deste processo é ditado pela confluência, a possibilidade da formação da vivência do nós (eu
mais outra ou outras pessoas) que traz a chance do compromisso e da lida com a ansiedade
97
saudável.
Assim a desobediência mais madura parte da obediência, pois a pessoa ouve o
que se lhe pede, dá ouvidos a aquele que traz a ordem. E questiona. Pergunta e,
mais que isso, pergunta-se. Considera o que o outro lhe ordena, mas se orienta
principalmente pelo que lhe diz seu corpo, base de sua sabedoria.

Fromm: “a obediência que só nasce do medo da força deve transformar-se


em outra que surja do coração do homem”.

A pessoa suficientemente autônoma argumenta para encontrar sua própria


posição, a qual consistirá em aceitar parte e reformar parte do que lhe foi
ordenado. Com isso, por partir da obediência consideradora, transforma.
98
Compromisso:
fruto de decisões autônomas,
de escolhas feitas de modo ponderado e com o concurso da própria sabedoria em busca do melhor
caminho.
Dever:
fruto da obediência acrítica ou da falta de possibilidades de escolha consciente.

Quando se faz algo baseado nos “deverias”, há ressentimento e pouca concentração.


Todos nós passamos por situações assim na vida, mas é certo que quanto menos, melhor, pois essas
situações abrem a possibilidade da ansiedade patológica.

Quando conseguimos realizar tarefas com compromisso (moldagem e sentido) nos tornamos mais
concentrados, mais harmônicos, vivendo, quando muito, a ansiedade saudável, e também a excitação
do crescimento criativo, a possibilidade de brincar. 99
diálogo entre ansiedade e liberdade: a obediência libertadora

quando a pessoa vive uma liberdade excessiva, quando não consegue reconhecer e
validar fronteiras de contato, quando não sente que tem suficiente suporte ambiental,
essa vivência pode levar a uma ansiedade patológica, que pode provocar condutas
invasivas, isolamento, agressões e até depressões.

Essa falta de continência ambiental é bastante comum nos casos de alcoolismo ou


de drogadição, de uso indevido e exageradamente continuado de medicação
psiquiátrica, além de poder também ser um dos fatores que podem levar a ou facilitar
assédios e abusos sexuais, além de outras condutas violentas, que muitas vezes

podem ser pedidos desorientados de socorro. 100


O dever acrítico leva ao sentimento de culpa e seus desdobramentos,
enquanto que o compromisso leva à responsabilidade.

O sentimento de culpa (diferente da culpa autêntica) tem relação com a


ansiedade patológica, ao passo que o compromisso abre a possibilidade
da epiqueia e da escolha.

A obediência acrítica se fundamenta na e incrementa a ansiedade


patológica; a obediência autônoma se fundamenta na ansiedade
existencial, saudável, porque há a possibilidade de escolha. 101
A “desobediência” em terapia é a capacidade de brincar (Winnicott, Perls).

O brincar de que falam os dois autores é a possibilidade de entrega ao


jogo da vida a cada sessão, da mesma maneira que a criança se entrega
concentradamente às brincadeiras que faz sozinha ou acompanhada.

Brincar é o tempo de Aión.

Brincar aqui, é importante lembrar, é diferente de disputar, na medida


em que é entrega, desfrute, não competição ou jogo. 102
São esses momentos que, muitas vezes, abrem espaço para a surpresa,
ou seja, para uma nova configuração de si através da relação dialógica,
fruto também da vivência (às vezes até da descoberta) de um tipo de
criatividade infantil que é extremamente saudável, uma criatividade que
surge através da retomada da capacidade, geralmente abandonada na
infância, de espanto e encantamento diante da novidade.

Esses momentos são cruciais para a transformação da ansiedade


patológica em saudável.
103
Enfim, para fechar este tópico, quero deixar claro que
não estou simplesmente defendendo a desobediência,
mas, sim, sua possibilidade, pois isso abre as portas e
as janelas tanto para a obediência quanto para a
desobediência críticas, colaborativas, frutos da boa
confluência de valores, de ideais e de compromissos.
104
Criatividade e ansiedade

As pessoas criativas são mais sujeitas a vivências de ansiedade, embora


isso possa soar estranho.

A criatividade traz como um de seus custos um incremento da ansiedade


fundamentado na maior capacidade de consciência pessoal e social.

A criatividade é transformadora, desaloja de comodidades e de


seguranças previamente adquiridas, gera como que uma necessidade de
busca do novo, da renovação do conhecido, de originalidade.

Com isso, ela estimula a abertura para a aventura e, por conseguinte,


para o risco e a ansiedade.
105
A criatividade provoca a aproximação da ansiedade e, ao mesmo tempo,
a habilidade para vencer as ameaças ansiogênicas com
espontaneidade, crescimento, construtividade e trabalho.

A pessoa criativa vive situações ameaçadoras mais como desafio que


como obstáculo, e se lança cuidadosamente à experiência do novo;
geralmente colhe resultados melhores que aquelas que, temerosas,
evitam expor-se, autoprotegem-se de maneira exageradamente
defensiva, não cuidadosa, evitando as situações provocadoras de
ansiedade. 106
107
Quando se busca evitar este risco provocado pela

criatividade, geralmente o caminho mais fácil é através do

amortecimento de si, da negação da possibilidade de

mudança que a criatividade traz, de uma certa desvitalização,

a qual pode se apoiar na necessidade grupal da

previsibilidade.
108
Esse ritmo entre mudança criativa e permanência asseguradora que percebemos em
grupos e em indivíduos produz ansiedade.

Essa ansiedade, quando bem suportada, leva à alegria de superar obstáculos e


dificuldades através de um contínuo jogo de mudanças apoiadas na permanência.

Em outros termos: são mais eficazes, criativas e duradouras as mudanças que,


derivadas do diálogo com a ansiedade, trazem novidades que se ajustam ao antigo
transformando-o, como a criança se transforma no adolescente sem perder a
capacidade de brincar, o adolescente saudável se transforma em adulto sem perder
sua jovialidade, como este adulto se transforma no idoso sem perder vitalidade
existencial. 109
Este jogo em que o novo se apoia no antigo, no tradicional, para renová-lo
ao mesmo tempo em que o faz permanecer é um jogo delicado, pois traz o
risco do tradicionalismo.

Nesses anos de atendimento em psicoterapia, foram muitos os


ajustamentos criativos que testemunhei, com os mais diferentes
resultados, todos geradores de ansiedade, também boa ou má, saudável,
ou não, pois a diferenciação entre uma e outra não é exatamente a
ansiedade, mas o suporte para o diálogo com ela, a forma como ela é
vivida, a coragem com a qual ela é encarada. 110
A pausa é potencialmente geradora de ansiedade
A pausa é o momento da solidão. Ou da solitude, como prefere
Bauman:

“essa sublime condição na qual a pessoa pode ‘juntar


pensamentos’, ponderar, refletir sobre eles, criar – e, assim, dar
sentido e substância à comunicação. Mas quem nunca
saboreou o gosto da solitude talvez nunca venha a saber o que
deixou escapar, jogou fora e perdeu.” 111
A fuga à solidão, a impossibilidade do enfrentamento da solitude,
é um ato alimentador de más ansiedades.

A busca de um bom ritmo entre solitude e presença em grupos


alimenta a boa ansiedade, além de incrementar a criatividade.

112
Nosso mundo de hoje em dia é um mundo em que a pausa, a
solidão, a contemplação não têm espaço suficiente.

O mundo do fazer, ansiosamente fazer, um mundo que ainda


não descobriu que a pressa é inimiga da rapidez. E que, no
mínimo, tem imensa dificuldade de lidar com o ritmo entre ser e
fazer, privilegiando o fazer como um servo privilegia o senhor.
113
Excessiva valorização da performance, com pouco espaço para a contemplação,
para ouvir estrelas e dialogar com elas.

Passividade diante da ideologia da aceleração.

Nostalgia ou negação do passado no lugar de passeios criativos pelos tempos


vividos.

Horror ao silêncio.

A virtualização da vida.

114
Nos meus apontamentos sobre essa relação entre ansiedade
patológica e pausa em meus clientes, não faltam exemplos.

Olhando-os com cuidado, percebo que este encontro se dá


mais claramente de duas maneiras, o ansioso que não pausa
porque se fundamenta em seu egotismo e o ansioso que não
pausa porque teme a solidão ou como defesa para um
sentimento de culpa.
115
A ansiedade pede coragem de ser e de cuidar
O que vai determinar se uma ansiedade será vivida como saudável, ou
não, é a qualidade do contato que a pessoa tem consigo, com o
ambiente e com o fenômeno potencialmente gerador de ansiedade.

Essa qualidade tem uma série de características que devem estar


presentes na pessoa, dentre as quais duas das mais importantes são a
coragem e o cuidado. Dentre outros, Paul Tillich, Rollo May e Kurt
Goldstein destacam a íntima relação entre ansiedade e coragem.
116
Goldstein:

“a capacidade para suportar ansiedade é a manifestação da


coragem genuína, com a qual não há uma preocupação com as
coisas do mundo, mas com a ameaçadora existência. Coragem,
em uma análise final, é nada mais que a resposta afirmativa aos
choques da existência, que precisam ser suportados para a
atualização da própria natureza.”
117
May:
“coragem é a aptidão para enfrentar a ansiedade que surge na
conquista da liberdade”.

May realça também que há um paradoxo na coragem:

“é a contradição aparente de que devemos nos comprometer por


completo, e ao mesmo tempo ter consciência de que podemos estar
errados. Essa dialética entre convicção e dúvida é característica dos
mais elevados tipos de coragem, e nega a definição simplista que
identifica a coragem com mero crescimento.” 118
Tillich afirma que a ansiedade inclina o ser humano para a coragem
“porque a outra alternativa é o desespero. A coragem resiste ao
desespero tomando a ansiedade dentro de si.”

“Coragem como um ato humano, como matéria de avaliação, é um


conceito ético. Coragem como a autoafirmação do ser de alguém é um
conceito ontológico. A coragem de ser é o ato ético no qual o homem
afirma seu próprio ser a despeito daqueles elementos de sua existência
que entram em conflito com sua autoafirmação essencial.”
119
A coragem não é algo que se encontre fora da pessoa, mas nela, ainda
que tenha mais vigor quando tem apoio ambiental.

É importante diferenciar um ato corajoso de um ato temerário!

Porque coragem mesmo é perceber e aceitar a imensa solidão a que


estamos destinados.

É também perceber e aceitar nossa precariedade e nossa abertura, “a


dor e a delícia de ser o que é”.

Em nosso processo de abertura e fechamento de Gestalten, a nossa


vida-morte-vida cotidiana, vivemos uma sequência infinita de
nascimentos e mortes que nos encaminham para a solidão.
120
Deixamos o ventre materno, deixamos o colo materno, deixamos a
família, nos atiramos ao mundo.

Nesse processo, desenvolvemos nossa espiritualidade no sentido de


sermos mais capazes de amor, de cuidado, de tolerância, de
compromisso responsável, tudo isso a partir do enfrentamento corajoso
da dor da separação, resultando na necessária consciência da solidão, a
inescapável solidão humana, a qual nos remete para a inevitável
necessidade do outro, a qual nos remete para a inevitável ansiedade
existencial. Daí deriva o cuidado consigo, com o outro, com o mundo.
121
Penso que a coragem e o cuidado se fundamentam de
forma marcante em nossos valores.

São eles que norteiam, que dão suporte, que


possibilitam os riscos e dimensionam os perigos,
protegendo de escolhas e de condutas temerárias ou
excessivamente marcadas pela evitação.
122
Para lidar melhor com nossos valores e a ansiedade, cinco questões são
essenciais:

1. Tomar consciência de quais valores norteiam a postura diante da vida;

2. Tomar consciência de como age no cotidiano (o Lebenswelt);

3. Questionar e assumir como próprios, ou não, os critérios pelos quais


se norteia, ou seja, moldar as introjeções o mais possível;

4. Verificar o grau de proatividade nessas escolhas;

5. Verificar a congruência e a coerência das atitudes e das escolhas.


1987)
(cf Piccino,

123
A boa liberdade, a liberdade livre da ansiedade patológica, é um rio que,
margeado por bons e autônomos valores, corre em direção a um
horizonte plausível e inalcançável.

O horizonte tem uma peculiaridade fantástica: ele é inalcançável, é


infinito.

Quando chegamos onde era o horizonte, ali já não é mais horizonte, o


horizonte é mais além. E assim infinitamente.
124
Valores-horizontes descortinam uma deliciosa impossibilidade: quando o
que procuramos é infinito e inalcançável, estamos menos sujeitos a nos
fazermos ansiosos diante dessa busca.

Por exemplo, se tenho como valor ser tolerante, nunca serei


completamente tolerante, mas quanto mais estimulo minha capacidade
de ser tolerante, mais tolerante me torno.

No que diz respeito aos valores, não é necessário que estejamos


prontos, pois o bom é estarmos sempre em busca de crescimento. (cf Dalai Lama,
125
2000, p. 180)
Especialmente, é importante perceber que os valores que nos
guiam são valores, não verdades. Ainda que nos sustentem
bem, são provisórios; ainda que pareçam imutáveis, são
flexíveis.

A vida bem vivida, para a qual a ansiedade pode ser alimento


nutritivo, não tem lugar para certezas absolutas, só para o
cuidado e a coragem, suportes da coragem de ser.
126
Algumas referências bibliográficas
BAUMAN, Z. 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011
DALAI LAMA. Uma ética para o novo milênio. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
FROMM, E. La Desobediencia, Buenos Ayres: Paidós, 2013
GOLDSTEIN, K. The Organism. New York: Zone Books, 2000
MARRAS, M. Angústias Contemporâneas e a GT. São Paulo: Summus, 2020
MAY, R. O Homem à Procura de Si Mesmo. Petrópolis: Vozes, 1978
__________, A Coragem de Criar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982
__________. Liberdade e Destino. Porto Alegre: Rocco, 1987
PERLS, Frederick S. Gestalt-terapia Explicada (Gestalt therapy verbatim). São Paulo: Summus, 1977a
PERLS, F. S.; HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997
PICCINO, Josefina D. Valores Humanos e Psicoterapia. Em Antropos, Psicologia e Vida – Revista de Psicologia
Humanista n 2. São Paulo: Sociedade Brasileira de Psicologia Humanista, 1987
PINTO, Ê B Psicoterapia para Pessoas de Vida Consagrada Revista Paróquias e Casas Religiosas. Ano 7, nº 40,
janeiro/fevereiro de 2013, p. 24 – 29
_______, Elementos para uma Compreensão Diagnóstica: O ciclo de contato e os modos de ser. São Paulo:
Summus, 2015
________ Dialogar com a Ansiedade: Uma vereda para o cuidado. São Paulo: Summus, 2021
POLSTER E. e POLSTER M., Gestalt-terapia Integrada. Belo Horizonte: Interlivros, 1979
RIBEIRO, J. P. O Ciclo do Contato: Temas básicos na abordagem gestáltica. São Paulo: Summus, 2007
TILLICH, P. A Coragem de Ser. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967
Winnicott, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1971.
127

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