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DIGITALIZADO E CORRIGIDO BY MALAPROPINA


Julho de 2011

É melhor um livro digitalizado que alguém pode ler e reler, do que um


livro não editado que ninguém pode ler...
Orelha Esquerda

LYTHANDE COMPROMETERA-SE, EM NOME DE SUA ESPADA E DOS SEUS


PODERES MÁGICOS, A LUTAR ETERNAMENTE CONTRA AS FORÇAS DO CAOS. . .

Adepto Peregrino da Ordem da Estrela Azul, Lythande dominara todas as magias deste
mundo. Mas os poderes mágicos de um adepto eram sempre vinculados a um segredo que só a
ele pertencia, e quem o descobrisse podia se apropriar da força da Estrela Azul, deixando
indefeso o adepto, ao qual só restava morrer.

E o segredo de Lythande era, talvez, o mais arriscado de todos, excluindo-a do resto da


humanidade, forçando-a a lutar contra seres mágicos bestiais, bruxas, ladrões, espadachins e a
própria magia dos deuses...

LYTHANDE inclui, como um brinde, a contribuição especial da escritora Vonda N.


Mclntyre, que ganhou o prêmio Hugo and Nebula. (autora de Jornada nas Estrelas – Efeito
Entropia)

Orelha Direita

NA ESCURIDÃO, TODOS OS ENCANTAMENTOS FICAVAM À SOLTA...

De repente lá estava, uma enorme figura cinzenta, que pulou nas costas de Lythande.
A maga revirou-se sacando a adaga da direita e golpeando firme a garganta do lobo.

A arma atravessou o animal como se fosse ar. Não era uma fera de verdade, então, mas
uma bruxaria... Lythande deixou cair a adaga da direita, puxando com a esquerda a outra, a
que servia para combater os poderes e as bestas mágicas. Mas a demora foi quase fatal: os
dentes do lobo enfiaram-se como agulhas inflamadas no braço direito de Lythande, depois o
joelho que ele erguera para afastar o animal.

Os olhos faiscantes do lobo reluziram de encontro à luz da Estrela Azul, que foi
ficando fraca c débil à medida que diminuía o esforço de Lythande, o pensamento lhe
ocorreu:

Terei chegado até aqui para morrer num porão escuro na barriga de um lobo, que
nem mesmo é real, mas uma criatura fruto do abuso dos poderes mágicos nas mãos de um
ladrão?
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Bradley, Marion Zimmer
Lythande / Marion Zimmer Bradley;
Tradução de Talita Macedo Rodrigues.
Rio de Janeiro: Imago Ed., 1989.

(Série Ficção e experiência interior)

Tradução de: Lythande


ISBN 85-312-0051-2

1. Ficção estadunidense. I. Rodrigues, Talita Macedo. II Título. III Série

89-0278

CDD-813
CDU-820(73)-3
MARION ZIMMER BRADLEY

(Série Ficção e Experiência Interior)

Direção de

JAYME SALOMÃO

IMAGO EDITORA

Rio de Janeiro -
Título Original
LYTHANDE
Copyright © 1986 by Marion Zimmer Bradley
Published by agreement with Scott Meredith Literary
Agency, Inc., 845 Third Avenue, New York, N.Y. 10022
Proibida a exportação para Portugal
Copirraite da tradução © 1989, Imago Editora

Tradução: Talita Macedo Rodrigues


Copidesque: Milton Alves
Revisão: Eduardo Ravasco
Marcos José da Cunha Jorge Luiz Luz de Carvalho
Capa: Cassol

Direitos adquiridos por IMAGO EDITORA LTDA.


Rua Santos Rodrigues, 201-A — Estácio
CEP 20250 - Rio de Janeiro - RJ
Tel.: 293-1092

Todos os direitos de reprodução, divulgação e tradução são reservados.


Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida por fotocópia,
microfilme ou outro processo fotomecânico.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
SUMÁRIO

O SEGEDO DA ESTRELA AZUL .............................................


O MAGO INCOMPETENTE ......................................................
A MAGIA ALHEIA ....................................................................
NAUFRÁGIO .............................................................................
O ALAÚDE ERRANTE ..............................................................
EM BUSCA DE SATÃ .............................................................
INTRODUÇÃO A
O SEGREDO DA ESTRELA AZUL

Lembro-me de quando ouvi Bob Asprin (Robert Lynn Asprin) falar pela primeira vez
de uma nova idéia, a que se referiu como MUNDO DOS LADRÕES (Thives’ World) - acho
que foi no Brighton Worldcon, por volta de 1978. Bob descreveu a idéia entusiasmado e ela
me pareceu divertida, por isso respondi " Tudo bem, eu topo", sem pensar muito. . . e é assim
que os escritores se metem em enrascadas. Alguns meses depois de ter voltado da Inglaterra,
recebi pelo correio um pacote fascinante com o material que me mandavam Bob e outros
escritores que haviam concordado em se associar neste negócio de escrever histórias
encadeadas num mesmo cenário comum. Ali estavam mapas, uma descrição básica dos
deuses e dos costumes do lugar, e tudo mais. Deveríamos colaborar com um esboço do nosso
personagem básico, ou personagens, e eu contribuí com alguns parágrafos sobre o perfil
misterioso de Lythande, de quem nada se sabe, nem mesmo o sexo. . .
Como uma brincadeira, tudo isto era muito interessante, mas quando chegou a hora
de escrever com seriedade, as coisas mudaram de figura. Eu não fui a única a me dispor
totalmente a participar do planejamento das etapas iniciais, mas quanto a me sentar
realmente diante de uma máquina de escrever e criar as histórias — bem, no seu original (a
edição Ace do primeiro volume, não a supertiragem encadernada dos primeiros volumes)
Bob nos falava do seu quase colapso nervoso, porque pelo menos metade do grupo, achando
a idéia interessante, revelara-se também ocupada demais para escrever. Quando Bob disse
que precisava da história, eu estava para tomar um avião para Phoenix, depois Nova Iorque,
de onde iria à Inglaterra pesquisar acerca de um projeto que acabou se revelando o mais
lucrativo de to da a minha vida profissional; Bob porém me convenceu, e escrevi a história
no avião; no meu quarto de hotel em Phoenix, pedi emprestada a pequena máquina de
escrever de Margaret Hildebrand e datilografei tudo, deixando à minha secretária a tarefa de
revisar, corrigir e enviar o material pelo correio para os Asprins. E a minha única história
escrita a mão desde os dezessete anos, e espero que a última. Eu a entreguei ao comitê de
Phoenix (isto é, a versão manuscrita original) para ser leiloada em beneficio da sua
convenção, e não tenho idéia de quem a possui agora, nem o que fizeram dela. Mas eles têm
uma raridade: o único manuscrito MZB profissional existente.
Quanto a Lythande, para mim ela é tão misteriosa como para os habitantes de
Santuário/Mundo dos Ladrões. No princípio, quando concebi este personagem, não sabia que
se tratava de uma mulher; eu o imaginava um homem excêntrico. Ao introduzir na minha
história o Cappen Varra de Paul Anderson (o único homem honesto em Santuário), usei
apenas de um artifício para ajudar na trama; porém, quando ele disse "Você é diferente de
todos os homens que conheço", fiquei pensando: mas, e as mulheres? Daí foi apenas um
passo para a conclusão: é claro, Lythande é uma mulher cuja maldição é esconder para
sempre a sua verdadeira identidade.
Os antecedentes de Lythande são simples: Fafhrd de Fritz Leiber e Jirel of Joiry de
CL. Moore — mas procurei também, ao fazer de Lythande um personagem músico e mago,
revelar alguma coisa de Silver John de Manly Waste Wellman, cujo violão de cordas de prata
é uma arma potente contra a feitiçaria. Além disso, mesmo num mágico mundo de ladrões,
praticar apenas a arte da magia não basta para viver, ou, como diria Lythande, "não põe o
feijão na mesa". Um menestrel sempre pode trocar uma cantiga por um bom jantar.
Todas as cantigas de Lythande nestas obras são paráfrases de Safo, uma chave sutil
para se desvendar uma faceta do seu caráter, a que preferi não dar muita ênfase. Não quero
fazer da excentricidade de Lythande uma tese; é apenas, eu acho, mais uma carga sobre uma
mulher cuja vida já deve ser bastante complicada. Já fui várias vezes solicitada a escrever
sobre lésbicas; infelizmente, o público para esta espécie de coisa costuma se restringir aos
homens de curiosidade mórbida, e eu preferi não alimentar este tipo de interesse. Lythande é
como ela é, e até mesmo os personagens de um livro merecem privacidade. Eu não me
importaria se outras pessoas escrevessem sobre Lythande – pessoas que escrevem e pessoas
que lêem são da minha espécie, e podem ter tudo que eu tenho. De qualquer forma, eis aqui
Lythande e o seu mundo. Sejam bem-vindos.
Para os que me perguntaram:
Lythande é pronunciado (pelo menos, por mim) como LiTond.
O SEGREDO DA ESTRELA AZUL

Numa noite em Santuário, quando as ruas se revestiam de um falso encanto sob a luz
prateada da lua cheia, fazendo de cada ruína uma fortaleza enfeitiçada e de cada ruela escura
um oásis de mistério, Lythande, o mago mercenário, partia em busca de aventura.
Lythande havia recentemente retornado - se as misteriosas idas e vindas de um mago
podem receber um nome tão prosaico - da missão de guarda a uma caravana através do
Deserto Cinzento em direção a Twand. Em algum ponto do caminho, um bando de ratos do
deserto - ratos de duas pernas e dentes de aço envenenado - assaltara a caravana, sem saber
que ela estava protegida pela magia, e se viu combatendo esqueletos que uivavam com as
órbitas em chamas; e tendo ao centro um mago alto com uma Estrela Azul entre os olhos
cintilantes, uma estrela que lançava raios de um fulgor gélido e paralisante. Assim, os ratos do
deserto fugiram, e não pararam de correr até alcançarem Aurvesh; as histórias que contaram
não causaram nenhum dano a Lythande, a não ser aos ouvidos dos crentes.
Havia ouro, portanto, nos bolsos da longa e escura capa de mago, ou quem sabe
escondido onde quer que fosse a morada que dava abrigo a Lythande.
Pois, ao final, o chefe da caravana estava tão assustado com Lythande como estivera
com os bandidos: uma situação que aumentara a generosidade com a qual ele recompensara o
mago. Como de costume, a expressão fisionômica de Lythande não se alterara, porém alguns
dias mais tarde ele comentou com Myrtis, a proprietária da Casa de Afrodite, na Rua das
Lanternas Vermelhas, que a feitiçaria, embora sendo uma habilidade útil e repleta de prazeres
estéticos para a contemplação do filósofo, não punha feijão na mesa.
Observação curiosa, pensou Myrtis, guardando o peso de ouro que Lythande lhe
ofertara em consideração a um antigo segredo entre eles. Estranho que Lythande falasse de
feijões na mesa quando ninguém, exceto ela, jamais vira uma só porção de alimento ou gota
de bebida passar pelos lábios do mago desde que a Estrela Azul adornava aquela testa alta e
estreita. Nem mulher alguma no bairro pudera jamais se gabar de que um grande mago lhe
havia retribuído em moedas os seus favores, ou fora capaz de imaginar como este mago se
comportava na situação em que todos os homens, reduzidos a carne e osso, tornam-se iguais.
Talvez Myrtis tivesse contado se pudesse; algumas das suas meninas assim o pensava
quando, como acontecia às vezes, Lythande vinha à Casa de Afrodite e se fechava durante um
longo tempo com a proprietária; até mesmo, em raros intervalos, a noite toda. Dizia-se que a
Casa de Afrodite fora um presente do mago para Myrtis, após uma famosa aventura sobre a
qual ainda se cochichava no bazar, envolvendo um feiticeiro do mal, dois comerciantes de
cavalos, um chefe de caravana e um ou outro desordeiro que se orgulhava de jamais ter pago
em ouro por nenhuma mulher e que se divertia enganando uma mulher trabalhadora e honesta.
Nenhum deles - ou o que sobrara deles - tornou a aparecer em Santuário, e Myrtis se
vangloriava de não mais precisar ganhar a vida com o suor do seu rosto, ou receber homens.
Ao contrário, arrogava-se o privilégio concedido à caftina de ter uma cama só para si.
Entretanto, e as meninas assim pensavam também, um mago da estatura de Lythande
poderia ter exigido as mulheres mais belas, de Santuário às montanhas para além de Ilsig; não
apenas as cortesãs, mas princesas, fidalgas e sacerdotisas estariam ao seu dispor. Myrtis, sem
dúvida, fora muito bonita quando jovem e se vangloriava bastante dos príncipes, feiticeiros e
viajantes que haviam pago regiamente pelo seu amor. Ela ainda era bonita (e, é claro, havia
quem dissesse que Lythande não lhe pagava, ao contrário, Myrtis é quem entregava ao mago
grandes somas para manter com mágicas potentes a sua beleza ainda na idade madura), mas
os seus cabelos estavam grisalhos e ela não se preocupava mais em tingi-los com hena ou
banhos de ouro de Tyrisis de além-mar.
Mas se Myrtis não era a mulher que sabia como Lythande se portava na mais
elementar das situações, então não havia mulher em Santuário que pudesse dizer alguma
coisa. Falava-se também que Lythande evocava os demônios femininos do Deserto Cinzento
para copularem em luxúria, e certamente não era o primeiro nem o último mago de quem se
podia dizer isto.
Esta noite, porém, Lythande não estava em busca de comida ou bebida, muito menos
das delícias dos divertimentos amorosos; ainda que fosse um assíduo freqüentador de
tavernas, ninguém jamais vira uma gota de cerveja, hidromel ou bebida forte passar entre os
seus lábios. Lythande caminhava pelos fundos da praça do mercado, contornando o antigo
muro ao redor do palácio do governador, procurando proteger-se na escuridão, a despeito dos
assaltantes e dos ladrões: era esta preferência pelos cantos sombrios que fazia o povo da
cidade dizer que o mago aparecia e sumia no ar.
Sua figura era alta e esguia, de uma magreza quase descarnada; a tatuagem azul da
estrela dos adeptos da magia encimando as sobrancelhas finas e arqueadas; no corpo, o manto
longo com capuz que se diluía nas sombras. O rosto escanhoado, ou imberbe - ninguém que
ainda estivesse vivo para lembrar se aproximara o bastante para saber se isto era a
extravagância de um efeminado ou uma anomalia. Os cabelos sob o capuz eram longos e
fartos como os de uma mulher, porém grisalhos como nenhuma delas nesta cidade de
meretrizes se permitiria usar.
A passos largos, caminhando rapidamente ao longo do muro, oculto pelas sombras,
Lythande entrou por uma porta aberta, por sobre a qual haviam pregado a sandália de Thufir,
o deus dos peregrinos, para dar sorte; porém seus passos eram tão suaves e o seu manto de
mago diluía-se tão bem na escuridão, que as testemunhas mais tarde jurariam confiantes ter
visto Lythande surgir do nada protegido por feitiçarias ou por uma capa invisível.
Ao redor do fogo da lareira, um grupo de homens batia suas canecas ruidosamente ao
som de uma canção etílica dedilhada num pequeno e surrado alaúde por um jovem vestido
com trapos de afetada elegância, resultado das suas aventuras na estrada. Lythande sabia que
o instrumento era do taverneiro e que ele o emprestava a quem lhe pedisse. O rapaz estava
sentado preguiçosamente, com as pernas cruzadas, e quando a cantiga barulhenta terminou,
emendou logo outra, uma suave melodia de amor de outras terras e outras épocas. Lythande a
conhecia de um tempo mais distante do que tinha memória, e naqueles dias a maga tinha outro
nome e pouco sabia de feitiçarias. Quando a canção chegou ao fim, Lythande saiu das
sombras, visível, e o clarão do fogo fez cintilar a Estrela Azul brilhando na fronte altiva.
Houve um murmúrio pelo salão, mas todos estavam acostumados com as idas e vindas
de Lythande. O jovem ergueu os olhos surpreendentemente azuis sob os cabelos escuros
caindo na testa em elaborados anéis. Sua figura era ágil e esguia, e Lythande observou o
florete ao seu lado, que parecia a arma de um competente espadachim, e o amuleto em forma
de uma serpente enrascada em torno de si mesma no pescoço. O jovem perguntou:
— Quem é você, que surge e desaparece assim no ar?
— Alguém que o cumprimenta pela sua mestria. - Lythande atirou uma moeda para o
ajudante do taverneiro. - Bebe?
— Um menestrel jamais recusa tal convite. Cantar é um ofício que dá sede. - Mas ao
lhe trazerem a bebida, ele estranhou: - Então não vai beber comigo?
— Nenhum homem jamais viu Lythande comer ou beber - murmurou um dos homens
do círculo que se fizera em volta deles.
— Ora, pois considero isso falta de cortesia - gritou o jovem menestrel. - Beber entre
amigos é uma coisa, mas não sou um criado para cantar em troca de pagamento, ou aceitar
uma bebida que não me seja ofertada por um gesto de amizade!
Lythande encolheu os ombros e a estrela começou a tremeluzir, emitindo uma luz
azulada. Os espectadores afastaram-se devagar, pois quando um feiticeiro com a Estrela Azul
se irritava, o melhor a fazer era sair de perto. O menestrel deixou de lado o alaúde para que
este não o atrapalhasse se fosse preciso levantar rápido. Lythande percebeu, pela lentidão de
seus movimentos, que ele já havia bebido demais com os companheiros que acabara de
conhecer por acaso. Mas a mão do menestrel não se dirigiu ao punho da espada, fechando-se
com força em torno do amuleto em forma de serpente.
— Você é diferente de todos os homens que conheço - disse ele com voz suave;
Lythande, sentindo intimamente aquela ligeira vibração que alertava aos magos estarem
diante de um feitiço, rapidamente imaginou que o amuleto era um daqueles que só protegiam
o seu dono se este pronunciasse algumas verdades - geralmente umas três ou cinco - acerca do
seu atacante ou inimigo.
— É verdade - disse Lythande, cauteloso, porém divertindo-se com isso. - Nem me
pareço com homem algum que você venha a conhecer enquanto viver, menestrel.
O rapaz percebeu, por detrás do brilho irritado da estrela, um ligeiro arquear de gentil
ironia nos lábios de Lythande. E, largando o amuleto, falou:
— Não lhe desejo nada de mal, e você não é meu inimigo. Estas são palavras
verdadeiras também, não é mesmo, feiticeiro? Então não se fala mais nisso. Mas, embora você
seja diferente, não é o único mago que eu vi usando uma Estrela Azul na testa em Santuário.
A estrela cintilava agora com fúria, mas não pelo menestrel. Ambos sabiam disso. O
grupo ao redor havia descoberto misteriosamente ter mais o que fazer. O menestrel fitou os
bancos vazios.
— Parece que terei que procurar outro lugar onde possa comer em troca de algumas
cantigas.
— Não tive intenção de ofendê-lo ao recusar beber com você - falou Lythande. - Os
votos de um mago não são assim tão facilmente desprezados como um alaúde. Entretanto,
gostaria de convidá-lo a comer e beber à vontade, com toda a honra, e, em troca, pediria o
serviço de um amigo. Posso?
— Esse é o costume na minha terra. Cappen Varra lhe agradece, mago.
— Rapaz! Sirva o que você tiver de melhor ao meu convidado, e tudo que ele
conseguir beber esta noite!
— Diante de um convite tão liberal, não reclamarei do serviço — falou Cappen Varra,
atacando os pratos fumegantes que lhe traziam. Enquanto ele comia, Lythande tirou de dentro
das dobras do manto uma bolsinha contendo uma porção de ervas de cheiro adocicado, en-
rolou-as numa folha cinza-azulada e acendeu-a com o anel. Aspirou a fumaça numa nuvem
cinza e doce.
— Quanto ao préstimo, não é nada assim tão grande. Diga-me tudo que sabe sobre
esse outro feiticeiro que usa a Estrela Azul. Não conheço ninguém da minha ordem ao sul de
Azehur, e quero estar certo de que não foi a mim que você viu, ou ao meu espectro.
Cappen chupou o tutano de um osso e limpou os dedos cuidadosamente na toalha da
bandeja que abrigava a travessa de carnes. Deu uma mordida num gengibre antes de
responder.
— Não era você, mago, nem o seu fantasma ou o seu duplo; o que eu vi tinha os
ombros mais musculosos, e não usava espada, apenas duas adagas cingidas de cada lado nos
quadris. A barba preta; e na mão esquerda faltavam três dedos.
— Ils dos Mil Olhos! Rabben, o Meia-Mão, aqui em Santuário! Onde o viu,
menestrel?
— Atravessando a praça do mercado; mas não o vi comprar nada. E na Rua das
Lanternas Vermelhas, conversando com uma mulher. Qual o serviço que devo lhe prestar
mago?
— Você já prestou.
Lythande deu algumas moedas de prata ao taverneiro - tantas que o mal-humorado
homem despediu-se dele desejando que o manto de Shalpa o protegesse – e colocou uma
outra moeda, desta vez de ouro, ao lado do alaúde emprestado.
— Retome a sua harpa; isto aqui não é digno da sua voz.
Mas quando o menestrel levantou a cabeça para agradecer, o mago já havia
desaparecido nas sombras. Guardando o ouro, perguntou:
— Como ele soube? E como foi que saiu?
— Shalpa, o veloz, é quem sabe – falou o ajudante. - Saiu voando pelo buraco da
chaminé, pelo que posso saber! Aquele não precisa do manto escuro de Shalpa para protegê-
lo, ele tem o seu. Pagou sua bebida, meu bom senhor. O que vai querer?
E Cappen Varra continuou a beber até ficar muito bêbado, pois esta era a coisa mais
sábia a fazer quando alguém se envolvia inadvertidamente nos assuntos particulares de um
mago.

Lá fora, na rua, Lythande parou para pensar. Rabben, o Meia-Mão, não era seu amigo;
entretanto, não havia razão para que a sua presença em Santuário tivesse alguma coisa a ver
com ele, ou com vinganças pessoais. Se se tratasse de assuntos relacionados à Ordem da
Estrela Azul, se Lythande devesse ajudar Rabben, ou se este tivesse sido enviado para reunir
todos os membros da Ordem, a estrela que ambos usavam teria avisado.

Não fazia mal algum, entretanto, ter certeza disso. Caminhando rapidamente, o mago
alcançara uma fieira de velhos estábulos atrás do palácio do governador. O lugar era
silencioso e retirado para a magia. Lythande entrou por uma das vielas laterais, erguendo a
capa de feiticeiro até não haver nenhuma luz, recolhendo-se lentamente no silêncio cada vez
mais profundo até não existir mais nada - nada em lugar algum do universo, além da luz da
estrela azul brilhando sem parar na sua frente. Lythande lembrou-se de como ela fora
colocada ali, e de quanto lhe custara – o preço do poder pago por um adepto.
A incandescência azulada concentrou-se, explodindo em desenhos multicores,
pulsando e reluzindo, até que Lythande ficou dentro da luz; e ali, no Lugar Que Não E,
sentado num trono aparentemente entalhado numa safira, estava o Mestre da Estrela.
—Saudações, membro da estrela, nascido na estrela, shyryu. — As palavras afetuosas
poderiam significar amigo, companheiro, irmão, irmã, amado, igual, peregrino; o sentido
literal era "o que compartilha da luz da estrela". O que o traz de tão longe à Casa dos
Peregrinos esta noite?
—A necessidade de saber, irmão da estrela. Você mandou alguém me procurar em
Santuário?
—Não, shyryu. Está tudo bem no Templo dos Irmãos da Estrela; você ainda não foi
chamado; a hora ainda não chegou.
Os adeptos da Estrela Azul sabem; é um dos preços do poder. Quando o mundo
acabar, quando todas as obras da humanidade e dos mortais estiverem realizadas, o último a
sucumbir ao Caos será o Templo da Estrela; e então, no Lugar Que Não É, o Mestre da
Estrela convocará os Adeptos Peregrinos, dos cantos mais longínquos do mundo, para lutarem
com toda a sua magia contra o Caos; mas, até então, eles estarão livres para fortalecer da
melhor maneira possível os seus poderes. O Mestre da Estrela repetiu tranqüilo:
— A hora ainda não chegou. Você está livre para caminhar pelo mundo à vontade.
O brilho azulado desapareceu e Lythande continuava de pé, tremendo. Rabben não
fora enviado para a convocação final. Entretanto, o fim e o Caos poderiam bem estar
próximos para Lythande, antes mesmo da hora marcada, se Rabben, o Meia-Mão, assim o
quisesse.
Foi uma prova de poder justa, ordenada pelos nossos mestres. Rabben não deve
guardar rancor de mim. . . A presença de Rabben em Santuário não teria que ter
necessariamente alguma relação com Lythande. Ele poderia estar ali tratando de seus assuntos
legais - como se fosse possível dizer que alguma coisa de Rabben era legal; pois apenas no
derradeiro dia é que os Adeptos Peregrinos seriam conclamados a lutar do lado da Lei contra
o Caos. E Rabben não decidira fazer isto antes da hora.
Seria necessário ter cautela, e Lythande sabia que Rabben estava por perto. . .
Na direção sul e leste do palácio do governador, há um pequeno parque triangular, do
outro lado da Rua dos Templos. Durante o dia, as alamedas cobertas de cascalho e os
canteiros de arbustos ficavam por conta dos pregadores e sacerdotes que não se satisfazem
apenas com as adorações e as ofertas; à noite, o lugar é o refúgio das mulheres que adoram
apenas Ela, a deusa da bolsa repleta e do ventre vazio. E por ambos os motivos, o local é
chamado, ironicamente, Promessa Celestial; em Santuário, como em qualquer outro lugar,
sabe-se muito bem que os que prometem nem sempre cumprem.
Lythande, que não tinha hábito de freqüentar mulheres ou sacerdotes, não costumava
andar por ali. O parque parecia deserto. Os ventos funestos haviam começado a soprar,
açoitando as moitas e os arbustos, moldando-os em formas de estranhas bestas em atitudes
anormais, e gemendo misteriosamente ao redor dos muros e beirais dos templos do outro lado
da rua, o vento que em Santuário se dizia serem os gemidos de Azyuna no leito de Vashanka.
Lythande ia ligeiro, contornando a escuridão do caminho. E então o grito de uma mulher cor-
tou o ar.
Das sombras em que se ocultava, Lythande pôde ver a frágil silhueta de uma jovem
num vestido rasgado e coberto de remendos; estava descalça, e a orelha, de onde fora
arrancado o brinco, sangrava. Ela se debatia, tentando se livrar da garra de ferro de um
homem grande e corpulento de barba preta, e a primeira coisa que Lythande viu foi a mão
apertando o pulso magro e ossudo da menina, arrastando-a; faltavam dois dedos, e um terceiro
fora cortado na altura da primeira junta. Só então - quando já não era mais necessário - foi que
Lythande viu a estrela azul no meio das sobrancelhas negras e eriçadas, os olhos felinos de
Rabben, o Meia-Mão!
Havia muito que Lythande o conhecia do Templo da Estrela. Já naquela época,
Rabben era um homem corrupto, conhecido por sua luxúria. Lythande não entendia por que
os mestres não lhe exigiam a renúncia a este tipo de vida como o preço do seu poder. Os
lábios de Lythande crisparam-se numa expressão de desagrado; a devassidão de Rabben era
tão famosa, que se ele renunciasse a ela, todos ficariam conhecendo o segredo do seu poder.
Os poderes de um Adepto da Estrela Azul dependiam de um segredo. Assim como na
velha lenda do gigante que guardava o seu coração num lugar secreto fora do seu corpo, e
com ele a sua imortalidade, o adepto da estrela azul descarregava toda a sua força psíquica
num só segredo; e aquele que o descobrisse adquiriria todo o seu poder. Portanto, o segredo
de Rabben deveria ser outro. . . Lythande não especulou.
A menina gritava de dar pena, enquanto Rabben a sacudia pelo pulso. Quando a estrela
do troncudo mago começou a brilhar, ela levou a mão ainda livre aos olhos para protegê-los.
Sem ter realmente a intenção de intervir, Lythande saiu das sombras, e a voz cheia que fizera
os aprendizes no pátio externo da Estrela Azul lhe chamarem "menestrel", em vez de "mago",
soou:
— Por Shipri, a Grande Mãe, solte essa mulher!
Rabben virou-se:
— Pelo noningentésimo nonagésimo nono olho de Ils! Lythande!
— Não há mulheres suficientes na Rua das Lanternas Vermelhas, para que você ainda
precise maltratar uma menina na Rua dos Templos? - Pois Lythande estava vendo como ela
era jovem, os braços finos, as pernas e os tornozelos infantis, os seios ainda não totalmente
formados por debaixo da túnica suja e rasgada.
Rabben voltou-se para Lythande, com um sorriso de desprezo:
— Sempre tão cheio de escrúpulos, não é, shyryu? Nenhuma mulher anda por aqui se
não estiver à venda. Quer levá-la para você? Cansou-se da sua gorda madame da Casa de
Afrodite?
— Você não deve pronunciar o seu nome, shyryu!
— Tanto melindre pela honra de uma prostituta?
Lythande ignorou a observação:
—Largue a menina, ou aceite o meu desafio.
A estrela de Rabben faiscava; ele jogou a menina para um lado. Ela caiu no chão sem
forças, e ali ficou imóvel.
— Ela ficará aí até terminarmos. Pensou que ela poderia fugir enquanto lutássemos?
Pensando bem, nunca o vi com uma mulher, Lythande; é este o seu segredo, as mulheres não
lhe interessam?
Lythande mantinha a sua expressão inalterada; mas em hipótese alguma podia permitir
que Rabben fosse por aquele caminho.
— Você pode copular como um animal pelas ruas de Santuário, Rabben, eu não. Vai
soltá-la, ou prefere lutar?
— Talvez eu devesse entregá-la a você. Isto é novidade, Lythande brigando nas ruas
por uma mulher! Como vê, conheço muito bem os seus hábitos Lythande!
Maldição de Vashanka! Agora devo mesmo lutar pela menina!
O espadim de Lythande desembainhou-se como que por vontade própria, golpeando
Rabben.

— Há! Você pensa que Rabben resolve rixas de rua com uma espada como qualquer
mercenário?
A ponta da arma de Lythande explodiu com o brilho da estrela, transformando-se
numa serpente luminosa, retorcendo-se sobre si mesma para galgar o punho, as presas
destilando veneno na tentativa de se enrolar na mão do mago. A estrela de Lythande cintilou.
O espadim voltou a ser metal, porém contorcido e inútil, como a serpente que fora, retornando
à bainha. Enraivecido, o mago, com um gesto brusco, livrou-se do pedaço de metal entortado,
cuspindo uma chuva de fogo na direção de Rabben. Rapidamente, o corpulento adepto cobriu-
se com uma névoa, e o fogo extinguiu-se. Fora do plano consciente, Lythande percebia que
uma multidão se formava; não se tinham duas oportunidades na vida de assistir dois adeptos
da Estrela Azul lutando nas ruas de Santuário com as armas da feitiçaria. O brilho das
estrelas, resplendendo na testa dos magos, dardejava relâmpagos pela praça.
Sobre um vento uivante surgiam pequenas tochas vorazes que vibravam açoitando
Lythande; elas tocavam a figura altiva do mago e desapareciam. Então, um violento
redemoinho sacudiu as árvores, desfolhando os galhos, e atirou Rabben de joelhos ao chão.
Lythande estava aborrecido; isto precisava acabar logo. Nenhum dos atônitos espectadores na
multidão soube dizer depois o que aconteceu, mas Rabben inclinou-se devagar, bem devagar,
forçado centímetro a centímetro de joelhos até ficar de quatro, emborcado, pressionando e
esfregando o rosto no pó da rua mais e mais, balançando-se para frente e para trás,
comprimindo-se cada vez mais contra a terra. . .
Lythande virou-se e levantou a menina. Ela olhou espantada, sem acreditar, o
corpulento mago esfregando a barba negra energicamente no chão.
— O que você. . .
— Não tem importância. . . vamos sair daqui. O encanto não vai mantê-lo assim por
muito tempo, e quando ele despertar, vai ficar muito zangado. — Um tom de zombaria meio
indiferente soou na voz de Lythande, e a menina pôde também imagina Rabben de barba,
olhos e estrela azul coberto de pó e sujeira. . .
Ela saiu correndo na esteira do manto do mago; quando estavam bem longe da
Promessa Celestial, Lythande parou tão de repente que a menina tropeçou.
— Quem é você, garota?
— Meu nome é Bercy. E o seu?
— Não se revela levianamente o nome de um mago. Em Santuário me chamam de
Lythande. - Olhando a menina, ele notou, com angústia, que, sob o desalinho e a sujeira, ela
era bonita e muito jovem.
— Pode ir, Bercy. Ele não a incomodará mais; eu o derrotei justamente.
Ela se debruçou no ombro de Lythande:
— Não me mande embora! — implorou agarrada nele, os olhos cheios de adoração.
Lythande olhou-a com expressão severa.
Era de se prever, é claro. Bercy acreditara — e quem em Santuário não o teria feito? -
que o duelo fora para disputá-la, e estava pronta para se entregar ao vencedor. Lythande fez
um gesto de protesto:
— Não. . .
A jovem contraiu os olhos com pena:
— Então é como Rabben falou. . . O seu segredo é que foi privado da masculinidade? -
mas por detrás da comiseração havia um leve ar de quem estava se divertindo com isto... que
petisco para um mexerico! Um prato e tanto para a Rua das Mulheres.
— Silêncio! – O olhar de Lythande era imperativo. — Venha.
Ela o seguiu ao longo das vielas sinuosas que levavam à Rua das Lanternas
Vermelhas. Lythande caminhava a passos largos, confiante agora, em frente à Casa das
Sereias, onde se dizia serem os prazeres tão exóticos quanto sugeria o nome; diante da Casa
dos Chicotes, evitada por todos, exceto aqueles que se recusavam a procurar outro lugar; e,
finalmente, debaixo do rosto da Dama Verde, como ela era adorada em regiões ainda mais
longínquas que Ranke, a Casa de Afrodite.
Bercy olhou ao redor, os olhos arregalados, examinando as pilastras do vestíbulo, o
brilho de uma centena de lanternas, as mulheres requintadamente vestidas, deitadas em
almofadas à espera de quem as solicitasse. Estavam muito bonitas e cobertas de jóias - e
Lythande desconfiou que o olhar da esfarrapada Bercy era de inveja; ela provavelmente já se
vendera nos mercados por algumas moedas ou uma fôrma de pão, desde que se vira com
idade suficiente para isso. De algum modo, entretanto, como as flores que cobrem o monte de
esterco, ela conservara uma beleza delicadamente fresca, branca e dourada como uma flor.
Mesmo aos trapos e quase morrendo de fome, ela comoveu o coração de Lythande.
— Bercy, você comeu hoje?
— Não, mestre.
Lythande chamou o imenso eunuco Jiro, cuja tarefa era conduzir os fregueses
privilegiados aos quartos das mulheres que eles escolhiam, além de atirar na rua os bêbados e
os que passavam da conta. Ele se aproximou — com uma barriga enorme, nu exceto por uma
tanga reduzida e uma dúzia de argolas penduradas na orelha. Fora um dia amante de uma
vendedora de brincos que o usava como mostruário.
— Em que podemos servir o mago Lythande?
As mulheres reclinadas nos divas e nas almofadas se entreolhavam surpresas e aflitas,
e Lythande quase podia ouvir o que pensavam:
Nenhuma de nós conseguiu atrair ou seduzir o grande mago, e esta prostituta de rua
maltrapilha o conquistou? Lythande sabia que, sendo mulheres, elas podiam ver a límpida
beleza que brilhava por debaixo daqueles trapos.
— Madame Myrtis está disponível, Jiro?
— Está dormindo, grande feiticeiro, mas deixou ordens para ser acordada a qualquer
hora, tratando-se de você. Isso. . . - não há ninguém no mundo tão arrogante quanto o chefe
dos eunucos de um bordel elegante - é seu, Lythande, ou é um presente para a minha
madame?
— Ambos, quem sabe. Dê-lhe o que comer e arranje-lhe um lugar para passar a noite.
— E um banho, não é, mago? Ela em pulgas suficientes para infestar todo um chão de
almofadas!
— Um banho, sem duvida, e uma mulher para lhe esfregar no corpo os óleos e as
essências - completou Lythande -, e algo a que se possa chamar de vestuário completo.
— Pode deixar isso comigo - respondeu Jiro efusivo, e Bercy olhou assustada para
Lythande, mas obedeceu quando o mago fez-lhe um gesto para que se fosse. Quando Jiro se
afastou com ela, Lythande viu Myrtis de pé na porta; uma mulher pesadona, não mais jovem,
porém com a beleza congelada pela magia. Através dos seus traços tão bem enfeitiçados, o
olhar era suave e acolhedor enquanto ela sorria para Lythande.
— Meu querido, não esperava vê-lo aqui. E sua? - Ela fez um movimento com a
cabeça em direção à porta por onde Jiro conduzira a assustada Bercy. — Provavelmente vai
fugir, sabe, assim que você tirar os olhos de cima dela.
— Gostaria de pensar o mesmo, Myrtis. Temo, porém, não ter essa sorte.
— E melhor você me contar tudo - observou Myrtis, ouvindo então o relato breve e
sucinto do que ocorrera.
— E se você rir, Myrtis, retiro o meu encanto e a deixo com seus cabelos grisalhos e
as rugas, para a chacota de todos em Santuário!
Myrtis, porém, conhecia Lythande há muito tempo para levar a sério a ameaça:
— Então a virgem que você salvou está enlouquecida de desejo pelo amor de
Lythande! - Ela riu. - Como uma antiga balada, realmente!
— Mas o que vou faze—r, Myrtis? Pelos mamilos de Shipri, a Grande Mãe, é um
problema!
— Confie nela, e conte-lhe por que ela não pode ter o seu amor - aconselhou Myrtis.
Lythande franziu a cara:
— Você conhece o meu Segredo porque não posso evitar isso; você me conheceu
antes de eu me tornar um mago, ou usar a Estrela Azul. . .
— E antes de eu ser uma prostituta — concordou Myrtis.
— Mas se eu fizer essa menina se sentir uma tola por me amar, ela vai me odiar na
mesma intensidade; e não posso ter confiança em ninguém a quem eu não possa confiar
minha vida e meu poder. Tudo o que tenho é seu, Myrtis, devido a esse passado que
compartilhamos. E isso inclui o meu poder, se algum dia você precisar dele. Mas não posso
confiá-lo a essa menina.
— Mesmo assim ela lhe deve algo, por salvá-la das mãos de Rabben.
— Pensarei nisso; mas agora se apresse e me traga o que comer, estou com fome e
sede.
Conduzido a um quarto particular, Lythande comeu e bebeu servida pelas mãos de
Myrtis. E ela comentou:
— Jamais faria um voto como o seu: de nunca comer e beber diante de um homem!
— Se buscasse alcançar o poder de um mago, você o guardaria muito bem - disse
Lythande. - Raras vezes sinto-me tentado a quebrá-lo agora; temo apenas que isso aconteça
inadvertidamente; não posso beber numa taverna para não me arriscar a que, entre as mulhe-
res, esteja um desses estranhos homens que se divertem vestindo roupas femininas; mesmo
aqui, não devo beber nem comer junto com as suas mulheres ainda por esse motivo. Todo o
poder depende dos votos e do segredo.
Então, não posso ajudá-lo - falou Myrtis -, mas você não está restrito a lhe dizer
somente a verdade; diga-lhe que jurou viver sem mulheres.
— Talvez eu faça isso — falou Lythande, terminando de comer, carrancudo.
Mais tarde, trouxeram Bercy, de olhos arregalados, fascinada pelas finas vestes e os
cabelos recentemente lavados, caindo em anéis delicados ao redor da face rosada, e pela suave
essência dos óleos do banho e dos perfumes que a envolvia.
— As meninas aqui usam umas roupas muito bonitas, e uma delas me disse que
podem comer duas vezes por dia se quiserem! Sou bastante bonita, não acha, para madame
Myrtis me aceitar?
— Se é isso que você quer. Você é mais do que bonita.
— Eu preferia pertencer a você, mago. — Bercy falou sem hesitar, pendurando-se
novamente em Lythande, agarrando e puxando com as mãos o rosto magro em direção ao seu.
Lythande, que raramente tocava um ser vivo, controlou-se tentando não demonstrar o
seu constrangimento:
— Bercy, minha criança, isso é apenas uma fantasia. Vai passar.
— Não. — Ela começou a chorar. — Eu o amo, só quero você!
E então, inequivocamente, o mago sentiu perpassar pelos seus nervos aquela ligeira
vibração, o aviso que lhe dizia: está se fazendo uso de magia. Não contra Lythande. Esta
poderia ter sido neutralizada. Mas em algum lugar dentro daquela sala.
Aqui, na Casa de Afrodite? A Myrtis, Lythande sabia, podia-se confiar a vida, a
reputação, a fortuna, o próprio poder mágico da Estrela Azul; fora antes testada. Tivesse ela
mudado a ponto de se tornar traiçoeira, isto se evidenciaria na sua aura quando Lythande se
aproximasse.
Sobrou apenas a menina, que se pendurava choramingando:
— Morrerei se você não me amar! Morrerei! Diga-me que não é verdade, Lythande,
que você não pode me amar! Diga-me que é uma mentira perversa o fato de que os magos são
castrados, Incapazes de amar uma mulher. . .
—Sem dúvida, isso é uma mentira perversa - concordou Lythande, sério. - Garanto-lhe
solenemente que jamais fui castrado.
Os nervos de Lythande, porém, formigavam à medida que as palavras iam sendo
pronunciadas. Os magos podem mentir, e a maioria deles usava esse recurso. Lythande se
utilizaria dele tão prontamente quanto qualquer outro, por uma boa causa. Mas a lei da Estrela
Azul era esta: ao ser questionado diretamente sobre algo relacionado da mesma forma com o
Segredo, o adepto poderia não mentir abertamente. Bercy, sem saber disso, estava a apenas
uma pergunta daquela fatal que ocultava o Segredo.
Com um esforço supremo, a magia de Lythande alterou o próprio tecido do Tempo; a
menina ficou imóvel, sem perceber lapso algum, enquanto Lythande se afastava o suficiente
para ler a sua aura. Sim, nos traços daquele campo vibratório via-se a sombra da estrela azul.
Rabben subjugando a sua vontade.
Rabben. Rabben, o Meia-Mão, que desejara a menina, tramara e encenara tudo,
inclusive o encontro em que ela deveria ser salva; enfeitiçara-a para atrair e enfeitiçar
Lythande.
Os mandamentos da Estrela Azul proibiam aos seus adeptos se matarem uns aos
outros; todos seriam necessários para lutarem lado a lado, no último dia, contra o Caos.
Entretanto, se um adepto conseguisse se apossar do segredo de outro. . . então este, tendo se
tornado impotente, era desnecessário e podia ser morto.
O que se podia fazer agora? Matar a menina? Rabben consideraria isto também uma
resposta; Bercy fora tão bem encantada que se tornara irresistível a qualquer homem; se
Lythande a mandasse embora sem a tocar, Rabben saberia que era aí que estava o seu segredo
e não descansaria enquanto não o descobrisse. Pois se Lythande era invulnerável aos encantos
sexuais que faziam Bercy irresistível, então ele era um eunuco, homossexual, ou. . . suando
frio, Lythande não ousava ir mais além. O Segredo estava seguro apenas se não fosse jamais
questionado. Não podia ser lido na aura, mas uma única pergunta, e estava tudo terminado.
Eu devia matá-la, pensou Lythande. Pois agora estou lutando não só pela minha
magia, mas pelo meu segredo e pela minha vida. Certamente, desaparecendo o meu poder,
Rabben não perderia tempo em acabar comigo, para se vingar da perda de metade da mão.
A menina continuava imóvel, enfeitiçada. Seria tão fácil matá-la! Lythande lembrou-
se, então, de um antigo conto de fadas que poderia usar para resguardar o Segredo da Estrela.
A luz bruxuleou quando o Tempo retornou ao aposento. Bercy continuava debruçada e
chorando, inconsciente do lapso; Lythande decidira o que fazer e a menina sentiu os seus
braços envolvendo-a, e os lábios do mago beijando os seus lábios atraentes.
— Você deve me amar, ou morrerei! - Bercy chorava.
— Você será minha - falou Lythande. O tom de voz neutro e suave era bastante
delicado. - Mas até mesmo um mago é vulnerável no amor, e devo me proteger. Um lugar
será preparado para nós, sem luzes ou ruídos, exceto aqueles que proporcionarei com a minha
magia; e você deve jurar que não vai tentar me ver ou tocar, a não ser através da luz mágica.
Você jura pela Grande Mãe, Bercy? Se você o fizer, eu a amarei como nenhuma outra mulher
foi amada antes.
Trêmula, ela murmurou:
— Juro.
E Lythande compadeceu-se dela, pois Rabben a usara sem piedade; a menina
consumia-se num amor insaciável e enfeitiçado pelo mago, totalmente dominada pela sua
paixão. Condoído, Lythande pensou: se tivesse apenas me amado, sem o encanto; eu poderia
ter amado. . .
Se eu pudesse lhe confiar o meu segredo! Mas ela é apenas um instrumento de
Rabben; o seu amor é obra dele, e não de sua vontade. . . e não é real. . . Portanto, tudo que
se passasse entre os dois naquele momento seria encenação para Rabben.
— Vou aprontar tudo para você com a minha magia.
Lythande saiu e pediu a Myrtis tudo de que precisava; a mulher desatou a rir, mas um
único olhar para o rosto desolado do mago deixou-a gelada. Ela conhecia Lythande desde
muito antes de a estrela ter sido colocada em meio àqueles olhos; e ela mantinha o segredo
por amor ao mago. Doía-lhe o coração ver alguém a quem amava dominado por tanto
sofrimento. Disse, portanto:
— Tudo será feito. Devo colocar alguma droga no vinho dela para debilitar a sua
vontade, permitindo que você possa mais facilmente lançar o seu encanto sobre ela?
A voz de Lythande soou com uma grande amargura:
— Rabben já cuidou disso, quando a enfeitiçou para me amar.
— Você aceitaria de outra forma? — perguntou Myrtis hesitante.
— Todos os deuses de Santuário; eles riem de mim! Grande Mãe ajude-me! Mas eu
aceitaria, se fosse de outra forma; eu poderia amá-la se ela não fosse instrumento de Rabben.
Quando ficou tudo pronto, Lythande entrou no quarto escuro. Não havia iluminação
alguma, exceto a luz da Estrela Azul. A menina estava deitada na cama, estendendo os braços
para o mago em exaltado abandono.
—Vem, vem, meu amor!
—Daqui a pouco - falou Lythande, sentando-se ao seu lado, e acariciando-lhe os
cabelos com uma delicadeza que nem mesmo Myrtis algum dia imaginara. - Vou cantar para
você uma canção de amor do meu longínquo povo.
Ela se contorceu num êxtase erótico:
— Tudo que você faz é bom para mim, meu amor, meu mago!
Lythande sentiu o desânimo do mais terrível desespero. Ela era linda, e estava
apaixonada. Recostava-se na cama feita para os dois, e nada os separava. O mago não estava
conseguindo resistir.
Lythande cantou, com a sua voz bonita e cheia; uma voz mais encantadora do que
qualquer feitiço:

Metade da noite já se apagou; a lua se recolhe,


E as estrelas empalidecem;
Relutante, o céu se entrega à manhã que surge.
E eu continuo só.

Lythande via lágrimas no rosto de Bercy.


Eu a amarei como nenhuma outra mulher já foi amada.

Entre a menina deitada na cama e a figura imóvel do mago quando o seu manto caiu
pesadamente no chão, um espectro se ergueu, a própria configuração de Lythande, alto e
esguio, os olhos brilhantes e a estrela na testa, o corpo branco e imaculado; era a forma
fantástica do mago, porém triunfante na sua virilidade, avançando para a mulher imóvel que o
esperava. Sua mente atordoada de excitação foi dominada, apreendida e enfeitiçada. O mago
lhe permitiu ver a imagem por um momento; ela não podia perceber a verdadeira figura de
Lythande por detrás; e, então, quando os olhos dela se fecharam em extática consciência da
mão que a tocava, Lythande passou de leve os dedos sobre suas pálpebras.
— Veja. . . o que lhe ordeno ver!
Ouça. . . o que lhe ordeno ouvir!
Sinta. . . o que lhe ordeno sentir, Bercy!
Ela estava totalmente entregue ao encanto do espectro. Imóvel, com o olhar
impassível, Lythande observou-a fechar os lábios no vazio e beijar uma boca invisível;
momento a momento, o mago sabia o que a tocava, o que a acariciava. Fora arrebatada pela
ilusão, que a transportava continuadas vezes ao êxtase, até o grito do abandono final. Apenas
para Lythande foi amargo este grito; pois não era para o mago e sim para o espectro que a
possuía.
Finalmente ela se reclinou inconsciente e satisfeita; e Lythande a observava
angustiado. Quando ela tornou a abrir os olhos, Lythande a olhou com tristeza.
Bercy estendeu lânguida os braços:
— E verdade, meu amado, você me amou como nenhuma outra mulher já foi amada.
Pela primeira e última vez, Lythande inclinou-se, pressionando-lhe os lábios num
longo e infinitamente suave beijo:
— Durma querida.
E quando ela adormeceu num sono extático e exausto, Lythande chorou.
Muito antes que Bercy acordasse o mago já estava vestido para viagem no quartinho
de Myrtis.
— O encanto se manterá. Ela irá depressa contar a Rabben. . . a história de Lythande,
o amante incomparável! Lythande, de incansável virilidade, que pode amar uma jovem à
exaustão!
A voz cheia do mago soava áspera de amargura.
— E bem antes que você retorne a Santuário, uma vez livre do encanto, ela o terá
esquecido com muitos outros amantes - concordou Myrtis. - E melhor e mais seguro assim.
— Você está certa. - Mas a voz de Lythande falseou. - Cuide dela, Myrtis. Seja boa
com ela.
— Eu juro, Lythande.

— Se apenas ela pudesse ter amado a mim - o mago hesitou, soluçando novamente.
Myrtis desviou o olhar, com pena, sem saber como confortar Lythande.
— Se ela pudesse ter me amado como eu sou, livre do encanto de Rabben! Amado
sem fingimentos! Temi, porém, não conseguir controlar o feitiço de Rabben. . . nem confiar
em que ela não me trairia sabendo. . .
Myrtis passou os braços roliços ao redor de Lythande, carinhosamente:
— Está arrependido?
A pergunta era ambígua. Poderia significar: "Lamenta não ter matado a menina?" ou
mesmo: "Arrepende-se do juramento que fez e do segredo que deve carregar até o último
dia?" Lythande escolheu a segunda opção.
— Arrependido? Como poderia? Lutarei junto com a minha ordem contra o Caos, um
dia; e ao lado de Rabben, se ele conseguir resistir tanto tempo sem ser assassinado. E isto
basta para justificar a minha existência e o meu segredo. Agora, porém, é preciso deixar
Santuário, e sabe-se lá quando o acaso me fará passar por aqui de novo. Dê-me um beijo de
adeus, minha irmã.
Myrtis ficou na ponta dos pés. Seus lábios encontraram os do mago.
— Até um dia, quando nos encontraremos novamente, Lythande. Que Ela o assista e
guarde para sempre. Adeus, meu amado, minha irmã.
Em seguida, Lythande cingiu sua espada, saindo silenciosamente e por caminhos
invisíveis da cidade de Santuário, ao alvorecer. Nem uma só vez olhou para trás.
INTRODUÇÃO A
O MAGO INCOMPETENTE

Quando tive a oportunidade de publicar a minha primeira antologia (Greyhaven, uma


série de contos apresentando os outros membros da minha extensa família que haviam se
tornado escritores, mais ou menos sob os meus auspícios e/ou seguindo o meu exemplo),
percebi que devia, é claro, incluir uma história minha, e como o editor pedia que os trabalhos
fossem inéditos, eu sabia que precisava escrever uma especialmente para ela.
O motivo de haver dois contos já publicados antes nesta antologia é simples: Robert
Cook falecera e não poderia escrever uma história nova, a não ser através de um médium da
Ouija - negociar um contrato para este tipo de trabalho ia ser muito complicado -, e o estado
de saúde de Randall Garrett não lhe permitia contribuir com o que quer que fosse. Portanto,
Robert e Randall foram representados por obras já publicadas, porém inéditas nos Estados
Unidos.
Foi então que compreendi que deveria simplesmente sentar-me e produzir um conto
(não me vejo como escritora desse gênero literário — minha tendência é pensar em termos de
oitenta mil palavras para cima. Se você tem uma boa idéia, por que desperdiçá-la em apenas
cinco mil?)
Lythande, porém, me perseguia desde o meu primeiro conto, e resolvi portanto
escrever mais uma de suas aventuras. Além disso, eu estava fascinada com a idéia de um
mago incompetente, e Rastafyre, com o seu "saco de pertences" que o gago realisticamente
chamava de "Sacola não, Sa-sa-cola", me pareceu divertido. Não costumo escrever coisas
engraçadas com tanta freqüência e não quis deixar escapar esta oportunidade.
O MAGO INCOMPETENTE

Por todo o reino dos Dois Sóis, desde o Grande Deserto Salgado, ao sul, às Montanhas
Geladas, ao norte, ninguém procura um mago mercenário a não ser que queira alguma coisa; e
isto geralmente significa aborrecimentos. O motivo nunca se repete, mas, seja lá o que for a
confusão é sempre inevitável.
Lythande, o Mago, olhou por debaixo do capuz do seu manto escuro e esvoaçante; e,
sob o pano, a estrela azul que proclamava ser Lythande um Adepto Peregrino começou a
cintilar, emitindo clarões azulados, enquanto a maga estudava o estrangeiro gordinho e
ofegante, imaginando que tipo de problema teria este cliente.
Da mesma forma que Lythande, o homenzinho vestia um manto de mago, do tipo
usado nas cidades beirando o Grande Deserto Salgado. Parecia um tanto intimidado quando
levantou os olhos para o outro, com toda a sua altura e a estrela cintilante. Lythande, com as
adagas gêmeas presas ao cinto, parecia um guerreiro, não um mago.
O homem gordo estava irrequieto e ofegante, e finalmente gaguejou:
— G-g-grande e nobre fe-fei-ticeiro, es-to-tou co-constrangido. . .
Lythande não o ajudou, mas baixou o olhar, em cortês atenção, para o ponto calvo na
cabeça daquele sujeitinho atarantado. O estrangeiro continuou gaguejando:
— Devo co-confessar-lhe que um de meus ri-ri-rivais ro-roubou minha va-va-
varinha má-má. . . - e explodiu num verdadeiro metralhar de gagueira, desistindo então da
"mágica" e continuando abruptamente: - Meus po-poderes não são su-su-su. . . bastante fortes
para re-re-cuperá-la. O que exige como pagamento, ó grande e nobre ma-ma-ma - ele engoliu,
conseguindo pronunciar um "feiticeiro".
Sob a estrela azul, as sobrancelhas brancas e arqueadas de Lythande ergueram-se
divertidas.
— É mesmo? Como pode acontencer isso? Não encantou a varinha o suficiente para
que ninguém pudesse tocá-la a não ser você?
O homenzinho fitava irrequieto, a fivela do cinto do seu manto de mago.
— Eu di-disse que era co-con-con. . . difícil de falar, ó grande e nobre ma-mago. Eu
tinha be-be-be. . .
— Em resumo - Lythande falou, interrompendo-o -, você estava bêbado. E não se sabe
como o encanto falhou. Bem, sabe quem a levou, e por quê?
— Roy...Roygan, o Orgulhoso - disse o homenzinho, acrescentando: - Ele quis se
vingar de m-m-mim porque me encontrou na ca-ca-ca...
— Na cama com a mulher dele? — perguntou Lythande, com impecável seriedade,
embora alguém que o conhecesse pudesse ter percebido nos cantos de seus lábios finos e
ascéticos um ligeiro vislumbre de que estava se divertindo. O mago gordinho balançou a
cabeça desconsolado, sem despregar os olhos dos sapatos.
Lythande falou finalmente, naquele tom de voz neutro e suave que lhe valera o nome
de menestrel antes mesmo que crescesse a sua reputação pelo sucesso de suas feitiçarias.
— Isso confirma um provérbio em que sempre acreditei e que diz que aqueles que
seguem a profissão da magia não devem ter esposa nem amante. Diga-me, ó poderoso mago e
o mais galante dos atletas de alcova, como o chamam?
O homenzinho aprumou-se até atingir o máximo de sua altura, chegando quase ao
ombro de Lythande, e declarou:
— Sou conhecido por toda Gandrin como Rastafyre, o Incom-com-com. . .
— Incompetente? — sugeriu Lythande, sério.
Ele ajeitou a boca com um olhar magoado e disse com sonora dignidade:
— Rastafyre, o Incomparável!
— Seria divertido saber como mereceu esse nome - disse Lythande, e os olhos por
debaixo do capuz de mago brilharam —, mas contar histórias engraçadas, embora seja um
passatempo interessante enquanto esperamos a batalha final entre a Lei e o Caos, não põe o
feijão na mesa. Então, você perdeu a sua varinha mágica para as artes rivais de Roygan, o
Orgulhoso, e deseja os meus serviços para recuperá-la. . .compreendi bem? '
Rastafyre balançou a cabeça e Lythande perguntou:
— Qual o pagamento que pensa oferecer-me em retribuição aos meus poderes
mágicos, d Rastafyre, o Incom. . . - Lythande hesitou um momento, finalizando com
suavidade: - Incomparável?
— Esta jóia — respondeu Rastafyre, mostrando um imenso e cintilante rubi que
reluzia em tons sangüíneos na estreita escuridão do vestíbulo.
Lythande indicou-lhe com um gesto que a guardasse:
— Se você ficar acenando com essas coisas aqui atrairá predadores diante dos quais
Roygan, o Orgulhoso, não passa de um gatinho. Eu não uso jóias, a não ser esta.
Lythande apontou rapidamente a estrela azul que brilhava com uma luz pálida no meio
da sua testa.
—Nem tenho amante, esposa ou namorada a quem possa presentear; prego apenas o
que pratico. Guarde as suas jóias para quem as aprecie - e com um gesto no ar fez surgir entre
os dedos longos e esguios três rubis, cada um deles superior em tonalidade e brilho ao que
estava na mão de Rastafyre. - Como vê, não preciso delas.
— Ofereci apenas o pagamento de costume para você não pensar que sou miserável -
falou Rastafyre, piscando os olhos surpreso e com uma leve cobiça para os rubis na mão de
Lythande. Eles brilharam por um momento e depois desapareceram. - Por acaso, talvez eu
tenha algo mais tentador.
O pequenino e atarantado mago virou-se, estalando os dedos, e entoou:
— Sa-Sa-Sacola!
Uma grande forma escura surgiu no ar, uma silhueta molenga, toda empelotada; caiu
aos seus pés desajeitada, transformando-se com um solavanco numa bolsa de veludo marrom,
com símbolos mágicos bordados em ouro e carmim.
— Suavemente! Suavemente, Sa-Sa-Sacola — repreendeu Rastafyre — ou quebrará os
meus tesouros e Lythande terá o direito de me chamar de Incom-com-competente!
— Sacola é mais competente do que você, ó Rastafyre. Por que censurar a sua fiel
criatura?
— Sacola não, Sa-Sa-Sacola — corrigiu Rastafyre —, pois eu sei que tenho tendência
a ga-ga, . não falar muito bem, então dei-lhe um cog-cog. . . um nome que eu soubesse que
ia conseguir dizer.
Desta vez, Lythande riu alto:
— Muito bem pensado, ó poderoso e incomparável mago!
Mas o riso apagou-se quando Rastafyre retirou dos escuros recessos da Sa-Sa-Sacola
um objeto de rara beleza.
Era um alaúde feito de madeiras nobres em escuros matizes, incrustado de turquesas e
madrepérolas, as cordas de prata polida; no corpo do instrumento, montada em pedras
preciosas, havia uma pálida estrela azul, como a que brilhava entre as sobrancelhas de
Lythande.
— Pelos olhos vermelhos de Keth-Ketha!
Lythande avultou de repente por sobre o pequeno mago, e a estrela azul começou a
cintilar com fúria; mas a voz continuou calma e impassível como sempre.
— Onde conseguiu isso, Rastafyre? Esse alaúde eu conheço; eu mesmo o construí para
alguém que amei um dia, e agora ela toca um alaúde das almas na corte da Luz. E os haveres
de um Adepto Peregrino não mudam de mãos assim tão facilmente como a varinha de Rasta-
fyre, o Incompetente!
Rastafyre baixou o rosto rechonchudo; incapaz de enfrentar o fulgor azulado da ira de
Lythande murmurou que isso era um segredo de comerciante.
— O que significa, suponho que você o roubou, justa e honestamente, do outro ladrão
- observou Lythande, e o brilho irado desapareceu tão rápido quanto surgira. — Bem, que
assim seja; você me oferece esse alaúde em troca da recuperação da sua varinha?
O mago alto esticou-se para pegar o instrumento, mas Rastafyre viu a cobiça nos olhos
do Adepto Peregrino e escondeu-o atrás de si.
— Primeiro, o serviço pelo qual eu o procurei - lembrou a Lythande.
Este pareceu crescer ainda mais, avultando por sobre Rastafyre como se ocupasse a
sala inteira. A voz do mago, embora não fosse alta, ressoava como um grande tambor:
— Desgraçado, incompetente, ousa regatear comigo o que é meu? Tolo, não lhe
pertence mais do que a mim; menos até, pois dele estas mãos tiraram a primeira melodia antes
que você aprendesse a azedar o leite das cabras no monte de estéreo onde foi parido! Com que
direito solicita de mim um serviço?
O homenzinho careca levantou o queixo e falou com firmeza!
— Todo mundo sabe que Lythande é um servo da L-L-lei e não do Caos, e nenhum
ma-mago preso a este mesmo juramento se reba-ba-baixaria a enganar um ho-homem
honesto. E, além disso, nobre Lythande, este instru-tru-tru. . . este alaúde foi mo-mo-
modificado depois que sa-sa-saiu de suas mãos. Veja!
Rastafyre dedilhou de leve um acorde e começou a tocar uma melodia suave e
melancólica. Lythande franziu as sobrancelhas e perguntou:
— O que você. . . ?
Rastafyre ordenou-lhe com um gesto que fizesse silêncio. Conforme as notas
ressoavam no ar, houve um ligeiro estremecer no vestíbulo, e de repente, na atmosfera densa,
uma mulher encontrava-se diante deles.
Era pequena e esguia, com os cabelos flutuantes e vestida com uma camisola da mais
fina seda tecida pelas aranhas das florestas de Noidhan. Seus olhos eram azuis sob as pestanas
escuras, num rosto encantador; mas a expressão era triste e de muito sofrimento. Ela falou,
numa linda voz modulada:
— Quem assim perturba o sonho dos encantados?
— Koira! - Gritou Lythande, e a voz neutra desta vez soou alta, palpitante de angústia.
-Koira, como. . . o que. . . ?
A mulher de cabelos louros moveu as mãos num gesto de quem está dominada por um
encantamento. Murmurou:
—Eu não sei. . . - e depois, como se acordasse de um sono profundo, esfregou os olhos
e exclamou: - Oh, pensei ter ouvido a voz de alguém que conheci outrora. . . Lythande é
você? Foi você que me encantou, por tê-lo abandonado por outro amor? O que você faria? Eu
era uma mulher. . .
— Silêncio - disse Lythande com voz abafada, e Rastafyre viu a boca do mago mover-
se como se ele estivesse sofrendo.
— Como vê - disse Rastafyre -, não é mais o alaúde que você conheceu.
O rosto da mulher desaparecia no ar, e a voz tensa de Lythande sussurrou:
— Para onde ela foi? Chame-a de volta para mim!
— Ela agora é escrava do alaúde encantado — falou Rastafyre, rindo satisfeito com o
que parecia um entusiasmo obsceno. - Eu poderia usá-la para o que quisesse. . . mas, para
aliviar a sua alma exigente, mago, eu lhe confesso que prefiro as minhas mulheres mais..- e
com as mãos desenhou no ar curvas fartas.- Portanto, tenho lhe pedido apenas, uma vez ou
outra, que cante ao som do alude...você não sabia disso, Lythande? Não foi você que a
encantou ali dentro, como ela disse?
Por debaixo do capuz, a cabeça de Lythande balançava negativamente, de um lado
para outro. Não se lhe podia ver o rosto, e Rastafyre ficou imaginando se ele, finalmente, seria
o primeiro a ver o misterioso Lythande chorar. Ninguém jamais vira o mago demonstrar a
mais leve emoção: jamais se soubera ter ele feito uma refeição ou bebido vinho em
companhia de alguém — talvez, era o que se acreditava, o mago não pudesse, embora a
maioria das pessoas achasse que era apenas um dos estranhos votos a que estava ligado um
Adepto Peregrino
Mas dentro do capuz, Lythande falou, devagar:
— E você me oferece esse alaúde em retribuição pelos meus serviços se eu lhe trouxer
de volta a sua varinha?
— Sim, ó nobre Lythande. Pois vejo que a da-dama enfeitiçada no alaúde é sua
conhecida de há muito tempo e que você gostaria de tê-la como escrava, concubina. . . o que
preferisse. E é isto, não apenas a mu-música do instrumento, que eu lhe ofereço. . . quando a
minha varinha voltar a me pertencer.
O fulgor da estrela azul cintilou por um momento, diminuindo em seguida para um
brilho passivo, e a voz de Lythande era novamente neutra e uniforme.
— Que assim seja. Por esse alaúde eu me comprometeria a recuperar as pérolas do
colar da Deusa-Peixe se ela as perdesse espalhadas pelo mar; mas tem certeza de que a sua
varinha está nas mãos de Roygan, o Orgulhoso, Rastafyre?
— Eu não te-te-tenho nenhum outro ini-ini. . . ninguém mais me odeia - falou
Rastafyre, e novamente a alegria contida brilhou por um momento.
— Você tem sorte, Incomp. . . - a hesitação e o leve sorriso - In-comparável. Bem, eu
lhe trarei de volta a varinha. . . e o alaúde será meu.
— O alaúde e... e a mulher - disse Rastafyre. - Mas só quan-quan-do a varinha estiver
novamente nas mi-minhas mãos.
— Se ela estiver com Roygan — disse Lythande —, não haverá grandes dificuldades
para um mago competente.
Rastafyre envolveu o instrumento numa grossa capa e enfiou-a de novo nas amplas
dobras da Sa-Sa-Sacola. E gesticulou desajeitadamente outro encantamento:
— Em nome de... — resmungou alguma coisa, depois franziu a cara.- Ela não me
obedece tão bem sem a minha va-va-varinha. - Novamente as mãos se retorceram num feitiço
simples — V-v-vá, desfaça-se, em nome de Indo-do-do... em nome de Indo-do...
A bolsa sacudiu-se um pouco e um cantinho desapareceu, mas o resto ficou suspenso
constrangedoramente no ar. Lythande conseguiu se controlar para não cair na gargalhada, mas
observou:
— Permita-me, ó Incomp...ó Incomparável - e com os dedos finos e ágeis lançou um
encantamento: - Em nome de Indovici, o Silencioso, eu lhe ordeno, Sacola...
— Sa-Sa-Sacola - corrigiu Rastafyre, e Lythande, torcendo os lábios, repetiu as
palavras mágicas:
—Em nome de Indovici, o Silencioso, Sa-Sa-Sacola, eu lhe ordeno, vá!
A bolsa foi desaparecendo lentamente, ficou piscando por um momento, ergueu-se
pesada no ar e antes de atingir o nível dos olhos sumiu.
— Realmente, com barganha ou sem barganha - falou Lythande - eu preciso recuperar
a sua varinha, ó Incompetente, para que o ofício de mago não se torne uma brincadeira em
mãos infantis do Grande Deserto Salgado às Montanhas Geladas!
Rastafyre dardejou um olhar feroz, mas preferiu não responder; virou-se com
espalhafato e saiu seguido de perto por uma pequena sombra marrom empelotada onde Sa-Sa-
Sacola teimosa recusava-se a ficar visível ou invisível. Lythande observou-o desaparecer de
vista; tirou então do seu manto de mago uma bolsinha, derramou uma pequena porção de
ervas e pensativamente enrolou-as apertadas num cilindro; estalou os dedos longos para
produzir uma centelha c inalou devagar o aroma da fumaça, deixando-a escapar aos poucos na
atmosfera densa do vestíbulo pelas narinas estreitas.
Roygan, o Orgulhoso, não deveria ser um desafio muito grande. Lythande o conhecia
há muito tempo; quando aquele mago ladrão surgira pela primeira vez na sua vida, Lythande
ainda era principiante em feitiçaria, e a sua vigilância ainda não fora testada; vários objetos
valiosos desapareceram da casa em que morava na época. Rastafyre teria sido um alvo tão
fácil que Lythande se espantava com o fato de Roygan não ter roubado Sa-Sa-Sacola, o capuz
e o manto de mago que ele vestia e quem sabe os dentes molares também; havia um velho
ditado em Gandrin: se Roygan, o Orgulhoso, apertar a sua mão, conte os dedos antes que ele
se vá.
Há um tempo Lythande havia perseguido Roygan por três cidades e através do Grande
Deserto Salgado; e quando ele foi encontrado na sua toca, Lythande recuperou a varinha, os
anéis e a adaga mágica que ele lhe roubara; e, então, prendeu um dos anéis no nariz do larápio
com um feitiço permanente.
Use isto, dissera Lythande, em memória da sua traição, e que as pessoas honestas
possam saber quem você é e evitá-lo. Agora ele se perguntava se Roygan tinha conseguido
que alguém o libertasse do anel.
Roygan tem uma conta a ajustar comigo, pensou Lythande, imaginando se Rastafyre, o
Incompetente, o alaúde e tudo mais não seriam uma armadilha para descobrir o segredo da
magia do Adepto Peregrino. Pois a força de um Adepto da Ordem da Estrela Azul reside num
certo mistério que não deve ser jamais revelado; e aquele que flagrar o segredo de um Adepto
Peregrino pode dominar toda a magia da Estrela Azul. E Roygan, com o seu ressentimento...
Não valia a pena preocupar-se com o Roygan. Mas, pensou Lythande, tenho inimigos
entre os próprios Adeptos Peregrinos. Roygan bem pode ser instrumento de um deles. E
Rastafyre também.
Não, Roygan não tinha força para isso; era um ladrão, não um mago de verdade ou um
adepto. Quanto a Rastafyre, Lythande riu silenciosamente. Se alguém procurasse usar aquele
incompetente, a própria incompetência do rechonchudo e atarantado mago recairia sobre o
cúmplice. Nada desejo de pior para os meus inimigos do que terem Rastafyre como seu
amigo.
E quando eu tiver conseguido — jamais ocorrera a Lythande dizer-se —, terei Koira;
e o alaúde. Ela não quis me amar; mas agora, querendo ou não, ela será minha, e cantará
para mim sempre que eu assim o desejar.
Caso os inimigos de Lythande - que o mago sabia serem muitos, mesmo aqui em
Gandrin - tomassem conhecimento de que Roygan havia de alguma forma incorrido na ira do
Adepto Peregrino, não demorariam a vender a história para qualquer outro membro da Ordem
que encontrassem. Lythande também sabia como usar esta tática; o conhecimento do segredo
de outro Adepto Peregrino era a maior proteção que se conhecia sob os Dois Sóis.
Falando de Sóis - Lythande olhou para o céu —, estava próximo o primeiro
crepúsculo; Keth, vermelho e sombrio, queimava no horizonte, Reth, como um olho
incandescente, uma ou duas horas atrás. Maldição, esta seria uma daquelas longas noites
escuras. Lythande franziu as sobrancelhas, pensando; mas a escuridão também serviria.
Primeiro, deveria decidir onde, na Velha Gandrin, em que esquina ou viela daquela
cidade de trapaceiros e impostores, poderia estar escondido Roygan.
Estaria lá algum Adepto da Estrela Azul que soubesse da sua briga com Roygan?
Lythande achou que não. Estavam sozinhos quando o fato se dera; e Roygan não iria se
vangloriar disso; sem dúvida, aquele miserável declarara ser o anel no seu nariz a nova moda
em jóias! Portanto, pela Grande Lei da Magia, a Lei da Ressonância, Lythande possuía ainda
um elo com Roygan; o anel que um dia fora seu, se continuava no nariz do ladrão, a ele o
levaria tão inevitavelmente como um pombo-correio que volta para casa.
Não havia tempo a perder; Lythande preferiria não enfrentar o esconderijo de Roygan,
o gatuno, na completa escuridão, e o vermelho Keth já escorregara por debaixo do limiar do
mundo. Duas medidas, talvez, numa vela do tempo; não mais do que isto, e o manto da escuri-
dão ajudaria Roygan a se esconder pelas vielas sombrias na noite sem luar da Velha Gandrin.
O Adepto Peregrino não precisa de uma varinha para fazer a sua mágica. Lythande
ergueu a mão fina, esguia, e dirigiu-a para baixo num movimento curioso, como se estivesse
se cobrindo. A escuridão fluiu pelos seus dedos longos acompanhando o movimento,
protegendo o mago com o seu véu; mas, dentro do círculo encantado, Lythande sentou-se com
as pernas cruzadas sobre as pedras, inundada por uma luz neutra sem sombras.
Mantendo uma das mãos em direção ao círculo, Lythande murmurou:
— Anel de Lythande, anel que um dia acariciou o meu dedo, junte-se à sua irmã.
Lentamente, o anel que ainda restava no dedo de Lythande começou a irradiar um
brilho intenso. Ao seu lado, na estranha luz, surgiu um segundo anel, sutil e disforme,
suspenso no ar. E ao redor dele foi se delineando um rosto pálido: primeiro o nariz aquilino,
depois a boca cheia de dentes lascados como presas e recobertos de metal brilhante, e
finalmente os olhos fundos e de pestanas escuras de Roygan, o Orgulhoso.
Ele não estava dentro do círculo mágico luminoso. Lythande sabia disso. Como um
espelho, o círculo refletia o rosto de Roygan; a um gesto de comando, o foco da visão se
ampliou para abranger uma sala com tesouros empilhados até o teto, onde ele fora esconder os
frutos de seu roubo. Roygan, a Ratazana! Ele não usava o tesouro para enriquecer - como
Lythande, ele poderia criar jóias à vontade -, mas para conquistar o poder sobre os outros
mágicos! Portanto, mantidos os vínculos com seus proprietários, Roygan também era
vulnerável à magia de Lythande.
Se Rastafyre fosse pelo menos um mago com alguma competência - o simples fato de
pensar naquele gordinho trapalhão fazia Lythande torcer os finos lábios num sorriso de ironia
-, teria sabido disso e achado Roygan sozinho. A varinha de um mago é uma coisa curiosa; ela
é o mago, no seu verdadeiro significado, pois ele deve nela colocar um de seus poderes reais.
Como a Estrela Azul, de certa forma, era a emoção de Lythande — pois flamejava num brilho
azulado quando o mago estava zangado ou excitado —, assim a varinha, para o mago que
precisava dela, quase sempre refletia aquele poder mais acalentado de um mago do sexo
masculino. Novamente Lythande sorriu irônico; nada de exercícios de alcova, de esposas e
filhas de magos seduzidas, até que a varinha de Rastafyre retornasse às suas mãos!
Talvez eu deva me tornar um benfeitor público e jamais recuperar o que Rastafyre
considera tão importante, e que as mulheres de meus companheiros magos estejam
resguardadas de suas vilezas! Lythande sabia, entretanto, mesmo persistindo a imagem, e o
seu divertimento, que Rastafyre deveria ter a sua varinha de volta e com ela o seu poder de
realizar o bem ou o mal. A Lei luta constantemente contra o Caos, e todas as almas devem
estar livres para tomar o partido de um ou de outro; esta era a lei básica estabelecida pelos
Deuses de Gandrin, e que todos os outros consideravam representativa. A própria vida, no
mundo dos Dois Sóis, como em toda parte até se apagar a última estrela da Eternidade,
carrega sempre dentro de si este Grande Antagonismo. E Lythande havia jurado, através da
Estrela Azul, servir à Lei. Privar Rastafyre, o mínimo que fosse, do seu poder de optar pelo
bem ou pelo mal, seria desprezar esta verdade básica, substituindo as opções particulares de
Rastafyre pelo juramento de Lythande à Lei, e isto seria permitir que o Caos se instalasse.
E o carma de Lythande seria para sempre responsável pela escolha de Rastafyre.
Guardiães da Estrela Azul, sejam testemunhas de que não desejo tal poder, já carrego
comigo carma suficiente! Acionei muitas causas e devo assistir a todos os seus efeitos. . . que
perdurarão até a Batalha Final!
A imagem de Roygan, o anel pendurado no nariz, continuava suspensa no ar, e ao
redor a configuração da sua sala de tesouros. Por mais que tentasse, entretanto, o Adepto
Peregrino não conseguia focalizar o bastante para ver se a varinha de Rastafyre estava no
meio de todas aquelas coisas. Lythande, então, com um gesto de comando, ampliou o círculo
de visão ainda mais, para incluir a rua em que estivesse o porão ou armazém que escondia
Roygan e os seus tesouros. O círculo foi aumentando até que finalmente o mago reconheceu
um ponto de referência: a Fonte das Sereias, na Rua dos Sete Mestres Veleiros. A partir daí,
aparentemente, a sala dos tesouros de Roygan, o Ladrão, deveria ser localizada.
E Rastafyre havia arriscado a varinha por um caso com a mulher de Roygan.
Realmente, Lythande pensou, escolhi bem o meu adágio: um mago jamais deve ter uma
namorada ou esposa. . . e um sentimento de amargura o invadiu, fazendo cintilar a Estrela
Azul; Veja o que estou fazendo, pela simples imagem ou sombra de Koira! Mas como
Rastafyre soube?
Na época em que Koira e Lythande tocavam alaúde nas cortes de sua pátria longínqua,
eram jovens ainda e a sombra do espectro da Estrela Azul e da jornada de Lythande em busca
da magia, chegando mesmo ao esotérico Lugar Que Não É dos Adeptos Peregrinos, não se
havia interposto em suas vidas. E Lythande tinha outro nome.
Entretanto, Koira ou a sua alma, me reconheceu e me chamou pelo nome de Lythande.
Por que não chamou. . . e, num esforço enorme, quase físico, que fez o suor lhe brotar na testa
sob a Estrela Azul, Lythande afastou aquela lembrança; com a disciplina treinada de um
Adepto, até a memória do antigo nome desaparecer.
Eu sou Lythande. Quem fui antes de ter este nome morreu, ou vaga no limbo dos
esquecidos. Com outro gesto, Lythande dissolveu o círculo mágico luminoso, e estava
novamente nas ruas da Velha Gandrin, onde Reth, também, começara perigosamente a se
aproximar do horizonte.
Lythande dirigiu-se para a Rua dos Sete Mestres Veleiros. Mantendo-se sempre nas
sombras que lhe ocultavam o escuro manto de mago, e movendo-se tão silenciosamente como
o murmúrio do vento ou o espírito de um gato, o Adepto Peregrino atravessou uma dúzia de
ruas, prestando pouca atenção em quem as habitava. Os homens brigavam nas tavernas e nas
ruas calçadas de pedras; mercadores vendiam de tudo, desde facas até mulheres; crianças
imundas e seminuas faziam as suas próprias brincadeiras secretas, pulando barris e carroças,
gritando com alegria e a fúria da inocência. Lythande, atento à sua missão mágica, quase não
os via nem ouvia.
Na Fonte das Sereias, meia dúzia de mulheres, envoltas em mantos soltos que
tornavam misteriosa e sedutora até mesmo uma mulher feia, recolhiam a água que jorrava
borbulhante, chilreando alvoroçadas como passarinhos; Lythande as observou com uma
estranha e dolorida tristeza. Seria melhor esperar que elas se fossem, pois os movimentos dl
um Adepto Peregrino não devem ser motivo de falatórios; mas Reth estava muito próximo do
horizonte, e Lythande sentiu, da forma como um mago sempre percebe o perigo, que até
mesmo um Adepto Peregrino não deveria tentar invadir o quartel de Roygan, o Orgulhoso,
oculto pela noite fechada.
As mulheres se dispersaram, sussurrando e reunindo as crianças, quando Lythande
surgiu silenciosamente, como vindo do nada, na orla da praça. Uma das crianças pendurava-
se, rindo, numa das sereias esculpidas; a mãe, que lhe pareceu também quase uma criança
ainda, veio até ela e arrancou-a dali, fazendo o sinal contra mau-olhado - mas não disfarçou o
suficiente. Lythande postou-se diante dela, barrando a sua retirada.
— Acredita mulher, que eu possa amaldiçoá-la ou ao seu filho?
A mulher olhava o chão, esfregando as sandálias nas pedras do calçamento, mas as
mãos, apertando a criança de encontro ao peito, estavam pálidas de medo, e Lythande
suspirou. Por que fiz isto? Ouvindo o suspiro, a mulher ergueu os olhos num relancear rápido
e atento como o de um pássaro.
— O olho cego de Keth é testemunha de que não desejo fazer mal a você nem a seu
filho, e que a abençoaria se soubesse como - disse finalmente Lythande, desaparecendo nas
sombras para que a mulher tomasse coragem e saísse correndo pela rua com a cabeça imunda
da criança apertada ao peito.
O encontro deixara um travo de amargura na boca de Lythande, mas, com férrea
disciplina, o mago deixou o sentimento escorregar para o limbo, para ser relembrado e
examinado talvez quando já estivesse atenuado pelo Tempo.
— Anel, irmã do anel de Roygan, mostre-me onde, no nariz do ladrão, devo procurá-
lo!
Um dos prédios escuros à beira da praça parecia sumir aos poucos no crepúsculo
agonizante; através dos muros, Lythande viu os quartos, as paredes, silhuetas e a sombra de
uma mulher em movimento, sem véu. Era uma criaturinha gorducha e atrevida, com os
cabelos caindo em anéis sobre a testa curta, uma covinha no queixo e imensos olhos orlados
de pestanas escuras. Então esta era a mulher pela qual Rastafyre, o Incompetente, arriscara a
varinha, a sua mágica e a vingança de Roygan?
Menosprezo a sua escolha porque este caminho me é barrado?
Ainda assim é loucura, na escolha entre o amor e o poder, preferir o simulacro de
amor que esta mulher pode oferecer. Aproximando-se silenciosamente dos muros,
transparentes à sua visão mágica, o Adepto Peregrino podia ver, sob a camada externa de
ingênua faceirice, a essência egoísta e ambiciosa da mulher, sua ganância pelos tesouros, não
por sua beleza, mas pelo poder que eles lhe davam. Rastafyre não vira assim com tanta
profundidade. Estaria cego de luxúria, ou seria mais uma prova do nome que Lythande lhe
dera, Incompetente?
Com um gesto, Lythande fez desaparecer a Visão mágica; não precisava dela agora,
mas sim de pressa, pois a orla alaranjada de Reth já tocava o limiar ocidental do mundo.
Ainda posso entrar e sair sem que me vejam antes que a luz se vapor completo, pensou
Lythande; e gesticulando para que a escuridão se erguesse num manto ainda mais envolvente
do que o seu, atravessou o muro de pedra. A textura era granulosa, como se ele estivesse
andando através da massa de uma broa de milho, nada mais do que isto porém. Não obstante,
Lythande se apressou, forçando a passagem contra a resistência da pedra; havia umas histórias
de terror contadas nos pátios externos dos Adeptos Peregrinos, onde esta arte era ensinada, e
que versavam sobre um Adepto da Ordem da Estrela Azul que perdera a coragem no meio do
caminho e ficara preso no muro, metade do corpo ainda aprisionada na pedra, estremecendo
de dor até morrer. . . Lythande detestava arriscar-se por dentro das paredes, e costumava
contar com as ações silenciosas, furtivas, e com os encantamentos aplicados às fechaduras.
Mas não havia tempo nem para encontrar as fechaduras, muito menos para auscultá-las e,
também usando de magia, soltar as lingüetas. Quando todo o corpo do mago penetrou no
quarto sombrio, Lythande deu um suspiro de alívio; o cheiro de bolor e das teias de aranha era
preferível à sensação arenosa da parede, e agora, não importa o que acontecesse, Lythande
decidiu usar a porta ao sair.
Na pesada escuridão da sala dos tesouros de Roygan, a luz da Estrela Azul seria
suficiente; Lythande sentiu a estranha ardência dolorida quando a Estrela Azul começou a
brilhar. . . uma luz azulada atravessou as sombras, e com esta sutil iluminação o Adepto
Peregrino divisou os contornos de imensos baús, montes de jóias empilhadas ao acaso, caixas
com ferrolhos. . . onde, nesta miscelânea de tesouros roubados pela ganância de Roygan, se
achava a varinha de Rastafyre? Lythande parou pensativo, ao lado de uma pilha de jóias, rubis
cintilando como os raios de Keth ao alvorecer, safiras irradiando como os reflexos es-
tonteantes da luz da Estrela Azul, um soberbo colar de diamantes atirado ali negligentemente
como uma constelação faiscante sob a estrela polar de uma imensa gema solitária. Lythande
fora honesto com Rastafyre, as jóias não o tentavam, mas, por um momento, o mago pensou
quase com tristeza nas mulheres cujo colo, os braços esguios e os dedos tinham sido um dia
adornados com estas preciosidades; por que deveria Roygan se beneficiar com esta perda
imensa, se elas sentiam necessidade desses brinquedos e quinquilharias para realçar sua
beleza? E Lythande hesitou, pensando. Havia palavras mágicas que, uma vez proferidas,
distribuiriam todas estas jóias de volta aos proprietários de direito, pela Lei da Ressonância.
Mas por que deveria Lythande retomar sobre si o carma dessas mulheres
desconhecidas, mulheres que jamais veria ou saberia quem eram? Se não fora o seu destino
perder as jóias nas mãos espertas de um ladrão, sem dúvida de nada adiantaria Roygan
procurar as chaves de seus baús.
Pelo mesmo motivo, por que deveria interferir com a minha magia no carma merecido
de Rastafyre, que perdeu sua varinha por não conseguir conter o seu desejo pela mulher de
Roygan? A perda da varinha e da virilidade não lhe ensinaria o devido respeito pela
disciplina da continência? Não seria por muito tempo, só até ele poder conseguir superar o
seu problema e consagrar outra varinha de Poder. . .
Lythande, porém, dera a sua palavra de Adepto Peregrino; pela honra da Estrela Azul,
o prometido deveria ser cumprido. Tendo jurado fidelidade à Lei, era seu dever punir um
ladrão, ainda mais porque Roygan atormentava não a Lythande, cujas defesas eram
suficientes para uma vingança, mas ao inofensivo Rastafyre. . . e se a mulher de Roygan
também não o achava satisfatório, então este era o carma de Roygan. Estremecendo na
escuridão do depósito, Lythande murmurou as palavras mágicas que tornariam transparentes
as caixas com os tesouros. Usando a luz mágica, Lythande vasculhou caixa após caixa, não
vendo coisa alguma que pudesse ter a mais remota chance de ser a varinha de Rastafyre.
Lá fora, a luz sumia rapidamente, e, na escuridão, todos os encantamentos ficavam à
solta.
Como se evocada por este pensamento, de repente lá estava, embora Lythande não
tivesse visto porta alguma por onde pudesse ter entrado uma enorme figura cinzenta, que
pulou nas suas costas. Lythande revirou-se, sacando a adaga da direita e golpeando firme a
garganta do lobo.
A arma atravessou o animal como se este fosse ar. Não era uma fera de verdade, então,
mas uma bruxaria... Lythande deixou cair a adaga da direita, puxando com a esquerda a outra,
a que servia para combater os poderes e as bestas mágicas. Mas a demora foi quase fatal; os
dentes do lobo enfiaram-se como agulhas inflamadas no braço direito de Lythande, forçando
um grito entre os lábios do mago. Ninguém ouviu; a besta lutava em silêncio, sem um rosnar
ou som que fosse, nem mesmo o de sua respiração. Lythande golpeou com a adaga da
esquerda, mas não conseguia atingir o coração, quando o peso sobrenatural do lobo atirou-o
contorcendo-se ao chão. Novamente os dentes de agulha da criatura queimaram o ombro de
Lythande, depois o joelho que ele erguera para afastar o animal. Lythande sabia: se os dentes
causticantes se aferrassem apenas uma vez ao seu pescoço, acabariam com o seu fôlego e a
sua vida. Devagar, penosamente, lutando para se erguer, golpeando sem parar, Lythande
conseguiu combater a besta, a custo de mordida depois de mordida daqueles dentes de fogo;
os olhos faiscantes do lobo reluziram de encontro à luz da Estrela Azul, que foi ficando fraca
e débil à medida que diminuía o esforço de Lythande.
Terei chegado até aqui para morrer num porão escuro na barriga de um lobo, que
nem mesmo é real, mas uma criatura fruto do abuso dos poderes mágicos nas mãos de um
ladrão?
O pensamento enlouqueceu o mago; num esforço desesperado, Lythande golpeou
ainda mais fundo com a adaga mágica as costas do lobisomem, procurando o coração. Com
toda a força da magia sustentada pelo sofrimento, de Lythande, o braço do mago golpeou as
carnes e ossos sobrenaturais, atingindo lá dentro dos pulmões o coração da criatura. . . o hálito
incandescente do lobo virou fumaça e extinguiu-se. Lythande recolheu o braço e a adaga,
visguenta com o sangue mágico, enquanto a besta, em lúgubre silêncio, contorcendo-se,
morria atirada ao chão, lentamente se revolvendo e desmanchando em filetes de fumaça, até
restar apenas um montinho de resíduos, como de sangue queimado, no piso da sala dos
tesouros.
A respiração de Lythande fez-se forte no silêncio, enquanto o Adepto Peregrino
limpava a adaga mágica, recolocava-a na bainha e procurava no chão a outra adaga, da direita,
que caíra. Havia visco na mão esquerda do mago também, que a limpou, perversamente, num
rolo de precioso veludo; a Roygan o que é de Roygan, portanto! Quando a adaga da direita
estava guardada de novo na sua bainha, Lythande retornou à busca frenética da varinha de
Rastafyre. Não era o caso de achar que teria mais tempo. Mesmo se Roygan se entretivesse
com a mulher, que era toda sua, agora que o poder de Rastafyre se fora, não poderia ficar com
ela para sempre, e se o seu poder mágico criara o lobo, certamente a morte da criatura,
atingindo a própria vitalidade de Roygan, o alertaria da intromissão na sua sala de tesouros.
Através da tampa de uma das caixas, Lythande conseguiu ver, na luz mágica que se
refletia apenas nos objetos que representavam o Poder dos feiticeiros, uma forma alongada e
estreita, envolta em sedas, porém ainda brilhando com a luminosidade que distingue os instru-
mentos da magia. Sem dúvida, deveria ser a varinha de Rastafyre, a não ser que Roygan, o
Ladrão, tivesse uma coleção delas — e o tipo de incompetência que lhe permitira apoderar-se
dela era raro entre os magos. . . louvado seja o onividente olho de Keth!
Lythande tentou o trinco. Agora que a excitação da luta com o lobo arrefecera, ombro
e braço doíam como queimaduras mal curadas nos lugares onde os dentes enfeitiçados
encontraram a carne de Lythande. Pior do que queimaduras, talvez, pensou Lythande, pois
elas poderiam não reagir aos remédios comuns! O mago queria arrancar fora o pedaço da
túnica esfarrapada que o lobo rasgara, mas havia motivos fortes para não fazer isto dentro da
fortaleza do inimigo! Lythande fechou ainda mais as dobras do seu manto mágico, as mãos
mordidas lutando com os fechos. O Adepto Peregrino era muito forte; diferente daqueles
magos que confiavam sempre na sua magia, evitando o esforço físico, Lythande viajava a pé e
sozinho por todas as estradas e atalhos iluminados pelos Dois Sóis, e os braços firmes, as
mãos elegantes, tinham a força das adagas que brandiam. Depois de algum tempo, a primeira
dobradiça do baú cedeu, ruidosamente, no porão escuro, como a explosão de fogos de
artifício; Lythande estremeceu. . . certamente, até mesmo Roygan no quarto da mulher teria
ouvido! Agora, a segunda dobradiça. Crescia a dor das feridas em suas mãos; Lythande puxou
a adaga da direita, a que servia para os objetos naturais sem feitiçarias, e tentou introduzi-la
por debaixo da dobradiça, forçando num penoso silêncio, sem êxito. Teriam usado um
encanto para fechar esta maldita coisa? Não; se assim fosse, Lythande não teria, só com as
mãos, soltado a primeira lingüeta. O sangue pingava da mão empolada antes que o segundo
trinco cedesse e Lythande alcançasse o fundo do baú, recuando como se dos dentes do lobo.
Uivando de raiva, dor e frustração, Lythande vasculhou o baú com a adaga da esquerda;
ouviu-se um ligeiro som agudo e horripilante, e uma coisa feia, horrível e apenas parcialmente
visível, retorceu-se e morreu. Mas agora Lythande segurava a varinha de Rastafyre,
triunfante.
Estremecendo de dor, Lythande desenrolou os panos que escondiam a varinha. Uma
expressão de desagrado cobriu o rosto fino do mago quando os entalhes fálicos e o formato do
objeto se revelaram, mas afinal de contas isto era bastante óbvio — Rastafyre equipara a sua
varinha com os símbolos da sua virilidade. O problema era, portanto, dele; não era o carma de
Lythande ensinar aos outros magos discrição ou boas maneiras. Tinham feito um trato e o
serviço seria executado.
Acolchoando rapidamente a varinha com as sedas que a protegiam — era mais fácil
segurá-la assim, e Lythande não desejava nem mesmo olhar aquela coisa grosseira —, o mago
voltou a sua atenção para o que precisava fazer para poder sair dali. Não seria através dos
muros. Àquela hora, certamente o manto da escuridão já descera, embora fosse difícil saber na
sala sem janelas. Mas deveria haver uma porta em algum lugar.
Lythande não ouviu, mas de repente, quando a luz mágica cintilou, Roygan, o
Orgulhoso, estava bem no centro da sala.
— Então, Lythande, o Mago, é Lythande, o Ladrão! Como está indo neste negócio,
Mago?
Uma armadilha. Mas a voz suave e neutra de Lythande estava calma.
— Está escrito: tudo será roubado aos ladrões finalmente. Pelo anel no seu nariz,
Roygan, você sabe que falo a verdade.
Com um uivo reprimido de raiva, Roygan atirou-se para Lythande. O mago desviou-
se, e ele foi bater de encontro a um baú, soltando um grito furioso de dor quando os joelhos
colidiram com a sua borda metálica. Roygan virou-se, mas Lythande, de adaga na mão,
enfrentava-o.
— Anel de Lythande, anel da ignomínia de Roygan, que o seu metal se funda a este —
murmurou Lythande, e a adaga lançou-se de encontro ao rosto de Roygan. O ladrão gemeu de
dor quando ela se fundiu ao anel, curvando-se.
— Ai! Ai! Tire isto daqui, maldito seja por todos os deuses de Gandrin, ou eu. . .
— Você, o quê? — perguntou Lythande, olhando com expressão altiva a adaga
retorcida ao redor da ponta do nariz de Roygan e agarrada como que por um forte ímã às
extremidades metálicas dos seus dentes.
Furioso, uivando, Roygan tornou a se lançar sobre Lythande, seus gritos mudos agora
que a adaga grudava-se cada vez com mais força aos seus dentes. Lythande ria, livrando-se
com facilidade das garras de Roygan; mas o rosto do ladrão iluminou-se com um brilho
repentino de triunfo.
— Eh! - Ele forçava as beiradas da adaga. - Agora que toquei em Lythande, conheço o
seu segredo. . . Lythande, Adepto Peregrino, portador da Estrela Azul, você é. . . ai. Ai-ai!
Com um guincho medonho de dor, Roygan caiu no chão, mudo com a adaga que se
enterrava cada vez mais na sua boca; o sangue jorrava de seus lábios e, logo em seguida, a
outra adaga de Lythande atravessava o seu coração, num golpe de misericórdia.
Lythande inclinou-se e retirou a adaga enterrada no coração de Roygan. Depois, com
as cintilações mágicas da Estrela Azul, procurou a outra adaga, a que se aferrara aos lábios,
língua e garganta do ladrão. Palavras mágicas restituíram o seu formato original. Sob os
golpes das mãos feiticeiras de seu dono, lentamente o metal se desenrolava. Devagar,
suspirando, Lythande embainhou as duas adagas.
Não pretendia matá-lo. Mas sabia muito bem quais seriam suas próximas palavras, e
os poderes mágicos de um Adepto Peregrino se anulam se o Segredo for pronunciado em voz
alta. E, sabendo disso, não poderia deixá-lo viver. Por que ela estava tão arrependida? Roy-
gan não era o primeiro que Lythande matara para preservar o Segredo, as palavras que
estiveram na boca mutilada de Roygan: Lythande, você é uma mulher.
Uma mulher. Uma mulher que, no seu orgulho, havia penetrado nos pátios dos
Adeptos Peregrinos disfarçada; e quando a Estrela Azul já se achava na sua testa, fora punida
e recompensada com o Segredo que deveria esconder muito bem para enganar até o Grande
Adepto no Templo da Estrela Azul.
O seu Segredo, portanto, será eterno; pois no dia em que um homem, salvo eu mesmo,
pronunciá-lo em voz alta, o seu poder estará anulado. Que o seu destino seja para sempre o
Segredo que você mesma escolheu, e aos olhos de todos os homens seja para sempre o que
nos fez pensar.
Com amargura, Lythande guardou a varinha de Rastafyre sob as dobras do seu manto.
Agora tinha tempo para descobrir o caminho para as portas de saída. As fechaduras cediam ao
toque mágico; mas antes de deixar o porão, Lythande pronunciou as palavras mágicas que de-
volveriam as jóias roubadas aos seus donos.
Uma pequena vitória a favor da Lei. E Roygan, o Ladrão, encontrara o seu merecido
destino.
Saindo de repente para a luz crepuscular, Lythande fechou os olhos. Parecia terem se
passado horas naquela luta silenciosa na escuridão da sala dos tesouros. Mas havia sol ainda, e
uma criança brincava quieta, batendo com os pés na água da fonte até que uma jovem mulher
rechonchuda veio alegremente repreendê-la, puxando-a para dentro de casa. Ouvindo as
risadas, Lythande suspirou. Um milhão de anos, um milhão de lembranças separavam-na da
mulher e da criança.
Não amar homem algum, para não revelar o meu segredo. Não amar mulher alguma
para que não me torne alvo dos meus inimigos em busca do Segredo.
E ela se arriscava a se expor e perder o seu poder, continuamente, por alguém como
Rastafyre. Por quê?
Porque devo. Não havia outra resposta, era o juramento de um Adepto Peregrino
defender a Lei contra o Caos. Rastafyre precisava ter a sua varinha de volta. Não existia uma
lei que dissesse que todos os magos deviam ser competentes.
Ela pousou a mão esguia sobre a varinha, procurando não recuar ao toque das suas
formas, e murmurou:
— Leve-me ao seu senhor.
Lythande encontrou Rastafyre numa taverna e, não querendo demonstrações publicas
de poder, chamou-o para fora. O mago gorduchinho olhou admirado a Estrela Azul cintilante:
— Vo-você está com-com ela? Já?
Silenciosamente, Lythande estendeu o embrulho para Rastafyre. Quando ele o tocou,
pareceu crescer ficar mais bonito, menos gordo; até o seu rosto adquiriu linhas enérgicas e
virilidade.
— E agora o meu pagamento - lembrou Lythande.
O outro falou, carrancudo:
— Co-como vou sa-saber se Roygan, o Orgulhoso, não vi-virá atrás de mi-mim?
— Eu não sabia — disse Lythande com calma - que os seus poderes mágicos podem
ressuscitar um morto, ó Rastafyre, o Incomparável.
— Você... você... e-e-ele está morto?
— Ele repousa onde repousam os seus mal adquiridos tesouros, com o anel de
Lythande ainda preso ao seu nariz — continuou Lythande tranqüila. - Tente agora conservar a
sua varinha mágica longe dos poderes dos maridos.
Rastafyre riu:
— O que-que-que mais vou fazer com-com-com meu po-poder? Lythande fez uma
careta:
— O alaúde de Koira - falou ela -, ou irá para onde Roygan está. Rastafyre, o
Incomparável, ergueu a mão:
— Sa-Sa-Sacola — cantarolou ele; pisca-piscando na monotonia fora da taverna,
a bolsa de veludo aparecia aqui, sumia, voltava, tornava a desaparecer mesmo quando
Rastafyre já estava com a mão dentro dela.
— Maldita, Sa-Sa-Sacola! Fique ou vá embora, mas não pisque assim! Fique! Fique eu
disse! - Ele parecia, pensou Lythande, estar falando com um cachorrinho relutante.
Finalmente, quando conseguiu a total materialização da bolsa, sacou fora o alaúde.
Com uma mesura cerimoniosa, Lythande aceitou-o, fazendo-o desaparecer sob o manto.
—Saúde e prosperidade, ó Lythande — o outro falou. . . pela primeira vez sem
gaguejar; talvez a varinha lhe servisse para isto também.
—Saúde e prosperidade, ó Rastafyre, o Incom. . . — Lythande hesitou, deu uma risada
e disse: — Incomparável.
Ele se afastou e Lythande acrescentou, silenciosamente, enquanto observava Sa-Sa-
Sacola arrastando-se pesadamente como uma pequena sombra mal-humorada atrás dele, até
sumir completamente: — E mais sorte em suas aventuras.
Sozinha, Lythande saiu para a rua escura, sob o céu frio e sem lua. Com um único
gesto, o círculo mágico apagou tudo que estava ao redor; não havia mais tempo nem espaço.
Lythande começou a tocar o alaúde suavemente. Uma ligeira vibração no ar silencioso, e a
figura de Koira, esguia, delicada, os cabelos claros ondulando ao redor do rosto e o corpo
revelando-se sob finos véus, surgiu diante dela.
— Lythande - sussurrou ela. - E você?
— Sou eu, Koira. Cante para mim - ordenou Lythande. - Cante para mim a canção que
você cantava quando nos sentávamos nos jardins de Hilarion.
Lythande dedilhou as cordas do alaúde, e a voz suave de contralto de Koira elevou-se
numa antiga canção de um país do outro lado do mundo e de um tempo tão distante que
Lythande nem ousava lembrar.

"Os anos virão, e a luz


Que havia em ti será noite sem fim;
Como o vinho derramado que a terra absorve,
Das suas canções não restará um só alento,
E como as folhas de outono na floresta,
Cairão no esquecimento,
Como a palavra dita, a melodia cantada.
Viver de lembranças. . ."

— Pare - falou Lythande, com a voz embargada.


Koira silenciou, murmurando finalmente:
— Cantei quando você ordenou e continuo obedecendo.
Quando Lythande conseguiu erguer os olhos sem a agonia do desespero, Koira
também estava calada. Lythande falou:
— O que a prende ao alaúde, Koira, a quem um dia amei?
— Não sei - respondeu Koira, e o fantasma de sua voz parecia mais amargo. - Sei
apenas que enquanto existir o alaúde, eu serei escrava dele.
— E da minha vontade?
— Exatamente, Lythande.
Lythande apertou os lábios.
— Não quis me amar quando podia; agora eu a terei quer queira ou não – disse.
— Amor. . . - Koira estava calma. - Éramos donzelas, e nos amávamos como jovens
virgens se amam; depois você se foi para um país distante e eu não quis segui-la, pois o meu
coração era o de uma mulher, e você.. .
— O que sabe do meu coração? — gritou Lythande em desespero.
— Eu sabia que o meu coração era o de uma mulher e ansiava por um amor diferente
do seu - falou Koira. - O que você faria Lythande? Você também é uma mulher; não chamo a
isto amor. . .
Os olhos de Lythande estavam fechados. Mas, finalmente, a voz obstinava:
— Entretanto você está aqui e cantará para sempre segundo a minha vontade, e para
sempre silenciará o seu desejo pelo amor de um homem. . . para você não há ninguém senão
eu, agora!
Koira inclinou-se numa mesura, mas a Lythande pareceu que naquele gesto havia um
ar de zombaria.
— O que a mantém escrava do alaúde? — perguntou ela ríspida. - Está presa apenas
por algum tempo, ou para sempre?
— Não sei - falou Koira. - Ou se sei, não quero dizer.
Assim era com os encantamentos; Lythande sabia. . . e agora, com todo o tempo diante
de si, mais cedo ou mais tarde Koira a amaria. . . Koira era sua escrava, e poderia fazê-la ir e
vir, dedilhando o alaúde sempre que desejasse mais do que uma canção e o beijo de uma don-
zela. . .
Mas o amor simulado de uma escrava não é amor. Lythande ergueu o alaúde nas mãos,
pousando os dedos sobre as cordas; a figura de Koira ondulava ligeiramente. Agindo rápido,
antes que pudesse pensar melhor, Lythande levantou o alaúde, deixando-o cair com força
sobre o joelho e quebrando-o.
O rosto de Koira estremeceu, entre o espanto e a repentina alegria delirante.
— Livre! - gritou. - Livre, finalmente. . . Oh, Lythande, agora sei que você realmente
me amou. . . - Num sussurro, rodopiou, foi-se apagando e desapareceu, restando apenas a
bolha mágica vazia, inútil, silenciosa.
Lythande ficou parada, o alaúde quebrado nas mãos. Se Rastafyre a pudesse ver! Por
ele havia arriscado a vida, a saúde, os seus poderes mágicos, o próprio Segredo e a Estrela
Azul, e em poucos segundos o havia quebrado, libertando aquela que poderia, através dos
anos, ser conquistada, apresada. . . incapaz de recusar, incapaz de dobrar o orgulho de
Lythande ainda mais. . .
Ele também me acharia um mago incompetente.
Quem de nós dois estaria certo?
Com um profundo suspiro, Lythande atirou o manto por sobre os ombros magros,
assegurou-se de que as duas adagas estavam firmes cm suas bainhas - pois àquela hora, nas
ruas sem luar da Velha Gandrin, havia muitos perigos, reais e mágicos - e seguiu o seu
caminho solitário, pisando sobre os restos do alaúde quebrado.
INTRODUÇÃO A
A MAGIA ALHEIA

Quando comecei a escrever as histórias de Lythande, fui envolvida numa série de


discussões com pessoas que achavam que eu não era feminista o bastante, que não
compreendia o que era o feminismo, ou algo assim. Sem dúvida, tinham razão. Houve quem
criticasse Lythande e os meus outros personagens por isso. Sim, pensei talvez Lythande
devesse ter se identificado com os poderes mágicos femininos em vez de se disfarçar de
homem. Mas ela teve alguma vez esta opção?
Eu estava convencida de que não. A honestidade básica de Lythande poderia orientá-
la a intervir no carma de outra pessoa - como nesta história, quando tenta (tarde demais)
salvar uma mulher de ser violentada; mas num mundo onde a principal diretriz é não se
importar com os assuntos alheios, o castigo por tal coisa pode ser o de se enredar na magia
do outro.
E o ressentimento de Lythande em relação à magia feminina é simples: onde estavam
esses poderes mágicos femininos quando deles precisei? Sem dúvida, Lythande os teria
preferido a ter que competir com os homens em seus jogos cuidadosamente defendidos.
Mulheres, porém, como as primeiras a ingressar nas faculdades de medicina, denunciadas
dos púlpitos das igrejas, ignoradas e tendo finalmente que vencer sendo pelo menos duas
vezes melhores do que os homens - mulheres que tiveram que se colocar à prova competindo
com os homens não são indulgentes com a participação e o espaço ocupado pelas mulheres
protegidas.
"É claro, dizemos, você pôde fazer isso naquelas condições - mas suspeitamos que não
poderia ter feito, de forma alguma, na época em que precisava se afirmar. Você quer que as
pessoas digam que você não entrou na faculdade de medicina por ser suficientemente capaz,
mas sim porque eles tinham que oferecer tantas vagas para as mulheres, qualificadas ou
não?"
Sem dúvida, as mulheres e as outras minorias voltarão a me dizer que eu
simplesmente não compreendo. . . claro que se eu entendesse, concordaria com elas. Errado.
Eu compreendo, sim, só que não concordo. Como Lythande, consegui minhas credenciais
quando isto tinha que ser feito da maneira mais difícil. . . sem o apoio de uma consideração
especial pelas minorias. Mulheres que tiveram que se mostrar duplamente melhores do que
os homens não simpatizam com observações como: ' 'Quando se permitirá às mulheres serem
medíocres, como se permite aos homens?"
Acho que ninguém deveria ter permissão para ser medíocre, exigir isto, ou mesmo
pensar em tal possibilidade. Lythande. . . e eu. . . nos contentamos em ser julgadas apenas
pelo que somos.
Vejo, porém, que estou escrevendo aqui algo parecido com a retórica feminista.
Perdoem-me. Lythande fala por si mesma, mas eu preciso redigir todo um artigo.
A MAGIA ALHEIA

Num lugar como o Bairro dos Ladrões, na Velha Gandrin, não há meio de
sobrevivência mais importante do que a capacidade de não se intrometer na vida dos outros.
Que aconteçam roubos, estupros, incêndios criminosos, rixas sangrentas ou estranhas
atividades de feiticeiros: um ouvido surdo aos problemas alheios, cuidadosamente cultivado -
sem falar num olho cego, ou melhor, dois, para tudo aquilo que não for assunto seu -, é a
melhor maneira, talvez a única, de não se meter em confusões.
Não é por acaso que em toda a Velha Gandrin, e por todos os cantos mais, sob os Dois
Sóis, fala-se do olho cego de Keth-Ketha. Os deuses sabem que não devem ficar observando
com muita atenção as atividades de suas criaturas.
Lythande, o mago mercenário, sabia disso muito bem. Quando o primeiro grito soou
pelas ruas, Lythande sabia, apesar da contração involuntária dos ombros, que a atitude
adequada era olhar para frente e continuar seguindo na mesma direção. Esta era uma das
razões de Lythande ter resistido tanto tempo: o cultivo da extraordinária capacidade de se
preocupar com sua própria vida num lugar onde aconteciam tantas coisas estranhas.
Havia, entretanto, certo tom naqueles gritos...
Um assalto comum, ou mesmo estupro, analisando friamente, não teriam penetrado
aquela carapaça de cegueira e surdez. A mão de Lythande agarrou, quase sem pensar, o punho
da faca da direita, a que tinha o cabo preto, suspensa no cinto vermelho amarrado em volta do
manto de mágico. Sacou-a rápido e foi direto se meter em confusão.
A mulher estava caída no chão e havia pelo menos uma dúzia de agressores, numa
desvantagem exagerada mesmo para o Bairro dos Ladrões. Antes que eles a derrubassem, ela
conseguira matar uns quatro, mas havia outros, de pé ao redor, torcendo pelos que haviam so-
brevivido. A Estrela Azul na testa de Lythande, a identificação de um Adepto Peregrino,
começou a brilhar emitindo cintilações azuladas no mesmo compasso do reluzir intermitente
da lâmina. Dois depois três caíram antes de saber o que os atingira, e um quarto foi espetado
em meio ao seu trabalho obsceno, ejaculando e morrendo num só grito. Dois mais caíram,
esguichando sangue, um pelo pescoço sem a cabeça, o outro por um dos braços amputado na
altura do ombro, morrendo antes de chegar ao chão. O resto fugiu, tremendo. Lythande
limpou a lâmina na capa de um dos mortos e inclinou-se para a mulher agonizante.
Ela era miúda e muito frágil para ter causado um dano tão grande entre os seus
assaltantes; e eles a fizeram pagar por isso. Estava vestida com a roupa de couro dos
espadachins e que lhe fora arrancada do corpo. Sangrava por todos os lados, mas não fora
derrotada - ainda conseguiu fazer um gesto débil em direção à espada e rosnou, com os lábios
cerrados:
— Espere dez minutos, seu animal, e não precisarei mais de ajuda; então você poderá
se aproveitar à vontade do meu cadáver, e maldito seja!
Um rápido olhar ao redor fez ver a Lythande que não havia ser humano vivo ao
alcance da sua voz. Não havia possibilidade alguma de que esta mulher pudesse sobreviver e
traí-la. Lythande ajoelhou-se, apertando gentilmente a cabeça da mulher de encontro ao peito.
— Quieta, quieta, irmã. Não vou lhe fazer mal.
A mulher ergueu os olhos surpresa, e um sorriso espalhou-se no seu rosto moribundo.
Sussurrou:
— Pensei ter errado o último golpe. Jurei morrer primeiro; mas eram muitos. A Deusa
não perdoa. . . aquelas que cedem. . .
Ela estava se apagando. Lythande murmurou:
— Fique em paz, criança. A Deusa não condena. . . - E pensou: Não valeria um peido
no inferno sulfuroso a deusa que o fizesse.
— Minha espada - a mulher tateou às cegas; já estava difícil enxergar. Lythande
colocou o punho entre os seus dedos.
— Minha espada. . . desonrada — sussurrou ela. - Sou Larith. A espada deve. . . deve
retornar ao seu santuário. Leve-a. Jure. . .
Larithae! Lythande sabia da existência do altar dessa deusa secreta, e do voto que suas
mulheres faziam. Pôde entender então, embora jamais desculpar, os bandidos que a haviam
atacado e assassinado. As Larithae eram o prato preferido em qualquer lugar desde os desertos
ao sul a Falthot nas Montanhas Geladas. O altar da Deusa Larith ficava no fim da estrada mais
perigosa e longa da Terra Proibida, e era um caminho que Lythande não tinha motivo, nem
desejo, de trilhar. Além disso, estava impedida pelo seu próprio juramento de andar por ali,
pois não podia jamais se revelar como mulher, sob pena de anular o Poder que lhe havia
colocado a Estrela Azul entre os olhos. E apenas as mulheres buscavam o altar de Larith, ou
poderiam chegar até lá. Negando com firmeza, Lythande sacudiu a cabeça:
— Minha pobre menina, não posso; fiz um outro juramento, e não sirvo à sua Deusa.
Deixe que a sua espada permaneça honrosamente em suas mãos. Não - repetia ela, afastando a
mão suplicante da mulher - não posso, irmã. Deixe-me cuidar dos seus ferimentos, e você
mesma fará isso um dia.
Ela sabia que a mulher estava morrendo; mas, enquanto isso, o pensamento a manteria
ocupada. Se intimamente amaldiçoava o ímpeto que a levara a ignorar a velha lei de
sobrevivência de não se meter nos assuntos alheios, nada transparecia no seu rosto firme e
compassivo inclinado sobre a espadachim agonizante. A Laritha estava quieta, sorrindo
debilmente diante dos gentis cuidados de Lythande; deixou-a endireitar seus membros
retorcidos, estancar o sangue que agora pingava apenas. Mas seus olhos já estavam
enevoados. Agarrou os dedos de Lythande e sussurrou, num fio de voz tão tênue que só com
seu poder mágico ela conseguiu distinguir as palavras.
— Leve a espada, irmã. Larith é testemunha de que a entrego a você, livre de qualquer
juramento. . .
Dando de ombros, mentalmente, Lythande murmurou:
— Que assim seja, sem juramento. . . testemunhe por mim naquela região sombria,
irmã, e me conserve livre dela.
A dor transpassou rapidamente o olhar embaçado, pela última vez.
— Siga livre. . . se puder. . . — sussurrou a mulher, e num derradeiro gesto colocou o
punho da espada de Larith na mão de Lythande.
Num simples ato reflexo, Lythande fechou a mão, percebendo de repente o que estava
fazendo — corriam histórias sobre a magia de Larith, e Lythande não queria saber de suas
espadas! Soltou o punho da espada e tentou recolocá-lo na mão da mulher. Mas os dedos
haviam se fechado na rigidez da morte.
Lythande suspirou, deitando com delicadeza a mulher no chão. O que deveria fazer
agora? Deixara bem claro que não ficaria com a espada; uma das poucas coisas que se sabia
realmente sobre as Larithae era que o seu santuário era composto de sacerdotisas espadachins
e que homem algum poderia tocar em seus poderes mágicos sob pena de castigos os mais
terríveis que se possam imaginar. Lythande, Adepto Peregrino, que havia pago um preço mais
alto do que qualquer outro na história da Ordem, não ousava ser encontrada em lugar algum
sob a luz de Keth, ou de sua irmã Reth, com uma espada de Larith em seu poder. A própria
existência da magia de Lythande dependia disso: que jamais fosse conhecida como uma
mulher.
A condenação fora justa, sem dúvida. O santuário da Estrela Azul fora proibido às
mulheres por mais séculos do que se podia contar nos dedos das duas mãos. Em toda a
história dos Adeptos Peregrinos, mulher alguma antes de Lythande penetrara disfarçada em
seus segredos; e quando afinal fora descoberta, já se aprofundara tanto nos mistérios da
Ordem que estava protegida pelo terrível juramento que proíbe a um Adepto Peregrino matar
outro, pois todos juraram lutar, no Derradeiro Dia, pela Lei contra o Caos. Eles não podiam
matá-la; e sendo ela já portadora dos mistérios da Ordem, não poderia ser mandada embora.
A sentença lançada, entretanto, fora o que ela mesma, sem o saber, escolhera ao entrar
no Templo da Estrela Azul disfarçada de homem.
"Você escolheu ocultar a sua feminilidade, portanto deverá para sempre mantê-la
assim - estava lançada a maldição - pois desse segredo dependerá o seu poder; no dia em que
outro Adepto da Estrela Azul revelar o seu verdadeiro sexo, neste dia ele deixará de existir e
também a santidade que a protege da vingança por ter roubado nossos mistérios. Seja,
portanto, o que escolheu ser, pela eternidade até a Derradeira Batalha da Lei contra o Caos."
E assim, resguardada pelos outros votos de um Adepto Peregrino, Lythande carregava
a condenação eterna de manter sua identidade oculta. Jamais poderia se revelar a homem
algum; nem a qualquer mulher a quem não pudesse confiar seu poder e sua vida. Apenas três
vezes ela ousara confiar, e dessas três mulheres, duas estavam mortas. Uma morrera torturada
quando um Adepto Peregrino rival procurara tirar dela o segredo de Lythande; não deixara de
ser fiel até a morte. E a outra morrera em seus braços alguns minutos atrás. Lythande contro-
lou-se antes de praguejar em voz alta; a fraqueza da sua confissão a uma mulher agonizante
poderia sobrecarregá-la como uma praga, mesmo não tendo ela jurado coisa alguma. Ser vista
com uma espada Larith seria o mesmo que proclamar alto e bom som o seu verdadeiro sexo
no topo das escadarias do Grande Templo na Velha Gandrin!
Bem, não seria vista com a espada. Ela ficaria no túmulo da Laritha que a defendera
honrosamente.
Lythande levantou-se, puxando o capuz do seu manto de mago por sobre o rosto para
esconder a Estrela Azul. Nada nela - alta, esguia, ossuda - revelava ser mais do que um
Adepto Peregrino comum; seu rosto macio, imberbe, poderia ser o de um excêntrico ou
efeminado, se houvesse alguém para duvidar - e não havia - e os cabelos claros, de corte
quadrado à moda antiga, os traços aquilinos eram firmes e assexuados, a linha do queixo
muito dura para a maioria das mulheres. Jamais, por um só instante, um gesto, uma palavra,
um maneirismo ou distração revelaram ser ela algo mais do que um mago mercenário. Por
debaixo do manto usava a roupa comum de um camponês do norte - culotes de couro; botas
de cano alto frouxas; gibão de couro sem mangas - e a túnica franzida de rendas de um dândi.
As mãos sem anéis eram quadradas e cobertas de calos, prontas para sacar qualquer uma das
espadas presas à sua cintura fina; a lâmina da direita para os inimigos materiais, a da esquerda
contra os efeitos da magia.
Lythande ergueu a lâmina Larith e a sustentou com repugnância com o braço
estendido. Deveria de alguma forma providenciar o enterro da mulher, e do monte de
cadáveres erguido entre elas. Por uma sorte fantástica, ninguém entrara por aquela rua até
agora, mas o fragmento de uma canção bêbada ecoou áspero entre as paredes dos prédios
antigos, e um homem passou arrastado por dois ou três companheiros que tentavam colocá-lo
de pé e que, ao verem Lythande ao lado da pilha de corpos, tiveram a impressão óbvia.
— Assassino! - gritou ele. - Aqui há morte e assassinato! Sentinelas, guardas. . .
socorro, assassino!
— Pare de gritar - falou Lythande - a vítima está morta, e o resto fugiu.
O homem aproximou-se, tonto, para olhar o cadáver.
— Bonitinha também - falou o primeiro homem. - Você teve vez antes que ela
morresse?
— Ela já estava esgotada demais. - Lythande falou a verdade. Mas é minha
conterrânea e lhe prometi que a enterraria decentemente - e enfiando a mão por dentro do
manto fez surgir um faiscar de moedas de ouro. - Como conseguirei isso?
— Ouço as sentinelas - falou um dos homens, menos bêbado do que seus
companheiros, e Lythande também ouviu o soar das botas nas pedras. -Por este ouro você
poderia enterrar metade da cidade, e se não houvesse cadáveres suficientes, eu mesmo
providenciaria alguns.
Lythande atirou ao bêbado algumas moedas:
— Enterre-a, então, e a carniça junto.
— Eu cuido disso - falou o menos bêbado - e nem vou disputar com você essa
excelente espada, pode entregá-la à sua família.
Lythande olhou a espada que tinha nas mãos. Podia jurar que a havia colocado sobre o
peito da morta. Bem, fora uma meia hora bastante confusa. Inclinou-se depositando-a sobre o
peito inerme:
— Não a toque; é uma espada Larith; nem ouso pensar no que as Larithae fariam com
você se o encontrassem com isto.
Os bêbados encolheram-se:
— Que eu deflore as cabras virgens se a tocar - falou um deles, num gesto
supersticioso. - Mas você não teme a maldição?
Agora ela estava confusa por ter tornado a pegar a lâmina Larith. Desta vez,
depositou-a cuidadosamente sobre o corpo da Laritha e pronunciou as palavras mágicas para
quebrar encantamentos caso o gesto da moribunda a tivesse de alguma forma deixado presa à
espada. Em seguida, desapareceu nas sombras da rua daquele jeito quieto e invisível que fazia
quase sempre as pessoas jurarem, de verdade, terem visto Lythande aparecer e sumir na
atmosfera. Ela ficou olhando, oculta na escuridão, até que surgiram as sentinelas blasfemando
e arrastaram os cadáveres para serem enterrados. Nesta cidade, pouco se sabia da Deusa
Larith e de sua veneração, e Lythande pensou, num golpe de consciência, que poderia ter
providenciado para que a mulher e os estupradores não fossem enterrados na mesma cova.
Bem, e se fossem? Estavam todos mortos e poderiam aguardar a Batalha Final contra o Caos
juntos; não se preocupariam mais com o que acontecesse com seus corpos; se o fizessem,
poderiam queixar-se aos juízes que os estivessem aguardando no outro extremo do portal da
morte.
Esta história não trata do assunto que trouxera Lythande à Velha Gandrin, mas quando
este ficou resolvido no dia seguinte e o mago mercenário saiu de certa casa no Bairro dos
Mercadores, carregando mais moedas nas dobras de seu manto e lembrando-se com pesar do
estoque exaurido de ervas e pedras mágicas espalhadas pelos bolsos em diversos lugares,
Lythande percebeu como uma surpresa desagradável os dedos envolvendo um estranho objeto
de metal preso à sua cintura. Era a espada Larith e, além do mais, estava amarrada com um nó
difícil que lhe deu muito trabalho desfazer e que, certamente, não tinha sido obra sua!
— Caos e o fogo do inferno! - praguejou Lythande. - Há muito mais nesta magia
Larith do que pensei!
Aquele maldito impulso que a fizera imiscuir-se nos assuntos alheios parecia, agora,
tê-la atado à magia alheia. E não só isto: as palavras que usara para quebrar o encantamento
não funcionaram. Agora ela teria que fazer uma mágica forte que não falhasse; mas primeiro
precisava achar um lugar em que estivesse segura.
Na Velha Gandrin, ela possuía um esconderijo, e o assunto que a trouxera ali, embora
importante e bem pago, não era do tipo que torna as pessoas amigas ou que despertam muita
gratidão. Recebera mais do que pedira por seus serviços; mas se batesse à mesma porta, onde
exorcizara fantasmas e assombrações, não se iludia quanto a ser bem recebida. O que fazer
então? Um Adepto Peregrino não faz mágicas nas ruas como um prestidigitador mambembe!
Uma taverna? Algum abrigo ela teria que encontrar, antes que o olho incandescente de
Reth mergulhasse no horizonte; estava carregando muito ouro e não desejava defendê-lo nas
ruas noturnas do Bairro dos Ladrões. Ela precisava suprir seu estoque de ervas mágicas, e
também achar um lugar para descansar, comer e beber, antes de partir para o norte em direção
ao altar da Deusa Larith. . .
Lythande praguejou em voz alta, tão irada que um passante virou-se para olhá-la em
protesto. Para o norte, em direção a Larith? Estaria esta maldita espada enfeitiçada começando
a agir sobre os seus próprios pensamentos? Esta era uma magia forte; mas não poderia ir a La-
rith, não; pela Batalha Final, ela não iria para o norte, e sim para o sul, e para lugar algum
próximo daquele amaldiçoado santuário das Larithae! Não, enquanto ainda houver alguma
mágica no arsenal de um Adepto Peregrino, eu não irei!
No mercado, movendo-se silenciosamente disfarçada pelo seu manto, ela encontrou
uma tenda onde se vendiam as ervas mágicas e barganhou rapidamente por elas; rapidamente,
pois a lei da magia ordena que tudo de que se necessite para a sua realização seja adquirido
sem muita discussão, sendo o ouro nada mais do que entulho a serviço das artes mágicas.
Entretanto, Lythande cismava com a expressão sombria: isto evidentemente já havia se
espalhado entre os vendedores de ervas e velas mágicas do mercado de Gandrin, e o resultado
era que os preços haviam passado de abusivos a inconcebíveis. Lythande reclamou com a
mulher de uma dessas tendas.
— Vamos, o que é isso? Quatro Terços por um punhado de fumo?
— E como é que eu vou saber se depois de você me dar o ouro, ele não vira cobre ou
coisa pior? - perguntou a vendedora. - Na lua passada, vendi para um da sua Ordem um
quartel inteiro de ervas absinto e sanguinária defumadas com avelã, erva de bruxa, e o
comedor de cabras virgens me pagou com duas moedas de ouro. . . ele disse. Mas quando a
lua mudou, eu fui olhar e elas tinham virado um punhado de cevada amarrado com erva de
bruxa e fediam mais que o peido do diabo! Eu levo em conta esses riscos, quando faço o meu
preço, magos!
— Certas pessoas desprestigiam o título de mago - concordou Lythande séria, mas
desejando intimamente conhecer aquela mágica. Havia alguns estalajadeiros desonestos que
estariam mais bem pagos com grãos de cevada; na realidade, o grão valeria mais do que os
seus serviços!
A vendedora olhava para Lythande como se ainda tivesse algo a dizer, e ela ergueu as
sobrancelhas interessada em ouvir.
— Eu dou o que você quer pela metade do preço se me ensinar uma mágica para saber
se o ouro é de verdade ou não, mago.
Lythande olhou ao redor, e numa bancada ao lado viu os cristais de que precisava.
Apanhou um.
— O cristal chamado zeth azul é uma pedra de toque mágica - falou Lythande. - O
ouro falso não terá o mesmo brilho que o ouro verdadeiro; e tudo que tiver sido encantado
para parecer ouro se revelará exatamente como é, mas só se você piscar três vezes e olhar
entre a segunda e a terceira piscadela. Esse bracelete no seu braço, mulher. . .
A mulher fez escorregar a pulseira pelo braço gorducho; Lythande examinou-a através
do cristal.
— Como você pode ver muito bem, este bracelete é. . . - falou ela, concluindo
surpresa: - . . . ouro falso; metal vagabundo dourado.
A mulher envesgou os olhos, piscando para o bracelete:
— O quê? Aquele comedor de cabras virgens - rosnou. - Vou lhe dar um chute no
traseiro que ele vai parar lá no rio! Ele e as suas histórias do tio ourives. . .
Lythande mal reprimiu um sorriso:
— Terei criado algum problema com o marido ou o amante, boa mulher?
— Só que ele vai ficar na vontade, eu garanto - resmungou a mulher, atirando no chão
o bracelete barato, com desdém.
— Veja, então, algo que tenho certeza de que é ouro de verdade — falou Lythande,
apanhando uma das moedas que dera à mulher. - O ouro verdadeiro aparece assim. . .
A um gesto seu, a mulher inclinou-se para olhar o brilho dourado da moeda.
— O que não é ouro absorverá a cor azul do cristal zeth, ou. . .- ela pegou uma peça de
cobre, e o metal cintilou num brilho dourado enganador; ela o colocou sob o cristal - ... se
você piscar três vezes e olhar entre a segunda e a terceira piscadela, verá de que matéria é
realmente.
Encantada, a vendedora comprou um punhado de cristais zeth azul na barraca vizinha.
— Leve as ervas, então, um presente por outro - falou ela, perguntando depois,
desconfiada: - O que mais vai me pedir por isto? Porque realmente não tem preço...
— Não tem preço, mesmo - concordou Lythande. — Eu só peço que você passe
adiante para mais três pessoas, e exija de cada uma delas que conte para mais três. Os magos
desonestos disseminam a má reputação... e depois se torna difícil para o honesto ganhar a
vida.
E, é claro, o que nove mulheres no mercado sabiam logo seria conhecido por toda a
cidade. Os vendedores do zeth azul lucrariam, mas dentro do limite de seus méritos.
— Mas os magos da Estrela Azul são honestos, pelo menos nas suas transações
comigo — falou a mulher, guardando os cristais num bolso grande e não muito limpo. -
Recebi ouro bom de um que comprou erva de bruxa na última lua nova.
Lythande se contraiu, continuando impassível, mas a Estrela Azul na sua testa clara
começou a cintilar ligeiramente.
— Sabe o seu nome? Não sabia que um irmão da minha Ordem tinha estado em
Gandrin nesta época do ano.
Isso não significava nada, é claro. Mas, como todos os Adeptos Peregrinos, Lythande
era uma pessoa solitária, e preferiria que o que fizesse naquela cidade não fosse espionado por
ninguém. E isto tornava urgente a sua missão; acima de tudo, não deveria ser vista com a
espada Larith, para que o segredo do seu sexo não ficasse conhecido. Em Gandrin isto não era
muito divulgado - as Larithae quase nunca desciam tão ao sul - mas no norte sabia-se que
apenas uma mulher poderia tocar segurar ou brandir uma espada Larith.
— Pensando bem — falou ela —, eu lhe prestei como disse, um serviço inestimável;
preste-me outro em retribuição.
A mulher hesitou por um momento, e Lythande não a culpou. Regra geral, não é uma
atitude sábia meter-se nos assuntos particulares dos bruxos, e, sobretudo quando este bruxo
brilha com as centelhas faiscantes da Estrela Azul. A mulher se animou vendo o bracelete de
ouro falso e murmurou:
— O que você quer?
— Leve-me a um lugar seguro onde eu possa me alojar esta noite, onde possa fazer
mágicas sem que ninguém me veja.
A mulher respondeu finalmente, de má vontade:
— Minha casa não é uma taverna, não tenho uma sala para servir bebidas e nem
grandes fornos onde assar carnes. Mas de vez em quando alugo o quarto de cima, se o
inquilino é sóbrio e respeitável. E o meu filho — ele tem dezenove anos e os ombros de um
touro — pode ficar embaixo com um porrete e manter afastados os intrusos. Deixo pra você
por meia moeda de ouro.
Meia moeda? Era mais exorbitante do que o preço que ela estipulara para a sua
trouxinha de erva de bruxa. Mas, nesta hora, Lythande não ousava regatear.
— Feito, mas deve me servir uma refeição decente.
A mulher pensou em aumentar o preço, mas diante do faiscar da Estrela Azul, falou
rápido:
— Vou mandar buscar na casa de pasto ali na esquina uma galinha assada e um bolo
de mel.
Lythande concordou, pensando na espada de Larith sob o manto. Quando estivesse
sozinha, utilizaria os seus melhores poderes mágicos para quebrar encantamentos, depois
enterraria a espada na margem do rio e se apressaria rumo ao sul.
— Estarei aqui na hora do crepúsculo — falou.
Quando a face rubra de Reth desapareceu no horizonte, Lythande trancou-se no quarto
de cima. Estava terrivelmente faminta e com sede — entre a dúzia ou mais de votos que
resguardavam o poder de um Adepto Peregrino, estava a proibição de comer ou beber à vista
de um homem. Isto não se aplicava às mulheres, mas, sempre atenta à possibilidade de um
disfarce como o seu, ela se defendia com eterna vigilância e disciplina; e atualmente não
poderia se forçar a comer ou beber alguma coisa, exceto na presença de uma ou duas
confidentes, e apenas uma delas sabia que Lythande era mulher. Mas esta estava longe, numa
cidade além do fim do mundo, e Lythande não contava com ninguém de confiança mais
próximo.
Ela conseguira, horas atrás, um gole de água numa fonte pública numa praça deserta.
Não comia nada desde vários dias, a não ser alguns pedaços de frutas secas, engolidas na
escuridão, de uma pequena reserva que mantinha nos bolsos do manto. O raro requinte de
uma refeição quente com a garantia de privacidade quase a fazia perder o controle, mas, antes
de tocar em alguma coisa, verificou os trincos e procurou pelas paredes buracos invisíveis por
onde poderia ser espionada; isto não era provável, ela sabia, mas a sobrevivência de Lythande
todos estes anos dependera justamente desta indispensável vigilância.
Em seguida, bebeu da água do cântaro, lavou-se cuidadosamente e, colocando um
pouco de água para esquentar na lareira, raspou com atenção as sobrancelhas, um artifício que
usava desde que se tornara velha demais para passar por um rapaz imberbe. Deixou a navalha
e o sabão propositalmente em frente à lareira, onde pudessem ser vistos. Ela podia se
precisasse criar rapidamente a ilusão de um rosto barbado, e às vezes esfregava pó nas faces
para realçar esta aparência, só que isso era difícil e exigia muita concentração, razão pela qual
ela não ousava confiar nesse artifício; portanto, raspava rente as sobrancelhas, achando que
um homem que raspa as sobrancelhas provavelmente raspa a barba também.
Ouvindo passos na escada, cobriu-se com o manto; a vendedora de ervas venceu
bufando os últimos degraus e atravessou a porta aberta. Colocou a bandeja fumegante sobre a
mesa, murmurando:
— Eu despejo isto pra você — e pegou a tigela com a água de sabão e a jarra. — Meu
filho está na escada com o porrete; ninguém vai lhe perturbar, mago.
Não obstante, Lythande, novamente sozinha, certificou-se de que todos os trincos
estavam bem fechados e o quarto livre de olhares espiões ou encantamentos; quem poderia
dizer o que a mulher trouxera com ela? Alguns desses vendedores tinham pretensões às artes
mágicas. E não só isto; ela dissera que tinha visto outro Adepto da Estrela Azul; e Lythande
tinha inimigos entre eles. Talvez a vendedora estivesse sendo paga por Rabben, o Meia-Mão,
ou Beccolo ou. . . Lythande deixou de lado estas especulações inúteis. O quarto parecia vazio
e inofensivo. O cheiro da galinha assada e do pão fresco era estonteante na situação em que
ela estava, mas as mágicas não se faziam de estômago cheio, por isso ela mandou o cheiro
para um canto remoto da sua consciência e sacou a espada de Larith.
Era morna ao toque, e passou aquele leve formigamento que lembrou a Lythande que
ali havia um poder mágico.
Ela atirou ao fogo o conteúdo de uma caneca composto de certas ervas e, aspirando o
forte perfume, condensou todos os seus poderes numa só fórmula mágica. Sob seus pés, o
chão balançava conforme se extinguia a Palavra de Poder e ouviu-se um rumor abafado e
distante, como de muros e torres ruindo — ou seria apenas uma trovoada de verão ao longe?
Ela passou a mão de leve sobre a espada, cuidando para não tocá-la. Não estava muito
familiarizada com os poderes mágicos das Larithae; sendo Lythande, o Adepto Peregrino, não
poderia estar, e quando ainda vivia como mulher, nunca soubera mais dos que as pessoas nas
ruas sabiam. Mas estava lhe parecendo que qualquer poder mágico que pudesse ter existido na
espada havia desaparecido; talvez não expulso, porém adormecido.
Da sua trouxa, sacrificou uma das túnicas que trazia a mais e envolveu com cuidado a
espada. A túnica era boa, de seda branca pesada, da antiga cidade murada de Jumathe, onde os
bichos-da-seda são criados por uma casta especial de mulheres, cegadas na infância para que
os dedos adquirissem mais sensibilidade na hora de desfiar a seda dos casulos. Suas canções
são legendárias e Lythande estivera lá uma vez, vestida de mulher, com uma capa escondendo
a Estrela Azul, grata à cegueira das mulheres por poder falar como ela mesma, cantara para
elas cantigas da sua terra ao norte e ouvira em troca as suas canções, enquanto elas pensavam
que ela era apenas uma jovem menestrel andarilha. A supervisora, entretanto, que enxergava,
ficara desconfiada e acabara acusando-a de ser um homem disfarçado - pois um homem que
se aproximasse das mulheres cegas cometia um crime pelo qual era punido com um tipo de
morte particularmente desagradável - o que obrigara Lythande a usar todos os poderes
mágicos para se livrar. Mas esta é outra história.
Lythande embrulhou a espada na túnica. Lamentava a necessidade de se desfazer dela
- fazia tanto tempo que a possuía. Estremeceu pensando quantos anos atrás ela cantara as suas
canções na casa das mulheres cegas que criavam os bichos-da-seda em Jumathe! Mas para
esta mágica era necessário um verdadeiro sacrifício, e ela não tinha nada a sacrificar que lhe
significasse alguma coisa; portanto, envolveu a espada na túnica e amarrou-a com o cordão
que ela tinha passado pelo vapor das ervas, dando o nó mágico de nove voltas.
Depois, deixou o embrulho de lado e sentou-se para comer a galinha assada e o pão
recém-saído do forno, com a sensação do trabalho bem-feito.
Quando a casa ficou quieta e o filho da vendedora de ervas havia posto de lado o
porrete e se retirado para dormir, Lythande esgueirou-se pelas escadas silenciosamente como
uma sombra. Tinha que fazer um feitiço para o trinco não ranger, e alguma coisa menor para
que os transeuntes não vissem a trava corrida, o cadeado solto e a porta aberta. Com o
embrulho de seda debaixo do braço, deslizou furtivamente até a margem do rio, cavou um
buraco e o enterrou; depois, pronunciando as últimas palavras mágicas, afastou-se sem olhar
para trás.
Voltando para a casa da vendedora de ervas, pensou ter visto alguma coisa seguindo-a
e virou-se para olhar. Não, era apenas uma sombra. Esgueirou-se pela porta aberta - que
continuava sob o encantamento e parecia trancada - aferrolhou-a por dentro e tornou a subir
para o seu quarto, fazendo menos ruído do que um ratinho nas paredes.
O fogo reduzira-se a pedaços de carvão. Lythande sentou-se ao pé da lareira e pegou
de dentro da sua trouxa uma pequena porção de ervas sem propriedades mágicas, enrolou-as
num cilindro estreito e acendeu. Estava tão relaxada que nem usou o anel de fogo; curvou-se e
acendeu o rolinho nos últimos carvões ainda incandescentes. Recostou-se, inalando a fumaça
perfumada e deixando-a sair lentamente pelas narinas. Quando chegou no finalzinho do rolo,
tirou as botas pesadas, envolveu-se bem no manto de mago, depois no cobertor da vendedora,
e deitou-se para dormir.
Antes do nascer do dia, ela deveria se levantar e desaparecer como num passe de
mágica, deixando atrás de si a porta trancada por dentro - não havia nenhuma razão especial
para isto, mas um mago deve preservar certo mistério, e se ela saísse descendo as escadas da
forma comum, talvez a sua hospedeira ficasse com a impressão de que os magos não são
pessoas assim tão extraordinárias, já que comem bem, lavam-se, barbeiam-se e sujam a água
da jarra como qualquer mortal. Portanto, quando Lythande tivesse ido embora, o quarto
estaria arrumado sem uma dobra nos lençóis da cama ou qualquer vestígio de cinzas na
lareira, a porta continuaria trancada por dentro como se ninguém tivesse saído de lá.
Além disso, era mais divertido assim.
Agora, porém, ela dormiria algumas horas em paz agradecida, pois, apesar da sua
inépcia, deixando-se envolver na mágica alheia, terminara tudo bem. Nem um sussurro
perturbou o seu sono, o que significava que o pior ainda estava para vir.
O último dos ladrões à espreita esgueirara-se para seu esconderijo, e o olho vermelho
de Keth ainda estava oculto pela noite quando Lythande saiu furtivamente da Velha Gandrin
pelo portão sul. Ela pegou este caminho por duas razões: sempre havia trabalho para
mercenários e magos no próspero porto de Gwennane; e ela também desejava estar certa de
que, depois do drástico rompimento do encanto, nada a chamaria em direção ao norte para o
altar Larith.
A lua menor já havia se apagado, e estava-se naquela hora escura quando a aurora nem
mesmo é uma promessa no céu. O portal estava trancado; o sentinela sonolento, quando
Lythande lhe pediu tranqüilamente que o abrisse, resmungou que não abriria àquela hora nem
para o próprio Déspota Supremo de Gandrin, muito menos para um vagabundo arruaceiro; as
pessoas honestas e as desonestas ainda estavam dormindo ou deveriam estar. Mais tarde, ele
se lembrou de que a estrela entre o que deveriam ser as sobrancelhas de Lythande começara a
brilhar, faiscando numa luz azulada, não sabendo explicar como se vira abrindo docemente o
portão e fechando-o de novo.
— Porque - falou ele com seriedade - eu não vi aquele sujeito vestido com um manto
de mago passar pelo portão. Não vi mesmo; ele ficou invisível!
E porque Lythande não era bem conhecida na Velha Gandrin, ninguém jamais lhe
disse que esta era apenas a sua maneira de fazer as coisas.
Lythande suspirou de alívio quando o portão se fechou atrás de si, e começou a andar
rapidamente na escuridão, a passos largos e em silêncio. Neste passo, o Adepto Peregrino
cobriu várias léguas antes que um leve rubor no céu denunciasse onde o olho de Keth estaria
olhando por entre as nuvens escuras. Reth seguiu-o algumas horas depois. Lythande
continuou, percorrendo veloz o caminho, quando sentiu uma vaga perturbação que não
conseguia identificar. Sim, algo estava errado.
. . . E sem dúvida estava. Keth erguia-se, que era o que devia acontecer, mas erguia-se
à sua direita, o que não devia acontecer; ela safra de Gandrin pela estrada do sul, e agora
estava caminhando a passos rápidos em direção ao norte. Para o norte. Para o altar de Larith.
Mas ela não se lembrava de ter dado uma volta grande o suficiente para se confundir e
tomar o caminho errado na escuridão. Era o que deveria ter acontecido. Parou a meio passo,
deu um giro, situou o sol onde ele deveria estar, à sua esquerda, e começou a andar firme em
direção ao sul.
Depois de certo tempo, porém, ela sentiu um pinicar nas bochechas e nas nádegas, e o
brilho frio abrasante entre as sobrancelhas que lhe dizia que estavam fazendo magias por
perto. O sol brilhava à sua direita, e ela estava bem em frente aos portões da Velha Gandrin.
— Não! Caos e a danação eterna! - falou Lythande em voz alta, perturbando um
pequeno grupo de leiteiras que conduziam suas vacas ao mercado. Elas olharam espantadas
aquela figura alta e assexuada e cochicharam, mas Lythande não se incomodou com isso.
Tornou a fazer meia-volta e se viu atravessando os portões da Velha Gandrin novamente.
Pelo portão sul. Viajando para o norte.
Isto é um absurdo, pensou Lythande. Eu mesma enterrei a espada, eu mesma a prendi
ali com a minha magia mais forte! Entretanto, a sua trouxa estava estranhamente bojuda.
Contendo uma expressão obscena, Lythande desfez a trouxa e descobriu o que já sabia no
momento em que sentira aquela dormência esquisita que lhe avisava que forças mágicas
estavam atuando — a magia de outra pessoa! Bem por cima de tudo na trouxa,
desajeitadamente apertada, estava a túnica de seda branca, suja da lama do rio e deixando
aparecer entre as suas dobras — como se, pensou Lythande estremecendo, estivesse tentando
sair — a espada Larith.
Lythande não teria sobrevivido tanto tempo sob os Dois Sóis se não houvesse se
tornado imune à histeria. Os Adeptos da Estrela Azul possuíam fortes poderes mágicos; mas
os magos sabiam que cedo ou tarde todos se defrontariam com um poder ainda mais forte. Ela
agora sentia raiva, e não medo. Com toda a sua energia, Lythande amaldiçoou o impulso
momentâneo de compaixão por uma mulher moribunda que a levara a se revelar. Bem, já
estava feito. Tinha consigo a espada Larith, e era provável - pensou Lythande com um laivo
de ironia - que continuasse assim até descobrir uma fórmula mágica bastante forte para se
livrar dela novamente.
Estaria pronta para um duelo mágico prolongado? Isto chamaria a atenção, e dentro
dos muros da Velha Gandrin - assim lhe dissera a vendedora de ervas - havia outro Adepto da
Estrela Azul. Se ela começasse a fazer mágicas realmente poderosas - e o próprio trabalho de
quebrar o encantamento fora um risco - mais cedo ou mais tarde despertaria a atenção desse
Adepto que ali estava. Com esta sorte que parecia estar perseguindo-a, teria que ser o pior de
seus inimigos na Ordem: Rabben, o Meia-Mão, Beccolo ou. . .
Lythande fez uma careta. Por mais amarga que fosse a idéia de reconhecer a derrota, o
caminho mais seguro parecia ser seguir para o norte como desejava a espada Larith. Se
conseguisse, ao chegar lá descobriria um jeito de devolver a espada ao seu altar. De qualquer
forma, havia se decidido a deixar a Velha Gandrin, e uma direção era tão boa quanto outra.
Que assim fosse. Ela levaria aquela maldita coisa para o Santuário Proibido ao norte, e
lá a deixaria. Arranjaria um jeito de largá-la com alguém que pudesse entrar no santuário, o
que ela não podia fazer. . . o pior era que ela podia entrar mas não ousava expor-se. Para o
norte, então, para o altar de Larith. . .
Passada uma hora, embora tivesse se demorado umas vinte auroras na Velha Gandrin e
devesse conhecer o caminho, Lythande estava inevitavelmente perdida. Fosse qual fosse a
trilha que Lythande tomasse por entre o mercado, a praça, o Bairro dos Ladrões ou a Rua das
Lanternas Vermelhas, por mais que tentasse manter o sul à sua direita, em poucos minutos
estava inutilmente de volta. Quatro vezes ela perguntou pelo portão norte, e uma vez ele
chegou mesmo a ficar visível, e então parecia que a rua de pedras sacudia-se, torcendo-se
ligeiramente, e Lythande se via de novo perdida no labirinto das velhas ruas. Por fim, exausta,
extremamente faminta e com sede, e sem chances de encontrar um momento para comer ou
beber com privacidade agora que o sol estava alto e as ruas lotadas, deixou-se cair aborrecida
sobre a murada de uma fonte em praça pública, irritada com o respingar da água que ela não
ousava beber, e ficou ali pensando. . .
O que aquela maldita coisa queria, afinal de contas? Resolvera se dirigir ao norte, para
o Santuário Proibido, conforme pensava que lhe ordenavam; entretanto, era impedida pela
espada, ou pela magia da espada, de encontrar o portão norte, como fora impedida de achar o
caminho para o sul. Deveria ficar indefinidamente na Antiga Gandrin? Não lhe parecia
sensato, mas, então, não havia nada sensato em tudo isto.
Pelo menos, isto vai me ensinar a no futuro não me meter nos assuntos alheios!
Carrancuda, Lythande considerava as alternativas. Tentar encontrar o túmulo da
Laritha estuprada e enterrar a espada com um encantamento ainda mais forte? Mesmo se
conseguisse achar o lugar, não era garantido que a espada permanecesse enterrada, e tudo
levava a crer que não permaneceria. As chances eram de que todo o poder da Estrela Azul
seria em vão, a não ser que Lythande desejasse usar aquele que em troca a deixaria impotente
por vários dias.
Procurar abrigo no Lugar Que Não E, fora dos limites deste mundo, e ali tentar
descobrir o que a espada realmente queria e por que ela não lhe permitia sair da cidade? Para
isto, seria necessário a proteção da escuridão; ia passar o dia andando à toa pelas ruas da
Velha Gandrin? O cheiro de comida que vinha de uma casa de pasto era um suplício, mas ela
estava acostumada e decididamente ignorou-o. Mais tarde, em alguma rua ou viela deserta,
umas frutas secas dos bolsos do manto achariam o caminho da sua boca, mas agora não.
Pelo menos, poderia gozar de um momento de descanso ao lado da fonte. Mas assim
que este pensamento lhe passou pela cabeça, ela se viu de pé cruzando inquieta a praça,
guardando o pacotinho com as ervas de fumo de volta no bolso.
Zangada, ela se perguntou aonde, inferno, estaria indo agora. A mão pousava
levemente no punho da espada Larith, e ela esperava que ninguém na rua a visse, ou soubesse
o que ela significava. Ela esbarrou com força em alguém que rosnou, acusando-a, num tom
mal-humorado de perversão, de ser um violador de cabritinhas. As obscenidades da Velha
Gandrin já não tinham imaginação, e se repetiam como em qualquer outro lugar debaixo do
olho cego de Keth-Ketha.
Cruzando a praça da fonte, entrando por uma viela estreita e tortuosa que ia sair,
depois de uma boa meia hora de caminhada, numa outra praça, desta vez em frente a uma
fileira de barracas, Lythande encontrava-se num curioso estado de sonho que reconheceria
mais tarde como quase hipnótico. Ela se observava atravessando decidida a praça como se
soubesse aonde ia e para quê, sentindo que a qualquer momento, se desejasse, poderia resistir
a esta misteriosa compulsão - mas isto dava muito trabalho; por que não continuar e ver o que
a Larith queria?
Quatro homens mergulhavam com espalhafato os rostos na água de um cocho grande
diante das barracas, os seus animais de corrida resfolegando na água ao lado deles. A espada
da Laritha estava na sua mão, e a cabeça de um dos homens balançava-se como uma maçã
sobre a água antes que Lythande soubesse o que estava fazendo - quer dizer, a espada. A
segunda tombou, cuspida fora, antes que os outros dois empunhassem suas espadas. A Larith
perdera a sua compulsão e pendia frouxa na sua mão enquanto ela ouvia os gritos revoltados
dos homens, pensando com ironia que estava tão espantada com tudo aquilo como eles, ou
quem sabe até mais. Tentou desajeitadamente controlar a espada, pois agora lutava pela
própria vida. Estes homens não a deixariam escapar, agora que havia assassinado dois de seus
companheiros sem ser provocada. Conseguiu desarmar um deles, mas o outro a fez ir re-
cuando, recuando, defendendo a sua área o melhor que podia; um golpe, uma defesa, volta à
posição de guarda, uma estocada — o pé escorregou em alguma coisa molhada no chão, e ela
caiu, cambaleando à procura do apoio da parede. Sem saber como, ergueu a espada e a viu
cravar-se no peito do homem; ele grunhiu, caindo por cima dos corpos dos seus
companheiros, dois mortos e um bastante ferido.
Lythande começou a correr em fuga, enjoada e revoltada - pelo menos o quarto
homem não precisaria ser assassinado a sangue-frio - mas aí ela percebeu que não tinha
escolha. Aquele que sobrevivera poderia testemunhar ter visto um mago com a Estrela Azul
cintilando entre as sobrancelhas raspadas, com a espada Larith na mão, e qualquer Adepto
Peregrino que ouvisse a história saberia que Lythande carregava a Larith incólume. Como só
uma mulher poderia fazer. Ela brandiu novamente a espada. O homem gritou:
— Socorro! Assassino! Não me mate, não tenho nada contra você. . . - e saiu correndo,
mas Lythande seguiu-o de perto, como um implacável anjo vingador, atravessando-o com a
espada, com uma expressão de desgosto.
Em seguida, ela se afastou correndo ao ver a massa de homens que safam das barracas
atendendo aos gritos angustiantes de seus camaradas, e se perdeu novamente no emaranhado
das ruas.
Finalmente, teve que parar para recuperar o fôlego. Por que a espada exigira aquelas
mortes? A resposta veio de imediato, imprimindo os restos dos dois homens que ela havia
matado primeiro - ou a espada o fizera quase sem a sua ajuda ou conhecimento — na sua
mente. Eles estavam entre os homens debochados que haviam violentado a agonizante
sacerdotisa-espadachim. Então, entre os seus outros poderes, a espada Larith fora encantada
para agir em vingança própria.
Mas ela, Lythande, não parará nos homens que a espada quisera matar. Assassinara a
sangue-frio mais dois outros para proteger o segredo do seu sexo e da sua magia.
Agora esta maldita coisa me envolveu não apenas na magia alheia, mas também na
vingança alheia!
Estaria a espada satisfeita, ou seria uma dessas que continuam matando, matando, até
estar, inconsideravelmente, saciada? Agora, porém, ela estava bastante tranqüila na sua
bainha. E afinal, depois que ela matara os dois que testemunharam ou participaram do estupro
da Laritha, a compulsão desaparecera; os outros, ela matara mais ou menos por sua livre
vontade.
Uma imagem passou diante dos seus olhos: um homem corpulento, de nariz adunco e
suíças ruivas. Ele estava no grupo em volta da Laritha agonizante e fugira. Ele não estava nas
barracas atrás da fonte, ou a espada sem dúvida a teria arrastado para lá e o teria matado,
acabando provavelmente com todos que se interpusessem no caminho.
Agora talvez ela pudesse sair da cidade — não estava certa quão ao norte ficava o
Santuário Proibido, mas lamentava cada hora que ainda tivesse que ficar com a espada Larith.
E eu juro que, de hoje em diante, jamais interferirei — sejam batalhas, roubo,
assassinato, estupro ou morte — em qualquer das nove mil e noventa formas já vistas pelo
olho cego de Keth. Chega de magias alheias!
Lythande virou-se, pegando uma trilha em direção ao portal norte, a passos largos,
eficientes e rápidos que obrigavam as criancinhas brincando nas ruas e os ociosos vadiando
por ali a se afastarem, às vezes com rapidez indignada. Entretanto, já era tarde e uma das
pálidas luas aparecera no céu, como a face sombria de um cadáver, antes que ela visse o portal
norte. Mas ela não estava mais caminhando para lá.
Maldição! Teria a coisa localizado outra presa? Foi preciso toda a sua concentração
para se impedir de sacar a Larith. Ela tentou, deliberadamente, diminuir o passo. Podia fazer
isso quando se concentrava, o que a deixou mais aliviada; pelo menos não estava totalmente
impotente diante da magia das Larithae. Mas era preciso um esforço muito grande, e sempre
que ela se desconcentrava, ainda que por um breve instante, começava a correr impulsionada
por aquela coisa infernal que não a deixava em paz. Se pelo menos pudesse saber aonde es-
tava indo!
Sem dúvida, a Laritha morta e violentada, a sacerdotisa que possuía a espada ou fora
por ela possuída, sabia. Lythande realmente desejava isto - estar em simbiose, partilhando a
sua consciência e os seus propósitos com uma maldita espada encantada? Ou a espada se
encantara apenas com a morte da sua dona, e as Larithae usavam-nas apenas como uma arma
comum?
Ela desejava que aquela espada desgraçada se resolvesse. Mais uma vez a imagem do
rosto surgiu na sua mente, um homem com suíças ruivas e o nariz curvo, mas com focinho de
coelho e dentes prognatos. Claro. A maioria dos homens que se rebaixavam a estuprar
mulheres eram feios e quase impotentes; qualquer macho que pudesse ser reconhecido como
tal poderia conseguir uma mulher sem se valer da força.
Que diabo, ela teria que ir atrás e matar todos, até mesmo os que estavam apenas
olhando na multidão? Se todos os que testemunharam o estupro fossem mortos, a honra
estaria lavada, ou esta era a filosofia das Larithae e suas espadas? Não queria saber mais do
que já sabia. Desejava apenas se livrar daquela coisa.
— Cuidado onde pisa, seu estuprador de cabras virgens - rosnou um transeunte, e
Lythande percebeu que, na pressa, havia tropeçado novamente. Esforçou-se para gaguejar
uma desculpa, contente de que o manto de mago cobria o seu rosto e não se via a Estrela
Azul. Que maldição, isto já estava indo longe demais. Começava a afetar a sua própria
personalidade - ela era Lythande, e a essência da sua reputação era aparecer e desaparecer
como se feita de sombras. Suas melhores fórmulas mágicas não a livravam daquilo. Ela
precisava dar um jeito de lhe dar o que queria, e acabar com o suplício, rápido. Tanto pior
seria se no mercado se comentasse a respeito de um Adepto da Estrela Azul sob os poderes
mágicos de Larith, como se assim ela devesse encontrar o seu pior inimigo; só que não de
repente.
Seria mais fácil se ela soubesse aonde estava indo. Havia a tentação contínua de cair
num estado de sonho hipnótico, sendo arrastada pela espada Larith; mas Lythande lutava para
permanecer alerta. Estava perdida novamente no labirinto das ruas de um bairro de uma
cidade onde nunca estivera antes. E aí, ao atravessar a praça em frente a uma casa de vinhos,
dessas de onde os fregueses e os bêbados saem cuspindo nas ruas, ela o viu: Suíças Ruivas.
Ela quis parar e olhar bem aquele homem que estava destinada a matar. Era contra
seus princípios matar, por motivos desconhecidos, homens cujo nome não sabia.
Não obstante, sabia o suficiente a seu respeito; violentara, tentara violentar, ou então
testemunhara o estupro de uma Laritha. Se o estupro fosse crime capital na Velha Gandrin, a
cidade estaria despovoada, pensou Lythande; ou habitada apenas por mulheres e por aquelas
cabras virgens que representavam um papel tão importante no seu linguajar irreverente. Ela
julgou fosse por isso que havia tão poucas mulheres desacompanhadas pelas ruas da Velha
Gandrin.
A Laritha e eu. E ela não escapou; quanto a mim, só escapei porque a minha
feminilidade não é conhecida. As mulheres da Velha Gandrin parecem se submeter a esta lei
tradicional que diz que a mulher que anda sozinha só pode esperar ser estuprada. A Laritha
quis desafiar a lei, e morreu.
Mas ela será vingada. . . E Lythande jurou com fôlego contido. Estava agindo como se
lhe importasse alguma coisa que as mulheres que não tivessem a sabedoria de ficar longe das
mãos de um estuprador devessem pagar por sua insensatez ou imprudência. Já estava farta de
assumir as pragas e magias alheias.
A espada de Larith, que jamais poderia ser carregada por um homem, estaria
começando a atuar sobre ela com sua maldita magia? Lythande parou imóvel no meio da
praça, tentando não olhar para Suíças Ruivas. Se ela vencesse o poder mágico da espada,
poderia deixá-lo viver, e, virando-se, seguir o seu caminho? Que outra pessoa conserte os
erros das Larithae!
O que tenho, afinal de contas, a ver com as mulheres? Se não querem cumprir o
destino que lhes coube, que façam como eu, renunciem às saias, às sedas e às artes do
quarteirão das mulheres e usem espada e culotes, ou um manto de mago, e ousem arriscar-se
ao que eu me arrisquei largando para trás tudo isso. Paguei caro a minha imunidade.
Ela suspeitava que o preço pago pela Laritha não fora menor. Mas isto, afinal, não era
da sua conta. Respirou fundo, invocou seus mais fortes poderes mágicos e com um esforço
imenso deu as costas ao Suíças Ruivas, caminhando na direção oposta.
E em tempo, também. O capuz do manto lhe cobria a cabeça, ocultando a Estrela Azul,
mas sob as suas pesadas dobras ela pôde sentir a ligeira ardência que lhe dizia que a estrela
cintilava, flamejante, e percebeu os raios azulados por sobre os olhos. Magia. . .
Não era a espada Larith. Ela estava quieta no seu cinto. . . não, não sabia como estava
com ela em suas mãos. Lythande não se mexeu, tentando reagir, e deu uma espiada dentro do
manto.
Não era o cintilar da Estrela Azul na sua testa. Ela vira, vira. . . onde estava, o que
tinha visto? O homem estava de costas para Lythande, ela pudera ver as dobras marrons de
um manto de mágico não muito diferente do seu; mas, embora não pudesse ver a sua testa ou
a estrela, sentira a Estrela Azul pulsar no mesmo ritmo da sua.
Ele também perceberá. Tenho que sair daqui o mais rápido possível. Isto foi decisivo.
Suíças Ruivas não pagaria pela sua parte no estupro da Laritha. Para Lythande já bastava de
magias alheias; levaria a espada Larith para o norte, onde ficava o seu altar, mas não iria, pelo
Caos e pela Batalha Final, ser vista aqui na presença de alguém da sua Ordem, lutando — ou
digamos a palavra certa, assassinando — com uma espada Larith.
A espada estava quieta na sua mão e aparentemente não reagiu quando ela a enfiou de
novo na bainha, embora no último momento Lythande achasse que ela havia se contorcido um
pouco, relutando ao ser forçada a ficar no lugar. Azar o dela, não lhe daria escolha. Lythande
murmurou umas palavras mágicas para prendê-la ali, esgueirou-se furtivamente por detrás de
uma coluna na praça e, com cuidado, deu a volta até poder ver, sem ser vista, o homem no
manto de mágico. Na sua testa, a Estrela Azul latejava e ela pôde perceber, pelo ligeiro mo-
vimento do capuz do homem, que ele também estava tentando olhar ao redor sem ser visto,
para saber se havia realmente outro Adepto Peregrino entre a multidão que estava na praça.
Bem, esta era sua maior habilidade, ver sem ser vista.
As mãos do homem, de dedos longos e musculosos, mãos de espadachim, estavam
entrelaçadas sobre o seu cajado. Não era Rabben, o Meia-Mão, portanto. Era alto e
corpulento; se fosse Ruhaven, era um de seus poucos amigos na Ordem, e não sendo um
homem da região norte, não conheceria a técnica de uma maldição Larith: provavelmente, não
saberia que uma larith só pode ser usada por uma mulher. Lythande brincou um pouco com a
idéia, se fosse Ruhaven, de lhe contar parte de seus apuros. Não mais do que deveria, apenas
que se vira envolvida com uma espada encantada e talvez lhe pedir ajuda numa fórmula mais
forte para quebrar encantamentos.
O Adepto Peregrino virou-se com um leve movimento dos ombros e Lythande viu de
relance os cabelos escuros sob o capuz. Não era Ruhaven - os cabelos dele eram grisalhos,
quase brancos - e ele era o único na Ordem a quem ela achava que poderia ter pedido ajuda,
pelo menos antes da Batalha Final entre a Lei e o Caos.
Então o Adepto Peregrino fez um gesto conhecido e Lythande encolheu ainda mais a
cabeça sob as dobras do manto e tentou se enfiar pelo meio da multidão, alcançar o outro lado
e sumir sem ser vista na viela atrás da praça e da taverna. Beccolo! Não podia ser pior! Sim,
ele achava que Lythande era homem. Mas haviam se empenhado os dois, certa vez, dentro do
Templo da Estrela, num duelo mágico, e não fora Lythande quem fizera a pior figura naquele
dia.
Beccolo talvez não conhecesse os detalhes da magia de Larith. Provavelmente não.
Mas se ele um dia a reconhecesse, e principalmente se desconfiasse que estava sob o feitiço
de uma maldição, iria querer logo se vingar.
E, horrorizada, Lythande percebeu que, enquanto pensava em Beccolo e na sua tristeza
por ser ele o seu pior inimigo entre os Adeptos Peregrinos, havia perdido a concentração com
que mantinha o controle da espada; ela estava desembainhada, nua na sua mão, e Lythande
acometia contra o povo, homens e mulheres encolhendo-se diante dos seus passos
determinados. Suíças Ruivas a viu, retraindo-se aterrorizado. Na véspera ele presenciara e
aplaudira o estupro de uma Larith — pelo menos, de uma mulher tornada impotente por uma
terrível desvantagem. E estivera entre os que fugiram quando um lutador alto e magro num
manto de mago, com uma Estrela Azul faiscante, havia abatido quatro homens em poucos
segundos.
O seu banco revirou e ele deu um chute no homem que caiu com ele, correndo para o
outro lado da praça. Lythande pensou, irada: Vai, desaparece logo daqui; não estou mais
interessada em matá-lo do que você em morrer. E ela sabia que Beccolo estava com os olhos
nela, e na Estrela Azul cintilando entre as sobrancelhas. E Beccolo não precisava disso para
saber quem era ela. Ele a reconhecia como o Adepto Peregrino que o havia humilhado nos
pátios externos do Templo da Estrela quando ainda eram noviços e a estrela cintilante não
fora colocada em suas testas.
Ela chegou quase a pensar por um momento que ele escaparia. Chutou para um lado o
banco e pulou em cima dele, a espada pronta para transpassá-lo. Este não ia ser tão fácil;
brandia a sua própria espada e desviava-se de seus golpes com grande habilidade. Homens e
mulheres afastavam-se em ondas sucessivas, abrindo espaço para a luta; Lythande,
enraivecida porque realmente não o queria matar, sabia, porém que era uma luta de morte,
pela vida, e que ela não ousaria perder. Ela caiu de costas, tropeçando ao se afastar; e o
mundo começou a girar em câmara lenta. Pareceu um minuto, uma hora; Suíças Ruivas
inclinando-se sobre ela, com a espada na mão, aproximando-se do seu pescoço nu, bem
devagar. E, nisto, o pé de Lythande atingiu a sua barriga; ele grunhiu de dor, e ela estava
novamente de pé e a sua espada atravessou o pescoço dele. Ela se afastou para trás, evitando o
sangue que esguichava. O seu único sentimento era a raiva, não contra Suíças Ruivas, e sim
contra a Larith. Enfiou-a de novo com ímpeto na bainha e saiu pisando firme sem olhar para
trás. Felizmente, a Larith desta vez não ofereceu resistência, e ela seguiu o seu caminho em
direção ao portal norte. Talvez conseguisse alcançá-lo antes que Beccolo pudesse vencer a
multidão e sair atrás dela. Em poucos minutos, Lythande safra da cidade e caminhava para o
norte - e ainda não havia sinal de Beccolo. Claro que não. Como poderia ele saber para que
quadrante ela se dirigia?
O dia inteiro, e grande parte da noite seguinte, Lythande caminhou para o norte num
passo uniforme que consumia léguas. Estava exausta e um descanso seria bem-vindo, mas a
insistente compulsão da Larith presa ao cinto não a deixava parar. Pelo menos assim—
pensava ela vagamente — havia menos probabilidade de que Beccolo descobrisse a sua pista.
Logo após Keth mergulhar na escuridão, na meia-luz suave do crepúsculo do olho
obscurecido de Reth, ela parou um instante às margens do rio, mas não pôde descansar;
apenas limpou meticulosamente a lâmina da Larith e tornou a guardá-la. Indistintas
protuberâncias e pequenas colinas mostravam onde os viajantes dormiam, e ela os observou
com uma ligeira inveja, mas logo saiu andando rapidamente com aparente determinação. Na
realidade, ela se movia num sonho escuro, quase sem perceber quando os últimos e pálidos
raios de Reth morreram no horizonte. Depois de algum tempo, a face manchada e ulcerosa da
lua maior iluminou de leve o caminho, mas não alterou em nada o passo de Lythande.
Ela não sabia para onde estava indo. A espada sabia, e isto deveria ser o bastante.
Alguma coisa lá no fundo dizia a Lythande o que estava lhe acontecendo e a deixava
furiosa. Era sua função como mago agir, e não ficar passiva, submissa à ação dos outros. Isto
era para as mulheres, e novamente sentiu a repulsa por este tipo de magia feminina em que as
sacerdotisas se tornavam instrumentos passivos de suas espadas. . . era o mesmo que ser
escrava de um homem! Mas talvez as próprias Larithae não fossem assim tão limitadas; ela
fora coagida pela Laritha estuprada e não tivera escolha.
A Laritha retribuiu o impulso que me levou a parar, na vã esperança de salvar sua
vida ou de libertá-la das mãos de seus estupradores. . . atando-me a esta maldição! Ao se
lembrar disso, Lythande praguejava em voz baixa, jurando vingar-se das Larithae. Mas ela ca-
minhou a maior parte daquela noite no mesmo estado sonhador, a mente vazia de
pensamentos.
Protegida pela escuridão, no seu caminho solitário, ela mascava as frutas secas, a
mente vazia como a de uma vaca ruminando. Ao amanhecer, ela dormiu um pouco, abrigada
por um pequeno bosque, tendo antes o cuidado de fazer um feitiço que a avisaria se alguém se
aproximasse a menos de trinta passos. Estava intrigada consigo mesma; usando roupas
masculinas, andara por todos os cantos sob os Dois Sóis, e agora comportava-se como uma
mulher medrosa temendo ser violentada. Seria a Larith, acostumada a ser carregada por
mulheres que não ocultavam o seu sexo mas circulavam por todas as partes defendendo-o
como deviam, que lhe trouxera novamente esta desconfiança feminina? Havia quantos anos
Lythande não considerava a possibilidade de ser surpreendida sozinha despida de suas roupas
e descoberta na sua feminilidade?
Ela sentia raiva de si mesma - e pior, sentia repulsa - por ainda conseguir pensar assim.
Como se eu fosse na verdade uma mulher, e não um mago, pensou ela furiosa, e por um
momento a ira congestionou sua fronte, enchendo-lhe os olhos de lágrimas que ela reprimiu
num esforço que lhe provocou uma dor de cabeça lancinante.
Mas eu sou uma mulher, pensou ela, e em seguida, num furioso retrocesso: Não! Eu
sou um mago, e não uma mulher! O feiticeiro não é masculino nem feminino, é um ser à
parte! Resolveu retirar o feitiço de alerta e dormir na sua descuidada paz habitual, mas, ao
fazer isto, o coração começou a bater forte e ela acabou refazendo o feitiço para se proteger e
adormeceu. Seria a espada a temerosa, guardando a tranqüilidade do sono da mulher que a
carregava?
Quando ela acordou, Keth estava dividido ao meio na linha leste do horizonte. Ela
continuou o seu caminho, o maxilar cerrado enquanto cobria o solo com seus passos longos e
regulares que iam fazendo desaparecer sob seus pés a distância. Estava começando a se
acostumar com o peso da Larith na sua cintura; distraidamente, vez por outra, sua mão a
acariciava. Uma espada leve, admirável para a mão de uma mulher.
Havia crianças brincando no segundo rio; elas se dispersaram procurando as mães
quando Lythande se aproximou da balsa, atirando as moedas para o balseiro numa raiva
silenciosa. Crianças. Eu poderia ter tido filhos se a minha vida tivesse tomado outros rumos,
e essa é uma magia mais misteriosa do que a minha. Ela não sabia de onde viera esse
pensamento estranho. Mesmo quando jovem donzela, jamais sentira outra coisa senão
repugnância diante da idéia de se sujeitar aos desejos de um homem, e quando suas
companheiras riam cochichando sobre essa possibilidade, Lythande se mantinha afastada,
desdenhosa, encolhendo os ombros com desprezo. Ainda não se chamava Lythande. Seu
nome era. . . Lythande parou horrorizada, percebendo que, no rumor do encrespar das águas
que vinham lamber a borda da balsa, ela quase ouvira o som de seu antigo nome, um nome
que ela jurara jamais tornar a pronunciar desde que passasse a usar as vestimentas masculinas,
um nome que ela jurara esquecer, não, um nome que ela esquecera. . . esquecera totalmente.
— Está assustado, viajante? - perguntou uma voz gentil atrás dela. -A balsa oscila, é
verdade, mas não há registro na memória humana de que já tenha virado ou de que um
passageiro tenha caído na água, e ela já funcionava aqui antes de a Deusa vir para o norte
fundar o seu santuário como Larith. Você está bastante seguro.
Lythande resmungou um agradecimento mal-humorado, recusando-se a olhar envolta.
Ela tinha a sensação da forma da jovem atrás dela, sorrindo esperançosa. Daria na vista se ela
não falasse se apenas se movesse em direção ao norte como a maldita e endemoniada coisa
que ela era. Procurou algo inofensivo para dizer.
— Costuma viajar por este caminho com freqüência? - perguntou.
— Com freqüência, sim, mas nunca cheguei tão longe - disse a gentil voz de menina. -
Agora estou indo para o Santuário Proibido, onde reina a Deusa Larith. Conhece o santuário?
Lythande resmungou que já ouvira falar. Ela pensou que ia engasgar com as palavras.
— Se eu for aceita - continuou a jovem voz -, servirei à Deusa como uma de suas
sacerdotisas, uma Laritha.
Lythande virou-se devagar para ver quem falava. Ela era muito jovem, com aquele ar
de garoto que algumas jovenzinhas conservam até os seus vinte anos ou mais. A maga
perguntou tranqüilamente:
- Por que, criança? Não sabe que as mãos dos homens estarão contra você? - e parou.
Estivera quase para lhe contar a história da mulher que fora violentada e morta nas ruas da
Velha Gandrin.
O sorriso da moça era luminoso.
— Mas se as mãos de todos os homens estiverem contra mim, ainda terei todas
aquelas que servem à Deusa ao meu lado.
Lythande viu-se entreabrindo os lábios para dizer algo cínico. Não fora esta a sua
experiência, a de que as mulheres poderiam se manter unidas. Mas por que deveria desfazer a
ilusão da menina? Que ela descobrisse por si mesma, em amargura. Esta menina ainda
acalentava o sonho de que mulheres podem ser irmãs. Por que Lythande deveria estragá-lo
antes da hora? Deu as costas decidida e ficou olhando a água barrenta sob a proa da balsa.
A menina não saiu do seu lado. Sob o seu manto de mago, Lythande a observava
disfarçadamente: a ondulação dos cabelos ensolarados, a testa lisa, o narizinho arrebitado de
linhas ainda indefinidas, os lábios e as pontas das orelhas tão macios que pareciam os de um
bebê, os delicados dedinhos, as sardas marotas que ela não se preocupava em disfarçar.
Se ela vai ao santuário de Larith, talvez eu possa me valer dela para levar até lá a
espada. Entretanto, se ela souber que eu, aparentemente homem, a trago comigo - se vai
solicitar ser aceita no santuário - certamente saberá que nenhum homem pode tocar uma das
espadas Larith sem receber um castigo tal que é melhor que fique apenas na imaginação.
E como eu carrego a espada incólume, serei acusada de blasfêmia- ou me revelarei
como uma mulher, despojada diante de meus inimigos. E agora, próxima do seu destino,
Lythande percebeu o seu dilema. Não poderia como homem, nem como mulher, pisar no
interior do santuário da Deusa Larith. O que faria, então, com a espada?

A espada não era o problema. Desde que a maldita coisa voltasse inteira para casa, ela
supunha, não importava qual fosse o portador - uma espadachim, uma menina como esta, uma
das cabras virgens tão importantes no elenco obsceno de Gandrin. Se ela simplesmente
pedisse à menina que a levasse ao santuário, revelaria a sua blasfêmia ou o seu verdadeiro
sexo.
Poderia esconder nela a espada, através de um feitiço ou transformada pela magia em
alguma outra coisa; uma fatia de pão, talvez, como a vendedora de ervas recebera os grãos de
cevada encantados para parecerem ouro. Não seria a mesma coisa, afinal de contas, se ela
estivesse enviando ao santuário de Larith algo que lhe fosse danoso; era apenas um objeto que
lhe pertencia e que, além disso, tornara um inferno a sua vida e lhe dera quatro - não, cinco;
não, havia todos aqueles a quem ela matara sobre o corpo da Laritha - lhe dera onze ou doze
vidas contra as quais lutar entre as legiões de mortos na Batalha Final quando a Lei
enfrentasse finalmente o Caos, saindo vencedora ou morrendo de uma vez por todas. E algo
que havia arrastado Lythande por todo este exaustivo caminho para poder voltar para onde
estava indo.
Ela considerou isto seriamente. Entregar a espada para a menina, enfeitiçada para
parecer uma outra coisa. Um presente para o altar da Deusa Larith.
A menina continuava de pé ao seu lado. Lythande sabia que sua voz soava rude e
áspera:
—Você pode levar um presente para o altar por mim, então? O sorriso ingênuo da
menina parecia zombar dela:
—Não posso. Esta Deusa só aceita presentes de suas sacerdotisas. Lythande retrucou
com um sorriso cínico:
— Você acha? A chave de qualquer santuário é feita de ouro, e quanto maior o ouro,
mais próximo o coração do santuário, ou do deus.
A menina olhou como se tivesse levado uma bofetada. Mas, depois de algum tempo,
respondeu com calma:
— Então, sinto muito que tenha conhecido esse tipo de santuário e de deuses, viajante.
Nenhum homem pode ver a nossa Deusa, ou eu o faria mudar de idéia. - E baixou o olhar para
o chão da balsa.
Repreendida, Lythande calou-se enquanto a embarcação batia em leves solavancos
contra a margem do rio. Os passageiros começaram a descer. Lythande esperou que a
multidão se aquietasse, a espada Larith excepcionalmente tranqüila por debaixo do manto.
A cidade era pequena, uma casa aqui outra ali, fazendas do lado de fora dos portões;
no alto de uma colina, por sobre as tendas esparramadas de um mercado, ficava o santuário de
Larith. Uma verdade, pelo menos, a menina falou: não havia nada que lembrasse ouro neste
santuário, pelo menos ao que se podia ver da rua; era uma fortaleza maciça construída com
simples pedras cinzentas.
Lythande percebeu que a jovem ainda estava ao seu lado quando desembarcou.
— Um presente, ao menos, a sua Deusa aceitou do sexo que finge desprezar - falou
Lythande. - Não foram mãos femininas que construíram este castelo, a meu ver mais uma
fortaleza do que um santuário!
— Não, você está enganado - respondeu a menina. - Não acredita estrangeiro, que uma
mulher possa ser tão forte quanto você mesmo?
— Não, não acredito. Uma mulher em cem, mil, talvez. As outras são fracas.
— Mas se somos fracas - falou a jovem - ainda assim são muitas as nossas mãos.
Ela se despediu com um cumprimento formal, e Lythande, retribuindo, com os dentes
trincados, ficou observando-a se afastar.
Por que estou tão zangada? Por que desejei magoá-la?
E a resposta precipitou-se sobre ela como uma torrente. Porque ela vai aonde jamais
poderei ir, e vai livre. Houve um tempo em que eu de bom grado empenharia a alma, caso
houvesse um lugar onde uma mulher pudesse aprender as artes da magia e o uso da espada.
Mas não havia lugar algum, lugar algum. Penhorei alma e sexo em busca dos mistérios da
Estrela Azul, e esta menina, esta menina de mãos delicadas, com seus discursos sobre
irmandades. . . onde estavam minhas irmãs no dia em que conheci o desespero e renunciei à
minha verdadeira identidade? Eu estava sozinha; não bastava que todas as mãos masculinas
estivessem contra mim, as femininas também estavam!
A dor latejava furiosamente dentro da sua cabeça, uma dor que a fazia apertar o
maxilar, franzir as sobrancelhas e fechar os punhos sobre as suas próprias espadas gêmeas.
Pode-se até pensar, disse ela para si mesma, deliberadamente distanciando-se da dor, que eu
vou chorar. Mas esqueci como fazer isso há mais de um século e certamente haverá motivos
mais fortes do que este para chorar antes que eu enfrente a Batalha Final na luta contra o
Caos. Mas não viverei até lá se não conseguir de alguma forma entrar onde nenhum homem
pode e devolver a maldita Larith ao seu lugar!
Ela já sentia, fluindo da Larith, a mesma intensa, insistente compulsão para galgar a
colina, entrar no santuário e atirar a espada diante da Deusa que a arrastara até ali junto com
Lythande.
No interior do santuário, todas as mulheres são bem-vindas como irmãs. . . este
sussurrar viera da menina ao falar do santuário? Ou era a própria espada, na sua ânsia de
seduzi-la para cumprir a magia de outra pessoa? Eu não. E muito tarde para mim. Apesar da
dor na cabeça, a antiga vigilância de Lythande de repente reafirmou-se. A balsa tinha se
afastado de novo da margem, e do outro lado do rio os passageiros voltaram a se aglomerar no
convés. Entre eles, entre eles. . . não, estava muito longe para ver, mas, com a visão mágica da
Estrela Azul latejando na testa, Lythande reconheceu uma figura vestida com um manto de
mago parecido com o seu. Beccolo tinha conseguido achar a sua pista.
Ele não conhecia necessariamente as leis do santuário. Por toda a região norte do país
espalhavam-se altares a todos os deuses, desde o Deus dos Ferreiros até a Deusa do Amor
Leviano. E este santuário também me é proibido, como tudo mais, exceto as artes mágicas
pelas quais renunciei a todas as outras coisas. Proibido aos homens para que não descubram o
meu segredo; às mulheres, para que os homens não tentem arrancá-lo delas. . . Beccolo
provavelmente não conhecia as peculiaridades das Larithae. Se ela pudesse de alguma forma
conduzi-lo ao santuário, as sacerdotisas lançariam sobre ele a sua renomada fúria destinada
aos homens que lá entram, e Lythande se veria livre da sua intromissão. O que realmente faria
a Deusa Larith a um homem que penetrasse no santuário como Lythande fizera no Templo da
Estrela Azul, disfarçada, vestindo roupas com a aparência de um sexo que não era o seu?
Ela lutava para resistir à compulsão mágica agindo sobre a sua mente. A Larith que a
tinha trazido até ali, quase como uma sonâmbula, estava desperta e gritava para que a
levassem para casa, e a mente de Lythande ouvia esses gritos, mesmo enquanto na sua raiva e
confusão tentava silenciá-los. Ela não podia entrar no santuário de Larith como Lythande,
nem como o Adepto da Estrela Azul, embora, se o fizesse, Beccolo não a pudesse seguir - ou,
se tentasse logo se defrontaria com a vingança.
Ela viu a balsa se aproximando da margem, e observava agora, com seus próprios
olhos cansados, e não com a visão mágica, a figura esguia do Adepto Peregrino que a tinha
perseguido até tão longe. Os Dois Sóis estavam alto no céu. Keth na trajetória, com Reth, em
direção ao zênite, cintilando na água como espadas luminosas que cegavam Lythande num
fulgor dolorido. Ela entrou no mercado, procurando evocar em torno de si a tranqüilidade
mágica que fazia com que todos os que a conheciam comentassem a sua habilidade em
aparecer e desaparecer diante de seus olhos.
A maioria das mulheres procura atrair a atenção de todos os homens. Antes mesmo de
entrar no Templo da Estrela Azul, eu tentava desviar esta atenção de mim. A magia não pode
dar a um mágico aquilo que não é desejado.
E conforme este pensamento penetrou sua mente, Lythande ficou totalmente tranqüila.
Durante o longo caminho até ali, ela amaldiçoara a má sorte que a levara a se intrometer na
magia alheia. Entretanto, nada de ruim a forçara a desviar-se do seu caminho para salvar a
Laritha de ser estuprada; ela jamais teria se envolvido na magia da espada Larith se algo
dentro dela não o tivesse permitido. Tivesse ela virado as costas ao estupro de uma mulher,
então estaria apoiando o Caos no lugar da Lei.
Absurdo. O que uma estranha é para mim? Com a dor lancinante que lhe rompia o
crânio, Lythande resistia à resposta dada sem o seu consentimento e contra a sua vontade.
Ela sou eu. Ela caminha por onde eu não ouso, uma mulher para todos verem.
Com raiva, Lythande virou-se, procurando a escuridão entre as tendas do mercado.
Embora ainda fosse cedo, os homens brigavam dentro de uma casa de vinhos. As mulheres
ordenhavam suas cabras e vendiam leite fresco. O chefe de uma caravana carregava os
animais relutantes. Na mente de Lythande, a espada Larith insistia, sabendo que o lar estava
próximo.
Poderia enviá-la por algum viajante inadvertido que se dirigisse ao santuário? Ela não
podia entrar. Não precisava. Talvez agora pudesse achar umas palavras mágicas que a
devolvessem ao seu lugar, já que a Larith estava na sua própria terra, para se livrar da sua
maldição, como se livrara da maldição de ser apenas uma mulher quando a Estrela Azul lhe
fora colocada entre as sobrancelhas. Ela executara os mais fortes encantamentos, culminando
no dia em que fora condenada a viver para sempre como fingira ser. Esta magia menor seria
simples em comparação com a outra.
Do lugar onde estava podia observar, sem ser vista, o caminho em aclive para o
santuário das Larithae. As mulheres subiam em busca do misterioso conforto que a Deusa lhes
oferecia; conduziam as cabras, quer para o sacrifício ou para vender o leite, Lythande não
sabia. Ela imaginou ver entre as mulheres a jovem da balsa, que viera se oferecer a Deusa, e
se viu acompanhando mentalmente a menina de quem jamais saberia o nome.
Nunca poderia ter me envolvido na magia das Larithae, ou qualquer outra, a não ser
que interiormente eu a reconhecesse como algo que me pertencia, pensou Lythande. Não era
um pensamento confortável. Estaria eu, talvez, secretamente, ansiando pela feminilidade a
que havia renunciado e pela qual morrera a Laritha?
Teria sido um desejo de morte que me trouxera aqui?
A raiva e à dor na cabeça, explodindo como as faíscas da Estrela Azul reagiram com
violência. Que loucura me trouxe aqui, questionando tudo que sou e tudo que fiz? Sou
Lythande! Quem ousa me desafiar, homem, mulher ou deusa?
Até parece que vim morrer como uma mulher entre as de minha própria espécie! E o
que pensariam estas sacerdotisas sob juramento, um juramento à espada e à magia, de uma
mulher que renunciou à sua identidade. . .?
Mas eu não renunciei à minha identidade! Renunciei apenas à minha vulnerabilidade
diante dos riscos de ser mulher e portadora da espada e dos poderes mágicos. . .
Que elas carregam com toda a sua coragem, lembrou-se ela, e novamente os olhos
moribundos da Laritha violentada, sorrindo enquanto ela pressionava a espada entre os dedos
de Lythande, perseguiam-na. Bem. Então ela morrera porque se expunha como uma mulher.
Foi a sua escolha. Esta é minha, falou Lythande para si mesma, apertando o manto contra o
corpo e segurando as suas duas espadas - a da direita para os inimigos deste mundo, a da
esquerda para os males e terrores da magia. E a espada Larith presa desconfortavelmente entre
elas. Ainda sou Lythande!
O santuário é um lugar proibido para mim, assim como a mulher de Jumathe que fazia
seda. E no santuário delas eu entrei, no meio das tecelãs cegas. Mas as Larithae não são assim
convenientemente destituídas da visão. Se eu circular entre elas como um Adepto da Estrela
Azul, elas acreditarão - como acreditou a supervisora das mulheres cegas - que sou um
homem que se infiltrou para roubar ou conquistar. O mínimo que poderia acontecer era
tirarem a minha roupa e descobrirem que sou mulher. E, mais cedo ou mais tarde, os ecos
desse acontecimento alcançariam meus inimigos e Lythande seria proclamada aquilo que
nenhum homem pode saber.
Ela caminhava agora entre duas tendas em que os artigos do vestuário feminino
estavam expostos em embrulhos vistosos, saias de tramas em cores vivas feitas com o algodão
grosso dos Desertos Salgados, longos xales e mantilhas, todas aquelas coisas coloridas e
macias que as mulheres idolatravam e pelas quais empenhavam corpo e alma, boa porcaria!
Lythande torceu os lábios com desprezo, e ficou impassível.
E proibido aos homens saberem que sou uma mulher. Pois no dia em que um deles
manifestar em voz alta este conhecimento ou ouvi-lo da boca de alguém, o meu Poder estará
em suas mãos e eu poderei ser morta como um animal. Mas dentro dos muros do santuário da
Larith, nenhum homem entra, portanto nenhum me verá. A idéia incendiou sua mente com o
brilho de Keth-Ketha no zênite; ela entraria no santuário das Larithae disfarçada de mulher!
É realmente um disfarce, pensou ela com um ligeiro sorriso no canto dos lábios. Não
sabia desde quando não usava roupas femininas, e agora seria puro fingimento vesti-las. Não
constituíam mais a sua identidade.
Nem ela poderia um homem, comprar abertamente estas coisas. Se uma pessoa
aparentemente do sexo masculino desaparecesse depois de comprar vestimentas femininas, e
uma estranha surgisse de repente no santuário - bem, não seria sensato esperar que todas as
Larithae fossem tão convenientemente tolas, nem as guardiãs de seus portões e as mulheres
que traziam suas oferendas.
Precisava, pois, dar um jeito de roubar as roupas sem ser vista. Não era um truque
muito difícil, afinal de contas, para quem recebera o apelido provocador de "Lythande, a
Sombra", nos pátios externos da Estrela Azul. Aparecer e desaparecer sem ser vista era o seu
dom especial. Ela começou a se mover furtivamente, uma sombra na escuridão das barracas
dos vendedores, fora das vistas de Keth e Reth. Mais tarde, naquele mesmo dia, um vendedor
de saias descobriria que apenas seis delas penduravam-se nas tiras de pano coloridas, onde
antes havia sete; um vendedor de cosméticos descobriu que três potinhos de pintura tinham
desaparecido diante dos seus próprios olhos, e embora se lembrasse de um estranho esguio
vestido com um manto de mago rondando as proximidades, podia jurar que não tinha nem por
um minuto tirado os olhos de cima das mãos desse estrangeiro; e um xale de lã e um véu
sumiram de um emaranhado de refugos e ninguém jamais deu por falta deles.
Keth estava se pondo novamente quando numa mulher magra e angulosa, com uma
trouxa às costas, caminhando como um homem, subiu -a colina em direção ao santuário. A
sua testa parecia estranhamente marcada, as sobrancelhas e as faces pintadas, os olhos
intensamente sublinhados com kohl. Ela tropeçou numa mulher conduzindo animais de carga,
e que praguejou chamando-a de ladra de cabras virgens. Então isto se dizia aqui também.
Lythande esteve para garantir à mulher, naquela sua voz suave e cínica, que seus
animaizinhos estavam totalmente seguros, mas achou que não valia a pena. Usar roupas
femininas a que não estava habituada já era castigo suficiente. Pelo menos poderia carregar a
Larith à vista, presa desajeitadamente à sua cintura, coisa própria de uma mulher não
acostumada a lidar com elas. E ela sabia que caminhava tão desastradamente com as saias que
fazia um século não sentia roçar os seus joelhos, que a qualquer momento poderia ser acusada
de ser um homem disfarçado. O que seria pensou ela carrancuda, o máximo da ironia.
Venho usando uma máscara há mais tempo do que vive a maioria desse povo. Contra
a sua vontade, lembrou-se de um antigo conto de terror que uma ama, em tempos imemoriais,
contara para assustar uma menina cujo nome Lythande sinceramente não conseguia recordar,
a respeito de uma máscara usada durante tanto tempo que se enrijecera, tornando-se o próprio
rosto. Eu me tornei o que fingia ser. E este é o meu prêmio ou o meu castigo.
Não existe uma mulher agora sob estas saias, e seria justo, pensou ela, se fosse exposta
como um homem. Não obstante, ela havia considerado a possibilidade - logo afastada - de
fazer uma magia que a tornasse atraente e mais evidentemente mulher. Ela entraria no
santuário de Larith com seus próprios recursos, sem magias. Entretanto, a Estrela Azul sob a
pintura latejava como se repleta de lágrimas não vertidas.
Entre uma mulher conduzindo cabras e outra com uma criança doente no colo,
Lythande atravessou os pilares do santuário da Deusa Larith, construído um dia pelas mãos de
mulheres. Ela não sabia, e nem se importava, quando é que começara a acreditar nisso. Mas,
intimamente, era confortador saber que mulheres podiam erigir uma construção desse tipo.
Involuntariamente, uma estranha pergunta a incomodava, como a voz da Larith
amarrada desajeitadamente com uma corda à sua cintura:
Se eu não tivesse me renegado ou renunciado a mim mesma pela Estrela Azul, se
houvesse unido os meus esforços aos das minhas fracas e desprezadas irmãs, este templo
teria sido construído mais cedo? Ela afastou este pensamento numa tentativa que fez seus
olhos latejarem, perguntando a si mesma, num desdém irado: Se os leões de pedra de
Khoumari tivessem parido, os pastores de Khoumari guardariam suas ovelhas com mais
segurança à noite?
Ela parou sobre um grande piso de mosaico feito com pedras brancas e pretas
formando um pentagrama. Sobre a sua cabeça erguia-se uma enorme cúpula azul, e à sua
frente estava a imagem notável da Deusa Larith, talhada na pedra e sem nenhum vestígio de
ouro. A menina falara a verdade. E lá no fundo, onde ficava um pequeno grupo de
sacerdotisas, recebendo os presentes dos peregrinos, ela pensou ver a figura esguia da menina
com jeitinho de garoto. Era apenas imaginação! Sem dúvida elas a levaram logo para os seus
pátios internos, para aguardar a misteriosa transformação em uma Laritha, sob os olhares de
sua Deusa de pedra. Uma guerreira grávida! Lythande ouviu-se emitindo internamente um
leve murmúrio de desdém, mas estava no território delas e não devia ousar atrair as atenções.
Precisava se comportar como uma mulher e ser humilde e silenciosa aqui. Bem, ela era perita
em se disfarçar; para ela, era apenas mais um desafio.
Gostaria de levar a menina comigo, em vez de deixá-la juntar-se a essas mulheres
feiticeiras e suas inconsistentes magias! (Não tão inconsistentes assim; ela fora arrastada até
ali!) Eu lhe ensinaria as artes da espada e da magia. E não estaria mais sozinha...
Devaneios. Fantasias. Entretanto, persistiam. Os estranhos pensariam que ela era
apenas um mago mercenário viajando com um aprendiz, como faziam tantos; e mesmo se
alguém suspeitasse ser o aprendiz uma donzela, isto só reforçaria a idéia de sua
masculinidade. E a menina saberia do seu segredo, mas não teria importância, pois Lythande
seria professora, mestre, amante...
A mulher na sua frente, carregando a criança doente, estava de pé diante da Larith que
aceitava as ofertas para o santuário. A mulher tentava entregar-lhe um bracelete de ouro, mas
a sacerdotisa sacudia a cabeça:
— A Deusa aceita apenas o que lhe pertence, minha irmã. Larith, a Compassiva,
distribui dádivas entre os filhos dos homens, mas não as aceita. Deseja a cura de seu filho? Vá
por aquela porta ao pátio externo, e uma de nossas curandeiras lhe dará uma infusão para a
sua febre; a Deusa é misericordiosa.
A mulher murmurou os agradecimentos e ajoelhou-se para a bênção; Lythande olhava
bem nos olhos a sacerdotisa.
— Eu lhe trago... o que lhe pertence - falou Lythande, e remexeu nos cordões que
prendiam a espada Larith. Pela primeira vez, olhou nitidamente para o objeto e viu que o
segurava entre os dedos como se relutasse em se separar dele.
— Como encontrou isso?— falou a sacerdotisa, com a sua voz suave.
— Uma de vocês jazia violentada e agonizante; com um encantamento, ela uniu a
espada a mim para que a trouxesse aqui.
A sacerdotisa - era velha, pensou Lythande; não tanto quanto ela, mas nenhuma
proteção mágica lhe dava a aparência da juventude - disse delicada:
— Receba os nossos agradecimentos, irmã. - Seus olhos pousaram nos dedos
relutantes de Lythande. Sua voz foi ainda mais gentil: - Pode ficar aqui se quiser minha irmã.
Pode ser treinada nas artes da espada e da magia, e não mais vagará pelo mundo sozinha.
Aqui? Entre muros? Com mulheres? Lythande sentiu os cantos dos lábios se curvarem
em desprezo, e, no entanto os olhos doíam. Se não tivesse esquecido como, pensaria que vou
chorar.
— Obrigada - forçou-se a dizer com a voz rouca - mas não posso. Tenho outros
compromissos.
— Louvo, então, o juramento que a protege, irmã - disse a sacerdotisa, e Lythande
percebeu que devia ir embora. Mas não se mexeu, e a sacerdotisa continuou tranqüila: - O que
quer da Deusa em retribuição por este grande presente?
— Não é presente - disse Lythande com franqueza. - Eu não tive escolha, ou não teria
vindo; certamente você deve saber que suas espadas não esperam por uma peregrinação
gentilmente oferecida. Vim pela vontade da Larith, não pela minha. E você não tem presente
algum que eu deseje.
— O que recebemos nem sempre é desejado — falou a sacerdotisa, num tom quase
inaudível, e colocou as mãos sobre a testa de Lythande, abençoando-a. - Que você fique
curada da dor sobre a qual não pode falar minha irmã.
— Não sou sua irmã! Mas Lythande não falou em voz alta; apertou os lábios com
força e viu cintilações azuladas brilhando nos dedos da sacerdotisa. A mulher a exporia,
reconhecendo a Estrela Azul? Mas ela fez apenas um gesto abençoando-a e Lythande afastou-
se.
Pelo menos, estava tudo terminado. A sua aventura no santuário de Larith chegara ao
fim, e agora ela precisava sair dali em segurança. Prendeu a respiração ao tornar a atravessar o
grande chão de mosaico com os desenhos formando estrelas. Cruzou a porta de entrada e saiu
do santuário. Agora, novamente sob a luz difusa de Keth, seguido no seu caminho através do
céu pelo olho de Reth, ela estava livre desta aventura com a magia alheia.
E então uma voz cínica interrompeu a sua sensação repentina de paz.
— Por todos os deuses, Lythande! A Sombra atacando com seus velhos truques
furtivos e silenciosos? E forçou a entrada nesse santuário estrangeiro? E quanto ouro
surrupiou delas, ó Lythande?
A voz de Beccolo! Mesmo vestida de mulher, ele a tinha reconhecido! Mas é claro que
ele acharia apenas que era o mais esperto e sutil dos disfarces.
— Não há ouro no santuário das Larithae - falou ela com sua entonação mais suave. -
Mas se duvidar de mim, Beccolo, entre lá e procure você mesmo; gratuitamente eu lhe cedo a
minha parte do ouro que achar.
— Generoso Lythande!- zombou Beccolo, enquanto ela permanecia em silêncio,
zangada, pois nestas roupas que não eram as suas, o corpo envolto em saias, a Estrela Azul
escondida sob a pintura, ela sabia que estava em suas mãos. Ansiava pelo conforto das suas
facas na cintura, os calções e o manto de mago, familiares. Até mesmo a espada Larith seria
cômoda neste momento.
—E você dá uma mulher bonitinha, realmente - caçoou Beccolo. - Talvez o ouro que
exista no santuário sejam apenas os corpos de suas sacerdotisas; e você achou esse ouro?
Ela se virou ligeiramente, remexendo com as mãos rápido dentro da mochila. Segurou
a adaga. Mas sabia pelo tato que era a adaga errada, a que matava apenas as criaturas da
magia, o lobo assassino ou lobisomem, o vampiro e o espectro; mas contra Beccolo ela era
impotente, e aquela arma, inútil. As mãos mergulharam no fundo da mochila, procurando,
entre as dobras do manto embolado e do couro duro dos seus calções, o punho da faca que
funcionava contra um inimigo tão desagradavelmente tangível quanto Beccolo. A Estrela
Azul entre as suas sobrancelhas escarnecia dela com o seu brilho; ela passou a mão na própria
testa, limpando o cosmético que escondia a sua.
— Ah, não faça isso - zombou Beccolo. - É uma pena estragar a imagem de uma
mulher bonita com essa sua cara magrela de gavião. E eis você aqui numa posição em que eu
talvez possa fazê-lo de bobo como você fez comigo nos longínquos pátios do Templo da
Estrela! Suponha agora que eu grite chamando todos os homens para verem Lythande, o
Mago, Lythande, a Sombra, disfarçado de mulher, preparando alguma maldade no santuário
delas. . . e aí, Lythande?
É apenas a sua malícia. Ele não conhece a lei de Larith. Entretanto, se ele realizasse a
sua ameaça, haveria na cidade quem soubesse - ou acreditasse - que Lythande, um homem,
um Adepto da Estrela Azul, burlara a entrada no santuário onde homem algum poderia pôr os
pés. Não havia segurança para Lythande aqui, fosse como homem ou como mulher; e agora
ela empunhava a sua lâmina da direita, mas não conseguia desenredá-la do emaranhado dos
seus pertences dentro da mochila.
Bem feito, pensou ela, se por causa dessa tolice feminina ela fosse apanhada num
duelo com Beccolo tendo os movimentos tolhidos pelas saias e desarmada pelas suas próprias
precauções. Escondera muito bem as espadas, pensando que teria tempo e a proteção da noite
para se livrar do seu disfarce!
— Mas antes que Lythande volte a ser Lythande - rosnou a voz falsa e abominável de
Beccolo - talvez eu deva experimentar se não lhe é mais adequado cobrir os joelhos com as
saias. . . como você seria como mulher, companheiro Peregrino?
Com uma das mãos, Beccolo puxou Lythande para ele; com a mão livre tentou
despentear seus cabelos finos. Lythande desvencilhou-se, rosnando uma obscenidade sórdida
da Velha Gandrin e Beccolo retirou rápido a mão preta e ainda pegando fogo, uivando de dor.
Eu devia ter ficado quieta e deixado que ele se divertisse até poder ter a espada em
minha mão. . .
A Estrela Azul faiscava e Lythande ergueu a mão num gesto de proteção, procurando
furiosamente o seu espadim da direita. O odor de magia rompeu o ar, mas Beccolo atirou-se
sobre Lythande gritando com fúria.
Se ele me tocar, saberá que sou mulher. E se o segredo de um Adepto for revelado em
voz alta, o seu Poder lhe será confiscado. Ele tem apenas que dizer: Lythande, você é uma
mulher. E estará para sempre vingado daquela tolice no pátio externo da Estrela Azul.
— Maldito seja, Lythande, ninguém faz Beccolo de tolo duas vezes. . .
— Não - disse Lythande, com tranqüilo desdém - você mesmo se encarrega disso
admiravelmente bem. Desesperada, ela tentava arrancar o espadim preso. Ele tornou a gritar e
um raio mágico chiou no ar entre eles.
— Ladrão! Feiticeiro ordinário - berrou Lythande, ganhando tempo enquanto a espada
abria caminho no couro que a mantinha presa na mochila. — Deflorador de cabras virgens!
Apenas por um momento Beccolo parou; mas ela percebeu um traço repentino de
desespero em seu olhar. Será que, na descuidada obscenidade da Velha Gandrin, Beccolo
entregara-se em suas mãos? O espírito da Larith a induzira a praguejar com palavras que
Lythande jamais pronunciara antes e nunca tornaria a pronunciar?
O que tinha, afinal de contas, a perder agora, sem sequer uma espada nas mãos?
— Beccolo - repetiu ela, calma e deliberadamente -, você é um estuprador de cabras
virgens!
Ele parou imóvel, enquanto as palavras ecoavam na praça ao redor. Ela pôde sentir o
Poder se anulando na Estrela Azul. Realmente ela havia esbarrado no Segredo; ele ficou em
silêncio, sem se mover, quando ela, com a espada na mão, transpassou-lhe o peito.
Uma multidão estava se formando; Lythande suspendeu as saias sem dignidade, a
espada na mão junto com as dobras do pano, e correu, desaparecendo por detrás de uma
barraca; ali, envolveu-se numa esfera mágica de silêncio. Os gritos e os berros do povo
ficaram abafados num silêncio pesado, denso, obstruidor enquanto a calma absoluta do Lugar
Que Não É a cobria, uma esfera do nada, como a água incolor ou o ofuscar das chamas.
Lythande respirou fundo e começou a tirar as saias emprestadas. Agora era desfazer o
encantamento e devolver aquelas coisas às barracas dos seus donos, não havia nada pior para
se usar. Enquanto pronunciava as palavras mágicas, ela começou a rir da figura de Beccolo
empenhado no Segredo com o qual havia arriscado a vida - pois o segredo pronunciado num
insulto inconseqüente, oculto numa declaração pública, era inofensivo; só quando Lythande
lançou-o abertamente no rosto é que adquiriu o Poder mágico do Segredo de um Adepto.
Mas nem mesmo secretamente posso ser uma mulher. . .
Apertando os lábios, acenou com a mão e desfez a esfera encantada. Uma vez mais,
Lythande surgira do ar numa estranha rua, e isto não lhe prejudicava a reputação nem
difamava os Adeptos Peregrinos.
Olhando o céu, ela percebeu que a esfera mágica anuladora do tempo lhe custara um
dia ou mais; Keth estava de novo no zênite. Ela ficou imaginando o que teriam feito com o
corpo de Beccolo. Não lhe importava a mínima. Um fluxo de peregrinos ainda circundava o
caminho em direção ao santuário da Deusa Larith, e Lythande parou um instante para olhar,
lembrando-se do rosto da jovem e da suave bênção da sacerdotisa. Sentia as mãos vazias sem
a espada Larith.
Em seguida, deu as costas ao santuário e caminhou para a balsa.
— Olhe onde pisa seu deflorador de cabras virgens metido a besta - rosnou um homem
quando o Adepto passou no seu manto de mago esvoaçante. Lythande achou graça:
— Eu não - disse ela, subindo na balsa, deixando para trás o santuário das magias
femininas.
INTRODUÇÃO A
NAUFRÁGIO

Os antecedentes desta história - embora eu só viesse, a saber, disso muito depois de


ela ter sido escrita e impressa em The Magazine of Fantasy and Science Fiction - remontam à
antiga lenda do Canto das Sereias. Lembro-me de uma história - provavelmente escrita pelo
grande Theodore Sturgeon, já falecido - na qual uma sereia aparecia aos homens na forma
de uma desejável mulher, mas para as mulheres ela se apresentava como homem. Esta
também é a história do canto das sereias, segundo a qual a sereia - lorelei ou harpia - se
mostra a cada viajante que chega como se mostrou ao nômade Ulisses e como surge na
antiga canção folclórica:

Sings, in sad sweet undertone,


The song of hearfs desire.*

Mas Lythande, que afirmava não possuir amores nem desejos em seu coração, seria
vulnerável a essas aparições? Eu pretendia que esta história fosse irônica e perversa - não
adiantava apelar para o sentimento do insensível - e ela me saiu sentimental e meio amarga.
Como já disse antes, nunca sei como são as minhas histórias antes de acabar de
escrevê-las. Freqüentemente me vejo brincando com uma idéia e aí escrevo para descobrir
do que se trata.

* Cante, em murmúrios doces e tristes,/ A canção dos desejos da alma. (N. da T.)
NAUFRÁGIO

O olho rubro de Keth pairava próximo do horizonte, com Reth, o sol menor, seguindo-
o a menos de uma hora de distância. Os barcos de pesca deveriam estar entrando no porto
agora. Mas não havia sinal deles; somente um lá longe, lutava contra a maré.
Lythande se distanciara bastante ao longo da praia, gozando a solidão e cantando em
voz baixa velhas cantigas do mar ao som das ondas quebrando na areia. Esta noite, sem
dúvida, pensou o Adepto Peregrino, deveria ganhar o seu jantar cantando acompanhado do
alaúde, pois num lugar assim tão simples não haveria ninguém precisando dos serviços de um
mago mercenário nem de feitiços ou magias. Eram apenas pessoas comuns, vivendo
simplesmente segundo o ritmo do mar e das marés.
Devia ser feriado; todos os barcos tinham sido puxados para a areia. Mas na única rua
local o ar não era de festa: grupos de homens amontoados nas cadeiras, de cara fechada e
falando em voz baixa, enquanto algumas mulheres olhavam para o mar, observavam o esforço
do barco contra a maré.
— Mulheres! Pelos olhos cegos de Keth-Ketha, como é que as mulheres vão comandar
um barco?- rosnou um dos homens. - Como é que vão manejar as redes? Maldição. . .
— Fale baixo - repreendeu um outro. - Aquela. . . aquela coisa pode ouvir, e acordar!
Lythande olhou para a baía e viu o que até então não estivera visível; o barco que se
aproximava não era comandado por homens, mas por quatro entusiasmadas adolescentes
ainda em fase de crescimento. Seus braços musculosos estavam nus até os ombros, as saias
arregaçadas até os joelhos, os pés enfiados desajeitadamente em botas de marinheiro.
Pareciam manejar as redes com bastante competência; e eram evidentemente muito fortes, o
tipo de mulheres que, se estivessem ordenhado vacas, poderiam içar às costas um animal
preso num charco. Mas os homens olhavam com uma fúria ciumenta muito mal dissimulada.
—Amanhã vou sair com o meu barco, e as moças ficam em casa, que é lugar delas,
assando pão!
—Isso foi o que Leukas fez, e você sabe o que aconteceu com ele. . . toda a sua
tripulação naufragou nas pedras, e. . . e alguma coisa, uma coisa lá fora comeu barco e tudo!
Tudo que sobrou foi o chapéu dele, e a rede pela metade! E sete filhos para a aldeia alimentar
até crescerem o bastante para sair pescando. . . isto é, se continuarmos a ter pesca por aqui, e
aquele negócio lá fora não tornar a aparecer!
Lythande ergueu as sobrancelhas intrigada. Uma ameaça para o mago mercenário.
Embora Lythande carregasse duas espadas, presas à cintura estreita do seu manto de mago, a
da direita para os perigos do dia-a-dia representados pelos homens e os animais, e a da
esquerda para matar os fantasmas, os espectros, vampiros ou qualquer forma de ameaça
sobrenatural, o Adepto não pretendia lutar contra nenhum monstro marinho. Para isso, a
aldeia teria que aguardar um herói ou lutador. Lythande era um mago e menestrel, e não
obstante a sua espada fosse alugada onde dela precisassem o Adepto não gostava dos conflitos
comuns, e muito menos de combater agressores que exigiam apenas a força bruta e não a
habilidade.
Havia só uma estalagem na aldeia; Lythande dirigiu-se para lá, pediu uma caneca de
cerveja e sentou-se a um canto sem tocá-la. Um dos votos que resguardavam o poder de um
Adepto da Estrela Azul era o de jamais ser visto comendo ou bebendo na frente de homens -
mas o preço da bebida dava ao mago o direito de se sentar no centro da ação, onde se podiam
ouvir todas as novidades da aldeia. Os homens continuavam se queixando do medo que os
mantinha fora da água. Um deles reclamou que as vigas do seu barco estavam ressecadas e
rachando e teriam que ser consertadas antes de poder colocá-lo na água de novo.
— Se houver pescaria novamente por aqui. . .
— A gente podia mandar a mulher e as filhas no barco como Lubert. . .
— Melhor morrer de fome ou comer mingau de aveia o resto da vida!
— Se não tivermos peixe para trocar por pão ou aveia, como é que ficaremos?
— Desculpem a minha curiosidade - falou Lythande com a sua voz neutra e suave que
identificava um menestrel treinado - mas se um monstro marinho ameaça as praias, por que
estarão as mulheres seguras num barco e os homens não?
Foi a mulher do estalajadeiro que respondeu:
— Se fosse um monstro marinho, poderíamos ir, todos nós, com os arpões, e matá-lo,
como fazem os homens da planície com os elefantes e os javalis. Mas é uma sereia, e ela fica
sentada cantando e atraindo os nossos homens para as pedras. . . olhe só o meu homem.
Ela falou em voz baixa, apontando um homem sentando diante do fogo, de costas para
os outros, com a roupa desalinhada, a camisa aberta, os olhos fixos nas chamas. Os dedos
brincavam nervosamente com os cordões da roupa, enrolando-os em laçadas.
— Ele escutou a voz dela - falou a mulher com tal expressão de horror, que, ao ouvi-
la, os pêlos dos braços de Lythande se arrepiaram e a Estrela Azul começou a piscar, emitindo
faíscas. Ele a ouviu e os seus homens o arrastaram das pedras. E desde então ele fica sentado
assim... o homem mais alegre da aldeia, olhando e chorando, e eu tenho que dar de comer a
ele como uma criancinha e não tirar os olhos de cima dele nem um minuto, senão ele entra no
mar e se afoga, e tem vezes — a voz dela soou desanimada — que eu tenho vontade de deixar
ele ir, porque a cabeça dele não vai funcionar de novo. . . tenho até que levar ele na latrina,
até isso ele esqueceu como é que faz!
E realmente Lythande observou uma mancha úmida que se alastrava nas calças do
homem, enquanto a mulher constrangida se apressava a levar o marido lá para fora.
Lythande vira os olhos do homem; vazios, perdidos, sem enxergar a mulher, olhando
para algo além da sala.
Longe do mar, Lythande ouvira histórias de sereias, de seus encantos e canções. O
menestrel que existia nela quase desejara ouvir essas canções, caminhar pelas pedras e escutar
o canto que, dizia-se, podia fazer o ouvinte esquecer todas as preocupações e os prazeres do
mundo. Mas depois de ver os olhos inexpressivos do homem, Lythande resolveu desistir da
experiência.
— E é por isso que algumas mulheres saíram nos barcos?
— Não são mulheres - falou o rapaz da estalagem, parando com uma bandeja de
canecas nas mãos para se dirigir ao estranho – são meninas jovens demais para os homens.
Dizem que, para as mulheres a voz chama como se fosse a do amante. . . a mulher de Natzer
saiu na última lua cheia, jurando trazer peixes para os seus filhos pelo menos e nunca mais foi
vista; mas um chumaço do cabelo dela, arrancado e cheio de sangue, veio com a maré.
— Nunca soube que as sereias fossem carnívoras — observou Lythande.
— Nem eu. Mas acho que ela canta, atrai as pessoas para as pedras e os peixes comem
elas. . .
—Existe um velho truque — sugeriu Lythande. — Colocar tampões de algodão ou
cera nos ouvidos. . .
— Escute forasteiro — falou um homem, agressivo —, você acha que nós aqui somos
bobos? Já tentamos isso; mas ela fica sentada na pedra, e é tão bonita... os homens
enlouqueceram, só de ver, e me jogaram no mar. . . você não pode vedar os olhos, no mar não,
com as pedras e tudo mais. . . nunca existiu pescador cego, e não existirá nunca. Eu nadei para
a praia e eles jogaram o barco nas pedras. E só os olhos cegos de Keth-Ketha sabem onde
estão, mas certamente foram aprisionados em algum lugar pelo Deus do Mar.
Lythande virou-se para olhar o homem de frente, que viu a Estrela Azul brilhando sob
o manto e perguntou:
— Você é feiticeiro?
—Sou um Adepto Peregrino da Estrela Azul — falou Lythande séria —, e enquanto a
humanidade aguarda a Batalha Final entre a Lei e o Caos, ando pelo mundo em busca do que
vier.
—Ouvi falar do Templo da Estrela Azul - disse uma das mulheres timidamente. —
Pode livrar a gente dessa sereia com poderes mágicos?
—Não sei. Nunca vi uma sereia - falou Lythande – e não tenho grandes desejos de
experimentar.
Mas por que não? Neste mundo sob os Dois Sóis, numa vida que durava mais do que a
imaginação da maioria das pessoas podia acreditar, o Adepto Peregrino já tinha visto quase
tudo, e a sereia era novidade. Lythande ficou pensando como se poderia atacar uma criatura
cuja única ameaça era o som maravilhoso que emitia — tão maravilhoso que o ouvinte
esquecia a sua casa e a sua família, os seres amados, a mulher ou o filho; e se escapasse. . .
Lythande estremeceu. Não era um destino a se desejar - ficar sentado dia após dia olhando o
fogo na lareira, ansiando por ouvir novamente aquela voz.
Entretanto, qualquer resultado de magia, pela magia poderia ser desfeito. E Lythande
dominava todos os poderes mágicos do Templo da Estrela Azul, tendo pago por eles um preço
mais terrível que qualquer outro Adepto na história dos Adeptos Peregrinos. Deveria expe-
rimentar esses poderes agora contra a magia desconhecida da sereia?
— Estamos morrendo e com fome - falou a mulher. - Isso não basta? Eu acreditava
que os feiticeiros juravam libertar o mundo do mal.. .
— Quantos feiticeiros você conheceu? - perguntou Lythande.
— Nenhum, mas a minha mãe falou que a avó dela contava que um feiticeiro tinha
aparecido uma vez e acabado com um monstro do mar naquelas mesmas pedras.
— O tempo é um grande artífice - respondeu Lythande - até os bruxos precisam viver,
minha boa mulher; e a satisfação em fazer magias, mesmo sendo uma diversão agradável
enquanto esperamos o apagar dos Dois Sóis e a Batalha Final entre a Lei e o Caos, não põe o
feijão na mesa. Não tenho muita vontade de testar meus poderes contra a sua sereia, e aposto
o que você quiser que este velho feiticeiro de outrora cobrou da sua aldeia um bom dinheiro
para livrar o mundo desse monstro marinho.
— Não temos nada para dar - falou a mulher do estalajadeiro - mas se você conseguir
recuperar o meu homem, eu lhe dou o anel de ouro que ele me deu quando nós casamos. E já
que ele foi enfeitiçado, que espécie de homem é você que não pode desfazer uma magia com
outra?
Ela arrancou o anel do dedo gordo e mostrou-o, fino e gasto, na palma da mão. Seus
dedos relutavam em se abrir, e havia lágrimas nos seus olhos, mas o oferecia corajosa.
— Que espécie de homem eu sou? - perguntou Lythande com um sorriso irônico. - Da
espécie que você jamais verá. Não preciso de ouro, mas dê-me pousada por esta noite e farei o
que puder.
A mulher enfiou o anel de novo com os dedos tremendo.
— Meu melhor quarto. Mas, oh, traga-o de volta! Ou quer comer alguma coisa antes?
— O trabalho primeiro, depois o pagamento - falou Lythande.
O homem estava de novo sentado num canto perto do fogo, olhando as chamas, e dos
seus lábios saía um leve cantarolar desafinado. Lythande tirou o alaúde de dentro da sacola,
testando as cordas. A cabeça inclinada ouvindo o som, os dedos longos e finos passearam pela
trave, afinando e torcendo as cavilhas que sustentavam as cordas.
Finalmente, Lythande começou a tocar. Quando o som do alaúde invadiu o salão, foi
como se as frestas que deixavam passar os raios do último sol tivessem se aberto, e a luz
invadiu o aposento. Lythande tocava a luz do sol e a brisa alegre à beira d'água. De mansinho,
na ponta dos pés, não desejando que nenhum som descuidado interrompesse a música, o povo
na estalagem se aproximou mais para ouvir as notas suaves. A luz do sol, a brisa marinha, o
barulho das ondas marolando. E, então, Lythande começou a cantar.
Mais tarde – e durante anos, os que ouviram comentavam freqüentemente - ninguém
conseguia lembrar qual fora a canção, embora a todos parecesse familiar, a ponto de estarem
certos de a terem ouvido no colo de suas mães. Atraiu a todos na voz do marido, do amante,
do filho ou da esposa, a voz do ser mais amado. Um velho disse com lágrimas nos olhos que
ouvira sua mãe cantando para ele dormir uma velha cantiga de ninar que não escutava havia
mais de meio século. E, finalmente, até o homem sentado perto do fogo, as roupas
amarfanhadas e cheirando mal, os cabelos ásperos e embaraçados, os olhos perdidos num
outro mundo, ergueu lentamente a cabeça e virou-se para ouvir a voz de Lythande, contralto
ligeiro ou tenor; neutra, assexuada, mas conservando toda a suavidade dos dois sexos.
Lythande cantou as coisas simples do mundo, a luz do sol, a chuva e o vento, as vozes das
crianças, a relva, o vento e a colheita, e o silêncio da aurora e do crepúsculo. Em seguida,
aligeirando um pouco o tempo, ela cantou o lar e a lareira, onde as crianças se reúnem às
tardes, chamando os pais para voltarem para casa do mar. E, finalmente, a voz suave cada vez
mais profunda e tranqüila, de modo que os ouvintes tivessem que se inclinar para escutar, mas
com cada nota murmurada perfeitamente audível até para os caibros de sustentação do
telhado, Lythande cantou o amor.
E os olhos dos homens se arregalaram, e as faces das mulheres ficaram vermelhas,
mas para as crianças inocentes ali, cada palavra era pura como um beijo de mãe em suas
bochechas.
E quando o canto silenciou, o homem perto do fogo ergueu a cabeça e secou as
lágrimas dos olhos.
— Mhari, moça - falou ele com voz rouca -, onde você está. . , e os meninos. . . ué,
estou sentado aqui o dia inteiro e não estou pescando? Por que está chorando, moça, o que dói
na menina?
Ele a puxou para o seu colo e a beijou, o rosto mudado, sacudindo a cabeça sem
entender nada.
— Ora, sonhei. . . sonhei. . . — seu rosto se contorcia, mas a mulher encostou a cabeça
dele no seu peito, e ela também chorava.
— Não pense nisso, bom homem, você foi enfeitiçado, mas, graças aos deuses e a esse
bom mago aqui, voltou para casa e é você de novo. . .
Ele se levantou, passando as mãos pelos cabelos desalinhados e pelo rosto com a barba
crescida.
— Quanto tempo? Sim, que diabo de magia me prendeu aqui? E. . .- ele olhou ao
redor, vendo Lythande, que guardava o alaúde - o que me trouxe de volta? Sou-lhe grato,
Senhor Mago. Tudo que minha humilde casa pode oferecer está às suas ordens.
A voz dele conservava a dignidade de um pobre trabalhador, e Lythande inclinou-se
graciosamente em reconhecimento.
— Aceitarei a pousada por esta noite, e uma refeição servida no meu quarto em
particular, nada mais.
E embora o pescador e a mulher insistissem para que Lythande aceitasse o anel e
outros presentes, até mesmo o lucro de um ano de pescaria, o mago não aceitou mais nada.
Mas os outros no salão se aproximaram, clamando:
— Nunca vimos uma mágica assim por aqui! Certamente você pode nos livrar, com os
seus poderes, daquela bruxaria! Nós lhe imploramos, estamos em suas mãos. . . não temos
nada digno de você, mas o que pudermos, nós lhe daremos. . .
Lythande ouviu impassível. Era de se esperar; fora demonstrada a magia, e sabendo o
que ela podia fazer, eles queriam mais. Mas não era só isso. Suas vidas e o seu sustento
estavam em jogo. Aquela pobre gente não podia continuar a viver da pesca se a sereia os
ficasse atraindo para as pedras, para naufragarem ou serem comidos por monstros marinhos,
ou, se voltassem inteiros e vivos para suas casas, viverem extasiados pela lembrança.
Mas que motivo teria esta sereia para a sua perversidade? Lythande conhecia bem as
leis da magia, e os instrumentos mágicos não exercitavam seus poderes pelo simples desejo de
causar danos aos homens. Por que, afinal de contas, viera a sereia cantar, enfeitiçando aquela
gente simples do mar? Quais seriam suas intenções?
— Aceitarei uma refeição servida em particular, para poder pensar nisso - falou a
maga - e amanhã falarei com todos na aldeia que escutaram o canto dessa criatura e a viram. E
depois decidirei se a minha magia pode fazer alguma coisa por vocês. Não irei, além disso.
Quando a mulher saiu, deixando a bandeja de comida, Lythande trancou duas vezes a
porta do quarto atrás dela. Um ótimo peixe assado descansava sobre um guardanapo branco
limpo - Lythande desconfiou que fosse o que havia de melhor da mirrada pescaria das
meninas, que sozinhas impediam a aldeia de morrer de fome. O peixe estava temperado com
ervas cheirosas, e na bandeja vinha uma fôrma de pão de milho de má qualidade, quente, com
manteiga e creme, e um prato de algas marinhas cozidas.
Primeiro Lythande deu uma olhada pelo quarto, a Estrela Azul cintilando entre as
sobrancelhas finas, à procura de buracos por onde pudesse ser espionada ou armadilhas
mágicas. A eterna vigilância era o preço da segurança de qualquer Adepto da Estrela Azul,
mesmo numa aldeia tão isolada como aquela. Era pouco provável que algum inimigo seguisse
Lythande até ali, ou deixasse uma armadilha preparada, mas as coisas mais estranhas já
tinham acontecido na longa vida do Adepto.
O quarto foi todo examinado e parecia inviolável, e Lythande estava finalmente livre
para despir o volumoso manto de mago e até desafivelar o cinto com as duas espadas e tirar as
botas de couro macio tingido. Assim exposta, Lythande tinha ainda a aparência externa de um
homem magro, imberbe, alto, de constituição forte e assexuada; mas, sem ser observada,
Lythande se mostrava como realmente era: uma mulher. Entretanto, uma mulher que jamais
poderia ser vista assim por um homem.
Uma fantasia que se tornara verdade. No Templo dos Adeptos Peregrinos, só
Lythande, em toda a sua longa história, conseguira entrar disfarçada de homem. Só quando a
Estrela Azul já brilhava entre as suas sobrancelhas, símbolo e sinal da Fraternidade dos
Adeptos, ela fora descoberta; e aí já estava consagrada, portadora dos seus mistérios mais
profundos. E, assim, o Mestre dos Adeptos Peregrinos lançara sobre ela a maldição que ainda
carregava.
"Que assim seja em verdade o que escolheu parecer. Até que a Lei e o Caos se
encontrem na Batalha Final, quando todas as coisas devem morrer, seja você o que fingiu ser;
pois no dia em que um Adepto Peregrino, exceto eu mesmo, proclamar o seu verdadeiro sexo,
neste dia o seu poder lhe será tomado e você poderá ser morta."
Assim, junto com todos os votos que resguardavam o poder de um Adepto Peregrino,
Lythande carregava também este peso: o de ocultar o seu verdadeiro sexo até o fim do mundo.
Ela não era, é claro, o único Adepto sobrecarregado com um geas; todos os Adeptos
da Estrela Azul tinham algum Segredo em cujo ocultamente, mesmo dos outros Adeptos da
Ordem, residia toda a sua magia e toda a sua força. Lythande até poderia ter uma confidente
feminina, se pudesse encontrar uma em quem confiar a vida e os poderes.
O Adepto menestrel comeu o peixe e beliscou as algas cozidas, que não lhe
agradaram. O pão de milho, bem embrulhado por causa da gordura, encontrou o caminho dos
bolsos do manto de mago, para o dia em que ela talvez não conseguisse privacidade para uma
refeição e precisasse dar uma mordida às escondidas enquanto viajava.
Isto feito, ela tirou de uma bolsinha presa à cintura uma porção de ervas sem
propriedades mágicas (a não ser que o dom de trazer o relaxamento e a paz aos que estão
cansados possa contar como mágico), enrolou-as num cilindro fino e acendeu com a centelha
fulgurante de um anel que usava. Aspirou profundamente, recostou-se com os pés estirados
para o fogo, pois a brisa do mar era tímida e fria, e pensou.
Ela desejava, pelo prestígio da Ordem e o orgulho de um Adepto Peregrino, enfrentar
uma sereia?
Poderosa como era a Estrela Azul, Lythande ainda assim sabia que em algum lugar
sob os Dois Sóis poderia haver alguma magia diante da qual os poderes de um Adepto
Peregrino eram meras mágicas de salão e ilusões. Havia momentos, realmente, em que ela se
cansava da sua longa vida de dissimulação e achava que a morte seria bem-vinda, es-
pecialmente se fosse numa luta digna. Mas eram rápidas depressões noturnas, e sempre,
quando raiava o dia, ela acordava com renovada curiosidade sobre o que ainda poderia haver
na próxima curva da estrada. Não desejava acabar com tudo numa luta fútil contra um inimigo
desconhecido.
A sua música reanimara o homem enfeitiçado. Isso significaria que a sua mágica era
mais forte do que a da sereia? Provavelmente não; ela tivera apenas que abrir caminho no
foco mágico da atenção dele, lembrá-lo das belezas do mundo que ele esquecera. Depois,
ouvindo novamente, o seu pensamento escolhera o verdadeiro encanto no lugar do falso, pois,
sob o poder que o mantinha em transe, a sua mente já deveria estar desesperada, lutando para
se libertar. Um passe simples de magia, nada que deixasse alguém muito confiante na sua
força contra os poderes desconhecidos das sereias.
Ela se enrolou no manto e deitou-se para dormir, inclinada a levantar-se antes da
aurora e estar bem longe antes que alguém da aldeia acordasse. O que significavam os
problemas de uma aldeia de pescadores para ela? Já lhes dera um presente de mago, ao
recuperar o marido da estalajadeira; o que mais estava devendo? Entretanto, alguns minutos
antes do surgir da pálida face de Keth, ela acordou sabendo que ficaria. Era apenas o desafio
de testar-se diante de uma magia desconhecida? Ou o desamparo em que se encontrava essa
gente a comovera?
Era mais provável, pensou Lythande com um sorriso cínico, que fosse o seu próprio
desejo de ver uma novidade. Durante os anos em que vagara sob os olhos de Keth e Reth, ela
vira muitas magias, quase sempre simples e mecânicas - uma vez colocadas em ação, eram
mantidas assim por nada mais do que a inércia.
Certa vez, ela lembrava, havia encontrado um pequeno bosque de carvalhos
assombrado com a lenda de uma dríade que seduzia todos os homens que passavam. No fim,
tudo não passava do eco da indignação de uma moça rejeitada pelo homem que ela tentara em
vão seduzir; sua raiva e o contra feitiço haviam persistido por mais de quarenta estações,
mesmo depois que a árvore da dríade, tombada por um raio, secara. Os vestígios do
encantamento continuaram até o lugar se tornar apenas um bosque vazio aonde as mulheres
levavam seus amados relutantes, para que os poderes que haviam sobrado da dríade zangada
pudessem excitá-los pelo menos um pouco. Apesar das súplicas das mulheres temerosas de
perder seus maridos diante da força do encantamento, Lythande preferira não se meter; a
última notícia que tivera fora de que o lugar adquirira a agradável reputação de restaurar a
potência, pelo menos por uma noite, do homem que ali dormisse.
A aldeia já estava de pé. Lythande saiu para o rubro amanhecer, quando os pescadores
se reuniam por hábito, já que não estavam levando seus barcos para a água. Vendo Lythande,
afastaram-se dos barcos e a rodearam.
— Diga feiticeiro, vai nos ajudar ou não?
— Ainda não decidi - falou Lythande - Primeiro devo falar com todos que viram a
sereia.
— Não pode fazer isso - falou um velho, com um sorriso ameaçador - a não ser que
você desça até as masmorras do Deus do Mar e pergunte a eles! Ou quem sabe os bruxos
também podem fazer essas coisas?
Censurada, Lythande ficou pensando se não estaria considerando o problema deles
com muita leviandade. Talvez para ela fosse apenas um desafio e uma curiosidade; para esta
gente significava suas vidas e o seu sustento, a própria sobrevivência estava em jogo.
— Sinto muito; deveria ter dito, é claro, aqueles que se encontraram com a criatura e
estão vivos. — Ela supunha que não deveria haver muitos deles.
Falou primeiro com o pescador que reanimara. Ele contou, com certo acanhamento, os
olhos fixos no chão longe dela:
— Eu ouvi ela cantar, só lembro disso, e parecia que não tinha mais nada no mundo,
só aquela canção. Loucura, eu nem ligo tanto assim pra música. . . a não ser a sua, menestrel -
acrescentou ele acanhado. - Só eu escutei aquele canto. Era diferente, eu não queria mais na-
da, só ficar ouvindo a vida inteira. . . - Ele parou pensativo. - Por tudo isso, eu gostaria de
poder me lembrar. . . - E os seus olhos buscaram o horizonte distante.
— Agradeça não poder - falou Lythande com voz firme - ou você ainda estaria sentado
diante da sua lareira sem saber mais como se alimentar ou lavar. Se quiser o meu conselho,
não se permita pensar nisso novamente por mais do que um instante.
— Ah, está certo, eu sei disso, mas, apesar de tudo, foi bonito. . . - Ele suspirou,
sacudiu-se feito um cachorro e ergueu os olhos para Lythande. - Acho que os meus colegas
me arrastaram até a praia; depois só sei que estava sentado em frente à minha lareira ouvindo
a sua música, e a Mhari estava chorando.
Ela se afastou; dele não soubera mais do que já sabia antes.
— Há mais alguém aqui que tenha encontrado a besta, a sereia, e sobreviveu?
Parecia que não; as meninas que saíram com o barco não a viram ou ela preferira não
se mostrar. Finalmente, uma das mulheres falou hesitante:
— Quando ela começou a aparecer, e os homens ouviam e não voltavam mais, havia a
Lulie. Ela saiu com algumas mulheres e não ouviram nada, elas disseram; ela não pode ouvir
a trinta anos que é surda. E ela diz que viu, mas não quer falar. Se souber o que você vai fazer,
talvez ela lhe conte, mago.
Uma mulher surda. Sem dúvida havia lógica nisso, como havia lógica em todas as
coisas mágicas se pudesse descobrir a trama por debaixo. A surda sobrevivera à sereia porque
não podia ouvir o seu canto. Então por que os homens da aldeia foram incapazes de vencer a
tentação com o velho truque de tampar os ouvidos com cera?
Ela atacava pelos olhos também, aparentemente, pois um deles comentara que era "tão
bonita". Este homem dissera que tinha pulado do barco e tentado nadar para a praia. Para a
praia ou para as pedras, em direção à criatura? Ela procuraria falar com ele também, se
pudesse achá-lo. Por que não estava aqui junto com os outros? Bem, primeiro, decidiu
Lythande, ia falar com a mulher surda.
Encontrou-a na padaria da aldeia, supervisionando um único aprendiz aleijado
descarregando dois ou três sacos flácidos de farinha de má qualidade, misturada com cascas e
palha. Os negócios na aldeia giravam tanto em torno da pesca que só aqueles fisicamente
incapazes para saírem nos barcos achavam admissível seguir outro ramo.
A surda olhou com ar ameaçador para Lythande, apertou os lábios e fez um gesto para
o aleijado continuar o seu trabalho, andando de um lado para o outro entre os seus fornos. Os
afazeres de um mago, dizia o seu olhar truculento, não eram da sua conta, e ela não queria
saber deles.
Lythande se aproximou do aprendiz, parando ao lado dele. Lythande era uma mulher
muito alta, e ele era um sujeito pequenino e seco; quando olhou para cima, precisou inclinar a
cabeça para trás. A surda fechou a cara, mas Lythande ignorou-a deliberadamente.
— Vou falar como você - falou ela decidida - já que a sua patroa é surda demais e
talvez muito estúpida para ouvir o que tenho a dizer.
O pequeno aprendiz tremia nos sapatos.
— Oh, não, Senhor Mago. . . Não posso. . . Ela sabe tudo o que falamos, ela lê os
lábios, e eu juro que ela sabe o que eu digo antes mesmo que eu abra a boca pra falar. . .
— E mesmo? - perguntou Lythande - Então agora eu sei. Dirigiu-se para a mulher e
ficou ao seu lado até que ela levantou o rosto emburrado.
—Você é Lulie, e me disseram que viu a besta do mar, a sereia, seja lá o que for, e ela
não a matou. Por quê?
—Como vou saber? -A voz da mulher era rouca, como se não a usasse havia muito
tempo; arranhou o ouvido musical de Lythande.
Não era justo pensar mal de uma mulher devido ao seu infortúnio; mas Lythande
percebeu que ela lhe desagradava muito. A repugnância tornou a sua voz áspera:
— Você sabe que eu me comprometi a livrar a aldeia dessa criatura - Lythande só
percebeu que tinha de fato se comprometido quando se ouviu dizendo isso. — Portanto,
preciso saber o que vou enfrentar. Diga-me tudo que sabe, seja lá o que for.
— Por que você acha que sei alguma coisa?
— Você sobreviveu. - pensou Lythande, eu gostaria de saber a razão, pois quando
souber por que esta mulher desagradável foi poupada, talvez saiba o que devo fazer para
matar a coisa. . . se é que ela deve morrer. Ou seria o bastante afastá-la daqui?
Lulie fitava o chão. Lythande sabia que ela estava num impasse; a mulher não ouvia e
ela, Lythande, não podia comandá-la com o olhar e a sua presença, ou mesmo com a sua
magia, enquanto a mulher não a olhasse nos olhos. Estava ficando irritada; sentia, entre as
sobrancelhas, o queimar das cintilações da Estrela Azul; a sua raiva e o resplendor da magia
atingiram a padeira e ela ergueu os olhos.
Lythande falou irritada:
— Diga-me o que sabe sobre essa criatura! Como você sobreviveu à sereia?
— Como vou saber? Eu sobrevivi. Por quê? Você é o mago, não eu; diga-me você,
feiticeiro.
Com esforço, Lythande moderou sua raiva.
— Ainda assim eu lhe imploro; pela segurança de toda essa gente, diga-me o que sabe
o mínimo que seja.
— O que me importa o povo dessa aldeia?
Lythande ficou imaginando qual seria o ressentimento que tornava a sua voz tão cheia
de ódio e desdém. Provavelmente seria inútil tentar descobrir. Os rancores quase sempre eram
irracionais; podia ser que ela os culpasse pela perda da audição, ou talvez pelo isolamento que
caíra sobre ela quando, como acontece com muitas pessoas surdas, tivera que se retirar para
um mundo próprio, afastada dos amigos e dos parentes.
— Não obstante, você é a única pessoa que sobreviveu a um encontro com aquela
coisa - falou Lythande - se me contar o seu segredo, eu não contarei para eles.
Depois de muito tempo, a mulher falou:
— Ela. . . me chamou. Chamou com a última voz que ouvi; meu filho, o que morreu
da mesma febre que me deixou surda; chorando e chamando por mim. E assim, por algum
tempo pensei que tinham mentido para mim quando disseram que o meu menino estava
morto, acreditei que ele ainda vivia lá fora na costa bravia. Passei a noite procurando por ele.
Quando amanheceu, recobrei o juízo e percebi que se ele estivesse vivo não ia me chamar
com aquela vozinha de bebê. . . faz trinta anos que ele morreu, estaria um homem agora;
como poderia ter vivido tanto tempo sozinho?
Olhava o chão de novo, teimosa.
Não havia nada que Lythande pudesse dizer. Era difícil agradecer por uma história que
havia arrancado da outra, se não pela força, por algo bem próximo disso.
Então eu estava na pista errada, pensou Lythande. A surda não escondia segredo
algum que pudesse ajudar Lythande a lidar com o que ameaçava a cidade. Ela ocultava apenas
o que a teria feito parecer uma tola.
E quem sou eu para julgá-la, eu que tenho um segredo mais profundo e sombrio do
que o dela?
Ela errara e deveria recomeçar. Mas o tempo não fora perdido, não totalmente, pois
embora sabendo que a coisa atraía os homens com as vozes dos seres amados, esta não era
uma tentação absolutamente sexual, como ouvira dizer de algumas sereias. Ela chamara os
homens com a voz da mulher amada; mas pelo menos em relação a uma mulher ela usara a
voz do seu filho morto. Seria, então, que ela chamava as pessoas com a voz daquilo que elas
mais amavam?
Isto, portanto, explicaria o fato de as meninas serem, pelo menos em parte, imunes.
Antes que a força do amor penetre em suas vidas, o rapaz ou a moça amam seus pais, sim;
mas devido à falta de experiência, estes ainda são vistos como os que devem dar proteção e
cuidados aos filhos, e não como alvos de sua dedicação.
Só o amor pode criar este sentimento altruísta.
Então - pensou Lythande - não corro perigo enfrentando o monstro. Atualmente, não
há nada nem ninguém a quem eu ame. Jamais amei homem algum. As mulheres que amei
estão separadas de mim por mais do que uma vida, e saberei ser prudente se alguma me
chamar com a voz do coração, disso estou livre. Não amo ninguém, e o meu coração, se ainda
tenho um, não tem desejos.
Vou até lá dizer-lhe que estou pronta para livrá-los da sua maldição.
Deram-lhe o seu melhor barco, e teriam lhe dado uma das meninas para remar, mas
Lythande recusou. Como poderia ter certeza de que a garota era jovem demais para não ter
amado, estando assim invulnerável ao chamado da criatura do mar? Por segurança, também,
Lythande deixou o alaúde na praia, em parte porque desejava que eles soubessem que ela
confiava neles, mas principalmente porque temia o que a umidade no barco poderia fazer ao
frágil e querido instrumento. E ainda mais; se houvesse luta, ela poderia pisar nele e quebrá-
lo, nas condições exíguas do barco.
Era um dia claro e luminoso, e Lythande, fisicamente mais forte do que a maioria dos
homens saiu remando animada, enfrentando o forte vento mar afora. Pequenas nuvens
passavam rápido ao longo do horizonte, e cada onda que se quebrava vinha rolando suave e
musical. O barulho dos vagalhões soava forte nos seus ouvidos, e parecia a Lythande que, sob
o ruído das ondas, havia uma canção longínqua; como o cantar de uma concha que se coloca
contra a orelha. Por alguns minutos ela cantou para si mesma num tom baixinho, ouvindo o
som da própria voz acompanhada do barulho do mar quebrando; uma ilusão, ela sabia, mas
que achou muito agradável. Ela pensou que se tivesse o alaúde poderia se distrair
improvisando acordes para esta curiosa combinação. O que cantava junto com as ondas eram
sílabas sem sentido, mas elas pareciam adquirir um significado obscuro e mágico.
Nunca soube ao certo, depois, quanto tempo isso durou. Embora acreditasse no
princípio que era apenas mais uma agradável ilusão como a da concha no ouvido, depois de
algum tempo ela escutou uma voz suave infiltrando-se nos acordes que inventava
acompanhando o canto das ondas e a sua própria voz; de algum lugar vinha uma terceira voz,
sem palavras e incrivelmente doce. Lythande continuou cantando, mas algo dentro dela estava
atento - ou era a ardência da Estrela Azul sentindo a atuação próxima de um poder mágico?
O canto da sereia. Tão doce que era não tinha palavras. É como pensei, a criatura age
sobre os desejos do coração. Eu não tenho desejos, sou, portanto imune ao chamado. Não me
fará mal.
Ela ergueu os olhos. Por um instante viu apenas a grande massa de rochas de que a
tinham avisado, e encostada nelas uma sombra escura e disforme. Ao olhar a sombra, a
Estrela Azul ardendo na sua testa, ela desejou ver melhor. Então viu. . .
O que era? Sereia, diziam. Criatura. Era possível que considerassem isso algo
diabólico?
Externamente, não passava de uma menina, nua exceto por um colar de raras e
pequeninas conchas cintilantes; as conchas tinham uma prega no meio que as fazia
semelhantes às partes íntimas de uma mulher. Os cabelos eram escuros, com o brilho da água
nos glóbulos acetinados dos restos de algas marinhas sobre a areia da praia na maré cheia. Seu
rosto era jovem e de pele macia, os traços regulares. E os olhos. . .
Lythande jamais conseguiu lembrar-se dos olhos dela, embora no momento devesse
ter tido alguma impressão quanto à sua cor. Talvez fossem do mesmo tom do mar, onde ele se
enrolava encrespando-se além das ondas brancas da arrebentação. Não podia estar atenta aos
olhos, pois ouvia a sua voz. Entretanto, sabia que precisava ter prudência; se realmente fosse
vulnerável a essa coisa, seria através da voz, ela, de quem a música fora amiga, amante e
consolo por mais do que uma vida inteira.
Estava bem perto agora para ver. A sereia se parecia com uma menina, jovem e frágil,
com uma boca delicada e infantil. Um dos dentinhos, como pérolas irregulares, estava
lascado, o que a fazia parecer muito criança. Uma boca delicada. Lábios muito jovens para
beijarem, pensou Lythande, e ficou intrigada com o que ela pretendia com isto.
Um dia, eu mesma fui assim jovem, pensou Lythande, a mente divagando pelas trilhas
perigosas da memória; um dia — quantas gerações atrás? —, quando ela era uma jovenzinha
já inquieta com a vida nos aposentos femininos, sonhando com os poderes mágicos e a aven-
tura; uma época em que usava outro nome, que ela jurara jamais lembrar. Mas já naquele
tempo, embora ainda não divisada a estrada íngreme que a levaria finalmente ao Templo da
Estrela Azul e às grandes renúncias com que se defrontaria como um Adepto Peregrino, ela
sabia que o seu caminho não era entre jovens como esta - com delicados e vulneráveis lábios e
vulneráveis e delicados sonhos, amantes e maridos e filhos pendurados sobre os seus seios
como as conchas da sereia. O seu mundo já era muito amplo para se estreitar assim.
Jamais tão vulnerável que esta criatura pudesse me chamar com a voz de um filho
amado e morto. . .
E como se numa resposta, de repente havia palavras no canto da sereia, e uma voz de
que Lythande não se lembrava desde muito e muito tempo. Ela esquecera o rosto dele e o seu
nome; mas a sua memória era a de um bom menestrel, a memória de um músico. Um homem,
um nome, uma vida podem ser esquecidos; uma canção, ou uma voz - jamais.
Minha princesa e minha amada esqueça esses sonhos de magias e aventuras; juntos
cantaremos canções de amor tão belas que a vida não precisará reservar mais nada para
nenhum de nós dois.
Um rápido olhar para as pedras lhe disse que lá estava ele, o rosto de que se esquecera,
mais um pouco ela lembraria o seu nome. . . Não! Isto era ilusão; ele estava morto, morto
havia mais tempo do que ela poderia imaginar. . . Vá embora, disse ela para a ilusão. "Você
morreu, e não vou ser enganada assim, ainda não.
Disseram-lhe que a visão podia usar a voz dos mortos. Mas isto não a enganaria, não
dessa forma; quando a ilusão se foi, Lythande percebeu um ligeiro murmúrio de uma risada,
como o quebrar da marola nas pedras onde estava sentada a sereia. O seu riso era delicioso.
Seria isto ilusão também?
As mulheres, então, ela chama com a voz dos amantes. Mas Lythande jamais fora
vulnerável a este tipo de apelo. Ele não fora o único; apenas aquele a quem Lythande estivera
mais próxima de ceder. Ela quase lembrara o nome dele; por um momento sua mente
retardou-se, flutuando, em busca de um nome, um nome. . . então deliberadamente, quase com
regozijo, ela afastou seu pensamento da nervosa fascinação da busca.
Ela precisava não tentar se lembrar. Fora tanto, tanto tempo atrás, num país tão
distante dali, que nenhum homem caminhando dez dias seguidos saberia ao menos o seu
nome. Então, por que lembrar? Ela sabia a resposta; esta criatura marinha, esta sereia,
defendia-se assim, atingindo a sua mente e alcançando a sua memória, como o fizera com os
pensamentos e as lembranças dos pescadores que tentavam passar por ali, fazendo-os se
perderem nos labirintos do passado, dos antigos amores, dos seus desejos. Lythande controlou
um arrepio, lembrando-se do homem diante do fogo, perdido num sonho sem fim. Quão perto
estivera disso? E não haveria ninguém para resgatá-la.
Mas um Adepto Peregrino não era apanhado assim tão facilmente. A criatura era
simples, usando sobre ela a sua única defesa, forçando a sua mente e a sua memória: e ela
escapara. Desinteressada, Lythande estava imune a este apelo aos desejos.
Parecendo tão menina, isto pelo menos só podia ser ilusão, a sereia era uma criatura
sem idade. . . como ela mesma, pensou Lythande.
Ela tentara mostrar-se na forma ilusória de um antigo amante – não ele jamais fora
amante de Lythande. Tentara mostrar-se na forma de uma antiga lembrança para apanhá-la na
armadilha no campo irreal dos desejos do coração. Mas Lythande nunca fora vulnerável assim
a esses desejos.
Nunca?
Nunca, criatura de sonhos. Nem mesmo quando eu era mais jovem do que você
aparenta ser agora.
Mas esta era a verdadeira forma da sereia, ou algo semelhante? A momentânea ilusão
desaparecera, a sereia voltara à sua aparência de menina, comovedoramente jovem; deveria
então haver alguma verdade na boca infantil, nos olhos sonhadores, no sorriso frágil. A sereia
estava se protegendo da melhor maneira possível; certamente um ser assim tão delicado e
indefeso, parecendo tão jovem e imaculado, estaria à mercê dos homens da raça dos
pescadores, homens que veriam apenas uma donzela de quem se aproveitariam.
Havia muitas histórias assim por estas praias, contadas em frente à lareira, das sereias
e dos homens que as amaram. Homens que as levaram para casa como suas esposas, donzelas
do mar livres, para viver respirando a fumaça do fogo, cozinhar e fiar, serva do homem, um
arremedo da criatura que deveria ser. Quase sempre a história termina com a jovem
prisioneira descobrindo a sua roupa de escamas de peixe e algas marinhas e mergulhando
novamente no mar atrás da sua liberdade, deixando o pescador a chorar o seu amor perdido.
Ou a perda da sua prisioneira. . .? Neste caso, a simpatia de Lythande estava com a
sereia.
Mas havia se comprometido a livrar a aldeia desse perigo. E, sem dúvida, era um
perigo, mesmo que representado apenas por uma beleza mais terrível do que eles ousavam
conhecer e compreender, uma frágil e efêmera beleza como o eco de uma canção, como as
plantas marinhas no vaivém da maré. Pois quando o sonho se desfazia, a sereia não passava
de uma débil criatura, sem idade, mas com a eterna ilusão da juventude. Somos iguais, pensou
Lythande; neste sentido, somos irmãs, porém sou mais livre do que ela.
Ela estava começando a perceber novamente o canto da sereia, e sabia que era
perigoso ficar ouvindo. Cantou para si mesma, tentando bloquear a sua percepção. Mas sentia
uma enorme compaixão pela criatura, à mercê de uma rude aldeia de pescadores, protegendo-
se como podia, e amaldiçoou sua beleza.
Ela se parecia tanto com uma das meninas que Lythande conhecera naquele país
longínquo. Haviam tocado juntas a harpa, o alaúde e a flauta de bambu. Chamava-se. . .
Lythande lembrou-se do nome sem grande esforço. . . era Riella, e estava lhe soando como se
a sereia cantasse com a sua voz.
Não era amor, pois já naquela época Lythande sabia que este sentimento com que a
outras meninas sonhavam não lhe interessava. Mas houvera alguma identidade entre elas.
Jamais reconhecida; mas Lythande começara a perceber que, mesmo para uma mulher que
não se importava com o desejo dos homens, a vida não precisava ser totalmente vazia. Havia
sonhos e desejos que nada tinham a ver com as fantasias mais modestas das outras mulheres,
o sonho de um marido, um amante ou um filho.
E então Lythande ouviu a primeira sílaba de um nome, um nome que jurara esquecer,
um nome que um dia fora seu, um nome que ela não. . . não. Não. Um nome que ela não
podia lembrar. Suando, a Estrela Azul cintilando de raiva, ela olhou para as pedras. A figura
de Riella acenou e desapareceu.
Mais uma vez a criatura tentara atraí-la com a voz dos mortos. Não havia mais o
menor vestígio de distração na mente de Lythande. De novo, ela quase fatalmente subestimara
a criatura do mar por parecer tão jovem e infantil, por lhe fazer lembrar Riella e as outras
meninas que amara num mundo e numa vida havia muito perdidos para ela. Não tornaria a ser
apanhada assim. Lythande agarrou o punho da adaga da esquerda, defensora contra as magias,
ao sentir o fundo do barco arranhar as pedras.
Ela saltou para o pequeno recife, franzindo o nariz para o odor desagradável de peixes
mortos e de algas marinhas deixados pela maré, um cheiro de podre - como podia uma
criatura tão jovem e linda viver nesta fedentina?
A sereia perguntou numa vozinha de garota:
— Eles a enviaram para me matar, Lythande?
Lythande segurou forte o punho da adaga. Não queria conversa com a criatura; jurara
libertar a aldeia desta coisa, e o faria. Mas ainda ao erguer a adaga ela hesitou.
A sereia, com aquela voz de menininha tímida, falou:
— Admito que tentei seduzi-la. Você deve ser uma grande maga para escapar de mim
assim tão fácil. Minha humilde magia não conseguiu aprisioná-la!
Lythande falou:
— Sou um Adepto da Estrela Azul.
— Não conheço a Estrela Azul. Mas posso sentir o seu poder- falou a donzela do mar.
- A sua magia é muito forte. . .
— E a sua é a de me adular - falou Lythande, prudente, e a sereia deu uma risadinha
infantil divertida.
— Percebe o que digo? Não posso enganá-la, ou posso Lythande? Mas por que veio
aqui me matar, quando não posso lhe causar nenhum dano? E por que está segurando essa
horrível adaga?
Por que, realmente? Lythande admirou-se, guardando a arma. Esta criatura não lhe
faria mal. Entretanto, não havia dúvida de que tinha vindo ali por alguma razão, e ela
procurou recordar. Finalmente, falou:
— O povo da aldeia não pode pescar para o seu sustento e vai morrer de fome. Por que
deseja fazer isto?
— Por que não? - perguntou a sereia com ar inocente.
Isto fez Lythande pensar um pouco. Ela ouvira aquela gente e as suas histórias; não
parará para considerar sob o ponto de vista da sereia. O mar, afinal de contas, não pertencia
aos pescadores; ele era dos peixes e das criaturas do mar pássaros, peixes e ondas, os
moluscos das profundezas, enguias, golfinhos e as imensas baleias, que nada tinham a ver
com a humanidade e sim, das sereias e das estranhas criaturas marinhas também.
Mas Lythande jurara lutar do lado da Lei contra o Caos até o advento da Batalha Final.
E se a humanidade não conseguisse sobreviver como os outros seres habitantes do mundo, o
que seria dela?
— Por que devem viver da matança dos peixes do mar? - perguntou a sereia. - Têm
eles mais direito à sobrevivência do que os peixes?
Esta não era uma pergunta fácil de responder. Mas, ao olhar de relance para a praia,
sentindo o cheiro forte da maré, Lythande soube o que deveria dizer.
— Vocês se alimentam de peixes, não? Há bastante deles no mar para todo o povo da
praia, assim como para os da sua espécie. E se os pescadores não matarem os peixes e os
comerem, estes serão devorados apenas pelos outros peixes. Por que não deixar em paz os
pescadores para que peguem o que necessitam?
— Bem, talvez eu deixe - falou a sereia, tornando a rir o que deixou Lythande
novamente perplexa: que criaturinha infantil era ela, afinal de contas. Teria idéia do dano que
causara?
— Talvez eu possa achar outro lugar para ir. Quem sabe você pode me ajudar? — Ela
ergueu os olhos grandes e luminosos para Lythande. — Ouvi seu canto. Conhece outras
canções novas, maga? Vai cantá-las para mim?
A pobre criatura é como uma criança; só, e até mesmo insatisfeita, aqui nas pedras.
Como pareceu infantil ao dizer isso. . . Conhece outras canções novas? Lythande desejou não
ter deixado o alaúde na praia.
— Quer que eu cante para você?
— Ouvi você, e me pareceu imensamente doce por sobre as águas, minha irmã. Tenho
certeza de que temos muitas músicas e canções para ensinar uma à outra.
Lythande falou gentilmente:
— Eu cantarei para você.
Primeiro ela cantou, deixando os seus pensamentos flutuarem pelas brumas do
passado, uma canção que havia cantado ao som de uma flauta de bambu, mais de uma
existência atrás. Pareceu-lhe por um momento que Riella estava sentada ao seu lado nas
pedras. Era apenas uma ilusão criada pela sereia, sem dúvida. Mas, certamente, inofensiva!
Ainda assim, talvez fosse melhor não permitir que ela continuasse; afastou logo do passado a
sua mente e cantou a canção marinha que havia composto no dia anterior, quando passeava
pela praia da aldeia.
— Lindo, irmã - murmurou a sereia, sorrindo de forma a mostrar a graciosa falha entre
os dentes perolados. - Jamais ouvi um musico assim. O povo todo que vive na terra canta
assim tão bonito?
— Muito poucos - falou Lythande. - Há muitos anos que não ouvia uma música tão
suave como a sua.
— Cante de novo, irmã - disse a sereia sorrindo. - Aproxime-se e cante de novo. E em
seguida eu cantarei para você.
— E você irá embora e deixará os pescadores viverem em paz? - perguntou Lythande
astuciosamente.
— Certamente que irei, se você me pede irmã — disse a sereia.
Fazia muito tempo que ninguém se dirigia a Lythande, de mulher para mulher, sem
medo. Para ela, seria a morte permitir que algum homem soubesse que ela era uma mulher; e
as mulheres em quem podia confiar eram muito poucas. Era um bálsamo para o seu coração.
Por que, afinal de contas, deveria retornar à terra? Por que não ficar aqui na pacífica
tranqüilidade do mar, trocando canções e encantamentos com sua irmã, a sereia? Aqui havia
poderes mágicos mais notáveis do que ela já conhecera, e músicas mais suaves também.
Ela cantou, ouvindo sua voz soar por sobre as águas. A sereia sentava-se quieta, a
cabecinha ligeiramente de lado, ouvindo como em profundo encantamento, e Lythande sentiu
que jamais cantaria tão suavemente. Por um momento ela imaginou se, ao ouvir sua canção
ecoando no oceano, alguém que por ali passasse pensaria ser a canção de uma sereia. Pois,
sem dúvida, ela, Lythande, podia enfeitiçar com seu canto. Deveria ficar ali, cessar a negação
do seu verdadeiro sexo, ali onde ela poderia ser ao mesmo tempo mulher, maga e menestrel?
Ela, também, poderia sentar-se nas pedras, encantar com sua música, deixar o tempo e o mar
passarem por ela, esquecer o seu esforço para viver como Adepto Peregrino, sendo apenas o
que era intimamente. Ela era uma grande maga; podia sentir a ardência da sua magia na
Estrela Azul na sua testa, cintilando. . .
— Aproxime-se, irmã, para que eu possa ouvir a suavidade do seu canto - murmurou a
sereia. - Na realidade, você é quem me encantou, maga. . .
Como num sonho, Lythande deu mais um passo. Uma concha quebrou-se sob seus
pés. Ou seria um osso? Jamais soube o que a fez olhar para baixo e ver que o seu pé havia
revirado uma caveira.
Lythande sentiu o sangue gelar nas veias. Isto não era uma ilusão. Rapidamente,
agarrou a adaga da esquerda e murmurou as palavras mágicas que limpariam a atmosfera de
qualquer ilusão e magia, inclusive a sua. Ela deveria ter feito isto antes.
A sereia deu um grito desesperado:
— Não, não, minha irmã, minha irmã musical, fique comigo. . .Agora você também
me odiará. . .
Mas quando as palavras foram se apagando, como o som de uma corda quebrada do
alaúde, a sereia desapareceu, e Lythande olhou horrorizada para o que estava sentado nas
pedras.
Nem remotamente parecia uma figura humana. Tinha três ou quatro vezes o tamanho
do maior animal marinho que ela já tinha visto, curvando-se imenso e verde, da cor das algas
marinhas. Tudo que podia ver da sua cabeça eram fileiras e fileiras de dentes imensos
abrindo-se diante dela. E o verdadeiro horror era que faltava uma lasca num dos caninos.
Pequeninos dentes perolados com uma pequena falha. . .
Deuses do Caos! Quase entrei pela goela adentro desse monstro!
Com ânsias de vômito, Lythande atirou a adaga; quase ao mesmo tempo, sacou a faca
da direita, que agia sobre ameaças materiais, e enfiou-a no coração da coisa. Um rugido
fantasmagórico ergueu-se com o sangue verde, cheirando a podre e a algas marinhas, que
espirrou sobre o Adepto Peregrino. Lythande, tremendo, golpeou diversas vezes, até
silenciarem-se os gritos. Baixou o olhar para aquela coisa morta, as fileiras de dentes, os
tentáculos e as ventosas contorcendo-se. Diante de seus olhos estava um rostinho infantil, uma
voz cuja lembrança jamais a abandonaria.
E eu chamei aquilo de "irmã". . .
E fora até fácil acabar com ela. Não possuía armas, nenhuma defesa, exceto o seu
canto e as suas ilusões. Lythande orgulhara-se tanto da sua habilidade para escapar dos
sonhos, de não ser vulnerável aos apelos de um amante ou da memória!
Entretanto ela invocara o seu desejo mais íntimo. . . a música. A magia. Pela ilusão de
um momento, quando algo que jamais existira, jamais poderia existir, a chamara de "irmã",
falando para uma feminilidade para sempre renunciada. Ela olhou a coisa morta à beira
d'água, e percebeu que chorava como não o fazia desde três existências.
A sereia a chamara "irmã", e ela a havia matado.
Falava para si mesma, ainda que seu corpo se sacudisse em soluços, que as suas
lágrimas eram loucura. Se não a tivesse matado, teria morrido entre aquela imensa e pavorosa
fileira de dentes, e não teria sido uma morte agradável.
Entretanto, por aquela ilusão eu estaria pronta a morrer. . .
Ela chorava por algo que jamais existira.
Chorava porque jamais existira e porque, para ela, jamais existiria, nem mesmo na
lembrança. Depois de muito tempo, ela desceu e, da massa que se desfazia como algas podres,
pegou um canino com uma lasca faltando. Parou olhando para ele bastante tempo. E então,
com os lábios apertados numa careta, atirou-o no mar e tornou a entrar no barco. Remando de
volta à praia, percebeu que ouvia o barulho das ondas como uma concha encostada no ouvido.
E aí compreendeu que procurava ouvir outra vez, e começou a cantar uma canção das
tavernas, a mais barulhenta que conhecia.
INTRODUÇÃO A
O ALAÚDE ERRANTE

Certa vez, há não muitos anos, Robert Adams e André Norton uniram-se para montar
uma antologia sobre um mundo mágico a que chamaram A Feira de Ithkar. A idéia não me
pareceu muito diferente de o Mundo dos Ladrões, e, portanto criei uma história de Lythande
só para Ithkar — mas Adams & Norton a recusaram porque, sem dúvida, Lythande estava
“associada ao Mundo dos Ladrões'' - mesmo tendo eu me retirado desta coleção após o
primeiro volume e, para todos os efeitos, retirado Lythande também.
O personagem — e a sua salamandra — que introduz Lythande nesta história faz
parte do primeiro volume de Ithkar, num conto chamado ' 'Cold SpeW', de Elizabeth Waters,
e o seu nome e características são usados com sua permissão.
Lythande, como vimos em "A Magia Alheia", não é tão boa em desfazer
encantamentos quanto nas outras magias. Será que ela precisa de mais desprendimento?
O ALAÚDE ERRANTE

Na bacia de vidro, a salamandra silvava num fogo azulado. Lythande inclinou-se,


estendendo os dedos pálidos e insensíveis; o frio da manhã na Velha Gandrin lhe gelava o
nariz e as mãos. Ao alerta de um sibilar dentro do recipiente, o mago deu um passo atrás,
olhando intrigado para a jovem vendedora de velas.
— Ele morde?
— O nome dela é Alnath - falou Eirthe. - Geralmente ela não precisa disso.
— Por favor, perdoe-me - desculpou-se Lythande. - Essência do Fogo, empresta-me o
seu calor?
A chama ergueu-se; Lythande inclinou-se agradecido sobre a bacia; lá dentro, Alnath
enroscava-se numa espiral, um dragão em miniatura, as chamas fluindo do seu corpo de
elementar do fogo.
— Ela gosta de você - falou Eirthe. - Quando o príncipe Tashgan veio aqui, ela
assobiou e a capa de seda do alaúde dele começou a queimar; ele saiu mais rápido do que
entrou.
O capuz do manto de mago estava caído às costas e, à luz do fogo que se erguia, a
Estrela Azul ficava bem visível na testa estreita e alta de Lythande.
— Tashgan? Eu o conheço apenas pela sua reputação - disse Lythande. - Você gostaria
de viver num palácio, Eirthe? Sua Brilhante Alteza se adaptaria a um recipiente feito de
pedras preciosas e diamantes?
Eirthe deu uma risadinha, pois o príncipe Tashgan era conhecido em toda a Velha
Gandrin por estar sempre atrás das mulheres.
— Ele estava procurando você, Lythande. O que você acha de viver num palácio?
— Eu? Para que necessitaria o príncipe de um mago mercenário?
— Talvez deseje ter aulas de música. - Ela acenou com a cabeça para o alaúde
atravessado sobre os ombros do mago. - Soube que Tashgan toca em três festivais de verão, e
você toca duas vezes melhor do que ele. O alaúde não é o seu melhor instrumento. - Ela riu,
rolando os olhos com expressão marota.
Lythande gostava de uma brincadeira maliciosa, como qualquer um; a risada jovial e
bem-humorada encheu o aposento.
— E quase sempre assim com os que tocam alaúde por diletantismo. Quanto às
cabeças coroadas, quem se atreve a dizer-lhes que poderiam tocar melhor? A bajulação acaba
com os talentos.
— Tashgan não usa a coroa, jamais usará - disse Eirthe. - O grão-lorde de Tschardain
teve três filhos; não conhece a história?
— E ele o terceiro filho de Tschardain? Ouvi dizer que estava exilado, mas estive só
de passagem em Tschardain.
— O velho rei teve um ataque, sete anos atrás; enquanto apenas sobrevivia paralítico e
mudo, o filho mais velho assumiu o poder; o segundo tornou-se o conselheiro do irmão e
marechal do seu exército. Tashgan, diziam, era fraco, distraído e mulherengo; arrisco-me a
dizer que o jovem lorde precisava apenas de alguns defensores que reivindicassem a sua
posição.
Ela se inclinou e, procurando rapidamente sob a sua mesa de trabalho, apanhou um
volume envolto num pano de seda.
— Aqui estão as velas que você encomendou. Lembre-se de que foram encantadas
para só queimarem num dos vidros de Cadmon; embora você possa facilmente descobrir uma
fórmula mágica neutralizante.
— Já tenho o vidro de Cadmon.
Lythande pegou as velas, mas retardou-se um pouco ao lado do fogo da salamandra.
Eirthe olhava o alaúde suspenso a tiracolo por uma faixa de couro enfeitado.
— O que você se tornou primeiro, mago ou menestrel? Parece uma combinação um
tanto estranha.
—Desde criança me dedico à música - explicou Lythande -e quando comecei a me
interessar pela magia, abandonei o meu primeiro amor. Mas o alaúde é uma amante
compreensiva. O mago guardou o embrulho com as velas num dos bolsos escondidos do seu
manto, fez uma reverência à moda da corte para Eirthe e murmurou para a salamandra:
— Essência do Fogo, meus agradecimentos pelo seu calor.
Uma labareda azul-cobalto ergueu-se da bacia, saltando para a mão estendida de
Lythande. O mago não fez nenhum gesto para se esquivar enquanto a salamandra pousou um
momento no seu pulso delgado, embora deixasse nele uma marca vermelha. Eirthe assobiou
de leve, surpresa.
— Ela nunca faz isso com pessoas estranhas: - A menina olhou o calo no próprio
pulso, onde a salamandra costumava descansar.
— Ela é como um dragão encantado, de tamanho reduzido.
Ouvindo isto, Alnath deu mais um silvo, esticando o seu longo pescoço causticante;
diante do olhar atônito de Eirthe, Lythande alisou as escamas de fogo.
— Talvez ela saiba que somos espíritos afins; ela não é o primeiro elementar do fogo
que conheço — falou a maga. — Grande parte das funções de um mago é lidar com o fogo.
Essência imaculada do mais puro dos Elementos volte à sua verdadeira dona.
Lythande ergueu o braço num movimento gracioso; labaredas de fogo cortaram o ar
quando Alnath precipitou-se para o pulso de Eirthe e ali se enrascou quieta.
— Caso Tashgan torne a me procurar, diga-lhe que estou hospedado no Dragão Azul.
Mas Lythande viu o príncipe Tashgan antes disso.
O Adepto estava sentado na sala do Dragão Azul, uma caneca de cerveja intocada
sobre a mesa — pois, como se sabe, um dos diversos votos que resguardavam os poderes de
um Adepto da Estrela Azul era jamais ser visto comendo ou bebendo diante de estranhos.
Entretanto, a caneca era o passaporte inquestionável para o mago poder sentar-se junto com o
povo da cidade e ouvir e escutar o que acontecia com eles.
— Pode nos favorecer com uma de suas canções, ó Bem-Nascido?- perguntou o
estalajadeiro.
O Adepto Peregrino descobriu o alaúde e começou a tocar uma balada do campo.
Quando as notas suaves invadiram a sala, as pessoas que estavam ali bebendo ficaram em
silêncio, ouvindo o som harmonioso da voz de Lythande, doce e neutra, assexuada.
Quando a última nota morreu no ar, um homem alto, ricamente vestido, de pé no
fundo da sala, adiantou-se.
— Mestre Menestrel, eu o saúdo - cumprimentou ele. - Ouvi de muito longe falarem
de sua habilidade com o alaúde, e vim um pouco antes da minha estação para escutá-lo tocar.
Está hospedado aqui? Posso oferecer-lhe uma bebida em particular, Mago? Soube que os seus
serviços têm um preço; eu preciso deles.
— Sou um mago mercenário - disse Lythande - não ensino a tocar alaúde.
— Contudo, discutamos em particular se não lhe seria vantajoso me dar algumas aulas
- falou o homem. - Sou Tashgan, filho de Idriash de Tschardain.
Algumas pessoas que observavam na sala tiveram a desconfortante sensação de que a
Estrela Azul na testa de Lythande contraíra-se, focalizando Tashgan. Lythande falou:
— Que assim seja. Antes da Batalha Final entre a Lei e o Caos, muitas coisas
estranhas se passarão, e, pelo que sei, esta bem pode ser uma delas.
—Seria do seu agrado conversarmos no seu quarto, ou no meu?
—Que seja no seu — falou Lythande.
Os objetos com que as pessoas se cercavam quase sempre forneciam ao mago uma
chave importante para a avaliação do seu caráter; se este príncipe ia ser um cliente - dos
serviços do mago ou do menestrel - estas pistas poderiam se revelar muito valiosas.
Tashgan havia reservado o quarto mais luxuoso do Dragão Azul; o seu caráter original
estava quase totalmente oculto pelas cortinas e as almofadas de seda. Pequenos instrumentos
musicais elegantes - um tambor enfeitado com fitas de seda, um borain, um par de guizos de
cascavel e um sisto dourado - pendurados na parede. Ao se abrir a porta, uma mocinha de
camisola, os braços nus e os cabelos soltos caindo numa nuvem em desalinho sobre os seios
de menina, rolou da cama e fugiu ligeira para trás das cortinas. Lythande fez uma careta de
desgosto.
— Encantadora, não? — perguntou Tashgan casualmente. Uma jovem local; não
desejo ligações permanentes nesta cidade. E exatamente para discutir esse tipo de amarras -
indesejadas e involuntárias – que eu quero lhe falar. Lissini traga o vinho da minha provisão
particular.
A menina serviu o vinho; Lythande ergueu a taça formalmente, sem prová-lo, e
inclinou-se para Tashgan:
— Em que posso servi-lo, Excelência?
— É uma longa história. - Tashgan soltou a tira que prendia o alaúde ao seu ombro. -
O que acha deste alaúde?
Os seus olhos fracos, de um azul aguado, acompanhavam o instrumento enquanto o
tirava da capa e o exibia.
Lythande examinou rapidamente o instrumento; era menor do que o seu,
delicadamente trabalhado em madeira de árvores frutíferas, com incrustações de madrepérola.
— Não me lembro de ter visto um trabalho tão bonito desde que aqui cheguei.
— As aparências enganam - falou Tashgan. - Este instrumento, mago, é ao mesmo
tempo a minha maldição e a minha bênção.
— Posso? -Lythande avançou a mão esguia e tocou o braço do alaúde de delicados
arabescos. A Estrela Azul cintilou de repente, Lythande franziu o cenho. - Este alaúde está
encantado. E a longa história de que falou. A noite é uma criança; viva a noite. Conte.
— Tashgan fez um sinal para que a menina servisse mais um pouco do vinho
aromático.
— Sabe o que significa ser o terceiro filho de uma linhagem real, mago?
Lythande sorriu apenas, enigmaticamente. A realeza num país distante é a pretensão
de muitos trapaceiros e magos errantes; Lythande jamais reivindicara tal direito.
— A história é sua, Alteza.
— O segundo filho assegura a sucessão e pode servir de conselheiro ao primeiro, mas,
depois que meus irmãos mais velhos sobreviveram às doenças infantis, o rei e a rainha, meus
pais, não sabiam o que fazer com este terceiro príncipe inconveniente. Se fosse uma filha,
teriam me preparado para um bom casamento, mas um terceiro filho? Só poderia ser um
dissidente ou rebelde. Portanto, trataram de dar à minha vida alguma coerência e me
adestraram nas artes musicais.
— Há destinos piores - murmurou Lythande. - Em muitos países, um menestrel é
considerado com mais honras do que um príncipe.
— Em Tschardain não é assim.
Tashgan fez um gesto pedindo mais vinho. Lythande ergueu a taça, inalando o
delicado buquê, sem, entretanto prová-lo. Tashgan continuou:
— Em Tschardain não é assim; por isso vim para a Velha Gandrin, onde um menestrel
tem a sua própria dignidade. Durante muitos anos, minha vida assumiu o seu caráter regular;
na primavera, hospedo-me nas fronteiras de Tschardain, depois na direção norte em Gandrin
para a estação das feiras, e mais ao norte, no verão, em Northwander. Em seguida, no ápice do
verão, volto para o sul, passando pela Velha Gandrin, refazendo os meus passos, novamente
bem-vindo e hospedado como menestrel nos castelos e nas mansões e, finalmente, para as
festas de Natal, em Tschardain. Lá, por um punhado de dias, sou bem recebido pelo pai e os
irmãos. Assim tem sido por doze anos, desde rapazinho; nada mudou quando meu pai, o grão-
lorde, sofreu um ataque e meu irmão Rasthan assumiu o poder. Parecia que ia continuar assim
a vida inteira, até que cresci o bastante para ameaçar o trono de meu irmão e o de seus filhos.
— Não me parece uma vida muito ruim - observou Lythande neutro.
— Não de todo, realmente - falou Tashgan, com um rolar lascivo dos olhos. - Aqui na
Velha Gandrin, um músico é altamente prestigiado, como você mesmo disse, e quando me
hospedam nos castelos e nas mansões. . . bem, acho que as damas se cansam de suas
dignidades reais e um músico pode lhes dar lições de música no seu instrumento...- Mais um
piscar e um movimento de olhos sugestivo. . . — Bem, mestre mago e menestrel, você
também tem um alaúde, e arrisco dizer que também pode se quiser, contar histórias de como
as mulheres são hospitaleiras com os menestréis.
A Estrela Azul na testa de Lythande contraiu-se novamente num secreto desdém; o
mago disse apenas:
— Há algum motivo, então, para que as coisas não caminhem como você desejava?
— Digamos como meu pai e meu irmão Rasthan desejavam - corrigiu Tashgan. - Eles
não imaginaram que eu pretendesse ficar anualmente em Tschardain mais do que os dias
combinados. O mago da corte de meu pai fez para mim este alaúde, e o encantou, de forma
que as minhas andanças jamais me levassem às terras de algum nobre que pudesse estar
tramando contra o trono de Tschardain, ou me permitissem demorar nelas o suficiente para
poder estabelecer alianças. Dia a dia, estação a estação, ano após ano, o meu circuito é tão
monotonamente definido como o erguer do sol e da lua ou o curso dos solstícios
acompanhando os equinócios; uma semana aqui, dez dias ali, três dias neste lugar, quinze
naquele. . . não permaneço em lugar algum além do espaço de tempo que me coube, pois a
compulsão do feitiço colocado no alaúde me faz caminhar novamente.
— Continue.
— Bem, por muitos anos isso não me desagradou - disse Tashgan. - Entre outras
coisas. . . bem, livrava-me do medo de que uma dessas mulheres. . . - mais uma vez o rolar
sugestivo dos olhos aquosos - me prendesse por algo mais do que um. . . namorico. Mas três
luas atrás, um mensageiro de Tschardain me alcançou. Meus dois irmãos haviam morrido
queimados nas chamas de um dragão vindo do sul. Portanto, eu, que não fui treinado e nem
tenho inclinação para governar, inesperadamente sou o único herdeiro do grão-lorde. . . e meu
pai pode morrer a qualquer momento, ou permanecer mais alguns anos como chefe apenas no
nome. O vizir de meu pai solicitou a minha volta imediatamente a Tschardain para reivindicar
a minha herança.
Tashgan deu um tapa na mesa, irado, chacoalhando o alaúde e fazendo estremecer as
suas fitas.
— E eu não posso! O encantamento deste amaldiçoado alaúde me força a dirigir-me
para o norte, até Northwander! Se me encaminho para o sul, onde fica o meu reino, sou
assaltado por náuseas e dores, e não consigo reter no estômago seja alimento ou vinho, e nem
mesmo sinto prazer em olhar uma mulher até partir na direção determinada para aquela época
do ano. Não posso ir a lugar algum, exceto obedecendo ao ciclo estabelecido, pois a desgraça
deste instrumento encantado me arrasta!
O corpo magro e esguio de Lythande sacudia-se de tanto rir, e a carranca mal-
humorada olhava fixo o Adepto:
— Está rindo da minha maldição, mago?
— Tudo neste mundo tem um lado engraçado - falou Lythande, tentando controlar o
seu riso frouxo. — Pense você mesmo, meu príncipe; tivesse isto acontecido a outra pessoa,
não teria achado engraçado?
Os olhos de Tashgan estreitaram-se, mas ele acabou sorrindo de leve e dizendo:
— Acho que sim. Mas se o problema fosse seu, estaria rindo?
Lythande tornou a achar graça.
— Acho que não, Alteza. E isso explica bem o que as pessoas chamam de diversão.
Por isso, diga-me: como posso lhe ser útil?
— Não ficou óbvio? Retire o encantamento do alaúde!
Lythande ficou em silêncio e Tashgan inclinou-se na cadeira, inquirindo agressivo:
— Você pode desfazer este feitiço, mago?
— Talvez, se o preço for justo, Alteza. — Lythande falou sem se apressar. - Mas por
que se colocar à mercê de um estranho, um mago mercenário? Sem dúvida, o mago da corte
que servia a seu pai ficaria muito feliz em cair nas graças do seu novo monarca, libertando-o
deste encanto singularmente incômodo.
— Certamente - concordou Tashgan, taciturno - mas há uma grande dificuldade nisso
tudo. O bruxo a quem devo agradecer – ele reforçou a palavra com mais uma de suas
carrancas mal-humoradas -. . . era Ellifanwy.
— Oh!
O confuso fim de Ellifanwy no covil de um dragão era conhecido de Northwander a
Southron Sea. Lythande falou:
— Eu conheci Ellifanwy há muito tempo. Disse-lhe que não conseguiria lidar com
dragões e ofereci os meus serviços mediante um pagamento irrisório, mas ela não quis largar
o ouro. Agora está carbonizada nas cavernas do pantanal dos dragões.
— Não me surpreendo - falou Tashgan. - Estou certo de que você concorda comigo
que as mulheres não devem se envolver com a Alta Magia. Coisas pequenas, sim, como
feitiços de amor. . . e devo dizer que os de Ellifanwy eram soberbos - acrescentou, vaidoso
como um pavão. - Mas quanto a dragões e coisas assim, acho que você pensa como eu, vendo
o destino dela: as bruxas deviam cuidar de seus caldeirões e lançar sortilégios de amor.
Lythande não respondeu, inclinando-se para apanhar o alaúde. Novamente, o faiscar
da Estrela Azul na testa do mago iluminou o quarto.
— Então, você quer que eu desfaça o feitiço de Ellifanwy? Isto não deve ser difícil-
disse Lythande, acariciando o alaúde; os dedos finos passearam por um momento pelas
cordas. - Como você me pagará?
— Ah, aí é que está o problema - falou Tashgan. - O ouro que possuo é pouco; o
mensageiro que me trouxe a notícia da morte de meus irmãos esperava ser ricamente
recompensado, e tenho vivido quase sempre como um hóspede todos estes anos; recebendo
tudo que desejava boas comidas, roupas caras, vinhos e mulheres, mas muito pouco em
dinheiro vivo. Mas se desfizer este encanto, eu o recompensarei bem quando você for a
Tschardain. . .
Lythande sorriu, com expressão enigmática:
— Conheço bem a gratidão dos reis, Alteza.
Tashgan dificilmente desejaria a presença de Lythande em Tschardain, que poderia
contar aos seus futuros súditos a ridícula situação anterior do seu futuro grão-lorde.
— E preciso achar um outro modo.As mãos de Lythande repousaram por um momento
no alaúde de Tashgan.
— Sinto-me atraído pelo seu alaúde, Alteza, com feitiço e tudo. Há muito tempo que
desejo viajar até Northwander. Mas não sei o caminho. Estarei certo ao supor que este alaúde
manterá quem o carregar na direção correta?
Tashgan respondeu, irritado:
— Nenhum guia nativo poderia fazer melhor. Quando me desviava do caminho, como
aconteceu uma duas ou três vezes devido a um excesso de hospitalidade, o alaúde me trazia de
volta nem bem eu havia caminhado uma dúzia de passos. É como ser criança novamente, de
mãos dadas com a ama!
— Parece interessante - murmurou Lythande. - Perdi o único alaúde que tinha algum
significado para mim num... digamos, num confronto mágico. . . e não tenho muito dinheiro
disponível para substituí-lo; mas este aqui tem um som agradável. Troque de instrumento
comigo, nobre Tashgan, e eu irei a Northwander, e tratarei de desfazer o feitiço com calma.
Tashgan hesitou um momento:
—Feito - falou ele, pegando o alaúde simples de Lythande e deixando que a maga
colocasse o outro todo decorado com rebuscados trabalhos em madrepérola na sua capa de
couro.
— Parto para Tschardain ao amanhecer. Aceita mais uma taça de vinho, mago?
Lythande recusou, polidamente, e numa mesura pediu permissão para se retirar.
— Então você viajará para Northwander seguindo o meu roteiro de cortes e castelos?
Será bem recebido, mago. Boa sorte. - Tashgan deu um risinho de satisfação, com um olhar
sugestivo. - Há muitas senhoras entediadas com seus afazeres femininos. Dê lembranças
minhas à Beleza.
— Beleza?
— Você a encontrará. . . e muitas outras. . . se for longe com o meu alaúde - disse
Tashgan, lambendo os lábios. - Chego quase a invejá-lo, Lythande; ainda não teve tempo de
se cansar com seus. . . amistosos estratagemas. Mas - acrescentou, desta vez com franca
malícia - sem dúvida, há muitas outras aventuras me aguardando na corte de meu pai.
— Desejo um bom proveito - falou Lythande, inclinando-se circunspecto.
Já na escada, o mago decidiu que ao raiar do sol já teria deixado a Velha Gandrin para
trás fazia muito tempo. Tashgan poderia não desejar ninguém vivo para contar a sua história.
É verdade que ele parecera agradecido; mas Lythande tinha motivos para desconfiar da
gratidão dos reis.
Ao norte da Velha Gandrin, as montanhas eram mais íngremes; algumas delas ainda
cobertas de neve. Carregando apenas a mochila e o alaúde, Lythande viajava a passos
atléticos, cobrindo quilômetro após quilômetro.
Ao cabo de três dias de viagem, a estrada se bifurcou e Lythande parou para analisar
os caminhos à sua frente. Um descia até uma cidade, dominada por um alto castelo; o outro
subia ainda mais a montanha. Após pensar um pouco, Lythande resolveu continuar a subir.
Durante certo tempo, nada aconteceu. A luminosidade do sol provocara-lhe uma dor
de cabeça; os olhos da maga estreitavam-se para se proteger da claridade. Uns passos mais e a
dor de cabeça foi acrescida de uma incômoda náusea. Lythande ficou aborrecido, achando que
o pão que comera de manhã estava estragado. Mas, sob o capuz do manto de mago, sentiu o
prurido quente da Estrela Azul.
— Magia. Magia forte. . .
O alaúde. O feitiço. É claro. Lythande experimentou mais alguns passos em direção à
estrada da floresta. O enjôo aumentou, e a pressão da Estrela Azul doía muito.
— Está bem - disse Lythande em voz alta, e virando-se refez o caminho, pegando
depois a estrada que descia em direção à cidade e ao castelo. Imediatamente a dor de cabeça
diminuiu, o enjôo passou e até o ar parecia mais fresco. A Estrela Azul estava de novo
tranqüila na testa de Lythande. - É assim, então. Tashgan não exagerara o feitiço do alaúde.
Sacudindo os ombros ligeiramente, Lythande encaminhou-se para a cidade, sentindo um
entusiasmo e uma pressa bastante diferente da sua própria maneira de agir. Magia. Mas os
poderes mágicos não eram estranhos a Lythande.
O adepto quase podia sentir o prazer do alaúde ronronando como um grande felino.
Depois o feitiço silenciou e Lythande se viu de pé no pátio do castelo.
Um criado de libré fez uma mesura.
— Bem-vindo forasteiro. Em que posso servi-lo?
Assumindo mentalmente uma expressão de indiferença, Lythande resolveu testar a
verdade de Tashgan:
— Trago comigo o alaúde do príncipe Tashgan de Tschardain, que retornou ao seu
país. Venho na paz de um menestrel.
O criado inclinou-se ainda mais, como se possível.
— Em nome da minha senhora, dou-lhe as boas-vindas. Todos os menestréis são
recebidos aqui com prazer, e a minha senhora é amante da música. Acompanhe-me,
menestrel, descanse coma alguma coisa, e eu o conduzirei à minha senhora.
Então Tashgan não exagerara nas histórias. Lythande foi levado a um quarto de
hóspedes, trouxeram-lhe comidas e vinhos finos e lhe ofereceram um suntuoso banho numa
sala de mármore com água jorrando de torneiras douradas em forma de golfinhos. Os criados
lhe aprontaram as roupas de seda e veludo destinadas aos hóspedes.
Sozinho, sem ser observado (os Adeptos da Estrela Azul têm meios de saber isto),
Lythande serviu-se modestamente da finas iguarias e bebeu um pouco de vinho, mas
conservou o escuro manto de mago. Aguardando nos aposentos bem decorados, Lythande
tirou o elegante alaúde da sua capa, afinou-o com cuidado e esperou ser chamado.
Não demorou muito. Um par de respeitosos criados guiaram Lythande através de
corredores almofadados até um grande salão, onde uma senhora vistosa, ricamente vestida,
aguardava o músico. Ela lhe estendeu a mão esguia e perfumada:
— Os amigos e companheiros de Tashgan são meus amigos também, menestrel; seja
muitíssimo bem-vindo. Aproxime-se.
Ela bateu de leve na elegante poltrona ao seu lado como se - Lythande pensou -
estivesse convidando um dos cachorrinhos no salão a pular para o seu colo. Lythande
aproximou-se e fez uma mesura, mas um Adepto da Estrela Azul não se ajoelhava diante de
mortais.
— Senhora, meu alaúde e eu estamos aqui para servi-la.
— Aprecio tanto a música - murmurou ela, efusiva, afagando a mão de Lythande. -
Toque para mim, meu querido.
Indiferente, Lythande concluiu que os boatos não haviam exagerado os feitos de
Tashgan. Soltou o alaúde e cantou algumas baladas simples, julgando exatamente o nível do
gosto da mulher. Ela ouviu com um sorriso ligeiramente entediado, tamborilando com os
dedos, inquieta, e nem sempre, Lythande observou, no ritmo da música. Bem, era um abrigo
para a noite.
— Querido, Tashgan, costumava me dar aulas de alaúde e de cravo - sussurrou ela.
Suponho que você tenha vindo. . . substituí-lo, não? Quanta bondade a dele; fico tão
aborrecida aqui, e tão só, que passo todo o meu tempo entretida com a minha música. Mas
agora os criados do palácio nos acompanharão para o jantar, e o meu marido, o conde, é muito
ciumento. Por favor, toque para nós no saguão. E vai ficar mais alguns dias, não? Para me dar.
. . aulas particulares?
Lythande disse, é claro, que os talentos que os deuses lhe haviam dado estavam
inteiramente ao seu dispor.
Durante o jantar no saguão, o conde, um homem grande, expansivo e nada grosseiro,
de que Lythande gostou logo, mandou chamar todos os criados, nobres, familiares, e até
permitiu que copeiros e cozinheiros saíssem da cozinha para ouvir a musica do menestrel.
Lythande ficou satisfeito por tocar uma série de baladas e canções, contando as novas da
sucessão de Tashgan ao trono do reino de Tschardain e todas as novidades da feira na Velha
Gandrin.
A linda condessa ouviu a música e as notícias com a mesma expressão de tédio. Mas
quando o grupo se dissolveu, terminando a noitada, ela sussurrou para Lythande:
— Amanhã, o conde vai à caça. Talvez possamos nos encontrar para. . . as minhas
aulas, não?
Lythande notou que a mãos da condessa tremiam literalmente de ansiedade.
Eu devia saber, pensou Lythande. Com a fama de mulherengo de Tashgan, com tudo
que ele disse sobre os feitiços de amor de Ellifanwy. Agora, o que faço? Lythande olhou para
o alaúde desanimado, amaldiçoando Tashgan e a curiosidade que a levara a trocar os instru-
mentos.
Devo tentar desfazer o encanto, mesmo que isso signifique a destruição do alaúde?
Ainda não estava pronto para tal façanha. Era um alaúde muito bonito. E não importava o
quanto fosse lasciva a condessa, o quanto estivesse ansiosa por uma aventura ilícita, haveria,
sempre houvera, criados e testemunhas.
Quem jamais pensaria que eu teria que contar com um camareiro gordo e um par de
damas de companhia como meus protetores?
Toda a manhã seguinte, e as outras três que se seguiram, Lythande, sob o olhar dos
criados, colocava e tornava a colocar respeitosamente os dedos da condessa nas cordas do
alaúde, no teclado do cravo, murmurando novas cantigas, acordes e harmonias, dedilhados e
exercícios. Ao final da terceira manhã, a condessa mostrava-se amuada e lamurienta, e havia
parado de tentar tocar a mão de Lythande furtivamente sobre o teclado.
—Amanhã, senhora, devo partir - falou Lythande. No início do dia, a estranha
compulsão do alaúde encantado começara a se fazer sentir, e o mago sabia que a cada hora
que se passasse ela aumentaria.
—A cortesia nos ordena a receber bem o hóspede que chega e a favorecer a despedida
do que parte - falou a condessa e pela última vez procurou a mão esguia de Lythande.
— Talvez no próximo ano. . . quando nos conhecermos melhor, meu querido rapaz -
murmurou ela.
— Será um prazer conhecer melhor a minha senhora - mentiu Lythande, inclinando-se.
Um pensamento rápido atravessou a mente do mago.
— Você é. . . Beleza! Se for, Tashgan manda-lhe lembranças.
A condessa deu um sorriso afetado:
—Bem, ele me chamava de seu encantador gênio da música - disse ela, tímida - mas
quem sabe me chamasse de Beleza ao falar de mim para outras pessoas? Caro, caro rapaz. É
verdade que ele não vai voltar?
— Temo que não, madame. São muitos os seus compromissos em seu país agora.
A condessa suspirou.
— Que perda para as artes musicais! Eu lhe digo Lythande, ele foi o menestrel dos
menestréis; jamais conhecerei um igual - disse ela, colocando a mão sentimentalmente sobre o
coração.
— Provavelmente não - disse Lythande, inclinando-se para sair.
Lythande seguiu em direção ao norte, levado pela curiosidade e pelo feitiço do alaúde
errante. Era uma experiência nova, para o Adepto Peregrino, viajar sem saber aonde o levaria
o dia seguinte, e a maga a saboreava com uma curiosidade ilimitada. Lythande tentara
algumas fórmulas simples para desfazer encantamentos, até então sem sucesso; todos os
feitiços mais simples mostraram-se insuficientes e, como Tashgan, Lythande não cometera o
erro de subestimar os poderes mágicos de Ellifanwy, sobretudo quando esta operara no
âmbito de sua própria competência.
Ellifanwy podia não ter estado à altura de um dragão. Mas quanto a feitiços e
encantamentos, ela não tinha rival. Todas as noites Lythande tentava um novo feitiço, ao
término do qual o alaúde continuava encantado, e o mago ficava quebrando a cabeça, que já
vivera três gerações, para descobrir outros contra feitiços.
Era verão na região ao norte da Velha Gandrin, e a cada noite Lythande era recebido
de bom grado numa estalagem ou num castelo, casa senhorial ou mansão, onde as novidades e
as cantigas eram esperadas com ansiedade. Vez por outra, uma mãe de família melancólica ou
uma dona-de-casa bonita, a filha do estalajadeiro ou a consorte do mercador aproximavam-se
de Lythande com uma palavra ou duas de saudades de Tashgan; a evidente concentração de
Lythande na música, a voz calma e assexuada e o modo elegantemente correto deixavam-nas
suspirando, mas não ofendidas. Certa vez, numa granja afastada, onde Lythande havia
cantado umas baladas mais grosseiras, enquanto o fazendeiro roncava, a mulher subiu no seu
catre sussurrante, mas Lythande fingiu que estava dormindo e a mulher do fazendeiro saiu de
mansinho.
Mas quando a mulher voltou para o lado do marido, Lythande não conseguia dormir,
perturbado. Maldito Tashgan e a sua mania de conquistar as mulheres dos outros. Ele deve ter
espalhado a felicidade entre esposas negligenciadas e senhoras solitárias por tantos anos,
desde Tschardain até Northwander, que até o seu sucessor era bem-vindo, mimado e
seduzido; durante um tempo fora divertido. Mas Lythande era bastante experiente para saber
que não podia continuar brincando com fogo.
E era literalmente brincar com fogo. Lythande sabia alguma coisa desse elemento - os
Adeptos Peregrinos estavam acostumados com ele, e com o fogo dos dragões. Mas nenhum
dragão vivo rivalizava com a ira de uma mulher desprezada, e mais cedo ou mais tarde uma
delas se tornaria desagradável. A condessa acreditara simplesmente que Lythande era tímido,
e adiara suas expectativas para o ano seguinte. (Até então, achava Lythande, sem duvida um
dos feitiços se mostraria eficiente para desfazer o encantamento.) Livrara-se por um triz da
mulher do fazendeiro; e se ela tivesse inventado de enfiar a mão por dentro do manto
enquanto Lythande dormia?
Teria sido um desastre.
Pois, como todos os adeptos da Estrela Azul, Lythande possuía um segredo que nunca
poderia ser revelado; e disso dependiam os seus poderes mágicos. E o segredo de Lythande
era duplamente perigoso; ela era uma mulher, a única a jamais usar a Estrela Azul.
Disfarçada, ela havia penetrado no Templo secreto e no Lugar Que Não E, e somente
quando a Estrela Azul estava colocada entre as sobrancelhas é que fora descoberta.
Tarde demais, pois, para a morte, ela já estava consagrada até a Batalha Final da Lei
contra o Caos, no fim do mundo. Tarde demais para ser afastada da Ordem. Mas não tão tarde
para o castigo.
Seja então o que você escolheu parecer, esta fora a condenação. Até o fim do mundo,
no dia em que for proclamada mulher diante de qualquer homem exceto eu mesmo... assim
falara o ancião Mestre da Estrela... nesse dia perderá os seus poderes e poderá ser morta.
Viajando para o norte, segundo a exigência do alaúde, Lythande sentou-se à beira de
uma colina, o instrumento despojado da sua capa repousando ao seu lado. Se por um tempo
fora divertido, já o deixara de ser. Além do mais, se não se livrasse do feitiço de Yule,
acabaria hospedando-se no próprio castelo de Tashgan - e isto ela não desejava.
Era hora de soluções mais enérgicas. No início fora um tanto interessante tentar
feitiços mais simples, desde "Desacorrentado e livre esteja, desapareçam todas as magias,
exceto as que eu mesma usar" - a espécie de coisa que a mulher de um fazendeiro falaria
diante da batedeira de manteiga se desconfiasse que alguma vendedora de ervas ou feiticeira
das vizinhanças tivesse azedado o seu leite - até níveis mais complexos de antigos sortilégios,
como "Asmigo, Asmago. . .", que só podem ser pronunciados em noites de lua nova e diante
de três ratos cinzentos.
Nenhum deles funcionou. Era evidente que, sabendo do fracasso de Ellifanwy com o
seu último dragão, e do seu sucesso nos sortilégios de amor (para Lythande, o último refúgio
da magia incompetente), havia subestimado seriamente o feitiço da outra.

Portanto, era hora de deixar de lado a sabedoria mais ingênua e partir para as magias
mais fortes para desfazer encantamentos que ela conhecia. Estas não eram a especialidade de
Lythande - raramente tinha motivos para fazer uso delas. Certa vez, porém, ficara presa inad-
vertidamente a uma espada encantada do santuário de Larith e, não havendo meio de livrar-se
dela, fora forçada a viajar vários dias para devolvê-la ao seu lugar de origem; depois disso,
Lythande fizera um estudo específico de algumas magias potentes desse tipo, para que a sua
curiosidade, ou desejo de experiências incomuns, não a colocasse em apuros novamente. Esta
ela conservava de reserva; sabia que não falhava nunca.
Primeiro tirou da cintura as adagas gêmeas que trazia. Estavam unidas a ela por um
encantamento realizado no Templo da Estrela Azul, para que jamais pudessem ser roubadas
ou tocadas descuidada-mente por mãos profanas; a da direita era para as estradas solitárias em
terras perigosas quer enfrentando feras selvagens quer protegendo-se de malfeitores; a da
esquerda atuava diante de ameaças menos materiais, fantasmas, espectros, lobisomens e
vampiros. Ela não desejava, por um descuido, desfazer este encantamento. Afastou-as de si o
bastante para não serem atingidas, ou pelo menos pensou que elas estariam fora de alcance.
Junto com elas deixou a sua mochila, e voltou para perto do alaúde, começando os
movimentos circulares e as invocações iniciais. Finalmente chegou o momento em que
deveria pronunciar as palavras do poder - só ao meio-dia ou à meia-noite em ponto - e que
terminavam com:
"Uthriel, Mastrakal, Ithragal, Ruvahiel, anjos e arcanjos dos Infernos, desfaça-se o
encanto e libertem-se tudo que unido estiver, e que seja como ordenado foi no princípio do
mundo; assim o foi, assim o é, assim o será, e nada mais!"
Relâmpagos azulados dardejavam num céu vazio; a Estrela Azul na testa de Lythande
cintilava em faíscas geladas que chegavam ao limite da dor. Lythande - podia ver os riscos
luminosos envolvendo o alaúde, pálido diante da luminosidade do sol a pino. Uma a uma, as
cordas desenroscaram-se das cravelhas, escorregando para o chão. O cordão amarrado à
túnica de Lythande lentamente desfez o nó e caiu. Os laços da bota, como serpentes gêmeas,
rastejaram pelos orifícios em ordem inversa, contorcendo-se como seres vivos até o chão.
O nó complicado do cinto desfez-se e ele escorregou cintura abaixo.
Em seguida, vagarosamente, as linhas que costuravam a sua túnica nos flancos e nos
ombros soltaram-se, ponto por ponto, e a vestimenta, dois pedaços de tecido, caiu ao chão,
mas o processo não parou por aí; o galão bordado que enfeitava as bordas da túnica
desmanchou-se fio por fio, desenrolando-se até sobrarem apenas alguns pedaços de linha
sobre a grama. As costuras laterais dos calções que vestia foram se desfazendo aos poucos; e
finalmente os pontos unindo o couro das botas escorregaram e elas caíram aos pedaços no
chão, enquanto Lythande continuava de pé sobre as solas. Apenas o manto, tecido sem
costuras e montado através de um encantamento, conservava a sua forma original,embora o
broche se soltasse, envergando o alfinete de metal, que se desprendeu do fecho, tilintando nas
pedras.
Em estado lastimável, Lythande reuniu o que restou das suas roupas e das botas. Estas
poderiam ser recosturadas na aldeia próxima que se orgulhasse de possuir uma oficina de
sapateiro, e havia roupas de reserva na mochila que ela felizmente resolvera não deixar ali
perto. Quanto ao resto, não seria a primeira vez que um Adepto Peregrino andava descalço, e
valia à pena a destruição de tudo aquilo para se ver livre daquele maldito, desagradável e
fantástico encantamento lançado sobre o alaúde.
Lá estava ele, inofensivo e mudo diante da maga menestrel: um alaúde, era a
esperança de Lythande, como qualquer outro, sem magias a não ser a sua própria música.
Lythande achou outra túnica e calções dentro da mochila, afivelou novamente as adagas
gêmeas (“surpreendendo-se de que houvesse fórmulas de encantamento que pudessem
desfazer o nó mágico que seus dedos, por hábito, haviam dado no seu cinto”) e sentou-se para
repor as cordas no alaúde.
Em seguida, assobiando, dirigiu-se rumo ao sul.
No princípio, Lythande pensou que a dor violenta que sentia na testa fosse provocada
pela forte luminosidade do sol do meio-dia e ajustou melhor o largo capuz do manto de forma
a fazer mais sombra. Depois, ocorreu-lhe que talvez a intensidade da magia a tivesse cansado;
sentou-se então numa pedra lisa à beira do caminho e comeu as frutas secas e o pão que
guardara para a viagem, olhando ao redor para se certificar de que não estava sendo
observada, a não ser por um ou outro passarinho curioso.
Alimentou os animaizinhos com os farelos que sobraram e colocou às costas a mochila
e o alaúde. Só depois de já ter caminhado quase um quilômetro ou mais é que percebeu que o
sol já não lhe ofuscava os olhos e que estava novamente andando em direção norte.
Bem, esta era uma região desconhecida; poderia muito bem ter errado o caminho.
Parou, transferiu de ombro a sua carga e voltou por onde viera.
Uma hora mais tarde, viu que estava viajando de novo para o norte, e quando
procurava orientar-se em direção à Velha Gandrin e para as regiões do sul, o enjôo e a dor
eram insuportáveis.
Maldita bruxa de meia-tigela que me deixou assim enfeitiçada!
Ironicamente, Lythande refletiu que a praga era com toda certeza redundante. Virando-
se para o norte e sentindo com alívio diminuir a dor provocada pelo encantamento, Lythande
se conformou. Sempre desejara conhecer a cidade de Northwander: lá existia um colégio de
bruxos que tinha fama de conservar os registros de todas as fórmulas mágicas já utilizadas em
todo o mundo. Agora, pelo menos, Lythande tinha o melhor dos motivos para ir procurá-los.
Mas seus passos retardavam-se na estrada, como se melindrados.
Não havia sinal de cidade, aldeia ou castelo. Até numa pequena aldeia ela poderia
mandar costurar suas botas - precisava inventar uma boa história para explicar como elas
tinham ficado assim - e, numa cidade maior, talvez achasse um comerciante de velas que lhe
vendesse uma fórmula mágica para desfazer feitiços. Mas era pouco provável que achasse
uma que funcionasse por estes lados de Northwander e no colégio de bruxos, se a que ela
mesma usara, tão forte, não dera certo.
Ela havia descido a montanha e atravessava uma região de bosques, úmida das chuvas
da primavera, cujo solo ia ficando cada vez mais encharcado; à medida que ela caminhava,
suas botas de reserva chapinhavam na lama e deixavam seus pés molhados. Beirando a trilha
coberta de humo, havia árvores ensopadas de água e raízes retorcidas cheias de musgo.
Não posso acreditar que o alaúde pretenda me levar para este charco sombrio,
pensou Lythande, mas quando tentou mudar de direção, o enjôo e a dor voltaram. Realmente,
o alaúde estava querendo que ela entrasse no atoleiro, cada vez mais, até ser impossível
distinguir a trilha encharcada e o lodaçal que a cercava.
Para onde esta maldita coisa está me levando? Não havia sinal de moradia humana
em parte alguma, nem de habitantes, exceto os sapos que coaxavam desafinados num tom
melancólico. Ela teria que jantar esta noite com os sapos e crocodilos que moravam nesse
lugar horroroso? Para tornar as coisas ainda piores, começou a chuviscar - embora já estivesse
tudo tão molhado que pouca diferença fez no solo encharcado - e em seguida a chuva caiu
pesada.
O manto de mago era impermeável, mas os pés de Lythande chapinhavam na lama, as
pernas cobertas de barro e água até os joelhos; o alaúde continuava a levá-la para dentro do
pântano. Já estava escuro; mesmo a vista aguçada de um mago não conseguia mais discernir o
caminho, e ela caiu ao comprido no chão, ensopando as roupas que ainda estavam secas sob o
manto. Ela parou de andar, pretendendo primeiro pronunciar umas palavras mágicas para ter
luz e depois achar alguma espécie de abrigo, mesmo que fosse apenas um arbusto seco, para
esperar o sol raiar e, quem sabe, um tempo mais seco.
Não posso acreditar, irritada, ela pensava, que o alaúde, no seu perfeito juízo, tenha
me guiado para este pântano intransponível! Que espécie de encantamento é este?
Ela estava imóvel, tentando lembrar-se da fórmula mais eficiente, desejando ter
acesso, como Eirthe, a um bondoso Elemental do fogo que lhe proporcionasse não apenas a
luz, mas também o calor, quando algo brilhou em meio à escuridão lamacenta, piscando mais
forte. A fogueira de um caçador? A cabana de um criador de cogumelos ou de um
comerciante de peles de rãs ou de qualquer outro artigo que pudesse existir neste deserto
lamacento infernal?
Talvez ela pudesse suplicar que lhe dessem abrigo por uma noite. Se esse alaúde
diabólico permitisse. A idéia era sinistra. Mas quando se dirigiu para o ponto luminoso, ouviu
um som levíssimo que vinha do alaúde. Satisfação? Prazer? Este era, então, um dos pontos do
roteiro de Tashgan? Ela não gabava o gosto de Ellifanwy, se a velha feiticeira tivesse mesmo
designado esta região como parte das andanças do alaúde.
Chapinhou através do lamaçal tão rápido quanto lhe permitia o solo encharcado sob os
seus pés, e depois de algum tempo chegou ao que parecia uma cabana, com luz escapando
pela janela. Lá dentro, o fogo da lareira era quase tão forte como o de um Elemental, e chegou
a doer nos olhos de Lythande; mas quando ela os cobriu e tornou a olhar novamente, a luz
vinha de um fogo comum, numa lareira igual às outras, e iluminava uma velhinha vestida de
verde-escuro, à moda de algumas gerações atrás, com uma touca de linho escondendo os
cabelos e andando de um lado para o outro.
Lythande ergueu a mão para bater na porta, mas esta se abriu devagar, e uma voz
delicada e suave chamou:
— Entre, querido; eu estava esperando.
A estrela na testa de Lythande formigava num calor azulado. Magia pelas vizinhanças,
portanto. E a velhinha era uma bruxa ou uma feiticeira, o que explicava o porquê de morar
nesta solidão terrível. Eram muitas as mulheres com poderes mágicos que não agradavam e
nem eram aceitas pelos homens. Lythande, no seu disfarce masculino, estava protegida, mas
vira isto acontecer com bastante freqüência nos seus longos anos de vida.
Ela entrou, enxugando os olhos. Onde foi parar a velhinha? Diante dela estava uma
bela mulher, alta e imponente, num vestido de brocado e cetim verde, com um diadema de
pedras preciosas sobre os cabelos encaracolados escuros e sedosos. Os olhos fitos, surpresos e
incrédulos, no alaúde e em Lythande. A voz profunda soava quase como o rosnar abafado de
um animal.
— O alaúde de Tashgan! Mas onde está Tashgan? Como encontrou o seu instrumento?
— Senhora, é uma longa história - falou Lythande, sentindo o queimar da Estrela Azul
que lhe dizia estar rodeada por uma magia estranha - e passei quase a metade da noite
vagando por este maldito charco; estou ensopado até a alma. Eu lhe imploro, permita que me
aqueça com o seu fogo, e lhe contarei tudo; há tempo para se contarem muitas histórias
compridas antes da Batalha Final entre a Lei e o Caos.
— E por que amaldiçoa o lar que escolhi, este esplêndido pântano? - falou a dama,
franzindo as sobrancelhas com um ar severo.
Lythande respirou fundo.
—Só que nesta. . . nesta abençoada imensidão de Iodos e charcos e sapos, eu fiquei
encharcado, coberto de lama e perdido. . . falou ela, e a dama fez um gesto convidando-a a se
aproximar do fogo.
— Em nome do alaúde de Tashgan, seja bem-vindo, mas eu o previno: se lhe fez mal,
matou-o ou lhe tomou à força este instrumento, forasteiro, esta é a sua última hora; aproveite,
portanto.
Lythande aproximou-se, despiu o manto e o colocou sobre as lajes diante da lareira
para secar a água e a lama depositada na superfície; tirou as botas ensopadas e as meias, a
túnica e as calças, e ficou de pé só com a camisa de linho e ceroulas, secando-se ao calor do
fogo. Não estava muito certa quanto aos hábitos desta região tão perto de Northwander, mas
supunha que um homem como ela parecia ser não ficaria totalmente nu, por uma questão de
decoro, na frente de uma mulher estranha, e isto protegia o seu disfarce.
Lythande podia - rapidamente, se fosse preciso - lançar sobre si mesma o encanto de
um homem nu; mas ela detestava fazer isto, e a ilusão provocada era perigosa, pois não
duraria muito, ou mesmo nada, suspeitava ela, diante destes poderes mágicos estranhos.
A dama, enquanto isso se ocupava diante da lareira - observando-a com o canto dos
olhos como percebeu Lythande, mais de acordo com a velhinha que parecera ser antes.
Quando a túnica de linho acabou de secar, ela pendurou as outras roupas num estendedor,
tirou com uma concha a sopa de um caldeirão, cortou um pedaço de pão duro e colocou tudo
sobre um banco em frente ao fogo.
— Por favor, aceite compartilhar do meu humilde jantar não está à altura de um
grande mago como você, mas é oferecido de coração.
Os votos de um Adepto da Estrela Azul proibiam Lythande de ser vista por um homem
comendo ou bebendo; mas as mulheres não participavam dessa proibição e, fosse esta a
velhinha bruxa que vira antes ou uma linda senhora disfarçada de bruxa para se proteger dos
ladrões e mendigos que se aventurassem pelos pântanos, pelo menos era uma mulher. Assim,
Lythande comeu e bebeu, e estava delicioso; o pão tinha a mesma textura e perfume que
experimentara na sua terra natal de que já quase se esquecera.
— Meus cumprimentos à sua cozinheira, senhora; esta sopa parece a que a minha
velha ama, numa terra distante, fazia para mim quando eu era criança.
E, falando, ela pensava: será algum feitiço colocado na comida?
A senhora sorriu e veio sentar-se no banco ao lado de Lythande. Tinha nos braços o
alaúde de Tashgan, e os dedos passeavam pelas cordas carinhosos, tirando pequenos sons
delicados.
— Você vê em mim ao mesmo tempo cozinheira e anfitriã, serva e senhora; ninguém
mais vive aqui, a não ser eu. Agora diga-me, forasteiro da Estrela Azul, como encontrou o
alaúde de Tashgan? Pois se o tirou à força, esteja certo de que saberei; não há mentira que
resista à minha presença.
— Foi um presente de Tashgan - respondeu Lythande - e pelo que sei, ele está bem, e
senhor de Tschardain; seus irmãos morreram e ele voltou para casa. Mas antes teve que se
libertar do feitiço do alaúde, que tinha outras idéias a respeito de como ele deveria passar o
seu tempo. E esta é toda a história, senhora.
Ela torceu o nariz, com um leve desdém:
— E por isso, para ser um pequeno senhor de um palácio insignificante, ele desistiu do
alaúde? Por sua própria vontade, você diz, sem ser forçado? Um menestrel desistiu de um
alaúde encantado sob medida? Forasteiro, jamais pensei que Tashgan fosse um tolo!

A história é exatamente como lhe contei - disse Lythande. E nem o alaúde é esta
bênção que a senhora está pensando, pois no mundo lá fora, além do. . . dos afortunados
confins deste pântano, os menestréis são recebidos com menos honras do que os senhores ou
mesmo os magos. E a liberdade para vagar por onde se deseja talvez seja preferível a ficar à
mercê de um alaúde errante.
— Há um tom de amargura na sua voz, menestrel?
— Sim - falou Lythande com sinceridade. - Passei um verão apenas sob as ordens
desse alaúde, e de boa vontade o entregaria a quem estivesse disposto a assumir a maldição!
Tashgan viveu assim doze anos.
— Maldição, você diz?
A senhora levantou-se do banco; os olhos faiscavam como brasas olhando para
Lythande, labaredas que ondulavam dissolvendo-se ao seu redor num chiado incandescente;
um fulgor intenso tremeluzia como as asas de um espírito Elemental do fogo.
— Maldição, você diz, quando fez Tashgan vir até a minha casa ano após ano?
Lythande ficou bem quieta. O calor da Estrela Azul doía-lhe na testa. Não sei quem,
ou o que, possa ser esta senhora, pensou, mas não é uma simples bruxa.
Ela havia retirado o cinto e as duas adagas; estava desprotegida diante da ira e do fogo,
e não podia alcançar a arma que funcionava' contra as criaturas mágicas. Nem, pensou,
haviam chegado a este ponto.
— Minha senhora, falo por mim mesmo; Tashgan não mencionou uma maldição, e
sim um encantamento Sou um Adepto Peregrino e só posso viver se for livre para ir aonde
quero. E mesmo Tashgan não poderia demorar-se sob o seu encantador teto e aceitar a sua
hospitalidade como desejaria o seu coração; e não duvido nada que isto sim ele considerasse
uma maldição.
Lentamente o fogo foi diminuindo, as labaredas azuladas se apagando, e a mulher
voltou ao seu tamanho natural e olhou para Lythande com um sorriso ainda arrogante, mas
com uma certa expressão de prazer.
Em nome de todos os provavelmente inexistentes Deuses da Velha Gandrin, o que é
esta mulher? Pois mulher ela é, e, como todas, vaidosa e ávida de elogios, pensou Lythande
com desdém.
— Sente-se, forasteiro, e diga-me como se chama.
— Sou Lythande, um Adepto Peregrino da Estrela Azul, e Tashgan me deu este alaúde
para que pudesse retornar à sua casa e ser o Senhor de Tschardain. Não sou culpado de sua
loucura, de ter voluntariamente renunciado à oportunidade de contemplar de novo a sua
imensa graça.
Mesmo enquanto falava, Lythande tinha dúvidas. Poderia uma mulher realmente
engolir tão incrível bajulação? Mas a mulher - ou seria uma poderosa feiticeira? - estava toda
satisfeita.
— Bem, o que ele perdeu foi por escolha sua, e me trouxe você, meu querido. E tão
hábil no alaúde como Tashgan?
Isto não seria muito difícil, pensou Lythande, mas disse modestamente que neste
assunto só ela é que poderia julgar.
— Deseja que eu toque para a senhora?
— Por favor. Mas devo lhe trazer o vinho? Tashgan, meu querido, gostava muito dos
meus vinhos.
— Não, vinho não - falou Lythande ela queria estar com seus sentidos bem atentos -
Jantei muito bem, e não estragaria a lembrança que me ficou do seu paladar. Prefiro gozar da
sua presença com a mente desanuviada dos efeitos do vinho - acrescentou, e a mulher ficou
radiante.
— Toque, meu querido.
Lythande dedilhou o alaúde e cantou uma cantiga de amor das longínquas montanhas
da sua terra natal.

Uma única maçã pendura-se


No alto dos ramos;
Os homens não a esqueceram, Só não a alcançaram;
Como o fruto, você não foi esquecida.
Está apenas muito alta e distante,
E anseio provar desta doçura proibida.

Lythande ergueu finalmente os olhos para a mulher sentada perto da lareira. Fizera
uma besteira; devia ter cantado uma balada burlesca ou uma história de heróis e cavaleiros.
Esta não era a primeira vez que via uma mulher ansiosa por mais do que um simples flerte,
pensando que Lythande era um jovem atraente. Era esta uma das qualidades do feitiço do
alaúde - inspirar o desejo nas mulheres por quem o tocava? Julgando pelo que acontecera
nesta jornada, não ficaria nem um pouco surpresa.
— Está ficando tarde - falou a dama com voz suave. - E hora de termos uma noite de
amor como as que eu muitas vezes dividi com Tashgan, meu rapaz.
E ela se aproximou para tocar Lythande ligeiramente no ombro;
Lythande lembrou-se da mulher do fazendeiro. Uma mulher rejeitada podia se tornar
perigosa.
— Eu não pretenderia tanto - resmungou Lythande. - Não sou um lorde, apenas um
humilde menestrel.
— Nos meus domínios - disse a senhora - os menestréis são honrados acima de
príncipes ou lordes.
Era muito absurdo, pensou Lythande. Ela havia amado mulheres; mas se esta fora
amante de Tashgan, não estaria querendo como parceira uma outra mulher. Além disso,
Lythande não estava contente com a idéia de ficar com os restos de Tashgan.
O geas a que estava submetida era positivo: não podia se revelar a homem algum. Não
estou certa de que esta harpia seja uma mulher, pensou Lythande, mas tenho certeza de que
não é um homem.
— Está zombando de mim, menestrel? - perguntou ela. - Julga-se bom demais para os
meus favores?
Novamente parecia que o fogo escorria pelos seus cabelos e pelas asas abertas das suas
mangas. E, naquele momento, Lythande reconheceu o que estava vendo.
— Alnath - sussurrou ela, estendendo a mão. Mas não era um simples espírito
Elemental do fogo; este era um dragão em toda a sua força, e ela lembrou-se do destino de
Ellifanwy.
— Senhora - falou ela - muito me honra, mas não sou Tashgan, e nem mesmo um
homem. Não passo de uma humilde mulher menestrel.
Ela inclinou a cabeça diante das chamas que de repente a rodearam. Dragões
costumavam ter um temperamento instável; mas este preferiu achar graça; as labaredas
agitavam-se ao redor de Lythande com o acesso de riso, mas ela sabia que, se demonstrasse o
mais leve medo, estaria perdida.
Procurando se lembrar do Elemental, Lythande conseguiu ver mentalmente o nítido
quadro de Alnath retorcida no seu pulso, as línguas de fogo subindo graciosamente pelo seu
braço. Tornou a sentir aquela sensação de parentesco que experimentara com o pequeno
Elemental, e isto lhe permitiu erguer os olhos e sorrir para o dragão na sua frente.
As gargalhadas foram diminuindo, e novamente era uma mulher e não um dragão que
estava diante de Lythande: a bruxinha do caldeirão.
— E Tashgan sabia do seu sexo - ou pretendia que você o substituísse em tudo?
Lythande falou desanimada:
— O último caso, julgando pelas instruções que me deu.E a mulher ria novamente.
— Você deve ter feito uma viagem muito interessante até aqui, minha querida!
A mente de Lythande começou a trabalhar furiosamente, tentando lembrar com
exatidão as instruções que Tashgan lhe dera. Era evidente que ele fizera uma brincadeira, mas
Lythande tinha certeza de que ele não conhecia o seu segredo. Não, a brincadeira fora. . .
"Beleza!" A mulher a observava atenta.
— Por acaso, Senhora, ele costumava chamá-la de "Beleza"?
— Pobre rapaz! Ele lembrou! - A mulher estava realmente vaidosa.
Certamente que lembrou, pensou Lythande carrancuda. E infantil era uma definição
muito suave para o seu senso de humor! Será que me julgava tão vulnerável brincando com
fogo como Ellifanwy? Teria sido divertido para Tashgan enviar-me para o mesmo destino da
outra. Em voz alta, falou:
— Ele me pediu que lhe mandasse lembranças.
A sua anfitriã parecia satisfeita, mas Lythande resolveu que um pouquinho mais de
bajulação talvez ajudasse.
— De todos os sacrifícios que fez pelo seu trono, você foi o que ele mais lamentou. O
dever o chamava a Tschardain. — Ela hesitou um instante, lembrando-se do olhar da mulher-
dragão ao ver o alaúde. – Se não fizer objeções, acho que tudo isto daria uma esplêndida
balada romântica.
A esta hora, o dragão estava virtualmente ronronando de satisfação.
— Nada me agradaria mais, minha querida, do que servir de inspiração à sua arte.
— E - continuou Lythande - eu me sentiria honrada. . . e sei que daria o maior prazer a
Tashgan se aceitasse este alaúde como um humilde penhor da nossa devoção.
As labaredas quase alcançaram o teto; mas o rosto da mulher-dragão estava que era só
sorrisos e ela gentilmente pegou o alaúde e acariciou suas cordas.
Na manhã seguinte, bem cedo, Lythande despediu-se cordialmente de sua anfitriã. Ao
tomar com cuidado o caminho através do pântano, ela ouviu lá atrás o som do alaúde. A
mulher-dragão tinha mais talento musical do que Tashgan, isto era certo, mas a balada que se
configurou na mente de Lythande não falava de um amor corajosamente sacrificado ao apelo
do dever, mas a de um dragão menestrel errante e de um hóspede inesperado na festa de Natal
em Tschardain. Tomando nota mentalmente para passar esta época do ano em Northwander -
se não ainda mais ao norte - Lythande deixou o alagadiço e, rindo, seguiu o seu caminho.
INTRODUÇÃO A
EM BUSCA DE SATÃ

Uma das normas da antologia original de O Mundos dos Ladrões era a liberdade de
um personagem escrever sobre um outro criado por um autor diferente, embora com certas
restrições, tais como a de não o matar nem alterar a sua personalidade,
Quando Vonda, a quem tenho em alta estima, enviou-me uma cópia desta história,
pareceu-me que ela havia essencialmente "modificado" Lythande, pois no seu original
Lythande concordava em voltar para casa com Westerly e o seu bando, desistindo
basicamente da sua vida errante. Isto me soou quase que como uma solução boa demais para
o futuro de Lythande, mas eu não conseguia imaginá-la agindo com tanto bom-senso. Falei
das minhas dúvidas com Vonda e ela arnavelmente reescreveu o final de forma a deixar claro
que Lythande aceitava esta solução como temporária para as suas dificuldades no mundo em
que vivia.
Mas quando ela sair novamente vagando pelas estradas, sem dúvida haverá outras
aventuras em mundos diferentes... pois a essência da magia de Lythande é que ela atravessa
mundos diversos à vontade; ela pode escolher onde quer estar, e quando...
EM BUSCA DE SATÃ
VONDA N. MCINTYRE

Os quatro viajantes deixaram as montanhas, ao final do dia, cansados, com frio e


fome, e entraram em Santuário.
Os habitantes da cidade os observavam e riam, mas riam com os rostos escondidos por
trás das mangas ou depois de o pequeno grupo já ter passado. Todos eles andavam armados.
Entretanto não tinham aparência agressiva. Olhavam ao redor intrigados, apontando para as
coisas, para todo mundo, como se nenhum deles jamais tivesse visto uma cidade antes. Como,
realmente, não tinham.
Sem consciência do espetáculo que estavam causando, eles atravessaram a praça do
mercado em direção à cidade propriamente dita. Estava escurecendo e os agricultores tinham
quase acabado de dobrar seus toldos e separar o que valia a pena guardar do que restara dos
seus produtos. Folhas murchas de couve e frutas podres cobriam o chão da rua grosseiramente
revestida de pedras, e fragmentos de matéria irreconhecível boiavam descendo pela abertura
do esgoto central.
Ao lado de Wess, Chan trocou de ombro a mochila pesada.
— Vamos parar e comprar alguma coisa para comer - falou ele - antes que todo mundo
vá para casa.
Wess ajustou a sua mochila nos ombros e não parou:
— Aqui não - disse ela. - Estou cansada de pão ázimo bolorento e vegetais crus. Esta
noite eu quero uma refeição quente.
Ela continuou andando. Sabia como Chan estava se sentindo. Olhou para trás, para
Aerie, que caminhava envolta na sua longa capa escura. Estava vergada sob o peso da sua
mochila. Era mais alta do que Wess, e da mesma altura que Chan, porém muito magra. A
preocupação e a jornada que empreendiam deixaram os seus olhos fundos. Wess não estava
acostumada a vê-la assim. De hábito, era mais descontraída.
— A nossa incansável Wess - falou Chan.
— Também estou cansada! - retrucou Wess. - Está querendo acampar nas ruas de
novo?
— Não - falou ele. Atrás dele, Quartz deu um risinho.
Na primeira cidade que conheceram - parecia fazer tantos anos, mas fora apenas dois
meses antes - eles haviam tentado levantar suas tendas no que pensavam ser um terreno
baldio. Era uma praça pública. Tivesse a cidade uma prisão, eles teriam sido atirados lá
dentro. Mas foram levados até os limites da cidade e convidados a não voltar mais. Outro
viajante explicara-lhes para que serviam as estalagens - e as prisões - e agora até podiam rir,
com um certo constrangimento, do episódio.
Mas as cidades menores por onde haviam passado não chegavam aos pés de Santuário
em tamanho, barulho e multidões. Wess nunca imaginara tantas pessoas, construções tão altas
e um cheiro tão ruim. Ela esperava que fosse melhor quando saíssem da praça. Ao passar pela
barraca de peixes, ela prendeu a respiração e andou mais depressa. Era o final do dia, é
verdade, mas de um dia fresco de final de outono. Wess procurou não imaginar como seria no
alto verão.
— Vamos parar na primeira estalagem que encontrarmos – disse Quartz.
— Tudo bem - respondeu Wess.
Quando alcançaram o final da rua, a escuridão era completa e o mercado estava
deserto. Wess estranhou que todos desaparecessem tão rápido, mas sem dúvida estavam
cansados e queriam ir para casa, junto de um fogo e de um bom jantar. Sentiu de repente uma
pontada de saudade e desânimo: procuravam havia tanto tempo, e com tão poucas
possibilidades de êxito.
As construções cerraram-se ao redor deles num ponto em que a rua se tornava de
súbito mais estreita. Wess parou: estavam diante de três caminhos, e outro se ramificava
apenas vinte passos à frente.
— Para onde agora, meus amigos?
— Devemos perguntar a alguém - falou Aerie, com uma voz desanimada de cansaço.
—Se conseguirmos achar alguém - disse Chan, duvidando. Aerie dirigiu-se para um
canto escuro:
— Cidadão -falou ela - pode nos guiar à estalagem mais próxima?
Os outros aproximaram-se para espiar o nicho sombrio. Realmente, havia uma forma
toda encoberta e acocorada ali dentro. Ela se ergueu. Wess percebeu o brilho enlouquecido
dos seus olhos, e nada mais.
— Uma estalagem?
— A mais próxima, por favor. Fizemos uma longa caminhada. A forma riu baixinho:
— Não vai encontrar nenhuma estalagem por estes lados da cidade, forasteiro. Mas a
taverna ali da esquina tem uns quartos no andar de cima. Talvez sirvam para vocês.
— Obrigada.
Aerie afastou-se, a brisa ligeira agitando seus cabelos curtos escuros. Ela abrigou-se
melhor com a capa.
Caminharam na direção indicada pela forma, e não a viram torcer-se numa risada
silenciosa atrás deles.
Diante da taverna, Wess decifrou a estranha inscrição: O Unicórnio Vulgar. Uma
esquisita combinação, mesmo no sul, onde este era o estilo dos nomes das tavernas. Ela abriu
a porta. Estava tão escuro lá dentro como lá fora, e cheio de fumaça. O barulho silenciou
quando Wess e Chan entraram - depois ergueu-se novamente num burburinho surpreso
quando Aerie e Quartz os seguiram.
Wess e Chan não eram espantosamente diferentes do tipo comum dos montanheses do
sul: ele, um pouco mais claro; ela, mais morena. Wess poderia passar despercebida como uma
cidadã comum em qualquer cidade; a beleza de Chan costumava chamar a atenção. Mas a ele-
gância de Aerie, alta, de pele muito branca e cabelos escuros, despertava comentários. Wess
sorriu, imaginando Aerie abrindo a sua capa e se mostrando como realmente era.
E Quartz: ela teve que se abaixar para poder entrar. Depois se endireitou. Era mais alta
do que qualquer um naquela sala. A fumaça no teto fazia um halo ao redor dos seus cabelos.
Ela os havia cortado para a viagem, e eles emolduravam seu rosto em anéis vermelhos,
dourados e cor de areia. Os olhos cinza refletiam a luz do fogo como espelhos. Ignorando os
olhares, ela afastou dos ombros largos a capa de lã azul e deixou cair ao chão a mochila.
O forte cheiro de cerveja e carne assando fez a boca de Wess se encher de água. Ela se
dirigiu ao homem por detrás do balcão.
— Cidadão - falou ela, pronunciando com cuidado o idioma de Santuário, a língua
comercial de todo o continente - é você o proprietário? Meus amigos e eu precisamos de um
quarto por esta noite, e de jantar.
O seu pedido parecia-lhe bastante comum, mas o estalajadeiro olhou de lado para um
dos fregueses. Os dois riram.
— Um quarto, jovem cavalheiro?
Ele saiu de trás do balcão. Em lugar de responder a Wess, falou com Chan. Wess
sorriu consigo mesma. Como todos os amigos de Chan, ela estava acostumada a ver as
pessoas se apaixonarem por ele à primeira vista. Ela também o teria feito, pensou, se o tivesse
conhecido quando já adultos. Mas conheciam-se desde que nasceram e a amizade deles era
muito mais íntima e profunda do que uma paixão momentânea.
— Um quarto? - perguntou o estalajadeiro de novo. - Uma refeição para você e suas
damas? E só isso o que podemos fazer por vocês em nosso humilde estabelecimento? Querem
bailarinas? Malabaristas? Tocadores de harpa e oboés? É só pedir que terão!
O tom do homem, longe de sedutor, ou mesmo cordial, era irônico.
Chan olhou para Wess, franzindo levemente as sobrancelhas, quando todos ao redor
caíam na gargalhada. Wess sentiu-se aliviada por sua pele ser escura o bastante para esconder
o seu rosto vermelho de raiva. Chan estava rubro desde a gola da camisa de linho cru às raízes
dos cabelos louros. Wess percebeu que tinham sido insultados, mas não compreendia como
nem por que, portanto respondeu com cortesia.
— Não, cidadão, obrigada por sua hospitalidade. Precisamos de um quarto, se tiver, e
de comida.
— Não recusaríamos um banho - falou Quartz.
O estalajadeiro olhou para eles com uma expressão irritada e tornou a se dirigir a
Chan.
— O jovem cavalheiro permite que suas damas falem por ele? E algum costume
estrangeiro, ou você é aristocrata demais para dirigir a palavra a um simples taverneiro?
— Não estou compreendendo - disse Chan. - Wess falou em nome de todos nós.
Devemos falar em coro?
Surpreso, o homem controlou-se, mostrando-lhes numa mesura exagerada uma das
mesas.
Wess largou no chão a sua mochila, perto da parede atrás dela, e sentou-se com um
suspiro de alívio. Os outros a acompanharam. Aerie parecia não se agüentar nem mais um
instante de pé.
— Este aqui é um lugar simples - falou o taverneiro. - Cerveja ou vinho. Carne e pão.
Vocês podem pagar?
Ele se dirigia novamente a Chan. Agia como se Wess, Aerie e Quartz não estivessem
ali.
— Quanto é?
— Quatro refeições, cama. . . a refeição da manhã vocês terão que fazer em outro
lugar, eu não abro cedo. Uma moeda de prata. Adiantado.
— O banho incluído? - perguntou Quartz.
— Sim, sim, tudo bem.
— Nós podemos pagar - falou Quartz, cuja tarefa era controlar o que gastavam. Ela lhe
entregou a moeda de prata.
Ele continuou olhando para Chan, mas, depois de uma pausa constrangedora, deu de
ombros, pegou a moeda de Quartz e afastou-se. Quartz retirou a mão, e disfarçadamente, por
baixo da mesa, limpou-a na perna da calça de tecido grosseiro.
Chan olhou para Wess:
— Está entendendo alguma coisa desde que entramos pelos portões desta cidade?
— E curioso - falou ela. - Eles têm hábitos estranhos.
— Poderemos decifrá-los amanhã - falou Aerie.
Uma mulher jovem carregando uma bandeja parou perto da mesa deles. Vestia roupas
esquisitas, roupas de verão aos olhos deles, pois deixavam a descoberto os braços e os
ombros, e quase totalmente nus os seios. Está quente aqui dentro, pensou Wess. É bastante
inteligente da parte dela. Depois era só colocar uma capa quando voltasse para casa, e assim
não sentiria frio nem calor.
— Cerveja para o senhor? - perguntou a mulher para Chan. Ou vinho? E vinho para as
suas esposas?
— Cerveja, por favor - respondeu Chan. - E o que são "esposas"? Estudei a sua língua,
mas esta é uma palavra que não conheço.
— As senhoras não são suas esposas?
Wess apanhou uma caneca de cerveja de cima da bandeja, cansada e sedenta demais
para tentar entender o que a mulher estava falando. Deu um grande gole na bebida amarga.
Quartz estendeu o braço para pegar um frasco de vinho e dois copos e serviu um para ela e
outro para Aerie.
— Minhas companheiras são Westerly, Aerie e Quartz – falou Chan, indicando com
um movimento de cabeça cada uma delas. - Eu sou Chandler. E você é...?
— Eu sou apenas a criada que serve os fregueses - falou ela, parecendo assustada. -
Não deve se preocupar com o meu nome.
Ela agarrou uma jarra de cerveja, colocou-a sobre a mesa, derramando um pouco, e
fugiu.
Eles se entreolharam, mas o taverneiro se aproximava com as travessas de carne.
Estavam com muita fome para ficar imaginando o que teriam feito para assustar a moça.
Wess deu uma mordida no pão. Estava bem fresco, e representava uma agradável
mudança nas rações de viagem - carne-seca, pão sem fermento misturado às pressas e assado
sobre pedras nas brasas da fogueira do acampamento, frutas quando encontravam ou podiam
comprar. Ainda assim, Wess estava acostumada a coisa melhor.
— Tenho saudades do seu pão - disse para Quartz na sua língua.Quartz sorriu.
A carne estava quente e era fresca. Até Aerie comeu com algum apetite, embora
preferisse carne crua.
Enquanto comia, Wess parou um pouco para observar a taverna com mais atenção.
No balcão, um grupo explodiu de repente numa gargalhada grosseira.
— Você diz sempre a mesma besteira todas as vezes que aparece aqui em Santuário,
Bauchle - falou um deles, em voz bem alta, cheia de ironia. - Você tem um segredo, um plano
ou alguma coisa maravilhosa que vai fazer a sua fortuna. Por que não arranja um trabalho ho
nesto. . . como nós?
Isto provocou mais gargalhadas ainda, até mesmo do jovem grandalhão que era o alvo
das brincadeiras.
— Vocês vão ver desta vez - disse ele. - Agora eu tenho uma coisa que vai me levar
direitinho para a corte do imperador. Quando ouvirem os pregoeiros amanhã, vocês saberão.
Ele pediu mais vinho. Seus amigos beberam, contaram piadas, tudo à sua custa.
O Unicórnio estava mais cheio agora, com mais fumaça e barulho. Ocasionalmente
alguém olhava em direção a Wess e suas amigas, mas, além disso, ninguém os incomodou.
Uma brisa gelada diluiu o cheiro da cerveja, da carne queimando e dos corpos
imundos. De repente, fez-se um silêncio e Wess olhou rápido em volta para ver se havia
violentado mais algum costume desconhecido. Mas as atenções centralizavam-se na porta da
taverna. Uma figura coberta com um manto estava ali parada casualmente, mas não havia
nada de casual na sua aura de energia e serenidade.
Em toda a taverna, não havia nenhuma outra mesa com um lugar vazio.
— Sente-se conosco, irmã! - chamou Wess num impulso.
Duas passadas e um empurrão: a cadeira de Wess foi arrastada bruscamente pelo chão
e ela se viu encostada na parede com uma adaga no pescoço.
— Quem me chama de "irmã"?
O capuz escuro escorregou dos longos cabelos grisalhos. Uma Estrela Azul cintilava
na testa da mulher. Os seus traços elegantes tornaram-se terríveis e ameaçadores à sua luz.
Wess olhava dentro dos olhos da mulher alta e de porte gracioso. A veia jugular
pulsava ao contato da ponta da adaga. Se fizesse um movimento, ou se um de seus amigos se
mexesse, estaria morta.
— Não pretendi desrespeita-... — Ela quase falou "irmã" de novo. Mas não fora a
familiaridade da expressão que provocara tanta ofensa: fora a palavra em si. A mulher estava
viajando incógnita, e Wess revelara o seu disfarce. Não era um simples pedido de desculpas
que iria reparar o dano que causara.
Uma gota de suor escorregou pelo seu rosto. Chan, Aerie e Quartz estavam a postos
para se defenderem. Se Wess tornasse a errar, não seria a única a morrer antes que a luta
chegasse ao fim.
— O pouco conhecimento que tenho do seu idioma ofendeu-o, jovem cavalheiro -
falou Wess, esperando que o taverneiro tivesse usado uma forma civilizada de se dirigir às
pessoas, ou pelo menos um tom cortês. É mais certo insultar as pessoas com o tom das
palavras que pronunciamos do que com as próprias palavras. — Jovem cavalheiro - tornou ela
a dizer quando viu que a mulher não a matava – alguém zombou de mim quando traduziu
"frejôjan" como "irmã".
— Talvez - falou a mulher disfarçada. - O que quer dizer frejôjan
— É uma palavra de paz, uma oferta de amizade, um termo que usamos para receber
um hóspede, um outro filho de nossos pais.
— Ah. "Irmão" é a palavra que você quer a que se usa para os homens. Chamar-me de
"irmã", o termo para as mulheres, é um insulto.
— Um insulto! - falou Wess, sinceramente surpresa.Mas a faca afastou-se
do seu pescoço.
— Você é da tribo dos bárbaros - disse a mulher disfarçada, num tom cordial. - Não
posso me sentir insultada por um bárbaro.
— É esse o problema - falou Chan. - A tradução. Na nossa língua, a palavra para os
estrangeiros também é traduzida como "bárbaro".
Ele sorria um sorriso lindo. Wess segurou a mão dele por debaixo da mesa.
— Eu só pretendia oferecer-lhe um lugar para sentar, onde não há mais nenhum.
O estranho guardou a adaga e olhou diretamente nos olhos de Wess. Ela estremeceu,
imaginando passar a noite com Chan de um lado e o estrangeiro do outro.
Ou você poderia ficar no meio, se quisesse, pensou ela, sustentando o olhar.
O estranho riu. Wess não pôde dizer se este riso dirigia-se a ela mesma ou aos outros.
— Então eu me sentarei aqui, já que não há outro lugar. Meu nome é Lythande.
Eles se apresentaram e ofereceram a ela - Wess forçou-se a pensar em Lythande como
"ele" para não revelar o disfarce novamente - ofereceram a ele um copo de vinho.
— Eu não bebo - disse Lythande. - Mas para mostrar que também não desejo ofendê-
los, fumarei com vocês.
Ele enrolou uns pedaços de erva numa folha seca, acendeu inalando e passou adiante:
— Westerly, frejôjan.
Por delicadeza, Wess experimentou. Quando conseguiu parar de tossir, a garganta
estava irritada e a fragrância adocicada deixara-a tonta.
— E preciso treinar - disse Lythande sorrindo.
Chan e Quartz não se saíram melhor, mas Aerie aspirou profundamente, os olhos
fechados, e prendeu a respiração. Daí em diante, ela e Lythande fumaram juntos enquanto os
outros pediram mais cerveja e outro frasco de vinho
— Por que me convidou, entre todas essas pessoas, para me sentar aqui? — perguntou
Lythande.
— Porque. . . - Wess fez uma pausa para pensar numa forma de fazer a sua intuição
parecer razoável. - Você parece alguém que sabe o que está se passando. Alguém que pode
nos ajudar.
— Se informação é tudo de que você precisa, pode conseguir isso mais barato sem
recorrer a um feiticeiro.
— Você é um feiticeiro? - perguntou Wess.
Lythande olhou para ela com pena e desprezo:
— Pobre criança! O que o seu povo pretende enviando inocentes e crianças lá do
norte? - Ele tocou a estrela na sua testa. - O que pensa que isto significa?
— Terei que adivinhar, mas acho que significa que você é um mago.
— Excelente. Alguns anos de aprendizado assim e você talvez sobreviva, por algum
tempo, em Santuário. . . no Labirinto. . . no Unicórnio!
— Nós não temos anos para isto - sussurrou Aerie. - Talvez tenhamos desperdiçado o
tempo que realmente temos.
Quartz passou o braço sobre os ombros de Aerie, num gesto de consolo, abraçando-a
com carinho.
— Estou interessado em vocês - falou Lythande. - Digam-me qual a informação que
buscam. Talvez eu saiba se podem obtê-la por um custo menor. . . não mais barato, porém
menos difícil. . . através de Jubal, o Traficante de escravos ou de um vidente. . .
Vendo a expressão dos quatro, ele parou.
— Traficante de escravos!
— Ele recolhe informações também. Não precisam ter medo, ele não irá seqüestrá-los.
Começaram todos a falar ao mesmo tempo, depois se calaram, percebendo que assim
era inútil.
— Comecem do princípio.
— Estamos procurando alguém - falou Wess.
— Este não é o lugar adequado. Ninguém lhes dirá nada a respeito de freguês algum
desta casa.
— Mas ele é um amigo.
— É apenas a palavra de vocês.
— Satã não estaria aqui mesmo. - falou Wess. - Se ele estivesse livre para freqüentar
este lugar, estaria livre para voltar para casa. Teríamos ouvido alguma coisa sobre ele, ou ele
nos teria achado, ou. . .
— Teme que ele tenha sido capturado como prisioneiro. Um escravo, talvez.
—Deve ter sido. Ele estava caçando, sozinho. Ele gostava, o seu povo costuma fazer
isto.
— Precisamos de solidão às vezes - falou Aerie. Wess concordou.
— Não nos preocupamos até que ele não voltou para as festas do Equinócio. Aí
começamos a procurar. Encontramos o seu acampamento, e uma trilha fria. . .
— Esperávamos que fosse um seqüestro - falou Chan. - Mas ninguém exigiu o resgate.
A trilha era tão antiga. . . eles o levaram.
— Nós fomos atrás e ouvimos alguns boatos - disse Aerie. - Mas o caminho se
bifurcava e tivemos que escolher por onde ir.
Ela deu de ombros, mas não conseguiu manter a pose indiferente; virou o rosto,
desesperada:
— Não pude achar nenhum indício. . .
Aerie, com maior raio de ação, encontrava-se com eles todas as tardes em novos
acampamentos, ainda mais exaustos e desanimados depois de procurar o dia inteiro.
— Evidentemente, tomamos as decisões erradas - observou Quartz.
— Crianças - falou Lythande - crianças, frejôjans. . .

—Frejôjani- interrompeu Chan automaticamente, depois sacudiu a cabeça e estendeu


as mãos pedindo desculpas.
— O seu amigo é mais um escravo entre tantos outros. Vocês não o encontrariam
através de seus documentos, a não ser que descobrissem com que nome foram forjados. Seria
muita sorte que alguém o reconhecesse pela descrição, mesmo se vocês tivessem um modelo
para mostrar. Irmãs, irmão, talvez nem mesmo vocês o reconheçam, agora.
— Eu o reconheceria - falou Aerie.
— Nós todos o reconheceríamos, mesmo numa multidão formada pelo seu próprio
povo. Mas isso não faz diferença. Qualquer um o reconheceria se o tivesse visto. Mas
ninguém o viu, ou se o viram não querem nos dizer.
Wess olhou para Aerie.
— Sabe - disse Aerie - ele tem asas.
— Asas! - exclamou Lythande.
— Povos alados são raros, creio eu, aqui no sul.
— Povos alados são mitos, no sul. Asas? Sem dúvida, você quer dizer. . .
Aerie começou a sacudir a capa dos ombros, mas Quartz abraçou-a novamente. Wess
entrou rápido na conversa:
— Os ossos são mais longos - falou ela, tocando com o indicador da mão direita os
três dedos externos da esquerda. - E mais fortes. E a membrana entre eles faz uma prega.
— E essas pessoas voam?
— Claro. Para que teriam asas?
Wess olhou para Chan, que concordou com um movimento de cabeça e apanhou a sua
mochila.
— Não temos um modelo - falou Wess. - Mas temos uma pintura. Não é Satã, embora
seja muito parecido com ele.
Chan sacou o tubo de madeira que vinha carregando desde Kaimas. Lá de dentro ele
tirou uma pele de cabrito enrolada, que abriu em cima da mesa. O couro fora cuidadosamente
curtido e era muito fino; de um lado tinha uma inscrição, e do outro, uma pintura com uma
palavra escrita embaixo.
— Pertence à biblioteca de Kaimas - falou Chan. - Ninguém sabe a sua origem.
Acredito que seja bastante antigo e acho que é de um livro, mas é tudo que sobrou. - Ele
mostrou o lado com o texto escrito. Consegui decifrar as palavras, mas não a língua. Você
consegue ler?
Lythande sacudiu a cabeça:
— Não a conheço.
Desapontado, Chan virou para o lado ilustrado do manuscrito, mostrando para
Lythande. Wess inclinou-se também, observando os detalhes na luz fraca da vela. Era lindo,
quase tão lindo quanto o próprio Satã. Era surpreendente como se parecia com ele, pois já
existia na biblioteca muito antes de ele nascer. O homem alado, alto e enérgico, tinha os
cabelos vermelho-dourados e as asas cor de fogo. A expressão do seu rosto era um misto de
sabedoria e profundo desespero.
A maioria dos povos que voavam era negra ou de um tom verde intenso iridescente, ou
ainda azul-escuro. Mas Satã, como a pintura, era da cor do fogo. Wess explicou isto para
Lythande.
— Supomos que esta palavra seja o nome dessa pessoa - disse Chan. - Não temos
certeza de saber a pronúncia correta, mas a mãe de Satã gostava de como a pronunciávamos, e
o chamava assim também.
— Lythande olhou a pintura dourada e escarlate em silêncio durante muito tempo,
depois sacudiu a cabeça e recostou-se na cadeira. Assoprou a fumaça para o teto. Um anel se
formou, brilhando por um instante, e depois se desfez na névoa.
— Frejôjani - disse Lythande. - Jubal e os outros traficantes de escravos expõem as
suas mercadorias pela cidade antes de cada leilão. Se o amigo de vocês estivesse no comboio,
todos em Santuário saberiam. Todos no Império saberiam.
Por sob as fímbrias da sua capa, Aerie cerrou os punhos. Isto temia Wess, era o fim da
jornada.
— Mas, quem sabe. . .
Aerie ergueu a cabeça atenta, estreitando os olhos fundos.
— Um ser tão incomum não seria vendido num leilão público. Seria oferecido num
comércio particular, exibido, ou quem sabe ofertado ao imperador para a sua coleção de
animais exóticos.
Aerie estremeceu e Quartz apalpou o fio da lâmina do seu espadim.
— E melhor, crianças, não percebem? Seria tratado com mais dignidade. Ele é valioso.
Escravos comuns são açoitados, lanhados e alquebrados até obedecerem.
A tez translúcida de Chan ficou branca de tão pálida. Wess tremia. Mesmo admitindo
a escravidão, nenhum deles compreendia o que significava.
— Mas como o encontraremos? Onde vamos procurar?
— Jubal saberá - falou Lythande, - se alguém sabe. Gosto de vocês, crianças. Durmam
esta noite. Talvez amanhã Jubal fale com vocês.
Ele se levantou, passou mansamente por entre a turba e desapareceu na escuridão lá
fora.
Em silêncio com seus amigos, Wess ficou sentada pensando no que Lythande lhes
dissera.
Um jovem forte atravessou o salão e debruçou-se sobre a mesa, dirigindo-se a Chan.
Wess reconheceu nele o homem que um pouco antes fora o alvo das brincadeiras dos amigos.
—Boa noite, viajante - disse ele para Chan. - Disseram-me que estas senhoras não são
suas esposas.
— Parece que todos nesta sala perguntam se minhas companheiras são minhas
esposas, e eu ainda não compreendo o que querem saber - respondeu Chan amável.
—O que é tão difícil de entender?
—O que significa "esposas"?
O homem ergueu uma das sobrancelhas intrigado, mas respondeu:
— Mulheres unidas a você pela lei. Para dedicarem apenas a você os seus favores.
Para parir e criar seus filhos.
—Favores?
—Sexo, seu tocador de castanholas. Trepar! Está me entendendo?
— Não muito bem. Está me parecendo um sistema bastante esquisito.
Wess achou estranho também. Parecia absurdo ter crianças de um só sexo; e estar
unido pela lei soava suspeitosamente como escravidão. Mas. . . três mulheres comprometidas
com um homem só? Ela olhou para Aerie e Quartz e viu que elas estavam pensando a mesma
coisa. Caíram na gargalhada.
— Chan, Chan, meu amor, imagine como você ia ficar exausto! - falou Wess.
Chan deu um risinho. Freqüentemente dormiam e faziam amor todos juntos, mas não
se esperava dele que satisfizesse todas as suas amigas. Wess apreciava o amor de Chan, mas
ficava igualmente excitada pela delicada selvageria de Aerie e pela inexaurível gentileza e
energia de Quartz.
— Não são suas esposas, então - falou o homem. - Quanto quer por esta aqui?
E apontou para Quartz.
Os quatro esperaram intrigados que ele se explicasse.
— Vamos, homem! Deixe de bobagem! Todo mundo sabe o que você é... por que
traria mulheres para o Unicórnio? Com aquela ali, você vai se safando até que a madame
descubra. Por isso, é melhor ir fazendo a sua fortuna enquanto pode. Qual o preço dela? Posso
pagar, eu lhe garanto.
Chan começou a falar, mas Quartz fez um gesto rápido e ele se calou.
— Diga-me se o estou entendendo bem - disse ela. - Você pensa que será agradável
fazer sexo comigo. Você quer partilhar do meu leito esta noite.
— Certo amorzinho.
Ele esticou o braço para alcançar o seio dela, mas de repente pensou melhor.
— No entanto, você se dirige não a mim, mas ao meu amigo. Isso me parece muito
estranho, e bastante grosseiro.
— E melhor ir se acostumando, mulher. E assim que as coisas são por aqui.
— Você oferece dinheiro a Chan para me convencer a fazer sexo com você.
O homem olhou para Chan:
— E bom ensinar as suas prostitutas a se comportarem, rapaz, ou os seus fregueses vão
querer ajudar e poderão estragar a sua mercadoria.
Chan ficou vermelho, embaraçado, perturbado e confuso. Wess começou a achar que
sabia o que estava acontecendo, mas não queria acreditar.
— Você está falando comigo, homem — disse Quartz, usando a palavra com tanto
desdém como ele o fizera com a palavra "mulher". -Tenho mais uma pergunta a lhe fazer.
Você não é feio, no entanto não consegue levar ninguém para a cama apenas por prazer. Isso
quer dizer que você tem alguma doença?
Enlouquecido de raiva, ele sacou da faca. Antes que a tocasse, o espadim de Quartz já
estava fora da bainha. Ela manteve a ponta da lâmina bem acima da fivela do cinto dele. A
morte que lhe oferecia era lenta e dolorosa.
Todos na taverna olhavam atentos quando o homem lentamente ergueu as mãos.
— Vá embora - falou Quartz. - Não torne a falar comigo. Sua aparência não é
desagradável, mas se não está doente, é um idiota, e eu não vou para a cama com idiotas.
Ela moveu a espada um palmo. Ele deu rápido três passos para trás e fez um giro,
olhando convulsivamente o rosto das pessoas à sua volta, um a um. Depois disparou, lutando
para alcançar a porta através da gargalhada geral.
O taverneiro veio até eles:
— Forasteiros - disse ele - não sei se foram aceitos aqui ou se cavaram as suas
sepulturas esta noite, mas não ríamos tanto assim desde a lua nova. Bauchle Meyne não vai
engolir isso nunca.
— Não achei nem um pouco engraçado - falou Quartz. Ela tornou a embainhar o
espadim. Não chegara nem mesmo a tocar na espada. Wess nunca a vira usando-a.
— Estou cansada. Onde fica o nosso quarto?
Ele os guiou pela escada acima. O quarto era pequeno, com o pé-direito baixo. Depois
que o taverneiro saiu, Wess examinou o colchão de palha de uma das camas e franziu o nariz.
— Vim de tão longe sem piolhos, não vou dormir num ninho de carrapatos.
Jogou no chão o seu rolo de dormir. Chan sacudiu os ombros e deixou cair a sua
tralha.
Quartz atirou a sua mochila num canto:
— Quando nós encontrarmos Satã, ele vai me ouvir - disse ela irada. - Idiota, deixar-se
capturar por essas criaturas.
Aerie continuava encurvada por baixo da sua capa:
— Isto aqui é um lugar desgraçado - disse ela. - Você pode fugir, ele não.
— Aerie, meu amor, desculpe. - Quartz abraçou-a, afagando-lhe os cabelos. - Não foi
para valer. Estava zangada.
Aerie balançou a cabeça.
Wess massageou os ombros de Aerie, soltou a presilha do longo manto encapuzado,
afastando-o do corpo da amiga. A luz da vela ondulou sobre o pêlo negro que a cobria, liso e
brilhante como a pele de uma foca. Ela vestia apenas uma leve túnica curta de seda azul e as
botas de caminhar. Atirou longe as botas, enfiou os dedos como garras no chão áspero e se
esticou.
Os dedos externos das mãos encostavam-se na parte posterior dos braços. Ela os abriu
e as asas desdobraram-se.
Estendidas apenas pela metade, as suas asas abarcavam todo o quarto. Elas as deixou
cair e abriu a cortina de couro que protegia a janela. O prédio vizinho era muito próximo.
— Vou sair, preciso voar.
— Aerie, querida, viajamos tanto hoje. . .
—Wess, estou cansada. Não irei longe. Mas não posso voar durante o dia, e a lua está
crescente. Se não for agora, talvez se passem muitos dias antes que eu possa voar.
—É verdade — falou Wess. — Tenha cuidado.
—Não vou me demorar.
Ela subiu na janela e no beirai tosco da casa. As garras arranhavam o adobe. Três
passos leves no telhado, o shushh das asas: e ela desapareceu.
Os outros encostaram as camas na parede e estenderam no chão os cobertores com as
margens sobrepostas. Quartz pendurou a aba de couro num gancho na parede e colocou a vela
no peitoril da janela.
Chan abraçou Wess:
— Nunca vi ninguém tão rápido como Lythande. Wess, querida, fiquei com medo de
que você já estivesse morta antes mesmo que eu me desse conta de que ele estava ali.
— Foi idiotice falar com tanta intimidade com um estranho.
— Mas ele nos deu a melhor informação que tivemos há várias semanas a respeito de
Satã.
— Verdade. Quem sabe tenha valido a pena o susto. - Wess olhou pela janela, mas não
viu sinal de Aerie.
— O que a fez pensar que Lythande era mulher?
Wess olhou para ele com um olhar penetrante. Ele ficou esperando, levemente curioso.
Ele não sabe, pensou Wess, espantada. Ele não percebe. . .
— Eu. . . eu não sei — disse ela. - Um engano tolo. Cometi vários hoje.
Era a primeira vez na sua vida que mentia deliberadamente a um amigo. Sentiu-se
ligeiramente mal, e quando ouviu as garras arranhando o telhado lá em cima, ficou contente
por outros motivos que não apenas o da volta de Aerie. Nesse exato momento, o taverneiro
bateu na porta avisando que o banho estava pronto. Na confusão de trazer Aerie para dentro
do quarto e escondê-la sob o manto antes de abrir a porta, Chan esqueceu o assunto do sexo
de Lythande.
Lá embaixo, os ruídos da farra no Unicórnio foram gradualmente silenciando. Wess
forçava-se a ficar deitada quieta. Estava tão cansada que se sentia presa nas águas de um rio; a
corrente a fazia dar voltas e voltas, e ela não conseguia mais se orientar. Mas não pegava no
sono. Nem o banho, o primeiro banho quente que tomaram desde que saíram de Kaimas, a
deixara relaxada. Quartz estava estirada ao seu lado e Aerie estava deitada entre Quartz e
Chan. Wess não invejava a posição de Aerie ou de Quartz, mas gostava de dormir no meio.
Ela queria que um deles estivesse acordado, para fazer amor com ela, mas percebia pela
respiração deles que estavam profundamente adormecidos. Ela se se encostou em Quartz, que
estendeu os braços, sonhando, e a abraçou.
A escuridão continuava infindável, sem sinal do amanhecer, e Wess finalmente
desvencilhou-se do braço de Quartz e dos cobertores, vestiu em silêncio as calças e a camisa;
descalça, desceu furtivamente as escadas, atravessou a taverna tranqüila e saiu. Na soleira da
porta, sentou-se e calçou as botas.
A lua brilhava de leve, o bastante para Wess. A rua estava deserta. Os saltos das botas
batiam nas pedras do calçamento, ecoando num som oco nas paredes de adobe próximas.
Uma estada tão curta numa cidade não deveria deixá-la tão apreensiva, mas era assim
que se sentia. Invejava Aerie e a sua capacidade de poder fugir, não importava quão rápida ou
perigosa a fuga. Wess desceu a rua, prestando atenção no caminho. Era muito fácil se perder
nestas ruelas estreitas, nichos e barrancos.
Um arrastar de botas, logo silenciado, a fez voltar de seus devaneios. Tentavam segui-
la? Boa sorte, então.
Wess era caçadora. Seguia sua presa tão silenciosamente que a matava com a faca; na
densa floresta úmida onde vivia as flechas não eram de muita utilidade. Certa vez ela havia se
aproximado sorrateiramente de uma pantera e alisara o seu pêlo macio - depois desaparecera
tão rápido que a fera ficara rugindo de raiva e frustração, enquanto ela se regalava de rir. Ela
tomou coragem e tratou de andar mais rápido, e os passos atrás dela silenciaram.
Não estando familiarizada com as ruas, sentia-se confusa. Uma rua sem saída seria
uma armadilha. Mas ela percebeu, para a sua satisfação, que o seu instinto para achar a trilha
certa valia também para a cidade. Num determinado momento, ela pensou que teria que dar
meia-volta, mas o alto muro à sua frente tinha uma rachadura funda em diagonal que ia do
chão até em cima. Ela conseguiu apoio suficiente para subir por ali. Pulou para o jardim
guardado pelo muro, atravessou-o correndo até um bosque de parreiras e, numa curva, entrou
na ruela seguinte.
Ela corria serena, feliz, ao mesmo tempo em que a exaustão se dissipava. Sentia-se
bem, apesar das construções sombrias, das ruas tortuosas e sujas e do cheiro desagradável.
Ela se escondeu numa reentrância formada pela quebra do alinhamento entre duas
casas coladas uma à outra. De ouvido atento, ela esperou.
Os passos suaves, quase silenciosos, pararam. Quem a estava seguindo hesitava. O
saibro rangeu entre o couro e a pedra quando a pessoa virou para um lado, depois para o outro
e, finalmente, escolhendo o caminho errado, saiu correndo. Wess deu um risinho, mas
respeitava um caçador que a seguira até tão longe.
Movendo-se silenciosamente por entre as sombras, ela retomou a direção da taverna.
Ao reconhecer as ruínas de uma casa, ela achou apoio para as mãos - e para os pés - e subiu
para o telhado da casa ao lado. Voar não era o único talento que ela invejava em Aerie.
Conseguir galgar uma parede lisa seria útil às vezes também.
O telhado estava deserto. Frio demais para dormir ao relento, sem dúvida. Os
habitantes da cidade se recolhiam à noite para abrigos mais quentes e escondidos.
O ar era mais puro aqui, e ela foi caminhando pelos telhados enquanto pôde. Mas a
passagem principal através do Labirinto era larga demais para pular. Do prédio em frente ao
Unicórnio, Wess observava a taverna. Ela duvidava que o seu perseguidor tivesse chegado
primeiro, mas havia esta possibilidade neste estranho lugar. Não viu ninguém. Estava quase
amanhecendo. Já não se sentia exausta, apenas deliciosamente sonolenta. Desceu pela fachada
do prédio e atravessou a rua.
Alguém abriu de repente a porta atrás dela, deu um salto e, quando ela se virou,
desferiu-lhe um soco na cabeça.
Wess caiu sobre as pedras do calçamento. A sombra aproximou-se e deu-lhe um chute
nas costelas. Uma dor aguda envolveu-lhe o peito, e doía mais forte quando ela tentava
respirar.
— Não a mate. Ainda não.
— Não. Tenho planos para ela.
Wess reconheceu a voz de Bauchle Meyne, que havia insultado Quartz na taverna. Ele
deu-lhe um chute no quadril.
— Quando eu tiver acabado com você, sua cadela, vai me levar até onde está sua
amiga. - E ele começou a desafivelar o cinto.
Wess tentou se levantar. O companheiro de Bauchle Meyne aproximou-se para dar-lhe
outro chute.
O pé dele voou na direção dela. Ela o agarrou e torceu. Assim que ele caiu, ela, num
esforço, ficou de pé. Bauchle Meyne, surpreso, deu uma rápida guinada e agarrou-a num
abraço de urso, prendendo os seus braços para que ela não pudesse alcançar a faca. Pressionou
o rosto contra o dela. Ela sentiu o seu bigode pinicando e o cheiro do seu hálito fermentado.
Ele não conseguiria mantê-la presa e ao mesmo tempo forçá-la a beijá-lo na boca, mas ele
babava no rosto dela. Suas calças escorregaram e o pênis se comprimia contra as coxas dela.
Wess deu-lhe uma joelhada no escroto com toda a sua força.
Ele deu um grito, soltando-a, e saiu cambaleando, dobrado em dois, com as mãos entre
as pernas, gemendo e tropeçando nas calças. Wess sacou da faca e, de costas para a. parede,
ficou aguardando outro ataque.
O companheiro de Bauchle Meyne investiu contra ela. A faca voou rápido para cima
dele, cortando-lhe o braço. Ele deu um pulo para trás, soltando um palavrão. O sangue jorrava
por entre os dedos.
Wess ouviu passos se aproximando um momento antes dele. Pressionou com força a
mão que estava livre na parede às suas costas. Temia gritar pedindo socorro. Por aquelas
bandas, quem respondesse podia muito bem juntar-se aos seus agressores.
Mas o homem, praguejando de novo, agarrou Bauchle Meyne pelo braço e o arrastou
dali tão rápido quanto permitia o seu estado deplorável.
Wess deixou-se cair, escorregando pela parede até o chão. Sabia que ainda não estava
fora de perigo, mas as pernas estavam fracas.
Os passos cessaram. Wess olhou para cima, apertando firme o punho da faca.
— Frejôjan - falou Lythande com voz suave, ainda um pouco distante - irmã, que
trabalho você me deu. - Ela olhou os dois homens se afastando. - E parece que não fui o
Cínico.
— Nunca lutei com uma pessoa antes - falou Wess, tremendo. -Não de verdade, só
para treinar. Nunca ninguém se machucou.
Ela passou a mão pela têmpora. O ferimento superficial sangrava bastante. Ela
mentalizou para que estancasse e aos poucos o sangue foi parando de escorrer.
Lythande agachou-se ao seu lado:
— Deixe-me ver. - Ele examinou o corte com cuidado. - Pensei que estivesse
sangrando, mas parou. O que aconteceu?
— Não sei. Você estava me seguindo? Eles também? Pensei que estava enganando
uma pessoa só.
— Era só eu - falou Lythande. - Eles devem ter voltado para perturbar Quartz de novo.
— Você soube?
— A cidade toda sabe criança. Ou pelo menos todo o Labirinto. Bauchle não vai
esquecer isso tão cedo. E o pior é que nunca vai entender o que houve, nem por quê.
— Nem eu - falou Wess. Erguendo os olhos para Lythande, ela gritou: - Como pode
viver aqui?
Lythande recuou, fechando a cara.
— Eu não vivo aqui. Mas isso não é realmente o que você quer saber. Não podemos
conversar à vontade no meio da rua. - Ele olhou em volta, hesitando, depois continuou: - Você
quer vir comigo? Não tenho muito tempo, mas posso cuidar desse ferimento e conversaremos
melhor.
— Tudo bem. - Wess embainhou a faca e fez força para se levantar, contraindo-se com
a dor que sentia do lado.
Lythande segurou-a pelo braço, ajudando a ficar de pé:
— Talvez tenha quebrado uma costela - disse ele enquanto desciam pela rua devagar.
—Não - disse Wess. - É uma contusão. Vai doer um pouco, mas não é uma fratura.
— Como é que sabe?
Wess olhou para ele, intrigada:
— Posso não morar numa cidade, mas o meu povo não é totalmente selvagem. Prestei
atenção ao que me ensinaram quando criança.
— Ensinaram? E o que lhe ensinaram?
— A saber quando estou machucada, a tomar as providências necessárias caso isso
aconteça, a controlar o que ocorre com o meu corpo; sem dúvida, o seu povo também ensina
isso às crianças, não?
— Meu povo não conhece essas coisas - disse Lythande. - Temos muito mais a
conversar do que eu pensei frejôjan.
O Labirinto ainda confundia Wess quando chegaram diante de uma pequena
construção onde Lythande parou. Wess estava tonta com a pancada na cabeça, mas tinha
certeza de que não estava seriamente machucada. Quando Lythande abriu a porta e enfiou-se
por ela, Wess foi atrás.
Lythande pegou uma vela. O pavio inflamou-se. No centro do quarto escuro, um ponto
brilhante refletia a luz. Do pavio fez-se uma labareda e o ponto cresceu. Wess piscou os olhos.
O reflexo ampliou-se, formando uma esfera, mais alta que Lythande, da cor e da textura das
águas profundas, de um azul-acinzentado, tremeluzente. Equilibrava-se na curvatura inferior,
formando um bojo, de modo que não era perfeitamente redonda.
— Siga-me, Westerly.
Lythande encaminhou-se para a esfera. A superfície enrugou-se quando ela se
aproximou. Lythande entrou e a esfera fechou-se à sua volta. Wess só conseguia ver uma
figura ondulante por detrás da superfície e o ponto luminoso da chama da vela.
Ela tocou a esfera cautelosamente com a ponta dos dedos. Era úmida. Respirando
fundo, ela enfiou a mão.
Ficou congelada; não podia continuar, não podia fugir. Até sua voz estava presa.
Depois de algum tempo, Lythande surgiu. Seus cabelos cintilavam com as gotas
d'água, mas as roupas estavam secas. Ela olhava séria para Wess, rugas de preocupação
riscando a estrela na testa. Mas a sua expressão se desanuviou e ela agarrou o pulso de Wess:
— Não ofereça resistência, irmãzinha - disse ela. - Não resista.
A Estrela Azul brilhava na escuridão, as pontas cintilando com uma nova luz. Lutando
contra uma forte resistência, Lythande empurrou a mão de Wess. O punho da camisa dela
estava frio e ensopado. Em apenas alguns segundos, a água enrugara os seus dedos. A esfera
soltou-a de repente e ela quase caiu, mas Lythande a apoiou.
— O que aconteceu?
Continuando a sustentá-la, Lythande estendeu a mão para a água e afastou-a como
uma cortina. Insistiu para que Wess passasse por ali. Hesitante, ela deu um passo adiante,
tremendo; Lythande ajudou-a a entrar. A superfície fechou-se atrás delas. Lythande fez Wess
se sentar numa plataforma que brotava naturalmente da curvatura interna. Wess esperava que
estivesse molhada, mas estava seca, lisa e ligeiramente morna.
— O que aconteceu? - tornou a perguntar.
— A esfera é uma proteção contra outros feiticeiros.
— Eu não sou uma feiticeira.
— Creio que você acredite nisso. Se eu achasse que estava me enganando, eu a
mataria. Mas se não é uma feiticeira, é só porque não foi treinada.
Wess começou a protestar, mas Lythande fez um gesto para que se calasse.
— Agora eu entendo como escapou de mim nas ruas.
— Sou caçadora - falou Wess, irritada. - Um caçador que não sabe se mover
silenciosamente e rápido não presta.
— Não, foi mais do que isso. Eu coloquei um sinal em você, e você o jogou fora.
Ninguém tinha feito isso antes.
— Nem eu fiz também.
— Não vamos discutir frejôjan. Não temos tempo.
Ela examinou o corte; depois, enfiando a mão na esfera, apanhou um punhado de água
e lavou o sangue coagulado. O toque da sua mão era quente e confortador, tão experiente
como a de Quartz.
— Por que me trouxe aqui?
— Para podermos conversar sem sermos vistos.
— Sobre o quê?
— Primeiro quero lhe perguntar uma coisa. Por que achou que eu era uma mulher?
Wess franziu a testa e ficou olhando para as profundezas aos seus pés. Suas botas
encrespavam a água como as patas dos insetos aquáticos. - Porque você é uma mulher - disse
ela. - Por que finge não ser, eu não sei.
— Esta não é a questão - disse Lythande. - O que eu quero saber é por que me chamou
de "irmã" assim que me viu. Ninguém, feiticeiro ou não, olhou para mim e me reconheceu
pelo que eu sou de imediato. Você podia se colocar, e a mim também, em grande perigo.
Como soube?
— Sabendo - respondeu Wess. - Era óbvio. Não fiquei pensando se você era homem
ou mulher. Eu a vi, e pensei: como é bonita, como é elegante. Parece alguém que pode nos
ajudar. Por isso a chamei.
— E o que os seus amigos acharam?
— Eles. . . Não sei o que Quartz e Aerie acharam. Chan perguntou em que eu estava
pensando.
— E o que você respondeu?
— Eu. . . - Ela hesitou, envergonhada. - Eu menti para ele. Disse que estava cansada,
que estava escuro e cheio de fumaça, e que eu cometera um engano.
— Por que não tentou convencê-lo de que estava certa?
— Porque não é da minha conta negar o que você quer que se saiba a seu respeito. Isso
vale até para o meu amigo mais antigo, o meu primeiro amante.
Lythande olhava a superfície curva do interior da esfera. A tensão se desfazia na
curvatura de seus ombros, na expressão de seu rosto.
— Obrigada, irmãzinha - disse, com a voz aliviada. - Não sabia se a minha identidade
estaria a salvo com você. Mas acho que está.
Wess ergueu os olhos de súbito, num calafrio:
— Você me trouxe até aqui. . . você poderia ter me matado!
— Se precisasse - disse Lythande, calmamente. - Estou contente de não ter sido
necessário. Mas não podia confiar numa promessa feita sob ameaça. Você não tem medo de
mim; decidiu por sua livre vontade.
— Isto pode ser verdade - disse Wess. - Mas é mentira que eu não tenha medo de
você.
Lythande olhou para ela:
— Talvez eu mereça o seu temor, Westerly. Você pode me destruir apenas com uma
palavra impensada. Mas o que você sabe pode destruí-la. Certas pessoas fariam de tudo para
descobrir este segredo.
— Não vou contar a ninguém.
— Se desconfiarem. . . podem forçá-la.
— Sei me cuidar — retrucou Wess.
Lythande passou os dedos pela arcada do nariz, entre os olhos.
— Ah, irmã, espero que sim. A proteção que posso lhe dar é muito pouca. - Ela. . . ele,
Wess lembrou-se. . . levantou-se. - Precisamos ir. Está quase amanhecendo.
— Você me fez uma pergunta. . . posso lhe fazer outra?
— Responderei se puder.
— Bauchle Meyne. . . se não tivesse agido com tanta idiotice, poderia ter me matado.
Mas ele ficou me insultando até que eu me recuperasse. Ele se fez vulnerável. O seu amigo
sabia que eu estava com uma faca, mas me atacou desarmado. Venho tentando entender o que
aconteceu, mas não faz sentido.
Lythande respirou fundo:
— Westerly, gostaria que você nunca tivesse vindo até Santuário. Você escapou pelo
mesmo motivo pelo qual escolhi a aparência que devo manter até hoje.
— Continuo sem compreender.
— Eles não esperavam que você lutasse. Que você reagisse um pouco, talvez, o
bastante para deixá-los excitados. Eles esperavam que você concordasse com o que eles
queriam, significasse isto bater em você, estuprá-la ou matá-la. As mulheres em Santuário não
são treina das para lutar. Elas aprendem que a sua única força reside na perícia em agradar, na
cama e com elogios. Algumas se destacam. Muitas sobrevivem.
— E o resto?
— O resto morre por sua insolência. Ou. . . - Ela sorriu com amargura, apontando para
si mesma. - Umas poucas. . . descobrem talentos mais fortes em outras áreas.
— Mas por que aceitam isso?
— É como as coisas são Westerly. Alguns dirão: como as coisas devem ser. . . assim
foi ordenado que fossem.
— Não é assim em Kaimas.- só de falar no nome da sua terra, ela quis estar de volta.-
Quem manda que seja assim?
— Ora, minha querida - respondeu Lythande, sardônica. - Os deuses.
— Então vocês deviam se livrar dos deuses.
Lythande ergueu uma sobrancelha:
— E melhor guardar para si mesma estas suas idéias aqui em Santuário. Os sacerdotes
dos deuses são poderosos.
Ela estendeu a mão em direção à esfera, que se abriu como cortada por uma faca, e
manteve a superfície afastada para que Wess saísse.
Wess imaginou que a sensação de desequilíbrio e tremor que tomara conta dela
desaparecesse quando pisasse novamente no chão firme.
Mas não.
Wess e Lythande voltaram para o Unicórnio em silêncio. À medida que o Labirinto ia
despertando, as ruas começavam a se encher de carroças pesadas de mercadorias puxadas por
pôneis esqueléticos, mendigos, vendedores ambulantes e punguistas. Wess comprou frutas e
pãezinhos de carne para levar para os amigos.
O Unicórnio estava fechado e às escuras. Como dissera o taverneiro, eles não abriam
cedo. Wess deu a volta por detrás, mas, diante dos degraus da porta do alojamento, Lythande
parou.
— Devo deixá-la, frejôjan.
Wess virou-se surpresa:
— Mas eu pensei que você ia subir comigo. . . comer alguma coisa, conversar. . .
Lythande balançou a cabeça. O seu sorriso era estranho. Não sarcástico como Wess
esperaria, mas triste:
— Gostaria de poder fazer isso, irmãzinha. Pelo menos uma vez. Tenho assuntos a
tratar no norte que não podem esperar.
— No norte! Por que veio por aqui comigo?
Ela comprara suas coisas no caminho de volta, e embora as ruas tortuosas não
permitissem andar em linha reta, tinham caminhado geralmente na direção sul.
— Quis caminhar com você — disse Lythande.
Wess se zangou com ele:
— Você achou que eu não tinha juízo bastante para voltar sozinha?
— Este é um lugar estranho para você. Não é seguro nem para as pessoas que sempre
viveram aqui.
— Você. . . - Wess parou. Havia prometido salvaguardar sua verdadeira identidade e
não podia dizer o que queria: que Lythande a estava tratando como ele mesmo não gostaria de
ser tratado. Wess sacudiu a cabeça, deixando de lado a sua raiva. Mais forte do que a sua ir-
ritação com a falta de confiança de Lythande nela, mais forte do que o seu desapontamento
com a partida de Lythande foi a sua surpresa de que ele tivesse fingido referir-se
indiretamente à descoberta de Satã. Ela não desejava aprofundar-se nos motivos do feiticeiro.
— Você tem a minha palavra - disse ela, num tom azedo. - Pode estar certo de que isto é
importante para mim. Espero que os seus negócios sejam proveitosos. - Ela deu as costas
tentando abrir o ferrolho, os olhos enevoados.
— Westerly - disse Lythande com delicadeza - você acha que voltei a noite passada
para forçá-la a fazer um juramento?
— Não importa.
— Bem, talvez não, já que tenho tão pouco a lhe oferecer em troca. Wess virou-se:
— E você acha que dei minha palavra só porque contava que você nos ajudasse?
— Não - disse Lythande. - Frejôjan, desejaria ter mais tempo. . . mas o que vim lhe
dizer é isto: falei com Jubal ontem.
— Por que não me disse? O que ele falou? Sabe onde está Satã? - Mas ela sabia que a
resposta não iria lhe agradar. Lythande não deixaria para depois notícias boas. - Ele vai nos
receber?
— Ele não viu o seu amigo, irmãzinha. Disse que não tem tempo para falar com vocês.
— Oh.
— Eu não forcei. Ele me deve uns favores, mas ultimamente tem agido de forma
muito esquisita. Existe alguma outra coisa de que ele está com mais medo do que de mim, e
isso é muito estranho. - Lythande desviou o olhar.
— Ele falou alguma coisa?
— Ele disse. . . esta tarde vocês devem ir até o pátio do palácio do
governador.
— Por quê?
— Westerly. . . talvez não tenha nada a ver com Satã. Mas é lá que fica a casa dos
leilões.
Wess sacudiu a cabeça, confusa:
— Onde são vendidos os escravos.
Raiva, humilhação e esperança: a reação de Wess foi tão forte que ela não conseguiu
responder. Lythande galgou os degraus num só passo e abraçou-a. Wess agarrou-se a ele,
tremendo, e Lythande acariciou-lhe os cabelos.
— Se ele estiver lá. . . não existem leis, Lythande? Pode um ser livre ser raptado de
seu próprio lar e. . . e. . .
Lythande olhou o céu. A luz do sol surgia por detrás dos telhados do último prédio a
leste.
— Frejôjan, eu preciso ir. Se o seu amigo estiver à venda, vocês podem tentar
comprá-lo. Os mercadores daqui não são tão ricos como os da capital, mas têm bastante
dinheiro. Vocês vão precisar de uma quantia bem grande. Acho que deveriam, em vez disso,
apelar para o governador. Ele é um homem jovem, e um tolo. . . mas não é mau.
Lythande tornou a abraçar Wess e se afastou.
— Adeus, irmãzinha. Por favor, acredite que eu ficaria se pudesse.
— Eu sei - murmurou ela.
Lythande saiu a passos largos, sem olhar para trás, deixando Wess sozinha envolta no
lusco-fusco do amanhecer.
Wess voltou para o quarto no topo das escadas. Quando entrou, Chan ergueu-se
apoiado no cotovelo.
—Estava começando a ficar preocupado.
—Sei me cuidar — respondeu prontamente Wess.
—Wess, amor, o que está acontecendo?
Ela tentou lhe dizer, mas não conseguiu. Ficou calada, olhando para o chão, de costas
para o seu melhor amigo.
Olhou por cima do ombro quando Chan se levantou. A cortina rasgada deixava entrar
faixas de luz que cascateavam sobre o seu corpo. Ele tinha mudado, como todos eles, na longa
jornada. Ainda era belo, porém mais magro e rijo.
Ele tocou no ombro dela, com delicadeza. Ela se esquivou, num arrepio.
Ele observou as manchas de sangue na sua gola:
— Você está ferida! - exclamou ele, espantado. - Quartz!
Quartz, da cama, resmungou alguma coisa sonolenta. Chan tentou levar Wess para
perto da janela, onde havia mais luz.
— Não me toque!
— Wess. . .
— O que houve? - perguntou Quartz.
—Wess está machucada.
Quartz se aproximou, ainda descalça, e Wess caiu em prantos, abraçando-se a ela.
Quartz a amparou, como Wess fizera algumas noites antes, quando ela mesma chorara
em silêncio na cama, com saudades de casa, sentindo falta dos filhos.
— Diga-me o que aconteceu - disse ela baixinho.
O que Wess conseguiu falar não foi tanto sobre a agressão, mas sobre as explicações
de Lythande.
— Estou entendendo - disse Quartz assim que Wess começou a lhe contar. Afagou os
cabelos dela e secou suas lágrimas.
— Eu não - retrucou Wess. -Devo estar ficando louca, para agir assim.
Ela recomeçou a chorar, Quartz levou-a para onde haviam colocado os cobertores,
onde estava sentada Aerie, piscando os olhos confusa. Chan foi atrás, igualmente perplexo.
Quartz fez Wess sentar-se ao seu lado e abraçou-a. Aerie esfregou-lhe as costas e o pescoço e
deixou que suas asas a envolvessem.
— Você não está ficando louca - disse Quartz. - Apenas não está acostumada com o
modo como as coisas funcionam por aqui.
—Não quero me acostumar a essas coisas. Odeio este lugar. Quero achar Satã. Quero
voltar para casa.
— Eu sei - sussurrou Quartz. - Eu sei.
— Mas eu não — falou Chan.
Wess encolheu-se abraçada com Quartz, incapaz de dizer o que quer que fosse para
diminuir a dor que provocara em Chan.
— Deixe-a sozinha um pouco, Chan - pediu Quartz. - Deixe-a
descansar. Vai ficar tudo bem.
Quartz fez Wess se deitar e deitou-se ao seu lado. Aninhada entre Quartz e Aerie, com
as asas abertas sobre as três, Wess adormeceu.
No meio da manhã, Wess acordou. A cabeça doía violentamente, e cada vez que
respirava, sentia a contusão escura do lado. Olhou o quarto ao redor. Sentada ao seu lado,
remendando uma das tiras da sua mochila, Quartz sorriu para ela. Aerie escovava o seu pêlo
curto e macio, e Chan olhava pela janela, o braço apoiado no peitoril e o rosto descansando
sobre o braço, a camisa de reserva abandonada sem remendos sobre os joelhos.
Wess levantou-se e atravessou o quarto. Agachou-se ao lado de Chan. Ele olhou para
ela, para a rua lá fora, para ela novamente.
— Quartz explicou, um pouco. . .
— Eu estava zangada - falou Wess.
— Só porque bárbaros agem como. . . como bárbaros, não deve ficar zangada comigo.
Ele tinha razão. Wess sabia disso. Mas a raiva e a perplexidade que se misturavam
dentro dela eram ainda fortes demais para desaparecerem com simples palavras.
— Você sabe. . . - disse ele - você sabe que eu não agiria as
sim. . .
Por um instante, Wess realmente tentou imaginar Chan agindo como o estalajadeiro,
ou como Bauchle Meyne, arrogante, cego, com os seus interesses e o seu prazer considerados
acima de tudo e de todos. A idéia era tão ridícula que ela caiu na gargalhada.
— Eu sei que não — disse ela.
Ela ficara zangada com a pessoa que ele poderia ter sido, se as circunstâncias de sua
vida fossem diferentes. Ela ficara ainda mais zangada com a pessoa que ela poderia ter sido.
Ela abraçou-o logo:
— Chan, tenho que sair deste lugar. - Ela pegou a mão dele e se levantou. - Venha, vi
Lythande ontem à noite, preciso lhe contar o que ele me disse.
Eles não esperaram até a tarde para ir ao palácio do governador, saíram antes,
esperando serem recebidos em audiência pelo príncipe e persuadi-lo a não deixar que
vendessem Satã.
Mas ninguém tampouco esperara até a tarde para ir ao palácio. Juntou-se a uma
multidão que afluía em direção aos portões. A tentativa de Wess de se enfiar no meio do povo
valeu-lhe uma cotovelada nas costelas doloridas.
—Não empurre menina - falou a criatura esfarrapada em quem ela havia esbarrado,
ameaçando-a com o cajado. - Quer derrubar um velho aleijado? Se eu cair, não me levanto
mais.
— Desculpe cidadão - disse ela. Mais adiante, viu que as pessoas tinham que se
aglomerar num espaço ainda menor. Estavam mais ou menos em fila. - Você está indo para o
leilão de escravos?
— Leilão de escravos? Leilão de escravos! Hoje não tem leilão de escravos, forasteira.
O circo chegou à cidade!
— O que é circo?
— Circo! Você nunca ouviu falar de um circo? Está bem, esqueça!Metade do povo de
Santuário não sabe o que é. Há duas dúzias de anos que não aparece um por aqui. Agora que o
príncipe é o governador, a gente vai ver mais, não duvido nada. Eles virão pedir licença para
entrar nas terras do imperador, seu irmão. Lá do interior até a capital, pode ter certeza.
—Mas eu ainda não sei o que é um circo. O velho apontou.
Sobre o alto muro do palácio, um pano imenso pendurado num mastro começou a se
esticar e abrir - como um enorme cogumelo, pensou Wess. As cordas retesaram-se,
transformando o pano numa enorme tenda.
— Lá embaixo, mágicas, criançada estrangeira. Animais estranhos, cavalos elegantes,
carregando lindas dançarinas vestidas de penas. Malabaristas, palhaços, acrobatas
equilibrando-se nos fios suspensos lá no alto; e os anormais! - Ele deu uma risadinha. - Eu
gosto mais dos aleijados; na última vez que eu vi, havia um carneiro com duas cabeças e um
homem com dois. . . mas isso não é história para se contar a uma jovem, a menos que se esteja
trepando com ela.
Ele chegou perto, tentando dar um beliscão nela. Wess se esquivou, sacando a faca.
Espantado, o homem falou:
— Ei, menina, eu não quis ofender.
Ela guardou a arma. O velho tornou a rir.
— E o espetáculo de hoje é especial; para o príncipe. Eles não querem dizer o que é.
Mas deve valer a pena, pode ter certeza.
— Obrigada, cidadão - agradeceu Wess impassível, e voltou para perto dos seus
amigos. O homem esfarrapado foi levado pela multidão.
Wess percebeu o olhar de Aerie:
— Você ouviu?
Aerie balançou a cabeça:
— Eles o têm. O que mais poderia ser o grande segredo?
— Neste maldito lugar, podem ter capturado um pobre duende, ou uma salamandra -
falou Wess sarcástica, pois os duendes eram as mais gentis das criaturas, e ela mesma várias
vezes estendera a mão para acariciar a mandíbula de uma salamandra que vivia numa
montanha onde costumava caçar. Era totalmente domesticada, pois Wess nunca caçava
salamandras. Seu couro era muito fino para ser usado e ninguém na sua família gostava de
carne de lagarto. Além do mais, não se podia conservar uma única coxa de salamandra adulta,
e ela não ia desperdiçar a sua caça. - Num lugar como este, eles podem estar com uma
serpente alada dentro de uma caixa, e fazer disso um grande mistério.
— Wess, o segredo é Satã, e nós sabemos disso - garantiu Quartz. - O que temos que
fazer agora é descobrir um jeito de tirá-lo de lá.
— Você tem razão, é claro - concordou Wess.
No portão, dois guardas enormes olhavam com ar ameaçador a turba que, de acordo
com ordens recebidas, deviam deixar entrar. Wess parou diante de um deles.
— Quero falar com o príncipe — disse ela.
— Audiência só na semana que vem - respondeu ele, sem nem mesmo olhar para ela.
— Preciso falar com ele antes que o espetáculo comece.
Desta vez ele olhou para ela, divertindo-se com a história:
— Precisa, é? Então, está sem sorte. Ele saiu só volta para o desfile.
— Onde está ele? - perguntou Chan.
Ela ouviu o povo na fila atrás deles resmungando.
— Segredo de Estado - falou o guarda. - Agora, entrem ou saiam do caminho.
Eles entraram.
A multidão se dissipou de repente, pois a praça onde ia haver o desfile era enorme.
Mesmo a tenda parecia pequena; o palácio avultava sobre ela como uma rocha. Se não estava
ali toda a população de Santuário, pelo menos grande parte de cada um de seus setores havia
comparecido, pois vários mercadores montavam suas barracas: contas aqui, frutas ali, massas
e pastéis mais adiante; um mendigo passou se arrastando; e alguns passos mais à frente, um
grupo grande de nobres envoltos em cetim, peles e ouro conversava languidamente protegido
pelos guarda-sóis carregados por escravos nus. O sol fraco de outono não daria para
prejudicar a tez mais delicada de um deles, ou esquentar as costas do escravo mais forte.
Quartz olhou ao redor, apontando por sobre as cabeças na multidão:
— Estão abrindo um caminho, com estacas e cordas. O desfile passará pelo portão e
entrará na tenda por este lado. - Ela indicava com a mão da direita para a esquerda, de leste
para oeste, numa longa curva desde o portão das Procissões. A tenda fora montada entre o
prédio dos leilões e as barracas dos guardas.
Eles tentaram dar a volta, mas a área por detrás da tenda até o muro estava bloqueada
por cordas. Em frente, uma fila de espectadores já serpenteava numa espiral além da sua
capacidade de lotação.
— Não vamos conseguir entrar nunca - disse Aerie.
—Talvez seja melhor assim - observou Chan. - Não precisamos estar lá dentro com
Satã. . . temos que trazê-lo para fora.
As sombras se alongaram no pátio do palácio. Wess esperava sentada, imóvel e calada.
Chan roía as unhas inquieto. Aerie encolhia-se por debaixo da capa, o capuz escondendo o
rosto. Quartz a observava ansiosa, tamborilando com os dedos o punho da espada.
Depois de novamente lhes ter sido recusada a audiência com o príncipe, desta vez
diante dos portões do palácio, eles procuraram um lugar perto das cordas. Do outro lado, uma
equipe de operários dava os últimos retoques numa plataforma. Quando terminaram, os
criados vieram correndo do palácio com tapetes, toldos franjados de seda, várias cadeiras e
um fogareiro. Wess gostou da idéia do fogareiro; o sol se punha e a temperatura estava cada
vez mais fria.
A multidão continuava a crescer, tornando-se mais compacta, barulhenta e bêbada. O
povo começou a brigar na fila quando percebeu que não ia conseguir entrar. Não demorou
muito, o ambiente ficou tão desagradável que os pregoeiros misturaram-se à turba, tocando
sinetas e anunciando que o circo faria mais uma apresentação, várias apresentações, até que
todo o povo de Santuário pudesse presenciar suas maravilhas. E o mistério. E claro, o
mistério. Ninguém ainda conseguira imaginar a natureza do mistério.
Wess encolheu-se mais dentro da sua capa. Ela sabia; só esperava que o mistério visse
seus amigos e estivesse pronto para o que pudessem fazer.
O sol escondia-se por trás do alto muro ao redor do palácio. Logo estaria escuro.
Trompetes e címbalos: Wess olhou para o portão das Procissões, mas logo percebeu
que as pessoas ao seu redor disputavam a visão da entrada do palácio. As enormes portas
abriram-se e uma falange de guardas saiu marchando, seguida por um grupo de nobres,
cobertos de jóias e vestidos de dourado. Atravessaram a passos largos o pátio apinhado de
gente. O jovem encabeçando o grupo usava uma pequena coroa de ouro e acenava para os
gritos do seu povo como se todos fossem cavaleiros. O que, pensou Wess, eles não eram.
Mas, acima dos resmungos e queixas, o grito que se ouvia mais alto era: O príncipe! Viva o
príncipe!
A falange marchou direto do palácio para o palanque recém construído. Aquele que
fora cego o bastante para ainda estar sentado no meio do caminho teve que recolher rápido as
suas coisas e sair da frente. O espaço se abriu tão ligeiro como a água rodeando a pedra.
Wess ergueu-se num só impulso, pronta a interromper o desfile e tentar novamente
falar com o príncipe.
— Senta!
— Sai da frente!
Alguém jogou o resto de uma maçã em cima dela. Ela limpou a roupa e agachou-se de
novo, mas não por causa das ameaças nem pelo lixo voando. Aerie, também, pensando a
mesma coisa, ficara de pé. Wess puxou-a pelo ombro.
— Olhe - falou.
Todos ao alcance do cortejo parecem ter tido a mesma idéia. A multidão cresceu todos
clamando por atenção. O príncipe atirou um punhado de moedas, o que fez os mendigos se
afastarem dele numa verdadeira confusão. Outros, mais decididos, continuaram insistindo. Os
guardas recuaram, ao redor dele, quase ocultando-o totalmente e mantendo o povo à distância
com as lanças em riste.
O estreito cordão de isolamento desfez-se e o príncipe galgou a plataforma. De pé,
sozinho, ele se virava para um lado e para o outro, erguendo as mãos para a multidão.
— Meus amigos - gritou ele. - Eu sei que vocês têm clamado por mim. A menor
injustiça contra qualquer um do meu povo merece de mim a mais veemente repulsa.
Wess bufou.
— Mas esta noite todos nós teremos o privilégio de testemunhar uma maravilha jamais
vista pelo Império. Esqueçam suas preocupações por ora, amigos, e apreciem o espetáculo
comigo.
Ele ergueu a mão e convidou um membro da sua comitiva para subir ao palco ao seu
lado. Bauchle Meyne.
— Daqui a alguns dias, Bauchle Meyne e a sua trupe viajarão para Ranke, para distrair
o imperador, meu irmão.
Wess e Quartz se entreolharam, espantadas. Chan disse um palavrão. Aerie ficou
tensa, e Wess segurou-a pelo braço. Todos cobriram as cabeças com os seus capuzes.
— Bauchle será portador da minha amizade e do meu sinete. – O príncipe ergueu um
rolo de pergaminho amarrado com fitas vermelhas e cera da cor do ébano.
O jovem se sentou com Bauchle Meyne ao seu lado no lugar de honra. O resto da
comitiva real espalhou-se em volta e o desfile começou.
Wess e os amigos aproximaram-se, em silêncio.
Não teriam ajuda alguma do príncipe.
O portão das Procissões abriu-se ao som de flautas e tambores. A música continuava e
nada acontecia. Bauchle Meyne começou a ficar inquieto. De repente, uma figura entrou
cambaleando como se tivesse sido empurrada. O homem magro esquelético, de cabelos
vermelhos, recuperou o equilíbrio, endireitou-se e olhou de um lado para outro. As zombarias
o deixaram confuso. Deixou cair dos ombros a longa capa, mostrando a túnica negra coberta
de estrelas, e deu alguns passos hesitantes.
No primeiro suporte de madeira das cordas, ele tornou a parar. Fez um movimento
tentando alcançá-lo e pronunciou alguma coisa com uma voz gutural.
O suporte explodiu em labaredas.
As pessoas que estavam perto se afastaram aos gritos, e o bruxo continuou
cambaleando ora para um lado, ora para o outro, agitando as mãos na direção das estacas, uma
por uma.
Os círculos brancos de fumaça misturavam-se à iluminação do caminho. Wess
percebeu que as estacas não estavam queimando realmente. Quando uma delas na sua frente
começou a brilhar, ela estendeu a palma da mão com os dedos bem abertos. Não sentindo o
calor, ela tocou na madeira com cuidado, depois segurou com força. Não estava quente e
conservava a mesma textura, de talho irregular.
Ela lembrou-se do que Lythande dissera a respeito de possuir um forte talento. Ficou
imaginando se poderia fazer o mesmo. Era um truque útil, embora não muito importante. Não
tinha nenhum pedaço de madeira para experimentar, nem sabia por onde começar. Deu de
ombros e largou o mourão. A marca da sua mão - ela piscou os olhos. Não, era imaginação
sua, não um ponto mais brilhante que ela havia tocado.
No palanque onde estava o príncipe, o bruxo olhava vagamente ao redor. Bauchle
Meyne debruçava-se atento, o olhar feroz, evidentemente aborrecido e com uma raiva quase
incontrolável. O bruxo olhava para ele. Wess pôde ver os dedos tensos de Bauchle Meyne
segurando uma corrente de aros de rubi. Ele a entortava. Wess estava ofegante. O bruxo deu
um grito estridente e ergueu as mãos. Bauchle Meyne relaxou a tensão sobre o talismã. O
feiticeiro abriu os braços. Tremia. Wess também. Sentia como se a corrente tivesse se
enrascado no seu corpo como um chicote.
As mãos trêmulas do bruxo agitaram-se: o palanque, as partes de madeira das cadeiras,
os postes sustentando o toldo franjado, tudo explodiu num intenso fogo branco. Os guardas
avançaram violentos e confusos, mas pararam a uma palavra do seu príncipe. Ele estava
calmo e sorria as mãos tranqüilas sobre os braços iluminados do seu trono.Labaredas escuras
brincavam pelos seus dedos, e a luz brotava dos seus pés. Bauchle reclinou-se satisfeito e
acenou com a cabeça para o feiticeiro. Os outros nobres sobre a plataforma não sabiam o que
fazer lívidos diante da luz que saía das pranchas de madeira entre os tapetes. Nervosos, mas
seguindo o exemplo do seu líder, voltaram a se sentar.
O feiticeiro seguiu aos tropeções, iluminando o resto das estacas. E desapareceu na
escuridão da tenda. Os suportes de madeira começaram a brilhar numa luminescência
fantasmagórica. Aos poucos, as cordas, os tapetes no palanque, o toldo sobre o príncipe e o
pano da tenda ficaram cobertos de um brilho suave.
O príncipe aplaudia, balançando a cabeça e sorrindo para Bauchle Meyne, e todos o
acompanhavam.
Num grito agudo, um bufão entrou às cambalhotas pelo portão das Procissões e veio
pelo caminho fazendo acrobacias. Atrás dele vieram os flautistas e os tambores, e ainda três
pôneis com penas coloridas presas aos arreios e montados por três crianças de calções e
coletes recobertos de lantejoulas. A que vinha na frente deu um pulo e ficou de pé,
equilibrando-se nas ancas do pônei, enquanto as de trás faziam paradas de mão. Wess, que
nunca montara um cavalo na vida e ficava apavorada só de pensar nisso, aplaudia. Na platéia
também, um aplauso aqui outro ali. Até o príncipe batia palmas sem muito entusiasmo. Mas
perto deles um homenzarrão grisalho ria sarcástico e gritava: "Queremos mais!" Era assim
que a maior parte da multidão reagia, vaiando e rindo. A criança de pé mantinha-se firme
olhando para frente. Wess travava os dentes de raiva pela menina, mas impressionada com a
sua dignidade. A filha mais velha de Quartz devia ter a mesma idade. Wess procurou a mão
da amiga, que retribuiu agradecida.
Uma jaula puxada por uma junta de bois atravessou o portão escuro. Wess prendeu a
respiração. Os animais puxaram a carroça para a área iluminada. Lá dentro estava um velho
duende, encolhido num canto sobre a palha suja. Um menino cutucou-o com uma varinha
quando eles passaram diante do príncipe. Ele deu um pulo e praguejou com raiva numa voz
esganiçada:
— Seu bárbaro selvagem! Seu príncipe... príncipe dos vermes, eu digo, das larvas!
Que o seu pênis cresça até que ninguém mais o queira! Que a vagina da sua favorita dê um nó
com você lá dentro! Que você fique de miolo mole e com areia nos rins!
Wess sentiu-se enrubescer; jamais ouvira um duende falar assim. Costumavam ser o
povo mais educado da floresta, e com eles o único perigo é que se podia acabar ficando a
tarde inteira ouvindo um discurso sobre o formato das nuvens ou os efeitos de certos
cogumelos. Wess olhou ao redor, com medo que alguém se ofendesse com o que o duende
estava dizendo do seu líder. Então ela se lembrou de que ele falava a Língua, a verdadeira
linguagem das criaturas inteligentes, e ninguém mais senão ela e os seus amigos
compreendiam.
— Frejôjan! - gritou ela num impulso. — Hoje à noite. . . fique atento. . . se eu
puder...
Ele hesitou em meio a uma cambalhota, tropeçou, mas recompôs-se e saiu dando
piruetas e emitindo sons sem sentido até ficar diante dela. Ela afastou o capuz do rosto para
que ele a reconhecesse mais tarde. Quando a carroça passou, ela o deixou cair novamente para
que Bauchle Meyne não a pudesse ver do outro lado.
O pequeno ser peludo cinza e dourado agarrado às barras da jaula olhava para fora,
fazendo caretas horríveis para a multidão e retribuindo as vaias com gritos pavorosos. Mas em
meio aos trejeitos e ruídos, ele falou:
— Eu espero. . .
Depois que se afastou deles, começou a choramingar.
— Wess. . . — falou Chan.
— Não pude deixá-lo passar sem falar com ele.
— Ele não é um amigo, afinal de contas - disse Aerie.
— Foi capturado, como Satã! - Wess olhou para Aerie, depois para Chan, e viu que
nenhum dos dois compreendia. — Quartz ?
Quartz concordou:
— Sim. Você está certa. Este não é lugar para uma pessoa civilizada.
— Como vai encontrá-lo? Como vai soltá-lo? Não sabemos nem o que fazer com Satã!
Suponha que ele precise de ajuda! - Aerie ergueu a voz irada.
— Suponha que nós precisemos de ajuda!
Aerie deu as costas para Wess e ficou observando o desfile com o olhar vago. Até
sacudiu os ombros quando Quartz quis lhe dar um abraço.
Não havia mais tempo para ficarem discutindo. Seis arqueiros atravessaram andando o
portão. Atrás vinha um carro. Era uma carreta, com uma cortina em volta e puxada por dois
cavalos malhados, um deles com olhos azuis desvairados. Acompanhando, vinham mais seis
arqueiros. Um burburinho confuso agitou a multidão e ouviram-se os gritos:
— O segredo! Mostrem o segredo!
O postilhão guiou os cavalos para pararem diante do príncipe Bauchle Meyne desceu
do palanque cerimonioso e subiu no carro.
— Milorde! - gritou. - Apresento-vos um dos nossos mitos!
Ele puxou um cordão e as cortinas se abriram.
Sobre o estrado, Satã estava de pé, firme e sério, olhando para a frente, a cabeça
erguida. Aerie soltou um gemido e Wess retesou-se, querendo pular por cima das cordas
luminosas brandindo o seu punhal diante da multidão, sem se importar com as conseqüências.
Amaldiçoou-se por ter sido tão fraca e tola de manhã. Se tivesse sentido o ímpeto de atacar,
poderia ter estripado Bauchle Meyne.
Não haviam subjugado Satã. Matá-lo-iam antes de despojá-lo do seu orgulho. Mas ele
estava sem as suas roupas, algemado e ferido. Lanhos prateados cobriam o pêlo cor de cobre
sobre os seus ombros. Tinham-no açoitado. Wess segurava com força o cabo do punhal.
Bauchle Meyne pegou uma estaca. Não era tolo de se aproximar das garras de Satã.
— Mostre-se! — gritou.
Satã não falava a língua dos comerciantes, mas Bauchle Meyne fez-se entender
suficientemente com a ponta da estaca. Satã ficou olhando para ele imóvel até que o rapaz
parou de atiçá-lo e, com uma vaga percepção da dignidade do seu prisioneiro, deu um passo
atrás. Satã olhou em volta, os grandes olhos refletindo a luz como os de um felino. Encarou o
príncipe. Quando ele se mexeu, as correntes pesadas chacoalharam.
Ele ergueu os braços. Abriu as mãos, estendendo os dedos.
Desdobrou as imensas asas vermelhas. Uma luz mágica brilhou nas membranas
translúcidas. Era como se ele tivesse pegado fogo.
O príncipe olhava em muda satisfação enquanto o povo berrava de surpresa e espanto.
— Lá dentro - falou Bauchle Meyne —, quando eu o soltar, ele voará.
Um dos cavalos, tocado pela ponta de uma asa, resfolegou, empinando. O carro deu
uma guinada para frente. O postilhão puxou o cavalo até ele espumar sangue pela boca;
Bauchle Meyne perdeu o equilíbrio e caiu no chão. A sua expressão era de dor, e Wess ficou
contente. Satã quase não se mexeu, os músculos das costas tensos e eretos enquanto se
equilibrava com as asas.
Aerie emitiu um som agudo, muito alto, quase fora dos limites do ouvido humano.
Mas Satã ouviu. Não se perturbou; ao contrário do duende, não se virou para ver de onde
vinha. Mas ouviu. Na claridade da luz mágica, o pêlo curto cobrindo-lhe os ombros eriçou-se,
e ele estremeceu. Respondeu com um grito, um soluço: o apelo de um amante. Tornou a
dobrar as asas ao longo dos braços. A pele tremia cintilante.
O postilhão chicoteou o cavalo e o carro moveu-se rangendo e desajeitado. Para a
multidão do lado de fora, o espetáculo terminara.
O príncipe desceu do palanque e, caminhando ao lado de Bauchle Meyne e
acompanhado pela sua comitiva, entrou na tenda armada para o espetáculo.
Os quatro amigos juntaram-se, enquanto o povo passava por eles. Wess pensava: Vão
deixar que ele voe, lá dentro. Vão soltá-lo. . . Olhou para Aerie.
— Pode descer no topo da tenda? E levantar vôo de novo? Aerie olhou para a
inclinação íngreme da lona:
— Facilmente - falou.
A área por detrás da tenda não estava iluminada pela luz mágica, e sim por tochas.
Wess encostou-se no muro, observando a agitação e o caos da trupe, ouvindo os aplausos e os
risos da multidão. O espetáculo já começara fazia muito tempo; a maioria das pessoas que não
tinham conseguido entrar fora embora. Dois empregados do circo vigiavam com ar cansado o
perímetro do cercado, mas Wess sabia que não seria difícil esgueirar-se por ali quando
quisesse.
Era com Aerie que estava preocupada. Uma vez iniciada a execução do plano, ela
ficaria muito vulnerável. A noite estava clara e a lua crescente brilhava bem alto. Quando ela
descesse no topo da tenda, estaria na mira dos arqueiros. Satã correria um perigo ainda maior.
Cabia a Wess, Quartz e Chan criar um tumulto tão grande que distraísse os arqueiros.
Wess estava tratando disso.
Esgueirou-se por debaixo da corda quando ninguém estava olhando e caminhou pela
sombra como se pertencesse à trupe. O carro de Satã estava parado diante da entrada para o
picadeiro, mas Wess não se aproximou do amigo por enquanto. Sem se importar com ela, as
crianças passaram trotando nos seus pôneis. A luz das tochas, elas pareciam magras, cansadas
e muito jovens; os cavalinhos, magros, cansados c muito velhos. Wess esquivou-se por detrás
de uma fileira de jaulas. O circo possuía, realmente, uma salamandra, mas, com uma
aparência lastimável e faminta, quase não chegava ao tamanho de um cachorro grande. Wess
quebrou o cadeado que fechava a jaula. Tinha apenas o punhal para fazer isso; ia estragar a
lâmina. Fez o mesmo com as jaulas dos outros animais: um lobinho, um elefante pigmeu. Mas
não os soltou ainda. Finalmente, chegou ao duende.
— Frejôjan - murmurou - estou aqui atrás.
— Estou ouvindo, frejôjan. - O duende foi até o fundo da jaula, fazendo uma mesura. -
Lamento a minha aparência descuidada, frejôjan. Quando me capturaram, não trazia nada
comigo, nem mesmo uma escova.
O seu pêlo dourado meio grisalho perdera o brilho. Ele enfiou a mão por entre as
grades e Wess o cumprimentou.
— Sou Wess — disse.
— Aristarchus - respondeu ele. - Você fala como Satã. . . veio buscá-lo?
Ela balançou a cabeça:
— Vim quebrar o cadeado da sua jaula - disse ela. - Tenho que estar mais perto da
tenda quando eles o trouxerem para voar. E melhor que não percebam antes que há algo de
errado. . .
Aristarchus concordou:
— Não fugirei antes. Posso ajudar? Wess olhou a fileira de jaulas.
— Você poderia. . . correria perigo se soltasse esses animais? Ele era velho. Ela não
sabia se era bastante ligeiro.
Ele deu uma risadinha:
— Nós, os animais, nos tornamos bons amigos - falou. - Embora a salamandra seja
bastante rabugenta.
Wess introduziu a ponta do punhal no fecho e forçou até abrir. Aristarchus arrancou-o
da porta, atirando-o sobre o chão de palha. Sorriu para Wess, envergonhado:
— Ultimamente, não tenho tido muita paciência.
Wess enfiou a mão pelas grades e cumprimentou-o de novo. Perto da tenda, os cavalos
deram a volta com o carro de Satã. Bauchle Meyne dava as ordens, aos gritos, nervoso.
Aristarchus olhou para Satã.
— Foi bom vocês terem vindo - disse ele. - Eu o convenci a colaborar, por enquanto
pelo menos, mas ele está achando difícil. Certa vez, ele os deixou tão zangados que
esqueceram o quanto ele vale.
Wess balançou a cabeça, lembrando-se das marcas do chicote.
O carro se aproximou; os arqueiros o acompanharam.
— Tenho que andar depressa - falou Wess.
— Boa sorte.
Ela chegou o mais perto possível da tenda. Mas não conseguia ver lá dentro; tinha que
imaginar o que estava acontecendo pelos gritos da platéia. O postilhão fez os cavalos darem a
volta pelo picadeiro. Eles pararam. Alguém se esgueirou por debaixo do carro e soltou as
algemas, longe do alcance das garras de Satã. E aí. . .
Ela ouviu um suspiro, uma expressão de surpresa e encantamento quando Satã abriu as
asas e voou.
Por cima de sua cabeça, a sombra de Aerie cortou os ares. Wess tirou a capa e acenou,
sinalizando. Aerie mergulhou em direção à tenda e aterrissou.
Wess sacou do punhal e começou a cortar uma das cordas de sustentação da lona.
Cuidara para que a lâmina não perdesse o fio, e o trabalho foi bem rápido. Quando correu para
a outra, escutou os gritos da multidão mudando de tom, como se as pessoas estivessem
começando a perceber alguma coisa. Quartz e Chan estavam trabalhando também. Wess
cortava a segunda corda. Quando a tenda começou a cair, ela ouviu a lona rasgar-se lá em
cima, onde Aerie enfiara suas garras. Wess cortou a terceira corda, a quarta. A brisa fazia
adejar o tecido frouxo. A lona estrelejava e gemia como uma vela. Wess escutou Bauchle
Meyne gritando:
— As cordas! Segurem as cordas, elas estão se rompendo!
A tenda tombou em três direções. As pessoas, lá dentro, começaram a gritar depois aos
berros tentaram fugir. Alguns foram jogados ao chão, depois uma turba lutava para conseguir
passar pela estreita abertura. O relinchar estridente dos cavalos assustados misturou-se ao ba-
rulho da multidão, e a confusão transformou-se em pânico. Os cavalos que puxavam a carroça
de Satã, vazia, sacolejando desengonçada atrás deles, investiram abrindo caminho à força no
meio do povo. Gente ainda mais aterrorizada saiu correndo atrás. Todos os guardas do palácio
lutavam contra eles, esforçando-se para alcançar o seu príncipe.
Wess voltou para se reunir a Quartz e Chan, e parou horrorizada. Na escuridão por
detrás da tenda, Bauchle Meyne apanhara um arco abandonado no chão e, ignorando o caos
ao seu redor, mirava o céu com uma seta de ponta de aço. Wess atirou-se para cima dele, e
com um empurrão o fez perder o equilíbrio. A corda do arco zuniu e a seta subiu rabeando,
tomando a cair sem forças nas dobras frouxas da lona.
Bauchle Meyne levantou-se de um salto, vermelho de raiva:
— Você, sua cadela! - Ele investiu contra ela, agarrando-a e dando-lhe um soco no
rosto. - Você me arruinou por despeito!
O golpe jogou-a no chão. Desta vez Bauchle Meyne não riu. Sem enxergar direito,
Wess tentou se desviar dele. Ouviu as botas aproximando-se e ele a chutou no mesmo lugar
entre as costelas. Ela escutou o ruído do osso se quebrando. Tentou sacar o punhal, mas a
lâmina, áspera do mau uso que fizera dela, ficou presa na bainha. Lutou para soltá-la, e
Bauchle Meyne lhe deu outro chute.
— Desta vez você não escapa, cadela!
Ele deixou Wess se levantar, apoiada nas mãos e nos joelhos.
— Experimente fugir! - Ele se aproximou.
Wess agarrou-se às pernas dele, esquecendo a dor de tanta raiva. Ele gritou ao cair. A
única coisa que não esperava dela era que o atacasse. Wess ficou de pé. Arrancou o punhal da
bainha quando Bauchle Meyne tornava a investir contra ela. Enterrou a lâmina primeira na
sua barriga, depois no coração.
Ela sabia como matar, mas jamais fizera isso com um ser humano. Sentira o sangue de
suas presas, mas nunca o de alguém da sua própria espécie. Vira criaturas morrerem em suas
mãos, mas jamais uma que soubesse o que significava a morte.
O coração ainda bombeando o sangue ao redor da lâmina, as mãos procurando as dela,
tentando afastá-las do seu peito, ele caiu de joelhos, estremeceu, tombou por cima dela numa
convulsão e morreu.
Wess arrancou o punhal num gesto brusco. Mais uma vez ela ouvia o relinchar
assustado dos cavalos, os palavrões dos homens enraivecidos e o uivo de um filhote de lobo
quase morto de fome.
A tenda tremeluzia sob a luz mágica.
Quisera que fossem tochas, gritou Wess interiormente. As tochas o queimariam, e isso
é o que ele merecia.
Mas não havia fogo, e nada queimando. Ela enxugou as lágrimas com a manga.
As duas criaturas voadoras subiam cada vez mais em direção à lua, livres.
E agora. . .
Não estava vendo Quartz e Chan. Via apenas estrangeiros aterrorizados; artistas
cobertos de lantejoulas, o povo de Santuário brigando entre si e mais guardas chegando para
salvar o seu senhor. A salamandra passou rastejando por ela, silvando de medo.
Os cavalos avançaram e ela saiu correndo com medo de ser pisoteada. Aristarchus os
fez parar e atirou para ela as rédeas do segundo cavalo. Era o garanhão do carro de Satã, o de
olhos azuis selvagens. () animal sentiu o cheiro de sangue e empinou resfolegando. Ela conse-
guiu segurar firme as rédeas sem nem saber como. O cavalo tornou a empinar, jogando-a ao
chão. Ela sentiu os ossos se quebrando por dentro e abafou um grito.
— Monte! berrou Aristarchus. - Não pode controlá-lo do chão!
— Não sei. . . - Ela parou. Falar doía demais.
— Agarre-se na crina! Pule! Firme-se com os joelhos.
Ela fez como ele lhe dizia e se viu sobre o cavalo, quase caindo do outro lado.
Abraçou-o com as pernas e ele saiu em disparada. As duas rédeas estavam de um lado só. . .
Wess sabia que não estava certo. Ela puxou e ele fez um círculo, quase derrubando-a no chão
de novo. Aristarchus aproximou-se rápido no seu cavalo e agarrou o freio do garanhão. O
animal parou com as pernas escarranchadas, as orelhas para trás, as narinas bem abertas,
tremendo entre as pernas de Wess. Ela agarrava-se à crina, aterrorizada. As costelas
quebradas doíam tanto que ela sentiu que ia desmaiar.
Aristarchus debruçou-se, assoprou suavemente as narinas do garanhão e falou com ele
tão baixinho que Wess não pôde ouvir o que dizia. Devagar, lentamente, o duende endireitou
as rédeas. O animal foi relaxando aos poucos e as orelhas voltaram para o lugar.
— Cuidado com os freios, frejôjan - recomendou o duende. - Ele é uma boa criatura,
só está assustado.
— Preciso achar meus amigos - falou Wess.
— Onde vocês deviam se encontrar?
A voz calma de Aristarchus ajudou-a a controlar-se.
— Ali. Ela apontou um canto escuro atrás da tenda. Aristarchus dirigiu-se para lá,
segurando ainda os freios do cavalo dela. Os animais pisavam com cuidado no chão coberto
de equipamentos quebrados e peças de roupas abandonadas.
Quartz e Chan vieram correndo. Quartz ria. Em meio ao caos ela vira Wess, batera no
ombro de Chan para avisá-lo e correra em direção da amiga.
— Você os viu voando? - gritou Quartz. - Voaram mais alto do que as águias!
— Espero que voem mais alto do que as flechas - falou Aristarchus, secamente.
Apressem-se: você, a grandona, monte atrás de mim, e você - dirigia-se a Chan - atrás de
Wess.
Fizeram o que ele mandou. Quartz bateu no cavalo e ele disparou, mas Aristarchus
mantinha as rédeas.
— Devagar, crianças - falou o duende. -Vamos devagar pelo escuro que ninguém vai
perceber.
Para surpresa de Wess, ele estava certo.
Na cidade, eles controlaram a marcha dos cavalos e Quartz escondeu Aristarchus sob a
capa. Deixaram o tumulto para trás, e ninguém os perseguiu. Wess agarrava-se à crina do
garanhão, sentindo-se ainda insegura tão longe do chão.
Para fugir de Santuário não precisavam passar pelo Unicórnio, e nem mesmo entrar no
Labirinto, mas resolveram arriscar: era muito perigoso viajar desprevenido pelas montanhas
com o outono já tão adiantado. Aproximaram-se do Unicórnio por ruelas secundárias e quase
não viram ninguém. Aparentemente, os habitantes do Labirinto gostavam de uma distração
tanto quanto qualquer outro em Santuário. Sem dúvida, a oportunidade de ver o seu príncipe
livrar-se da lona desmoronada de um circo fora o espetáculo mais divertido da noite. Wess
gostaria de ter apreciado também.
Deixando os cavalos escondidos no escuro com Aristarchus, eles se esgueiraram
sorrateiramente pelas escadas até o quarto, enfiaram as suas coisas nas mochilas e tornaram a
sair.
— Jovem cavalheiro e suas damas, boa-noite.
Wess virou-se rápido, Quartz ao seu lado agarrou a espada. O taverneiro recuou, mas
logo se recompôs.
— Bem - disse para Chan com ar de desprezo. - Pensei que elas fossem outra coisa,
mas estou vendo que são seus guarda-costas.
Quartz agarrou-o pela camisa e o levantou do chão. A espada escorregou de dentro da
bainha. Wess jamais vira Quartz usá-la, para se defender ou com raiva; e nunca vira a sua
lâmina. Mas Quartz não negligenciara no seu cuidado. O fio brilhava translúcido de tão
afiado.
— Eu abandonei os atos impulsivos e violentos quando desisti da guerra - falou Quartz
com muita calma. — Mas você está bem perto de me fazer esquecer o juramento.
Ela abriu a mão e ele caiu de joelhos diante da sua espada.
—Não quis ofender, minha senhora. . .
— Não me chame de "senhora"! Não sou de linhagem nobre! Fui um soldado e sou
uma mulher. Se não mereço que me trate com educação, não pode exigir a minha clemência.
— Não quis ofender, não quis ofender. Peço-lhe perdão. . . - Ele ergueu o rosto,
tentando entender aquele olhar cinza impenetrável. -Peço-lhe perdão, mulher do norte.
Na sua voz já não havia desprezo, apenas terror, e para Wess isto era igualmente ruim.
Ela e Quartz não poderiam esperar nada ali a não ser o desprezo ou o medo. Não tinham outra
escolha.
Quartz embainhou a espada:
— As suas moedas de prata estão sobre a mesa - disse ela friamente. - Não
pretendíamos enganá-lo.
Ele se afastou às apalpadelas, entrando no quarto. Quartz pegou a chave do lado de
dentro, bateu a porta e trancou.
— Vamos sair daqui.
Desceram correndo as escadas. Na rua, juntaram as mochilas e prenderam-nas da
melhor maneira possível aos arreios dos cavalos. Lá em cima, ouviram o estalajadeiro batendo
na porta, e quando ele viu que não a poria abaixo, assomou à janela.
— Socorro! - gritava ele. - Socorro, raptores! Assaltantes!
Quartz pulou para trás de Aristarchus e Chan fez o mesmo com Wess.
— Socorro! - gritava o homem. - Socorro, fogo! Inundação!
Aristarchus soltou as rédeas do seu cavalo e ele saiu em disparada. O garanhão de
Wess agitou a crina, resfolegou forte e de um pulo saiu galopando. A única coisa que Wess
podia fazer era se segurar, agarrada às crinas e aos arreios, encurvada sobre o dorso do
animal, enquanto corria pelas ruas.
Atravessaram galopando os arredores de Santuário, espadanando água ao cruzarem o
rio e dirigindo-se para o norte acompanhando o seu leito. Os cavalos estavam encharcados de
suor, e Aristarchus insistiu em que deviam diminuir a marcha e deixá-los retomar o fôlego.
Wess achou sensato, e também não vira ninguém da cidade atrás deles. Ela observou o céu,
mas a escuridão não permitia divisar nenhum indício dos dois voadores.
Abandonando a disparada, eles controlaram os cavalos e deixaram que eles
caminhassem a meio trote. Cada passo repercutia nas costelas de Wess. Ela tentou se
concentrar para afastar a dor, mas para isso teria que parar, descer do cavalo e relaxar. Agora,
isto era impossível. A estrada e a noite eram infindáveis.
Ao amanhecer, eles alcançaram a trilha ligeiramente abandonada para onde Wess os
conduzia. Ela se afastara da estrada, indo diretamente para as montanhas.
As árvores, negras sob um céu de ardósia, adensavam mais adiante. Wess sentia como
se tivesse saído triunfante de um mundo de pesadelos para aquele que ela conhecia e amava.
Ainda não se sentia livre, mas já podia tornar a considerar essa possibilidade.
— Chan?
— Estou aqui, amor.
Ela tomou a mão dele, que a segurava pela cintura com cuidado, e beijou-a.
Recostando-se no seu peito, ele a abraçou.
Um riacho brotava entre as raízes retorcidas das árvores, à margem da trilha quase
invisível.
— Devíamos parar e deixar os cavalos descansarem - falou Aristarchus - E
descansarmos nós também.
— Há uma clareira um pouco mais adiante - observou Wess. Tem grama. Eles comem
grama, não é?
Aristarchus riu.
— Comem, sim.
Quando chegaram à clareira, Quartz desmontou, tropeçou gemendo e riu:
— Há tanto tempo que não cavalgo - falou.
Ajudou Aristarchus a descer. Chan desmontou, esticando as pernas depois da longa
cavalgada. Wess ficou onde estava. Sentia-se como se estivesse vendo o mundo através da
esfera secreta de Lythande.
O ar frio da madrugada impregnou-se do som das imensas asas aproximando-se. Satã e
Aerie desceram no centro da clareira e correram em direção aos amigos.
Wess entrelaçou os dedos na crina rajada do seu cavalo e escorregou para o chão.
Encostou-se no animal, exausta e ofegante. Ouvia Chan e Quartz saudando os voadores. Mas
ela não conseguia se mexer.
— Wess?

Ela virou-se, lentamente, ainda agarrada à crina do cavalo. Satã sorriu para ela. Estava
acostumada com a magreza deles, mas eles estavam esqueléticos: Satã tinha um aspecto
macilento, as costelas e os ossos dos quadris furavam a pele. O seu pêlo curto estava seco e
sem vida e além das cicatrizes nas costas, ele tinha marcas nos tornozelos e no pescoço.
— Oh, Satã. . . Ela o abraçou, e ele a envolveu em suas asas.
— Acabou - disse ele. - Já acabou.
Ele a beijou, carinhoso. Reuniram-se todos ao seu redor. Ele passou de leve as costas
da mão no rosto de Quartz e inclinou-se para beijar Chan.
— Frejôjani. . .
Ele os olhou um a um, e quando uma lágrima escorregou pela sua face, envolveu-se
nas asas e chorou.
Eles o abraçaram e o acariciaram até que ele parou de soluçar. Envergonhado, secou as
lágrimas com a palma da mão. Aristarchus ficou de lado, piscando seus grandes olhos verdes.
— Você deve achar que eu sou um grande idiota, Aristarchus, um tolo, e fraco.
O duende sacudiu a cabeça:
— Eu acho, agora que posso finalmente acreditar que estou livre. . . - Ele olhou para
Wess. - Obrigado.
Sentaram-se à beira do riacho para conversar e descansar.
— E possível que nem mesmo estejamos sendo seguidos - disse Quartz.
— Vigiamos a cidade até vocês entrarem na floresta - falou Aerie. - Não vimos
ninguém no caminho do rio.
— Então eles podem não ter percebido que alguém mais além de uma outra criatura
voadora ajudou Satã a fugir. Se ninguém nos viu derrubar a lona. . .
Wess aproximou-se do riacho e molhou o rosto. Com a mão em concha, levou a água
aos lábios. Os primeiros raios de sol atravessaram as copas das árvores e iluminaram a
clareira.
A mão de Wess ainda estava manchada de sangue, que se misturou com a água. Ela
engasgou, cuspindo, ergueu-se cambaleante e se afastou. Alguns passos adiante caiu de
joelhos e vomitou violentamente.
Não havia nada no seu estômago a não ser bílis. Rastejou até o riacho e esfregou as
mãos e depois o rosto com água e areia. Levantou-se de novo. Seus amigos a olhavam,
surpresos.
— Alguém viu - disse ela. - Bauchle Mayne. Mas eu o matei.
— Ah. - exclamou Quartz.
— Você me deu um outro presente - falou Satã. - Agora não preciso voltar para fazer
isso.
— Cale-se, Satã, ela nunca matou ninguém antes.
— Nem eu. Mas teria cortado a sua garganta se por uma só vez ele tivesse me
afrouxado as correntes o bastante para alcançá-lo!
Wess cruzou os braços sobre si mesma, tentando aliviar a dor nas costelas.
Imediatamente, Quartz estava ao seu lado.
— Você está machucada. . . por que não me disse?
Wess sacudiu a cabeça, incapaz de responder. E desmaiou.
Quando acordou, já era de tarde e ela estava deitada à sombra de uma árvore alta, no
meio dos seus amigos. Os animais pastavam ali por perto, e Aristarchus, sentado numa pedra
à beira d'água, desembaraçava o pêlo. Wess levantou-se e foi se sentar ao lado dele.
— Você me chamou?
— Não - respondeu ele.
— Pensei ter ouvido. . . - Ela estremeceu. - Não tem importância.
— Como está se sentindo?
— Melhor. - haviam lhe enfaixado as costelas bem firme - Quartz sabe como curar
muito bem os doentes.
— Ninguém está nos seguindo. Aerie olhou não faz muito tempo.
— Isso é bom. Posso lhe pentear as costas?
— Seria muita gentileza.
Em silêncio, ela o penteou, mas não estava muito atenta ao que fazia. Na terceira vez
que o pente ficou preso no emaranhado dos pêlos, Aristarchus protestou baixinho:
— Irmã, por favor, esse pêlo que você insiste em puxar está preso na minha pele.
— Oh, Aristarchus, sinto muito. . .
— O que está acontecendo?
— Não sei - falou ela. - Eu sinto. . . quero. . . eu.. .
Ela lhe entregou o pente e se levantou.
—Vou andar um pouco. Não me demoro.
Na calma da floresta, ela se sentiu mais tranqüila, mas algo a estava atraindo, algo que
ela não podia ouvir a estava chamando.
Então, ela ouviu alguma coisa, um farfalhar de folhas. Afastou-se da trilha, escondeu-
se e esperou.
Lythande vinha caminhando lentamente, cansada. Wess ficou tão surpresa que não
falou nada quando a feiticeira passou por ela, mas, alguns passos à frente, Lythande parou,
olhando ao redor e franzindo as sobrancelhas:
— Westerly?
Wess adiantou-se:
— Como soube que eu estava aqui?
— Eu a senti perto de mim. . . Como me achou?
— Pensei que alguém me chamava. Foi uma magia?
— Não. Apenas esperança.
— Parece tão cansada, Lythande.
— Fui desafiada. E aceitei o desafio.
— E venceu. . .
— Sim - Lythande sorria com expressão amarga. - Continuo errante pela Terra e
esperando os dias do Caos. Se isto é vencer, então eu venci.
— Venha para o nosso acampamento. Descanse e coma conosco.
— Obrigada, irmãzinha. Descansarei com vocês. Mas, e o seu amigo. . . encontraram?
— Sim. Ele está livre.
— Escaparam todos ilesos?
Wess sacudiu os ombros, depois se arrependeu:
— Desta vez, quebrei minhas costelas. - Não queria falar das suas mágoas mais
profundas.
— E agora. . . estão indo para casa?
— Sim.
Lythande sorriu.
— Eu devia saber que vocês achariam a Passagem Esquecida.
Caminharam juntos em direção ao acampamento. Um pouco assustada com a própria
ousadia, Wess segurou a mão da feiticeira. Lythande não recusou, ao contrário, apertou sua
mão suavemente.
— Westerly. - Lythande olhou-a de frente, e Wess parou. - Westerly, você voltaria
para Santuário?
Em pânico, ela perguntou:
— Por quê?
— Não é tão ruim quanto parece no princípio. Poderia aprender muitas coisas. . .
— Como ser uma feiticeira?
Lythande hesitou.
—Seria difícil, mas. . . possível, talvez. É verdade que os seus talentos não devem ser
desperdiçados.
—Você não compreende - falou Wess. - Não quero ser uma feiticeira. Não voltaria
para Santuário se o motivo fosse esse.
Lythande falou, finalmente:
— Não é só por isso.
Wess pegou a mão de Lythande e, levando-a aos lábios, beijou-lhe a palma. Lythande
acariciou-lhe o rosto. Wess estremeceu ao toque.
— Lythande, não posso voltar para Santuário. Você seria o único motivo para eu estar
lá. . . e isto me modificaria. Já me modificou. Não sei se voltarei a ser a mesma, mas vou
tentar. A maior parte do que aprendi lá, preferia não ter conhecido nunca. Você precisa me
entender!
— Sim - concordou Lythande. - Não é justo pedir isto.
— Não é que eu não o ame - disse Wess, e Lythande olhou-a interessada. Wess
respirou fundo e continuou: — Mas o que sinto por você mudaria também, como eu mudei. E
deixaria de ser amor. Seria. . . necessidade, exigências e inveja.
Lythande sentou-se na raiz de uma árvore, os ombros caídos, olhando para o chão.
Wess ajoelhou-se ao lado dela e afastou-lhe os cabelos da testa.
— Lythande. . .
— Sim, irmãzinha - murmurou a maga, como se estivesse cansada demais para falar
alto.
— Você deve ter coisas importantes para fazer aqui.
De outra forma, como ela suportaria? Pensou Wess. Ela vai rir do que você vai lhe
perguntar, dizer que é tolice, e impossível.
— E Kaimas, minha terra.. . você ia achar graça. . .
Ela parou, surpresa consigo mesma pela sua hesitação e pelo medo.
— Venha comigo, Lythande — falou ela de uma só vez. – Venha para casa comigo.
Lythande a olhava, com uma expressão indecifrável:
— Você sabia o que estava dizendo. . .
— É tão bonito, Lythande. E calmo. Já conhece metade da minha família. Gostaria dos
outros também. Você diz que tinha o que aprender conosco.
—. . .quando disse que me amava?
Wess tomou fôlego. Debruçou-se e beijou Lythande rapidamente, depois outra vez,
mais devagar, como desejara fazer no momento em que a vira.
Afastou-se um pouco:
— Sim - falou. - Santuário me fez mentir, mas não estou em Santuário agora. Se tiver
sorte, jamais voltarei lá, e nunca mais terei que mentir.
— Se eu tivesse que ir. . .
Wess sorriu.
—Eu tentaria convencê-la a ficar. — Ela tocou os cabelos de Lythande. - Mas não a
prenderia. Enquanto quisesse ficar, e sempre que quisesse voltar, haveria um lugar para você
em Kaimas.
— Não é da sua resolução que duvido, irmãzinha. É da minha. E da minha própria
força. Acho que não gostaria de deixar a sua terra, tendo ficado por lá algum tempo.
— Não posso prever o futuro - falou Wess. Depois riu-se do que estava dizendo para
uma maga. - Talvez você possa.
Lythande não respondeu.
— Tudo que sei - continuou Wess - é que qualquer coisa que façamos pode ser motivo
de dor. Para nós mesmas, para uma pessoa amiga. Mas não se pode fazer nada.
Ela se levantou.
— Venha. Venha dormir, comigo e com meus amigos. E depois iremos para casa.
Lythande levantou-se também.
— São tantas as coisas que você não sabe a meu respeito, irmãzinha. Tantas coisas que
poderiam magoá-la.
Wess fechou os olhos, fazendo um pedido, como uma criança ao ver a primeira estrela
no céu. E tornou a abrir os olhos. Lythande sorriu:
— Irei com você. Mesmo que seja por uns tempos.
De mãos dadas, reuniram-se aos outros.
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