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SOBRE CRISE, POSSIBILIDADE DE

COLAPSO DA SOCIEDADE INDUSTRIAL


E PROBABILIDADES-NECESSIDADES
DE TRANSFORMAÇÃO
REVOLUCIONÁRIA E ECOSSOCIALISTA
por Alexandre Araújo Costa
Há alguns anos lancei, em uma rede social, a seguinte provocação:
“Desconfiarei de manifesto ou resolução de qualquer organização política
que não comece com 400 ppm de CO2 na atmosfera e não termine pelo
nome de um morto pelas forças de repressão (ou o contrário)”. Neste texto,
pretendo desenvolver essa ideia de conexão entre a crise ecológica (ou,
melhor colocado, colapso ecológico) e a recente hipertrofia do aparelho
repressor de Estado, bem como lançar outras, a respeito das possibilidades
de solução/saída revolucionária versus colapso da forma-capital e da
sociedade.

I – O “HAMSTER IMPOSSÍVEL” TEIMA EM CRESCER


Existe no YouTube um breve vídeo intitulado “O Hamster Impossível”. Nele,
é mostrado que um hamster normal duplica de peso a cada semana no
início de sua vida, processo que cessa após atingir a puberdade. O vídeo
prossegue, imaginando o que aconteceria se um “hamster impossível”
seguisse crescendo nessas taxas exponenciais indefinidamente. [Aviso de
Spoiler] Em pouco tempo, a demanda diária de alimento do “hamster
impossível” atingiria bilhões de toneladas. Ele precisaria comer em um dia
toda a produção de grãos do planeta e ainda assim permaneceria com fome.
A reflexão que fica é: pode a economia crescer para sempre num
planeta limitado?

1. O capitalismo se caracteriza pela reprodução ampliada, isto é, pela


possibilidade de incorporação de parte da mais-valia gerada pela
componente variável do capital (a força de trabalho humana) a cada novo
ciclo produtivo. O crescimento emerge como traço essencial da forma-
capital, sem o qual esta tende a sucumbir. Esse crescimento implicou
alterações significativas na própria composição do capital, com a parte
constante (empregada na aquisição dos meios de produção) aumentando
desproporcionalmente em relação à variável, ao mesmo tempo assegurando
produtividade e taxas de mais-valia (relação entre o lucro e o capital
variável) crescentes mas conduzindo a taxas de lucro (razão entre o
lucro e o capital total, isto é, variável mais constante) decrescentes. A
automação, informatização e as quantidades gigantescas de trabalho morto
levaram essa tendência a níveis inéditos ao final do século XX e,
especialmente, no inicio do século XXI. Ao mesmo tempo que as taxas de
lucro caíam, impondo ao capital que soluções para tal contradição fossem
encontradas associadas a ainda mais crescimento, esta expansão em si não
pode permanecer de modo indefinido. As mudanças operadas no
capitalismo global da segunda metade do século XX até hoje são
extremamente aceleradas e marcam precisamente as diversas adaptações
do sistema ao quadro de crise (constantemente fomentada pela contradição
fundamental do modo de produção, isto é, a socialização da produção e a
manutenção da apropriação privada e pela tendência ao declínio da taxa de
lucro).

2. Esse “trabalho morto” (ou capital constante) se põe não apenas a


vampirizar a parte variável do capital, mas a demandar vorazmente o
sangue da natureza ao redor. Chega um momento em que, para o vampiro
hipertrofiado do capital, esse “sangue da natureza” se torna insuficiente e
uma vampirização do trabalho vivo requer a aplicação de regimes de
superexploração que pareciam ter sido abolidos (inexistência de direitos,
ultraprecarização, trabalho análogo ao escravo, jornadas de trabalho
extremamente extensas). Nesse momento, a sede insaciável faz o vampiro
se debater de forma violenta. E é esse tipo de crise, profunda, metabólica,
para além de estrutural, que se instaura.

3. Nenhum processo pode permanecer, em se dando dentro de um sistema


limitado, apresentando crescimento exponencial, isto é, em progressão
geométrica. Isso é fácil de ilustrar se considerarmos uma “economia”
hipotética, cujo PIB se inicie com o valor unitário e cresça a uma taxa de
meros 3% (que, em alguns casos, os “brilhantes” economistas capitalistas
consideram bastante modesta e que David Harvey aponta como o patamar
de crescimento mínimo para sobrevivência do sistema). Ao longo dos anos,
o tamanho dessa economia crescerá conforme a sequência [1 – 1,03 –
1,0609 – 1,092727...]. No vigésimo ano, ela já será 75% maior do que no
ponto de partida e no 39º ano terá triplicado de tamanho. Após 79 anos,
será 10 vezes maior e em um século terá se expandido mais de 18 vezes.
No final desse primeiro século bastam 2 anos para que a economia tenha
crescido (não em termos relativos, mas em termos absolutos) aquilo para o
que eram necessários 25 anos, no início. Dois séculos de crescimento
depois, o PIB já é 369 vezes maior do que aquele do começo da brincadeira.
Importante frisar: não importa quão pequena seja a taxa de
crescimento (se de 10%, 3%, 1%); por ser exponencial, em algum
momento valores impressionantemente altos e, como mostraremos,
proibitivos, emergem. Como veremos, num planeta finito, essa ideia de um
crescimento econômico sem fim, com demandas sempre crescentes de
fontes de energia e matéria-prima, é uma sentença de morte.

4. Se percebermos que a economia e a sociedade não pairam no ar, mas se


sustentam em cima de uma realidade material, imediatamente associamos
esse crescimento econômico a demandas cada vez maiores por
matéria-prima e por energia. Voltando ao exemplo anterior, se no início
de nossa simulação a produção de uma tonelada de aço e a geração de
1MW (Mega-Watt) de energia eram necessárias para sustentar a economia,
ao final – mantidos os bens, máquinas, tecnologias, demandas de produção
e consumo do início – serão precisos exatamente 369 toneladas de aço e
369 MW de energia, ao final. É evidente que variáveis diversas podem fazer
com que tal proporção não se mantenha (novas tecnologias, mais eficiência
energética e ou de processos industriais), mas certamente não são capazes
de impedir o crescimento total da demanda material e energética (na
verdade, alguns fatores podem jogar na direção contrária, como a
dificuldade maior em encontrar determinados recursos escassos ou de
extraí-los, etc.). A edição 2010 do Relatório Planeta Vivo, da Rede WWF, por
exemplo, já indicava que “a demanda humana por recursos naturais sobe
vertiginosamente e chega a 50% a mais do que o planeta pode suportar”.
Poucos anos depois, o chamado “dia da ultrapassagem”, a partir do qual a
humanidade apenas consome às expensas daquilo que a natureza é incapaz
de repor, retrocedeu mais um mês inteiro e hoje em 7 meses são
depletados os recursos que requerem um ano completo para serem
renovados.

5. Num dado momento, foram inviabilizados os modos de dominação


baseados em versões mais “humanizadas” do capitalismo, ao mesmo tempo
resultantes de uma correlação de forças específica entre a burguesia e as
organizações da classe trabalhadora e a necessidade de se vencer a
competição (pela consciência das massas) contra o chamado “socialismo
realmente existente” (regimes burocráticos da URSS e satélites). Deram-se,
em paralelo ao advento do neoliberalismo, a ruína do chamado “Estado do
bem-estar social”, a degeneração final da social-democracia em social-
liberalismo (ou mesmo neoliberalismo, sem justificativa do aposto “social”),
o quase desaparecimento dos partidos comunistas estalinistas (vários
repaginados em correntes burguesas do tipo social-liberal ou reduzidos a
grupos bem menores) num contexto de colapso da própria URSS e queda do
Muro de Berlim. Naquele momento, surgiram novas possibilidades de
incremento da exploração, não só via mais-valia relativa, mas via mais-valia
absoluta, e pelo aparecimento de um amplo campo de expansão do
mercado capitalista em processo de globalização.

6. A financeirização do capital se completou na escala global. O próprio


imperialismo, que no início e meados do século era baseado fortemente nos
Estados nacionais, que serviam, além de aparatos militares, como agentes
econômicos centrais via capitalismo de Estado por serem estes capazes de
reunirem grandes somas de capital para investimentos em infraestrutura,
sofreu mudanças expressivas. Com fusões, compra de participações em
outras companhias, flexibilização de regras econômicas em diversos
Estados nacionais, aparecimento de acordos comerciais, etc., corporações
globais se estabeleceram cada vez mais como força dominante, fortemente
centradas nos bancos. Mas é um erro achar que esse capital é puramente
“fictício”. Sua acumulação é hoje fortemente mediada por vias
especulativas, virtuais, digitais, mas não se desconecta da produção de
mercadorias e da apropriação de riqueza na forma de bens materiais.

7. Não pode haver, no entanto, qualquer ilusão de que a transformação do


capital em uma forma “especulativa” o torne menos destrutivo do ponto de
vista ecológico. Pelo contrário, a deslocalização do capital, com os impactos
de atividades predatórias ficando cada vez mais distantes dos centros de
decisão econômica e política, amplia a criação de zonas de sacrifício,
aprofundamento do racismo ambiental, devastação de biomas inteiros, etc.
O capital migrante produz uma política de terra arrasada, com agronegócio,
mineração, extração de petróleo e gás e outras atividades abertamente
predatórias deixando desastre após desastre antes de seguir para outras
paragens, ao mesmo tempo em que as ações dessas companhias são
determinadas por fluxos de capital internacional e intervenções
especulativas na bolsa por acionistas que – pela distância geográfica e
privilégio de classe – na maioria das vezes estarão entre as últimas pessoas
a sentirem as consequências destrutivas dessas atividades. Atividades que,
reitero, são intensificadas exponencialmente por imposição do “hamster
impossível”.
II – DA ESPECULAÇÃO COM DINHEIRO À ESPECULAÇÃO COM O
SISTEMA TERRA
Uma nova palavra precisa ser incorporada ao debate de projeto societário
para o século XXI: Antropoceno, uma nova etapa geológica da história do
planeta (por enquanto vista como uma nova “época” na hierarquia de
subdivisões geológicas). Evidências existem de que a intervenção da
humanidade sobre o Sistema Terra, multiplicada pelo ciclo acelerado,
incessante e crescente de produção-consumo-descarte concorrem ou
mesmo superam de longe a dimensão dos próprios fluxos de matéria e
energia mantidos aproximadamente constante durante o Holoceno, época
geológica anterior. Conclusões políticas muito importantes advêm do
entendimento do Antropoceno e é preciso entendê-lo para acertarmos o
passo...

1. Incorporados organicamente ao mercado global os países do Leste


Europeu e quebradas barreiras comerciais e restrições aos fluxos de
capital, por um certo período, a reprodução capitalista adquiriu um
caráter brutalmente especulativo. Não que esse traço tenha
desaparecido, mas o sistema, após sucessivas crises, certamente
percebeu a vulnerabilidade implicada em reprodução ampliada do
capital instantânea, meramente especulativa e sem lastro nos
processos de produção real de mercadoria (após rompimentos
consecutivos de bolhas especulativas e quebras sucessivas de bancos,
que foram socorridos novamente pelos Estados nacionais às
expensas das classes que vivem do trabalho, claro!). Um certo
balanço entre a – intrínseca, nesta etapa de desenvolvimento do
capital – característica especulativa e a expansão da produção ou
crescimento real mostrava-se necessário.

2. Ao mesmo tempo, exércitos produtivos imensos em potencial,


particularmente o chinês, eram retirados da cama. Nesse novo
encaixe econômico global, a China, que chegou a experimentar taxas
de crescimento do PIB da ordem ou acima de 10% anuais por duas
décadas, transformou-se no grande galpão de fábrica mundial. Ao
mesmo tempo, países como o Brasil expandiram a sua fronteira de
agronegócio, servindo de fazenda global (grande parte da soja
brasileira – transgênica – exportada para a China vai para ser
transformada em ração para porcos, cuja criação aumentou para
suprir a demanda por mais consumo de carne pelos chineses). Esse
novo ciclo de crescimento capitalista impôs novas pressões –
inéditas – sobre o sistema Terra e, como mostraremos, aguçou
brutalmente a crise ecológica no período recente colocando a
biosfera global (pelo menos como a conhecemos) numa perigosa rota
de colapso.

3. Resgata-se, aqui, a ideia de que o crescimento capitalista – a não ser


que este fosse “puramente especulativo” – implica em aumento da
demanda por matéria-prima e energia. Como regra global, do Canadá
à Rússia, do Brasil e países andinos à África, da China ao Ártico, a
combinação de ataques aos ecossistemas se dá pela busca de novas
jazidas de minérios e de combustíveis fósseis, pela construção de
novas grandes barragens para assegurar suprimento de água seja
para geração de energia, seja para os processos industriais e para
irrigação (ou ainda abastecimento humano de grandes metrópoles) e
pela expansão da fronteira agropecuária.

4. Dentre as consequências imediatas dessa expansão, o capitalismo


requer cada vez mais território, o que fez com que o nível de
ocupação das terras continentais (excluindo as calotas polares)
ultrapassasse os ¾ globalmente (limitando a não intervenção
humana a algumas áreas desérticas ou semidesérticas e outras de
floresta tropical e boreal). A ocupação de terras para atividades
humanas, seja a instalação de cidades, de infraestruturas que
incluem estradas, barragens etc. e principalmente áreas para
agropecuária, vem encurralando a biosfera terrestre contra a parede.
Em menos de cinco décadas, enquanto o Brasil perdia mais de 20%
da Amazônia e impressionantes 50% do cerrado, o mundo assistia à
dolorosa redução de 58% nas populações silvestres de vertebrados,
levando incontáveis espécies à ameaça de extinção ou à sua extinção
efetivamente. O controle violento da biosfera pela humanidade
assume colorações dramáticas quando dados científicos revelam que
96% da biomassa de mamíferos é “domesticada” (36% de humanos,
60% de gado e domésticos, restando somente 4% para animais
silvestres) e que 70% da biomassa de aves está nos frangos
enquanto os 30% que sobram ficam com todas as demais espécies de
pássaros.

5. A combinação mortífera de destruição e degradação de habitats,


caça/pesca predatórias/insustentáveis, introdução de espécies
invasoras (dos gatos domésticos que ganharam não apenas as ruas,
mas os bosques e outros biomas, às espécies trazidas na água de
lastro de navios), mudança climática antrópica, poluição, proliferação
de doenças, redução da diversidade genética das populações colocou
as taxas de desaparecimento de espécies num patamar 100 a 1000
acima daquilo que seria considerado “natural” e já produz aquilo que
ficou conhecido como a 6a grande extinção, um evento com
impacto, sobre a biosfera terrestre, de magnitude comparável ao
choque da Terra com um asteroide há 66 milhões de anos atrás,
evento que varreu do planeta a maior parte dos dinossauros e outras
formas de vida de então (encerrando a Era Mesozoica e iniciando a
Era Cenozoica).
6. Paralelamente, o consumo de água doce cresceu cerca de seis vezes
nas últimas cinco décadas (enquanto a população pouco mais do que
duplicou no mesmo período). Hoje cerca de 60% dos rios é barrada
em algum ponto. A demanda global de água para atividades humanas
(agropecuária, atividades industriais incluindo geração de energia,
consumo doméstico etc.) é hoje estimada como algo em torno de 2,6
milhões de quilômetros cúbicos por ano, algo da ordem de magnitude
do ciclo hidrológico global, que movimenta – da evaporação e
evapotranspiração à precipitação na forma de chuva, neve etc. – 4
milhões de quilômetros cúbicos de água. Nesse contexto, a tragédia
do Mar de Aral, exaurido pela demanda de irrigação para produção de
algodão e outros produtos agrícolas na “finada” União Soviética é ao
mesmo tempo uma amostra da tragédia da crise hídrica global e uma
eloquente afirmação de que um novo projeto societário (socialismo
ecológico, ecossocialismo, ou “socialismo do bem viver”) precisa
romper com os traços predatórios e desenvolvimentistas herdados
carregados por grande parte da esquerda e fortemente
característicos do que se convencionou chamar “socialismo real”.

7. O uso do termo “metabolismo” como chave interpretativa para a


crise ecológica (ou colapso) me parece bastante adequado. Para além
do crescimento da demanda “de entrada” no processo produtivo
(entram matéria-prima, como constituinte material na produção, e
energia, necessária para que as transformações que esta implica
ocorram), há um fortíssimo crescimento nos rejeitos do processo
produtivo, atestando a ruptura do metabolismo existente entre a
sociedade e o restante da natureza. Esse metabolismo, como o de um
ser vivo que obtém o alimento e elimina seus excretas para que estes
sejam reprocessados no ambiente, deveria permanecer num estado
de equilíbrio. Os fluxos de matéria e energia para dentro e para fora
da sociedade (ou mais exatamente dos processos produtivos que a
sustentam) deveriam se ajustar à capacidade de reposição de
recursos renováveis e de processamento de rejeitos pelo ecossistema
global. Mas é evidente que isso não se dá no presente. Longe disso.

8. A contaminação química do ecossistema terrestre é global. São


exemplos o plástico nos oceanos, sendo que hoje em dia os oceanos
contêm uma tonelada desse material para cada cinco toneladas de
peixe, com tendência às duas curvas se encontrarem em torno de
2050, mantidos os ritmos atuais de depleção dos estoques pesqueiros
e de aumento da massa de plástico despejadas nos mares. Metais
pesados e outras substâncias tóxicas estão presentes no solo, rios e
oceanos e penetram por toda a biota via cadeia alimentar. O ozônio
(desejável em camadas elevadas da atmosfera mas extremamente
prejudicial próximo à superfície) produzido por reações fotoquímicas
que se originam em motores e caldeiras de combustão gera smog
(como o que literalmente obstrui a visão em Beijing e outras grandes
cidades da China e outros países) e provoca doenças respiratórias. A
mudança na composição química da atmosfera se dá de forma
múltipla: a quantidade de aerossóis (particulado líquido e sólido em
suspensão) se multiplicou brutalmente com os processos industriais,
combustão de combustíveis fósseis e queimadas; gases que não
existem naturalmente agora fazem parte do ar que respiramos,
particularmente os halocarbonetos (que, em seu conjunto, são gases
de efeito estufa e que entre os quais estão os CFCs responsáveis pela
degradação da camada de ozônio estratosférico) e aumentaram
vertiginosamente as concentrações de gases como óxido nitroso
(resultante da decomposição de fertilizantes e outros agroquímicos
nitrogenados), metano (emitido em associação com atividades
agropecuárias) e, claro, dióxido de carbono, ou CO2. Além da
influência brutal sobre o clima (os três últimos citados são gases de
efeito estufa), o excesso de CO2 na atmosfera leva a que este se
dissolva nos oceanos, acidificando-os (o pH oceânico já diminuiu 0,1
desde o período pré-industrial, o que implica em um aumento no nível
de acidez em quase 30%). À contaminação química, soma-se a
contaminação radioativa, associada aos sucessivos testes nucleares e,
claro, aos acidentes e vazamentos em reatores, como os casos
trágicos de Tchernobyl e Fukushima. Ao se ter a humanidade (ou
mais precisamente o capital) pressionando o ecossistema global
como uma força de escala geológica, interferindo decisivamente (e
em vários casos de forma dominante) nos ciclos biogeoquímicos e
alterando a própria termodinâmica planetária, alguns cientistas
propuseram que se caracterize o presente como uma nova época
geológica, distinta do Holoceno (período de cerca de 10 mil anos de
estabilidade climática ao longo do qual a civilização humana
floresceu): o Antropoceno, conforme a designação proposta por
Crutzen e Stoermer.

9. Alguns cientistas propuseram a existência de chamados limites ou


fronteiras do sistema Terra (fronteiras planetárias), que deveriam
ser respeitados(as) a fim de se manter a estabilidade do ecossistema
global. Esses limites seriam: a mudança climática, a acidificação
oceânica, a degradação da camada de ozônio estratosférica, os ciclos
do Nitrogênio e Fósforo, o uso de água doce, a mudança no uso e
ocupação do solo, a taxa de perda de biodiversidade, as emissões de
aerossóis e as “novas entidades” (o que inclui plástico,
medicamentos, enfim contaminação química, radioativa etc.). Para
alguns, os limites não chegaram a ser estimados quantitativamente,
mas dos que o foram, pelo menos 3 já foram ultrapassados, a saber:
o clima (a concentração atmosférica de CO2 não deveria ter
ultrapassado 350 partes por milhão e beira os 400 ppm na média
anual), o ciclo do Nitrogênio (cuja remoção da atmosfera não deveria
ter ultrapassado 35 milhões de toneladas e já chega a 121 milhões) e
a taxa de extinção de espécies, que é pelo menos 10 vezes maior do
que a suportada pelo ecossistema global e de 100 a 1000 vezes
maior do que a do período pré-industrial. Pelo menos outros três
limites se encontram muito próximos de serem ultrapassados: ciclo
do Fósforo, ozônio estratosférico (“camada de ozônio”) e acidez
oceânica. A quantidade de Fósforo fluindo para os mares já é cerca de
80% do valor “permitido”. A concentração de ozônio na estratosfera,
embora a redução tenha sido contida nas últimas décadas após a
entrada em vigor do Protocolo de Montreal, não pode cair em mais do
que 2,4%. O nível de acidez dos oceanos do planeta, avaliado pela
relação com a saturação para a aragonita (mineral que compõe as
conchas, os exoesqueletos e várias estruturas de um sem número de
organismos marinhos) aumento em 80% da “distância” entre as
condições pre-industriais e o limite seguro. A situação de outros dois
está longe de ser confortável (avalia-se que dois terços da água doce
globalmente disponível já esteja comprometida com atividades
humanas, principalmente agropecuária e processos industriais e de
geração de energia, além do uso doméstico) e, como citamos,
ultrapassamos os três quartos na proporção de ocupação das terras
continentais. Dois limites (referentes às emissões de aerossóis e à
contaminação química do ecossistema global) não foram estimados
quantitativamente, mas isso não é menos preocupante. Não se sabe
qual o nível “seguro” da presença de várias substâncias tóxicas no
ambiente e muito menos temos ideia de quais os riscos envolvidos no
chamado “efeito coquetel”, isto é, a produção de novas substâncias
por reações químicas que ocorrem entre essas mesmas substâncias.

10.A ultrapassagem perigosa dos limites do Sistema Terra funciona,


nesse sentido, com a mesma lógica especulativa aplicada ao sistema
financeiro, ao mercado de ações e outros. Como muitos capitalistas
no mercado financeiro, , em relação à natureza o capital age de
forma arriscada, irresponsável, na prática se baseando na
expectativa de que as probabilidades se materializem, sempre, a seu
favor. A biosfera terrestre é a aposta que pode ser perdida nesse
enorme cassino. Especula-se com as (extremamente baixas) chances
de que se possa ultrapassar a concentração segura de CO2 ou de
ozônio estratosférico e, com a “graça” de alguma tecnologia ainda
não existente, se possa ou retornar a patamares seguros no futuro ou
resistir aos impactos. A aposta, baseada apenas no desejo, nas
possibilidades de “adaptação” é falsa, ignora as leis da Física e a
dinâmica biogeoquímica dos sistemas naturais. Não considera, ao
contrário do que se deveria, as chances muitíssimo maiores de que as
mudanças ora em curso marchem no rumo da irreversibilidade e que
sejam profundamente danosas, a curto, médio e longo prazo para a
humanidade e, não custa lembrar, toda a complexa teia de vida que
recobre o planeta. Uma esquerda em consonância com seu tempo,
neste século XXI, precisa fugir dessa lógica antimaterialista,
irresponsável e especulativa, dessa fé cega em alguma solução
tecnológica milagrosa, de que se tem o “controle da situação”. É
preciso pensar de maneira radicalmente distinta da lógica do
capital, não só acerca das relações entre nós, humanos, mas
acerca da nossa relação com o restante da natureza.

III - DE 400 PPM A AMARILDO. DE MARIANA A MARIELLE.


1. A sustentação de um sistema produtor de mercadorias que requer
crescimento infinito e aceleração do ciclo de produção-consumo-descarte
não seria possível sem fontes de energia abundantes, economicamente
viáveis e de fácil acesso e utilização. Os combustíveis fósseis, cujo uso
esteve intrinsecamente ligado ao estabelecimento da primeira revolução
industrial, seguem sendo a principal fonte de energia neste século XXI,
respondendo por 81% da demanda energética global. Ao se combinar com
oxigênio durante a combustão, produzem dióxido de carbono, que vem
sendo emitido em quantidades crescentes nos últimos séculos. A taxa atual
de emissão desse gás hoje em dia pelas atividades humanas (queima
desses combustíveis, desmatamento etc.) gira em torno de 40 bilhões de
toneladas por ano (algo cerca de até 200 vezes o que é emitido globalmente
por vulcões, por exemplo). Esse gás, assim como outros gases de efeito
estufa de vida longa (metano, óxido nitroso e halocarbonetos) não muda de
fase nem reage quimicamente em quantidades significativas na atmosfera
terrestre, o que faz com que nela se acumule.

2. O aumento da concentração de CO2 na atmosfera terrestre é um efeito


colateral extremamente relevante da fome de energia do capital, primeiro
por seu efeito ser ubíquo, de longo prazo e porque seu efeito não é sentido
todo imediatamente, sua permanência levando a um desequilíbrio
energético planetário com aquecimento crescente e aumento de
temperatura posterior às suas emissões. Segundo, pelo ineditismo. As
concentrações de CO2 se mantiveram quase constantes, com valores
próximos a 280 partes por milhão (280 litros do gás para cada milhão de
litros de ar) pelos mais de 10 mil anos compreendidos entre o final da
última era glacial e o início da era industrial. Do século XIX para cá,
cresceram, atingindo, nos últimos anos, valores que chegaram a ultrapassar
as 410 ppm, um aumento de mais de 45%. Isso é prova inequívoca de que o
sistema Terra (biota continental, principalmente florestas, e oceano, mesmo
com a captura desse gás que leva à sua acidificação) não consegue
processar emissões tão elevadas desse gás. Vale dizer que tais
concentrações não foram tão altas em pelo menos cerca de 3 milhões de
anos (quando há evidências de que o planeta era 3°C mais quente e com
oceanos 20 metros acima dos níveis atuais). Por último, e mais importante,
pelas potenciais consequências no que diz respeito a alterações no clima da
Terra.

3. Os efeitos das mudanças climáticas já se fazem presentes, confirmando


os alertas da comunidade científica, que vem emitindo avisos em tom cada
vez mais elevado há várias décadas. Ondas de calor são o produto mais
óbvio de um clima aquecido e estudos apontam que elas já estão cerca de 3
vezes mais frequentes do que no período pré-industrial. Suas consequências
podem ser terríveis como se viu na Europa em 2003 e no subcontinente
indiano em 2015, em que milhares de pessoas morreram de desidratação e
hipertermia. O ciclo hidrológico também é alterado com um deslocamento
para extremos de secas alternados por chuvas muito intensas concentradas
por ocasião de tempestades severas. Furacões e tufões, que se formam nas
águas quentes dos oceanos tropicais, também tendem a crescer em
intensidade como demonstram os exemplos recentes do Katrina, do Haiyan
(que matou mais de 6000 pessoas nas Filipinas), do Irma e do Maria. Como
resultado de temperaturas mais altas e secas mais prolongadas, o risco de
incêndios florestais também cresce. Escassez hídrica e insegurança
alimentar tendem a se exacerbar assim como a elevação dos oceanos a
mais longo prazo (segundo estudos paleoclimáticos, há 400 mil anos, última
vez que o planeta esteve de 1,5°C a 2°C mais quente do que as
temperaturas pré-industriais, os mares estavam de 6 a 13 metros acima do
nível atual), sendo essa soma de efeitos potencialmente capaz de gerar
ondas de migração de muitos milhões de pessoas.

4. As mudanças climáticas precisam ser uma pauta central da esquerda


revolucionária. Ao contrário do discurso romantizado do “capitalismo verde”
(contradição em termos), não estamos todos “numa mesma nave”, a não
ser que tal nave nos seja uma analogia dramática com o Titanic, que
efetivamente se espatifou num iceberg enquanto a orquestra tocava, mas
que contava com primeira, segunda e terceira classe; no qual existiam
portões que impediam os passageiros da terceira classe de terem contato
com os outros e que foram devidamente cerrados, para impedir o acesso
dos pobres aos botes salva-vidas. Mas tampouco é admissível a lógica
recuada, a ilusão reacionária no produtivismo e desenvolvimentismo e a fé
cega na tecnologia (como se esta, em si, não guardasse valor de classe) de
grande parte da esquerda. Lamentavelmente ignorante da materialidade do
mundo, incapaz de reconhecer a necessidade de salvaguardar as próprias
condições de subsistência da ampla maioria da população mundial (que
precisa de água, comida, energia e segurança contra eventos extremos),
objetivamente abre campo para concessões à burguesia. Como afirmei em
texto de polêmica contra as posições de Igor Fuser quando este criticava o
Greenpeace, caracterizo como “uma ‘esquerda’ tacanha, covarde, adaptada
e - essa sim, elitista – [que] prefere que a riqueza necessária para elevar as
condições de vida dos mais pobres a condições mínimas de dignidade
continue vindo (como se fosse suficiente!) na forma de migalhas caídas da
mesa em que o grande capital se refastela; prefere que sejam as sobras e
as esmolas (royalties?) do banquete das corporações que supram essa
necessidade. Ao invés de dizer claramente que, para respeitar os limites
materiais do metabolismo entre a sociedade humana e o restante da
natureza, os ciclos da água, do carbono, do nitrogênio e do fósforo e a
capacidade dos sistemas naturais em reciclarem as excretas de nossos
processos agrícolas, industriais, etc., é preciso parar de crescer e
desacelerar a locomotiva tresloucada do capital, arrancando a riqueza
diretamente do punhado de bilionários que a controla, a lógica dessa
esquerda envelhecida é a de que o banquete do capital deve se ampliar,
(de)predando o ecossistema global de forma ainda mais brutal, a fim de que
caiam mais migalhas no chão! Ao invés de colaborarem na construção da
necessária insurgência contra o poder do capital, contra as corporações,
contra a indústria de combustíveis fósseis e o sistema financeiro; na prática
se voltam contra as futuras gerações, contra os povos tradicionais, contra
os pequenos agricultores, contra o contingente cada vez maior de
refugiados climáticos e ambientais.”

5. A questão climática é, assim, uma questão de classe, de uma ponta à


outra: primeiro na origem, pela desigualdade das emissões. 100
companhias são responsáveis por quase 71% do que foi emitido e, destas,
somente 24 emitiram mais da metade, incluindo além das companhias de
carvão da China, Índia e Rússia, grandes petroquímicas como Exxon, Shell,
BP, Chevron, Total, PDVSA e Petrobrás. Somente 4 delas – Chevron, Shell,
Exxon e BP - são responsáveis por uma em cada 30 moléculas de CO2 hoje
na atmosfera! As emissões per capita do 1% mais ricos são 175 vezes
maiores que as emissões per capita dos 10% mais pobres.
Segundo, nos impactos. As pessoas mais pobres dos países mais pobres,
as mulheres, negros, negras e indígenas são e serão justamente os(as) mais
violentamente atingidos(as). É uma questão crucial para a classe
trabalhadora, pois mitigar e frear a crise climática é pré-condição para que
não herdemos da burguesia uma Terra em ruínas. Ademais, é impossível
“queimar combustíveis fósseis a favor dos trabalhadores”. Só a burguesia,
ensandecida que é, se dá ao luxo de explorá-los e queimá-los “como se não
houvesse amanhã”, quando sabemos – o que discutiremos em seguida –
que queimá-los até o fim é garantia segura de que não haverá! Uma
"revolução" que se limite a mudar as relações (jurídicas) de propriedade,
retirando os meios de produção da condição de propriedade individual para
coletiva para mim não passa de uma "reforma radical". É preciso ir além,
atacando as relações de fetichização e alienação e, além de suprimir o
aparelho de Estado atual, há que se substituir o aparelho produtivo atual
por outro em consonância tanto com a sustentabilidade do metabolismo
entre a sociedade humana e o resto na natureza (vencendo a alienação em
relação a ela) quanto com a necessária superação das relações alienadas
entre humanos.
6. No contexto dado, portanto, o Acordo de Paris é completamente
insuficiente. Se de um lado reconhece o alerta dos cientistas e incorpora
parcialmente a reivindicação dos países-ilha ao estabelecer como limites
para o aquecimento global 2°C e, preferencialmente, 1,5°C, por outro é
completamente frágil no que diz respeito a como assegurar tais objetivos.
Em primeiro lugar, o Acordo não é vinculante, isto é, não estabelece
obrigações e regras cujo descumprimento deixa o país que as violar sujeito
a penalidades (o que acontece nos acordos comerciais!). As metas de
reduções emissões são voluntárias e a soma das NDCs (contribuições
nacionalmente determinadas) não é suficiente para nos tirar da trajetória de
um aquecimento catastrófico. O texto do Acordo chega a se omitir numa
questão absolutamente óbvia: nenhuma menção é feita aos
combustíveis fósseis e à necessidade de abandonar o seu uso ou, pelo
menos a curto prazo, reduzi-lo drasticamente. Ainda assim, nada pode ser
pior do que as ações do governo Trump, de retirar o país do Acordo, no que
pode ser seguido tragicamente por Bolsonaro.

7. O negacionismo climático de Trump, Bolsonaro e outros é uma ameaça


terrível à civilização humana e à biosfera terrestre. Recentemente, o IPCC
lançou um relatório que deixou explícito o quanto de dano aos sistemas
humanos e naturais ocorrerá se o aquecimento global passar de 1,5°C ou,
pior, de 2°C. Esse mesmo relatório colocou claramente que para que o
limite de 1,5°C não seja ultrapassado é preciso que as emissões globais de
gases de efeito estufa sejam reduzidas pela metade até 2030 e que a
economia global passe a ser neutra em carbono já por volta de 2050. Se
isso de um lado traz a perigosa discussão das “soluções tecnológicas” para
a crise climática (BECCS, geoengenharia), por outro revela o abismo
existente entre o “american way of life”, a sociedade do superconsumo e do
descarte e o estilo de vida completamente insustentável e perdulário dos
mais ricos e as necessárias mudanças na sociedade para que evitemos as
piores catástrofes associadas ao aquecimento global. Ora, para que as
emissões efetivamente sejam cortadas pela metade em 2030, teríamos de
chegar a emissões per capita globais da ordem de 2,5 toneladas/pessoa/ano,
mas as emissões médias do habitante dos EUA chegam a impressionantes
16,5 toneladas/pessoa/ano.
8. Mas não é apenas a indústria de combustíveis fósseis a grande inimiga
nesse contexto. A agropecuária, dominada pelas monoculturas e pela
indústria da carne, é globalmente responsável por cerca de 24% das
emissões globais. Além do desmatamento, entram nessa conta também a
fermentação entérica que produz metano (no aparelho digestivo de animais
ruminantes, especialmente do gado bovino), a decomposição de resíduos e
as emissões de óxido nitroso associadas ao uso excessivo de fertilizantes
nitrogenados. No Brasil, o papel do agronegócio, é por sinal, amplamente
preponderante. Em nosso país, a agropecuária responde por cerca de
metade das emissões, sendo as fontes dominantes o desmatamento e a
fermentação entérica.
9. Também é necessário apontar o caráter eminentemente destrutivo da
Mineração, especialmente de grande escala. Globalmente, a atividade
mineradora cresceu a um ponto tal que o deslocamento de sedimentos
associado a ela é três vezes maior que o transporte global de sedimentos
por rios. O crescimento da atividade mineradora e as ideias de expandi-las
para áreas como florestas e o piso oceânico está irremediavelmente
vinculado à demanda incessante por matérias-primas como ferro, alumínio,
lítio, metais diversos, terras raras e por energia, o que impulsiona a
mineração de carvão e urânio, por exemplo. Ao mesmo tempo, o
processamento de alumínio e ferro gusa demanda, em si, enormes
quantidades de energia, o que impõe uma pressão ainda maior para o uso
de carvão e outras fontes fósseis. A aceleração desse processo multiplica a
degradação ambiental e poluição associadas à mineração, produz um
número crescente de conflitos territoriais e aumenta os riscos associados,
como tragicamente ficou registrado com o crime da Samarco/Vale/BHP que
atingiu Mariana e comprometeu irreversivelmente o Rio Doce.

10. A expansão recente do capital, anteriormente mencionada, além de


engendrar uma crise ecológica sem precedentes, é pautada pelo
recrudescimento da violência, particularmente a de Estado. No Canadá, o
grande capital ganha acesso a novas terras para expansão da extração de
minérios e estabelecimento de grandes hidrelétricas para atender à
demanda de aumento da geração de energia somente ao romper o acordo
secular com as “first nations” (as primeiras nações) e que praticamente
limitou a ocupação branca original a uma faixa relativamente estreita
próxima à fronteira dos EUA. No Brasil, grandes barragens e agronegócio se
unem na tentativa de expulsar populações ribeirinhas e tribos indígenas de
suas terras, inviabilizando seus modos de vida tradicionais. E estes resistem
com a própria vida, crescendo sem parar a lista de assassinados por
latifundiários ou por forças repressoras do Estado (que, aliás, através da
ABIN, não se furtou em cooperar na espionagem das atividades do
Movimento Xingu Vivo, ao lado do Consórcio Belo Monte!). Nas grandes
cidades de quase todo o mundo, não há como a construção civil e a
especulação imobiliária abrirem novas fontes de lucro sem ser removendo
populações pobres e destruindo áreas verdes! O mercado do medo (mistura
apodrecida de mídia desumanizadora e que mercantiliza e banaliza a
violência com o setor de segurança privada) financia e dá suporte a uma
política deliberada de militarização. Mas a hipertrofia das forças repressoras
de Estado (maiores, melhor equipadas e mais brutalizadas e violentas),
claro, nem de longe se destina ao fim proclamado, mas se volta
fundamentalmente para conter qualquer traço de resistência anti-sistêmica
e para agir efetivamente a favor do capital nos processos de “higienização
social” que este reivindica. Ivan Tenharim, Amarildo, Nísio Guarani-Kaiowá,
Cláudia... O capital espremido pela sua própria necessidade insensata de
crescer, como serpente que não cabe mais na velha pela, se expande de
forma violenta. Impõe, como nos velhos processos de invasão da América
pelos europeus, a ocupação de novos espaços e a apropriação de recursos
que, para se tornarem acessíveis, requerem a destruição (inclusive) física
dos que vivem sobre eles.

11. De um lado, a reedição do genocídio indígena nas Américas e os


ataques a populações tradicionais nos países andinos (inclusive
patrocinados por governos com posições não alinhadas aos centros do
imperialismo, como o caso do Equador), no Brasil, na África, no Sul da Ásia e
nos países da Oceania, etc. Do outro, a política crescente de
encarceramento dos pobres e negros nos EUA e no Brasil, o extermínio da
juventude e dos pobres na periferia das grandes cidades. São ambas,
portanto, manifestação de um mesmo fenômeno. A urbanização, no
contexto atual, é um traço marcante da atual fase de desenvolvimento
capitalista (Há um século, 2 em cada 10 pessoas habitava a zona urbana e
nos anos de 1990 isso ainda representava menos de 40% da população
global, mas em 2010, mais da metade das pessoas já habitava as cidades e,
conforme projeções da ONU, isso crescerá para 60% em 2030 e 70% em
2050) e amplifica a desigualdade, segregação e concentração dos conflitos
nas cidades, ao mesmo tempo em que amplia, territorialmente, os conflitos
fora delas. Isto tudo liga Mariana a Marielle, liga o assassinato recente dos
companheiros do MST Rodrigo Celestino e José Bernardo e de cada liderança
indígena e sem-terra aos celulares chineses e à soja transgênica invadindo a
Amazônia e a Belo Monte... Usando o termo da etnia Hopi, quis se chamar
Antropoceno, mas mostrou ser Koyaanisqãtsi, palavra que, na respectiva
língua, significa “vida maluca, vida em turbilhão, vida fora de equilíbrio, vida
se desintegrando, um estado de vida que pede uma outra maneira de se
viver".

IV – UMA PANELA DE PRESSÃO LIGADA EM REDE


1. Um aspecto trágico - dentre tantos - do colapso ecológico do Antropoceno
é que ele não é uma catástrofe que chega gradualmente com a sociedade
unida, em laços de solidariedade, tendo oportunidade de gradualmente
tomar consciência dela e enfrentá-la; com a admissão, por parte de setores
cada vez mais amplos da sociedade, da necessidade de frear a máquina
produtiva-destrutiva do capital, que demanda eterna expansão em
contradição antagônica com a realidade de um planeta limitado; com o
entendimento, em particular, de que é insustentável para a natureza e para
o restante da sociedade manter uma minoria, uma elite econômica, com
padrões de consumo escandalosamente elevados. Pelo contrário, o colapso
ecológico do Antropoceno chega com a disputa de bens naturais, território e
recursos se agudizando. Chega trazendo secas cada vez mais severas que
ampliam a insegurança alimentar e hídrica, somando-se à pressão de outros
fatores, como a degradação e perda de fertilidade do solo e a demanda
gigantesca de água pela irrigação de grande escala de monoculturas, pela
mineração, pela indústria pesada como termelétricas, siderúrgicas e
refinarias de petróleo, etc. Chega associado a ondas de calor mortíferas que
matam agricultor(a), pescador(a), operário(a) da constução civil, mas não
mata político nem CEO engravatado. Chega produzindo tempestades cada
vez mais severas, como o Katrina, o Haiyan, o Patrícia, o Harvey, o Irma, o
Maria, que para além das mortes e prejuízos imediatos deixa sequelas de
mais longo prazo especialmente em países pobres (Mais de 6 meses após a
passagem do Maria, parcela significativa da população de Porto Rico ainda
se ressentia da falta de energia na rede e água na torneira).

2. Esse colapso chegará com populações cada vez mais depauperadas,


expulsas de suas terras de origem, com um número crescente de refugiados
de guerra e refugiados climáticos (estimativas dão conta de que estes
podem chegar a 140 milhões em 2050, especialmente na África, Ásia e
América Latina), conectando a aldeia indígena ou a comunidade camponesa
inviabilizadas por alguma grande barragem ou mina às periferias de cidades
inchadas, em que as pessoas são sistematicamente privadas de condições
dignas de vida. Chega alimentando conflitos, servindo de solo fértil a
ideologias de ódio, a micro e macrofascismos. Chega produzindo uma
barbárie em que militarização e xenofobia ganham apelo. É um caldo de
cultura terrível. Ou seja, o colapso do Antropoceno chega tornando
ainda mais difíceis as condições de luta contra ele próprio. Primeiro,
porque fortalece justamente as ideologias e correntes políticas mais alheias
à defesa da integridade do ambiente. Segundo, porque encurrala os setores
sociais e políticos potencialmente mais conscientes do ponto de vista
ecológico, com o debate climático, ambiental, hídrico, etc., sendo soterrado
ante a correria para salvar a própria pele e a das mínimas liberdades
democráticas e direitos. Nesse contexto, o Antropoceno é uma grande
chocadeira do fascismo. Uma introjeção final – para dentro da sociedade
humana – da mesma lógica de controle total, sujeição e eliminação do
diferente que já é aplicada à própria biosfera (e que torna o próprio
Antropoceno um grande fascismo voltado contra o planeta).

3. O apequenamento quase generalizado dos parlamentos e tribunais


mesmo em democracias burguesas mais tradicionais materializa uma
versão cada vez mais explícita e rebaixada do “comitê para gerir os
negócios comuns de toda a burguesia” (na verdade, até a gerência dos
negócios burgueses de longo prazo por vezes se perde em meio ao varejo
de interesses menores). Ao mesmo tempo, partidos de esquerda tradicional
(e organizações tradicionais dos trabalhadores como centrais e sindicatos)
viram sua base social se modificar (processo empurrado em parte pelas
próprias mudanças nas classes trabalhadoras, mas sobretudo pelo
crescimento do corpo de “funcionários” ligados a mandatos e gestões), se
afastaram do movimento de massas real a troco do favorecimento da luta
institucional, a gosto das burocracias sindical, parlamentar, de Estado, etc. e,
evidentemente, passaram a incorporar políticas e práticas das classes
dominantes. Chega a ser desnecessário dizer que o exemplo do PT, no Brasil,
é emblemático nesse sentido. Claro, o resultado não poderia ser outro
senão uma crise do sistema de representação, uma rejeição aos partidos
políticos não apenas como locus organizativo para lutadoras e lutadores,
mas uma identificação destes com o sistema apodrecido da burguesia. O
adequado estabelecimento do poder real das corporações nesse contexto, é
claro, passa por movimentações dentro e fora do Estado bem distantes do
alcance dos olhos e das massas, dos gritos, faixas e pedras.

4. Daí, não é somente do lado do capital (e do clima) que se pode


caracterizar o século XXI como a “Verdadeira Era dos Extremos” (usando o
termo cunhado por Hobsbawn para o século anterior). A reação aos ataques
do capital, que são cada vez mais brutais, explícitos e despudorados, tende
a ser cada vez mais explosiva. E auxiliado pela possibilidade de rápida
comunicação por meios digitais. O século XXI é uma panela de pressão
climática e social, ligada à internet! Nesse sentido, mais do que a
concentração crescente de proletários fabris que, em condições que
combinam automação com terceirização, não se mostra “concentrado”
como na tendência que culminou no fordismo, o que se avoluma é a grande
massa de jovens desempregados, especialmente na Europa; a multidão de
depauperados, removidos por obras e megaeventos ou
desalojados/refugiados do clima, as massas insatisfeitas com a
desigualdade aviltante e o seu abandono ante a ausência ou precariedade
dos serviços públicos mais essenciais de saúde, educação, transporte,
saneamento, etc. Com menos mediações, com crise de representatividade,
crise institucional, etc., os exemplos se avolumam e mostram a tendência à
panela de pressão: a Primavera Árabe e de Junho de 2013 no Brasil aos
coletes amarelos na França, a lógica é sempre explosiva, produtora de
polarização e disputa e com desdobramentos raramente previsíveis.

5. Esse ambiente, pelo visto, se apresenta fértil para a emergência de


grupos, táticas e manifestações fragmentadas e violentas. De um lado, é
necessário manter a clareza tanto das dificuldades que implicam confrontos
com o aparato militar (tendo a redução da base de apoio e participação
como efeito colateral), sabendo igualmente que o capitalismo não é
somente (é também) uma “sociedade do espetáculo” e, como tal, a
espetacularização da luta se mostra com alcance tão diminuto quanto um
seixo diante de um rochedo. É preciso, nesse sentido, apresentar-se como
“memória de longo prazo” da contestação ao sistema, ligando as
experiências anteriores ao presente das lutas concretas e ao futuro das
batalhas posteriores, sempre na perspectiva de ampliação do horizonte do
enfrentamento para o confronto necessariamente amplo, global e de fôlego
contra o sistema.

6. Em paralelo a conflitos potencialmente explosivos, formas de luta que


implicam em resistências em menor escala (do tipo ocupações, retomadas,
experiências fora do sistema de produção de mercadorias, etc.) também
emergem e oferecem a possibilidade de experimentos autoorganizados e
autogestionários. Também é evidente a limitação dessas iniciativas em,
mesmo coordenadas, se apresentarem como alternativa global ao sistema,
afinal nenhuma transformação revolucionária global, de fato, é possível sem
a expropriação do atual aparelho produtivo e sua reestruturação profunda.

7. Numa condição em que as formas de confronto e resistência descritas


anteriormente surgem, se alternam e se combinam, em que há a
possibilidade de os indivíduos-sujeitos de transformação interagirem entre si
em amplos ambientes não apenas de assembleias presenciais, mas
utilizando recursos digitais e considerando a rejeição a formas tradicionais e
verticalizadas de organização e política, uma reavaliação nos métodos,
práticas e mesmo formas organizativas da esquerda revolucionária urge. A
construção de mediações e consensos e mesmo a ideia de dissensos
cooperativos fatalmente aparecerá ante a dificuldade (eu arriscaria
impossibilidade) de, com muita frequência homogeneizar e até mesmo
centralizar, em obediência a uma única política, coletivos de natureza tão
diversos, nos quais, espera-se a própria esquerda revolucionária se insira. A
analogia com a Física é a de uma substância em estado gasoso, em alta
temperatura, contida em um recipiente, que se comunica com outro,
inicialmente vedado e com vácuo. Nesse caso, a aparente confusão das
moléculas individuais, com choques e deslocamentos aleatórios é que
produz o movimento em grande escala do gás em seu conjunto, para ocupar
o recipiente que inicialmente estava vazio. Certamente não se pode
conceber como adequada a esse tipo de desafio uma organização nos
moldes da que enfrentava o tzarismo em 1902, que demandava
centralização e para a qual os meios de comunicação eram cartas que
viajavam pela Rússia por dias a trem e/ou a cavalo...

8. Quem parece ter se adaptado de maneira muito mais rápida e eficiente a


esses tempos incertos, fluidos, turbulentos, explosivos e de mudanças
céleres e radicais de conjuntura foram setores que tradicionalmente
conformavam apenas uma franja minoritária, a extrema-direita. Além da
exploração de traços conservadores/reacionários (que dialogam com seu
programa) em diferentes sociedades, como a xenofobia, a homofobia, o
conservadorismo religioso, etc., é impressionante a capacidade de
manipulação da informação que se revelou. A partir de bases de
informações pessoais obtidos via redes sociais, este “big data” segue sendo
aproveitado de maneira científica e em muitos casos, cirúrgica. A produção
de boatos (“Fake News”) em consonância com as expectativas das pessoas
acelera a produção de identidades e a própria existência das redes sociais
favorece a aproximação de tipos muito díspares mas cujos afetos,
frustrações e sentimentos de vingança (seja contra imigrantes, contra
pessoas trans ou contra universitários cotistas) tinham o potencial de
unificação em torno de campanhas políticas de cunho ultraconservador a
neofascista habilmente construídas (Brexit, eleição de Trump, eleição de
Bolsonaro). A rede por si só é capaz de disseminar esses processos, mas as
informações transmitidas, seja à superfície (YouTube) ou no subterrâneo
(Whatsapp) tendem, obviamente, a ressoar e encontrar câmaras de
ressonância de maneira bem mais eficaz se houver grupos organizados
construindo o “trabalho de base”. O papel do fundamentalismo conservador
e outros grupos enraizados na mobilização cotidiana e construção de laços
de confiança parece ser, especialmente no Brasil, uma peça fundamental
nesse tabuleiro.

V – ESTRATÉGIAS PARA O FIM DO MUNDO?


1. Qualquer estratégia revolucionária para o Século XXI precisa ter como
pressuposto que a definição de “timing” hoje foge totalmente ao controle
humano. Apesar de a humanidade ter estabelecido como nunca antes um
suposto domínio ou “controle” sobre a Natureza, e de ter-se colocado de
fato como força de escala geológica em diversos aspectos do
funcionamento do sistema Terra (da composição química da atmosfera e do
balanço global de energia à taxa de extinção de espécies; do pH oceânico à
quantidade de sedimento movimentado; etc.), a verdade é que esse falso
“controle” libera/destrava/dispara, via mecanismos de retroalimentação
nesse mesmo sistema, processos que literalmente podem fugir de qualquer
contenção possível. É crucial aqui o entendimento do fenômeno batizado
por Izabelle Stangers de “Intrusão de Gaia”, isto é, da influência decisiva de
um Sistema climático desestabilizado, uma biosfera empobrecida, etc. como
agente transformador sobre nossa sociedade em substituição à noção
ultrapassada do ambiente natural como mero “palco” ou pano de fundo,
diante/dentro do qual a sociedade humana mudaria/evoluiria com total ou
elevada autonomia, com pouca ou nenhuma influência sobre a Natureza e
pouca ou nenhuma influência da Natureza.
2. Uma transformação (eco)socialista global perde, nesse contexto,
qualquer possível apelo de solução teleológica para um tempo indefinido,
pois tendo a “besta” do sistema climático sido acordada, objetivamente o
tempo passa a correr, acelerado e contra nós. Estratégias que envolvam
um lento processo de acumulação e convencimento não serão viáveis não
por constituírem um erro a priori, mas porque em não havendo mudanças
estruturais, revolucionarias, num determinado prazo, ora exíguo,
transformações objetivas, muito profundas, nas condições de existência da
sociedade humana, advirão. E, como debatido anteriormente, tais
transformações minam a própria possibilidade de manutenção da civilização
humana tal como a conhecemos, incluindo não apenas a demanda por
matéria e energia para reproduzir a vida material que se tem hoje, mas
limitando a própria produtividade do Sistema Terra na oferta de bens
essenciais como água e alimentação. Mira-se num objetivo futuro a partir de
hoje, como se fosse um “alvo fixo”, mas quando finalmente se lança a
flecha, ele já havia saído do lugar. Quanto mais tempo se passar
vivendo como se vive hoje menos se terá para assegurar outro
modo de viver amanhã. O capitalismo (e, na verdade, qualquer sistema
expansionista) não é apenas insustentável e inviável no futuro. Ele é capaz
de produzir a inviabilização de um futuro que não seja de profunda escassez.

3. Mesmo que um processo revolucionário global se instaurasse neste


momento e uma transição na organização social, política e na base
produtiva fosse rapidamente efetivada, ainda assim a humanidade teria de
lidar, por séculos e milênios com as consequências da mudança climática,
da perda de serviços ambientais de diversos ecossistemas, do
comprometimento (via poluição, sobreuso etc.) de corpos d’água
superficiais e subterrâneos, da redução das populações de polinizadores,
para ficar apenas em alguns exemplos. Em vários casos, uma restauração
forçada dos biomas, um retorno ao equilíbrio de balanço de radiação que
determina o clima etc., ou seja, as “soluções tecnológicas”. Evidencia-se,
portanto, nesse contexto, a necessidade de trocar o paradigma do “alvo
fixo” como objetivo estratégico, o “Socialismo” pensado como sociedade
fundada na abolição da propriedade privada dos meios de produção,
planificação centralizada, manutenção das cadeias produtivas herdadas do
capitalismo sob propriedade social a caminho do “reino da abundância” por
outro: o de um “alvo móvel”. A realidade ambiental, geológica, passou a se
deslocar na mesma velocidade ou até em velocidade maior do que as
mudanças na sociedade humana (incluídas aí as mudanças culturais). O
objetivo estratégico passa, assim, a mudar com o tempo. Entendo que
nesse sentido, mesmo tratado de forma relativizada, a promessa de
“abundância” precisa dar lugar à consciência de “suficiência”.

4. Alguns trabalhos científicos recentemente publicados tem endereçado de


forma muito mais direta do que até pouco tempo atrás projeções que
podem ser chamadas, sem rodeios, de catastróficas, “cenários de colapso”
ou de “cenários de fim do mundo” (entendido, claro, não como o fim
material do planeta Terra ou mesmo de todas as formas de vida, mas pelo
menos da sociedade industrial tal qual se estabeleceu até quiçá, no limite, a
extinção de nossa espécie e de uma franja significa da biota terrestre). O
primeiro que gostaria de mencionar foi publicado em 2012, por James
Hansen e colaboradores, na “Philosophical Transactions of the Royal
Society” estabelece com toda clareza o cenário colocado caso todas as
reservas fósseis sejam queimadas, levando a um aquecimento global de 10–
12°C: “[O planeta] pode se tornar simplesmente inabitável em muitas
áreas”. Baseado nas evidências de climas particularmente quentes (como o
Máximo Térmico do Paleoceno-Eoceno e o Ótimo Climático há cerca de 56 e
42 milhoes de anos atrás, respectivamente) e em modelagem, eles afirmam
que “um aquecimento global dessa magnitude tornaria a maior parte do
planeta simplesmente inabitável por humanos”. O segundo (em vias de ser
publicado em “Economical Ecology”) trata de “Modelagem da Desigualdade
e Uso de Recursos no Colapso ou Sustentabilidade das Sociedades”, de
autoria de Safa Motesharrei e colaboradores. Os autores concluem pela
insustentabilidade de sociedades muito desiguais (que mesmo que evitem
um “colapso tipo-N”, isto é, por esgotamento de recursos naturais, caem
pelo chamado “colapso tipo-L”, ou seja, por crise social). Chegam também à
conclusão de que é possível, sob determinadas condições, sociedades
“igualitárias” (ou “equitativas”) chegarem a uma condição de
sustentabilidade, desde que limitem a taxa de utilização dos recursos
naturais. Mas é evidente, no trabalho de Motesharrei et al., que há bem
mais cenários, especialmente sob desigualdade social, em que a sociedade
tende ao colapso.

5. Especificamente no que tange à questão climática (e, por tabela, da


acidificação oceânica) a depender do que for feito na próxima década ou
duas, o aquecimento global poderá ficar entre uma herança negativa,
deletéria e profundamente incômoda para até dezenas de gerações
seguintes ou pode vir a ser uma catástrofe completa, capaz mesmo de
inviabilizar boa parte do globo como habitat para o gênero humano. As
escolhas que mais salvaguardam o futuro (inclusive a velhice das gerações
atuais) são precisamente aquelas mais contrárias à lógica do mercado e da
acumulação de capital (e são absolutamente urgentes). São as que batem
de frente com incentivo ao consumismo, obsolescência programada,
propaganda, uso extensivo de embalagens, criação de falsas necessidades
em torno de itens fúteis e supérfluos, transporte individual, expansão das
fronteiras extrativista e agrícola, uso perdulário de matéria-prima e energia,
matriz energética concentrada e baseada principalmente em combustíveis
fósseis, excesso de produção, uso massivo de fertilizantes e outros
agroquímicos, jornadas de trabalho muito mais prolongadas do que o
necessário, etc. As escolhas que salvaguardam o futuro são as no sentido de
uma sociedade igualitária, democrática e que utiliza racional e
contidamente a matéria e a energia que o restante da natureza lhe fornece.
Há uma evidente aproximação entre a estratégia de saída realmente
necessária para evitar a catástrofe climática e uma plataforma
Ecossocialista. O problema é que a primeira (a catástrofe ou pelo menos o
estabelecimento irreversível de uma rota para ela) é iminente, enquanto a
segunda é elusiva.

6. Muitos debates têm sido travados sobre a possível evolução histórica da


sociedade humana no Antropoceno e há vários indícios de que a máxima
“(Eco)Socialismo ou Barbárie” é cada vez menos retórica. Com uma biosfera
empobrecida e uma disputa violenta por recursos, a organização dos de
cima em enclaves fortemente militarizados deverá ser a lógica dominante.
Na “sociedade-enclave”, “sociedade-fortaleza” ou “mundo-Elysium”, os
enormes privilégios dos muito ricos num contexto de pobreza generalizada
humana e não-humana (biosfera empobrecida, terra/Terra arrasada) só
poderão ser assegurados por uma violência organizada com uso de alta
tecnologia (localização, identificação facial, uso de drones, robôs militares
etc). Infelizmente, a realidade se parece cada vez mais com o cenário
distópico, aparentemente de ficção científica e a analogia do mundo real
com o filme “Elysium” (de Neill Blomkamp, o mesmo de “Distrito 9”), cada
vez mais forte. Mas obviamente essa não é a única possibilidade de
“barbárie”, dado que à “barbárie organizada” pela força do andar de cima
pode até sucumbir num cenário de colapso socioambiental mais profundo e,
nesse caso, a analogia cinematográfica tenderia mais a “Mad Max”.
O individualismo aparece aqui como ideologia que sequestra a consciência
social.

7. Uma virada global rumo ao Ecossocialismo não me parece nem de perto


factível na escala de tempo que mencionei e reside aí a grande contradição
quando pensamos nas estratégias de saída. Elas não podem ser concebidas
nos marcos do mercado. Mas tampouco podem se alicerçar em cenários
ilusórios, de transição gradual nem, principalmente, num milagre
tecnológico, ideologia que leva à rendição a pseudoalternativas, como a
energia nuclear (que coopta até cientistas/intelectuais de peso como
Lovelock e James Hansen) e a geoengenharia (o tipo de remédio que pode
ser tão danoso e amargo quanto a doença) ou a ilusões de sustentar uma
demanda energética igual ou – pior – maior do que a de hoje, através de
BECCS (bioenergia com captura e armazenamento de carbono).

8. O que pode vir a ser, nessas circunstâncias de êxito extremamente


improvável, uma "estratégia de saída/programa ecossocialista" para poder
ir além da afirmação e agitação de uma posição moral, que permita mais do
que, a posteriori, após o colapso, ficar no "eu te disse, eu te disse"? Será
que já precisamos dialogar com a estratégia necessária para um cenário de
catástrofe/colapso da sociedade industrial globalizada, reinante sob um
clima vários graus acima do pré-industrial e tendo sido incapaz de assegurar
mínima garantia de fornecimento de alimento e água para a maioria da
população mundial (que, mesmo nos números atuais ou projetados para
crescimento assintótico, não deveria ser, por si, fator de crise/colapso nas
circunstâncias de um clima estabilizado, do aproveitamento racional dos
fluxos naturais de matéria e energia, de racionalidade na produção e de
igualitarismo)? Como trabalhar num cenário em que a própria integridade
física, psicológica e social dos agentes de transformação hoje identificados
tenha sido comprometida (em maior escala e em maior profundidade do
que aquela temida por Trotsky para o proletariado, na iminência da II
Grande Guerra e que o inspirou a escrever o Programa de Transição)?

9. O Programa de Transição não contém uma receita pronta, mas bandeiras


adequadas para o período, a partir de um método (construção de pontes
entre as bandeiras atuais e os objetivos estratégicos de longo prazo) e de
um sentido de urgência. Daí, como colocar isso em prática nos dias de hoje?
Uma diversidade de ações precisa ser semeada imediatamente, ao mesmo
tempo. No movimento sindical e no mundo do trabalho, a política de “no
jobs on a dead planet” (“não haverá empregos em um planeta morto”) e a
defesa da redução radical da jornada de trabalho (incluindo a campanha por
“fins de semana de três dias”); aliando setores desempregados e da
juventude, campanhas por “empregos climáticos” (é fato que energias
renováveis descentralizadas como a solar residencial geram muito mais
empregos por unidade de energia gerada); junto à classe trabalhadora,
especialmente aquela ligada a setores como os de petróleo, mineração,
indústria da carne, etc., oferecer a proposta de transição justa; junto a
setores depauperados a criação de outras acomodações produtivas,
solidárias, incluindo permacultura, agricultura urbana e periurbana, etc.;
junto a comunidades tradicionais e povos originários, a defesa dos seus
territórios; junto a cientistas, acadêmicos, educadores e estudantes, a
valorização do conhecimento contra o obscurantismo (partindo do combate
ao Escola Sem Partido no Brasil e similares mundo afora, ao negacionismo
climático e outras formas de anticiência) e o estabelecimento de aliança
entre o conhecimento acadêmico e o popular (“ecologia de saberes”); junto
a negros e negras, levantar a potência do debate descolonial ao lado do
combate ao racismo; junto às mulheres e às LGBTs, o aprofundamento do
debate sobre como o patriarcado se articula com a dominação capitalista e
a destruição da Natureza, como a negação ao diverso típica do domínio
europeu-colonizador-masculino-branco-hétero-patriarcal-capitalista-
industrial só pode ser de fato rompida numa perspectiva amplamente
diversa, isto é, humanamente diversa e biologicamente diversa; junto às
lutas de consumo consciente, aprofundar o entendimento de como a
obsolescência programada, a produção mediante práticas de trabalho
escravo/semiescravo e destrutiva para o ambiente são regra e não exceção
e que não apenas a redução geral do consumo como a mudança radical da
produção e sua propriedade são o único caminho capaz de solucionar as
questões levantadas; junto ao movimento (tratado genericamente como)
ambiental nas suas vertentes atuais (preservacionista, animalista)
estabelecer conexões, radicalizá-lo, torna-lo aberta e conscientemente
anticapitalista, avermelhá-lo do mesmo modo que se há de verdear o
sindicalismo e os demais movimentos “vermelhos”.

10. É necessário, sobretudo que essas ações comuns sejam costuradas por
novas práticas, desde a construção de novas formas de poder político e de
democracia radical até novos arranjos produtivos. É preciso pensá-las com
base em preceitos de autonomia, encurtamento de cadeias produtivas,
autogestão, autonomia e soberania política, econômica, alimentar, hídrica
etc. É possível que, adentrando esse terreno, resgatemos o sentido mais
profundo que podem adquirir certas traduções do Manifesto Comunista que,
ao se referir à História como a História da Luta de Classes, colocam, por
exemplo, que o desfecho dessa luta é ou a “reconstituição revolucionária da
sociedade” (encontrada na tradução para o inglês, ao passo que certas
versões em português utilizam “reconfiguração” ou simplesmente
“transformação”) ou a “ruína comum das classes em contenda”. A divisão
da sociedade em burgueses e proletários na maior parte do mundo se deu
expropriando o indígena, expulsando o camponês, removendo a
comunidade rural e urbana para dar lugar à mina, ao campo de soja, ao
condomínio de luxo, à mega-hidrelétrica, ao mega-resort. Em suma, como
costuma dizer Eduardo Viveiros de Castro, começou pela “transformação do
índio em pobre”. A esquerda tradicionalmente assumiu como verdade
absoluta a irreversibilidade desse processo, isto é, que o índio pode virar
pobre, mas o pobre não pode “virar índio”. É aí que a luta pelo território no
seu sentido amplo, casada com a luta pela construção de uma identidade
comum alicerçada em novas relações produtivas e novas sociabilidades
construídas territorialmente que podem justamente produzir um novo
indígena (enraizado, solidário, consciente, cuidadoso), oposto ao alienígena
(alheio, alienado, perdulário, irresponsável) que é gerado continuamente
nos processos de produção, consumo e construção de sociabilidade no
domínio do capital. Um “devir índio”, para usar o termo de Danowski e
Viveiros de Castro em sua obra “Há Mundo Por Vir?”.
11. O sentido regenerador de uma estratégia revolucionária, no século XXI,
quiçá tenha de se propor a dar conta tanto da proposta de ação rápida
necessária para evitar um colapso societário de larga escala (o que pode ser
caracterizado como passagem a um estado global de “barbárie” ou “ruína
comum das classes em contenda”) quanto da possibilidade mesma de
regeneração, reorganização e reconstrução da sociedade humana ante um
quadro de “Terra arrasada”, que pode efetivamente resultar do
aprofundamento da crise ecológica. Essa dialética viva de enfrentar a
barbárie, com ela em curso e de ao mesmo tempo lutar rapidamente para
evitar um “adoecimento” ainda mais profundo do sistema terrestre pelo
vírus do capital e vislumbrar um possível cenário em que haja sequelas
irreversíveis dessa infecção sobre o organismo sócio-natural; precisa estar
presente. E que se tenha abertura, criatividade, criticidade, rejeição ao
sectarismo, à pequenez e ao dogmatismo para viver-pensar a “verdadeira
era dos extremos”. É a probabilidade-necessidade-esperança que se oferece.

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