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Formação em Teologia

Volume 13

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Formação em Teologia

Livros Históricos - Rute e Ester (Parte 6)


Primeiramente é preciso informar que não separamos esses livros na ordem
em que aparecem na Bíblia. A razão de termos esses dois livros unidos em nosso
estudo é destacar as histórias de duas personagens excepcionais, para refletirmos
sobre a importância da mulher na narrativa bíblica. Separaremos Rute e Ester em
dois grandes blocos, e colocaremos as informações pertinentes a cada um, de
acordo com o tema, em subtítulos.

I Rute
Data e autoria
“E sucedeu que, nos dias em que os juízes julgavam, houve
uma fome na terra; por isso um homem de Belém de Judá
saiu a peregrinar nos campos de Moabe, ele e sua mulher, e
seus dois filhos.” (Rute 1:1)

A própria introdução do livro coloca o acontecimento da história no período


dos juízes, mas não diz nada sobre sua autoria nem sobre a data em que foi escrito.
Na Bíblia hebraica, Rute aparece na terceira seção dos livros chamados Escritos, e
tradicionalmente, os judeus leem este livro durante a Festa das Semanas
(Pentecostes). Podemos nos perguntar: no Novo Testamento, durante a época do
Pentecostes, os discípulos reunidos liam o Livro de Rute enquanto esperavam pela
descida do Espírito de Deus? Isso é bem possível!
Apesar da autoria do livro ser desconhecida, este recebe o título de sua
principal personagem e não do autor. O Talmude identifica Samuel como o autor,
mas ele viveu muito antes, o que inviabiliza a possibilidade. Já a data é objeto de
profundo debate, enquanto alguns defendem que o livro foi escrito no início da
monarquia (cerca de 950 a. C.), outros estudiosos argumentam que o Livro de Rute
foi escrito num período posterior ao exílio (cerca 450 de a.C.).

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Muitos argumentos são usados na tentativa de comprovar a composição mais


recente ou mais tardia desse livro, e ao longo dos nossos estudos temos seguido a
posição de Dillard e Longman II que, baseados no pensamento do comentarista e
especialista bíblico, Hubbard, afirmam o seguinte sobre a composição do livro:

"O livro tem um propósito político: obter a aceitação popular do governo


de Davi através do apelo à continuidade da orientação de Javé nas vidas
dos antepassados de Israel e de Davi. Quando tal propósito político seria
mais útil? Hubbard revê as possibilidades e verifica que o tempo de Davi
estava se formando. Porém, ele nota que o único obstáculo para tal
contexto se encontra em Rute 4:7, que indica que o livro foi escrito na
época em que os documentos jurídicos escritos eram a norma e o
costume de tirar as sandálias já estava esquecido. Hubbard sugere que
4:7 é um dispositivo literário, mas ainda favorece a autoria salomônica
por causa desse versículo. Contudo, ele consente num tempo de
composição na época de Davi e aponta que ali havia de fato uma
necessidade, pelas seguintes razões: primeiro, os defensores da casa de
Saul provavelmente viam Davi como um intruso real e, portanto, a sua
nobreza precisava de ‘legitimação’; segundo, a base de poder de Davi
era formada em grande parte por estrangeiros. Rute, um paradigma do
compromisso de um estrangeiro com Israel e Javé, serviria bem a essa
situação. ‘Estrangeiros que adotam Javé e excedem os israelitas em
hesed (palavra hebraica que significa "bondade") merecem ser aceitos
como israelitas genuínos’.

Podemos não ser dogmáticos sobre esse desfecho, pois ele é baseado em
provas circunstanciais, mas a melhor conclusão a respeito do propósito do Livro de
Rute nos leva a aceitar uma data pré-exílio para sua composição.

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Propósito e Mensagem
A história proporciona uma transição dos patriarcas para a monarquia. A
genealogia no final do livro traça uma linhagem direta, de Boaz até Davi. Esse fato
é determinante para entender tanto o propósito quanto a mensagem do livro. Rute
é uma história de fidelidade, a constância de Noemi retornando a terra da
promessa, e igualmente a de Rute acompanhando Noemi, mas sobretudo, a
fidelidade de Deus. Os exemplos de fidelidade, sejam humanos ou divinos, são
apresentados mostrando suas consequências.
Uma leitura superficial desse livro pode distorcer o objetivo do texto. Dillard
e Longman II nos advertem para que não venhamos a cair nessa armadilha.
Acompanhe o raciocínio nas citações a seguir:

“ ‘Seja leal como a Rute e gentil como o Boaz, e Deus o recompensará’.


O bem supera o mal para as pessoas bondosas. Tal leitura
despretensiosa distorce o livro e deixa escapar o seu profundo
ensinamento teológico.” ¹

“A doutrina central que aparece no livro de Rute é a doutrina da


providência. O livro nos mostra que de forma contínua, e muitas vezes
oculta, a providência de Deus governa não só o mundo, mas, também,
a nossa vida nas questões mais simples do cotidiano.” ²

“O livro instrui os seus leitores em relação ao trabalho contínuo de Deus


na vida das pessoas simples.” ³

“Não foi o acaso que levou Rute aos campos e à vida de Boaz; foi a
providência de Deus. As impossibilidades, as incapacidades, não são
suficientes para frear a benevolente providência divina.” ⁴

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“Nenhum evento sobrenatural ou milagres pontuam Rute, mas o leitor


atento termina o livro sabendo que a mão de Deus guiou os eventos
dessa história tão diretamente quanto a narrativa do êxodo do Egito.”⁵

O Livro de Rute relata a origem de um dos maiores líderes que Israel já teve:
Davi. Assim como em outras narrativas bíblicas, o nascimento e vida desses
personagens foi marcado pela superação de obstáculos gigantes, e em cada
evento, a graça de Deus se revela em providência, o que também se reflete no Livro
de Rute. Aquilo que seria o fim de uma família se tornou o início da Casa de Davi.

Tradições legais

O primeiro passo é entender que o Livro de Rute não é um texto como o de


Deuteronômio ou Levítico, trazendo uma forte ênfase na lei, Rute é uma narrativa
que traz alguns costumes e tradições menos conhecidos, e sobre estes, é
importante saber que “apesar de estabelecidos na história, a efetiva aplicação das
leis e dos costumes pode ser ignorada em situações da vida real. Além do mais, os
antigos códigos de lei não eram exaustivos ou abrangentes. Eles davam os
princípios gerais, admitindo flexibilidade em sua aplicação conforme situações
específicas.” ⁶
A tradição ou costume que aparece no livro é o papel do resgatador (Goel),
vemos a referência dessa prática nos seguintes textos: Levítico 25:25-30; 47-
55; Jeremias 32:1-15. A lei em si não trata de forma específica o casamento com a
esposa de um parente falecido, sendo assim, não era uma obrigação legal. O que
podemos entender é que a lei gerou costumes e tradições, em outras palavras,
desdobramentos que eram observados pelo povo, e tais desdobramentos da lei
foram incorporados na tradição popular.

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Estrutura
Tischler escreveu um artigo (1993) propondo um esquema para o Livro de Rute:

• Introdução (Rute 1:1-5)

• Ato I: Êxodo (1:6-18)

• Ato II: Belém (1:19-22)

• Ato III: Apresentação de Boaz (2:1-23)

• Ato IV: O plano (3:1-18)

• Ato V: O pronunciamento público (4:1-12)

• Poslúdio (4:13-22)

II Ester
O livro trata dos judeus que viveram a diáspora (fora de Israel). E uma
curiosidade desse livro é que o nome de Deus não é mencionado nenhuma vez.

Estrutura
I. As festas de Assuero (Ester 1:1-2.18).
• Vasti é deposta (c. 1);

• Ester torna-se rainha (2:1-18).

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II. As festas de Ester (2:19-7.10).


• Mordecai descobre uma conspiração (2:19-23);

• A conspiração de Hamã (c. 3);

• Mordecai persuade Ester a ajudar (c.4);

• O primeiro banquete de Ester (5:1-8);

• Uma noite de insônia (5:9-6.14);

• O segundo banquete de Ester (c. 7).

III. A festa de Purim (c. 8-10).


• O édito real a favor dos judeus (c. 8);

• A instituição de Purim (c. 9);

• A promoção de Mordecai (c. 10).

Contexto histórico

Segundo Dillard e Longman III:

“O autor de Ester preferiu permanecer anônimo. Os eventos que o livro


registra se referem ao reinado de Assuero (ou Xerxes, em persa, 486-
465 a.C), e a primeira versão da história provavelmente não deve ter
sido escrita muito depois. Os conhecimentos do autor sobre a vida da
corte persa, e a ausência de vocabulário grego, indicam um período
anterior às conquistas de Alexandre. Alguns estudiosos defendem uma
data posterior, por exemplo, sugerem que o confronto entre judeus e
gentios no livro reflete o intenso conflito entre o judaísmo e o helenismo
no período asmoniano; [...]

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[...] a primeira referência histórica ao livro de Ester é desse período (2


Macabeus 15.36: a época de Mordecai). O objetivo do livro em sua forma
atual é claramente narrar a origem da festa judaica do Purim (Ester
9:18-10.3). O nome da celebração deriva da palavra acádia puru, que
quer dizer “sorte" (Ester 3:7), e refere-se às sortes lançadas por Hamã.”

Tabela cronológica de Ester:

Referência Dia/Mês/Ano Evento do período de Assuero

1:3 -/-/3 Assuero realiza seus banquetes

2:16 -/10/7 Ester é levada para Assuero

3:7 -/1/12 Hamã lança as sortes

3:12 13/1/13 Promulgação do decreto de Hamã

3:13 13/12/13 Data de realização do decreto

8:9 23/3/13 Promulgação do decreto de Mordecai

8:12 13/12/13 Data de realização do novo decreto

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Gênero e técnica literária


O escritor desse livro consegue juntar as características da literatura de
sabedoria com a narrativa histórica, e as articula usando figuras de linguagem,
uma técnica curiosa chamada ironia e sátira:

“O entusiasmo do autor pela ironia é visível nos constantes relatos de


reversão de destino. As ações ou situações particulares resultam, com
frequência, no oposto do resultado esperado; um tema especificamente
expresso em Ester 9:1,22,25. Esse dispositivo literário é chamado de
peripécia (cf Berg 1979, p. 104-6). Hamã, que pretende destruir
Mordecai e os judeus, no final das contas destrói a si mesmo, juntamente
com a sua própria família. A forca que ele constrói para Mordecai torna-
se o instrumento da sua própria morte. Pelo seu édito, a riqueza dos
judeus deveria ser saqueada, mas, ao fim da narrativa, a riqueza de
Hamã está em mãos judaicas. Ao elaborar um roteiro para a sua própria
glorificação, acabou sendo o executor do rei na glorificação de Mordecai
(Ester 6:1-11). Hamã teve, durante um tempo, a posse do anel do rei, o
qual por fim passou para Mordecai, para que este agisse da forma que
desejasse (Ester 3:10; 8:8). Ao lado dessas passagens, há outras ironias
menores dentro da narrativa. A sátira destinada aos persas é digna de
nota. O decreto do rei instruindo os homens do comando de sua casa,
enquanto ele mesmo não tinha controle sobre sua mulher, ou ainda: ‘O
rei que queria fazer da esposa um espetáculo’ (1:11) acabou se tornando
uma atração (1:12; 2:1-2). O glorioso monarca, cuja lei não podia ser
alterada (1:19; 8:8), é enganado e manipulado, mas a lei não é
invalidada”. ⁷

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Mensagem teológica
A soberania de Deus é o centro da mensagem deste livro: se vemos em Rute
o desenrolar da história da redenção, em Ester não é diferente. A providência de
Deus age de forma a transformar a ameaça de extinção do povo em manifestação
do governo e da soberania de Deus na história. Deus sempre tem o controle.
Acompanhe como Dillard e Longman II resumem a soberania de Deus no livro de
Ester, revelado numa sucessão de eventos:

“A sua narrativa é construída sobre uma série cumulativa de aparentes


coincidências, todas indispensáveis quando a narrativa alcança o seu
momento de máxima tensão dramática no início do capítulo 6. Quanta
"sorte" os judeus tiveram por Ester ser tão atraente e haver sido
escolhida entre outras possíveis candidatas; por Mordecai haver
descoberto a conspiração de assassinato; e um relato de sua denúncia
sobre os planos de morte ter sido registrado nas crônicas reais; por
Ester ter escondido a sua identidade e o rei tê-la recebido sem que a
houvesse chamado; por Assuero não haver conseguido dormir naquela
noite e, então, ter ordenado a leitura dos anais e o escriba optado por
ler a partir do incidente passado com Mordecai; pelo rei ser consciente
o bastante para indagar se o havia recompensado... Realmente, é muita
sorte! O que o escritor de Ester conseguiu foi nos proporcionar uma
narrativa onde o ator principal é um tanto quanto omitido - a presença
de Deus está contida e implícita ao longo da narrativa, de forma que
essa escalada de coincidências é apenas o subproduto do seu domínio
sobre a história e do cuidado providencial com o seu povo. É um
extraordinário exemplo de genialidade literária: o autor escreveu um
livro que, do princípio ao fim, fala sobre as ações e domínio de Deus e,
no entanto, Deus não é nomeado numa única página da narrativa. [...]

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[...] Para os judeus contemporâneos do autor, e para todos os leitores


dessa história pelos séculos e milênios desde então, essa narrativa da
providência e eleição divinas tem trazido uma mensagem de conforto e
certeza. As ações de Deus na narrativa podem estar ocultas e,
certamente, não são evidentes para todos. Mas, apesar da nossa
inabilidade para entender o propósito divino em toda a sua plenitude,
nada está além do alcance de sua mão. A doutrina da soberania divina
é fundamental em Ester, mas não é um tipo de fatalismo. Pois, onde as
ações e os propósitos de Deus não são evidentes, a importância da
obediência e a fidelidade humana se tornam mais aparentes. A esse
respeito, Ester 4:13,14 se une a vários outros textos bíblicos que
integram, de forma admirável, a responsabilidade humana e a
providência divina (Mateus 26.24; Atos 2:23; 3:18,19).” – grifo nosso

Observação: A História de Rute precisa ser conectada a um grave erro cometido


por Saul que “fora instruído por Deus para destruir os amalequitas'' (1 Samuel 15),
mas desobedeceu ao Senhor. O incidente entre Saul, Agague e os amalequitas se
tornaria, por fim, a razão da própria derrota de Saul e a perda da sua dinastia (1
Samuel 28:18). Um amalequita declararia mais tarde que matara Saul (2 Sm 1.8).
Israel ainda se achava em luta com os amalequitas nos tempos de Ezequias
(1 Crônicas 4:43). As genealogias de Hamã e Mordecai representam o conflito:
Mordecai é identificado como um benjamita do clã de Quis (Ester 2:5), pai de Saul:
Hamã é um descendente de Agague (3:1), o rei dos amalequitas contra quem Saul
havia lutado (1 Sm 15). Desde o tempo do êxodo, houve uma história de desavenças
entre Israel e os amalequitas. Moisés declarou:

"Haverá guerra do SENHOR contra Amaleque de geração em


geração." (Êx 17:16)

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Notas:
1,2,3,4,5,6 e 7: Dillard e Longman II

Bibliografia sugerida:
PRICE, Randall. Manual de arqueologia bíblica (Thomas Nelson/ Randall Price e H Wayne
House; tradução de Wilson Ferraz de Almeida- Rio de Janeiro: Thomas Nelson. 2020)

KLEIN, William W. HUBBARD, Robert L. Jr. BLOMBERG, Craig L. (Tradução Maurício


Bezerra Santos Silva. 1 ed. - Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2017)

Manual bíblico vida nova (Editor geral: David S. Dockery. Tradução: Lucy Yamakami.
Hans Udo Fuchs, Robinson Malkomes. - São Paulo: Edições Vida Nova,2001)

DILLARD, Raymond B. Introdução ao Antigo Testamento (Raymond B. Dillard, Tremper


Longman II. Tradução Sueli da Silva Saraiva.- São Paulo: Vida Nova, 2006)

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