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Língua cabo-verdiana: desconstruindo mitos

Amália de Melo Lopes, linguista


(texto publicado em 12 partes em Santiago Magazine online, de 17 agosto a 24 setembro
2020.)

1. Introdução

Persiste ainda, na nossa sociedade, um sistema articulado de conceções equivocadas sobre o


crioulo de Cabo Verde1 (e os crioulos de um modo geral). Apesar de não terem bases
científicas, esses equívocos estão profundamente registados no senso comum e sedimentados
em alguns de nós. Por isso, têm desempenhado um papel impeditivo importante na
concretização de medidas de política linguística favorecedoras do desenvolvimento da língua
cabo-verdiana2 como sejam a sua oficialização e o seu ensino. Tendo em conta o papel do
conhecimento na desconstrução dos mitos, discutem-se 12 dessas ideias3, mostrando
evidências científicas que as contrariam, tendo em vista contribuir para a construção de uma
comunidade mais harmonizada em que as línguas de Cabo Verde se possam expandir
livremente.

1
A expressão crioulo de Cabo Verde/ crioulo cabo-verdiano será usada para referir à língua cabo-verdiana em
situações históricas ou para tipificar a língua.
2
Conservo a escrita da palavra ‘cabo-verdiano(a)’ com hífen, que é sustentada por duas regras: i) a que manda
colocar hífen nos gentílicos dos compostos onomásticos; e ii) a que indica –iano como o sufixo nominativo que
exprime o sentido “natural de…”. Além disso, impõe-se a coerência com a posição assumida por Cabo Verde ao
ratificar o Tratado (internacional) do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Se essa circunstância, por um
lado, põe em relevo o facto de a ortografia (de qualquer língua) ser uma convenção, evidencia, por outro, que,
tendo sido aprovada tal convenção, nenhum indivíduo, isoladamente, se pode arrogar o direito de a modificar de
acordo com critérios próprios. Com efeito, esta é a forma constante do VOCALP: Vocabulário Cabo-Verdiano
da Língua Portuguesa, aprovado pelo Governo e, portanto, o instrumento que fixa, legalmente, a ortografia da
língua portuguesa em Cabo Verde. O VOCALP é parte integrante do Vocabulário Ortográfico Comum da
Língua Portuguesa, instrumento previsto no Tratado do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. O VOC
segue, adequando, os critérios ortográficos comuns definidos na ‘Sistematização das Regras de Escrita do
Português’, discutida e validada pelo Corpo Internacional de Consultores do VOC e aprovada pelo Conselho
Científico do IILP em 2016 e foi validado e aprovado politicamente na mais alta instância da CPLP. O VOC e o
VOCALP podem ser consultados no Portal do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP).
3
Agradeço aos membros da extinta Comissão Nacional para as Línguas as observações, os comentários e as
sugestões. As falhas restantes são da minha inteira responsabilidade.

1
2. Mitos sobre a língua cabo-verdiana4

Esses mitos, que menorizam a língua cabo-verdiana (LCV), são produtos de uma
configuração sociocultural dominada por uma ideologia linguística colonial que exigia e
impunha o domínio da língua do império, apresentada como o modelo ideal de língua e, como
contraponto, o aniquilamento das outras, entendidas como símbolo da inferioridade dos seus
falantes, para, assim, impor a sua cultura e o seu projeto político. Por isso, esses equívocos
foram amplamente difundidos, naturalizados e inculcados na mente dos cabo-verdianos,
determinando as suas atitudes face à sua própria língua materna, a ponto de alguns, cada vez
menos, felizmente, admitirem que não falam uma língua ou falam algo que ainda não o é.
Começamos com o mito 1.

Mito 1: O crioulo não é língua

A maior parte dos crioulos formou-se nos séculos XVI a XVIII, num contexto sócio
histórico de relações comerciais e de escravatura, na época dos descobrimentos. Senhores e
escravos necessitavam de comunicar e, para isso, estas línguas foram desenvolvidas. Assim, é
o contexto e a rapidez da sua formação que distinguem as línguas crioulas de outras línguas.
Por causa da especificidade da sua origem e formação, os crioulos foram, durante muito
tempo, considerados línguas inferiores. Contudo, por um lado, não é pelo facto de terem sido
formados pelos escravos que não são línguas – os escravos eram seres humanos escravizados
–, ou que são algo que ainda não é uma língua e, por outro, os crioulos não têm nenhuma
característica que não seja possível de encontrar em outras línguas.
Com efeito, assim como todos os seres humanos são iguais, todas as línguas humanas são
iguais. Os cabo-verdianos, como seres humanos que são, têm uma língua materna: a língua
cabo-verdiana. Diz-se que é a língua materna dos cabo-verdianos por ser aquela que a quase
totalidade deles desenvolve, quando aprende a falar, em casa, com a família, antes de ir à
escola.
Também é língua nacional, no sentido em que é falada e compreendida por todos os cabo-
verdianos, no país e na diáspora, sem que seja necessário recorrer a uma outra língua, que

4
Os contra-argumentos dos números 1 a 5 e 7 foram redigidos com base em Pereira, Dulce. O Essencial sobre
os Crioulos de Base Portuguesa. Lisboa. Editorial Caminho. Pp. 13-15. 2006. e os restantes com base em Lopes,
Amália Melo. As línguas de Cabo Verde: uma Radiografia Sociolinguística. Praia. Edições Uni-CV. 2016.

2
seria a veicular. A língua portuguesa também é nacional, num sentido mais político do termo,
porque adotada de jure e de facto como nossa, em todo o território nacional.
O termo crioulo começou por designar os escravos nascidos em casa dos colonos (uma
cria deles). Depois, foi estendido a todos os naturais das colónias e, mais tarde ainda, às
línguas faladas por essas pessoas. Para os linguistas, é um conceito metalinguístico que se
aplica ao conjunto das línguas que se formaram ou podem vir a formar-se em situações de
contacto de línguas com características idênticas às que existiam nos períodos de formação
dos crioulos existentes e daqueles que se sabe que já morreram. Os crioulistas são linguistas
que se dedicam ao estudo do processo de formação e às características dessas línguas.
Assim, só se pode concluir que o crioulo de Cabo Verde é uma língua, tal como todas as
formas de falar de todos os povos e nações. Os cabo-verdianos, tal como outros seres
humanos, povos e nações, só podem falar algo que seja uma língua, no caso, uma língua do
tipo crioulo, sem dúvida, construída pelos nossos antepassados, no contexto da escravatura,
do contacto entre a língua portuguesa e as línguas africanas dos escravos. Na verdade, “os
crioulos só são crioulos por causa da sua história” (Singler,1990:645, tradução nossa)5. Os
nossos antepassados terem tido criatividade suficiente para, num contexto histórico-social tão
adverso, gerar e nos legar uma língua nova e especificamente nossa, não deve ser fator de
estigmatização e de diminuição do seu valor intrínseco e social, mas de orgulho individual e
nacional.

Mito 2: O crioulo cabo-verdiano é um dialeto do português

Só no Séc. XIX, os crioulos despertaram interesse científico e, em Portugal, apenas a


partir dos anos cinquenta do Séc. XX. Os resultados dos estudos levados a cabo mostraram
que, apesar de serem línguas surgidas, como referido, do contacto entre as línguas europeias,
dos colonos, e as línguas africanas, dos escravos, não são o resultado de uma evolução dessas
línguas europeias nem tão pouco das línguas africanas, como o Português, por exemplo, é do
Latim. Nesse caso, e diferentemente do que acontece com os crioulos, é possível descrever as
mudanças operadas na passagem de uma língua para a outra, ao longo de séculos, traçando-se
uma linha evolutiva ininterrupta. Ou seja, não se pode falar de uma filiação genética para os
crioulos, uma vez que não emergem de qualquer das línguas em contacto que estão na sua

5
"creoles are creoles because of their history", SINGLER, John. On the use of sociohistorical criteria in the
comparison of creoles. Linguistics 28:645-659.1990.

3
génese (Kaufman e Thomason, 1991)6. Por não serem descendentes diretos de qualquer
dessas línguas, não se incluem em nenhuma das famílias das línguas africanas ou na família
das línguas românicas ou neolatinas que estão na sua origem.
A maior parte das palavras do crioulo de Cabo Verde tem origem na língua portuguesa7,
razão por que os linguistas dizem que se trata de um crioulo de “base lexical portuguesa”,
sendo essa língua designada de língua lexificadora ou de superstrato. Também existem
crioulos de base lexical francesa, inglesa, espanhola, etc. Já a sua gramática, como a de todos
os crioulos, é um compromisso entre as gramáticas das línguas em presença, podendo incluir
ou não a língua lexificadora. Todo esse material lexical e gramatical foi reanalisado,
reelaborado e reestruturado, formando-se uma nova língua, com uma estrutura organizativa
própria.
Também, durante muito tempo, discutiu-se, entre os linguistas, se os crioulos eram línguas
autónomas ou dialetos das suas línguas lexificadoras. O termo dialeto significava, então, uma
maneira de falar diferente da variedade tomada como padrão, um desvio em relação à norma-
padrão que era considerada ‘a língua’.
Por causa disso, esse termo ganhou conotação pejorativa: uma maneira de falar com
estatuto inferior ao de língua. E foi aplicado com esse sentido às línguas de povos não
europeus, tal como, no passado, os gregos apelidaram de bárbaros a todos aqueles que não
falavam o grego que era considerado o modelo ideal de língua. Assim se explica que, ainda
hoje, nos países africanos de língua portuguesa, haja quem considere as línguas africanas ou
os crioulos como dialetos e não como línguas. Por isso, uma linguista são-tomense, Afonso
(2008:11)8 considera que o regime colonial foi tão eficaz “no sentido de ter conseguido
convencer, sobretudo a elite são-tomense, da menoridade linguística do crioulo” que, ainda
hoje os são-tomenses preferem o termo dialeto para se referirem aos seus três crioulos
autóctones, transferindo a carga pejorativa para o termo crioulo que é usado apenas para a
língua cabo-verdiana, a terceira língua falada nesse país.

6
Thomason, Sara e Kaufman, Terrence. Language Contact, Creolization and Genetic Linguistics. Berkeley.
University of California Press. 1991.
7
Menos de 1% do léxico da língua cabo-verdiana é de origem africana, “sobretudo mandinga (58%), wolof
(20%) e temne (5%)” Ladham, John. The formation of the portuguese plantation creoles. Tese de doutoramento,
Universidade de Westminster. 2003, pp. 144, 145, apud Seibert, Gerhard. Crioulização em Cabo Verde e São
Tomé e Príncipe: divergências históricas e identitárias. Afro-Ásia, 49 (2014), 41-70, p. 56
8
Afonso, Beatriz de Castro. A problemática do bilinguismo e ensino da língua portuguesa em S. Tomé e
Príncipe. Dissertação de Mestrado. Universidade Nova de Lisboa. Lisboa. 2008.

4
No entanto, o próprio conceito de dialeto evoluiu em Linguística, designando hoje, uma
maneira de falar como resultado da dispersão geográfica de uma língua: dialetos do Fogo, São
Vicente, Santiago, Sal, etc. ou os dialetos setentrionais, centro-meridionais e das ilhas
atlânticas do Português Europeu9. Todos são dotados de organização estrutural complexa e
plena (propriedades comuns a todas as línguas, a que os linguistas chamam de universais
linguísticos)10 e capacidade interna (potencial comunicativo) e, portanto, de igual valor do
ponto de vista linguístico. Essa a razão por que os sociolinguistas preferem o termo neutro
variedade.
Ou seja, a nossa língua materna não é um dialeto do português, mas uma língua autónoma,
com regras gramaticais próprias, diferentes do Português. Diferença não deve significar
inferioridade, em qualquer contexto e sob que pretexto for.

Mito 3: O crioulo é uma deturpação, corrupção do português, português malfalado

Esta ideia é um desenvolvimento da anterior. Além das razões apontadas, existe outra:
quando os portugueses ouviam os falantes dos crioulos de base lexical portuguesa, ao mesmo
tempo que entendiam as palavras, não compreendiam o que as pessoas diziam, exatamente
porque a estrutura dessas línguas é diferente da do português. A explicação encontrada para
esta contradição foi que os escravos, tidos como seres inferiores, eram incapazes de aprender
e falar bem uma língua de civilização como o português. Só a podiam falar mal, de uma
forma incompreensível, deturpando-a e corrompendo-a.
O facto de as palavras da língua cabo-verdiana terem origem no português não colide
com o facto de ela ser uma língua autónoma, com uma estrutura própria. Quando as línguas
não têm palavras próprias para exprimir determinadas ideias vão tomá-las de empréstimo a
outras línguas. É o que acontece com o português que, por exemplo, foi buscar a palavra
aeroporto ao francês, a palavra software ao inglês ou, em tempos mais antigos, as palavras
alface e oxalá ao árabe.
O que se acaba de dizer pode ser percebido através dos exemplos abaixo:

(1) (a) N da João un bolu (LCV)


(b) Dei um bolo ao João (LP)

9
Classificação de Cunha, Celso e Cintra, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Lisboa. Sá
da Costa. 1984, p. 10.
10
Cf. Sim-Sim, Inês. Desenvolvimento da linguagem. Lisboa. Universidade Aberta. 1998, p.23.

5
Estas frases mostram que:
§ Claramente, as palavras da língua cabo-verdiana da frase (1) (a) são originárias da
língua portuguesa.
§ Contudo, veja-se o que acontece quanto à ordem de palavras, uma característica
importante das línguas. Tão importante que, das frases seguintes, do português, em
que a única diferença é a ordem das palavras, uma pode ser verdadeira e a outra
não, no mesmo intervalo temporal: O João ama a Maria/ A Maria ama o João.
Enquanto no português, em frases declarativas simples como a frase (1) (b), a
ordem das palavras é: Sujeito – Verbo – Complemento Direto – Complemento
Indireto, no cabo-verdiano, a ordem típica é: Sujeito – Verbo – Complemento
Indireto – Complemento Direto. Na verdade, a frase (1) (b) *N da un bolu João,
que segue a ordem típica do português, é agramatical de Santo Antão à Brava, ou
seja, está errada em qualquer das variedades dialetais da língua cabo-verdiana,
independentemente da pronúncia com que for lida.
§ Além disso, relativamente à propriedade de Sujeito Nulo, por exemplo, – outra
característica importante das línguas –, enquanto na variedade europeia do
português, o sujeito, tipicamente, é omitido como em (1) (b), pois o verbo já
contém toda a informação sobre as suas especificações, viabilizando a sua
recuperação (na frase em análise, o sujeito só poder a pessoa que fala, eu); na
língua cabo-verdiana, o sujeito deve ser explicitado, como em (1) (a), porque a
forma do verbo não permite, por si só, recuperar o sujeito.
Portanto, pode-se sustentar que a língua cabo-verdiana é um sistema linguístico
autónomo que se formou como resultado da reanálise, reelaboração e reestruturação do
material lexical da língua portuguesa e das regras gramaticais das línguas africanas e
portuguesa, então em contacto.

Mito 4: O crioulo é pobre, não tem regras nem gramática (própria)

A gramática de uma língua é o conjunto das regras dominadas e usadas pelos falantes
dessa língua. É a existência de regras comuns que torna possível a compreensão entre os
usuários de uma língua. Se a nossa língua materna não tivesse regras, ou seja, uma gramática,
cada falante usaria as suas próprias regras, tornando a compreensão impossível.

6
Por causa desta ideia de que os crioulos não têm regras, durante muito tempo os
estudiosos evitaram escrever gramáticas dos crioulos, contribuindo para reforçar a ideia de
que os crioulos não têm gramática. Na verdade, as gramáticas escritas são apenas descrições,
feitas pelos gramáticos, das regras dominadas e usadas pelos falantes.
Relacionado com esta ideia, mas também com a de que os crioulos de base lexical
portuguesa são dialetos do português, surgiram trabalhos científicos que descreviam as
características da língua cabo-verdiana, destacando as suas diferenças em relação ao
português, mormente as características que o português tem e que o cabo-verdiano não tem.
Ora, cada língua tem uma organização gramatical própria, que a distingue das outras. Por
isso, as línguas são descritas pelas regras e características que apresentam e não pelas que não
têm. Ninguém caracteriza o português como uma língua a que falta declinações como tinha o
latim e têm o alemão e o russo, por exemplo.
Consideremos os seguintes exemplos da língua cabo-verdiana:

(2) (a) Oroporto/Eroporto/Aeroporto


(b) Bandidu/bandi/bandideza
§ Tal como acontece com todas as línguas, a língua cabo-verdiana/crioulo de Cabo
Verde foi buscar ao português, a palavra de origem francesa aeroporto, mas
adaptando-a ao seu sistema sonoro (fonologia): oroporto/eroporto (Pereira,
2006:37)11.
§ Mas também, como todas as línguas, a língua cabo-verdiana/crioulo de Cabo Verde
tem capacidade para formar palavras internamente. Assim, por exemplo, se foi buscar
bandidu ao português ‘bandido’, a partir dela, formou, segundo as suas próprias
regras, novas palavras, que não existem em português: bandi (fazer patifaria) e
bandidesa (patifaria) (Pereira, 2006:38).
(3) (a) Mininu fémia é spértu/ As meninas são espertas
(b) Kes mininu fémia…
(c) Kel menina…
§ Como as palavras são, nitidamente, originárias do português e ainda por causa do
hábito de comparar a língua cabo-verdiana com essa língua, o pensamento imediato é

11
Pereira, Dulce. O Essencial sobre os Crioulos de Base Portuguesa. Lisboa. Editorial Caminho. Pp. 13-15.
2006.

7
que o cabo-verdiano não tem artigos e marcas de género e de número nos nomes e
adjetivos, o que é visto como uma pobreza ou uma deficiência.
§ Ora, as frases (3) mostram que as duas línguas têm formas próprias (e diferentes) para
marcar o género (masculino e feminino) e o número (singular e plural).
§ Em (3) (a), dizer mininu/menin é diferente de menino/menina, em que a marca de
género é evidente.
§ Dizer mininu fémia (3) (a) é diferente de dizer kes mininu fémia (3) (b) pois, no
primeiro caso, refere-se a qualquer menina (os gramáticos falam, neste caso, de
referência genérica) ao passo que, no segundo, devido ao determinante kes, refere-se a
meninas já conhecidas dos falantes.
§ Por sua vez, Kel menina (3) (c) refere-se apenas a uma menina, ao contrário de (3) (b)
Kes mininu fémia. Como kes já indica plural, mininu já não precisa de ter marca do
plural, diferentemente do português, mormente a variedade europeia, que faz recurso a
várias marcas (Pereira, 2006: 34-35).
(4) (a) N ta papia/fala kriolu / falo crioulo
(b) N papia/fala kriolu /falei crioulo
§ As frases (4) mostram que a língua cabo-verdiana e o português têm sistemas verbais
diferentes: ta, oriundo do verbo português ‘estar’ é uma forma gramatical que indica
que a ação descrita pelo verbo é duradoura (valor aspetual).

Assim, a língua cabo-verdiana tem regras gramaticais próprias, diferentes do


português, mas tão eficazes quanto aquelas, como fica evidente através dos exemplos do
número anterior e dos analisados acima.
Portanto, por um lado, os crioulos são línguas de pleno direito, o crioulo de Cabo
Verde, a língua materna da esmagadora maioria dos cabo-verdianos, não é um dialeto do
português, nem português malfalado, mas uma língua autónoma com regras próprias e,
por outro, o termo crioulo designa um conceito e não um nome próprio.
Assim sendo, por que não lhe atribuir um nome próprio, uma designação oficial que a
dignifique, Língua Cabo-Verdiana? Com efeito, diz-se língua portuguesa, língua francesa,
etc., mas ‘crioulo de ...’ (para o nosso caso, crioulo de Cabo Verde) quando, normalmente,
as línguas são referidas pelo seu nome e não pelo tipo ou família a que pertencem.
Ninguém se refere ao português, francês, etc. como língua românica de Portugal ou de
França, por exemplo.

8
Mito 5: O crioulo é língua de casa

A ideia de que os crioulos são formas de falar sem prestígio – (ainda) não são línguas, não
têm regras, são dialetos das suas línguas lexificadoras ou uma forma malfalada ou deturpada
delas – levou à ideia de que os crioulos não têm dignidade para serem falados em público e a
associar o seu uso a analfabetismo e pouca cultura. Esta conceção teve várias consequências
nos falantes dessas línguas e nos cabo-verdianos, em particular. Uma das mais importantes é
esconderem que sabem falar o crioulo cabo-verdiano, pensarem que é desprestigiante falá-lo
com pessoas, nos contextos e sobre os assuntos mais valorizados socialmente e só aceitar usá-
lo nas situações e com pessoas mais íntimas, como a casa e os familiares.
Contudo, no seu espírito e coração, os cabo-verdianos gostam muito da sua língua
materna, orgulham-se dela e acham que é um marco da nossa identidade cultural. Ou seja, não
lhe atribuem um prestígio aberto, mas sim um prestígio envergonhado, que fica escondido. Os
linguistas chamam de prestígio encoberto a essa forma de prestígio.
Uma consequência deste comportamento é, por um lado, a língua cabo-verdiana não ter
desenvolvido formas de falar adequadas aos contextos mais valorizados socialmente, a que os
linguistas designam de registos formais ou cuidados. Outra é pensar-se que o crioulo pode ser
melhorado, aproximando-o do português e impondo-lhe novas regras. Assim, por exemplo,
em vez de se dizer papia (falar, conversar), passa-se a dizer fala, mais próximo do português
(Pereira, 2006:40)12; em vez de arri (sorrir), surri (mais próximo do português). A este
fenómeno, que acontece com o léxico, mas também com a gramática, os linguistas chamam
de descrioulização e pode levar ao desaparecimento da língua cabo-verdiana, como já
aconteceu com muitos crioulos no mundo, alguns deles de base lexical portuguesa.
Importa, pois, notar que não sendo os crioulos línguas menores, são línguas adequadas
para todas as pessoas, assuntos e circunstâncias. Falar a nossa língua materna em todos os
lugares e circunstâncias e com todas as pessoas não é sinal de inferioridade social ou pouca
educação e nem pode ser tomado como um sinal de querer erradicar o português do
quotidiano cabo-verdiano.

12
Pereira, Dulce. O Essencial sobre os Crioulos de Base Portuguesa. Lisboa. Editorial Caminho. 2006.

9
Em consonância com essas ideias, a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos,
patrocinada pela UNESCO13 estipula:
§ […] o direito ao uso da língua em privado e em público […] (Artigo 3.º: 1), como
um dos direitos individuais inalienáveis que devem ser exercidos em todas as
situações.
§ […] o direito a uma presença equitativa da língua e da cultura do grupo nos meios
de comunicação; o direito a serem atendidos na sua língua nos organismos oficiais e
nas relações socioeconómicas (Artigo 3º.2.), como um dos direitos coletivos dos
grupos linguísticos.
§ No domínio público, todos têm o direito de desenvolver todas as atividades na sua
língua, se for a língua própria do território onde residem. (Artigo 12.º: 1.)

Quanto ao uso oral, da língua portuguesa, no dia-a-dia, em paridade com a língua


cabo-verdiana, há que ter em conta que o domínio do português, em Cabo Verde, depende,
crucialmente, das oportunidades sociais para falar essa língua e do grau de escolaridade.
Portanto, não se pode querer que as pessoas falem o português com frequência e fluência,
com vontade e à vontade e, ao mesmo tempo, estar de prontidão para as censurar e a apontar
os erros sempre que essa fala não corresponda ao ideal de bom português que se tem em
mente. Trata-se de uma postura que só pode provocar sentimento de inferioridade, de
discriminação e de rejeição, e que leva a evitar falar a língua portuguesa a todo o custo, o que
não é do interesse da sociedade como um todo.

Mito 6. O crioulo não corre risco de desaparecimento

Muitos afirmam que se a língua cabo-verdiana sobreviveu a séculos e séculos durante os


quais não foi ensinada e usada na escrita e em contextos mais formais, é porque o risco de
descrioulização e de desaparecimento já está ultrapassado.

13
A Declaração Universal dos Direitos Linguísticos ou Declaração de Barcelona é um documento aprovado na
Conferência Mundial sobre Direitos Linguísticos realizada, realizada em Junho de 1996, assinada pela
UNESCO, entre outras organizações.

10
Na verdade, os cabo-verdianos, hoje, de um modo geral, admitem um contínuo crioulo
que pode ser associado à descrioulização: um crioulo leve (mais próximo da língua
portuguesa, a que os linguistas chamam variedade acroletal) e um crioulo fundo (mais distante
da língua portuguesa, a variedade basiletal), com variedades intermédias.
Esta aproximação ao português que hoje se observa é o resultado de um longo percurso.
As mudanças nas línguas podem levar séculos a acontecer e determinadas circunstâncias
sociais podem acelerá-las. É o que se verifica na situação atual: quanto mais tempo passar e,
naturalmente, maior for a duração do contacto com o português, quanto mais falantes do
português houver, quanto mais a forma de falar próxima do português for divulgada na rádio e
na televisão, e for adotada mesmo pelos falantes menos escolarizados, mais a descrioulização
tenderá a acentuar-se. De ressaltar ainda que a adoção da variedade mais próxima do
português (acroletal) – crioulo fino – como mais prestigiante e a sua difusão e transmissão
intergeracional, de pais para filhos, como língua materna é um fator acelerador da
descrioulização.
Então, a oficialização e a consequente padronização da língua cabo-verdiana, são a melhor
forma de preservar esse património histórico e cultural que recebemos dos nossos
antepassados e de deixá-lo às gerações vindouras.
Os crioulos que não são reconhecidos oficialmente, não são usados em todos os lugares e
circunstâncias e não são escritos nem ensinados acabam por definhar ou por se afastarem
tanto da sua forma inicial, que perdem a sua essência e desaparecem.

Mito 7: O crioulo não serve para exprimir ideias abstratas e/ou científicas

Esta ideia tem a sua origem no facto de, por um lado, durante muito tempo, a informação
científica ter sido divulgada exclusivamente através da escrita e, por outro, os crioulos não
terem uma escrita padronizada. Lamentavelmente, ainda hoje continua a ser assim para a
maioria das 7111 línguas do mundo que permanecem ágrafas e para a nossa língua materna
que, apesar de dotada de um alfabeto, carece de um sistema de escrita completamente
estabelecido.
Além disso, a escrita obriga a escolher palavras e construções mais complexas do que
aquelas que são usadas na fala. Isso acontece em todas as línguas. Também, por ser uma
língua usada predominantemente em contextos informais, a língua cabo-verdiana não tem tido
oportunidades para construir palavras que exprimam certas realidades. Mas não é o facto de as

11
línguas não terem escrita e de ainda não terem determinadas palavras que as incapacita para
exprimir ideias abstratas ou científicas.
O estudo científico das línguas e variedades de línguas tem evidenciado que todas gozam
de plenitude formal e de potencial comunicativo14 para expressarem oralmente e por escrito
todas as ideias, ou seja, para a conceptualização, e a expressão de sentimentos, informações,
relações lógicas (conjunção, disjunção, equivalência, condição, conclusão, etc.), passado,
presente e futuro, negação, interrogação e ordens. Na verdade, nunca foi identificada uma
língua ou variedade de língua que não permitisse aos seus falantes exprimir o que quer que
fosse que soubessem e pretendessem dizer.
Não faz parte das propriedades constitutivas das línguas, elas disporem de terminologia
científica, tecnológica, política, legal ou outra. As línguas têm é de ter oportunidade para se
desenvolverem, de irem acompanhando as necessidades sociais dos seus falantes. É isso que
aconteceu e continua a acontecer com todas as línguas naturais. Na verdade, muitas línguas
foram objeto de uma política deliberada e intencional de ampliação do seu potencial como,
por exemplo, o finlandês e o hebraico e de criação de terminologias específicas. Aquando dos
jogos olímpicos de Pequim, por exemplo, foi desenvolvida terminologia específica para todas
as modalidades desportivas em disputa.
Ou seja, como todas as línguas, a língua cabo-verdiana tem capacidade interna para
desenvolver palavras que exprimem ideias abstratas como, por exemplo: sabura e morabeza
(Pereira, 2006:37)15 ou krêtxêu, conceitos exclusivos dela e difíceis de traduzir, mesmo para o
português. O que ela precisa é de ser oficializada, escrita e introduzida no ensino para poder
ser usada amplamente, e ter oportunidade de desenvolver todas as palavras e registos de que
os seus falantes necessitarem.
Prova da capacidade interna da língua cabo-verdiana, em todas as suas variedades, são os
belos poemas de Eugénio Tavares, Manuel d’Novas, e outros mais recentes com que nos
deleitamos nas nossas mornas, coladeiras, funanás e batuques; as peças de teatro, romances e
poesia que outros artistas da palavra têm criado em cabo-verdiano; e as traduções de grandes

14
Cf. o que se disse a este propósito na parte referente ao mito 3.
15
Pereira, Dulce. O Essencial sobre os Crioulos de Base Portuguesa. Lisboa. Editorial Caminho. Pp. 13-15.
2006.

12
poetas portugueses como Fernando Pessoa e David Mourão-Ferreira por Arnaldo França16 ou,
mais recentemente, de Camões por José Luís Tavares e da Bíblia.

Mito 8: Já sabemos o crioulo, precisamos é de aprender outras línguas

É na linguagem e por meio da linguagem que a criança, na relação com os outros, constrói
a sua identidade, desenvolve o pensamento e se apropria da cultura da sua comunidade. Ou
seja, a linguagem é um elemento estruturante do nosso desenvolvimento afetivo, cognitivo e
identitário.
Por isso, a questão linguística é uma questão de desenvolvimento humano (social, cultural
e político) que não deve ser secundarizada em relação a outros fenómenos sociais. A sua
resolução não satisfatória pode gerar tensões e conflitos que podem afetar a personalidade das
crianças com efeitos perversos em toda a sociedade. Por conseguinte, os custos associados a
uma política linguista adequada são compensados com os imensuráveis benefícios potenciais.
É como comparar os custos da educação com os da ignorância.
Por causa do papel central da linguagem na constituição do ser humano, quando
aprendemos a falar, desenvolvemos pelo menos uma língua. Consequentemente, todos os
seres humanos têm uma língua materna que já dominam aos três-quatro anos de idade. Os
adultos não cometem erros quando falam a sua língua materna, ainda que sejam analfabetos
ou não tenham consciência das regras que utilizam. Como falamos a língua cabo-verdiana
como se tivéssemos o piloto automático ligado, sem nos preocuparmos com as regras que
estamos a usar, diferentemente do português, em que temos de controlar, mais ou menos
conscientemente, as regras que utilizamos, muitas pessoas pensam que não usam regras
quando falam o crioulo. Podemos é não dominar o registo culto da língua cabo-verdiana. Mas
certamente que estaremos de acordo que nem todos os falantes do português como língua
materna são capazes de usar o registo que se usa num congresso de cientistas ou em outras
situações idênticas.
Apesar de dominadas muito cedo, as línguas maternas continuam a ser estudadas,
formalmente, na escola, de um modo geral. É o que acontece com as crianças portuguesas,
francesas, inglesas, russas ou chinesas, por exemplo. O estudo da língua materna na escola,
além de importante para a consolidação da construção afetiva, cognitiva e identitária da

16
Poemas de Fernando Pessoa: De Fernando Pessoa, ele-mesmo; Ode Marítima (final), Álvaro de Campos; VI
poema de O Guardador de Rebanhos, Alberto Caeiro; e ODE, Ricardo Reis; De David Mourão-Ferreira,
Abandono ou Fado Peniche.

13
criança, serve para a aquisição do padrão, fator importante de solidariedade e de mobilidade
social, para a adequação da linguagem a situações de comunicação mais complexas, e para a
aprendizagem da leitura e da escrita que exigem o funcionamento da consciência linguística e
o controlo deliberado do conhecimento linguístico. Ou seja, na escola, ganha-se consciência
das regras gramaticais e dos princípios de funcionamento da sua língua materna, o que
possibilita monitorar o seu uso. Quando as crianças têm duas línguas, como é o nosso caso,
essa consciência ganha um valor acrescentado, pois é esse conhecimento consciente das
regras das duas línguas que ajuda a manter separadas as duas gramáticas, evitando influências
de uma na outra.
Na escola, as crianças também vão aprender ideias novas e mais complexas (conceitos
científicos) e quando não usam a sua língua materna, ficam desprovidas de um instrumento
para pensar e comunicar, ficando bloqueadas cognitivamente e pondo em risco o seu sucesso
escolar. É como se, de repente, se tornassem deficientes. Nós, que somos professores,
sabemos o quanto custa fazer os alunos falar nas aulas.
Também, ao mesmo tempo que estão a aprender a falar a língua portuguesa estão a
aprender a ler e a escrever, aprendizagens essas que são muito complexas. Ou seja, não
acontece com as crianças cabo-verdianas o que ocorre com a maioria das crianças que é serem
alfabetizadas numa língua que já sabem, a sua língua materna. Por não terem o domínio oral
da língua em que são alfabetizadas (português), elas ficam sobrecarregadas cognitivamente e
com problemas de escrita e de leitura na língua portuguesa, difíceis de superar, atingindo a
taxa de reprovação valores elevadíssimos nos primeiros anos de escolaridade, pois há muito
que se sabe que a língua é um dos mais importantes fatores do (in)sucesso escolar.
Por tudo isso é que a escolarização na língua materna, nos primeiros anos, é recomendada
em estudos, resultados de investigação e relatórios como o Relatório Mundial de Seguimento
da Educação, anualmente publicado pela UNESCO. Com efeito, são vários os estudos e as
experiências bem-sucedidas que têm evidenciando que a educação bilingue provoca efeitos
positivos na proficiência da língua segunda e de outras línguas e na melhoria do sucesso
escolar.
A educação bilingue (ou multilingue) é uma modalidade de ensino de línguas em que duas
(ou mais) línguas são usadas como meio de ensino. As autoridades, ouvindo os especialistas,
terão de escolher o modelo mais adequado a Cabo Verde. Não vou, aqui, sugerir e discutir um
modelo, mas apenas ilustrar o meu pensamento sobre a educação bilingue, em Cabo Verde:

14
todas as crianças seguiriam um programa de aprendizagem do português oral antes da 1.ª
classe (ou à entrada na escola); esse conhecimento seria a base para a aprendizagem, em
simultâneo, da leitura e da escrita nas duas línguas (coalfabetização); depois da alfabetização,
seria feita a gestão das duas línguas como meio de ensino e como disciplina, até se chegar ao
ponto em que o português seria a única língua de ensino.
Os aspetos negativos de algumas experiências de educação bilingue devem ser vistos
como oportunidades de aprendizagem, para se evitar os erros cometidos por outros, mas não
são suficientes para pôr em causa o que já foi amplamente provado, cientificamente, sobre as
suas vantagens.
Assim sendo, devemos, muito honestamente, responder para nós mesmos, porque será que
perturba tanto o facto de podermos (e querermos) falar livremente e estudar a nossa língua
materna nas escolas, e acharmos normal um inglês ou um francês falar a sua língua e querer
estudá-la? Não havendo línguas superiores e inferiores, porque será que isso acontece?
O estudo da nossa língua materna nas escolas cabo-verdianas, no quadro de uma educação
bilingue, em que as nossas duas línguas, a cabo-verdiana e a portuguesa, estariam em
paridade no sistema de ensino, deve ser encarado com normalidade.
Com efeito, o ensino da língua materna é importante para i) o desenvolvimento afetivo e
intelectual/mental das crianças, ii) os falantes aprenderem a adequar a língua aos elementos
das situações de comunicação (pessoas, assuntos e grau de formalidade), iii) criar as bases
sólidas para a aprendizagem de um modo geral, para a aprendizagem do português, em
particular, ao permitir ganhar consciência da gramática da língua cabo-verdiana e da sua
diferença face à língua portuguesa e para a aprendizagem de outras línguas.
É esta base que faz do ensino da língua materna um dos direitos humanos de natureza
linguística, estabelecido na Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, patrocinada pela
UNESCO17:

[…]: o direito ao ensino da própria língua e da própria cultura. (Artigo 3.º: 2) é um dos
direitos coletivos dos grupos linguísticos.
Todas as comunidades linguísticas têm direito a dispor de todos os recursos humanos e
materiais necessários para alcançar o grau desejado de presença da sua língua em todos os
níveis de ensino no interior do seu território: professores devidamente formados, métodos

17
Cf. nota de rodapé 13.

15
pedagógicos adequados, manuais, financiamento, edifícios e equipamentos, meios
tecnológicos tradicionais e inovadores. (Artigo 25.º).
Todas as comunidades linguísticas têm direito a um ensino que permita a todos os seus
membros adquirirem o perfeito conhecimento da sua própria língua, com as diversas
capacidades relativas a todos os domínios de uso da língua habituais, bem como o melhor
conhecimento possível de qualquer outra língua que desejem aprender. (Artigo 26.º).

Mito 9: O crioulo prejudica a aprendizagem do português / o crioulo não pode ser


ensinado

Esta questão está relacionada com a anterior. A partir dos anos 60 do Séc. XX e durante
muitos anos, acreditou-se que todos os erros daqueles que aprendiam uma língua segunda
eram devidos à sua língua materna. Mais tarde, a análise dos erros dos aprendentes de uma
segunda língua mostrou que só uma pequena parte desses erros se devia à interferência da
língua materna. Também se percebeu que o erro era um sintoma de aprendizagem, um sinal
do esforço do aprendente para construir mentalmente as regras da nova língua, com base nas
regras da sua língua materna.
Na continuação desses estudos, outros vieram demonstrar que quanto mais o aprendente
de uma nova língua tiver consciência das regras e princípios de funcionamento da sua língua
materna (consciência linguística) melhor e mais rápida será a aprendizagem da língua segunda
pois vai conseguir transferir esse conhecimento para a aprendizagem dessa língua além de,
como referido, ajudar a manter uma língua separada da outra, controlando as influências
mútuas. Ou seja, o conhecimento das regras das duas línguas permite ao aprendente de uma
língua segunda perceber, explicar, controlar e evitar que os erros permaneçam na sua fala,
ficando fossilizados (português malfalado, para simplificar).
Veja-se as palavras de um psicólogo da aprendizagem de referência:

O êxito na aprendizagem de uma língua estrangeira depende de um certo grau de


maturidade na língua materna. A criança pode transferir para a língua-alvo o sistema de
significados que já possui na sua própria. O oposto também é verdadeiro – uma língua
estrangeira facilita o domínio de formas mais elevadas da língua materna. (Vygotsky,
1993:94)18
Na verdade, como todos os seres humanos têm pelo menos uma língua materna, se estas
prejudicassem a aprendizagem de outras línguas, nenhum ser humano seria capaz de se tornar

18
Vygotsky, Lev S. (1934). Pensamento e Linguagem. S. Paulo. Martins Fontes. 1993.

16
bilingue ou plurilingue, situação que é a mais comum no mundo de hoje. Todavia, ao
contrário de prejudicar a aprendizagem do português, o ensino formal da língua cabo-verdiana
nas escolas, ao lado da língua portuguesa, no quadro de uma educação bilingue, é importante
para criar uma base de conhecimento que favorecerá i) a melhoria da aprendizagem da língua
portuguesa, evitando-se as influências da língua cabo-verdiana na portuguesa e a
descrioulização da língua cabo-verdiana; ii) a melhoria das aprendizagens de um modo geral;
iii) a construção de um bilinguismo social efetivo nas duas línguas. Este bilinguismo seria o
pilar robusto para a aprendizagem de outras línguas e para o desenvolvimento da capacidade
de utilizar várias outras línguas, mesmo que com níveis de proficiência diferentes, e também
para comunicar a experiência de várias culturas (competência plurilingue e pluricultural),
competências muito importantes neste mundo globalizado.
A finalidade da educação bilingue é que todos, especialmente aqueles que têm pouco
contacto com a língua portuguesa antes de entrarem para a primeira classe, falem, leiam e
escrevam, com alto grau de proficiência, as duas línguas de Cabo Verde. Para a introdução da
língua cabo-verdiana no ensino, é necessário, antes de mais, oficializá-la, conferindo-lhe
prestígio e proteção, e para legitimar a disponibilização de recursos do Estado para os estudos
que precisam ser feitos, para a formação de professores e para a produção de materiais de
ensino, por exemplo.
O que acontece é que a transmissão e a consolidação, na nossa sociedade, de tanta ideias
mal feitas que desprestigiam os crioulos, a ponto de serem considerados por alguns dos seus
próprios falantes como não-línguas, como se eles próprios fossem sub-humanos, levou à ideia
de que o crioulo de Cabo Verde não é digno de ser ensinado na escola.
Mais uma vez, além da fundamentação linguística, ensinar a língua cabo-verdiana nas
escolas é uma questão de direitos humanos, de acordo com a Declaração Universal dos
Direitos Linguísticos, patrocinada pela UNESCO:

Todas as comunidades linguísticas têm o direito a codificar, estandardizar, preservar, desenvolver


e promover o seu sistema linguístico, sem interferências induzidas ou forçadas. (Artigo 9.º)
Todos têm direito a serem poliglotas e a saberem e usarem a língua mais apropriada ao seu
desenvolvimento pessoal ou à sua mobilidade social, sem prejuízo das garantias previstas nesta
Declaração para o uso público da língua própria do território. (Artigo 13.º, 2).

17
Mito 10. Oficializar o crioulo é ir contra o português

Oficializar uma língua significa conferir-lhe legitimidade para ser usada nas instâncias
públicas, ou seja, na comunicação entre o Estado e os cidadãos, entre o Estado e outros
Estados e em atividades e públicas formais.
Se o Estado de Cabo Verde adotar apenas a língua cabo-verdiana como sua única língua
oficial, o país ficará isolado do resto do mundo, sem possibilidade de comunicação, pois os
outros povos não conhecem a nossa língua e, por sermos um país pequeno e pobre,
certamente que não vão ensinar a nossa língua materna aos seus cidadãos, nas suas escolas.
Existem várias situações no mundo: ter uma única língua oficial, constitucionalmente ou
não; partilhar esse estatuto com outra ou outras línguas como é o caso da Singapura, por
exemplo, que tem quatro línguas nacionais; ter uma língua oficial de base nacional e outra
regional como é o caso do português e do mirandês, em Portugal;19 e do português e outras
línguas autóctones, no Brasil.20. Por isso, Cabo Verde também pode ter mais do que uma
língua oficial: a língua cabo-verdiana e a portuguesa.
A oficialização da língua cabo-verdiana não põe em causa o estatuto e o papel da língua
portuguesa em Cabo Verde. Amílcar Cabral disse, no Seminário de Quadros de novembro de
1969 que “o português é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram”. Contudo, não
podemos deixar a língua cabo-verdiana relegada a um estatuto inferior. O que separa as
línguas crioulas das línguas não crioulas é a maneira como pensamos umas e outras. A
promoção e a valorização de uma língua passam pela sua oficialização, uso nas situações de
comunicação e instituições públicas e formais, ensino e escrita.
A oficialização do cabo-verdiano, em paridade com o português, visa equilibrar a posição
institucional e social das nossas duas línguas, tendo em vista o reforço da construção de um
convívio harmonioso entre elas e da legitimidade do seu uso em todos os domínios e para
todas as funções sociais nomeadamente o uso oficial, o ensino e a escrita. Além de que
contribui, simbolicamente, para reforçar o reconhecimento da nossa identidade e da nossa
cultura. O país passaria a contar com duas línguas oficiais, base que asseguraria o
compromisso do Estado (e dos Governos) com a criação das condições para que os cabo-

19
Lei n.º 7/99de de 29 de Janeiro “Reconhecimento oficial de direitos linguísticos da comunidade mirandesa”
20
Lei n° 145 de 11 de dezembro de 2002 que dispõe sobre a co oficialização das línguas Nheengatu, Tukano e
Baniwa no município de São Gabriel da Cachoeira, Estado do Amazonas, por exemplo.

18
verdianos possam, efetivamente, escolher, livremente, qual das suas línguas usar, seja qual for
a função ou o contexto.
Estas conclusões também são suportadas pela Declaração Universal dos Direitos
Linguísticos, patrocinada pela UNESCO:

Todas as comunidades linguísticas têm direito a que a sua língua seja utilizada como língua oficial
dentro do seu território. (Artigo 15.º, 1).
As Assembleias de representantes devem adoptar como oficiais a língua ou as línguas
historicamente faladas no território que representam. (Artigo 19.º, 1).

Mito 11. Oficializar o crioulo é impor uma das variedades e secundarizar as outras

Diferentemente de oficializar, padronizar uma língua significa adotar um modelo para ser
usado como língua oficial, na escrita, no ensino, na comunicação social e no tratamento
computacional.
O padrão, normalmente, é objeto de codificação (fixação das regras), de
instrumentalização (publicação de gramáticas, dicionários, prontuários, etc.) e de
desenvolvimento de registos formais e de terminologia científica. Por isso, também se fala,
correntemente, de norma-padrão, ou seja, a norma que é padronizada.
Se dantes, o padrão era uma norma imposta pelos gramáticos, a partir da escrita daqueles
que eles considerassem bons autores, hoje tende-se a aceitar um conceito sociolinguístico de
padrão, definido a partir dos usos reais da língua, da norma associada ao uso dos falantes de
reconhecido prestígio, com acesso à escrita e outros bens culturais (a norma culta).
Se é verdade que existem vantagens práticas no estabelecimento de uma norma-padrão,
como anunciado acima, e é preciso dominá-lo para o poder usar em contextos específicos e
para determinadas funções, ele não passa a ser a melhor variedade nem a constituir ‘a língua’,
nem a sua função é substituir qualquer variedade, pois, vale repetir, todas as maneiras de
falar de uma comunidade (variedades) e todas as formas para dizer a mesma coisa nas
diferentes variedades (variantes) são iguais, nenhuma é melhor ou superior.
Foi nesta base, de respeito pelas variedades, que agiram alguns países, quando
oficializaram e padronizaram as suas línguas, que também apresentavam muitas variedades.
Calvet (1996, 2002)21 apresenta dois casos:

21
Calvet, Louis-Jean. Les Politiques Linguistiques. Paris. Press Universitaires de Paris. 1996; Sociolinguística:
uma Introdução Crítica. S. Paulo. Parábola Editorial. 2002.

19
• Indonésia: neste país, depois da independência, para evitar que a escolha do padrão
fosse sentida como uma imposição, não foi adotado o javanês, a língua mais falada,
mas sim o malaio, a língua com menos falantes. Ele recebeu um nome (língua
indonésia), foi equipado com uma ortografia e vocabulário para as novas funções,
adotando-se a seguinte estratégia: primeiro, escolher um termo já existente nessa
língua e, depois, de qualquer língua asiática e só em última instância de uma língua
internacional europeia.
• China: a atual língua oficial da China continental e de Taiwan (e também uma das
quatro línguas oficiais de Singapura), designada de pu tong hua (língua comum),
resulta da codificação e modernização do guo yu. Em 1956 foi definida a sua
fonologia (a partir do dialeto do mandarim falado em Pequim), o seu léxico (oriundo
dos dialetos do norte) e a sua sintaxe (com base no corpus literário escrito em baihua,
vernáculo chinês escrito). A maioria dos chineses aprende primeiro a língua dos seus
pais e, depois, o pu tong hua na escola, sendo que ela é também a língua difundida
pela televisão, cinema, etc.

Oliveira (2010:28)22 dá conta de outro caso relevante, nos Estados Unidos: “quando
criaram uma nova norma para o espanhol, o espanhol da CNN, estudando detidamente graus
de rechaço que as variedades nacionais do espanhol poderiam ter no mercado ampliado da
hispanofonia (por exemplo, rechaço da variedade argentina pelos mexicanos), e passando a
gerir uma norma ‘depurada’ de suas características nacionais.”
Por isso, com base nos conhecimentos linguísticos hoje disponíveis que permitem,
nomeadamente, determinar quais são as regras obrigatórias de uma língua e aquelas que são
variáveis, isto é, apenas aplicáveis em determinados contextos, (no nosso caso, ilhas) e nas
experiências de sucesso já realizadas, todas as variedades dialetais da língua cabo-verdiana
(Santo Antão, S. Vicente, S. Nicolau, Sal, Boa Vista, Maio, Santiago, Fogo e Brava) podem e
devem ser consideradas, em pé de igualdade, na oficialização e na padronização.
Assim, não há que recear a oficialização imediata da língua cabo-verdiana, em todas as
variedades que a constituem. Com a oficialização da língua cabo-verdiana, os cidadãos terão,

22
Oliveira, Gilvan. O lugar das línguas: A América do Sul e os mercados linguísticos na nova economia.
Synergies. Brésil n° spécial 1 – 2010. pp. 21-30.

20
verdadeiramente, a opção de escolher a língua e a variedade da língua cabo-verdiana que
querem falar e em que contexto.

Mito 12: O ALUPEC é uma maneira de impor o crioulo de Santiago como padrão23

O ALUPEC24 é um alfabeto, ou seja, como todos os alfabetos, um instrumento


concebido para fazer a transcrição dos sons da língua em letras, isto é, meros símbolos
gráficos convencionais para representar uma língua graficamente. Os alfabetos não são os
únicos sistemas de grafia. Existem silabários (japonês), sistemas logográficos (mandarim) e
consonânticos (árabe, hebreu).
A ortografia é a forma de escrever as palavras. Integra o conjunto dos símbolos
necessários (no caso dos alfabetos, as letras), a forma como devem ser usadas as maiúsculas,
os sinais de pontuação e outros sinais gráficos como os acentos, o til, a cedilha, o travessão, o
traço de união, o hífen, o asterisco, etc.
Vários países, ao longo da sua história, têm feito mudanças no seu alfabeto e na sua
ortografia. O português já mudou a sua ortografia várias vezes. Hoje já não se escreve
orthographia (ortografia), pharmacia (farmácia), diccionario (dicionário) ou prompto
(pronto), como se escrevia antes da reforma ortográfica de 1911, nem óptimo e correcção, por
exemplo, como se escrevia antes do acordo ortográfico de 1990.
Com efeito, os países de língua oficial portuguesa assinaram, em 1990, um Novo
Acordo Ortográfico. Trata-se de um tratado internacional, com o objetivo de criar uma
ortografia unificada para o português. O novo alfabeto da língua portuguesa passou a ter 26
letras, com a inclusão de mais 3: o K (capa ou cá); o W (dáblio, dâblio ou duplo vê) e o Y
(ípsilon ou i grego). Não é por isso que os brasileiros vão passar a falar como os portugueses
ou vice-versa, nem os cabo-verdianos a falar português como os lisboetas ou açorianos,
cariocas ou angolanos, porque a ortografia não é a própria língua, apenas a representa de
forma simbólica.
Numa escrita alfabética, as letras têm a função de representar os sons da língua
(fonemas). A relação entre letras e fonemas tem uma natureza complexa. Quando há uma

23
Agradeço à Dominika Swolkien os comentários e as sugestões. As falhas restantes são da minha inteira
responsabilidade.
24
O ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-Verdiano) foi instituído como alfabeto cabo-verdiano
pelo Decreto-Lei n. º 8/2009 de 16 de Março que diz no seu Artigo 1.º: O Alfabeto Unificado para a Escrita da
Língua Cabo-Verdiana (ALUPEC), aprovado, em regime experimental pelo Decreto-Lei n. º 67/98, de 31 de
Dezembro, é instituído como Alfabeto Cabo-Verdiano.

21
correspondência direta fonema /grafema (biunívoca), cada letra representa um fonema e só
esse fonema e a aprendizagem da descodificação (leitura) e da codificação (escrita) fica
facilitada. Por isso, esta é a tendência das ortografias estabelecidas cientificamente e não pela
tradição ou por autoria. Ou seja, basicamente, todas as línguas de codificação recente, o que
significa a maioria das línguas do mundo, seguem princípios fonético-fonológicos. Um
exemplo concreto é a língua maori25, uma língua austronésia da nova Zelândia, um dos países
mais desenvolvidos e industrializados do mundo26.
Ilustrando com o que acontece no português: o som [k] é representado com a letra <c>
como em copo e com o dígrafo <qu> como em querer; e o som [s] com a letra <s> em sala,
com <c> em ácido, com <ç> em canção, com <ss> em massa, por exemplo. E esses não são
os casos únicos em que, no português, um som é representado por mais do que uma letra e
uma mesma letra representa mais do que um som, o que causa grandes dificuldades na
aprendizagem.
É esse tipo de disfuncionalidade ou inconsistência entre o sistema ortográfico e o
sistema de sons da língua que aquele pretende representar que se buscou evitar ao se adotar,
com o ALUPEC, um alfabeto de natureza essencialmente fonético-fonológica em que cada
letra representa um som/fonema e, portanto, sons/fonemas diferentes são representados por
letras diferentes. Assim, por exemplo, a letra, <k>, representa exclusivamente o som [k], e a
letra <s> apenas o som [s], determinando assim a não “inclusão” da letra <c> do alfabeto
português (coloco inclusão entre aspas, pois, na verdade, não se trata nem de inclusão nem de
exclusão, mas tão só de criar um alfabeto para uma língua diferente do português). Excluem-
se os nomes próprios pois, assim como não traduzo o meu nome (bem português, por sinal)
para francês ou inglês, se estiver a escrever para falantes dessas línguas, também um Carlos
não o tem de o fazer (não deve mesmo fazê-lo) para o cabo-verdiano se estiver a escrever para
um falante dessa língua. O nome consagrado do nosso país (ONU, etc.) é Cabo Verde (em
português). Ou seja, o Alfabeto Cabo-verdiano foi concebido para escrever as palavras da
língua cabo-verdiana e o Alfabeto Português para escrever as palavras da língua portuguesa.
Assim, não se consegue provar que o Alfabeto Cabo-verdiano é mau, mostrando que ele não é
adequado para escrever palavras do português.

25
Mais informações podem ser consultadas aqui:
https://en.wikipedia.org/wiki/M%C4%81ori_language#Orthography
26
Human Development Report 2019. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).2019.
Disponível em: http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr2019.pdf Consultado em: agosto de 2019.

22
Pelo que se disse acima, em pleno século XXI, com tantos conhecimentos e
competências necessários para enfrentar o complexo mundo globalizado, obrigar as crianças a
memorizarem ortografias com raízes em pronúncia medieval portuguesa seria uma tremenda
perda de recursos humanos e económicos. Por tudo isso, vale nos auto questionarmos sobre a
razão de fundo que nos impele a manter a língua cabo-verdiana atrelada ao português, ao
propor uma escrita etimológica decalcada na língua portuguesa, fiel ao sistema português que
reflete pronúncias, muita vezes anteriores, ao achamento de Cabo Verde, quando estamos face
a uma língua diferente, em que, de facto, a quase totalidade das palavras são originárias do
português, mas sofreram mudanças nos sons (fonético-fonológicas) e no significado
(semânticas) que ocultam a ligação etimológica e a esmagadora maioria dos cabo-verdianos
desconhece a etimologia. Além de que haveria que pensar como resolver grafias
‘etimológicas’ de palavras como djobe (mandinca juubee), djáki (uólofe yëkk), djonga ou
djongo (bambara jingon), ou então as palavras de etimologia dupla, românica e africana,
como disdangu (dis + danku do mandinca).27
Com o ALUPEC, qualquer cabo-verdiano, no país ou na diáspora, pode escrever
exatamente como fala. O ALUPEC é um alfabeto que viabiliza a escrita de qualquer das
variedades da língua cabo-verdiana, de Santo Antão à Brava. Basta experimentar para
confirmar. Portanto, não é com o ALUPEC que se pode impor qualquer variedade da língua
cabo-verdiana/crioulo de Cabo Verde.
Com a oficialização da língua cabo-verdiana, os cabo-verdianos vão ter legitimidade
para poder discutir melhor todas as questões importantes relacionadas com o seu
desenvolvimento: a padronização, a codificação, o ensino e até mesmo as soluções já adotadas
no alfabeto oficial já que, mesmo as ortografias científicas são, por vezes, obrigadas a fazer
alguma concessão.

3. Considerações finais

A finalizar, fazemos votos de que os argumentos pró valorização da língua cabo-verdiana


apresentados sirvam de subsídio para, por um lado, a formulação de opiniões informadas
mediante a revisão de muitas ideias que nos foram passadas como dados e, por outro,

27
Exemplos de Lang, Jürgen et al. (Eds.). 2002. Dicionário do crioulo da ilha de Santiago Cabo Verde.
Tübingen: Gunter Narr. E Quint, Nicolas, 2008. L’elément africain dans la langue capverdienne. Africanismos
na língua caboverdiana. Paris. L’Harmattan.

23
favoreçam a construção de uma política linguística que reconcilie as duas línguas de Cabo
Verde, inspirando as medidas pertinentes e corajosas que a situação sociolinguística cabo-
verdiana demanda em vez de se ficar no lugar confortável de reclamar do ensino da língua
portuguesa ano após ano e de responsabilizar os professores de português pelos fracos
resultados.
A situação atual, que continua e reforça o paradigma de exclusão, impele o cabo-verdiano
a fazer política linguística por conta própria, repondo, na sua prática linguística, a igualdade
entre as línguas. Assim, para escapar ao silenciamento que lhe é imposto, investe na sua
língua materna, como é natural, falando-a em todas as esferas sociais de uso da língua,
simulando o funcionamento de uma língua oficial, mormente no ensino e na escrita informal e
espontânea, nas redes sociais.
Esta política linguística praticada, sem qualquer orientação institucional do Estado, tem
tido efeitos perversos: i) o desenvolvimento de atitudes negativas para com o português e a
sua aprendizagem; 2) o desinvestimento na língua portuguesa, seja na aprendizagem, seja no
uso, sobretudo na produção oral (fala); e 3) o impacto na estrutura das duas línguas, com
mudanças linguísticas em ambas (português acrioulado, como dizem alguns, pejorativamente,
e descrioulização da língua cabo-verdiana).
Além do que fica dito, o Estado de Cabo Verde, que se orgulha de ser um estado de direito
e democrático e respeitador dos direitos humanos, deveria empenhar-se em respeitar também
os direitos humanos de natureza linguística. Afinal, “Ter direito de liberdade de expressão não
é só dizer o que eu penso – é poder dizer isso na minha língua, e não apenas na língua
hegemônica” (Oliveira, 2011)28

28
Oliveira, Gilvan. A língua é de quem se apropria dela e [a] gere. Entrevista. Krioulidade Suplemento Cultural.
A Semana. 3 de junho de 2011. Entrevista concedida na qualidade de Diretor Executivo do Instituto
Internacional da Língua Portuguesa (IILP), instituição da CPLP que gere a política linguística comum da língua
portuguesa.

24
25

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