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A Ilha dos Amores

Canto IX
Plano da Viagem e da Mitologia

A Ilha dos Amores Episódio simbólico

Est. 18, canto IX


1
18 Porém a Deusa Cípria , que ordenada Paráfrase: Mas Vénus, encarregada pelo Deus supremo de
favorecer os Portugueses como seu génio tutelar, andava a
Era, pera favor dos Lusitanos,
preparar para eles um prémio que os compensasse pelos
Do Padre Eterno2, e por bom génio3 dada, trabalhos e sofrimentos que tão bem tinham suportado.1
Que sempre os guia já de longos anos,
v. 1 – “Porém” – mostra que, apesar de estarem já
A glória por trabalhos alcançada,
de saída, ainda não partiriam
Satisfação de bem sofridos danos, vv. 1-3 – Vénus, que está associada a Chipre, tinha
Lhe andava já ordenando, e pretendia a anuência de Júpiter de forma a auxiliar os
Dar-lhe, nos mares tristes, alegria. portugueses.
v. 3 – “por bom génio dada” – Júpiter atribuiu a
Vénus o papel de protetora, ou seja, anjo da guarda
v. 4 – “Que” = Porque
v. 6 – “satisfação” = compensação, recompensa
v. 8 – antítese
19 Despois de ter um pouco revolvido
Na mente o largo mar que navegaram,
Est. 19, canto IX
Os trabalhos que pelo Deus4 nascido
Paráfrase: Tinha considerado a longa viagem, os trabalhos
Nas Amphioneas Tebas5 se causaram, que lhes causara Baco, e tencionava, há já tempo,
Já trazia de longe no sentido, proporcionar-lhes algum prazer e folga no mar cristalino.1
Pera prémio de quanto mal passaram,
vv. 2 e 8 – perífrase (oceano Índico)
Buscar-lhe algum deleite6, algum descanso, v. 6 – recompensa e celebração do amor
No Reino de cristal, líquido e manso; v. 8 – dupla adjetivação

20 Algum repouso, enfim, com que pudesse Est. 20, canto IX


Paráfrase: Uma pausa reparadora com que refastelasse a
Refocilar7 a lassa8 humanidade
carne cansada dos seus navegantes, em prémio do trabalho
Dos navegantes seus, como interesse que encurta a vida. Pareceu-lhe conveniente falar disto a seu
Do trabalho que incurta a breve idade9. filho Cupido, cujo poder faz descer os deuses à terra e subir os
Parece-lhe razão que conta desse homens ao céu.1
A seu filho10, por cuja potestade11 vv. 1-2 – antítese
Os Deuses faz decer ao vil terreno vv. 2-3 – restaurar as forças dos cansados
E os humanos subir ao Céu sereno. marinheiros
v. 4 – perífrase (vida)
v. 6 – perífrase “A seu filho” = Cupido, deus do
amor, filho de Vénus e Marte, deus da guerra;
“por cuja potestade” = pela vivência do amor
vv. 7-8 – Há um trocadilho com deuses e
1. Deusa Cípria: Vénus (adorada em Chipre). 2. Padre
humanos/terra e céu. Os deuses descem à terra
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Eterno: Júpiter. 3. bom génio: anjo da guarda; protetora.


4. Deus: Baco. 5. Amphioneas Tebas: Tebas foi edificada e os homens ascendem ao céu: a imortalidade
por Anfião, filho de Júpiter. 6. deleite: prazer; gosto. alcança-se pelo cultivo e vivência do amor.
7. Refocilar: restaurar forças. 8. lassa: cansada. 9. v. 4: v. 8 – pleonasmo
trabalho que torna a vida mais curta. 10. A seu filho:
Cupido. 11. potestade: poder.

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Os Lusíadas à lupa

21 Isto bem revolvido, determina

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Est. 21, canto IX
De ter-lhe aparelhada, lá no meio Paráfrase: Em conclusão destes pensamentos decidiu
preparar para eles, no meio das águas, uma ilha bem verde,
Das águas, algũa ínsula divina,
dessas muitas que tem no grande Oceano – sem falar das
Ornada de esmaltado e verde arreio12; que possui como soberana dentro do Mediterrâneo.1
Que muitas tem no reino que confina13
v. 3 – “ínsula” = ilha (cf. península = quase ilha)
Da [mãe] primeira14 co terreno seio,
v. 4 – “verde” – ligação à natureza e ao simbolismo
Afora as que possüe soberanas de esperança
Pera dentro das portas Herculanas15. vv. 4-8 – Nos versos 4 a 8 fala-se das ilhas
(ínsulas) que Vénus possui em duas zonas
diferentes: as que estão no Mediterrâneo (para
dentro das portas Herculanas) e as que estão
fora, no grande rio ou mar exterior, que os antigos
designavam por Oceano, filho da Terra. A primeira
tradução castelhana d’ Os Lusíadas, saída em
vida de Camões, supõe que falta no verso 6 a
palavra mãe. De facto, o verso ficaria certo se o
corrigíssemos assim: Da mãe primeira c’o terreno
seio. […] Quanto ao sentido: o Oceano confina,
limita ou encosta-se ao regaço da Terra, sua Mãe;
e mãe primitiva de todos os seres.1

22 Ali quer que as aquáticas donzelas16 Est. 22, canto IX


Paráfrase: Aí, em danças e rodas, as mais belas ninfas do
Esperem os fortíssimos barões
mar aguardarão os guerreiros; e, para que lhes deem maior
(Todas as que tem título de belas,
prazer, Vénus instalará nelas a paixão amorosa – de cada uma
Glória dos olhos, dor dos corações), a seu guerreiro.1
Com danças e coreias17, porque nelas
vv. 1 e 2 – perífrase (ninfas; portugueses)
Influirá18 secretas afeições, vv. 7-8 – para, com mais afeto, acolherem os
Pera com mais vontade trabalharem portugueses que amavam
De contentar a quem se afeiçoarem.

12. arreio: enfeite. 13. v. 5: Vénus tinha muitas ilhas no seu


reino. 14. [mãe] primeira: Éden, paraíso da primeira mãe, Eva.
15. portas Herculanas: colunas de Hércules. 16. aquáticas
donzelas: ninfas do mar. 17. coreias: bailados. 18. Influirá:
Incutirá.

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A Ilha dos Amores

23 Tal manha buscou já, pera que aquele Est. 23, canto IX
Que de Anquises pariu19, bem recebido Paráfrase: Já tinha usado o mesmo estratagema para
conseguir que Eneias fosse bem recebido em Cartago.
Fosse no campo que a bovina pele
Foi procurar seu filho, o cruel Cupido, em que está a sua força,
Tomou de espaço, por sutil partido20. para que a ajude agora como a tinha ajudado então.1
Seu filho21 vai buscar, porque só nele
vv. 1-4 – Alusão ao episódio da Eneida em que, por meio de
Tem todo seu poder, fero Cupido,
Cupido, Vénus inspira a Dido, rainha de Cartago, uma paixão
Que, assi como naquela empresa antiga22
por Eneias, para que este fosse bem acolhido em Cartago, onde
A ajudou já, nestoutra a ajude e siga. o levou o temporal. Eneias é o filho de Vénus e Anquises;
Cartago é o campo cujo espaço foi delimitado por uma pele de
boi engenhosamente dividida em tiras delgadas.1

vv. 1-2 e 3-4 – perífrase (Eneias, filho de Vénus e


de Anquises; Cartago)
v. 7 – “Que” = Porque; referência à intervenção de
Cupido que fez com que Dido recebesse,
enamorada, Eneias em Cartago

24 No carro ajunta as aves que na vida Est. 24, canto IX


Vão da morte as exéquias23 celebrando24, Paráfrase: Atrelou ao carro os cisnes e as pombas. Partiu e à
sua volta o ar enchia-se de beijos. O vento serena por onde ela
E aquelas em que já foi convertida
passa.1
Perístera, as boninas apanhando25.
Em derredor da Deusa, já partida, vv. 1-2 e 3-4 – perífrase (cisnes: animais que,
segundo a tradição, só cantam quando a morte
No ar lascivos beijos se vão dando. está iminente: ainda em vida, celebram/anunciam
Ela, por onde passa, o ar e o vento a sua morte; pombas)
Sereno faz, com brando movimento. v. 6 – “lascivos” = amorosos (Vivência de um amor
pleno, que também engloba a perspetiva física)
vv. 7-8 – ambiente sereno, de paz

19. aquele/Que de Anquises pariu: Eneias, filho de Vénus e


de Anquises. 20. vv. 1-4: Vénus iria usar a manha com que
ajudou Eneias a ser recebido por Dido. O marido dela foi
assassinado pelo irmão e, com medo, Dido fugiu. Quando
chegou a Cuma, pediu que lhe dessem um campo para
ficar, bastando um espaço coberto pela pele de um boi.
Depois de lhe darem o campo, Dido mandou cortar a pele
em tiras muito finas e fez uma circunferência onde fundou
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o que viria a ser Cartago. 21. Seu filho: Cupido. 22. v. 7:


Cupido ajudou Vénus a auxiliar Eneias. 23. exéquias:
cerimónias religiosas fúnebres. 24. vv. 1-2: cisnes, aves
anunciadoras da morte. 25. vv. 3-4: pombas (Cupido
transformou Perístera em pomba).

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Os Lusíadas à lupa

25 Já sobre os Idálios montes26 pende27,

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Est. 25, canto IX
Paráfrase: Ao baixar sobre os montes da Idália viu Cupido,
Onde o filho frecheiro28 estava então,
seu filho, que organizava uma expedição com outros frecheiros
Ajuntando outros muitos, que pretende
para castigar erros graves que há muito tempo se cometem no
Fazer hũa famosa expedição mundo. Os homens amavam coisas que serviam apenas para
Contra o mundo revelde, por que emende serem usadas e não amadas por si mesmas.1
Erros grandes que há dias nele estão,
Crítica social – A partir da estrofe 25, vemos
Amando cousas que nos foram dadas Cupido preparando uma expedição contra os que
Não pera ser amadas, mas usadas. mal amam. É o pretexto para Camões criticar
erros que via em sua volta.3

v. 1 – da Idália, em Chipre
v. 2 – perífrase (Cupido, o deus do arco e flechas
com que infundia amor nos mortais)
vv. 5-6 – “emende/Erros grandes” – expressos nos
vv. 7 e 8, ou seja, as pessoas viviam presas aos
interesses materiais em vez de se focarem em
valores mais nobres
v. 6 – “há dias nele estão” – ocorrem há muito
tempo

26 Via Actéon29 na caça tão austero, Est. 26, canto IX


Paráfrase: Vê um que, semelhante a Actéon, se apaixonava
De cego na alegria bruta, insana,
tanto pela caça que fugia à beleza das mulheres. Para o
Que, por seguir um feio animal fero,
castigar, quer mostrar-lhe Diana nua (e, cuidado, não lhe
Foge da gente e bela forma humana; aconteça ser comido pelos cães que agora o acompanham!).1
E por castigo quer, doce e severo,
v. 1 – (Cupido) “Via”; Actéon surpreendeu Diana
Mostra-lhe a fermosura de Diana. despida e, por isso, foi transformado em veado,
(E guarde-se não seja inda comido os próprios cães o perseguiram e comeram.1
Desses cães que agora ama, e consumido)30. v. 2 – metáfora
vv. 2, 3, 4 e 5 – dupla adjetivação
v. 4 – crítica subtil a D. Sebastião que tinha
relutância perante a ideia de casar
vv. 7 e 8 – Neste texto parentético, temos de supor
que os cães são os ministros do rei D. Sebastião,
maníaco da caça, aos quais ele confiava
excessivos poderes.1

26. Idálios montes: morada de Cupido. 27. pende: paira.


28. frecheiro: flecheiro. 29. Actéon: caçador convertido
em veado por Diana. 30. vv. 7-8: para que não seja
devorado pelos animais que amava.

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A Ilha dos Amores

27 E vê do mundo todo os principais31 Est. 27, canto IX


Paráfrase: Vê que os dirigentes, em vez de pensarem no bem
Que nenhum no bem pubrico32 imagina;
público, só pensavam em si próprios, e que os conselheiros do
Vê neles que não tem amor a mais
rei, em lugar de o ensinarem, o corrigirem, lhe adulavam as más
Que a si somente, e a quem Filáucia33 insina; tendências como se estas fossem boa doutrina. Assim, o trigo
Vê que esses que frequentam os reais novo era abafado pelas ervas ruins.1
Paços, por verdadeira e sã doctrina
vv. 1, 3 e 5 – (Cupido) “vê” (porque é evidente,
Vendem adulação, que mal consente visível)
Mondar-se o novo trigo florecente34. vv. 1-4 – homens importantes que ajudam na
governação do reino, pensando só nos próprios
interesses
v. 4 – “Filáucia” – usado aqui no significado
etimológico, amor de si próprio.3
O trigo novo é, metaforicamente, o jovem rei,
cujas más tendências (escolhas) eram aduladas e
aproveitadas pelos oportunistas do Paço.1
vv. 7 e 8 – metáfora e perífrase (D. Sebastião, que
era um rei muito jovem)

28 Vê que aqueles que devem à pobreza Est. 28, canto IX


Amor divino, e ao povo, caridade, Paráfrase: Vê religiosos que apenas queriam mandar e
enriquecer e praticavam a tirania sob a máscara da justiça.
Amam somente mandos e riqueza,
Faziam leis em benefício do rei e não do povo.1
Simulando justiça e integridade.
Da feia tirania e de aspereza vv. 1-2 – perífrase (elementos do clero)
vv. 1-2 – “devem à pobreza/Amor divino” – crítica
Fazem direito e vã severidade.
ao Clero: as ordens religiosas faziam voto de
Leis em favor do Rei se estabelecem; pobreza.1
As em favor do povo só perecem35. vv. 3-4 e 5-6 – antítese
vv. 7-8 – metáfora

29 Vê, enfim, que ninguém ama o que deve, Est. 29, canto IX
Senão o que somente mal deseja. Paráfrase: Vê, enfim, que ninguém cuidava do seu dever,
mas só do seu perverso apetite. E não quer adiar por mais
Não quer que tanto tempo se releve36
tempo o castigo que merecem. Reúne os seus servidores para
O castigo que duro e justo seja. formar um exército proporcionado à luta que espera ter com
Seus ministros37 ajunta, por que leve esta gente desgovernada.1
Exércitos conformes38 à peleja39
v. 1 – (Cupido) “Vê”
Que espera ter co a mal regida gente v. 5 – “aprendido” tem duas leituras: a) os
Que lhe não for agora obediente. Portugueses souberam pela ninfa as suas futuras
ações gloriosas; b) aprenderam, com a
experiência de viagem, a merecer a glória.1
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31. principais: homens. 32. pubrico: público. 33. Filáucia:


presunção. 34. florecente: florescente. 35. perecem: morrem.
36. releve: perdoe. 37. ministros: amores. 38. conformes:
adequados. 39. peleja: guerra.

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