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Didascália inicial do ato II de Frei Luís de Sousa

1. ESPAÇO

1.1. Espaço físico / geográfico

NOTAS:

1.ª) Salão despido, pouco confortável, sem qualquer marca de humanização.

2.ª) Espaço mais sombrio, frio, austero, escassamente iluminado e fechado, o


que está em sintonia com o estado de espírito das personagens, cada vez mais
angustiadas e cercadas pelo Destino.

3.ª) Espaço opressivo, de confidências e também de recordação e reencontro


com o passado, contribuindo para o avolumar do «pathos».

4.ª) Um trio de retratos ocupa um espaço privilegiado, numa cumplicidade onde


se misturam o idealismo, o patriotismo, a desgraça e a fatalidade. Camões, grandioso
épico que dedica a D. Sebastião Os Lusíadas, pedindo-lhe que dê matéria a outra
epopeia, incentivando o jovem monarca a cometer grandes feitos no Norte de África
para concretizar ideais elevados (difusão do Cristianismo e engrandecimento da Pátria);
D. Sebastião não concretizará o seu ideal, morrendo na batalha de Alcácer Quibir. D.
João de Portugal, um dos nobres que integrou o trágico exército, nobre honrado,
patriota, fiel e corajoso, também desapareceu naquele fatídico areal africano.

5.ª) O ambiente fechado parece escassamente iluminado, evidenciando-se os


reposteiros pesados de tecidos espessos de amplas dimensões, por um lado, indiciando
que ocultam algo, por outro lado, remetendo para a ideia de que, uma vez descerrados,
se passará para um outro espaço, que estará ligado a uma qualquer desgraça ou
fatalidade.
6.ª) A mudança de lugar, decorrente do acto de Manuel deitar fogo ao seu
palácio (traço histórico), é feita para um mundo absolutamente fechado em si próprio
(cenários dos 2.º e 3.º actos). O palácio agora ocupado pertence ao marido que regressa,
insufla vida ao passado. As recordações transformam-se logo em pressentimentos. O
espaço anuncia a desgraça que se aproxima, tem uma acção fatal, opressiva, ominosa.

Análise da Cena 1 do Ato II de Frei Luís de Sousa

● Assunto: informações sobre o que se passou depois do incêndio do palácio de


Manuel de Sousa (estendem-se até à cena 3).

● Assuntos abordados no diálogo das personagens

▪ tempo decorrido desde a mudança para o palácio de D. João:


aproximadamente uma semana;

▪ assuntos:

- a reação de D. Madalena ao incêndio, à destruição do retrato do marido e


à mudança de palácio: estado doentio de angústia e sociedade (“Há oito
dias que aqui estamos nesta casa, e é a primeira noite que dorme com
sossego.”);

- a alteração da perspetiva de Telmo sobre Manuel de Sousa,


considerando-o agora “um português às direitas”;

- a delicadeza da situação política provocada pelo incêndio (“Meu nobre


pai! (…) Passar os dias retirado nessa quinta tão triste d’além do Alfeite,
e não poder vir aqui senão de noite, por instantes, e Deus sabe com que
perigo!”);

- a contemplação e o significado dos retratos;

- os pressentimentos (relativamente à identidade da figura representada no


terceiro retrato) e o sebastianismo de Maria (e de Telmo);
- a forma enigmática como a cena termina revela que Maria pressente a
verdade, ou parte dela, relativamente à história de D. João de Portugal
(“Mas o outro, o outro… quem é este outro, Telmo? […] e aquela mão
que descansa na espada, como quem não tem outro arrimo, nem outro
amor nesta vida…”.

● Estrutura interna

▪ 1.ª parte – Reações das personagens ao incêndio e à mudança de palácio.

• Maria de Noronha:

- determinada / autoritária: “E não teimes, Telmo, que fiz tenção, e


acabou-se!”;

- possuidora de grande sensibilidade e imaginação, citando a propósito


a Menina e Moça;

- filha desvelada, pois revela grande preocupação em não acordar a


mãe e procura animá-la, não a afligir, fingindo que não acredita em
agouros (no entanto, nunca teve tanta fé em «agouros» e «sinas»);

- admiradora entusiasta de feitos grandiosos e espetaculares (ex.: a


forma fascinada como recorda o incêndio);

- muito convicta numa desgraça iminente;

- ama e admira imenso o pai (por exemplo, considera que o incêndio


foi um gesto patriótico, por isso o admira tanto);

- curiosa, intuitiva e crente em profecias e agouros: Maria sabia já que


o retrato era de D. João, o primeiro marido de sua mãe, dada a
reação desta aquando da primeira entrada na sala onde se encontrava
pendurado;
- sebastianista e obcecada com o passado, características evidenciadas
na contemplação dos retratos, sobretudo o de D. João:

. culto de D. Sebastião e crença nas lendas messiânicas sobre o


seu retorno, apoiada pela presença do retrato real, de que Maria
realça pormenores significativos;

. culto de Camões, poeta-profeta “que lia nos mistérios de Deus”


e que “está no céu. Que o céu fez-se para os bons e para os
infelizes”;

- pressente a existência de uma relação entre a figura de D. João e a


sua mãe e o seu pai;

-reação aos retratos:

. fascínio pelo retrato de D. Sebastião, por causa da sua crença


no regresso do rei e dos valores que ele representa;

. fascínio pelo retrato de Camões, cuja figura simboliza para ela


o aventureiro, amigo de Telmo, autor de Os Lusíadas,
dedicados a D. Sebastião, a quem profetizou o cometimento de
grandes feitos;

. curiosidade pelo retrato de D. João de Portugal, suscitada pelo


comportamento da mãe na noite em que entraram no palácio e
nos dias seguintes.

• D. Madalena:

- aterrorizada, inquieta, doente, cheia de pesadelos com o incêndio,


sobretudo porque não foi possível salvar o retrato do marido, em
cuja destruição vê “um prognóstico fatal de outra perda maior (…)
de alguma desgraça inesperada, mas certa, que a tem de separar” de
Manuel, isto é, de que uma tragédia se abaterá sobre a família;
- por este motivo, aumentou a sua inquietação, de tal forma que não
conseguiu dormir nos primeiros oito dias de residência no antigo
palácio de D. João;

- liga o incêndio à perda do seu marido, de que a destruição do retrato


é prognóstico fatal;

- “perdida de susto”, grita quando, na primeira noite de permanência


no palácio de D. João, avista o retrato deste, fugindo depois e
arrastando Maria;

- mais calma após uma conversa com Frei Jorge.


Nesta cena, há uma inversão de papéis entre mãe e filha relativamente aos
presságios de desgraça. De facto, no Ato I, D. Madalena, apesar de viver
aterrorizada pelos seus medos e pelos agouros de Telmo, procurava passar a
ideia de que não acreditava em presságios, para tranquilizar a filha. No entanto,
no início deste ato, os papéis invertem-se: o terror e o pânico de D. Madalena
quando entra no palácio de D. João impedem-na de manter a aparência de
tranquilidade que assumira perante a filha. Agora, é esta quem assume o papel
de adulta, fingindo não acreditar em crenças e agouros para tranquilizar a mãe.

• Telmo Pais:

- aterrorizado com as palavras e agouros de Maria;

- o incêndio alterou a sua posição em relação a Manuel de Sousa: antes, admitia as


suas qualidades, mas não o admirava; agora, admira-o, dado que este seu último
ato se ficou a dever:
. ao seu patriotismo;
. à lealdade;
. à honradez;
antes, Telmo reconhecia algumas qualidades em Manuel de Sousa, mas não o
considerava seu amo, porque, na sua opinião, ele usurpava o lugar que pertencia
a D. João. Por isso, Telmo atormentava continuamente D. Madalena com os seus
agouros e presságios, que apontavam para o regresso do seu primeiro marido, que
voltaria para castigar uma família que considerava ilegítima. Todavia, neste
momento, Telmo está aterrorizado com a hipótese de que algo aconteça que
ponha em causa a existência da família. Com efeito, o incêndio fá-lo mudar a sua
opinião relativamente a Manuel de Sousa: o escudeiro apercebe-se de que o
segundo marido de D. Madalena tem “alma de português velho”, ou seja, de que,
à semelhança do que acontecia com os portugueses das gerações anteriores, é um
homem patriota, honrado e corajoso, que abdica dos seus bens para mostrar a sua
revolta contra um governo que considera ilegítimo, por estar ao serviço de
Castela. Deste modo, Telmo mostra-se profundamente arrependido por não ter
dado anteriormente o devido valor a Manuel de Sousa;

- lastima não o ter estimado “sempre no que ele valia”;

- evita revelar a Maria a quem pertence o retrato de D. João, daí as


suas hesitações e omissões (esta postura justifica-se, porque, na cena
2 do Ato I, prometeu a D. Madalena não alimentar as crenças de
Maria e evitar que descobrisse informações sobre o passado);

- fica também fascinado diante do retrato de D. João I.

▪ 2.ª parte – Contemplação dos retratos, símbolos do sebastianismo e da obsessão


pelo passado das duas personagens em cena.

• Retrato de D. Manuel (recordação de antes do incêndio no outro palácio): “…


ele estava tão gentil-homem, vestido de cavaleiro de Malta com a sua cruz branca
no peito…” (“Como ele era bonito, meu pai! Como lhe ficava bem o preto… e
aquela cruz tão alva em cima!”, I, 4 → preto e cruz são sinais de luto e morte,
respetivamente) → significado: intuição do malogro do casamento dos pais.

• Retrato de D. Sebastião → significado: a grandeza de Portugal e a recusa de um


presente de submissão; a intuição de que D. Sebastião poderá regressar [aqui o
rei é uma personagem dupla (D. Sebastião – D. João), ou seja, a esperança da
restauração da grandeza perdida de Portugal; o sebastianismo de Maria traduz a
crença intuitiva no regresso do primeiro marido de D. Madalena, sua mãe]. Essa
crença adensa a atmosfera trágica, dado que, se o rei não morreu, D. João poderá
ter conhecido o mesmo destino.
• Retrato de D. João: “Aquele aspeto tão triste, aquela expressão de melancolia
tão profunda… aquelas barbas tão negras e cerradas…” → significado: intuição
de que ninguém amara D. João, nem mesmo a esposa, sua mãe. Maria mostra
grande curiosidade e pressente que se trata de alguém muito importante na vida
da sua mãe.

• Retrato (romântico e lendário) de Camões: o herói aventureiro, representante


do ideal de poeta e guerreiro; génio incompreendido e desprezado pelos
«grandes» do seu tempo, cantor da epopeia do povo português e da glória de D.
Sebastião, a quem incita ao combate contra os inimigos da Fé, amigo e
companheiro de Telmo, “nessa terra de prodígios e bizarrias”. Esta imagem
coaduna-se com a do poeta romântico, que era apresentado como um indivíduo
em permanente conflito com uma sociedade que não o valorizava.
Telmo afirma tê-lo conhecido pessoalmente e critica os nobres que, tendo sido
contados n’Os Lusíadas, não souberam agradecer-lhe e reconhecer a obra, pois
morreu na miséria.
Por outro lado, o retrato de Camões evidencia a ligação de D. João e de D.
Sebastião a uma época passada de glória, que foi cantada pelo poeta na sua
epopeia e que contrasta com o presente, em que Portugal perdeu a sua
independência e se encontra sob domínio castelhano.

• Didascália final da cena: anuncia a chegada/entrada em cena de Manuel de


Sousa, que surge “embuçado com o chapéu”, isto é, disfarçado. Manuel de
Sousa, após o incêndio do próprio palácio, escondera-se e assim estivera nos
últimos oito dias, até que a fúria dos governadores se acalmasse. A afronta que o
incêndio constituíra faz com que tenha de regressar a casa disfarçada e de forma
oculta.

A partir de uma fala de Telmo (“Já o estava, se ele quisesse dizer que o
fogo tinha pegado por acaso.”), ficamos a saber que Manuel, se tivesse
mentido, dizendo que o incêndio se ateara acidentalmente, poderia ser
ilibado mais rapidamente, porém essa atitude levaria a que o seu ato
patriótico perdesse grandeza (“… era desculpar com a vilania de uma
mentira o generoso crime por que o perseguem”).
● Elementos trágicos

▪ A presença do fatum.

▪ Pathos de D. Madalena:

- crença em agouros/presságios:

. de D. Madalena: “… não lhe sai da cabeça que a perda do retrato é


prognóstico fatal de outra perda maior, que está perto, de alguma
desgraça inesperada, mas certa, que a tem de separar de meu pai”;

. de Maria:

- a referência à Menina e Moça, uma novela sentimental trágica;

- “Creio, oh, se creio! Que são avisos que Deus nos manda para
nos preparar. E há… oh! há grande desgraça a cair sobre meu
pai… decerto! E sobre minha mãe também, que é o mesmo.”;

- “Mas tenho cá uma coisa que me diz que aquela tristeza de


minha mãe, aquele susto, aquele terror em que está, e que ela
disfarça com tanto trabalho na presença de meu pai (também a
mim mo queria incobrir, mas agora já não pode, coitada!),
aquilo é pressentimento de desgraça grande…”;

- reafirma, clara e enfaticamente, a sua crença de que D. Sebastião


(e, por extensão, D. João) não morreu.

▪ Hybris de Manuel de Sousa:

- recusa o perdão dos governadores;

- sofre presumível perseguição, mas prefere estar escondido, naquele


“homizio”, como diz Maria, naquela “quinta tão triste d’além do Alfeite,
e não poder vir aqui senão de noite, por instantes, e Deus sabe com que
perigo”.
Observemos agora a hybris de Manuel de Sousa em confronto com as
outras personagens:

1.º) dá resolução favorável ao conflito com Telmo: “Oh, minha querida


filha, aquilo é que é um homem! A minha vida, que ele queira, é sua. E
a minha pena, toda a minha pena é que o não conheci, que o não
estimei sempre no que ele valia”. A «generosidade» de Manuel de
Sousa venceu os ressentimentos, a má vontade, os «ciúmes» de Telmo:
antes dos acontecimentos que encerram o Ato I, Telmo apreciava
Manuel de Sousa, tinha-o “em boa conta”. Porém, após ter assistido a
esse gesto patriótico, a sua consideração por ele disparou, de tal modo
que se declara disposto a dar a vida por ele;

2.º) o espetáculo do incêndio encheu Maria de «maravilha»: “… um


espetáculo como nunca vi outro de igual majestade…”, embora dê
razão à interpretação da mãe, de que a “perda do retrato é prognóstico
fatal de outra perda maior, que está perto, de alguma desgraça
inesperada, mas certa, que a tem de separar de meu pai”. E acentua,
dolorosamente, que “… há grande desgraça a cair sobre meu pai…
decerto! E sobre minha mãe, que é o mesmo”.

▪ Agón:

- de D. Madalena com D. João de Portugal na estranha reação que teve ao


chegar à nova (e antiga) morada, quando encarou o retrato de D. João;

- de Telmo:

. com Maria nas evasivas, nas meias-verdades, nas reticências, na


relutância em revelar a identidade da personagem no retrato;

. com Manuel de Sousa: o conflito entre ambas as personagens já fora


resolvido (I, 7, 8 e 12), facto que esta cena confirma através da
admiração que Telmo passou a nutrir por ele após o incêndio do
próprio palácio;

- de Maria:
. com Telmo, a propósito da identidade da personagem do retrato:

1. por um lado, há as meias verdades, as evasivas de Telmo, que a


todo o transe pretende ocultar-lhe o nome do cavaleiro retrato;

2. por outro lado, os indícios observados por Maria, nos


momentos que passou ali mesmo com a mãe, no dia da
mudança para este palácio; e a intuição do segredo e a
persistência em a manterem na ignorância daquele “mistério”:
“Não sei para que são estes mistérios; cuidam que eu hei de ser
sempre criança”;

3. Maria insiste: “Mas o outro, o outro…quem é este outro, Telmo? Aquele aspeto
tão triste, aquela expressão de melancolia tão profunda… aquelas barbas tão
negras e cerradas… e aquela mão que descansa na espada, como quem não tem
outro arrimo, nem outro amor nesta vida.”
TELMO (deixando-se surpreender) – “Pois tinha, oh! se tinha!” (Maria olha
para Telmo, como quem compreendeu, depois torna a fixar a vista no retrato).
Que é que Maria intuitivamente compreendeu?
Maria compreendeu nesse momento que (1) o único ser que amou o
primeiro marido de sua mãe foi Telmo,(2) a mãe nunca lhe tivera amor, (3) a
origem de todos os sofrimentos da mãe provinham dos remorsos da sua
consciência atormentada. Assim, quando alguém (Manuel de Sousa) identifica a
figura do retrato (II, 2), Maria não fica surpreendida: “Bem mo dizia o coração!”;

. com D. João:

- fica a saber, pela atitude da mãe, que a figura representada no


retrato e de quem ignora a identidade, é esse alguém causador de
todos os sofrimentos;

- daí a curiosidade e a persistência das perguntas a Telmo;

- até à revelação da identidade do retratado;

- contudo, ela já o sabia “de um saber cá de dentro” (II, 2).


▪ Adensamento do clima trágico: D. Madalena aproxima-se do primeiro marido,
não já apenas por via psicológica – como sucedeu no Ato I –, mas em presença
física, por vida real: é obrigada a entrar e viver no palácio de D. João (a causa
dessa aproximação é, obviamente, o incêndio).

● Linguagem

• Interjeições – exprimem diversos sentimentos:


- “Coitada!”: traduz a compaixão de Maria pela mãe;
- “Oh!”: traduz o entusiasmo de Maria quando se refere ao espetáculo do incêndio,
e terror quando, por duas vezes, admite a iminência duma “desgraça” que atingirá
o pai e a mãe.

• Frases exclamativas e interrogativas e as reticências favorecem o ritmo


entrecortado próprio de um discurso emotivo.

• Repetição anafórica do demonstrativo, a enumeração e a gradação


ascendente (“Aquele palácio a arder, aquele povo a gritar, o rebate dos sinos,
aquela cena toda…”) e outras repetições de palavras traduzem a hesitação da
fala.

• Alternância de frases longas (referentes aos acontecimentos trágicos evocados) e


de frases curtas, que traduzem as emoções.

Estes elementos da linguagem são próprios do pendor oralizante do


discurso.

● Relação entre as cenas 1 dos atos I e II

Entre a cena 1 do Ato I e a cena 1 do Ato II existe uma relação de


semelhança.
De facto, no ato inicial, D. Madalena cita versos de Os Lusíadas,
concretamente do episódio de Inês de castro, em consonância com o seu estado
de espírito: sofrimento amoroso.

Já nesta cena do Ato II, Maria cita o início de Menina e Moça, romance de
Bernardim Ribeiro, em consonância com o seu perfil psicológico: obra misteriosa
e sentimental, como misteriosa e sentimental é Maria.

● Importância da cena no desenvolvimento da ação dramática

▪ Progressão da ação: esta é a cena em que se faz o enquadramento da ação no


novo ato, expondo os antecedentes da mesma (acontecimentos ocorridos após o
incêndio do palácio – ida para o palácio de D. João de Portugal, “Há oito dias”,
durante a noite; reação de D. Madalena ao ser confrontada com o retrato de D.
João; estado de saúde/espírito de D. Madalena na última semana).

▪ Indícios trágicos:

- presságios de D. Madalena e Maria devido à perda do retrato de D.


Manuel e ao destaque assumido pelo retrato de D. João;

- citação da obra Menina e Moça (novela trágica) por Maria;

- referência à morte pressentida por Camões;

- doença de Maria;

- referências de D. Manuel de Sousa Coutinho à morte e ao convento;

- referência à inexistência de Maria, caso D. João de Portugal estivesse vivo.

● Características românticas da cena

▪ O caráter histórico.

▪ A exaltação dos valores patrióticos e da identidade nacional (a crença no


Sebastianismo, a alusão a Camões, a luta pela liberdade).
▪ A presença dos agouros/superstições (de Telmo, Maria, D. Madalena).

▪ A dimensão apaziguadora da fé cristã.

Análise da Cena 2 do Ato II de Frei Luís de Sousa

● Assunto: Manuel de Sousa Coutinho revela a Maria a identidade do retratado (D. João
de Portugal) e aconselha a filha a dedicar-se mais a atividades próprias da sua idade.

● Esta cena é uma continuidade da anterior: Maria tinha questionado Telmo sobre o
retrato de D. João; Telmo é evasivo e não a elucida; Manuel de Sousa entra em cena e
é ele que lhe responde, sem subterfúgios.

● De facto, Manuel de Sousa Coutinho entra em cena e revela a Maria a identidade do


cavaleiro do retrato (“Aquele era D. João de Portugal, um honrado fidalgo e um
valente cavaleiro.”), confirmando as dúvidas da filha: “Bem mo dizia o coração!” Esta
exclamação confirma as premonições de Maria, visto que, sem ninguém lho afirmar, já
sabia que o retrato era de D. João de Portugal.

O fidalgo refere-se a D. João de forma semelhante à que fizera na cena 8 do Ato I:


elogia e admira as suas qualidades e não tem quaisquer ciúmes (afinal, morto ou
não, tinha sido o primeiro marido de D. Madalena).

Este comportamento contrasta com o de D. Madalena, que receia o passado e sente


uma culpa de que não consegue libertar-se. Pelo contrário, Manuel de Sousa não
tem nada que o faço sentir-se culpado e para si o passado é apenas isso – o passado.
Admira-o, respeita-o, mas não o receia.

● Maria não reconhece o pai pela voz, apenas quando o vê, porque se encontrava
obcecada pela imagem de D. João.

● Manuel de Sousa veio a casa de dia, embora encoberto com uma capa e um chapéu.
Anda escondido para escapar à perseguição dos governadores. A afronta dos incêndios
leva a que tenha de ir a sua casa disfarçado e de forma oculta. Perante a preocupação
e a inquietação da filha (“Mas de dia!... Não tendes receio, não há perigo já?”), Telmo
tranquiliza-a, dizendo-lhe que o maior perigo de represálias por parte dos
governadores castelhanos já tinha passado: “(…) sei pelo senhor Frei Jorge que está, se
pode dizer, tudo concluído.”

● Mais uma vez, Maria revela ser uma jovem marcada pela doença: as mãos quentes e a
testa a escaldar (hipérbole) de febre são sintomas de tuberculose. Tal como sucede
noutros passos da obra, o pai pede-lhe que não pense tanto, que se divirta. De facto,
os progenitores consideravam que a reflexão em excesso e o estudo a debilitavam
ainda mais. Na realidade, Maria dedicava-se imenso aos estudos, lia muito,
questionava tudo, o que era invulgar para a sua idade. Por outro lado, era uma jovem
doente e a falta de distrações, de brincadeiras adequadas à sua idade acentuam a sua
debilidade. Além disso, os estudos eram ocupação de homens, não de mulheres,
mesmo aristocratas, que apenas deviam saber o necessário para a sua condição na
época: bordar, tocar harpa, organizar o trabalho dos serviçais.

● Retrato de Maria

Maria confirma nesta cena e na anterior que é uma criança curiosa, precoce e
perspicaz, com uma intuição apurada: “(…) é que eu sabia de um saber cá de dentro;
ninguém mo tinha dito, e eu queria ficar certa.” Note-se, por exemplo, que ela não
sabia de quem era o retrato, mas parecia saber que pertencia a D. João de Portugal, o
dono da casa, como se tivesse o dom da adivinhação, daí que o pai lhe chame
«feiticeira» depois de a ouvir dizer que “sabia de um saber cá de dentro”.

● Em determinado momento da cena, Manuel de Sousa deixa de tratar a filha por tu e


dirige-se-lhe por você (“Ah! você sabia e estava fingindo?”). Esta mudança de
tratamento constitui uma repreensão carinhosa, visto que Maria questionou Telmo
insistentemente para saber quem era a figura retratada, colocando-a até numa
posição desconfortável, mas, logo de seguida, confessou que já sabia de quem era o
retrato.

● Retrato de Manuel de Sousa

Manuel mostra ser bom pai, atento (“esta testa”, “Escalda!”), preocupado com
a filha e o resto da família. Por outro lado, demonstra ser franco e honesto, pois não
esconde a identidade do retratado no quadro, falando dele abertamente. Além disso, é
uma pessoa culta, como o reconhece Maria (“Manuel – Poetas e trovadores padecem
todos da cabeça…” / “Maria – E então pata que fazeis vós como eles? Eu bem sei que
fazeis.”), e revela uma profunda fé (“Valha-te Deus, Maria!”).

● Características trágicas da cena

▪ Agón: o conflito de D. João com Maria, que se manifesta nesta cena (tal como na
anterior) nos sonhos premonitórios e na sagacidade com que esta perscruta as
palavras e as meias palavras, os silêncios, os olhares, os gestos da mãe e do pai, o
conflito com Telmo, até lhe ser revelada a identidade da figura do retrato.

Análise da Cena 3 do Ato II de Frei Luís de Sousa

● Nesta cena, Manuel de Sousa, logo na sua primeira fala, desafia o Destino: “Mas vamos:
não dirão que sou da Ordem dos Pregadores? Há de ser destas paredes, é unção da casa:
que isto é quasi um convento aqui, Maria… Para frades de S. Domingos não nos falta
senão o hábito…”. Estas palavras despretensiosas e risonhas cortam o tom solene, quase
de sermão, com que Manuel de Sousa, momentos antes, interpretara a “grande
propensão (da filha) para achar maravilhas e mistérios nas coisas mais naturais e
singelas”, e lhe dera uma interpretação teológica sobre os segredos inefáveis de Deus.
Estas palavras possuem, contudo, um sentido oculto, talvez até de trágica ironia: com
elas, mais uma vez Manuel de Sousa desafia o Destino. E este pega-lhe nas palavras tão
imprudentemente proferidas: Manuel de Sousa terá de renunciar a tudo e vestir o hábito
de S. Domingos.

● Na primeira fala, Manuel de Sousa procura persuadir Maria de que não faz sentido
acreditar em presságios, dizendo-lhe que a única coisa que não se pode explicar é a Fé;
tudo o resto deve ser analisado à luz da razão.

● Prossegue nesta cena o conflito de Manuel de Sousa com D. João. Ele louva as nobres
qualidades de alma deste, a sua grandeza e valentia, a força de vontade, serena, mas
indomável, que nunca foi vista mudar, mas a realidade é que Manuel entrou naquela
casa, está no ambiente em que D. João vivera com D. Madalena, aparentemente como
senhor da casa, na ambígua situação de usurpador, de intruso.

● De seguida, Manuel de Sousa realça a reação de D. Madalena (“estremece”) sempre que


ouve falar no primeiro marido. Ele atribui esta atitude ao respeito que ela teria pela
memória de D. João, não se apercebendo de que, na verdade, “estremece” por causa dos
seus receios relativamente ao destino de D. João de Portugal.

● Presságios

▪ As palavras de Manuel de Sousa a propósito de parecer um frade constituem um novo


indício de fatalidade: “Para frades de S. Domingos não nos falta senão o hábito…”. Sem
saber, Manuel de Sousa antecipa, simbolicamente, o desfecho da peça, altura em que D.
Madalena e ele ingressarão em conventos da Ordem de S. Domingos.

▪ A comparação irónica de Manuel de Sousa a um pregador – “(…) não dirão que sou da
Ordem dos Pregadores?” – indicia a tomada do hábito.

▪ A referência à capela: “Ainda não viste daqui a igreja? É uma devota capela desta. E
todo o tempo tão grave! Dá consolação vê-la.”. Será nela que Manuel e Madalena
tomarão o hábito.

▪ A resposta de Manuel à fala de Maria, que afirma ter pena de D. João ter morrido na
batalha de Alcácer Quibir: o pai lembra-lhe que, se ele estivesse vivo, ela não existiria e
a família seria destruída, o que deixa Maria angustiada: “Manuel – Mas se ele vivesse…
não existias tu agora, não te tinha eu aqui nos meus braços. / Maria (escondendo a
cabeça no seio do pai) – Ai, meu pai!”. Isto indicia o desfecho trágico: a alusão ao facto
de a vida de D. João implicar a não existência de Maria. Se, no passado, o regresso do
cavaleiro inviabilizaria o seu nascimento, no presente, acarretará a sua morte, ou seja,
ela sofrerá a vergonha de ser filha ilegítima.

▪ A comparação do palácio de D. João a um convento – “isto é quase um convento aqui”


– e a fala “a morte – e a vida que vem depois dela tão diante dos olhos sempre “ -
antecipam uma mudança na vida da família e antecipam o desfecho da obra: é ali que
Manuel e Madalena vão professar e tomar o hábito.

Análise da Cena 4 do Ato II de Frei Luís de Sousa

● Frei Jorge abre a cena saudando efusivamente Maria: “Ora alvíssaras, minha dona
sobrinha!” Esta expressão era usada quando alguém pretendia obter uma recompensa
(“alvíssaras”) por trazer boas notícias. Neste caso, Frei Jorge usa-a metaforicamente,
para anunciar à sobrinha que lhe traz uma boa notícia: os governadores perdoaram a seu
pai o facto de ter incendiado o palácio.

● Frei Jorge, de facto, traz a notícia do perdão dos governadores a Manuel de Sousa, pelo
que este não terá mais de continuar escondido, dado que não corre o risco de retaliação.
Poderá, assim, retomar a sua vida normal e movimentar-se livremente.

● Frei Jorge aconselha o irmão a que o acompanhe a Lisboa, porque deseja que Manuel
faça parte da comitiva que trará o arcebispo para Almada, como forma de lhe agradecer
a intervenção no caso, persuadindo os demais governadores a perdoarem-lhe a afronta.
Note-se como repetem a expressão «os outros», referindo-se aos que governam em
nome do rei castelhano, mostrando que não os querem nomear. No fundo, é uma forma
de mostrar desprezo por eles.

● Manuel de Sousa concorda e anuncia que também tem necessidade de se deslocar a


Lisboa para falar com a abadessa do convento das freiras no Sacramento. Maria decide
acompanhá-lo para visitar a tia Joana de Castro, por quem nutre grande admiração.
Tudo se prepara, pois, para que Madalena fique só, desprotegida e vulnerável,
angustiada pelos seus terrores, para enfrentar a chegada do Romeiro. A atmosfera
trágica adensa-se.

● A referência à tia Joana de Castro constitui um presságio de desgraça (vide cena 8, Ato
II), dado que, juntamente com o seu marido (D. Luís de Portugal, Conde de Vimioso),
optou pela vida religiosa. De facto, este casara com D. Joana de Castro e Mendonça,
depois de ter sido resgatado do cativeiro de África. O casal teve filhos. Subitamente,
porém, foram tocados pelo tédio do mundo e da vida, e entrou cada um no seu
convento.

● Outra informação trazida por Frei Jorge diz respeito ao fim do surto de peste em Lisboa.
Na realidade, ela começara em finais de agosto de 1599. Porém, só terminou de forma
definitiva em fevereiro de 1602. Sabe-se hoje que Manuel de Sousa ajudou a debelar o
mal, como guarda-mor da saúde, e por isso foi recompensado pelo rei castelhano, a
quem servia com lealdade.

Análise da Cena 5 do Ato II de Frei Luís de Sousa

● Importância da cena no contexto da peça


Esta cena repõe aparentemente a ordem e a tranquilidade na família. Como o
marido já não precisa de se esconder, D. Madalena sente-se “curada” e Frei Jorge
incentiva-os a usufruir da felicidade como uma dádiva divina.
Contudo, a alusão a sexta-feira, um dia muito temido por D. Madalena, e a
ausência do marido, da filha e do próprio Telmo indiciam a vulnerabilidade da
personagem, que ficará confirmada com a chegada do Romeiro. O confronto, cara a
cara, entre D. Madalena e o primeiro marido prepara-se.

● Estado de espírito de D. Madalena

▪ D. Madalena surge em cena restabelecida e bem-disposta, afirmando estar bem


(“Estou boa já, não tenho nada…”), mas essa boa disposição é passageira, e logo
parece regressar à profunda tristeza em que vive [“(Vai recair na sua tristeza).”],
procurando, após as palavras de Frei Jorge, mostrar-se alegre [“(fazendo por se
alegrar)”].

▪ No entanto, ao saber que o marido tem de ir a Lisboa, fica inquieta e apreensiva (“A
Lisboa… hoje!”). A referência àquele dia (sexta-feira), ao qual atribui uma conotação
muito negativa e considera aziago, deixa-a abatida e aterrorizada[“Sexta-feira!
(aterrada). Ai que é sexta-feira!”]. Após as palavras de Manuel de Sousa, parece entrar
num estado de resignação [“(caindo em si) – Tens razão.”; “(fazendo por se resignar)”].

▪ As razões apresentadas por D. Madalena para a filha (e, no fundo, também o marido)
não ir a Lisboa são todas de cariz sentimental e exageradas. De facto, não apresenta
qualquer argumento racional ou sólido; apenas se lamenta de ficar só, abandonada
por todos, entregue aos seus terrores:

- o terror de ser sexta-feira (“Logo hoje” → este advérbio de tempo será


repetido 24 vezes até ao final do ato, constituindo uma espécie de refrão -
voz coral que previne o espectador da data em que irão justificar-se os
constantes terrores de D. Madalena);

- o terror de ficar só, sobretudo neste dia;

- a sensação de desamparo;

- a aflição por nunca se ter separado da família (cena 7);


- as inúmeras recomendações e os inúmeros cuidados, sobretudo com Maria,
revelam o seu amor maternal;

- as expansões amorosas em relação a Manuel mostram a sua paixão (ficamos


mesmo com a impressão de que o amor dela é muito mais profundo, talvez
por Manuel se deixar guiar mais pela razão do que pelo sentimento).

▪ A preocupação, a inquietação, a apreensão e a ansiedade de D. Madalena crescem


quando o marido lhe diz que tem de ir a Lisboa nesse dia (“A Lisboa… hoje!”), pois
aquele dia

● Retrato das restantes personagens

▪ Manuel de Sousa sente-se apreensivo com o estado psíquico da esposa, que, embora
procure disfarçar, está cada vez mais insegura, receosa e vulnerável.

Por outro lado, perante o crescimento da preocupação e da ansiedade de D.


Madalena quando lhe diz que tem de ir a Lisboa nesse dia (“A Lisboa… hoje!”),
pois aquele dia é aziago e muito receado por ela, enquanto homem racional,
Manuel de Sousa apresenta-lhe argumentos racionais que justificam a viagem (e a
da filha por arrasto). Assim, (1) explica-lhe que, por uma questão de gratidão,
deverá deslocar-se à capital para acompanhar o regresso do arcebispo a Almada.
Além disso, (2) acrescenta que estará de volta a casa ao anoitecer e que,
posteriormente, não sairá de junto dela durante o tempo que desejar.

Além disso, mais uma vez fica patente o contraste que caracteriza o casal:
Madalena é uma mulher sentimental/emotiva, perseguida pelos agouros e ligada
ao passado, do qual não se liberta, com problemas de consciência, enquanto
Manuel é um homem decidido e racional, íntegro e sem problemas de consciência
que o atormentem.

▪ Maria fica entusiasmada com a perspetiva de ir a Lisboa, mas fica desiludida e triste
quando lhe dizem que não poderá ir para não deixar a mãe sozinha. A alegria e o
entusiasmo regressam quando tudo se compõe de forma a permitir a sua viagem, no
entanto, acaba por reconhecer, num aparte, que não consegue deixar de pensar e de
se preocupar, daí que a sua cabeça nunca será «fria», isto é, racional. Tal só sucederá
quando estiver «oca», ou seja, sem vida.

▪ Frei Jorge é aquela figura sempre pronta para pacificar os espíritos atormentados, por
isso oferece-se para fazer companhia à cunhada durante a ausência, de modo que
Maria possa acompanhar o pai a Lisboa e visitar Sóror Joana.

● Presságios

▪ O advérbio de tempo «hoje» é repetido treze vezes nesta cena, constituindo um


símbolo da desgraça, um mau augúrio. A sua repetição indicia que algo muito
importante vai suceder nesse dia.

▪ A referência à “santa freirinha” (Sóror Joana), “que tanto deixou para deixar o mundo e
se ir enterrar num claustro.” antecipa o destino de D. Madalena.

▪ A sexta-feira é um dia aziago, de mau agoiro.

Análise da Cena 6 do Ato II de Frei Luís de Sousa

● Esta é uma cena rápida, girando em torno de Maria, após a sua saída de cena para se
preparar para a viagem a Lisboa.

● Manuel argumenta em defesa da filha, afirmando que a ida lhe fará bem, pois ela
necessita de se distrair, de sair de casa, mudar de espaço. Só assim se evitará que
esteja sempre a pensar nos mesmos assuntos.

● D. Madalena declara que quer que Telmo acompanhe Maria: “Telmo que vá com ela;
não o quero cá.” Por que razão deseja ela tal coisa? D. Madalena não quer ficar
sozinha com o velho aio de D. João de Portugal, pois teme que se repita o diálogo da
cena II do Ato I e que a atormente com os seus presságios, nomeadamente com as
dúvidas em torno do regresso de D. Sebastião e D. João. Assim sendo, deseja que ele
esteja longe, sobretudo naquele dia tão marcante para ela. Perante o marido, justifica-
se dizendo que Telmo e Maria necessitam um do outro e que ele, estando velho, a põe
a cismar: “… e entra-me com cismas que…”. Tal como sucede ao longo da peça, D.
Madalena receia a presença de Telmo.

● Nas falas de D. Madalena, assumem grande relevância as reticências, que indiciam a


falta de argumentos de D. Madalena para explicar o desejo de que Telmo não fique em
Almada. De facto, as reticências mostram que a personagem interrompe as suas
frases, como se procurasse um argumento minimamente convincente. O seu discurso
é o de quem fala movido pela emoção e não pela razão, por razões convincentes.

Análise da Cena 7 do Ato II de Frei Luís de Sousa

● O discurso de D. Madalena demonstra a sua preocupação e ansiedade: repetições,


cortes nas frases, exclamações, mudança de tom de voz [“(Baixo a Doroteia)”; [“(Fala
baixo da Doroteia que lhe responde baixo também: depois diz alto.)”], recomendações
a todos que acompanham a filha.

● Manuel de Sousa Coutinho e Maria consideram a hipótese de já não ir a Lisboa, tal é o


choro de D. Madalena, que se despede dramaticamente do marido (“Adeus, esposo do
meu coração!”) e, além dos muitos conselhos que dá (“Maria, minha filha, toma
sentido no ar, não te resfries. E o sol… não saias de baixo do toldo do bergantim.
Telmo, não te tires de ao pé dela.”), revista tudo o que a filha leva, para que não lhe
falte nada.

● Tendo em conta que a viagem é curta (de Almada a Lisboa e regresso) e breve
(regressarão naquele mesmo dia), como se justifica todo o dramatismo de D.
Madalena? Ela pressente que esta partida, esta despedida, não é momentânea, de
horas, mas para sempre. As cenas seguintes comprovam que tem razão, já que,
quando se reencontrar com o marido e com a filha, o seu casamento e a sua família
presentes não são mais viáveis, pois está confirmado que D. João de Portugal está vivo
através do seu regresso na pele do Romeiro. Assim sendo, esta é a última vez que se
veem enquanto elementos da mesma família. Por exemplo, D. Madalena e Maria só
tornarão a ver-se no momento em que a primeira se prepara para ingressar no
convento.
● D. Madalena, nesta cena, mostra-se muito carinhosa com Maria e zelosa e preocupada
com o seu bem-estar, envidando todos os esforços para que nada lhe aconteça ou
falte. Maria, por sua vez, procura acalmar a mãe, mas, na realidade, sente-se
profundamente abalada com a tristeza e o sofrimento que D. Madalena deixa
transparecer.

Análise da Cena 8 do Ato II de Frei Luís de Sousa

● Localização da cena na obra

Esta cena é antecedida pela preocupação de D. Madalena quanto à deslocação


de Manuel de Sousa e de Maria a Lisboa, esta para visitar a Condessa de Vimioso, e é
seguida por novas observações acerca do bem-estar e da segurança de Maria e
constatação, por arte da mãe, em pânico, da negatividade de que aquele dia se
reveste, na medida em que fora a data em que casara pela primeira vez, a data em que
perdera o primeiro marido na batalha de Alcácer Quibir e que vira e amara Manuel de
Sousa pela primeira vez.

● Assunto: o estado de preocupação de D. Madalena, agravado pela referência ao


exemplo da Condessa de Vimioso, que Manuel de Sousa refere numa tentativa vã de a
tranquilizar.

● Estrutura interna

▪ 1.ª parte – O medo incontrolado de D. Madalena por ficar sozinha.

▪ 2.ª parte – A tentativa de apaziguamento de D. Madalena por parte de Manuel de


Sousa, referindo outras situações e personagens que, simultaneamente, se aproximam
e distanciam do seu caso.

● Caracterização de D. Madalena
▪ Fraca:
- porque se deixa abater pelos seus próprios sentimentos – dominada pelos sentimentos
→ característica da heroína romântica;
- porque não luta para ultrapassar a sua insegurança: “Que queres? Não está na minha
mão.”;
- porque não se considera detentora de coragem semelhante à da Condessa de Vimioso,
que ingressou num convento.

▪ Insegura, tensa, inquieta e receosa de ficar só: “Tenho este medo, este horror de ficar
só…”.

▪ Sentimental e emotiva, bem ao gosto romântico.

▪ Mãe desvelada: preocupa-se com a saúde débil de Maria.

▪ Mostra-se espantada e até indignada com a atitude tomada pela Condessa de Vimioso:
espantada, pois os esposos separaram-se sem razão aparente; indignada, já que essa
separação não lhe parece razoável.

▪ Por outro lado, mostra admiração pela força e pela virtude que a Condessa
demonstrou ao abdicar dos bens e amor terrenos, até porque não se vê capaz de tais
«perfeições», considerando a atitude dos condes como uma assunção de morte em
vida.

● Caracterização de Manuel de Sousa

▪ Começa por repreender a esposa por esta continuar a mostrar-se crente em achar-se
“só no mundo”, como o demonstra a exclamação «Madalena!».

▪ É mais racional e sensato do que a esposa, firme, decidido e objetivo, como o


demonstra o facto de tentar afastar os agouros, as crenças e as superstições desta,
fazendo-lhe notar o exagero dos mesmos: “Olha se ela faria esses prantos, quando
disse o último adeus ao marido…”.

▪ Mostra-se dedicado, carinhoso e apaixonado pela esposa, o que se nota nas formas de
tratamento utilizadas: “Oh! queria mulher minha”.
▪ Mostra-se também preocupada com a fragilidade e a insegurança de D. Madalena ao
tentar apaziguá-la e ao deixar seu irmão Jorge fazendo-lhe companhia: “Jorge, não a
deixes”.

▪ É um homem seguro, pois sente-se protegido por Deus e convicto de que nada lhes
acontecerá: “A nossa situação é tão diferente (…) Em todas nos pode ele abençoar”.

● Elementos trágicos da cena

▪ O pathos constante de D. Madalena (o sofrimento da personagem que impregna a


obra de um cariz trágico e nefasto).

▪ Os presságios:
- O receio de D. Madalena de ficar só no mundo.
- Os terrores de D. Madalena.
- O comentário premonitório de Frei Jorge, que antecipa a separação de Madalena e a
sua entrega à vida religiosa: “É perfeição verdadeira; é a do Evangelho: «Deixa tudo e
segue-me».”
- A história dos condes de Vimioso, referida pela boca de D. Madalena: “Vivos ambos…
sem ofensa um do outro, querendo-se, estimando-se… e separar-se cada um para sua
cova! Verem-se com a mortalha já vestida e… vivos, sãos… depois de tantos anos de
amor… e conveniência… condenarem-se a morrer longe um do outro, sós, sós! E quem
sabe se nessa tremenda hora… arrependidos!” Esta referência antecipa a separação de
D. Madalena e Manuel de Sousa, que serão obrigados a seguir o exemplo de D. Joana e
do marido, estabelecendo-se um paralelo entre os dois casais. De facto, a semelhança
entre os dois casos é evidente: tanto D. Madalena como Manuel de Sousa optaram
pelo afastamento da vida mundana, decidiram professar, tal como sucedeu à condessa
(que entrou no Convento do Sacramento em 1607) e a seu esposo (que professou
pouco depois em S. Domingos de Benfica). A reclusão conventual parece ser a
alternativa, na época, para os responsáveis por atos de menor dignidade ou nobreza –
a constatação do adultério de D. Madalena e a ilegitimidade de Maria e Manuel de
Sousa naquela família.

● Características trágicas da cena


▪ A importância conferida a aspetos religiosos.

▪ A importância atribuída ao amor, centro dos problemas que afetam as personagens.

▪ A interioridade e os conflitos individuais patentes em D. Madalena, quer nos seus


monólogos, quer nos seus diálogos.

▪ A linguagem utilizada, que pretende ser um espelho fiel da emotividade, do estado


psicológico das personagens.

▪ A espontaneidade da oralidade: as pausas, as frases suspensas e as repetições.

● Linguagem

▪ Gradação: “Tenho este medo, este horror de ficar só…”.

▪ Repetição do determinante demonstrativo «este».

▪ Hipérbole: “… de vir a achar-me só no mundo…”.

▪ Reticências nas falas de D. Madalena.

▪ O vocábulo «cuidados» possui um duplo significado:


- por um lado, traduz a preocupação de D. Madalena quanto à saúde débil de Maria;
- por outro lado, refere-se aos temores, receios, que a atormentam a partir de uma
passagem da sua vida que a inquieta.

▪ Trocadilho: “Eu não tenho já cuidados” – na verdade, D. Madalena só sente / tem


“cuidados”, preocupações, medos. A ironia aqui presente reforça o seu estado de
extrema inquietação, que a faz quase chegar a um estado de demência ficando
consternada, perturbada com a existência e a razão de tais cuidados.

▪ Comparação: “… parece que vou eu agora embarcar num galeão para a Índia…” –
sugere a grande angústia de D. Madalena.
▪ Ironia trágica das palavras de D. Madalena e Manuel de Sousa quando se referem aos
condes de Vimioso: “E que temos nós com isso? A nossa situação é tão diferente.” O
casal comenta a entrada dos condes de Vimioso para o convento como sendo um
sacrifício de que eles mesmos não seriam capazes: “… não sou capaz de chegar a essas
perfeições”; “E que temos nós com isso?” A ironia reside no desconhecimento de
estarem tão próximos de uma situação que julgam muito diferente da sua.

Análise da Cena 9 do Ato II de Frei Luís de Sousa

● Após a partida de Manuel de Sousa, Maria e Telmo, D. Madalena está finalmente só –


ou quase, pois tem a companhia de Frei Jorge –, no local onde se dará, pouco depois, o
encontro fatal com o Romeiro: a sala dos retratos.

● Esta cena é constituída por uma única fala, sob a forma de monólogo, de Frei Jorge.
Nela, o frade, que até ao momento se tinha mantido distante de agouros e sempre
racional, qual coro da tragédia clássica, deixa-se contaminar pelo clima ominoso criado
e também ele começa a adivinhar que se aproxima uma tragédia.

● Deste modo, podemos concluir que a função deste monólogo é a seguinte: Frei Jorge
transmite os seus pensamentos mais íntimos, reafirmando, angustiadamente, o
pressentimento de uma iminente tragédia, que ele quer esconder a todo o custo da
sua família. Por outro lado, o monólogo, para o leitor, constitui uma preparação, um
indício trágico de uma desgraça futura.

● Frei Jorge desempenha, de novo, uma função idêntica à do Coro da tragédia clássica.
As suas palavras lembram-nos mais uma vez a sua atuação moderada e sensata ao
longo da peça, procurando sempre minimizar as preocupações da família e moderar as
suas reações. A apreensão que, agora, manifesta é, inevitavelmente, de mau agouro.

Análise da Cena XII do Ato II de Frei Luís de Sousa

● Assunto

Se, no final da cena anterior, D. Madalena manifesta toda a sua boa


vontade para receber o Romeiro, nesta Frei Jorge expressa algum cuidado, pois
estava-se numa época em que, de facto, havia muitos peregrinos, mas também
falsos romeiros que, à custa de enganos, queriam beneficiar da caridade da
aristocracia.
Por outro lado, a expressão “E nestes tempos revoltos” conduz-nos ao
tempo histórico da peça. Para compreender o seu significado, transcrevemos
um excerto da página 135 do manual Caminhos 11, da Areal Editores e da
autoria de Elsa Freitas et alii: «Na verdade, os tempos são revoltos, pois
Portugal, com a morte do rei D. Sebastião em Alcácer Quibir, estava sujeito ao
“domínio filipino”. Perante a perda da independência e da soberania, o país,
empobrecido e desalentado, vivia um clima de contestação, popularmente
alicerçado na crença sebastianista, a qual preconizava o regresso do rei e, com
ele, a nova glória do reino.».

Análise da Cena XII do Ato II de Frei Luís de Sousa

● Assunto

Se, no final da cena anterior, D. Madalena manifesta toda a sua boa


vontade para receber o Romeiro, nesta Frei Jorge expressa algum cuidado, pois
estava-se numa época em que, de facto, havia muitos peregrinos, mas também
falsos romeiros que, à custa de enganos, queriam beneficiar da caridade da
aristocracia.
Por outro lado, a expressão “E nestes tempos revoltos” conduz-nos ao
tempo histórico da peça. Para compreender o seu significado, transcrevemos
um excerto da página 135 do manual Caminhos 11, da Areal Editores e da
autoria de Elsa Freitas et alii: «Na verdade, os tempos são revoltos, pois
Portugal, com a morte do rei D. Sebastião em Alcácer Quibir, estava sujeito ao
“domínio filipino”. Perante a perda da independência e da soberania, o país,
empobrecido e desalentado, vivia um clima de contestação, popularmente
alicerçado na crença sebastianista, a qual preconizava o regresso do rei e, com
ele, a nova glória do reino.».

Análise da Cena XIV do Ato II de Frei Luís de Sousa


● Assunto

O Romeiro, na função de simples mensageiro portador de um recado, é


admitido à presença de Frei Jorge e de D. Madalena, logo por ele identificada (II,
13) como «a mesma» a quem desejava falar. Esta fala do Romeiro pode ter dois
sentidos: aquela que dizeis ser ou aquela que eu conheço muito bem.
Obviamente, é o primeiro sentido que D. Madalena e Frei Jorge terão
entendido.

● Comentário global da cena

Seria esta personagem uma presença pacífica, se não fossem certas


particularidades únicas e excecionais, reveladas pelas palavras e pelas atitudes
do Romeiro, que o dão a conhecer como autêntica personagem e não apenas
como um mensageiro qualquer. Começa por se afirmar como um português que
vem dos Santos Lugares, após 20 anos aí passados. Mas logo as suas palavras e
atitudes patenteiam uma inquietante luta verbal, uma presença perturbadora:
"Queria rezar e meditar nos mistérios da Sagrada Paixão que ali se obrou... e as
paixões mundanas e as lembranças dos que se chamavam meus segundo a
carne travavam-me do coração e do espírito, que os não deixavam estar com
Deus, nem aquela terra que é toda sua".
Os sofrimentos do Romeiro, recalcados durante 20 anos, eram provocados
pelas lembranças da esposa. Pois quem seriam os que se "chamavam meus
segundo a carne" senão a própria esposa? Não declara ele a Frei Jorge que "não
tem filhos"? E logo acrescenta: "A minha família... Já não tenho família". A
amargura perante a triste realidade que veio encontrar está toda contida
naqueles dois advérbios.
D. Madalena, compassiva, lembra-lhe que "sempre há parentes,
amigos...", ao que o Romeiro rapidamente retorque: "Parentes!... Os mais
chegados, os que eu me importava achar... contaram com a minha morte,
fizeram a sua felicidade com ela: hão de jurar que me não conhecem". E a
verdade é que D. Madalena, frente ao primeiro marido, dialogando com ele,
não o reconhece, nem sequer pela voz. Se o que lhe importava achar eram os
parentes mais chegados e estes estavam reduzidos à esposa, então a censura,
na maneira de ver e sentir do Romeiro, ajustava-se perfeitamente à realidade:
D. Madalena contara com a morte de D. João, fizera a sua felicidade com ela,
isto é, casara-se segunda vez por se julgar viúva. E desta vez com o homem que
sempre amou, desde que o viu pela primeira vez. Conclusão lógica: havia de
jurar que não o conhecia.
D. Madalena, porém, parece anestesiada: nada vê, nada sente, nada
compreende. E a cegueira é tão profunda que nem dá conta de se condenar
pelas suas próprias palavras: "Haverá tão má gente... e tão vil, que tal faça?" A
resposta do Romeiro é rápida e cortante: "Necessidade pode muito. Deus lho
perdoará, se puder!". É mais um golpe certeiro no mais profundo da alma de D.
Madalena, que, no entanto, o julga apenas resultado de "juízos temerários".
Oferece-lhe, então, D. Madalena "amparo e agasalho", promete-lhe
proteção, sua e do marido. O Romeiro, a estas palavras, ofende-se, diante de
tantos oferecimentos, sublinhados com a palavra marido. Marido, ali, em sua
própria casa, para a sua própria esposa, era ele; não Manuel de Sousa, o intruso.
D. Madalena pede-lhe perdão, se o ofendeu. A resposta do Romeiro fere
novamente como punhal afiado: "Não há ofensa verdadeira senão as que se
fazem a Deus. Pedi-lhe vós perdão a Ele, que não vos faltará de quê". Torna D.
Madalena: "Não, irmão, não decerto. E Ele terá compaixão de mim", ao que o
Romeiro responde: "Terá...". Ora, este futuro dubitativo significa que, no
entender do Romeiro, Deus não perdoará à esposa que o abandonou e traiu. E
isto dito frontalmente, cara a cara. Assim o terão compreendido Frei Jorge, que,
diz a didascália, «corta a conversação».
De facto, a conversação, o diálogo, já tinha ido muito longe entre as duas
personagens. Mas nem deste modo D. Madalena compreende, não obstante
ficar malferida, neste começo nada prometedor. Frei Jorge corta a conversação
e ordena ao Romeiro que dê já o recado àquela dama. D. Madalena,
procurando ganhar tempo, intervém: "Deixai, deixai, não importa, eu folgo de
vos ouvir: dir-me-eis o vosso recado quando quiserdes... logo, amanhã...". Assim
seria, com grande alívio para D. Madalena, se o Romeiro não estivesse preso por
um juramento solene: "Hoje há de ser. Há três dias que não durmo nem
descanso, nem pousei esta cabeça, nem pararam estes pés dia nem noite, para
chegar aqui hoje, para vos dar meu recado... e morrer depois... ainda que
morresse depois; porque jurei... faz hoje um ano... quando me libertaram, dei
juramento sobre a pedra do Santo Sepulcro de Cristo...".
Das palavras do Romeiro se conclui que o dia da entrega do recado era
importante para o suposto companheiro de cativeiro: "Hoje há de ser"; que dar
o recado nesse dia era uma questão de vida e de morte: "... para vos dar meu
recado... e morrer depois... ainda que morresse depois... ". Para D. Madalena,
este era o dia fatal, indesejado e temido, pela sobrecarga, pela acumulação de
coincidências desastrosas (II, 10). Para quem mandou o Romeiro (e
singularmente também para o próprio Romeiro) este dia também o dia fatal,
em que se cumpriam 21 anos sobre o desastre de Alcácer Quibir: 20 anos de
cativeiro, mais um ano de viagem, com a agravante de os 3 últimos dias serem
de marchas forçadas, para o mensageiro chegar à presença de D. Madalena no
dia exato, aquela sexta-feira, o dia fatal: "Hoje há de ser".
D. Madalena, «aterrada», finalmente pressente, sabe quase de certeza,
que o autor do recado não pode ser senão D. João de Portugal, ainda não
libertado, mas vivo. E indaga:
"– E quem vos mandou, homem?
– Como se chama?".
O Romeiro, apesar de vir da parte de um "honrado homem... a quem
unicamente devi a liberdade...", companheiro de todas as horas durante 20
anos, responde estranha e enigmaticamente que nada mais sabe: "O seu nome,
nem o da sua gente nunca o disse a ninguém no cativeiro". Só restava ao
Romeiro desempenhar-se da missão de que o tinham incumbido tão
solenemente, por meio de um juramento: transmitir a D. Madalena, pelas
próprias palavras de quem o tinha enviado, a terrível mensagem: ""Aqui estão
as suas palavras: Ide a D. Madalena de Vilhena, e dizei-lhe que um homem que
muito bem lhe quis... aqui está vivo... por seu mal... e daqui não pôde sair nem
mandar-lhe novas suas, de há vinte anos que o trouxeram cativo".
Ora neste recado simples e curto, de palavras medidas, mas densas de
significado, diretas, claras e irrefutáveis, há vários aspetos dignos de nota:
1.º) O recado era, sem dúvida, para D. Madalena. Era ela a destinatária. Por isso é
indicada pelo nome completo: "Ide a D. Madalena de Vilhena...";
2.º) O destinador da mensagem era "um homem que muito bem lhe quis...", isto é,
que a amou. Não poderia ser outro senão D. João de Portugal, o primeiro
marido;
3.º) Ao contrário do que D. Madalena supôs, não estava morto: "... aqui está vivo...";
4.º) Ali sofria as dores físicas e morais do cativeiro, da forçada ausência e separação
da esposa: "... por seu mal...";
5.º) "Dali nunca pôde sair nem mandar-lhe novas suas", porque, se lhe fosse
possível, já teria regressado a casa, ou, pelo menos, teria enviado notícias;
6.º) por fim, D. Madalena empregara, de facto, todos os meios e fizera todos os
esforços para o encontrar no Norte de África, onde ele já não estava: "... de há
vinte anos que o trouxeram cativo".
Não admira, portanto, a reação de D. Madalena às palavras do Romeiro:
«espavorida», grita, com atroz sofrimento, vindo do fundo da alma («Meu Deus,
meu Deus! Que se não abre a terra debaixo de meus pés?... Que não caem estas
paredes, que me não sepultam já aqui?..."). O pavor de D. Madalena vai
crescendo à medida que o Romeiro vai confirmando a identidade de quem o
enviou, respondendo aos sucessivos pedidos dela de confirmação, crescendo
esse que é visível nas didascálias (“na maior ansiedade”, “espavorida”), bem
como na sua linguagem: frases curtas (“Cativo?”, “Português?”); frases
inacabadas (“esse homem era…”); exclamações e reticências, interjeições e
locuções interjetivas (“Jesus!”, “Meu Deus, meu Deus!”)
Entretanto, nas palavras do Romeiro, existem outros elementos
igualmente inquietantes e que formam, numa autêntica e progressiva
identificação, a imagem no espelho: "As suas palavras trago-as escritas no
coração com as lágrimas de sangue que lhe vi chorar, que muitas vezes me
caíram nestas mãos, que me correram por estas faces. Ninguém o consolava
senão eu... e Deus".
É verosímil que o Romeiro tenha visto muitas vezes o companheiro de
infortúnio chorar "lágrimas de sangue"; mas já é mais estranho que as lágrimas
do outro cativo lhe tenham caído nas mãos, e muito mais estranho ainda que as
lágrimas vertidas por um tenham corrido pelas faces do outro. Não estará o
Romeiro, com estas ambíguas palavras e numa espécie de ilusionismo, a querer
significar outra coisa, isto é, que ele e o outro eram, afinal, uma só
personagem?
No diálogo que se segue com Frei Jorge, as duas primeiras respostas do
Romeiro são constituídas por frases da linguagem corrente e familiar e
costumam empregar-se como uma espécie de superlativo expressivo. E, no
entanto, surgem aqui carregadas de preocupante segundo sentido, sublinhado
não só pela prontidão e pela brevidade, mas ainda mais pelo que, em face das
circunstâncias, dizem sem dizer, e pelo que sugerem ou deixam adivinhar. De
facto, ao olhar para o retrato de D. João de Portugal, o Romeiro não estava só a
examinar ou a comparar parecenças; com efeito, o Romeiro estava, na
realidade, a ver-se ao espelho.
Que mais seria necessário para a identificação do Romeiro com D. João de
Portugal?
No entanto, as reações de Frei Jorge (cena 15) e de D. Madalena não são
semelhantes.
D. Madalena não conclui pela identificação da personagem aparente (o
romeiro-mensageiro) com a personagem oculta ou real (o próprio marido, ali
presente diante dela, embora escondido debaixo daqueles trajes, e mudado na
enganosa aparência de um velho de barbas e de cabelos brancos, na anódina
incumbência de trazer um recado de outro), pois sai precipitadamente da sala,
aterrada, ao tomar consciência da sua situação de pecadora e da ilegitimidade
da sua filha. Demasiado perturbado para com lucidez chegar a essa conclusão,
apenas sente, nas palavras da terrível mensagem do Romeiro, a crueldade da
reviravolta do Destino: D. João de Portugal está vivo. Se assim é, e não há
possibilidade de dúvidas a este respeito, todos os sonhos de felicidade neste
mundo desabam para D. Madalena, todos os laços afetivos, que a prendem a
Manuel de Sousa e à filha, se destroem irremediavelmente. É a ruína da «sua»
família, a desolação e a infelicidade para cada um dos seus membros. Por isso D.
Madalena "foge espavorida", numa última tentativa de se afastar de tão
implacáveis desgraças trazidas pelo Destino.

NOTA:
D. Madalena, geralmente tão sensível à previsão da desgraça, não é agora capaz
de estabelecer qualquer relação entre o Romeiro e a situação dramática que
sempre receou. De facto, o seu conflito com D. João, embora invisível, está
sempre presente (I, 1, 2, 3, 7 e 8; II, 1 e 10) e, nesta cena, é intrigante a quase
anestesia moral, em presença do Romeiro, de D. Madalena que, não obstante
todos os elementos de identificação por ele fornecidos, de forma direta,
embora velada, não reconhece o próprio marido, nem sequer pela voz.

● Estrutura interna da cena

▪ 1.ª parte (do início até “… logo, amanhã…”): o Romeiro revela o local onde viveu durante
os últimos vinte anos, os padecimentos que sofreu, a perda da família e a
certeza de ter um só amigo.

▪ 2.ª parte (de “Hoje há de ser…” até ao fim): a noção de que D. João está vivo e o estado
emocional de D. Madalena vão crescendo até

● Caracterização de D. João de Portugal


- é português;
- vem do Santo Sepulcro;
- viveu nos Lugares Santos durante 20 anos;
- modelo de virtudes do cavaleiro cristão:
. no amor pelo Rei e pela Pátria, de que tem o nome;
. no combate contra os inimigos da Fé, pela qual expõe a vida;
. nos sofrimentos do cativeiro, onde está 20 anos:
* muita fome;
* os maus tratos;
* as privações;
* o distanciamento;
* a falta de notícias;
* o amor e a saudade da esposa (este amor e esta saudade de D. Madalena – as
“paixões mundanas” e as lembranças dos que se chamavam seus “segundo a
carne” – sobrepuseram-se sempre à sua fé, isto é, impediram-no de “rezar e
meditar nos mistérios da Sagrada Paixão”);
- não tem filhos, nem família, nem parentes;
- os mais chegados consideram-no morto;
- apenas tem um amigo (Telmo);
- irritado e ofendido quando D. Madalena lhe oferece o seu "amparo e agasalho"
e do marido;
- cansado, não se poupou a esforços e muito padeceu para ali chegar naquele dia;
- veio para cumprir um juramento feito a alguém: "... antes de um ano cumprido,
estaria diante de vós e vos diria da parte de quem me mandou...";
- sofreu imenso: chorou lágrimas de sangue.

● Caracterização de D. Madalena

O estado de espírito de D. Madalena vai evoluindo ao longo da cena e é


marcado por diferentes sentimentos e emoções:
▪ boa vontade, simpatia e curiosidade iniciais quando recebe o Romeiro;
▪ admiração e estranheza pelo facto de o Romeiro dizer que já não tem família;
▪ ansiedade (e medo) de saber a identidade do homem que enviou o Romeiro;
▪ a ansiedade vai crescendo à medida que o Romeiro vai desfiando revelações
que a fazem ter quase a certeza de que D. João está vivo e foi ele quem enviou
aquele;
▪ o sofrimento e o terror atingem o ponto culminante quando o Romeiro, sem
hesitar, identifica o retrato de D. João;
▪ terror e pavor, que a fazem gritar e fugir, quando tem a certeza de que D. João
está vivo.
Note-se, mais uma vez, como o seu discurso reflete o aumento da
perturbação de D. Madalena:
▪ frases interrogativas curtas (“Cativo?”);
▪ frases suspensas, inacabadas (“Sim, mas…”);
▪ repetições lexicais (“Minha filha, minha filha, minha filha!...”);
▪ acelerações rítmicas (“Estou… estás… perdidas, desonradas… infames!”).

NOTAS:

1. O Romeiro dá-se a conhecer gradualmente, por fases que se podem delimitar


segundo parâmetros: local de onde vem, identidade, família, cativeiro e
libertação, identidade do que o enviou, gesto de reconhecimento (cena 15).
2. O diálogo assenta num crescendo emocional gradual, que tem por finalidade
contribuir para um ambiente altamente dramático, para adiar o clímax e fazer
sofrer D. Madalena.

3. O Romeiro desdobra-se num eu e num ele (desdobramento de personalidade);


D. Madalena recusa até ao máximo possível a verdade, pretendendo iludir-se.

4. Os espectadores/leitores depressa compreendem que o Romeiro é D. João de


Portugal; D. Madalena só no final da cena tem a sua anagnórise
(reconhecimento de que está vivo D. João).

5. A perturbação de D. Madalena é acompanhada da alteração da sua linguagem:


frases curtas, inacabadas, repetições, ritmo acelerado.

6. D. Madalena grita pela filha e parece esquecer Manuel de Sousa. É que a filha é
ilegítima e Manuel de Sousa já não existe como marido. De facto, D. Madalena
grita que ela e a filha estão perdidas, pois o facto de D. João, o primeiro marido,
estar vivo a reduz à condição de mulher adúltera e bígama e torna a filha
ilegítima.

7. O facto de o Romeiro não revelar de imediato a sua identidade permite-lhe ter


um discurso ambíguo, através do qual critica D. Madalena por ter construído
uma nova vida e constituído uma nova família a partir da sua suposta morte.
Ironicamente, é D. Madalena quem, mesmo sem o saber, se critica a si mesma:
“Haverá tão má gente… e tão vil, que tal faça?”.

● Tom dramático da cena

Esta cena é profundamente dramática. Este dramatismo é


cuidadosamente construído, sobretudo a partir das falas do Romeiro:
* vai semeando pistas sobre a sua identidade, mas com um discurso ambíguo;
* a atitude orgulhosa e ofendida do Romeiro quando D. Madalena lhe oferece
proteção, juntamente com o seu marido;
* a acusação velada do Romeiro a D. Madalena, quando lhe diz que ela terá de
pedir perdão a Deus pelas suas ofensas;
* a descrição dos sacrifícios feitos pelo Romeiro para trazer o recado a D.
Madalena;
* a informação de que foi cativo em Jerusalém e que é daí que traz o recado;
* o adiar da transmissão do recado;
* as perguntas feitas por uma Madalena ansiosa e cada vez mais apavorada na
tentativa de descobrir a identidade do homem que enviou o recado;
* o momento em que o Romeiro identifica D. João no retrato.

● Valor do deítico «hoje»

O advérbio de tempo «hoje» refere-se ao dia 4 de agosto de 1599. Ao


estar associado ao complexo verbal com valor de obrigatoriedade “há de ser”,
indica a determinação do Romeiro entregar o recado que traz naquele preciso
dia, pois corresponde a um juramento feito um ano antes.
Esta determinação é reforçada pelo uso do quantificador numeral 3 (“Há
três dias que não durmo, nem descanso.”). Ora, este número simboliza a
perfeição e as três fases da existência, logo significa que aquele é o dia em que
o recado terá forçosamente de ser entregue ao seu destinatário.

Análise da Cena 15 do Ato II de Frei Luís de Sousa

● Comentário da cena

Frei Jorge, atónito, ainda não completamente esclarecido, interroga o


Romeiro para desfazer as últimas dúvidas. No entanto, é para ele que está
reservada a última surpresa:
JORGE – «Romeiro, romeiro, quem és tu?»
ROMEIRO (apontando com o bordão para o retrato de D. João de Portugal) – «Ninguém».
O vocábulo posto na boca do Romeiro – ninguém (pronome indefinido) –
encerra uma grande carga dramática e psicológica. Por um lado, é o desenlace
trágico de uma situação insustentável; por outro, resume todo o sofrimento e a
desilusão do Romeiro, que nada mais pode esperar da vida familiar. De facto, o
sentido da palavra é abrangente: D. João de Portugal é ninguém no sentido de
não ser esperado por nenhum dos seus familiares, que organizaram a sua vida
na base da sua morte; a sua própria casa já não lhe pertence, está ocupada por
um intruso. Assim, o Romeiro anula-se enquanto pessoa com identidade
própria, por não ter existência para os outros, por não ter a vida a que tinha
direito, uma vez que a sua própria família construiu, a partir da sua «morte»,
uma à sua. De facto, o Romeiro fizera todos os esforços para se manter vivo na
Palestina e regressar a Portugal para a sua esposa, mas esta não só já não o
esperava, como também construíra a sua felicidade em cima da sua «morte».
Assim, apagado da memória da mulher que amava e era toda a sua família, D.
João de Portugal perdeu tudo durante os 20 anos de cativeiro: – a família; – a
identidade (ninguém o reconhece); – o lugar que era seu / a sua casa. D. João
de Portugal, aniquilado, é o símbolo de Portugal. Além deste sentido, pode
também ser interpretada como outra prolepse, uma antecipação do desenlace
de D. João: o anonimato.
E ali está presente e vivo D. João, alçado no meio da casa, com aspeto
severo e tremendo. Ele vem reclamar tudo a que tem direito: a casa, a esposa, o
nome... Quem poderá negar-lhe esse direito? Que lei, divina ou humana, poderá
ser invocada para, com justiça, lho negar?
Frei Jorge compreende, por fim, toda a verdade. E só então parece medir o
alcance das implicações desastrosas que essa descoberta vai trazer para D.
Madalena, para Manuel de Sousa e para Maria. Daí que Frei Jorge caia
prostrado no chão, com os braços estendidos diante da tribuna, como a
implorar do Céu remédio, para o que, desde agora, já não tem nem pode ter
remédio.

NOTAS:

1.ª) A figura do Romeiro concretiza a figura de D. João:


. sem o seu aparecimento não haveria drama;
. é o agente destruidor da tranquilidade da família, aparentemente feliz;
. é uma espécie de fantasma ou entidade abstrata nos dois primeiros atos, que
absorve os pensamentos de Madalena, Telmo, Manuel e do próprio Frei Jorge;
. no ato III, vai precipitar o desenlace trágico, apesar da sua atuação como
personagem ser reduzida.
Sobre a figura do Romeiro, informa António José Saraiva: "O Romeiro é o
portador da fatalidade: o aparecimento dele vem anular toda a vida que se
erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo
casamento da sua esposa viúva e riscar do rol dos vivos a filha que desse
casamento nascera. O passado, que se julgava morto como um vulcão extinto,
vem tragar os vivos que se tinham instalado na sua cratera.".

2.ª) O tempo (hoje) e o espaço (a área da moldura do retrato) atingem


forte concentração, direcionando a ação dramática para a catástrofe.

3.ª) Esta é uma cena dispensável para os espectadores/leitores, que já


sabem tudo; todavia, é importante para Frei Jorge que, além de acumular o
máximo de informações, terá um papel importante a cumprir.

4.ª) Comparando esta cena com a última do primeiro ato, constata-se que
são ambas espetaculares e que o paralelismo de construção é uma constante no
Frei Luís de Sousa.

5.ª) Quem, além dos espectadores/leitores, fica a saber, no final do


segundo ato, que o Romeiro é o próprio D. João de Portugal?
D. Madalena, ausente desde o fim da cena anterior, só ficou a saber pelas
palavras do Romeiro-mensageiro que D. João de Portugal esteve sempre vivo
durante todos aqueles anos, que estava ainda vivo nessa altura, que lhe enviou
aquele estranho recado.
As restantes personagens encontram-se em Lisboa.
Só Frei Jorge, confidente qualificado, na dupla posição de irmão de Manuel
de Sousa e cunhado de D. Madalena, e de sacerdote, recebe e percebe
totalmente a informação de que conclui, sem dúvida, estar em presença do
próprio D. João de Portugal.
Por isso, haverá outros momentos de anagnórise, de modo que todas as
outras personagens, frente a frente, reconheçam no Romeiro o próprio D. João
de Portugal.
● Características trágicas (cenas 14 e 15)

▪ O simbolismo do tempo: D. João regressa numa sexta-feira (o4/08/1599), no


vigésimo primeiro aniversário da batalha de Alcácer Quibir (sexta-feira)  21 =
7 (tragédia) x 3 (perfeição) = tragédia perfeita.

▪ Semelhança do assunto com as antigas tragédias gregas: a volta de D. João sob


disfarce de um mendigo (Ulisses).

▪ Hybris de D. João de Portugal


A hybris de D. João é anterior ao início da ação:
-» abandona a esposa, embora por razões nobres: acompanha o rei à guerra, em
defesa do reino e da Fé, por motivos cavaleirescos; na sociedade feudal, aos
nobres cabia combater, pelo rei e pela grei, e em defesa da Fé. Era este um dos
ideais da cavalaria medieval. Por esse ideal se arriscava a vida, se sofria a morte,
ou o cativeiro, e se atingia a glória: como diz Manuel de Sousa: "... não hajais
medo que nos venha perseguir neste mundo aquela santa alma que está no céu,
e que em tão santa batalha, pelejando por seu Deus e por seu rei, acabou mártir
às mãos dos infiéis" (I, 8);
-» o abandono da esposa é um crime contra as leis e os direitos da família, porque
a destrói. É um crime de impiedade;
-» embora vivo, depois da batalha, fica prisioneiro, é levado cativo para Jerusalém
e, durante quase 21 anos, não dá notícias suas, embora contra vontade;
-» todos o consideram morto.

▪ Agón de D. João de Portugal


Antes do regresso, na figura do romeiro-mensageiro, os conflitos com as
outras personagens manifestam-se:
1. em D. Madalena, na consciência atormentada pelos remorsos;
2. em Telmo:
- nos ciúmes, nos agouros e profecias, na crença no regresso de seu amo, baseado
nos dizeres de a célebre carta, escrita na madrugada da batalha;
- nas prevenções e nas opiniões desfavoráveis a Manuel de Sousa, em confronto
com as qualidades de D. João;
- na animadversão contra Maria;
3. em Maria, nos sonhos premonitórios e na sagacidade com que perscruta as
palavras e as meias-palavras, os silêncios, os olhares, os gestos da mãe e do pai,
o conflito com Telmo, até lhe ser revelada a identidade da figura do retrato (II,
2).
Mas o conflito, face a face, com D. Madalena, verifica-se com a entrada do
romeiro-mensageiro (II, 14), em todo esse diálogo de grande densidade.
Nessas frases do Romeiro, carregadas de duplos sentidos, de alusões
veladas ou claras, mas sempre diretas, de ironias, de sarcasmos, de graves
acusações, as palavras ferem como punhais; por isso este diálogo é, antes de
tudo, um autêntico duelo de palavras, em que D. Madalena por fim sucumbe,
naquele grito espantoso, em tom cavo e profundo, grito de coração – como
indicam as rubricas
Em primeiro lugar, o Romeiro não é apenas um mensageiro, um qualquer
que traz um recado. É um português "como os melhores": os melhores são os
nobres, os aristocratas. É esse mesmo o significado da palavra. Em segundo
lugar. Viveu nos Santos Lugares "vinte anos cumpridos". Em terceiro, operou-se
nele uma grande mudança entretanto: "Estou tão velho e mudado do que fui".
Em quarto, se houve mudanças físicas, os sentimentos, as paixões
permaneceram: "... as paixões mundanas, e as lembranças dos que se
chamavam meus segundo a carne travavam-me do coração e do espírito...". Em
quinto, não tinha deixado descendência: "Eu não tenho filhos, padre". Em sexto,
já não tem família: "Já não tenho família". A frase é ambígua; os advérbios
marcam, com amarga ironia, o presente estado de coisas no seu lar, em
confronto com o passado. E parentes? Amigos? "Os mais chegados, os que me
importava achar... contaram com a minha morte, fizeram a sua felicidade com
ela". Esta resposta é uma alusão pungente e de amarga ironia à esposa infiel. E
segue-se-lhe outra grave acusação: "Necessidade pode muito. Deus lho
perdoará, se puder". Que sarcasmo e que crueldade do Romeiro contra D.
Madalena. E ele prossegue: "De parentes já sei mais do que queria. Amigos,
tenho um; com esse conto", numa referência óbvia a Telmo. Qual será a sua
desilusão, quando mais tarde verificar que também perdeu esse amigo? Por fim,
nova cruel ironia, novo sarcasmo: "Agora acabo; sofrei, que ele também sofreu
muito".

Há ainda outros elementos desse conflito, na progressiva identificação do


romeiro-mensageiro com a figura de D. João de Portugal:
1. Quem o encarregou de trazer o recado foi "... um honrado homem... a quem
unicamente devi a liberdade... a ninguém mais". Esta frase ambígua é, todavia,
muito clara para quem tivesse ouvidos para ouvir.
2. "... lágrimas de sangue que lhe vi chorar, que muitas vezes me caíram nestas
mãos, que correram por estas faces. Ninguém o consolava, senão eu... e Deus!".
A identificação está bem clara. Só uma espécie de anestesia moral muito
inquietante, dadas as circunstâncias, é que poderá explicar a falta de
clarividência de D. Madalena.
3. Mais claro ainda, se é possível: conhecê-lo-ia "Como se me visse a mim mesmo
num espelho".
Mas, afinal, não bastou tudo isto. Foi preciso que Frei Jorge tomasse a
iniciativa de obrigar o Romeiro a procurar, de entre os retratos, aquele que
representava D. João de Portugal, para D. Madalena abrir por fim os olhos à
evidência, e sucumbir, no fim deste duelo, desta luta de golpes certeiros.

▪ O aparecimento do Romeiro, pelo aspeto com que se apresenta, pela


determinação de quem sabe o que faz e o faz do modo que quer, pela terrível
mensagem de que é portador, pelo reconhecimento da sua verdadeira
identidade:
. não é um acontecimento gratuito;
. nem desprovido de significado;
. antes verosímil e necessário, porque o argumento da tragédia gira à volta de um
regresso do marido ausente, e porque assim o sentem as personagens
envolvidas;
. constitui, portanto, uma autêntica peripécia, que se caracteriza por ser
imprevista e imprevisível quanto ao mandatário, quanto ao teor da mensagem,
quanto ao reconhecimento da personagem oculta.
▪ A peripécia é dinâmica, porque faz progredir e intensificar a ação (clímax) até ao
ponto culminante (acmê).

▪ A intensificação da ação provoca sofrimentos terríveis (pathos), sobretudo em D.


Madalena, mas também em Frei Jorge e, posteriormente, nas outras
personagens.

▪ O ponto culminante corresponde ao momento do reconhecimento (anagnórise)


da última cena.

▪ Verdadeira «reviravolta da fortuna», na designação aristotélica, a anagnórise


precipita, por fim, o desfecho (catástrofe), pela grave modificação das posições
relativas de cada personagem.

Duas notas finais:

1.ª) a extrema economia de meios, a densidade da «trama dos factos» e a


concentração de efeitos (cenas 11 a 15);

2.ª) a forma como Garrett segue o preceito aristotélico: "A mais bela forma de
reconhecimento é a que se dá com a peripécia".

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