As imagens do incêndio perpetrado por D. Manuel ao seu próprio palácio
inflamam o patriotismo de Maria face ao exemplo de amor à pátria, de coragem e determinação protagonizadas pelo pai, que pretendia, através desse gesto, dar uma lição de dignidade aos governadores espanhóis e de patriotismo ao povo, levando-a, afastando as dúvidas que a atinham atormentado em relação à lealdade à pátria do pai, a manifestar profunda admiração pelo progenitor. Contrariamente, o incêndio, para além de implicar o regresso ao palácio de D. João, o que aviventava terríveis fantasmas que nunca conseguira afastar, impressionou-a imenso, particularmente face à destruição do retrato de Manuel, que constituía terrível presságio do retorno do primeiro esposo, entretanto avolumado pela circunstância, no momento em reentrou nesse espaço, de lhe surgir, claramente iluminado, o retrato de D. João de Portugal – inequívoco sinal, a seus olhos, de que este quadro substituiria, num plano real, o anterior.
2.
A troca de papéis entre Madalena e Maria revela, por um lado, a precocidade
e desvelo da filha e, por outro, a extrema fragilidade emocional da mãe. De facto, D. Madalena de Vilhena, impressionada pela sucessão de terríveis acontecimentos, o incêndio do palácio de D. Manuel, em que retrato de D. Manuel foi consumido pelas chamas, e o subsequente alojamento na casa do primeiro marido, com a particularidade de, ao entrar na sala dos retratos, ver iluminado pela luz de um pendão que empunhava o quadro de D. João de Portugal, mergulhou num desespero profundo, temendo que o regresso a uma casa de um passado que a atormentava pressagiasse o retorno desse tempo, estado de espírito que a clandestinidade do esposo, que só ia à nova casa durante a noite, alimentava. Face a esta situação, Maria, anteriormente censurada pela progenitora pelo entusiasmo com que acolhia a crença no mito sebastianista, assumindo uma atitude protecionista, muito mais própria de um adulto, desvaloriza os temores da mãe, escondendo o terror que tais sinais lhe provocavam (“Ela, que não cria em agouros, que sempre me estava a repreender pelas minhas cismas, agora não lhe sai da cabeça que a perda do retrato é prognóstico fatal de outra perda maior… “E eu agora é que faço de forte e assisada… que aqui entre nós, Telmo, nunca tive tanta fé neles”).
3. Na sequência em questão, destaca-se uma enumeração, cujo efeito de
sentido se consubstancia na extraordinária impressão que o incêndio provocou em Madalena, particularmente decorrente da apropriação visual (“Aquele palácio a arder”) e auditiva (“”aquele povo a gritar”, o rebate dos sinos”), contribuindo decisivamente para a angústia e prostração que assolaram a personagem.
4.
Na cena transcrita, emergem inúmeros aspetos que contribuem para o
adensamento do clima de tragicidade que envolve as personagens. Neste sentido, atente-se que a cena em apreço se desenrola num espaço conotado com o passado, o palácio de D. João de Portugal, numa altura em que D. Manuel, por receio de retaliações dos governadores espanhóis, se refugiava durante o dia numa quinta no Alfeite, apenas indo à nova casa durante a noite, momento em que, aliás, decorre a ação, numa clara situação de ocultação da sua identidade, encapuzado, de modo a não ser reconhecido. De igual modo, o afunilamento do espaço também concorre para a atmosfera de inquietação que as personagens vivenciam. Ainda sob esta perspetiva, note-se que Maria cita uma frase de Menina e Moça, uma novela passional de Bernardim Ribeiro, cujo percurso de vida da protagonista, separada, muito jovem, da família, se constitui num terrível presságio do destino que se abaterá sobre a criança. Na mesma linha de ideias, sublinhe-se também a alusão da jovem ao incêndio perpetrado pelo pai, gesto que aterrorizara a mãe, particularmente face ao simbolismo trágico da destruição do retrato do marido, devorado pelas chamas, situação que, a par de outras incidências, não lhe havia permitido descansar nas primeiras sete noites no palácio do primeiro marido. Finalmente, a par da troca de papéis entre Madalena e Maria, transmitida através de um significativo quiasmo, releve-se a crença da personagem de que tais factos constituíam “avisos” divinos para que a família se preparasse para uma desgraça que tais sinais anunciavam, situação que aterra Telmo, apesar de o velho aio tentar afastar a infeliz rapariga de tais premonições.
5.
No âmbito da sensibilidade romântica de Garrett, surgem na cena elementos
característicos dessa estética. Neste contexto, pode apontar-se de um ambiente fatalista, particularmente evidente nos sinais de uma desgraça iminente determinada pelo Destino (entidade que, na cena, nas palavras de Maria, é, sob os auspícios do Romantismo, substituída por Deus), e a crença em agouros, o patriotismo e a religiosidade.