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Miguel Torga

Poema
«Peregrinação»
Katsushika Hokusai,
A grande onda em Kamagawa
(1823-1829).
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Corro o mundo à procura dum poema


Que perdi não sei quando, nem sei onde.
Chamo por ele, e a voz que me responde
Tem o timbre da minha, desbotado.
Às vezes no mar largo ou no deserto
Parece-me que sim, que o sinto perto
Da inspiração;
Mas sigo afoito em cada direção
E é o vazio passado
Acrescentado…
Areia movediça ou solidão.

Teimoso lutador, não desanimo


Olho o monte mais alto e subo ao cimo,
A ver se ao pé do céu sou mais feliz.
Mas aí nem sequer ouço o que digo;
O silêncio de Orfeu vem ter comigo
E nega os versos que afinal não fiz.
4

«Corro o mundo à procura dum poema


Que perdi não sei quando, nem sei onde.
Chamo por ele, e a voz que me responde
Tem o timbre da minha, desbotado.» O eu busca o poema
(vv. 1-4)
que «perd[eu]»

Processo de inspiração Procura a sua


poética própria voz poética

movimento de introspeção
5

«Às vezes no mar largo ou no deserto


Parece-me que sim, que o sinto perto
Da inspiração;»
(vv. 5-7)

Cenários naturais vastos


favorecem a introspeção

Levam o eu a julgar
que encontrou o poema

Caspar David Friedrich,


Caminhante sobre o mar
de neblina, pormenor (1818).
6

A busca é infrutífera

«Mas sigo afoito em cada direção


O eu confronta-se apenas E é o vazio passado
com a sensação de vácuo Acrescentado…
Areia movediça ou solidão.»
(vv. 8-11)

A busca da sua própria


voz é enganadora
ou até fatal Constatação do seu isolamento
e desamparo, da impossibilidade
de encontrar a sua identidade
7

«Teimoso lutador, não desanimo


Tentativa de encontrar num plano
Olho o monte mais alto e subo ao cimo,
mais elevado a inspiração perdida
A ver se ao pé do céu sou mais feliz.»

(vv. 12-14)
Associação de uma possível paz
a um hipotético plano divino

Tentativa falhada

«E nega os versos que afinal


não fiz» (v. 17)
O eu poético não consegue
ouvir a sua voz
Impossibilidade de encontrar
o poema primordial que busca

Confronta-se com
o «silêncio de Orfeu» (v. 16)
8

«Peregrinação» — título

Caminho longo
Eterno percurso
e doloroso em busca
de busca de um
de um ideal maior
poema primordial
(de carácter sagrado)

Associado à procura
Metáfora do processo da própria identidade
— e da voz — do eu
de escrita do eu
9

Caspar David Friedrich,


Falésias de cré em Rügen (1818).

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