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Fernando Pessoa

Nostalgia da infância
Fernando Pessoa: poesia do ortónimo

Não sei, ama, onde era; Qualquer dia viria


Nunca o saberei... Qualquer coisa a fazer
Sei que era primavera Toda aquela alegria
E o jardim do rei... Mais alegria nascer
(Filha, quem o soubera!...) (Filha, o resto é morrer...)

Que azul tão azul tinha Conta-me contos, ama...


Ali o azul do céu! Todos os contos são
Se eu não era a rainha, Esse dia, e jardim e a dama
Porque era todo meu? Que eu fui nessa solidão...
(Filha, quem o adivinha?) (Filha, )

E o jardim tinha flores Fernando Pessoa, Poesia 1902-1917,


Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, p. 352.
De que não me sei lembrar...
Flores de tantas cores...
Penso e fico a chorar...
(Filha, os sonhos são dores...)
“Não sei, ama, onde era” Fernando Pessoa (ortónimo)

Levantamento dos elementos dramáticos /narrativos


 Diálogo eu - tu
 Evocação de um espaço/ cenário (“jardim”)
 Alusão a um tempo passado (Sei que era primavera), indefinido

(Pretérito Imperfeito do Indicativo: duração contínua num Passado


não definitivamente passado)

Diálogo / confidência entre um “eu” feminino e sua ama


(intervém em versos parentéticos)
OU
Diálogo interior do “eu” lírico que conversa com uma
espécie de ama /alter ego, com quem se abre e de quem
gostaria de receber respostas.
Esquematizando

“EU”
“dama”
• elemento feminino; alguém menos experiente (“Não sei”);“Filha”
• procura obter respostas ( “Porque era tudo meu?”)
• 5ª estrofe: o desejo de continuar a sonhar:
• Conta-me contos, ama… (“resistência ao conselho desesperançado
da ama”)

Conclusão:
Contos : evasão no tempo/espaço = felicidade.
Esquematizando

“TU”
ama
• inicialmente parece ser alguém mais experiente
• confidente ou voz da consciência (alter-ego)
• respostas entre parênteses:
 não sabe responder (Filha, quem o soubera!...);
 perplexidade (responde, por vezes, com perguntas: (Filha, quem o
adivinha?);
 o que nos transcende, algo inalcançável
• a voz do bom senso, da razão
(Filha, os sonhos são dores…); (Filha, o resto é morrer…).
Conclusão
A ama, com o seu realismo, tenta refrear o entusiasmo da dama, trazendo à
baila o tema da morte (efemeridade da vida).
Na 5ª estrofe, a ama, com o seu tom de desalento, já não comparece.
Valor simbólico dos elementos referidos:
• “jardim”, “azul”, “céu”, “Primavera”, “flores”: o paraíso (Éden), a
infância, a felicidade perdida
• a “ama”: o aconchego, a segurança do passado
• o “sonho”: a fuga aos limites da realidade, a felicidade
 
Elementos que apontam para o mundo fantástico, do
lirismo popular:
• Contos de fadas, reis, rainhas
• O privilégio dado à imaginação, à fantasia
• Evasão no tempo e no espaço como percurso para a felicidade
• Infância como espaço de bem-estar
• …
 
Bernardo Soares
Eu nunca fiz senão sonhar.
Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da
minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida
interior. As maiores dores da minha vida esbatem-se-me quando, abrindo
a janela para dentro de mim, pude esquecer-me na visão do seu
movimento.
Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver
nunca prestei atenção. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao
que nunca pude ser. […] Tudo o que não é meu, por baixo que seja, teve
sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca
desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi senão que
passasse por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca
deixasse de ser um sonho longínquo. Nas minhas próprias paisagens
interiores, irreais todas elas, foi sempre o longínquo que me atraiu, e os
aquedutos que se esfumam — quase na distância das minhas paisagens
sonhadas, tinham uma doçura de sonho em relação às outras partes de
paisagem — uma doçura que fazia com que eu as pudesse amar.
Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, Lisboa: Tinta-da-China, 2014.
Fernando Pessoa
Nostalgia da infância

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