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Desaparecidos,

Matadouro e a estética
da imperfeição
Rodrigo Carreiro

2021
RESUMO

FATO: Aumento na produçã o de longas-metragens de ficçã o


realizados com baixíssimo orçamento, por pessoas sem vínculos
profissionais com a indú stria do audiovisual (+- 20 anos).

POSSÍVEIS MOTIVOS: Proliferaçã o de dispositivos de registro de


sons e imagens + emergência das redes sociais como espaço de
circulaçã o de produtos audiovisuais (YouTube, 2005).

PERCURSO: Revisã o do conceito de “amador” + construçã o da


noçã o/conceito de “estética da imperfeiçã o”.

ESTUDO DE CASO: Aná lise comparativa entre dois filmes


brasileiros que possuem estilística e enredo semelhantes – um
deles classificado como ‘amador’ e o outro como ‘profissional’.

OBJETIVO FINAL: Problematizar o uso do termo ‘amador’ como


estratégia de valoraçã o estética. 
HISTÓRICO

Até 2000, o cinema amador ocupava um espaço social e


culturalmente restrito. Produçõ es díspares, como filmes caseiros,
curtas-metragens de estudantes e talvez um pequeno grupo de
trabalhos audiovisuais de cará ter experimental.

O trabalho do amador vem despertando cada vez mais o interesse


do consumidor audiovisual por produtos constituídos por
imagens e sons de textura lo-fi (CONTER, 2016), com aparência
improvisada ou acidental, de baixa fidelidade e pouca
legibilidade, e repleto de erros técnicos.

O erro técnico, graças à sensaçã o de autenticidade que gera, vem


se tornando uma commodity de valor cultural positivo.

Exemplos: A bruxa de Blair, Atividade Paranormal, Primer.

Pressuposto: o termo ‘amador’ carrega (ou carregava?) em si, aos


olhos do senso comum, uma valoraçã o estética negativa. Se é
amador, deve ser ruim!
O CINEMA AMADOR

1924, câ mera Eastman-Kodak para registro de imagens de


família. Bitola de 16mm (nã o “professional”.)

A diferença entre o filme dito profissional e o amador estaria no


emprego de “procedimentos padronizados de construçã o
narrativa” (ZIMMERMANN, 1996, p. 55) pelo primeiro grupo.

A noçã o da estilística do filme amador tomou forma na década de


1920: imagens tremidas, borradas, instáveis, sem foco ou
profundidade, em baixa definiçã o, com cores desbotadas. O erro
técnico estaria no centro dessa noçã o.

O “amador” denota “substâncias” diferentes, como o sujeito (aquele


que filma), a forma do registro (o tipo de equipamento usado), a
acepção do senso-comum (trabalho mal feito) e a condição
econômica (trabalho não remunerado). O amador está sempre
entre uma coisa e outra, um sujeito-conceito que se constitui a
partir de uma falta ou de uma afirmação. Na sua feição negativa,
designa o mal feito, o não profissional, o sem remuneração. Na sua
faceta afirmativa, designa o trabalho livre, a liberdade de
expressão, a criatividade, a espontaneidade. (FOSTER, 2016, p. 35).
AS DIFERENÇAS

A fronteira que divide os domínios do profissional e do amador


foi construída como “um processo histó rico de controle social
sobre a representaçã o” (ZIMMERMANN, 1996, p. xv)

Broderick Fox (2004, p. 6) sugere que, ao organizar a realizaçã o


de filmes como uma linha de produçã o capitalista, através de um
processos crescente de compartimentaçã o de atividades técnicas
e criativas, Hollywood desenvolveu uma série de convençõ es
estilísticas e narrativas (BORDWELL, 2012) de imagem, som e
narrativa que instituíram um padrã o identificado com a noçã o do
‘profissional’ – e essas convençõ es se espalharam pelas demais
indú strias do audiovisual em todo o mundo.

Aquilo que consideramos como amador, portanto, constitui um


discurso, uma construçã o social, uma poderosa convençã o
cultural engendrada pelas indú strias do audiovisual.

Não é sofisticado, não é tecnicamente proficiente, não é bonito e


nem elegante, não é de interesse amplo, e talvez, em uma resposta
mais vaga e também mais frequente, não é profissional” (FOX,
2004, p. 5, grifo nosso).
AS MUDANÇAS

Em tempos de convergência midiá tica (JENKINS, 2009), a


percepçã o valorativa que denigre a qualidade estética do trabalho
amador parece estar sendo cada vez mais desafiada.

Uma estilística mais descontínua, instável E “incorreta” tem sido


incorporada à gramá tica dos consumidores audiovisuais.

YouTube e redes sociais estã o no cerne dessa mudança. Imagens


amadoras sã o hoje mais consumidas do que profissionais.

A indú stria dita ‘profissional’ está atenta a isso. Uma vez que a
estética da imperfeiçã o virou commodity valorizada, a produçã o
profissional passou a se esforçar por exibir simulaçõ es de erros
técnicos, inclusive fabricados artificialmente.

O motivo? Talvez as marcas da imperfeiçã o sejam traduzidas pelo


pú blico consumidor como índices de autenticidade documental,
que aproxima as obras que os exibem da experiência cotidiana .

O fenô meno: constituiçã o de um modelo audiovisual desviante,


menos clean, que chamamos de estética da imperfeição.
ANÁLISE COMPARATIVA

A estética da imperfeiçã o está na imagem, mas tembém no som:


diá logos sobrepostos ou de baixa legibilidade, microfonia, ruídos
indesejados. Movimentos mumblecore e found footage de horror.

Desaparecidos e Matadouro: filmes paulistas, feitos em 2011,


mesma trama (jovens perseguidos por um assassino), found
footage de horror.

O primeiro: R$ 55 mil e profissionais reconhecidos na equipe. O


segundo: R$ 300 reais, produçã o de um homem só (Carlos Jr.).

A aná lise: cenas de conversas dentro de carros, nos primeiros 10


minutos de filmes. Diferenças claras: legibilidade dos sons,
espacializaçã o e movimento dos sons, normalizaçã o do volume,
reverberaçã o, mixagem (DD 5.1 e Stereo).

Um “profissional”, outro “amador”.

Desaparecidos: 44 mil espectadores e 2,8 no IMDb.

Matadouro: 40 mil visualizaçõ es, 20 mi downloads, duas


sequências.
CONCLUSÃO

Se os dois longas-metragens compartilham tantas semelhanças,


inclusive no enredo, como explicar a diferença na recepçã o pelo
pú blico de aficionados do gênero horror?

A sensaçã o de autenticidade dos elementos acidentais – ou


‘amadores’ – de Matadouro, que circulam na cultura audiovisual
contemporâ nea, contribuindo para a consolidaçã o de uma
estética da imperfeiçã o, parecem estar sendo recebendo uma
carga de valoraçã o estética positiva.

É plausível a possibilidade de que o engajamento afetivo


responsável pela valoraçã o positiva das imagens e sons
imperfeitos seja tanto maior quanto mais autênticos for a
impressã o de realidade.

Artigo de conexã o entre dois projetos de pesquisa: O found


footage de horror (livro pela Editora Estronho em finalizaçã o, 10
anos de pesquisa, 1.000 títulos) e “O real no sound design
contemporâ neo” (bolsa de produtividade Nível 2 do CNPq).

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