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A REFORMA

PSIQUIÁTRICA NO BRASIL
E A CRIAÇÃO DA RAPS
PSICOLOGIA COMUNITÁRIA E INSTITUCIONAL

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A Reforma Psiquiátrica no Brasil e a Rede
de Atenção Psicossocial
• A Reforma Psiquiátrica no Brasil é um processo que surge no contexto
da redemocratização, no final da década de 1970, e tem como
fundamentos não apenas uma crítica conjuntural ao subsistema
nacional de saúde mental, mas também – e principalmente – uma
crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas.
• Foi inspirada no referencial teórico-prático da Reforma Psiquiátrica
Democrática italiana sob o paradigma da desinstitucionalização como
desconstrução e se pauta por uma ética de inclusão social,
solidariedade e de resgate da cidadania do louco, que foram
sistematicamente negadas pela Psiquiatria e pelo Estado.

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Um processo social complexo
• Segundo Rotelli, a Reforma Psiquiátrica é um Processo Social
Complexo, que comporta quatro dimensões:
• epistemológica-conceitual
• técnico-assistencial
• político-jurídica
• sócio-cultural, envolvendo diversos movimentos, atores e saberes.

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A dimensão epistemológica-conceitual

“A Reforma Psiquiátrica produz uma radical ruptura com a


dicotomia sujeito/objeto, nos coloca frente a frente com a
complexidade do existir, com a dor em suas múltiplas
dimensões, com nossos próprios limites e potencialidades
como atores e agentes do cuidado e da produção de
conhecimento. Não há como fazer do sujeito um objeto sem
deixar de conhecê-lo como sujeito e sem considerar que
aquele que olha está implicado neste encontro” (YASUI, 2006).

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A dimensão técnica-assistencial
A partir da Reforma, foram criados novos serviços com
experiências inovadoras, orientados por uma ética de inclusão
social e afirmação do direito de cidadania das pessoas com
transtornos mentais. Foram chamados de serviços
substitutivos pelas rupturas operadas com o modelo
manicomial e seus referenciais e abriram novo campo de
construção de saberes, práticas, cultura e formas de se
relacionar com a loucura.

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Serviços substitutivos
• Segundo Rotelli (2001), são denominados substitutivos os serviços que
trazem em sua gênese a desmontagem do manicômio e a supressão
(substituição) de suas práticas preexistentes, usando e transformando
recursos materiais e humanos ali depositados. A sua inovação se coloca
diante das rupturas com determinado paradigma que orienta o método
epistêmico da psiquiatria tradicional. Propõe a organização dos serviços
substitutivos a partir de três perspectivas:
• 1. Responsabilidade em responder à totalidade das necessidades de saúde
mental de uma população determinada;
• 2. Mudança nas formas de administrar os recursos para a saúde mental;
• 3. Multiplicar e tornar mais complexa a profissionalidade dos operadores.
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Serviços inovadores
Segundo Amarante, os serviços de atenção psicossocial não
deveriam ser pensados apenas como novos serviços e sim
como serviços inovadores; isto é, como espaços de produção
de novas práticas sociais para lidar com a loucura, o
sofrimento psíquico, a experiência diversa; para a construção
de novos conceitos, de novas formas de vida, de invenção de
vida e saúde.

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Os primeiros serviços
• Os primeiros serviços que passam a operar nessa lógica de
intervenção frente à loucura e o sofrimento psíquico foram o Centro
de Atenção Psicossocial (CAPS) Prof. Luís da Rocha Cerqueira, em São
Paulo, e o Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS), em Santos.
• Simultaneamente ao surgimento destes serviços, várias outras
experiências foram produzidas no Brasil na busca de constituir uma
Rede Substitutiva ao modelo manicomial. Cidades como Porto Alegre,
Belo Horizonte, Campinas, São Paulo dentre outras cidades se
aventuram nesta construção.

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Em São Paulo
• Mais especificamente na cidade de São Paulo, na gestão da prefeita Luiza
Erundina, 1989 a 1992, constituiu-se um modelo assistencial com base na
diversidade dos espaços institucionais e na diversidade das necessidades
dos usuários dos serviços.
• “... buscou-se, de um lado, potencializar e redirecionar as ações nos
equipamentos de saúde já existentes, como Unidades Básicas de Saúde, os
Prontos Socorros e Hospitais Municipais. De outro, criar equipamentos de
atenção específica, como os Hospitais Dia, e também ações em espaços
públicos, ampliando a possibilidade de inclusão de alguns grupos
populacionais alijados do convívio social e das relações de lazer, a partir da
instalação de Centros de Convivência e Cooperativas nos parques e clubes
municipais. (SCARCELLI, 1998).
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CAPS Prof. Luís da Rocha Cerqueira - 1987

• Seguia o princípio da desinstitucionalização com a ideia de desospitalização e da


transformação cultural
• Definiu sua clientela prioritária como sendo aquela socialmente inválida, com formas
diferentes e especiais de ser, com patologias de maior complexidade, por pessoas que tinham
enveredado por um circuito de cronificação, por pessoas com graus variáveis de limitações
sociais e com graves dificuldades de relacionamento e inserção social.
• Definia-se como estrutura intermediária entre o hospital e a comunidade, com vistas à
construção de uma rede de prestação de serviços preferencialmente comunitária de cunho
desburocratizante e de caráter multiprofissional.
• Funcionava 8h/dia, 5 dias por semana, tendo como núcleo organizador a assistência, a reflexão
sobre suas práticas e a transmissão de suas experiências a outros profissionais.
• A assistência foi definida como atenção integral, personalizada, multidisciplinar e pluri-
institucional e a doença mental foi pensada no campo da saúde coletiva, levando em conta a
família, o trabalho e seu contexto histórico.
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NAPS SANTOS 1989
• O primeiro NAPS foi inaugurado em setembro de 1989, em Santos, a partir da
intervenção municipal na Casa de Saúde Anchieta.
• Tinha como eixo a desconstrução dos manicômios, na constituição de uma instituição não
segregadora e não excludente.
• Visava superar a lógica da assistência em direção à lógica da produção de saúde.
• Algumas estratégias e ações fundamentais de seu funcionamento foram: a regionalização,
que tinha como objetivo uma ação de transformação cultural e não apenas uma divisão
administrativa, a abertura do debate aos cidadãos no dialogar com a comunidade, a
construção de projetos terapêuticos singulares com os objetivos de fazer-se responsável,
evitar o abandono, atender à crise e responsabilizar-se pela demanda.
• Serviço de caráter substitutivo, com funcionamento integral, 24horas, 07 dias na semana,
com a noção de Porta Aberta, sem seleção da clientela, equipe multiprofissional e
continha 6 leitos para hospedagem.
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A oficialização dos CAPS E NAPS
As práticas do NAPS e do CAPS, bem como o surgimento de
outras experiências pelo Brasil, foram legitimadas
posteriormente pela formulação da Portarias de nº 189/91 e
nº 224/92 do Ministério da Saúde, que tiveram como objetivo
oficializar, regulamentar e viabilizar a construção de mais
novos serviços de atenção em saúde mental no país. O
reconhecimento dos novos serviços no âmbito do processo
legislativo foi fundamental para implementação das políticas
públicas nesse campo.

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O conceito de território
• Nesta perspectiva entra em cena o conceito de território, que se
torna a base das ações e das intervenções dos serviços substitutivos.
• É só no território que o serviço pode promover uma mudança na
cultura, apresentando novas formas de lidar com a loucura,
estimulando seu acolhimento pelos atores sociais e diminuindo sua
estigmatização.
• O geógrafo Milton Santos afirma que o território está muito além da
demarcação territorial e sua descrição. Para ele, o território é a base
sobre a qual a sociedade produz sua própria história, configurando-se
em um espaço dinâmico e de vida.

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Articulação no território
• “O trabalho no território se articula sob duas formas:
• De forma direta (redes e suporte social): inclui visitas
domiciliares, vínculo com familiares, diálogos com a
vizinhança e bairro, movimentos sociais, ação cultural, etc;
• De forma indireta (intersetorialidade): trabalhando com
instituições localizadas nesse território, no sentido de
confrontar resistências e ampliar possibilidades” (ANAYA,
2004).

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Do Modo Asilar ao Modo Psicossocial
• A Reforma Psiquiátrica contrapõe ao Modo Asilar o Modo Psicossocial, que
tem como pressupostos:
• o planejamento do modelo assistencial coletivizado, produzido no espaço
multiprofissional com qualidade interdisciplinar ou transdisciplinar.
• a superação da rigidez da especificidade profissional com a flexibilidade
para gerar o produto de saúde mental compatível com a necessidade do
consumidor de produto de saúde mental.
• essa posição visa à reorientação do modelo de atenção que define a
concepção de saúde como processo e não como ausência de doença, na
perspectiva de produção de qualidade de vida, enfatizando ações integrais
e de promoção da saúde.
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Uma rede de cuidados
• Em contraponto ao Modelo Asilar, que tem a pretensão de ser uma
instituição total e autossuficiente, o Modo Psicossocial parte do
entendimento da necessidade da constituição de uma Rede de
Cuidados.
• “Uma rede de cuidados no âmbito da micropolítica se forma por
fluxos entre os próprios trabalhadores, que no ambiente de trabalho
estabelecem conexões entre si. Estas redes são ativadas e se mantêm
funcionando pelos trabalhadores e seu funcionamento acontece
mediante um determinado projeto terapêutico” (FRANCO, 2006).

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O Centro de Atenção Psicossocial CAPS
• “Defendo aqui que o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), o
principal instrumento de implementação da política nacional de
saúde mental, deve ser entendido como uma estratégia de
transformação da assistência que se concretiza na organização de
uma ampla rede de cuidados em saúde mental. Neste sentido, não se
limita ou se esgota na implantação de um serviço. O CAPS é meio, é
caminho, não fim. É a possibilidade da tessitura, da trama, de um
cuidado que não se faz em apenas um lugar, mas é tecido em uma
ampla rede de alianças que inclui diferentes segmentos sociais,
diversos serviços, distintos atores e cuidadores” (YASUY, 2006).

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A oficialização da Rede de Atenção
Psicossocial

A Portaria nº 3.088, de 23 de Dezembro de 2011 institui a Rede de


Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno
mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e
outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

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Diretrizes da RAPS
I - respeito aos direitos humanos, garantindo a autonomia e a liberdade das
pessoas;
II - promoção da equidade, reconhecendo os determinantes sociais da saúde;
III - combate a estigmas e preconceitos;
IV - garantia do acesso e da qualidade dos serviços, ofertando cuidado
integral e assistência multiprofissional, sob a lógica interdisciplinar;
V - atenção humanizada e centrada nas necessidades das pessoas;
VI - diversificação das estratégias de cuidado;
VII - desenvolvimento de atividades no território, que favoreçam a inclusão
social com vistas à promoção de autonomia e ao exercício da cidadania;
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Diretrizes da RAPS
VIII - desenvolvimento de estratégias de Redução de Danos;
IX - ênfase em serviços de base territorial e comunitária, com participação e
controle social dos usuários e de seus familiares;
X - organização dos serviços em rede de atenção à saúde regionalizada, com
estabelecimento de ações intersetoriais para garantir a integralidade do
cuidado;
XI - promoção de estratégias de educação permanente; e
XII - desenvolvimento da lógica do cuidado para pessoas com transtornos
mentais e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras
drogas, tendo como eixo central a construção do projeto terapêutico singular.

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Objetivos Gerais da RAPS

• Ampliar o acesso à atenção psicossocial da população em geral.


• Promover o acesso das pessoas com transtornos mentais e com
necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas e
suas famílias aos pontos de atenção.
• Garantir a articulação e integração dos pontos de atenção das redes
de saúde no território, qualificando o cuidado por meio do
acolhimento, do acompanhamento contínuo e da atenção às
urgências.
• Monitorar e avaliar a qualidade dos serviços por meio de indicadores
de efetividade e resolutividade da atenção.
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Objetivos Específicos da RAPS

• Promover cuidados em saúde especialmente para grupos mais


vulneráveis (criança, adolescente, jovens, pessoas em situação de rua
e populações indígenas)
• Prevenir o consumo e a dependência de crack, álcool e outras drogas
• Reduzir danos provocados pelo consumo de crack, álcool e outras
drogas
• Promover a reabilitação e a reinserção das pessoas com transtorno
mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e
outras drogas na sociedade, por meio do acesso ao trabalho, renda e
moradia solidária
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Objetivos Específicos da RAPS

• Promover mecanismos de formação permanente aos profissionais de


saúde
• Desenvolver ações intersetoriais de prevenção e redução de danos
em parceria com organizações governamentais e da sociedade civil
• Produzir e ofertar informações sobre direitos das pessoas, medidas de
prevenção e cuidado e os serviços disponíveis na rede
• Regular e organizar as demandas e os fluxos assistenciais da Rede de
Atenção Psicossocial
• Monitorar e avaliar a qualidade dos serviços por meio de indicadores
de efetividade e resolutividade da atenção
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Componentes da RAPS

• I - Atenção básica em saúde, formada pelos seguintes pontos de atenção:


• a) Unidade Básica de Saúde;
• b) equipe de atenção básica para populações específicas:
• Equipe de Consultório na Rua;
• Equipe de apoio aos serviços do componente Atenção Residencial de Caráter
Transitório;
• c) Centros de Convivência;
• II - Atenção psicossocial especializada, formada pelos seguintes pontos de
atenção:
• a) Centros de Atenção Psicossocial, nas suas diferentes modalidades
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Componentes da RAPS

• III - atenção de urgência e emergência, formada pelos seguintes


• pontos de atenção:
• a) SAMU 192;
• b) Sala de Estabilização;
• c) UPA 24 horas;
• d) portas hospitalares de atenção à urgência/pronto socorro;
• e) Unidades Básicas de Saúde, entre outros;
• IV - atenção residencial de caráter transitório, formada pelos seguintes pontos de
atenção:
• a) Unidade de Recolhimento;
• b) Serviços de Atenção em Regime Residencial;
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Componentes da RAPS

• V - atenção hospitalar, formada pelos seguintes pontos de atenção:


• a) enfermaria especializada em Hospital Geral;
• b) serviço Hospitalar de Referência para Atenção às pessoas com
sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do
uso de crack, álcool e outras drogas;
• VI - estratégias de desinstitucionalização, formada pelos seguintes
pontos de atenção:
• a) Serviços Residenciais Terapêuticos
• VII - reabilitação psicossocial

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Referências Bibliográficas

• AMARANTE, P. A (clínica) e a Reforma Psiquiátrica. In Archivos de Saúde


Mental e Atenção Psicossocial, pp. 45-65. Rio de Janeiro: Editora NAU.
• AMARANTE, P (Coord.). Loucos pela Vida: a trajetória da reforma
psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2ª Edição, 1998
• ANAYA, F. Reflexão sobre o conceito de serviços substitutivo em saúde
mental: a contribuição do CERSAM de Belo Horizonte- MG. Dissertação de
mestrado não publicada, Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde
Pública. Rio de Janeiro, 2004.
• ARANHA e SILVA, AL; FONSEA, RMGS. Processo de trabalho em saúde
mental e o campo psicossocial. Rev Latinoam Enfermagem 2005 maio-
junho; 13(3):441-9
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Referências Bibliográficas

• FRANCO, T.B.; in Pinheiro, R. & Matos, R.A. Gestão Em Redes,


LAPPIS-IMS/UERJ-ABRASCO, Rio de Janeiro, 2006
• SCARCELLI, IR. O Movimento Antimanicomial e a Rede Substitutiva em Saúde
Mental: a experiência do município de São Paulo 1989-1992. Dissertação de
mestrado, Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia, 1998.
• ROTELLI, F; LEONARDIS, O. & MAURI, D., 2001. Desinstitucionalização, uma
outra via. In: Desinstitucionalização (F. Nicácio, org.), pp. 17 – 59, São Paulo:
Editora Hucitec, 2a edição.
• YASUI, S. Rupturas e encontros: desafios da Reforma Psiquiátrica brasileira.
Tese de Doutorado, Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde
Pública. Rio de Janeiro, 2006.
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