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‘Fonema em LS?

’: nomenclatura específica para estudos


lingüísticos de LS
Mariângela Estelita*

Introdução

O objetivo central deste artigo é propor à comunidade de lingüistas e outros


profissionais envolvidos com o uso e estudo das Línguas de Sinais (LS), uma nova
nomenclatura científica específica que contemple as particularidades das LS que as
distingue fundamentalmente das Línguas Orais (LO), sua modalidade viso-motora.
Para tal, levantarei uma discussão sobre Por que renomear e em seguida apresentarei
minha proposta de Nomenclatura Específica.
Em comparação a outras ciências que existem há séculos, a lingüística, apenas
muito recentemente, passou a ser reconhecida como área de ciência autônoma, a partir
dos estudos criteriosos e criativos do lingüista Ferdinand de Saussure na segunda
década do século XX. Não que antes disto, a linguagem, em geral, e as LS,
especificamente, não tivessem sido alvo do interesse de vários estudiosos.
Podemos citar, por exemplo, os famosos estudos de fonética e fonologia do
sânscrito feitos pelo indiano Panini, que datam do século IV a.C.. Além disto,
encontramos nos gregos os precursores das reflexões lingüísticas, a partir de seus
profundos questionamentos a respeito da linguagem, embasados na filosofia. A
lingüística voltou-se, mais tarde, para o campo da filologia, o estudo de costumes,
organizações sociais e história literária de um povo a partir de textos escritos. Este
novo interesse favoreceu, no século XVIII, o surgimento da Lingüística histórico-
comparatista (CARVALHO, 2000).
No entanto, foi Saussure (1995), em 1916, em publicação póstuma de seu
Cours de Linguistique Génerale, quem delimitou o objeto de estudo da lingüística em
um espaço com zonas de intersecção com outras ciências – porém, independente delas
– e elaborou definições específicas para as diversas nomenclaturas que vinham sendo
usadas para tratar de questões lingüísticas, criando e determinando assim, as entidades
que seriam estudadas pela lingüística.

*
Mestre em Lingüística pela UFG. Doutora em Lingüística pela UFSC.
Se a configuração da lingüística como ciência é recente, mais recente ainda são
os estudos científicos específicos das LS. Da mesma forma que ocorreu com os
estudos das LO, também os estudos de LS sinais saíram de contexto mais abrangente
até chegar a suas particularidades.
Há séculos existe a preocupação com a educação dos surdos, o que gerou a
criação de diversas metodologias educacionais. Algumas destas metodologias foram
capazes de perceber a importância das LS para a educação dos surdos, o que levou a
avanços seja no uso ou nos estudos destas línguas.
Citamos, por exemplo, o espanhol Ponce de Leon que, no século XVII criou o
alfabeto manual, como forma de tornar visíveis os sons representados pelas letras do
alfabeto latino então em uso. Mais tarde, no século XVIII, o francês Amboise Bébian
criou a mimografia, primeiro sistema de escrita de LS de que se tem registro, que
revela um refinamento na percepção de movimentos e pontos de articulação da LS.
Neste mesmo século, o também francês L’Epée, em sua escola pública para surdos, a
primeira do mundo, incentivava e assegurava-lhes o direito ao uso da LS francesa, o
que levou ao franco desenvolvimento desta língua.
Assim como Saussure foi um marco na história dos estudos científicos da
lingüística geral, também a história dos estudos lingüísticos das LS foi marcada
irreversivelmente pelos estudos de Stokoe (1965). Foi ele quem, em 1965, com a
publicação de seu Dictionary of American Sign Language on linguistic principles,
inscreveu as LS no rol de objetos de estudo da lingüística, demonstrando sua realidade
como línguas e não como pantomima. Coincidentemente (ou não) com a preocupação
metódica de Saussure, também ele buscou uma nomenclatura específica para o “novo”
estudo que propunha.

Por que renomear?

Uma visão bastante simplista da língua é vê-la como nomeação, como uma
lista de termos à qual correspondem as coisas, o que corrobora a idéia bíblica de Adão
passeando pelo Paraíso dando nomes aos seres. Segundo Saussure (1995), “tal
concepção é criticável em numerosos aspectos. Supõe idéias completamente feitas,
preexistentes às palavras”. (p.79)
Tomemos um exemplo trivial: o que se denomina hoje como “cadeira” abrange
uma grande gama de seres diversos entre si em vários aspectos, ou seja, o nome não
corresponde ao objeto. Se assim fosse, o nome cadeira poderia corresponder a um
único objeto – uma única cadeira – e incorporaria todas as características particulares
daquele objeto, como cor, forma, tamanho, material. Uma cadeira de cor ou material
diferente, por exemplo, deveria receber um nome diferente.
Como não é isso que vemos acontecer nas línguas, comprovamos que os
nomes não correspondem a objetos, a referentes, mas a conceitos abstratos. Isto
significa dizer que os nomes são capazes de delimitar, ainda que imperfeitamente,
conceitos – ou, segundo Wittgenstein (1994), fatos, que são verdades sobre as coisas –
mas não coisas. As coisas não pré-existem aos conceitos. Por exemplo, podemos
imaginar uma língua hipotética em que cadeira signifique simplesmente artefato onde
as pessoas se sentam. Os falantes desta língua não diferenciariam conceitualmente,
portanto, o que diferenciamos em português como cadeira, banco, poltrona ou sofá.
Sendo assim, não há como fazer uma correlação entre lista de termos e lista de
coisas. Haveria tantos termos quantos referentes, e as línguas se tornariam um
instrumento de uso inviável. Isto só não ocorre porque os termos não se referem às
coisas, mas ao seu conceito, ao padrão que se pode depreender delas, um padrão que
só é definido culturalmente, pela comunidade que compartilha o mesmo recorte de
mundo.
Para explicar recorte de mundo, trago uma comparação entre a língua
portuguesa e a língua inuíte dos esquimós. Os esquimós possuem pelo menos quinze
nomes em inuíte (BERLITZ, 1988) para o que denominamos “branco” em português,
obviamente pelo ambiente em que vivem, onde identificar vários tipos de neve, por
sua cor e consistência é questão de sobrevivência. Sabemos que os olhos dos esquimós
são anátomo-fisiologicamente idênticos aos nossos, ou seja, somos capazes de
perceber as mesmas nuances de cor e forma. Porém, a língua portuguesa recorta, de
um espectro colorido contínuo, e agrupa sob uma mesma etiqueta, toda a variação de
branco que a língua inuíte separa conceitualmente em vários grupos. Assim, o que nós,
falantes de português, identificamos como um único objeto – branco – os esquimós
identificam como quinze objetos. Este é o efeito que o recorte de mundo, elemento
lingüístico-cultural, produz. Enfim, a neve que eu ou um esquimó veríamos
passeando juntos em Labrador não seria a mesma, pois o fato que minha língua
percebe é diferente do fato percebido pela língua dele.
Saussure (1995) percebeu que, no campo da lingüística, de autor para autor,
havia diferença de recorte em alguns conceitos que se referiam aos mesmos termos, ou
seja, alguns termos vinham sendo utilizados inconsistentemente pelos lingüistas de seu
tempo. Ele então se propôs a elaborar um recorte comum para ser utilizado entre
todos.
Segundo Castelar de Carvalho (2000:24),
“Os lingüistas até então tratavam de coisas diferentes com nomes iguais e vice-
versa. [...] Por exemplo, o termo língua tinha para alguns lingüistas um determinado
sentido; para outros, já adquiria conotação totalmente diversa”.
Saussure (1995), ainda no início do século XX, foi o primeiro estudioso a se
preocupar em definir métodos e delimitar a nomenclatura da então nascente ciência, a
Lingüística. Ao longo do Curso de Lingüística Geral, Saussure delimita o alcance de
vários termos que utiliza, o que torna sua teoria lingüística passível de discussão, seja
para a concordância, para a crítica, ou ampliação de seus postulados. Ele delimita, por
exemplo, o escopo de termos essenciais de sua teoria, cuja compreensão precisa é
fundamental para o fluir do seu discurso, como linguagem, língua, fala, signo,
significado, significante, semiologia e a própria lingüística.
A exemplo de Saussure e Stokoe, e buscando uma maior precisão na definição
dos fatos lingüísticos das LS, é que proponho a utilização de termos mais específicos,
a fim de compreendermos em mais detalhes a natureza e processamento dos mesmos,
para que possamos enxergar as inúmeras nuances de branco na vasta planície de gelo.

Nomenclatura Específica

A pesar de suas origens na Antigüidade, a ciência lingüística é ainda bastante


jovem e ainda está desbravando campos densos, como ocorre com o recente interesse
científico pelas LS. Ferramentas específicas, digo, nomenclatura específica, são
bastante úteis nestas situações de desbravamento.
Os lingüistas vêm utilizando os termos fonética e fonologia para tratar de
eventos das LS, desconsiderando o significado de sua raiz, fon-, que é som, elemento
ausente da estrutura da Libras. Isto se dá apesar de Stokoe (1965) haver proposto o
termo “quirema” em substituição a “fonema”, para designar elementos de LS.
Há duas justificativas comumente dadas para o desuso do termo proposto por
Stokoe: uma delas defende que o conceito de quirema equivale ao de fonema e que o
uso de dois nomes para o mesmo conceito é desnecessário e apenas tumultua as
discussões; a outra argumenta que o novo termo é também incorreto, pois sua raiz
remete a mão, sendo que há vários outros aspectos e várias outras partes do corpo
envolvidos na realização das LS.
À primeira justificativa respondo: “equivalente” não é “igual”. Há que se
acentuar as diferenças entre os fatos lingüísticos das LS e os das LO para que a
acuidade terminológica garanta uma melhor percepção dos mesmos. Em obra anterior
(ESTELITA, 2008:15), afirmei que “o fato de um termo representar unidades sonoras
e o outro representar unidades visuais dá outra dimensão de precisão a partir da qual
poderemos ser capazes de captar melhor as diferenças semióticas de uma modalidade
e outra”. Conhecimentos específicos exigem nomenclatura própria.
Em busca de uma acuidade de percepção do objeto de estudo da lingüística no
campo das LS e renomeando a partir de Stokoe (1965), crio o termo “visema”, que
substitui a raiz de quirema, quir-, por vis-, de visual. Uma vez que todo o resultado da
realização das LS é visual, esta nova raiz contemplará as várias entidades mínimas das
LS. Teremos então, por exemplo, o termo visema para designar a unidade mínima das
LS que distingue significado. Isto deve responder à segunda justificativa.
A rigor, minha proposta de nova nomenclatura só pode ser considerada
“renomear” em relação à proposta de Stokoe (1965) – quirema –, que enxergou a
essência da natureza particular das LS e por isso sentiu necessidade de atribuir-lhe
novo nome. Em relação à lingüística ainda fonocentrista, que se refere a entidades das
LS através de termos que remetem a uma estrutura sonora – ex., fonema – e não
considera relevante a especificidade, minha proposta é uma “nomeação”, pois as
entidades das LS às quais pretendo atribuir novos nomes ainda não foram percebidas
por ela como entidades independentes de suas correlatas orais, ou seja, ainda não
criaram existência no mundo dos fatos.
“O mundo só é compreensível através da linguagem e, portanto, o que existe é
aquilo sobre o que eu posso falar. Daí a urgência de uma nomenclatura específica para
o estudo das LS” (ESTELITA, 2008:141).
Esta nova nomenclatura contemplaria também as LS percebidas e utilizadas
pelos surdo-cegos na modalidade tátil, pois apesar de percebidas através de um outro
canal, não mudam sua natureza. Assim como as línguas orais não deixam de ser orais
se forem percebidas visualmente por um surdo, em prática de leitura labial.
Em uma tabela de correlações, não de sinonímia, alguns dos novos termos
específicos para os estudos lingüísticos de LS podem ser assim apresentados, em
relação a termos específicos para os estudos lingüísticos de LO:
Campo das LS Campo das LO
Vis- Fon-
Viso Fone
Visema Fonema
Aloviso Alofone
Visêmico Fonêmico
Visético Fonético
Visologia Fonologia
Visética Fonética

Outros termos do campo da visética ou da visologia podem ser derivados


segundo as regras da língua portuguesa – ou de outras línguas que venham a utilizar a
nova nomenclatura – mantendo-se a raiz vis-.
Pretendo com isso, desviar o olhar fonocentrista, com que se tem observado as
LS, para o mundo visual científico das LS. Penso estar colaborando assim, para uma
melhor descrição e compreensão destas línguas, pois o novo termo desvela a natureza
visual das unidades que as compõem.

Bibliografia

BERLITZ, Charles. As línguas do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.


CARVALHO, Castelar de. Para compreender Saussure. Petrópolis: Vozes, 2000.
ESTELITA, Mariângela. ELiS – Escrita das Línguas de Sinais: proposta teórica e
verificação prática. 192f. Tese (Doutorado em Lingüística) – Centro de Comunicação
e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. Trad. Antônio Chelini, José
Paulo Paes, Izidoro Blikstein. 20.ed. São Paulo: Cultrix, 1995.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Petrópolis: Vozes, 1994.

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