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A ARREMATAÇÃO IRRETRATÁVEL E O DEVIDO PROCESSO LEGAL

Hugo de Brito Machado Segundo


Advogado, Mestre em Direito pela UFC
Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor)
Membro do ICET – Instituto Cearense de Estudos Tributários
Professor de Processo Tributário da pós-graduação da Unifor
Professor da Faculdade Christus, e da Faculdade Farias Brito

Introdução
Dando continuidade a uma série de reformas efetuadas no Código de Processo Civil
(CPC), inspiradas pela idéia de dar maior efetividade à prestação jurisdicional, a Lei
11.382/2006 procedeu a importantes modificações no processo de execução de títulos
extrajudiciais.
Dos vários aspectos dessa reforma que merecem estudo cuidadoso, especialmente no
que pertine aos seus reflexos no âmbito das execuções fiscais, colhemos para análise, neste
texto, aquele relativo à possibilidade de os embargos do executado não serem recebidos com
efeito suspensivo, e à conseqüente irreversibilidade da arrematação dos bens eventualmente
penhorados.
Referimo-nos ao art. 694 do CPC, que passou a dispor:
“Art. 694. Assinado o auto pelo juiz, pelo arrematante e pelo serventuário da
justiça ou leiloeiro, a arrematação considerar-se-á perfeita, acabada e irretratável,
ainda que venham a ser julgados procedentes os embargos do executado. (Redação
dada pela Lei nº 11.382, de 2006).
§ 1o A arrematação poderá, no entanto, ser tornada sem efeito: (Renumerado com
alteração do paragrafo único, pela Lei nº 11.382, de 2006).
I - por vício de nulidade; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).
II - se não for pago o preço ou se não for prestada a caução; (Redação dada pela
Lei nº 11.382, de 2006).
III - quando o arrematante provar, nos 5 (cinco) dias seguintes, a existência de ônus
real ou de gravame (art. 686, inciso V) não mencionado no edital; (Redação dada pela
Lei nº 11.382, de 2006).
IV - a requerimento do arrematante, na hipótese de embargos à arrematação (art.
746, §§ 1o e 2o); (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).
V - quando realizada por preço vil (art. 692); (Incluído pela Lei nº 11.382, de
2006).
VI - nos casos previstos neste Código (art. 698). (Incluído pela Lei nº 11.382, de
2006).
§ 2o No caso de procedência dos embargos, o executado terá direito a haver do
exeqüente o valor por este recebido como produto da arrematação; caso inferior ao
valor do bem, haverá do exeqüente também a diferença. (Incluído pela Lei nº 11.382,
de 2006).”

A primeira questão que pode ser suscitada refere-se à aplicabilidade dessa disposição
às execuções fiscais, que, como se sabe, são regidas por lei especial (Lei 6.830/80 - LEF),
sendo apenas subsidiária a aplicação das normas veiculadas no CPC.
Caso se conclua pela possibilidade de aplicação das mencionadas disposições à
execução fiscal, coloca-se, então, o problema de saber como a Fazenda Pública poderá
ressarcir o executado de valores que tenha recebido de forma precipitada, diante da posterior
procedência dos pedidos feitos nos embargos.
É do que cuida este texto.

1. Reforma do CPC e execução fiscal


1.1. Preliminarmente
Antes de iniciar o exame específico de disposições do CPC reformadas pela Lei
11.382/2006, é prudente, para avaliar a possibilidade de sua aplicação às execuções fiscais,
dedicar alguma atenção às possíveis diferenças entre as execuções disciplinadas pelo CPC, e
aquelas regidas pela Lei 6.830/80 (LEF). Afinal, se normas são a conseqüência da valoração
de fatos, é preciso verificar se os fatos regidos pelo CPC são os mesmos – e reclamam a
mesma valoração – dos disciplinados pela LEF.

1.2. Uma visão geral das reformas processuais


Também é pertinente perceber que as alterações efetuadas no CPC pela Lei
11.382/2006 ocorreram no âmbito de um processo mais amplo de reformas, iniciado em 1994,
e que provocou reflexos no processo de conhecimento, nos recursos, no processo cautelar e,
agora, chega ao processo de execução. A finalidade que inspira todas essas reformas é a de
tornar o processo mais simples, menos oneroso, mais célere e, acima de tudo, mais efetivo.
Em termos mais diretos, podemos dizer que foi só depois de dar às partes a
possibilidade de uma tutela de conhecimento e de uma tutela cautelar mais eficazes que o
legislador passou a preocupar-se, ao cabo, com uma tutela executiva também mais útil. E,
aproveitando essa etapa das reformas, a Fazenda Pública busca, com elas, dar mais eficiência
à execução fiscal.
Entretanto, caso o observador se distancie um pouco de cada reforma processual, e as
observe em conjunto, perceberá algo curioso: de forma paralela às reformas havidas no CPC,
processou-se uma outra reforma, em sentido inverso, relativa ao mesmo processo mas
pertinente apenas às demandas em que a Fazenda Pública é parte. Cássio Scarpinella Bueno
refere-se, a esse respeito, a uma “contra reforma processual”, eis que as alterações...
“(...) colocam no próprio Código de Processo Civil e em diversas leis
extravagantes dispositivos que representam, em última análise, sua predisposição a
negar efeito aos avanços que, ao sistema processual civil, têm chegado mais
recentemente. Se a tônica do ‘novo processo civil brasileiro’ é, ao menos do ponto de
vista daquele que pleiteia algo em juízo, a ‘efetividade’, vale dizer, a produção de
resultados concretos e rápidos para aquele que, com uma boa dose de razão, busca
amparo no Poder Judiciário, a do ‘direito processual público’ é a da inefetividade.
Inefetividade pela eliminação, pura e simples, de determinadas categorias e institutos
processuais para quando o Poder Público está em juízo. Regras processuais, de resto,
que são ‘criadas’ para uma só das partes da relação processual, ferindo de morte o
princípio do devido processo legal. Tudo para que o processo demore mais do que as
precitadas leis da ‘reforma’, atendendo ao reclamo da sociedade brasileira, querem
tolerar.”1

O leitor pode estar, a esta altura, se perguntando: - e qual a relação dessa “contra-
reforma” com as reformas do CPC e a execução fiscal? No que um problema interfere no trato
do outro?
Existem, aqui, duas relações que queremos frisar.
A primeira, mais óbvia, é a da isonomia. Por que as reformas, na parte em que cuidam
do processo de conhecimento e do processo cautelar, foram acompanhadas de “contra-
reformas” que as neutralizaram em relação aos feitos em que a Fazenda é parte, e, agora, que
chegam ao processo de execução, serão integralmente por ela, e só por ela, apropriadas? É
preciso perceber que, no processo tributário, o Estado, em regra, não se vale de processos de
conhecimento, eis que declara, constitui e condena no âmbito administrativo, fabricando seus
próprios títulos executivos. A tutela jurisdicional da qual se vale é a executiva. Assim, agora
que a onda reformadora chega ao processo de execução, fala-se em processo de resultados, no
“direito fundamental do Estado” (?) a uma tutela efetiva, quando todo esse discurso era – e
ainda é – neutralizado nas demais formas de tutela, das quais se vale o cidadão, pela aludida
‘contra-reforma’.2
Mas há uma outra relação. É a de que o processo de execução só está sendo
reformado, agora, porque o processo de conhecimento e o cautelar já o foram, antes. Além
disso, em relação às pessoas em geral, que não as de direito público, quem é réu de uma ação
de conhecimento pode, em outra, ser autor, o mesmo ocorrendo com as execuções. Assim, a
reforma, além de ter havido em todas as etapas, não desequilibra a situação de ninguém. No
caso do processo tributário, em que o contribuinte, para ver satisfeitas suas pretensões
resistidas em face da Fazenda Pública, tem invariavelmente de se valer do processo de
conhecimento, enquanto esta apenas da execução se utiliza, a aplicação das reformas apenas
na fase executiva causa desequilíbrio sem igual. E, o pior, apenas na fase executiva movida
pela Fazenda (e não na execução contra esta), o que torna ainda maior a desigualdade
existente entre as posições do cidadão e do Estado na relação processual.
Tais aspectos não podem ser esquecidos na análise da possível aplicação subsidiária
do CPC às execuções fiscais.

1
Cassio Scarpinella Bueno. O poder público em juízo. 2.ed., São Paulo: Saraiva, 2003, prefácio à segunda
edição, p. XV.
2
Não é o objeto deste texto, mas o leitor pode estar curioso: quais foram as tais mudanças batizadas por
Scarpinella Bueno de “contra-reforma”? Podem ser referidas: i) hipertrofia da figura da suspensão de liminar e
da suspensão de segurança; ii) restrição ao poder do magistrado de proferir liminares contra o Poder Público; iii)
restrição ao cabimento da ação civil pública; iv) dispensa de honorários de advogado e execuções não
embargadas; etc.
1.3. Formação dos títulos executivos extrajudiciais e CDA
Outro dado a ser ponderado, na comparação entre a execução regida pelo CPC e
aquela disciplinada pela Lei 6.830/80, é a forma como são constituídos os títulos executivos
que aparelham uma e outra.
Os títulos que embasam uma execução disciplinada pelo CPC são, invariavelmente,
constituídos pela vontade do executado. É uma nota promissória, um contrato assinado por
duas testemunhas, um cheque etc. Isso faz com que a possibilidade de o valor nele
representado não ser devido seja pequena.
Diversamente, a certidão de dívida ativa (CDA) é constituída de forma unilateral pelo
credor. Nela consta a dívida que o credor considera existente, no montante por ele apurado.
Nem é preciso dizer que, nesse caso, a possibilidade de erro, de excesso, e mais, de fundado
inconformismo do executado em pagá-la, é muito maior.3

1.4. Execução pela a Fazenda Pública e contra a Fazenda Pública


Outra distinção marcante entre a execução fiscal e aquela regida pelo CPC reside no
“caminho de volta”. Caso o exeqüente receba quantia superior à devida, como o executado
poderá obter a devida reparação?
No caso de dois particulares, os mesmos meios executivos que um utiliza de forma
eventualmente excessiva estão, com igual intensidade, disponíveis ao outro. E o CPC,
atualmente, contém, no art. 694, antes transcrito, regra que disciplina de forma muito clara a
questão. É o seu § 2.º, que dispõe: “No caso de procedência dos embargos, o executado terá
direito a haver do exeqüente o valor por este recebido como produto da arrematação; caso
inferior ao valor do bem, haverá do exeqüente também a diferença.”
Esse “direito de haver do exeqüente”, parece claro, há de ser exercido nos autos da
própria execução; pode ser adimplido espontaneamente, e, caso haja resistência, pode haver o
uso dos mesmos meios executivos antes empregados contra o executado (v.g, penhora de
bens, bloqueio de contas etc.). Mas e se o exeqüente for a Fazenda Pública? Não parece haver
outra forma de exigir essa recomposição, senão através do precatório. Será razoável, e não-
excessivo, submeter o executado a tal situação?

1.5. Fatos, valores e normas. Situações diversas, normas diversas


Nos itens anteriores, procurou-se mostrar que a realidade subjacente às normas
contidas no CPC, relativas às execuções em geral, e a realidade subjacente às normas
veiculadas na Lei 6.830/80 são diferentes. E essas diferenças indicam, ou mostram-se
relevantes para determinar, a necessidade de um tratamento jurídico-processual também
diverso, que as considere.
Dito em termos mais simples: se um credor ordinário recebe de forma rápida quantia
superior à devida, mas pode ser forçado a devolver de forma também rápida o eventual
excesso diante de eventual êxito dos embargos, justifica-se que estes, os embargos à
execução, não tenham, ordinariamente, efeito suspensivo. Trata-se de meio adequado,
necessário e proporcional em sentido estrito, vale dizer, não excessivo, de se prestigiar o
3
Nesse sentido: Igor Mauler Santiago e Frederico Menezes Breyner, “Eficácia suspensiva dos Embargos à execução fiscal
em face do art. 739-A do Código de Processo Civil”, em Revista Dialética de Direito Tributário n.º 145, p. 54 e ss.
direito do exeqüente a uma tutela jurisdicional célere e efetiva, eis que traz pouca restrição ao
direito análogo que assiste ao executado. Essa justificativa, porém, não está presente na
execução fiscal, pois a execução através de precatório, além de diferente, e muito menos
célere, que a execução fiscal, é, em relação a certos Estados e Municípios, completamente
ineficaz.
Isso faz com que a falta do efeito suspensivo, e conseqüente possibilidade de leilão
antes do julgamento dos embargos, seja meio desproporcional para prestigiar o direito da
Fazenda Pública a uma tutela jurisdicional efetiva. Leva às últimas conseqüências esse direito,
com desnecessários e excessivos efeitos colaterais sobre o direito (também fundamental) do
sujeito apontado como devedor de demonstrar (com utilidade) a inexistência da dívida.
Não queremos, contudo, fazer apenas esse (importantíssimo) exame da realidade
subjacente aos dois diplomas. A avaliação em torno da possibilidade da arrematação antes do
julgamento dos embargos envolve, ainda, análise cuidadosa da própria lei de execuções
fiscais, aspecto ao qual é dedicado o próximo item.

2. Suspensão da execução e Lei 6.830/80


2.1. Embargos à execução de título extrajudicial. Efeito suspensivo
A discussão em torno da irretratabilidade da arrematação, em face da posterior
procedência dos embargos, é conseqüência de uma questão anterior: o efeito suspensivo dos
embargos à execução.
No período anterior à Lei 11.382/2006, o § 1.º do art. 739 do CPC determinava de
forma expressa a atribuição de efeito suspensivo aos embargos, algo então incontroverso;
discutia-se apenas a subsistência desse efeito suspensivo se rejeitados os embargos por
decisão atacada através de recurso sem efeito suspensivo. Entendíamos que o efeito
suspensivo deveria prevalecer até o final julgamento dos embargos, mas esse posicionamento
terminou vencido na jurisprudência.4 Assim, poderia haver a arrematação dos bens
penhorados e, em seguida, em sede recursal, os pedidos do embargante poderiam ser julgados
procedentes, colocando-se a questão da irretratabilidade da arrematação.
Com o advento da Lei 11.382/2006, o mencionado art. 739 foi revogado, inserindo-se
no Código um art. 739-A que dispõe:
4
Hugo de Brito Machado Segundo. Processo Tributário. São Paulo: Atlas, 2004, p. 270 e ss. A jurisprudência
terminou se firmando nos termos da Súmula 317 do STJ, que dispõe: “é definitiva a execução de título
extrajudicial, ainda que pendente apelação contra sentença que julgue improcedentes os embargos”.
Consideramos, mesmo assim, que o citado entendimento, plenamente acolhido pela reforma da Lei 11.382/2006,
deve ser reservado aos processos de execução de título extrajudicial de constituição consensual, disciplinados
pelo CPC. Com relação à execução fiscal, merece destaque a observação contida no seguinte julgado, de
relatoria do Ministro Gomes de Barros: “A regra de que a execução torna-se definitiva, após rejeição dos
embargos, deve ser encarada com reservas, quando se trata de execução fiscal. É que, na eventualidade de o
recurso vir a ser provido, após a alienação do bem penhorado, o dano sofrido pelo executado torna-se
irreversível. De fato, quando o exeqüente é pessoa de direito privado, a pessoa que teve seu patrimônio
injustamente alienado tem quase sempre em seu favor alguma garantia, ou, quando menos, o processo de
repetição, razoavelmente ágil. Na execução promovida pelo Estado tudo é diferente. Em primeiro lugar, não é
possível exigir-se caução do Estado. Depois, o processo de repetição contra a Fazenda Pública deságua na
dolorosa fila dos precatórios” (Ac un da 1.ª T do STJ – Rel. Min. Humberto Gomes de Barros – REsp 277.852-
SP – AgRg – j. em 04.09.2001. No mesmo sentido, RSTJ142/82. Cf. Thetônio Negrão e José Roberto Ferreira
Gouveia, Código de Processo Civil e Legislação Processual em vigor, 35.ª ed, São Paulo: Saraiva, 2003, p.
1300)
“Art. 739-A. Os embargos do executado não terão efeito suspensivo.
§ 1o O juiz poderá, a requerimento do embargante, atribuir efeito suspensivo aos
embargos quando, sendo relevantes seus fundamentos, o prosseguimento da execução
manifestamente possa causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação,
e desde que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes.
§ 2o A decisão relativa aos efeitos dos embargos poderá, a requerimento da parte,
ser modificada ou revogada a qualquer tempo, em decisão fundamentada, cessando as
circunstâncias que a motivaram.
§ 3o Quando o efeito suspensivo atribuído aos embargos disser respeito apenas a
parte do objeto da execução, essa prosseguirá quanto à parte restante.
§ 4o A concessão de efeito suspensivo aos embargos oferecidos por um dos
executados não suspenderá a execução contra os que não embargaram, quando o
respectivo fundamento disser respeito exclusivamente ao embargante.
§ 5o Quando o excesso de execução for fundamento dos embargos, o embargante
deverá declarar na petição inicial o valor que entende correto, apresentando memória
do cálculo, sob pena de rejeição liminar dos embargos ou de não conhecimento desse
fundamento.
§ 6o A concessão de efeito suspensivo não impedirá a efetivação dos atos de
penhora e de avaliação dos bens.”

Como se vê, o efeito suspensivo dos embargos à execução agora depende de


deliberação do juiz, que pode deferi-lo, ou não. Caso não seja atribuído o efeito suspensivo,
poderá haver a arrematação dos bens dados em garantia, colocando-se a questão de sua
irretratabilidade.
Mas é o caso de indagar: essas disposições, contidas no art. 739-A do CPC, aplicam-se
à execução fiscal?

2.2. Modificação do CPC aplica-se à execução fiscal? E a Lei 6.830/80?


Não. É a resposta à pergunta que encerrou o item anterior. O art. 739-A do CPC não se
aplica à execução fiscal.
Primeiro, pelas razões já apontadas no item 1 deste texto, que impõem a atribuição de
tratamento diverso às execuções fiscais, dada a forma distinta como a CDA é constituída e o
indébito restituído. Por conta disso, ainda que o regramento da questão pela lei de execuções
fiscais permitisse o avanço da Fazenda exeqüente no patrimônio do executado, para que esta
obtivesse a satisfação da quantia por ela própria apurada e tida como devida, isso não poderia
ocorrer, sob pena de violação ao substantive due process of law (CF/88, art. 5.º, LIV), e aos
princípios da ampla defesa e do amplo acesso ao judiciário (CF/88, art. 5.º, XXXV e LV). De
fato, permitir-se-ia, com tal sistemática, que um credor obtivesse a quantia considerada
devida, diretamente de quem apontasse como seu devedor, sem qualquer possibilidade de um
controle jurisdicional prévio, o que implicaria o retorno, na prática, da odiosa regra do solve
et repete.
Segundo, por conta do que dispõe a própria Lei 6.830/80. Afinal, o CPC aplica-se à
execução fiscal de forma subsidiária, vale dizer, somente naquilo em que a lei específica for
omissa e reclamar preenchimento, e não há omissão quanto ao efeito suspensivo dos
embargos.
É conferir, primeiro, os artigos 17 e 18, segundo os quais, se houver embargos, a
Fazenda será intimada para impugná-los. Se não forem oferecidos, a Fazenda será intimada
para se manifestar sobre a garantia da execução. Isso significa que toda discussão em torno da
garantia (e, por conseguinte, de seu emprego na satisfação do débito) é paralisada pela
oposição dos embargos, sendo postergada para quando de seu final julgamento.
Mas não só. O art. 19 determina que, não sendo embargada a execução ou sendo
rejeitados os embargos, no caso de garantia prestada por terceiro, será este intimado, sob pena
de contra ele prosseguir a execução nos próprios autos, para, no prazo de 15 (quinze) dias: I -
remir o bem, se a garantia for real; ou II - pagar o valor da dívida, juros e multa de mora e
demais encargos, indicados na Certidão de Divida Ativa pelos quais se obrigou se a garantia
for fidejussória. Ou seja, garantia apresentada por terceiro (v.g., fiança bancária) só pode ser
usada na satisfação do débito em não sendo embargada a execução ou sendo rejeitados os
embargos, o que significa que a oposição destes suspende a execução.
Em seguida, o art. 24 da LEF determina que a Fazenda Pública poderá adjudicar os
bens penhorados, antes do leilão, pelo preço da avaliação, se a execução não for embargada
ou se rejeitados os embargos. Vale dizer, mesmo anterior ao leilão, a adjudicação há de
ocorrer somente depois de rejeitados os embargos, o que significa que tanto ela adjudicação,
como o que lhe seria posterior, o leilão, dependem da rejeição dos embargos para acontecer.
Finalmente, da forma mais explícita, direta e inequívoca possível, o art. 32, § 2.° da
LEF, ao cuidar da garantia da execução através de depósito, preconiza: “após o trânsito em
julgado da decisão, o depósito, monetariamente atualizado, será devolvido ao depositante ou
entregue à Fazenda Pública, mediante ordem do Juízo competente.”
Está aí, de forma clara: o depósito somente será entregue à Fazenda Pública após o
trânsito em julgado da decisão que rejeitar os embargos. Não quer isto dizer que eles, os
embargos, têm efeito suspensivo? Parece-nos que sim.

3. Arrematação irretratável e devido processo legal


3.1. Em quais circunstâncias poderia haver uma arrematação irretratável, em sede de
execução fiscal?
Com as observações feitas até aqui, quanto ao efeito suspensivo dos embargos à
execução fiscal, entendemos que, em se tratando especificamente de execução fiscal, em
nenhuma hipótese, antes do julgamento definitivo dos embargos, pode haver o leilão e a
conseqüente arrematação dos bens dados em garantia.
Caso se admita a existência de efeito suspensivo nos embargos à execução somente até
o seu julgamento em primeira instância, e a continuidade da execução, “como definitiva”, no
caso de apelação do embargante recebida apenas no efeito devolutivo, como vinha fazendo a
jurisprudência mesmo antes de vigente a Lei 11.382/2006, poderá ocorrer a arrematação de
bens e o posterior provimento do recurso. O mesmo poderá ocorrer, com muito mais
intensidade, caso se admita a aplicabilidade do art. 739-A do CPC às execuções fiscais, à
revelia do que determina a Lei 6.830/80. Admitindo tais hipóteses, coloca-se a questão de
saber como interpretar o § 2.º do art. 694 do CPC, segundo o qual “no caso de procedência
dos embargos, o executado terá direito a haver do exeqüente o valor por este recebido como
produto da arrematação; caso inferior ao valor do bem, haverá do exeqüente também a
diferença.”
Como a Fazenda devolverá o valor recebido como produto da arrematação, e ainda, se
for o caso, a diferença entre o valor da arrematação e o valor do bem?

3.2. Arrematação irretratável e restituição


Consideramos que a melhor maneira de equilibrar o direito da Fazenda exeqüente a
uma tutela efetiva no âmbito da execução, com o direito do executado a uma tutela efetiva no
âmbito recursal, caso não se aceite – o que seria o mais adequado – que o efeito suspensivo
dos embargos prevalece até seu final julgamento, é reservar o produto obtido com a
arrematação em conta à disposição do juízo, nos termos do art. 32 da LEF, entregando-o à
Fazenda Pública, ou ao executado, conforme o caso, depois do julgamento definitivo dos
embargos.
Essa solução, que tem fundamento no poder geral de cautela do magistrado, decorrente
do princípio da efetividade da tutela jurisdicional (CF/88, art. 5.°, XXXV), permite à Fazenda
receber o valor, de forma imediata, tão logo julgados os embargos, e dispensa o executado de,
vitorioso na ação de conhecimento, ter ainda de se submeter à penosa via dos precatórios.
Além disso, estabelece a igualdade entre o executado que garante a execução com depósito,
ou com a penhora de dinheiro, e aquele que indica bens para serem penhorados. Não há, com
efeito, motivo para tratá-los diversamente, sendo certo que no caso do depósito a lei é
expressa ao determinar a espera pelo trânsito em julgado (LEF, art. 32, § 2.º).
Entretanto, na hipótese de o bem ser arrematado por valor inferior ao da avaliação, a
reparação devida pela Fazenda Pública não poderá ser obtida, evidentemente, com a mera
utilização do valor pago pelo arrematante. A única forma de consegui-lo, à luz do art. 100 da
CF/88, é através do precatório. Da mesma forma, se o magistrado entender pela não atribuição
de efeito suspensivo aos embargos, realizar o leilão dos bens penhorados e não reservar o
produto da arrematação para entregá-lo à Fazenda após o trânsito em julgado de sentença que
eventualmente julgar improcedentes os pedidos feitos nos embargos, a restituição do
patrimônio do executado terá de ser feita através de precatório.5
O precatório, ao que nos parece, deverá ser expedido em função da própria sentença
proferida nos embargos, quando de seu trânsito em julgado. É uma forma de executá-la, não
sendo a tanto necessário que executado mova outra ação, de “restituição do indébito”.
E nem se objete que a ação de embargos teria como pedido a “desconstituição da
CDA” ou a “extinção da execução”, vale dizer, a oposição à cobrança, e não a restituição de
quantias já pagas. Isso é verdade, mas se os embargos não foram recebidos com efeito
suspensivo, e a execução prosseguiu a despeito dos esforços do executado em sentido
contrário, tais fatos são todos supervenientes à propositura dos embargos, pelo que seria
mesmo impossível que neles se postulasse qualquer devolução. Por outro lado, é a própria lei,
ao prever a possibilidade de ter seguimento a execução apesar da oposição dos embargos, que
afirma a necessidade devolução caso os embargos sejam julgados procedentes. Vale dizer, a
5
Essa é a razão pela qual, diversamente do que ocorre com as execuções em geral, a execução fiscal não pode
deixar de ter seu curso suspenso pela oposição dos embargos. Foi o que exaustivamente procuramos mostrar ao
longo deste trabalho. Aliás, mesmo que aplicável, em tese, o art. 739-A às execuções fiscais, a peculiaridade de o
indébito ter de ser restituído por meio de precatório faz com que sempre esteja presente o risco de dano
irreparável, a determinar a atribuição, pelo juiz, do efeito suspensivo.
procedência dos (pedidos formulados nos) embargos tem como conseqüência automática, de
acordo com o CPC, o imediato dever, por parte do exeqüente, de devolver o que recebera de
forma indevida. Não é preciso propor outra ação, podendo o juízo da execução, tão logo
transitem em julgado os embargos, determinar a expedição do respectivo precatório,
executando a sentença proferida nos embargos.
Do contrário, em sendo realizado o açodado leilão, seria o caso mesmo de extinguir os
embargos ainda pendentes de julgamento, eis que sua inutilidade seria manifesta e total. O
direito (que também assiste ao executado) a uma tutela jurisdicional efetiva (em torno da
validade da exigência que lhe é formulada) não comporta, razoavelmente, tamanha
compressão, sendo impositivo, para que reste uma mínima efetividade à sentença prolatada
em sede de embargos, que em face dela já se determine a expedição do correspondente
precatório. Aliás, a realização do leilão e a satisfação do alegado débito são fatos
supervenientes a oposição dos embargos que não só podem como devem ser objeto de
conhecimento – que pode ocorrer até mesmo de ofício – pelo julgador.
Registre-se, ainda, que, diante do trânsito em julgado da decisão que considerar
procedentes os pedidos do embargante/executado, uma alternativa deste será desistir da
expedição do precatório, e postular a compensação da quantia correspondente, nos termos em
que pacificamente o admite a jurisprudência.
Em qualquer caso, tais soluções, não custa insistir, somente serão cabíveis na hipótese
de o caminho mais correto, proporcional e equilibrado não ser seguido, que é o de se aguardar
o julgamento dos embargos para que só então se dê curso definitivo à execução.
Quanto à arrematação, a sua irretratabilidade impõe-se como conseqüência do
princípio segundo o qual se deve prestigiar a boa-fé de terceiros que nada têm com a lide. O
que não se deve, em nossa compreensão, é permitir a realização de um leilão antes do trânsito
em julgado dos embargos. Mas, se isso vem a acontecer, a forma de remediar a açodada
investida no patrimônio do executado não é o desfazimento da alienação, com grande
insegurança para os que dela participaram como terceiros de boa-fé. A solução deverá ser
alcançada através da indenização por parte do exeqüente. E tal indenização, convém frisar,
não se há de limitar, necessariamente, ao valor obtido com a arrematação. Pode alcançar
também, a diferença entre o valor do bem e o valor da arrematação, se este for inferior, e
ainda outros prejuízos que o executado tenha sofrido (danos morais etc.), o que só em cada
caso poderá ser aferido.
Finalmente, quanto à irretratabilidade da alienação, deve ser feita a ressalva apenas da
situação em que, em vez de arrematação, ocorre a adjudicação do bem. Nesse caso, já que
todos os ônus pela indevida execução devem recair sobre o exeqüente, que não é um “terceiro
de boa-fé”, é natural que a adjudicação possa ser desfeita no caso de ulterior procedência dos
embargos à execução.

Conclusões
Em razão do que foi visto ao longo deste texto, podemos concluir, em síntese, que:
a) em face da forma peculiar como o título executivo que aparelha a execução fiscal é
constituído, e como o eventual indébito tributário é restituído, os embargos à execução fiscal
devem ter efeito suspensivo ex lege, o que, aliás, é expressamente determinado pelos arts. 16,
17, 19, 24 e 32 da Lei 6.830/80, não se lhes aplicando o disposto no art. 739-A do CPC;
b) o efeito suspensivo dos embargos à execução fiscal há de prevalecer inclusive no
plano recursal, não se devendo aplicar o entendimento firmado pelo STJ através da Súmula
317, que se deve restringir aos processos de execução de título extrajudicial de constituição
consensual, disciplinados pelo CPC;
c) caso a jurisprudência se venha a orientar definitivamente em sentido diverso, de
sorte a permitir o seguimento de execuções fiscais embargadas, com a arrematação de bens
enquanto ainda não definitivamente julgados os embargos, o juiz deverá pelo menos, dentro
de seu poder geral de cautela, a fim de tornar menos ineficaz eventual sentença de
procedência dos pedidos em sede de embargos, reservar o produto da alienação em conta de
depósito, a fim de entregá-lo à parte vitoriosa quando do julgamento definitivo. Estabelece-se,
com isso, a isonomia entre os executados que oferecem distintas formas de garantia, eis que
tanto o depósito como a fiança e a penhora de dinheiro têm, por expressa disposição legal, de
aguardar a rejeição dos embargos para serem usados na satisfação do débito;
d) em não se procedendo da forma descrita em qualquer das conclusões anteriores, a
posterior procedência dos pedidos formulados nos embargos, reconhecida por decisão
transitada em julgado, ensejará a expedição de precatório a fim de que o executado seja
ressarcido do valor do bem apressadamente leiloado. O mesmo deverá ocorrer com a
diferença entre o valor do bem e o valor da arrematação, na hipótese deste ser inferior àquele,
e com qualquer outro prejuízo que essa indevida alienação tenha trazido ao executado. Não
será necessária a propositura de uma outra ação, de conhecimento, sendo suficiente aquela
proferida em sede de embargos;
e) a arrematação, em qualquer caso, deverá ser considerada irretratável, nos termos do
art. 694 do CPC, em proteção à boa-fé do terceiro arrematante. Somente no caso de
adjudicação, pela própria Fazenda, a alienação poderá ser desfeita, eis que ao exeqüente cabe
arcar com os ônus do açodado ingresso no patrimônio do executado ulteriormente vitorioso
em sede de embargos.

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