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Ideologia e educaçãoI

Marilena de Souza ChauiII

Resumo

A noção de ideologia pode ser compreendida como um corpus de


representações e de normas que fixam e prescrevem de antemão
o que se deve e como se deve pensar, agir e sentir. Com o objetivo
de impor os interesses particulares da classe dominante, esse corpus
produz uma universalidade imaginária. A eficácia da ideologia
depende, justamente, da sua capacidade de produzir um imaginário
coletivo em cujo interior os indivíduos possam localizar-se,
identificar-se e, pelo autorreconhecimento assim obtido, legitimar
involuntariamente a divisão social. Sua coerência está atrelada a
uma lógica da lacuna e do silêncio sobre sua própria gênese, isto
é, sobre a divisão social das classes. A anterioridade do corpus, a
universalização do particular, a interiorização do imaginário como
algo coletivo e comum e a coerência da lógica lacunar fazem com
que a ideologia seja uma lógica da dissimulação (da existência de
classes sociais contraditórias) e uma lógica da ocultação (da gênese
da divisão social). A partir da análise de alguns temas correntes nas
discussões pedagógicas, este ensaio pretende avaliar até que ponto
o discurso educacional, marcado em grande medida pela regra da
competência, encobre ou não alguma ideologia.

Palavras-chave

Ideologia — Divisão social — Educação — Regra da competência.

I- Conferência realizada na Faculdade


de Educação da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp) em 23 de novembro
de 1979. Foi conservado o tom oral da
exposição, embora um tanto cansativo
para quem lê. Essa é uma versão revista do
texto originalmente publicado em Educação
& Sociedade, Campinas, ano II, n. 5, p. 24-
40, jan. 1980
II- Universidade de São Paulo, São Paulo,
SP, Brasil.
Contato: mchaui@usp.br

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 42, n. 1, p. 245-257, jan./mar. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022016420100400 245
Ideology and educationI

Marilena de Souza ChauiII

Abstract

The notion of ideology can be understood as a set of representations


and rules which set and prescribe beforehand what one should
be and how one should think, act, and feel. In order to impose
the particular interests of the ruling class, this corpus produces
an imaginary universality. The effectiveness of ideology depends
precisely on its ability to produce a collective imaginary within which
individuals can locate, identify themselves and, thus, by such self-
recognition, unwittingly legitimize social division. Its consistency is
linked to a logic of gap and silence about its own genesis, that is,
about the social division of classes. The anteriority of the corpus,
the universalization of the particular, the internalization of the
imaginary as something collective and common, and the consistency
of lacunar logic make ideology be a logic of dissimulation (of the
existence of contradictory social classes) and a logic of concealment
(of the genesis of social division). From the analysis of some
recurring themes in educational discussions, this essay intends to
assess to what extent the educational discourse, marked largely by
the competence rule, conceals some ideology.

Keywords

Ideology — Social division — Education — Competence rule.

I- Lecture delivered at Faculdade de


Educação da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp) on november 23rd,
1979. Its oral tone has been maintained
despite being somewhat tiresome for
readears. This is a revised version of the
texto published in: Educação & Sociedade,
Campinas, ano II, n. 5, p. 24-40, jan. 1980
II- Universidade de São Paulo, São Paulo,
SP, Brasil.
Contact: mchaui@usp.br

246 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022016420100400 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 42, n. 1, p. 245-257, jan./mar. 2016.
Falar sobre “ideologia e educação” é legitimar involuntariamente a divisão social.
quase como tentar uma dissertação sobre “Deus e Portanto, a eficácia ideológica depende da
sua época”, isto é, uma certa dose de insensatez. interiorização do corpus imaginário, de sua
Tanto um tema como outro são inesgotáveis, pois identificação com o próprio real e especialmente
não se pode falar de ideologia em geral nem de de sua capacidade para permanecer invisível.
educação em geral, e, portanto, reuni-los parece Pode-se dizer que uma ideologia é hegemônica
rematada loucura. A tentativa aqui, hoje, limita- quando não precisa mostrar-se, quando não
-se ao levantamento de alguns temas correntes necessita de signos visíveis para se impor, mas
nas discussões pedagógicas, para avaliar até que flui espontaneamente como verdade igualmente
ponto encobrem ou não alguma ideologia. Por aceita por todos.
outro lado, como o termo ideologia tem adquirido 4. É nuclear, na ideologia, que ela possa
os sentidos mais variados nos últimos decênios, representar o real e a prática social através de
tentarei, apenas para evitar algum mal-entendido uma lógica coerente. A coerência é obtida graças
entre nós, delimitar brevemente o campo no qual a dois mecanismos: a lacuna e a “eternidade”.
defino os traços da ideologia, sem pretender com Isto é, por um lado, a lógica ideológica é lacunar,
isso esgotar a questão nem mesmo tratá-la de ou seja, nela os encadeamentos se realizam não
modo suficientemente detalhado. a despeito das lacunas ou dos silêncios, mas
graças a eles; por outro lado, sua coerência
Ideologia depende de sua capacidade para ocultar sua
própria gênese, ou seja, deve aparecer como
De modo sumário e para os fins que nos verdade já feita e já dada desde todo o sempre,
interessam aqui, poderíamos “resumir” a noção como um “fato natural” ou como algo “eterno”.
de ideologia nas seguintes determinações: Esses dois mecanismos permitem que cheguemos
1. Um corpus de representações e de a duas conclusões de grande envergadura no que
normas que fixam e prescrevem de antemão o concerne à crítica das ideologias. Como lógica da
que se deve e como se deve pensar, agir e sentir. lacuna e do silêncio, a ideologia não se opõe a um
Por sua anterioridade, a ideologia predetermina discurso pleno que viria “preencher os brancos”
e pré-forma os atos de pensar, agir e querer e tornar explícito tudo quanto ficara implícito.
ou sentir, de sorte que os nega enquanto Em geral, é pela oposição entre o lacunar e o
acontecimentos novos e temporais. pleno que se costuma distinguir ideologia e
2. O corpus assim constituído tem a ciência. Ora, não há qualquer possibilidade
finalidade de produzir uma universalidade de tornar o discurso ideológico um discurso
imaginária, pois, na realidade, apenas generaliza verdadeiro pelo preenchimento de seus brancos.
para toda a sociedade os interesses e o ponto Quando fazemos falar o silêncio que sustenta
de vista particulares de uma classe: aquela que a ideologia, produzimos um outro discurso, o
domina as relações sociais. Assim, a produção contradiscurso da ideologia, pois o silêncio, ao
desse universal visa não só ao particular ser falado, destrói o discurso que o silenciava.
generalizado, mas sobretudo a ocultar a própria Não é, pois, a ampliação ou a plena explicitação
origem desse particular, isto é, a divisão da das representações ideológicas que constituem
sociedade em classes. uma crítica da ideologia transformada em
3. Como forma do exercício da ciência, mas a destruição das representações e
dominação de classe, a eficácia da ideologia das normas pela destruição de seus andaimes,
depende de sua capacidade para produzir isto é, as lacunas. A segunda consequência
um imaginário coletivo em cujo interior os concerne à questão da gênese. A lógica
indivíduos possam localizar-se, identificar-se ideológica só pode manter-se pela ocultação de
e, pelo autorreconhecimento assim obtido, sua gênese, isto é, a divisão social das classes,

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pois, sendo a “missão” da ideologia dissimular fala sobre a loucura, a sexologia que fala sobre
a existência dessa divisão, uma ideologia que o sexo, a tecnologia que fala sobre o trabalho, a
revelasse sua própria origem se autodestruiria. pediatria que fala sobre a criança), a filosofia (que
Por essa razão, a ideologia deve fabricar teorias a fala sobre as coisas e sobre as ideias) e, talvez, a
respeito da origem da sociedade e das diferenças pedagogia, discurso sobre a educação. O discurso
sociais de modo a poder negar sua origem sobre, em geral, oculta seu caráter ideológico
verdadeira. Trata-se, pois, da produção de uma chamando-se a si mesmo de Teoria. A distinção
gênese imaginária sustentada por determinadas entre duas formas de discurso pode permitir que
“teorias” da história nas quais ideias, como as distingamos algo que tendemos a não diferenciar
de progresso ou de desenvolvimento, têm a muito: o conhecimento e o pensamento. O
finalidade de colocar o presente como uma conhecimento é a apropriação intelectual de
fase necessária do desdobrar do passado e do um certo campo de objetos materiais ou ideais
advento do futuro, estabelecendo continuidade como dados, isto é, como fatos ou como ideias.
entre eles. Assim, por exemplo, nos primórdios O pensamento não se apropria de nada – é um
da ideologia burguesa, a gênese da sociedade trabalho de reflexão que se esforça para elevar
era explicada por um pacto social como um uma experiência (não importa qual seja) à sua
“progresso” humano em face da Natureza, inteligibilidade, acolhendo a experiência como
enquanto, na ideologia burguesa contemporânea, indeterminada, como não-saber (e não como
a origem e a finalidade da sociedade são dadas ignorância) que pede para ser determinado
pelas ideias de racionalidade, organização e e pensado, isto é, compreendido. Para que o
planificação, entendidas como um “progresso” trabalho do pensamento se realize, é preciso que
no conhecimento “objetivo” das relações sociais. a experiência fale de si para poder voltar-se sobre
5. A anterioridade do corpus, a si mesma e compreender-se. O conhecimento
universalização do particular, a interiorização tende a cristalizar-se no discurso sobre; o
do imaginário como algo coletivo e comum e pensamento se esforça para evitar essa tentação
a coerência da lógica lacunar fazem com que a apaziguadora, pois quem já sabe, já viu e já
ideologia seja uma lógica da dissimulação (da disse não precisa pensar, ver e dizer e, portanto,
existência de classes sociais contraditórias) e uma também nada precisa fazer. A experiência é o
lógica da ocultação (da gênese da divisão social). que está, aqui e agora, pedindo para ser visto,
Por esse motivo, uma das operações fundamentais falado, pensado e feito.
da ideologia consiste, segundo Claude Lefort,
em passar do discurso de ao discurso sobre. Alguns temas para discussão
Assim, podemos quase detectar os momentos
nos quais ocorre o surgimento de um discurso Os temas que enumerarei a seguir
ideológico: por exemplo, quando o discurso da não obedecem a qualquer critério lógico de
unidade social se tornou realmente impossível encadeamento, nem pretendem abranger todos os
em virtude da divisão social, surgiu um discurso problemas suscitados pelo trabalho pedagógico.
sobre a unidade; quando o discurso da loucura A escolha foi aleatória e sem pretensão a
tem que ser silenciado, em seu lugar, surge um qualquer “esgotamento” das questões.
discurso sobre a loucura; onde não pode haver
um discurso da revolução, surge um outro, sobre a) Quem silencia o discurso da educação?
a revolução; ali onde não pode haver o discurso
da mulher, surge um discurso sobre a mulher etc. Como sabemos, em nossa sociedade, é
Ora, essa passagem do discurso de ao discurso tacitamente obedecida uma regra que designarei
sobre caracteriza várias de nossas atividades como a regra da competência e cuja síntese
intelectuais, como a ciência (a psiquiatria que poderia ser assim enunciada: não é qualquer um

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que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa controle exercido sobre cada parte do corpo do
em qualquer lugar e em qualquer circunstância. trabalhador; no segundo, procura reunificar o
Em outras palavras, o emissor, o receptor e o que foi fragmentado, recorrendo à organização e
conteúdo da mensagem, assim como a forma, o à planificação. Ora, essas duas esferas concernem
local e o tempo de sua transmissão dependem de à decisão acerca do processo de trabalho e
normas prévias que decidem a respeito de quem encontram-se separadas da esfera da simples
pode falar e ouvir, o que pode ser dito e ouvido, execução. A “racionalidade” consiste pura e
onde e quando isso pode ser feito. A regra simplesmente em separar de modo radical aqueles
da competência também decide de antemão, que decidem ou dirigem e aqueles que executam
portanto, quais são os excluídos do circuito de ou são dirigidos, retirando destes últimos todo
comunicação e de informação. Essa regra não e qualquer poder sobre sua própria atividade. O
só reafirma a divisão social do trabalho como mito da racionalidade assim concebida permite,
algo “natural”, mas sobretudo como “racional”, por um lado, o surgimento das burocracias como
entendendo por racionalidade a eficiência da forma de reunificar o disperso, reproduzindo-se
realização ou execução de uma tarefa. E reafirma nelas próprias (através do sistema de autoridade
também a separação entre os que sabem e os fundado na hierarquia) a mesma divisão efetuada
que “não sabem”, estimulando nestes últimos o na esfera produtiva, mas permite ainda, por outro
desejo de um acesso ao saber por intermédio da lado, o surgimento da ideia de administração.
informação (isto é, por meio do discurso sobre). Administrar é organizar e planejar. Ora, o que
A regra da competência nos permite caracteriza a sociedade de mercado ou o modo
indagar: quem se julga competente para falar de produção capitalista é o fato de engendrar, a
sobre a educação, isto é, sobre a escola como partir de uma equivalência (as mercadorias), um
forma de socialização? A resposta é óbvia: sistema universal de equivalentes graças a vários
a burocracia estatal que, por intermédio dos processos de abstração, ao final dos quais tudo
ministérios e das secretarias de educação, legisla, se equivale a tudo ou qualquer coisa vale por
regulamenta e controla o trabalho pedagógico. qualquer outra. Essa homogeneização do social
Há, portanto, um discurso do poder que se equalizando abstratamente todas as esferas de
pronuncia sobre a educação, definindo seu socialização e todas as obras sociais é o que
sentido, finalidade, forma e conteúdo. Quem, torna possível o advento da noção e da prática
portanto, está excluído do discurso educacional? da administração. Com efeito, a administração
Justamente aqueles que poderiam falar da possui seu próprio sistema de regras, normas
educação enquanto experiência que é sua: os e preceitos, seus próprios princípios acerca
professores e os estudantes. Resta saber por que do ato administrativo independentemente do
se tornou impossível o discurso da educação. objeto ou realidade que será administrada.
A ideologia contemporânea está montada Em outras palavras, do ponto de vista da
sobre o mito da racionalidade do real entendida administração, a Volkswagen, a universidade, o
como razão inscrita nas próprias coisas e ensino fundamental e o ensino médio, o Detran
expressa através das ideias de organização e de [Departamento de Trânsito], a PM [Polícia Militar],
planejamento. Como sabemos, a origem dessa o museu de arte, o cinema, o teatro, a Bombril ou
ideologia encontra-se no mundo econômico a Bendix são absolutamente equivalentes. Nada
da produção, isto é, no taylorismo como forma há, do ponto de vista da administração, nada
de racionalizar o processo de trabalho. A que individualize ou singularize esses “objetos”,
racionalidade taylorista opera em dois níveis: pois são todos igualmente administráveis, isto é,
no primeiro, fragmenta ao máximo o processo organizáveis e planejáveis.
de trabalho a fim de torná-lo cada vez mais Assim, a regra da competência, somada
“produtivo”, isto é, cada vez mais rentável pelo ao mito da racionalidade encarnada no

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taylorismo e na burocracia (com suas sequelas, fundamento real e objetivo graças às pesquisas
isto é, hierarquia, fragmentação, separação das ciências biológicas e psicológicas. Todavia, se
entre dirigentes e dirigidos), acrescida dos focalizarmos nossa atenção numa outra noção,
padrões de organização e planejamento sob deixada no silêncio, poderemos desconfiar
a forma “neutra” da administração, silencia o um pouco da cientificidade e da neutralidade
discurso da educação, para que o poder fale da noção de maturidade. Refiro-me à noção
sobre ela. A educação não pode falar porque, de imaturo. Quem, nas sociedades ocidentais
se o fizer, obrigará ao reconhecimento de sua modernas, tem sido sistematicamente definido
existência singular ou específica articulada como imaturo? A criança, a mulher, as “raças
a outras singularidades que diferenciam as inferiores” (negros, índios e amarelos) e o povo.
relações sociais, de sorte que, de diferença em Qual a consequência fundamental da imputação
diferença, acabaria levando ao reconhecimento de imaturidade a essas figuras? A legitimidade
das divisões sociais. de dirigi-las e governá-las, isto é, de submetê-
Postas as coisas nesses termos, poderíamos -las. Ora, se a noção de imaturidade é claramente
levantar algumas questões, como, por exemplo, política e ideológica, por que sua contraface,
por que há interesse em regionalizar a educação isto é, a maturidade, haveria de ser científica
(aparentemente, portanto, admitindo diferenças)? (vale dizer, real e verdadeira)? E, uma vez que
Mas por que há interesse em articular a programas e currículos são montados sobre essa
regionalização com as ideias generalizadoras noção, não caberia analisá-la um pouco mais
de segurança e desenvolvimento nacionais a fundo para que se pudesse averiguar a quem
(apagando a diferença inicialmente afirmada)? serve e a que serve? Se fizermos falar o silêncio
Por que há interesse em cursos profissionalizantes da imaturidade, o discurso sobre a maturidade
(supondo, outra vez, a diferença, agora no plano permanecerá intacto?
da demanda e da clientela)? Mas por que há
interesse numa seriação tal que, a partir de um c) Escola e comunidade
determinado ponto, a profissionalização mude de
significado, isto é, profissionalizar-se no ensino Que se entende por comunidade numa
médio e na universidade não têm o mesmo sociedade de classes? Quem são os representantes
sentido (aumentando, portanto, a diferenciação da comunidade junto à escola? Que são e quais os
ao mesmo tempo em que esta fica escondida serviços que a escola deve prestar à comunidade?
sob a designação meramente quantitativa dos Nas universidades, não há qualquer dificuldade
“graus”)? Enfim, o que é, quem é e para que para responder a essas questões. Basta examinar
serve um administrador escolar? a composição dos Conselhos Universitários para
verificar que os representantes da comunidade
b) A noção de maturidade e a confecção de são os membros do patronato e que os serviços à
currículos e programas de ensino comunidade consistem em fornecer determinados
tipos de mão de obra às empresas. Mas, nas
Em um outro trabalho (“A reforma do escolas de ensino fundamental e médio, quem é
ensino”, Discurso, Dep. de Filosofia-USP, n. 8, a comunidade?
1978) procurei assinalar qual a ideia de educação Na verdade, a própria ideia de comunidade
e de conhecimento que se encontrava subjacente mereceria uma certa atenção. Como sabemos,
à reforma do ensino. No entanto, naquele na conceituação weberiana, a comunidade é
trabalho, não fiz referência a um aspecto que, constituída pelas relações tradicionais de serviço
hoje, gostaria de sugerir como tema de discussão: e defesa mútuos prestados por membros de um
a relação entre programas, currículos e a noção de mesmo grupo cuja solidariedade se funda na
maturidade. Aparentemente, essa ideia encontra família, na tribo, no clã, na religião etc. Na análise

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de Marx acerca das formas pré-capitalistas, os o que seria autoavaliar-se? Considerando-se a
três tipos de comunidades estudadas (primitiva, questão pelo ângulo metafísico e antropológico,
oriental e germânica-feudal) são constituídos seria possível admitir a autoavaliação como
por uma determinação fundamental, qual seja, a caminho para a autonomia? Não seria o inverso
forma comunitária da propriedade (da terra) e dos que ocorreria? Isto é, não haveria na ideia de
instrumentos de trabalho (no artesanato). Ora, seja autoavaliação uma simplificação psicologizante
do ponto de vista weberiano, seja do ponto de vista que deixa em silêncio seus riscos?
marxista, onde estão as comunidades na sociedade Em termos sociológicos e políticos, não
de mercado (Weber) ou no modo de produção caberia perguntar o que é autoavaliar-se numa
capitalista (Marx)? Seria por obra do acaso que sociedade dividida em classes e unificada atra-
a ideia de Nação e de comunidade nacional vés do Estado? Quem fornece os critérios da
tenham surgido exatamente quando a realidade avaliação? Quais são eles? Qual seu sentido e
das comunidades desapareceu? Se a comunidade finalidade? Até que ponto esses critérios são ou
não for a Nação (pois esta se encontra dividida em não instrumentos para inculcar no aluno de-
classes), onde estará? Na perspectiva da teologia da terminadas expectativas e valores que não só
libertação, surge a ideia da comunidade como uma anulem sua individualidade, mas sobretudo for-
comunidade de destino, de sorte que o vínculo que neçam uma direção prévia às suas expectativas
une os membros de uma comunidade é o destino sociais? Em termos psicológicos, a autoava-
comum. Ora, dada a divisão das classes, haveria liação não seria um sutil mecanismo de inte-
diferença entre comunidade de destino e classe riorização da regra, da lei e da repressão? Em
social? Se houver, qual poderá ser? lugar de ser um momento da consciência de si
Quando, portanto, aceitamos os termos mediada pela consciência do outro (no caso, o
da lei segundo a qual a escola recebe e presta ser- professor), não seria o puro apagamento da ex-
viço à comunidade, não estaremos confundindo o terioridade das regras para torná-las internas,
bairro, a vila, a periferia, isto é, os agrupamentos, tornando impossível lutar efetivamente contra
com a comunidade? Mas o que há de ser uma elas, visto que o combate se reduziria a um con-
comunidade assim definida? O que se oculta sob flito psicológico interior?
ela? O que está sendo silenciado quando se fala A questão colocada nessa perspectiva não
sobre comunidade numa sociedade de classes permitiria indagar, em termos ideológicos, se a
onde as condições objetivas da vida comunitária autoavaliação não seria apenas a dissimulação da
não podem existir? exterioridade da autoridade, tornando-a invisível
porque internalizada? E, se for esse o caso, a
d) O critério da autoavaliação quem e por que interessa a invisibilidade da
autoridade e por que interessa batizá-la com os
Em que medida, numa sociedade, como a nomes de liberdade e responsabilidade? Liberdade
nossa, pode haver autoavaliação? Até que ponto com relação a quê? Responsabilidade pelo quê?
essa ideia não simplifica problemas complexos Donde uma última questão: a que e a
que vão desde o plano metafísico até o plano quem serve uma pedagogia fundada no crité-
pedagógico? rio da autoavaliação que escamoteia problemas
No plano metafísico, se considerarmos a metafísicos (a identidade consigo mesmo como
vida intersubjetiva como originária e na qual conquista da autonomia no interior da vida in-
somos pelo e para o outro, o que seria autoavaliar- tersubjetiva), antropológicos (o papel da cultura
-se? No plano antropológico, se considerarmos na criação dos símbolos de reconhecimento), so-
a cultura como sistema simbólico que define ciológicos, políticos e ideológicos (o exercício da
regras e valores para seus membros e por cujo dominação graças ao apagamento das diferenças
intermédio podem reconhecer-se e identificar-se, de classes pela universalidade ilusória atribuída

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à regra particular interiorizada) e psicológicos é puramente denotativo? Isto é, aquilo cujo
(a autoavaliação como mecanismo de controle e sentido parece como inteiramente dado na
como instrumento de adaptação)? Não estaríamos relação transparente do signo com a coisa?
aqui diante de uma das formas mais sutis e efica- Diante dos recursos audiovisuais,
zes de manipulação ideológica, onde a liberdade poderíamos indagar: a quem interessa uma relação
é definida através de uma autonomia imaginária? com a cultura na forma do consumismo? A quem
interessa a banalização e simplificação da cultura?
e) Os recursos audiovisuais A quem interessa ocultar a dimensão do trabalho
cultural sob a ilusão da “criatividade”? A quem
À primeira vista, os recursos visuais interessa que a educação seja apenas mais um
corresponderiam a uma concepção inteiramente item da cultura de massa e da indústria cultural?
nova da educação, na medida em que fariam Quem lucra, do ponto de vista econômico, com
o aluno atuar como totalidade corporal e a fabricação desses recursos? Quem lucra, social
espiritual, de sorte que ver, ouvir e tocar e politicamente, com seu uso? A quem interessa
sejam considerados atos tão significativos que a democratização da cultura seja sinônimo de
quanto ler e escrever. No entanto, quando massificação, de tal modo que o “direito igual de
nos aproximamos um pouco da realidade dos todos à educação” se converta automaticamente
recursos audiovisuais, ou pelo menos daqueles na suposição de que, para ser um “direito igual”,
mais comumente empregados no Brasil, a educação deve reduzir-se à vulgarização dos
nota-se que realizam o oposto do que talvez conhecimentos através da mídia. Assim como
pretendessem. Em primeiro lugar, verifica-se a autoavaliação inventa uma pseudoliberdade,
que o aluno fica reduzido à posição de mero o recurso audiovisual tende a transformar a
consumidor e que sua passividade é aumentada igualdade educacional em nivelamento cultural
pela ilusão de atividade ou de “participação” que pelo baixo nível dos conhecimentos transmitidos.
tais recursos supostamente lhe pediriam, uma
vez que não é criador deles, mas seu receptor e, f) A dinâmica de grupo
quando muito, seu imitador. Em segundo lugar,
há nesses recursos uma tendência a simplificar À primeira vista, se considerarmos, por
enormemente as questões, banalizando o exemplo, a ideia de Sartre do grupo em fusão
conhecimento, freando o pensamento, tornando como acontecimento histórico e social decisivo
o mundo da cultura algo “divertido”, porque porque destrói (ainda que momentaneamente) a
na “diversão” desaparece o trabalho criador multidão como massa sem rosto, a dinâmica de
como trabalho (isto é, como transformação da grupo parece ser um recurso valioso: diminui
realidade imediata numa obra que a exprime a competição e o individualismo típicos do
e a compreende). Em terceiro lugar, há nesses universo burguês, cria condições para uma
recursos uma redução da dimensão simbólica intersubjetividade na qual as tensões podem
da cultura porque sua dimensão expressiva ser trabalhadas em lugar de ser camufladas ou
ou significativa é achatada numa concepção mantidas numa situação de pura destrutividade
binária e puramente denotativa dos signos, uma recíproca, torna possível uma participação efetiva
vez que os recursos audiovisuais estacionam na dos estudantes em seus próprios problemas e nos
esfera da correspondência biunívoca entre um de suas relações com o professor e com a escola,
signo e uma coisa, anulando aquilo que torna abre campo para discussões coletivas e, portanto,
possível tal correspondência: a significação ou para o entendimento recíproco das diferenças.
expressão. A conotação desaparece e, com ela, Todavia, quando examinamos mais de perto
o simbólico, o imaginário e a possibilidade da as “teorias” acerca da dinâmica de grupo, tendemos
crítica, pois como se poderia criticar aquilo que a desconfiar de seus resultados, ou melhor,

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podemos perceber que viabilizam resultados não só tende a tornar-se psicoterapia ilusória,
opostos aos que eram esperados. Há pelo menos mas ainda pode servir para reproduzir e preparar
dois efeitos da dinâmica de grupo que merecem os estudantes para modelos de relações sociais
atenção por parte dos pedagogos. O primeiro deles desejadas pela ideologia contemporânea (como,
concerne ao fato de que tal dinâmica tende a gerar por exemplo, aquelas produzidas pelas “relações
uma forma nova e mais sutil de dependência humanas” nas empresas).
recíproca. De fato, ao abolir, em decorrência da
força numérica do grupo, a autoridade visível do g) Educação como formação e como
professor, a dinâmica recria no interior do próprio conscientização
grupo autoridades invisíveis porque as relações
têm a aparência de serem paritárias, quando não Em geral, costuma-se opor educação
o são. Surgem líderes e liderados. E há toda uma como formação e educação como informação,
parafernália psicologizante para “explicar” esse oposição que reaparece quando se distinguem
surgimento como algo natural e inevitável, sem aprendizagem e treinamento, conscientização
que se questione sua origem verdadeira, isto é, a e pragmatismo, espírito crítico e autômatos.
dinâmica de grupo como reprodução, no interior da Aqueles que privilegiam o polo formação/
escola, daquilo que a racionalidade organizatória aprendizagem/conscientização têm a esperança
promove dentro das empresas: a diferença entre de que a educação possa ser um instrumento de
dirigentes e dirigidos, sob a ilusão da vida em conhecimento e de transformação do real, graças
grupo. O segundo efeito da dinâmica de grupo à sua compreensão crítica. Não podemos também
consiste em criar nos seus membros a expectativa ignorar o fato de que tais oposições implicam
de ampliar para além do espaço grupal (no caso, uma outra, qual seja, entre uma visão humanista
espaço escolar e de classe) a mesma experiência, o e uma visão tecnocrática da educação.
que, sendo impossível, gera frustração permanente, O que é “formar”? Quem lê o Emílio
pois o microcosmo artificial criado pela dinâmica de Rousseau, O que são as luzes? de Kant, a
de grupo não pode transformar-se em macrocosmo Fenomenologia do espírito de Hegel, A educação
social. A tendência, portanto, poderá ser a de tornar para a liberdade de Dewey, as propostas da escola
os membros do grupo incapazes de enfrentar e nova e da escola ativa, as de Summer Hill ou as de
resolver conflitos reais toda vez que o “modelo do Freinet, para não mencionar a República de Platão,
grupo” não puder ser aplicado, ou, então, torná- o Dos ofícios de Cícero e o De magistro de Santo
-los apáticos e indiferentes a tudo quanto ocorra Agostinho, há de perceber que a ideia de formação
“fora” do grupo. Assim, em lugar do espaço ser é inseparável de um determinado campo teórico
ampliado, encontra-se reduzido pela dicotomia e do contexto histórico no qual é formulada a
entre o “dentro” e o “fora”. proposta pedagógica, de sorte que esta não pode
Evidentemente, quando se procura ser compreendida sem a compreensão do papel
examinar o que se oculta sob a proposta da atribuído ao pedagogo com relação à sociedade, à
dinâmica de grupo, não se trata de eliminar uma política e ao saber. Lembradas essas obviedades, a
forma de trabalho pedagógico que a experiência questão colocada – que é “formar”? – permanece
tem revelado ser extremamente rica: refiro-me inteiramente aberta à procura de resposta.
ao trabalho em grupo. Mas sua riqueza advém Parece-me um tanto duvidosa a opo-
justamente do fato de ser um trabalho, isto é, sição formação/informação e aprendizagem/
das relações entre os membros do grupo estarem treinamento, não porque quem forma informa
mediadas por uma tarefa comum, sendo ela o e quem ensina treina, mas porque, ao contrário,
elemento que une e diferencia os membros do informar já é também uma maneira determina-
grupo. Neste caso, já não estamos diante da pura da de conceber a formação, assim como treinar
relação interpessoal em cujo interior a educação já é uma maneira determinada de conceber o

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aprendizado. Os termos não são dicotômicos e se formar um outro quando se conhece a força
opostos, mas complementares. Evidentemente, irredutível do inconsciente e a dissimulação sis-
poder-se-ia argumentar dizendo que a diferen- temática da exploração através da moral da res-
ça entre as duas concepções se estabelece num ponsabilidade? Para tal professor, formar não
outro plano, ou seja: num dos casos, há uma seria informar aos alunos acerca dessas ques-
opção humanista na qual o estudante, como tões e discuti-las com eles? Mas como poderia
homem, é o fim da educação, enquanto, no ou- esse professor ter a pretensão de formar para
tro caso, há uma opção tecnocrática na qual o a “liberdade” conhecendo o papel corrosivo e
estudante, e o ser humano, é meio ou instru- repressivo da cultura como superego e o signi-
mento da educação. Ora, se fizermos a distinção ficado de uma sociedade que se reproduz pela
entre as duas alternativas pedagógicas usando reposição da repressão (do corpo e do espírito)
tais critérios, estaremos apenas optando entre através da exploração econômica? Não estaria
duas versões da ideologia burguesa, pois o ho- esse professor tocando justamente nos limites e
mem tanto como fim (Kant, Mounier) quanto nas ilusões do humanismo?
como meio (Skinner, Taylor) é uma abstração. Com isso, talvez seja necessário rever a
Foi em nome da “humanidade” que os povos ideia da educação como conscientização. Como
da África, Ásia e América foram escravizados sabemos, o surgimento da consciência de si
e trucidados, isto é, colonizados para que de como subjetividade livre e autônoma inaugura
bárbaros se tornassem civilizados. Foi em nome o pensamento moderno (Reforma e Filosofia
da “humanidade” que, durante o processo da Moderna). Mas sabemos também que papel
acumulação primitiva do capital, decretou-se foi dado a essa ideia na formação da ideologia
que todos os homens eram livres, se bem que a burguesa. Sob certos aspectos, aliás, poderíamos
“natureza” tivesse feito alguns mais aptos e ou- considerar a ideologia contemporânea da
tros menos aptos para a liberdade. Foi para sal- organização/administração como mais “honesta”
var o “homem integral” que fascismo e nazismo do que a formulação inicial da ideologia burguesa.
eliminaram os que eram “menos” homens do Com efeito, nesta, a consciência servia para definir
que outros etc., etc., etc. Se for em nome do a igualdade, a liberdade e a responsabilidade, isto
humanismo e da humanidade como fim que es- é, a identidade de todos os homens, garantindo a
tabelecemos oposições entre alternativas peda- dissimulação das diferenças de classe. Na ideologia
gógicas, corremos o sério risco de andar em má contemporânea, o elemento “consciência” já não
companhia. Mesmo que se argumente que não exerce qualquer papel, tendo sido substituído
se trata dessas concepções deturpadas ou opor- pelas ideias de eficiência e de competência no
tunistas do humanismo, mas de um humanis- interior dos quadros definidos pela organização.
mo “verdadeiro” ou “autêntico”, não creio que É nisso que a nova ideologia é mais “honesta”
tenhamos saído do campo definido pela ideo- do que a anterior. Nela, a consciência permanece
logia burguesa, pois é nela que, pela primeira apenas a título de retórica no discurso do poder
vez, se definiu o Homem como fim, de sorte a (o apelo à consciência dos cidadãos) e como
legitimar a existência dos homens como meio. espetáculo oferecido pelo poder (o prêmio ao
Em uma palavra, optar pelo humanismo não é, melhor operário, estudante, policial, empresário,
ainda, criticar a ideologia, mas permanecer no professor, cientista, isto é, aos mais conscientes
interior de um campo cujas regras são dadas de seus deveres e responsabilidades para com o
por ela. Suponhamos um professor que, tendo mundo capitalista).
trabalhado as ideias de Freud e de Marx, se de- Poder-se-ia argumentar aqui exatamente
cidisse pela crítica do humanismo burguês. A como se argumentou no caso do humanismo,
partir desse momento, a educação seria para ele isto é, dizendo-se que a conscientização seria
um problema e não uma solução, pois que há de justamente a formação de um espírito crítico que

254 Marilena CHAUI. Ideologia e educação


contestasse as duas versões dominantes acerca termos de imaturidade/maturidade, ignorância/
da consciência (seja como igualdade, liberdade saber, alienação/verdade, em suma, diferenciar
e responsabilidade abstratas, seja como resíduo hierarquizando e fazendo com que um dos
retórico ou como espetáculo de reafirmação polos seja uma espécie de receptáculo vazio e
ideológica). Cabe, portanto, aprofundarmos dócil no qual venha depositar-se um conteúdo
um pouco a discussão indagando se há ou não exterior trazido pelo outro polo. Com isso, sob
riscos ideológicos na concepção da educação o nome de conscientização, reedita-se sob nova
como conscientização. roupagem o conservadorismo e o autoritarismo
É verdade que a ideia de conscientização da educação que se pretendia combater.
pressupõe a aceitação (e a crítica) das diferenças Não se trata, evidentemente, de abandonar
de classe a partir da divisão social e que, sob a questão da conscientização, mas apenas de
esse aspecto, é anti-ideológica. Todavia, cabe reavaliá-la para poder colocar algumas questões
agora uma pergunta: como a classe social tende novas. Não seria mais rico, em termos educacionais,
a ser tomada na perspectiva da conscientização? se o professor, na relação com os alunos, levasse
Como uma coisa (um fato social) e como uma em conta um fenômeno que encontramos entre
ideia (a consciência de classe), ou traduzindo aqueles genericamente definidos como oprimidos
para uma linguagem mais conhecida: a classe e dominados (fenômeno, aliás, que encontramos
em si e a classe para si. No caso pedagógico, em nós mesmos enquanto professores), qual seja, o
teríamos o aluno em si e o aluno para si ou o da contradição interna entre uma consciência que
aluno ser-social-em si e o aluno ser-social-para sabe e uma consciência que nega seu saber? Isto é,
si. Ora, uma classe social e um aluno não são a divisão interna entre a clara e total consciência
coisas (como pensa a sociologia) nem são ideias que se tem de uma dada situação e, diante do
(como pensa a filosofia): são um acontecer, sentimento ou da percepção da impossibilidade de
um fazer-se, ação e reação, conflito e luta, transformá-la (apesar de conhecê-la), o surgimento
movimento de autodescoberta e de autodefinição de uma segunda consciência, um segundo discurso,
pelo seu próprio agir em cujo curso a classe uma segunda prática que negam ou anulam
tanto quanto o aluno se constituem sabendo de aquilo que realmente se sabe. Levar em conta esse
si. Qual seria, então, o risco ideológico da noção fenômeno não seria enfrentar cara a cara o enigma
de conscientização? da dominação? Não seria mais rica (em termos
Em primeiro lugar, haveria o risco de pedagógicos, políticos e históricos) uma pedagogia
imaginar o aluno (e a classe social) como uma que percebesse e interrogasse esse fenômeno no
consciência latente ou virtual, adormecida no qual um saber real, uma consciência verdadeira
seu ser em si e que o professor (ou a vanguarda) das condições objetivas, é sufocada internamente
viria atualizar ou despertar. Há o risco da sob o peso da adversidade que impede à verdade
atitude iluminista. conhecida e reconhecida propagar-se numa prática
Em segundo lugar, haveria o risco e que, ao contrário, cinde essa consciência que sabe,
de imaginar o aluno (e a classe social) como fazendo-a produzir atos e discursos negadores de
uma consciência de si que, por ignorar-se a si seu saber? Em lugar de nos comprazermos no
mesma, isto é, não ser ainda para si, tenderia maniqueísmo apaziguador de certas dicotomias,
a manifestar-se através de palavras e de ações nas quais tanto a ignorância quanto a verdade vêm
alienadas ou como “falsa consciência”. Assim de fora, tanto o mal (a opressão) quanto o bem (a
sendo, parecerá necessário esperar que a liberação) também vêm de fora, não seria mais rica
desalienação ou a consciência “verdadeira” lhe uma pedagogia que levasse a sério o fenômeno da
seja trazida de fora por aqueles que “sabem”. Há consciência contraditória? Por que essa pedagogia
o risco ideológico de diferenciar o aluno (e a seria mais rica (poderíamos mesmo dizer libertária)?
classe social) do professor (e da vanguarda) em Porque a contradição sendo interna (tanto no aluno

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quanto no professor), pode pôr-se em movimento Essa multiplicidade de afirmações dís-
por si mesma sem que precise aguardar a ação um pares (quase um samba do crioulo doido)
“bom” motor-imóvel para movê-la, tirando-a e abstratas, pois foram feitas sem qualquer
da suposta passividade para levá-la a uma não consideração do contexto histórico que as so-
menos suposta atividade. Uma pedagogia desse licitava, tem apenas a finalidade de um lem-
tipo não seria iluminista, intervencionista, brete óbvio: quando propomos uma pedago-
dirigista, mas tentaria captar aqueles momentos gia, além de possuirmos determinadas ideias
objetivos e subjetivos nos quais a contradição acerca do conhecimento e de sua transmissão
possa vir a explicitar-se. Não se trata de um e uma ideia acerca do aluno, qual o professor
espontaneísmo aguardando que cada um faça que pressupomos?
quando puder e como puder a autodescoberta Na qualidade de professora e de alguém
de suas contradições; trata-se apenas de uma que há pouco fez sugestões pedagógicas a partir
pedagogia capaz de criar condições (o que pode da visão do aluno como consciência contraditória,
ser obra tanto dos alunos quanto do professor sinto-me na obrigação de explicitar brevemente
quanto de todos) para que a descoberta possa qual seria o professor aqui pressuposto. Gostaria
acontecer. Por isso, o primeiro tema que sugeri de adiantar que se trata de um professor utópico.
para o debate foi o da retomada da noção Por utópico não entendo ideal e impossível, pois
de maturidade e de seu papel na confecção a utopia não é isso. Trata-se de um professor
de programas e currículos. De que garantia que é utópico porque ora pode existir e ora pode
dispomos para nos certificarmos de que a noção desaparecer, cuja permanência é fugaz porque,
de maturidade não é um dos grandes obstáculos como seus alunos, também é uma consciência
para essa pedagogia? dividida que substitui o que realmente sabe por
uma prática negadora de seu saber efetivo. É
h) O que seria o professor? um professor possível (e não provável), isto é,
que tanto pode existir quanto não existir, tudo
Platão diria: aquele capaz de fazer dependendo das condições contingentes de seu
com que o outro se lembre da verdade, trabalho. É, portanto, um professor que não
reconhecendo-a. Rousseau diria: aquele capaz possui modelos para imitar porque aceitou a
de fazer da cultura uma astúcia que reproduza, contingência radical da experiência pedagógica.
por novos caminhos, a vida natural perdida. O trabalho pedagógico, por ser um
Kant diria: o que traz as luzes, ensinando a trabalho, não é transmissão de conhecimento
pensar em lugar de fornecer pensamentos. O (para isso existem outros instrumentos), mas
jesuíta disse: aquele capaz de estabelecer uma também não é um diálogo, uma comunicação
distância absoluta entre o conhecimento e o intersubjetiva entre o professor e seus alunos.
real, ensinando, por exemplo, a crianças que O professor trabalha para suprimir a figura
falam o português, o latim por meio das regras do aluno enquanto aluno, isto é, o trabalho
da gramática latina. Hegel diria: aquele capaz pedagógico se efetua para fazer com que a figura
de fazer lembrar e de trazer as luzes, respeitando do estudante desapareça. Para isso, o professor
as etapas de desenvolvimento da consciência. precisa fazer um esforço cotidiano para que
Victor Cousin disse: um funcionário posto pelo seu lugar permaneça vazio, pois seu trabalho é
Estado a fim de transmitir moral e civismo, tornar possível o preenchimento desse lugar por
formando espíritos aptos necessários ao próprio todos aqueles que estão excluídos dele e que
Estado. Um marxista perguntaria: quem educa aspiram a ele e ao qual não poderiam aspirar
o educador? Paulo Freire disse: aquele capaz se já estivesse preenchido por um senhor e
de conscientizar, revelar a opressão e anular a mestre. Porque existe o lugar do professor, mas
colonização. existe como lugar vazio, todos podem desejá-

256 Marilena CHAUI. Ideologia e educação


lo e ninguém pode preenchê-lo senão sob o linguagem e pelos gestos do professor, simples
risco de destruí-lo. A relação professor-aluno é mediador.
assimétrica e sem diálogo: este se torna possível Por que esse professor é utópico ou
quando o aluno desaparece e em seu lugar existe possível? Por que ora aparece, ora desaparece?
o novo professor. O diálogo é ponto de chegada Porque sua posição é muito arriscada: está
e não ponto de partida, só se torna real quando sempre a um passo de tornar-se guru, de
o trabalho pedagógico termina e o professor assenhorear-se do lugar do mestre e manter os
encontra-se com o não-aluno, o outro professor, alunos, para sempre, na condição de discípulos.
seu igual. É preciso aceitar a assimetria com Uma pedagogia crítica deveria interrogar esse
rigor para não forjar a caricatura do diálogo e risco cotidiano: de onde vem e por que vem a
exercer disfarçadamente a autoridade. Ausência sedução de tornar-se guru? De onde vem e por
de diálogo não significa presença da autoridade: que vem em nós e nos alunos o desejo de que
o lugar do professor está vazio, pois seu ocupante haja um Mestre, o apelo à figura da autoridade?
ali se encontra para deixá-lo através de seu E por que, divididos que somos, não cessamos
próprio trabalho. Ao professor não cabe dizer de ter consciência desse risco e dessa sedução
“faça como eu”, mas “faça comigo”. O professor sem cessarmos de agir para promovê-los? Que
de natação não pode ensinar o aluno a nadar na forma mais sutil poderia haver para reconciliar
areia fazendo-o imitar seus gestos, mas leva-o nossa divisão do que fazer com que os alunos
a lançar-se n’água em sua companhia para que dialoguem conosco e não com o pensamento
aprenda a nadar lutando contra as ondas, fazendo e com o mundo que os rodeia, dissimulando
seu corpo coexistir com o corpo ondulante que nesse diálogo imaginário o deslocamento
o acolhe e repele, revelando que o diálogo do operado para conduzir a assimetria real até uma
aluno não se trava com seu professor de natação, simetria ilusória? A ideologia não está fora de
mas com a água. O diálogo do aluno é com o nós como um poder perverso que falseia nossas
pensamento, com a cultura corporificada nas boas intenções: ela está dentro de nós, talvez
obras e nas práticas sociais e transmitidas pela porque tenhamos boas intenções.

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