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A Sociedade Sem Relato Nestor Canclini PDF
A Sociedade Sem Relato Nestor Canclini PDF
relação à situação - também indecisa - do patrimônio, dos artesa- tos neos, pós e discursos excêntricos, H a l Foster escreveu que res-
natos, da mídia, da organização das cidades e do turismo. A s artes ta "uma melancolia" que "se distanciou de seu objeto perdido"'".
reconfiguram-se e m u m a interdependência c o m esses processos O u será preciso reconhecer que agora os objetos são outros?
sociais, c o m o parte de u m a geopolítica cultural globalizada. Desprestigiadas as estéticas idealistas que declararam ar-
Pode-se falar de patrimónios culturais autênticos? É desejá- tísticos os objetos belos o u que suscitaram u m a contemplação
vel que permaneçam intactos, sem serem usados? T e m sentido, desinteressada, sem fins práticos, quais seriam os objetos que
na atualidade, continuar opondo o patrimônio cultural ou os tra- justificariam a existência da disciplina estética, da arte c o m o prá-
balhos artesanais como o campo do que deve ser conservado e a tica diferenciada e das instituições que as exibem e as valorizam? ^
arte como conjunto de movimentos de criatividade e invenção? Muitos diretores de museus decidiram que os objetos já não são
A o caducarem certas indagações que haviam organizado as tão importantes e redesenharam as salas de exposição o u deslo-
disciplinas em territórios distintos - a história e a arqueologia se- caram a experiência estética para relações intersuhjetivas alheias
paradas da sociologia da arte, a antropologia e m departamentos à instrumentação mercantil ( B o u r r i a u d ) . D e s c o b r i r a m que os
desconectados dos sociólogos e outros especialistas na moder- novos públicos visitam museus não para ver obras excepcionais
nidade e na globalização - , descobrimos que as novas perguntas ou aprender uma lição sobre indígenas africanos ou rituais afro-
são transdisciplinares. Inúmeras pesquisas e m escala mundial es- brasileiros que desconhecem, mas, sim, pela curiosidade que lhes
tão criando as condições para que os conhecimentos alcançados suscita u m programa de televisão, porque se preocupam c o m o
e m cada ciência se refaçam em projetos sensíveis à complexidade desmatamento da Amazónia, o u então chegam pela primeira vez
transversal dos processos (Appadurai, Arturo Escobar, Hannerz, ao Louvre porque leram o Código da Vinci.
L i n s Ribeiro, Renato Ortiz, Sennett). Trata-se de algo semelhante O s antropólogos duvidam que seu objeto de estudo possa
ao que está acontecendo c o m os artistas e os praticantes das mí- chamar-se cultura, os museólogos não conseguem expor esse "ob-
dias: interconectam estratégias criativas e comunicacionais. N o s jeto" que acumula centenas de definições, tantas como as de arte,
Estados Unidos, e m Pequim, Tóquio, Barcelona ou Buenos Aires, e os especialistas em patrimônio reiniciam, a cada ano, a tarefa de
desde o fim do século x x , aqueles que administram museus, fa- justificar sua defesa e preservação. O princípio segundo o qual a
zem curadorias de exposições ou atuam como artistas estudam noção de patrimônio agrupava "obras culturais de valor extraor-
antropologia, comunicação e economia para desenvolver estraté- dinário", como proclamam os documentos da Unesco, tornou-se
gias de marketing cultural. D o m e s m o modo, leem livros e revis- insustentável. A s tentativas dessa instituição de tirar seu progra-
tas, em papel o u eletrônicos, seguem hlogs e cultivam redes sociais ma de "patrimônio da humanidade" do heco sem saída fracassam
que transcendem o mundo da arte. ao tentar diferenciar taxativamente a arte, o patrimônio, o turis-
U m m u n d o acaba não só quando é preciso arquivar as res- mo e a mídia.
postas, mas também quando as perguntas que as originaram per- Alguns sociólogos rechaçam a ideia de que sua tarefa resida
^ dem sentido. em averiguar o que é a sociedade o u o que é um fato social, argu-
L e v a m o s décadas tentando encontrar a pergunta pertinen- mentando que não existe u m a estrutura de relações o u u m esta-
te para substituir aquela que indagava o que é arte. N ã o é fácil •^o de coisas estabilizado e c o m certa homogeneidade. Segundo
descartá-la tendo em vista que os funerais de despedida da arte ^runo Latour, eles já não procuram "modelos" macrossociais, o u
não impediram sua existência e renovação, n e m que houvesse po- ^ descrição de grandes conjuntos o u grupos, e s i m compreender
lémica e m torno das obras expostas e m museus, galerias, ruas o u
10.
desertos. C o m que palavras podemos substituí-la? D e p o i s de tan- Foster, El Retorno de lo Real, 2001, p. 51
MÍ.-C/') ur,,> r O T í i / M U I / TIVMV/.
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E D I T O R A DA U N I V E R S I D A D E D E SÃO PAULO
COMISSÃO E D I T O R I A L
Para Magali
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Agradecimentos 11
A B E R T U R A : A A R T E F O R A D E SI 15
D a Transgressão à Pós-autonomia 23
Queda de Muros e do Relato Social 25
DÚVIDAS CONVERGENTES 33
2. CULTURAS VISUAIS:
Mundialização do Local 69
Patrimónios Destinados à Reinterpretação 74
O Vazio como Patrimônio 77
Distribuição Global do Poder Simbólico
(Gabriel Orozco) 81
Patrimônio e Arte: Condições Compartilhadas 95
AGRADECIMENTOS
5. LOCALIZAÇÕES INCERTAS I49
u ' f.
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41
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o que está acontecendo c o m a arte, cuja morte foi anunciada
tantas vezes, para que e m poucas décadas tenha se transformado
em u m a alternativa para investidores decepcionados, laboratório
de experimentação intelectual na sociologia, na antropologia, na
filosofia e na psicanálise, manancial da moda, do design e de o u -
tras táticas de distinção? Insiste-se, até mesmo, que ela ocupe o
lugar deixado vacante pela política e proponha espaços coletivos
de gestão intercultural.
A partir do início do século x x a sociologia mostrou a neces-
sidade de entender os movimentos artísticos e m conexão c o m os
processos sociais. Agora, essa implicação "externa" da arte é mais
visível devido ao crescente valor económico e midiático alcan-
çado por inúmeras ohras. Para explicar o fenómeno não bastam
as hipóteses que postulavam - da mesma forma que se disse a
respeito da religião - que as artes oferecem cenas imaginárias onde
se compensam as frustrações reais, seja como evasão que leva a se
resignar, seja como criação de utopias que realimentam esperan-
ças: " u m a espécie de religião alternativa para ateus", segundo a
frase de Sarah l h o r n t o n ' .
T a m p o u c o parece suficiente o argumento da sociologia crí-
tica, que vê nas escolhas estéticas um lugar de distinção simbólica.
A compreensão da arte culta e das surpresas das vanguardas, v i s -
ta c o m o u m d o m , dizia Pierre B o u r d i e u , torna u m eufemismo as
desigualdades económicas e a dignidade aos privilégios. C o m o
se reelabora o papel da arte quando a distinção estética é conse-
guida c o m tantos outros recursos do gosto, desde a roupa e os
artefatos c o m design até os sites vocacionais, quando a inova-
ção minoritária é popularizada pela mídia? O grande compareci-
mento aos museus de arte contemporânea leva-nos a duvidar do
efeito de distinção para as elites culturais: e m 2005-2006 o MOMA
N ã o só a arte perde autonomia ao ser imitada por m o v i m e n - é u m a combinação paradoxal de condutas dedicadas a afiançar
tos sociais disfarçados. A s misturas difusas entre o ilusório e o a independência de u m campo próprio e outras obstinadas em
real também abismam o mercado da arte, como veremos e m des- derrubar os limites que o separam.
crições etnográficas de leilões, e m que os bilionários dissimulam Nos momentos utópicos, deixou-se vulnerável a fronteira que
seus inexplicáveis lucros especulando c o m obras artísticas. O se- separava os artistas das pessoas comuns, e se estendeu a noção
gredo sobre q u e m compra e coleciona, as explosões de preços de artista a todos e a noção de arte a qualquer objeto c o m u m ,
e suas cíclicas quedas (como aconteceu em 1990 e 2008) fazem seja implicando o público na obra, seja reivindicando as manei-
suspeitar de intersecções mais complexas entre arte e sociedade, ras cotidianas de criar, seja, ainda, exaltando o atrativo dos obje-
entre criatividade, indústria e finanças, do que as que alimenta- tos triviais (desde a pop art até a arte política). N o s momentos
ram os dilemas entre valor económico e valor simbólico nas esté- desconstrutores, esvaziou-se o conteúdo (as monocromías, de
ticas clássicas. E x i s t e m mais processos dentro e fora do campo, e Malevitch a Yves K l e i n ) ou diluiu-se o receptáculo (as pinturas
e m suas interações, que contribuem para a "desdefinição" da arte, que fogem da moldura: Pollock, E r a n k Stella, L u i s Felipe N o é ) .
do que quando H a r o l d Rosemberg c u n h o u esta expressão nos A fim de erodir os limites do gosto, Piero M a n z o n i levou às sa-
dão" desse território e dar participação e m programas de jardins chamamos arte que estão arrancando-a de sua experiência para-
públicos, espaços de reflexão e atos contestatórios aos compra- doxal de encapsulação-transgressão.
dores. A outra via é a ação exercida e m 1989, por B e r n a r d Bazile, A s transgressões supõem a existência de estruturas que opri-
quando abriu u m a das latas de Merda do Artista, de M a n z o n i , e m e m e de narrativas que as justificam. Ficar atrelado ao desejo
mostrou "não só a defasagem entre a realidade do conteúdo (a de acabar c o m essas ordens e, ao m e s m o tempo, cultivar c o m i n -
exibição de u m pedaço de estopa), o imaginário do receptácu- sistência a separação, a transgressão, implica que essas estruturas
lo (o mais impuro fragmento do corpo do artista) e a simbólica e essas narrativas mantêm vigência. O que acontece quando se
do conjunto ( u m dos mais puros momentos de transgressão das esgotam?
fronteiras da arte)"; também exibiu a mais-valia assim consegui-
da e, no final, o aumento do valor da lata de M a n z o n i aberta por
Bazile, vendida pela galeria Pailhas, de Marselha, pelo dobro do Q U E D A D E M U R O S E D O R E L A T O SOCIAL
as metanarrativas; refiro-me à condição histórica na qual n e n h u m ras e migrações, dedicaram livros, obras visuais, números inteiros
relato organiza a diversidade e m u m mundo cuja interdependên- de revistas e sites para elaborar a nova situação.
cia leva muitos a sentirem falta dessa estruturação. E s t a agenda política e cultural foi sacudida, sem ser cancela-
' E m novembro de 2009, livros, revistas, programas televi- da, em 15 de setembro de 2008, dia em que a quebra do L e h m a n
sivos e exposições celebraram os vinte anos da queda do m u r o Brothers levou ao seu pico dramático a desordem neoliberal em
de B e r l i m . N o D e u t s c h e s H i s t o r i c h e s M u s e u m dessa cidade, a vários continentes. Milhões de pessoas perderam seu trabalho,
mostra 1989-2009 - O Muro de Berlim: Artistas pela Liberdade seus investimentos e suas economias em poucas semanas, o con-
reiterou u m a leitura oficial do ocorrido e m 9 de novembro de sumo retraiu-se e lojas, fábricas e outros bancos quebraram, e m
1989: a queda do muro c o m o libertadora de fluxos h u m a n o s que efeito cascata. Muitas fundações suspenderam seus financiamen-
não p o d i a m ser detidos. N o entanto, agora duvidamos de q u e m tos a museus, projetos culturais e pesquisas científicas. Philippe
se beneficiou. O que dizer dos muros consturfdos o u daqueles Vergne - diretor da D i a A r t Foundation - sugeriu, e m u m a con-
que depois foram ampliados ? A página na web da exposição de- ferência de meados de 2009 e m Saint L o u i s , uma aproximação
tém-se e m lugares c o m u n s : reunificação alemã, nova estrutura entre a quebra do banco de investimento e o ganho estrondoso
para a E u r o p a , fim de u m a o r d e m m u n d i a l bipolar. A rigor, a or- de 198 milhões de dólares do artista D a m i e n Hirst quando orga-
d e m m u n d i a l havia deixado de ser bipolar muito antes: a C h i n a nizou na Sothehy seu próprio leilão, ocorrido no mesmo dia 15 de
e o J a p ã o estavam crescendo, os capitais árabes expandiam-se setembro, sem mediação de galeristas . "Provocativa coincidên-
em todo o Ocidente. Avançava u m a recomposição geopolítica cia", reiterou A n t h o n y H u b e r m a n : no m e s m o dia e m que o mer-
que não pode ser condensada na queda do muro. A s c o m e m o - cado se mostrou imperfeito e imprevisível, fonte de "extraordiná-
rações mais produtivas são as que problematizam o sentido do rias ilusões e fúrias de multidões", nas palavras de Paul K r u g m a n ,
que festejam. a manobra estratégica de u m artista para escapar das "loucuras
Se voltarmos o olhar para a América Latina, as democracias eufóricas do mercado da arte" levou sua autonomia a uma "refres-
atuais têm mais a ver c o m outras datas: o fim das ditaduras no cante" e "cínica" reformulação das regras da economia artística^
C o n e Sul e na América Central e m meados dos anos de 1980, as É óbvio que este gesto de autonomia c o m relação ao mer-
crises económicas de 1994 e 1995, o abandono de projetos nacio- cado poderia ser praticado por apenas dez o u vinte artistas que,
nais c o m o o do México a partir de 1982, que se consolidou desde junto c o m D a m i e n Hirst, encabeçam a lista de preços. E s s a pre-
1994 c o m o Tratado de L i v r e Comércio da América do Norte. tensão não pode ser estendida às instituições artísticas e aos pro-
Trata-se de eventos que agravaram a desigualdade e a decompo- jetos coletivos que v i r a m cair seus financiamentos. A s vacilações
sição do capitalismo nesta região. dos museus de primeira linha depois da crise de 2008 mostram
O século X X I começou duas vezes. O ataque da A l Q a e d a a mais sua dependência do mercado e o desconcerto sobre c o m o
N o v a York e Washington, e m u de setembro de 2001, impôs n a evitar serem arrastados pela desordem económica: concentrar-
cena política e midiática o deslocamento que alguns estudos já se nas megaexposições c o m alarde de marketing, como a Tate
v i n h a m anunciando: passamos do multiculturalismo, entendido Modern e outros recintos britânicos? Vender franquias, erguer
c o m o reconhecimento das diferenças dentro de cada nação, para réplicas em A b u - D h a b i espetacularizando-as c o m arquitetos cé-
os conflitos interculturais e m u m a geopolítica glohal onde todas lebres, como tentam, nessa capital dos E m i r a d o s Árabes, o L o u -
as sociedades são interdependentes. A reflexão cultural e a práti- vre, convocando Jean Nouvel, e o Guggenheim, E r a n k G e h r y ?
ca artística, que vinham trabalhando estas tensões mundializadas
n a pesquisa interétnica, assim c o m o as discussões sobre frontei- 3- Huberman, "Talent is Overrated", 2009, p. 109.
2^8 A SOCIEDADE SEM RELATO A ARTE FORA DE SI
29
trJ
yX^^TÚ^O^odelo teórico do campo artístico, associado, como vere- _ D e u m lado, muitos movimentos artísticos deixaram de se i n -
X ^ o s em Bourdieu, a uma época na qual ainda se podiam analisar os teressar pela autonomia ou interagiram c o m outras áreas da vida
movimentos da arte como parte de culturas nacionais, foi esgotan- social - o design, a m o d a , a mídia, as batalhas políticas imediatas.
do sua produtividade à medida que nos globalizamos. Tampouco D e outro, caducaram os paradigmas que continham as peripécias
socioeconómicas, e as promessas de revolução o u bem-estar fica-
convence como alternativa o nomadismo que imaginava u m mundo
ram sem chão. Nesta incerteza análoga da arte e da sociedade, a
sem fronteiras. O s fluxos transnacionais de imagens têm velocida-
arte não pode refundar u m lugar próprio e talvez sua tarefa seja
des distintas se provêm de países economicamente poderosos o u
seu modo de olhar "o que está além do último limite: o extra-
despossuídos. A s pessoas, entre elas os artistas, tropeçam e m mais
artístico, o m u n d o de fora, a história que passa, a cultura alheia",
barreiras do que suas obras. Estas duas abstrações magnas - a u n i -
escreve T i c i o E s c o b a r e m u m livro que tem o mesmo título desta
versabdade da criação e a autonomia da arte - mostram-se incon-
introdução'*.
sistentes cada vez que se levantam novos muros, quando se exigem
mais vistos para os trabalhadores do que para as mercadorias que A arte perde sua autonomia por diferentes vias. A mais co-
produzem. Alguns produtores culturais encontram na resistência a nhecida é a inserção e m u m mercado artístico de grande escala
estas discriminações ou na reivindicação de suas diferenças mate- (obras vendidas por mais de 8 milhões de dólares e m 2008), c o m
rial para sua arte. Porém, estas interações e travas multidirecionais regras heterônomas, às vezes semelhantes às de circuitos de bens
já não contam c o m uma narrativa que as organize. E m h o r a eu pre- comuns. E s s e mercado estende-se dos recintos de consagração
tenda examinar artistas que trabalham c o m resistências e c o m tra- ocidental - Nova York, Londres e Berlim - para a C h i n a , a Rússia e
duções interculturais, que criticam relatos dominantes, crescem, os Emirados Árabes. Misturam-se c o m economias capitalistas ou
sobretudo entre os jovens, relatos destotalizados, fragmentos de mistas, regimes autoritários e democráticos. O s mistérios da arte
uma visualidade sem história. O estado de época depois do fracas- transmutam-se e m segredos dos leilões, os preços das obras são
so soviético e das recorrentes catástrofes capitalistas é " u m fim da comparados c o m o preço dos bónus, das ações e do Dow-Jones^
história" em u m sentido diferente do de Eukuyama: uma perda de H á outros exemplos que revelam a situação pós-autônoma
experiência histórica. Esta organização "presentista" do sentido se da arte nas múltiplas inserções sociais dos artistas. Falaremos de
agudiza, tanto na arte como na vida cotidiana, pela obsolescência u m dos atuais casos emblemáticos, o de Takashi Murakami, cujos
das inovações tecnológicas. mn quadros se assemelham à roupa e às bolsas que ele fabrica para a
A arte tornou-se pós-autônoma e m u m m u n d o que não sabe Louis Vuitton, assim como sua obra artística mostra continuida-
o que fazer c o m a insignificância ou c o m a discordância de rela- de c o m o mangá e os videogames. Contudo, lembremos que figu-
tos. A o falar desta arte disseminada e m u m a globalização que não ras anteriores, ligadas a forças transformadoras na política, como
consegue se articular, já não podemos pensar e m u m a história e o caso de Frida Kahlo, transformaram-se e m emblemas do fe-
c o m uma orientação, n e m e m u m modelo de desenvolvimento minismo, tema de filmes comerciais e capas de revistas polítíco-
para a sociedade. E s t a m o s longe dos tempos e m que os artistas culturais, de turismo e de moda. E m outras épocas, indivíduos i n -
discutiam o que fazer para mudar o m u n d o o u ao menos repre- dignados defendiam o uso legítimo da arte e m face da degradação
sentar suas transições revelando o que "o sistema" escondia. M a l desses símbolos; mais adiante será preciso se perguntar se alguma
conseguem agir, c o m o acontece c o m os prejudicados que tentam coisa no roteiro de vida oferecido por essa artista a tornou flexível
se organizar, na iminência do que pode acontecer ou nos restos
pouco explicáveis do que foi desvencilhado pela globalização. A Escobar, £ / A r t e Fuera de St, 2004, p. 148.
arte trabalha agora nos rastros do ingovernável. " Artprice, Le marché de Vart contemporain 2007-2008, 2008.
30 A SOCIEDADE SEM RELATO
A ARTE FORA DE S I 31
para o multiemprego e por que os fabricantes de roupa, ténis o u
de relógios descobriram nela u m dispositivo para dar significados uma sociedade onde não faz mais sentido a permanência da dico-
transcendentes a seus sucessos de temporadas. tomia esquerda/direita c o m o opção política e u m a ciência social
O s estudos sobre a fortuna crítica dos artistas, seja durante sua que pressupõe novas ferramentas para estudar esta paisagem.
vida (de Picasso a D a m i e n H i r s t ) , seja depois de sua morte (Van Este livro busca u m a linha analítica que se ocupe da arte c o n -
G o g h ) , c o m a intervenção de atores midiáticos, políticos, ligados temporânea a partir dos contextos culturais e sociais que tornam
ao turismo ou ao comércio icônico, revelam como se combinam possível sua condição pós-autônoma. V o u me deter e m projetos
os valores estéticos c o m outros motivos de admiração. O Uvro de singulares de artistas que mantenham certa independência e m
Nathalie Heinich, A Glória de Van Gogh, mostrou que este pintor, relação à religião, à política, à mídia e aos mercados. E n t r e a inser-
longe de ter sido ignorado ou incompreendido, foi celebrado pela ção social inevitável e o desejo de autonomia está e m jogo o lugar
da transgressão criadora, do dissenso crítico e desse sentido da
crítica, e é pouco crível que seu fim trágico deva ser atribuído a
iminência que faz do estético algo que não termina de se produ-
decepções profissionais. Isso não impediu que biografias e estu-
zir, não procura se transformar e m u m ofício codificado n e m e m
dos sobre seu trabalho armassem u m a ressonância c o m motivos
mercadoria rentável.
religiosos, extraídos do repertório da santidade, para construir u m
sentimento de dívida coletiva para c o m o grande artista sacrifi-
cado pela sua arte, "enquanto se desenvolvem diversas modalida-
des de absolvição individual - por meio da compra de obras, pelo
olhar que se pousa sobre elas, pela presença nos lugares onde o
pintor viveu, que se tornaram espaços de culto"*.
Atarefa da análise sociológica, esclarece Heinich, não é desmi-
tificar as crenças n e m denunciar as ilusões, mas, sim, compreender
as razões que formaram, na modernidade, maneiras específicas de
singularização e de criação de valor simhólico. A o multiplicar os
pontos de vista e decifrar as alianças entre experiências subjetivas
e globahzação do gosto, pode-se vislumbrar uma nova compreen-
são do lugar da arte na recomposição do sentido.
Multiplicar os pontos de vista: nós nos afastamos do reducio-
nismo sociológico que irrita, c o m razão, artistas e pesquisadores
que se preocupam c o m a especificidade estética. É preciso ensaiar
u m a visão da arte expandida pelas zonas da vida social, sem obri-
gá-la a representar "estratégias de distinção", a exercer "violência
simbólica" ou dominação dos "legítimos" sobre os demais. A o
explorar vínculos diversificados entre criação e mercado, entre
insatisfações estéticas e mal-estares políticos, é preciso iluminar
as correspondências entre u m a arte cuja redefinição lhe é custosa,
O derretimento de u m bloco de gelo é empurrado durante nove carecemos de teorias universalmente válidas tanto da arte como
horas pelo centro da capital mexicana. da globalização. Revisemos, pois, brevemente, o que vem acon-
tecendo com as tentativas das teorias da arte para construir u m
saber universalmente válido.
A estética filosófica procurou universalizar sua reflexão, mas
estava associada ao desenvolvimento da modernidade europeia,
da razão ilustrada ou do romantismo. O pensamento estético foi
intérprete da autonomização da arte quando o capitalismo e a se-
cularização geraram instituições específicas e públicos dispostos
a se relacionar com as obras usando critérios de avaliação dife-
rentes dos empregados pelos poderes religiosos ou políticos. O
traço predominante das estéticas modernas foi o que Kant de-
nominou objetos construídos, seguindo uma finalidade sem fim;
nas palavras de Umberto Eco, as experiências nas quais as formas
prevalecem sobre a função.
F I G U R A 2. Francis Alys, The Colledor, em colabora-
A sociologia demonstrou que a autonomia da arte e da litera-
ção com Felipe Sanabria. México, 1991-1992- ,
tura não foi só u m movimento de mentalidades. A partir do século
X V I I I , a burguesia - transformada em cliente dos artistas - , assim
Como se situa entre os demais ofícios quem se define como como a criação de museus, galerias e salões literários autonomi-
u m espectador dedicado a esperar "que o acidente aconteça"? zaram suas práticas ao estabelecer instâncias propriamente esté-
Deixa que seu suéter vá se desfiando enquanto caminha; em seu ticas para avaliar a arte e a literatura. Bourdieu nâo foi o primeiro
trajeto o fio se perde e a vestimenta se desfaz, como se sua tarefa, a advertir que u m dos traços da modernidade era a constituição
comenta Cuauhtémoc Medina, consistisse em perder o "fio da de campos autónomos, onde os criadores se vinculavam àque-
narração"'. les que tinham especificamente a ver com seu trabalho, mas ele
Enquanto isso, as instituições e os mercados falam a partir construiu uma teoria mais sofisticada e rigorosa sohre as maneiras
de estruturas e programas, emhora saibamos que estas formas pelas quais a arte se separou de seus condicionamentos externos.
sociais não têm a consistência nem a certeza de outras épocas. Com base em estudos sociológicos sobre a arte e a literatura
Como imaginar neste mundo sem centro nem paradigmas, entre foi possível entender como foram se formando, na modernida-
as rupturas da globalização, uma conversa dos artistas que trans- de, outros campos autónomos: a ciência levada a cabo em uni-
formam o lixo em documentos com os profissionais decepciona- versidades e laboratórios, fundamentada apenas nas regras da
dos com as estruturas e seus modos de representar? pesquisa empírica e na argumentação racional, o campo político
Não é u m problema menor discutir a situação das artes - como disputa laica pelo poder sem derivar a ordem social dos
incompreensível se não a olharmos em escala global - quando mandatos divinos.
Tanto nas ciências como nas artes, o conceito de campo aca-
1. Alys e Medina, Diez Cuadras alrededor dei Estúdio, 2006. ou com a noção romântica e individualista do génio que des-
cobre conhecimentos imprevistos ou cria ohras excepcionais.
G sem cair, tampouco, no determinismo social. A o cingir-se à
ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS 39
38 A SOCIEDADE SEM RELATO
estrutura interna de cada campo e às regras específicas para pro- ceituais que guiam as diversas práticas artísticas. Mas o próprio
plural, que tem o mérito de admitir muitos modos de fazer arte,
duzir arte, literatura ou ciência, a pesquisa sociológica superou
suscita dúvidas ao adjudicar-lhes o nome de teorias. Podemos
as pretensões de explicar a criação e o saber a partir de coações
chamá-las de teoria, um termo aplicado a concepções científicas
macrossociais, como o modo de produção ou a classe. As obras e
com coerência interna, u m encadeamento lógico de proposições
as práticas dos artistas estão condicionadas não pelo todo social,
capazes de serem contrastadas com referentes empíricos e que
mas por esse conjunto de relações em que interagem agentes e
aspiram à universalidade?
instituições especializadas em produzir arte, exibi-la, vendê-la,
Os movimentos de vanguarda do século x x , ao relativizar os
avaliá-la e apropriar-se dela. Graças a Bourdieu, saímos da opo-
valores estéticos e a fundamentação do gosto, admitiram a exis-
sição abismal e abstrata entre o indivíduo criador e a sociedade
tência de múltiplas poéticas. Ao colocar, acima da representação,
capitalista para compreender as tensões entre projetos artísticos
a experimentação nos modos de representar ou aludir ao real,
e condicionamentos concretos de galerias, museus, críticos, cole-
perturbaram a ordem clássica e o museu como templo de con-
cionadores e espectadores.
sagração e exibição da arte. Acabaram desconstruindo o sentido
Howard S. Becker, bom u m olhar mais antropológico, ou an-
autónomo da arte e o relato que havia organizado seus vínculos
tes, etnográfico, destacou que fazer arte é uma atividade coopera-
com a politica, o mercado e a mídia.
tiva: como músico, além de antropólogo, parecia-lhe óbvio que
u m concerto precisa do trabalho grupai, ou seja, de uma orques-
tra, da colaboração do compositor, dos técnicos, das escolas onde
C O N V E R S A E N T R E O S O C I Ó L O G O E O ARTISTA:
todos eles se formaram, da publicidade e dos fabricantes de instru-
B O U R D I E U - H A A C K E
mentos. Estudar a arte, e saber quando há arte, implica entender a
obra no contexto de sua produção, circulação e apropriação. Mas
qual é hoje esse contexto? Bourdieu falava de campos e Becker, de Uma primeira dificuldade para compreender a decomposição da
ordem moderna é, como acahamos de dizer, não reconhecer a
mundos da arte. Ambos consideravam que a definição, a avaliação
limitação de sua vigência no Ocidente e sua insustentabilidade
e a compreensão da arte se realizavam em espaços e circuitos autô-
em uma época de interações globais. O segundo problema é epis-
nomosp^ independência e a autocontenção das práticas artísticas,
temológico: procurar a explicação apenas nos atores e nos pro-
' que delimitavam quem tinha legitimidade para dizer o que é arte,
cessos aos quais a teoria moderna havia atrihuido certas tarefas
desvaneceram-se.
que não cumpriram.
É possível estender esta noção de arte a sociedades não mo-
No diálogo que tiveram em 1999, Pierre Bourdieu e Hans
dernas nem ocidentais? A antropologia demonstrou, por exem-
Haacke - um a partir da sociologia das práticas intelectuais e polí-
plo, nos trabalhos de Clifford Geertz e de Sally Price, que em
ticas, outro a partir das experiências de artista - tentaram explicar
outros povos havia preocupação com as formas dos ohjetos e o
suas decepções: os intelectuais passaram do pensamento critico
modo de trabalhar a sensibilidade, mas isso não pode ser enten-
a gestão, os Estados dão cada vez menos dinheiro e querem con-
dido como critérios de beleza ou de predomínio da forma sobre
ú-olar mais, a Europa foi se dohrando ao modelo estadunidense
a função das estéticas eurocêntricas.
e ceder a sponsors privados a sobrevivência de museus, rádios
Mesmo no Ocidente, as vanguardas artísticas cultivaram di-
televisões, escolas, hospitais e laboratórios. A observação ex-
ferentes tipos de beleza, e também de feiúra, do abjeto, do sinistro
^ usiva dos mesmos atores, entre os quais o programa ilustrado e
e outras alterações das experiências e da sensibilidade. Propôs-se
estatal que havia distribuído responsabilidades, leva a constatar
chamar teorias da arte, em vez de estética, as postulações con-
A SOCIEDADE SEM RELATO ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS 41
40
O impossível: nâo cabe esperar que o mecenato de empresas pri- se a única modalidade em que eles se apresentam é a que estudou ?
vadas patrocine ações de interesse público independentemente a ciência social clássica, a história da arte ou as vanguardas. O u sei ,
de críticas à sua voracidade; tudo piorará se o Estado abandonar talvez outros modos de pesquisar - sob convénios público-priva-S '
suas tarefas e pensar unicamente sob a lógica da rentabilidade e dos - , de gerir a cultura e comunicá-la (onde as indústrias audiovi-|
do lucro. suais e as redes digitais têm papéis-chave) estão remodelando, em\
Bourdieu e Haacke são suficientemente lúcidos para reco- circuitos diferentes, a produção, a circulação e a recepção da artej
nhecer que as ações culturais e científicas do Estado tampouco da ciência e da cultura.
garantem sempre o predomínio do interesse público, a qualidade Bourdieu lança uma boa frase para caracterizar a ineficiência
da pesquisa e da arte, a publicação de livros melhores e a pro- de intelectuais, sindicatos e partidos nas atuais condições das dis-
moção de artistas qualificados. Não obstante, a comparação na putas pelo poder: "[eles] têm u m atraso de três ou quatro guerras
/ história de aquisições de arte contemporânea de uma instituição simbólicas"'. Ele se refere ao uso de técnicas de ação e manifes-
\, como o Museu de Arte Moderna de Nova York, com as tação arcaicas para se opor às empresas e a suas relações públicas
J de uma instituição púhlica, como o Centro Pompidou de Paris, sofisticadas. Por isso, valoriza a capacidade dos artistas de espan-
\ Haacke a concluir que os funcionários dependentes do Es- tar, surpreender e desconcertar.
/ tado "podem se permitir ser mais audazes" e mais "arriscados do O mesmo fez Hans Haacke quando, em 1991, respondeu a u m
I ponto de vista do mercado, da moral ou da ideologia"*. convite para produzir obras com documentação fotográfica da his-
Seria possível discutir esta afirmação se diferenciássemos, ao tória do principal edifício nazista em Munique e expô-las in loco.
menos, as tendências públicas das privadas (flutuantes) nos Esta- Utilizando como titulo a primeira frase de uma canção nazista que
dos Unidos e na Erança. Também seria preciso se preocupar com falava de içar a handeira, Haacke pendurou umas bandeirolas com
a maneira pela qual Bourdieu interpreta a desintegração dos siste- a lista de empresas alemãs que haviam vendido material bélico
mas públicos e a aprovação eleitoral dos cidadãos. "O sistema pú- para o Iraque, entre elas a Daimler-Benz, a Ruhrgas e a Siemens.
blico deixa uma margem maior de liberdade, mas é preciso ser ca- O jornalista da Spiegel, autor do artigo do qual o artista obtivera
paz de usá-lo", afirma Bourdieu, e, "lamentavelmente, os cidadãos e a informação, espantou-se com o fato de que certas empresas que
os intelectuais não estão preparados para esta liberdade em relação não tinham reclamado por causa do seu texto acusaram Haacke
ao Estado, talvez porque esperem demais dele em termos pessoais: judicialmente. "A questão, diz este, não é só dizer alguma coisa,
carreiras, condecorações". A critica, encerrada em sua própria ló- tomar posição, mas também criar uma provocação frutífera"^.
gica, começa com acusações estruturais ao Estado e às empresas Uma das diferenças entre o sociólogo e o artista consiste em
para desembocar em suspeitas morais sobre os indivíduos. que, enquanto o primeiro analisa as estruturas e vê seus fracassos
Bourdieu lembra, em um momento da conversa, um principio como falhas ou armadilhas estruturais, o segundo desdohra a es-
epistemológico que ele difundiu desde seus primeiros livros, no- tratégia dos interstícios. "Acredita-se que a censura e a autocen-
toriamente em Ofício de Sociólogo: " U m pensamento verdadeirí7 sura estão por todos os lados - e é verdade, existem. Mas se os
mente critico deve começar por uma critica dos fundamentos eco( limites forem colocados à prova, às vezes se encontram buracos
nõmicos e sociais mais ou menos inconscientes do pensamento/, nas paredes que podem ser perfurados"'. Nós nos enganaríamos se
critico". Concordo. Isto implica em questionar se o Estado, as em-
presas e os cidadãos sejam os únicos atores, ou ainda questionai*^ 3. idem, p. 28.
4. Idem, p. 30.
s. Idem, pp. 86-87.
2. Bourdieu e Haacke, Libre-échange: entretiens avec Hans Haacke, 1994-
A SOCIEDADE SEM RELATO
42 ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAISi
43
acreditássemos que o artista é u m observador mais astuto do que o trabalho artístico não aparece neste diálogo como predo-
o sociólogo. N o transcurso do diálogo, Haacke mostra que sua ha- mínio da forma sobre a função, nem como desmitificação da ló-
bilidade para produzir escândalos, como os de outros artistas que gica oculta de cada campo. Haacke, como outros artistas concei-
menciona - Duchamp, Tatlin, Rodchenko - , deriva de uma consi- tuais e performáticos, compreende a estrutura dos partidos, das
deração cuidadosa dos conceitos e dos deslizamentos de sentido igrejas, da publicidade e das audiências, e a partir desse conheci-
que ocorrem ao aplicar às formas funções não habituais. mento move de seus lugares habituais os objetos e as mensagens.
Sua prática elude a autonomia de cada campo, opõe-se a ela:
H H : Acho que poucas vezes o público daquilo que chamamos
"a arte" é homogéneo. Há sempre uma tensão entre aqueles que se [...] Me parece que a insistência na "forma" ou na "mensagem" é
interessam antes de mais nada "pelo que se conta" e aqueles que uma espécie de separatismo. U m e outro são altamente políticos. Se
privilegiam a maneira como se conta. Nem uns nem outros podem se fala da função de propaganda de toda arte, gostaria de acrescentar
compreender e apreciar a obra de arte em seu justo valor. As "for- o seguinte: a significação e o impacto que um dado objeto tem não
mas" falam e o "sujeito" se inscreve nas "formas". O conjunto está estão fixados para sempre. Felizmente, a maior parte das pessoas
inevitavelmente impregnado de significações ideológicas. Não é não está tão preocupada com a pretensa força da arte^.
diferente no meu trabalho. Há aqueles que se sentem atraidos pelo H H : Pode-se aprender muito com a publicidade. Entre os mer-
tema e as informações... cenários da publicidade há pessoas muito inteligentes, verdadeiros
P B : A mensagem... especialistas da comunicação. O sentido prático exige que se apren-
H H : [...] explicita ou implícita. Talvez sintam que suas opiniões dam as técnicas e as estratégias de comunicação. Não se pode sub-
se reforçam quando se dão conta de que não são os únicos que pen- verter aquilo que não se domina.
sam de tal maneira. Gostamos quando nos defrontamos com alguma P B : Para fazer ações ao mesmo tempo simbolicamente eficazes
coisa que nos ajuda a articular nossas ideias vagas e dá a elas uma e politicamente complexas, sem concessões, não seria preciso reunir
forma mais clara. Então, pregar para um convertido, como se diz, equipes nas quais haveria pesquisadores, artistas, gente de teatro e es-
não é de forma alguma perda de tempo. Isso é feito por boa parte pecialistas da comunicação (publicitários, gráficos, jornalistas etc.)
da publicidade e todos os candidatos às eleições, e com boas razões. e, assim, mobilizar uma força equivalente às forças simbólicas que se
Ao contrário dos simpatizantes, há pessoas que não estão de acor- trata de enfrentar?
do, incluídos aqueles que tentam suprimir minhas obras - há vários H H : Acho que o importante é que seja divertido. É preciso obter
exemplos espetaculares. As tentativas de censura ao menos demons- prazer, e é necessário que isso dê prazer ao públicol
tram que os censores pensam que a exposição das minhas obras
pode ter consequências. Entre estes dois extremos, há um público
que é curioso, mas que ainda não tem opiniões muito afiançadas. Ali EM BUSCA DO OBJETO T R A N S V E R S A L P
é onde encontramos pessoas dispostas a reexaminar suas posições
provisórias. Correspondem, grosso modo, ao público para o qual os Na confrontação com a sociedade, e com o que as ciências sociais
especialistas de marketing e das relações públicas apontam, encarre- revelam dela, a estética sobrevive não como u m campo norma-
gados de ampliar o mercado de um produto de opiniões. É também tivo, mas como u m âmbito aberto em que buscamos/ormasnâo
nesse setor vago que se situa uma boa parte da imprensa*.
7 Idem, p. 94
^- Idem, p. 111. "í
6. Idem, pp. 92-93-
44 A S O C I E D A D E S E M RELATO ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS
45
separadas radicalmente de todo tipo de função; representações como se organizam, com que operações a avaliam e a diferenciam
mais interessadas no conhecimento - inclusive do que não exis- de outras atividades. Isso implica simplificar a questão em alguma
te - do que na verdade; experiências despreocupadas por algum medida, uma vez que ela é trasladada da ontologia para a análise
tipo de transcendência e interessadas em abrir possibilidades em daqueles que, com regras e ohjetos próprios, produzem arte e que
u m mundo sem normas preestabelecidas. Mais do que uma esté- em diferentes culturas são chamados de artistas.
tica como disciplina, encontramos o estético como uma reflexão Ao analisar de que maneira se comportam aqueles que fazem
disseminada que trabalha sobre as práticas ainda denominadas arte, expõem-na, vendem-na, criticam-na ou a recebem, perce-
artísticas e que explora o desejo ou "a vontade de forma"'. Essa bemos que está ocorrendo algo mais que um giro linguistico ou
ênfase formal aparece em outras cenas: nos ambientes de traba- sociológico ou antropológico da arte. Estamos em meio de um.
lho e de consumo, na ciência e tecnologia, na organização e reno- N giro transdisciplinar, intermedial e globalizado que contribui para
vação do espaço urbano, nas mensagens e nas contramensagens ^ redefinir o que entendíamos por arte tanto no Ocidente moderno
que circulam em redes de comunicação de massa. como no Ocidente pré-glohal. A o mesmo tempo, as artes parti-
Podemos aprofundar a diferença entre estéticas filosóficas e cipam na redefinição das ciências sociais, as quais tamhém ques-
teorias da arte nutridas nas ciências sociais a propósito do objeto tionam sua própria identidade e encontram na arte não a solução,
de estudo. Não seria o mesmo que perguntar o que é arte, ou de a saída, mas, como dizia Maurice Merleau-Ponty sobre o marxis-
que estamos falando quando falamos de arte, ou, ainda, o que mo, um lugar para onde se vai "para aprender a pensar".
estamos fazendo quando dizemos que produzimos arte? Aque- Nós, artistas e cientistas sociais, estamos ligados pela incerte-
les que ainda buscam a essência ou uma definição universal da za: assim como o desmoronamento da metafísica e da crítica an-
arte se dirigem às estéticas filosóficas. Outros julgam que são os tropológica ao eurocentrismo desqualificaram a pergunta sobre o
discursos que definem o artístico: o impacto da semiótica e dos queéa arte e propuseram substitui-la pela interrogação quando há
visual and cultural studies levou a superestimar a conformação arte, a decomposição e as transações do capitalismo e da globali-
das práticas sociais a partir de relatos ou processos de significa- zação tiraram abruptamente as certezas que a economia, a antro-
ção; o sentido da arte teria que ser averiguado desconstruindo pologia e a sociologia tinham para definir seus ohjetos de estudo,
ou interpretando os modos em que eram nomeados. Segundo combinar as escalas da análise e os critérios para a pesquisa.
a terceira perspectiva, a antropológica, para definir a arte é ne- A arte ficou desenmoldurada porque, como veremos, as tenta-^
cessário observar o comportamento dos artistas e ficar atento a tivas de ordená-la sob uma normatividade estética ou uma teoria
como eles o representam. sobre a autonomia dos campos (Bourdieu) ou dos mundos (Be-
Estéticas filosóficas: o que é arte. Semiótica: o que a arte diz e cker) quase não funcionam. Tampouco os filósofos ou os cien-
de que estamos falando quando falamos de arte. Antropologia: o tistas sociais contam com conceitos epistemologicamente con-
que fazem aqueles que se chamam artistas. vincentes para prover os artistas, os políticos e os movimentos
De acordo com autores como Anthony Downey, James Clif- sociais de categorias de análises universalizáveis.
ford e Hal Foster, nos últimos anos prevalece a terceira corrente. Por que uma pintura é melhor do que outra? Por que se con-
Deu-se u m "giro etnográfico" no estudo da arte e na própria prá- servam e difundem certas obras nos museus? É possível esten-
tica dos artistas: diante da dificuldade de chegarmos a respostas <ier a noção de arte a sociedades não ocidentais e não modernas?
universalizantes, observamos o que fazem os que dizem fazer arte. Continuam tendo sentido, mesmo no Ocidente, as noções de arte
^ de estética? Os estudos históricos, antropológicos ou estéticos
9. Richard, Resíduosy Metáforas, 1998, p. 11. 1'eformularam-se no sentido de repensar a condição das artes em
A SOCIEDADE SEM RELATO
46 ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS 47
relação à situação - também indecisa - do patrimônio, dos artesa- tos neos, pós e discursos excêntricos, Hal Eoster escreveu que res-
natos, da midia, da organização das cidades e do turismo. As artes ta "uma melancolia" que "se distanciou de seu objeto perdido"'".
reconfiguram-se em uma interdependência com esses processos Ou será preciso reconhecer que agora os objetos são outros?
sociais, como parte de uma geopolítica cultural globalizada. Desprestigiadas as estéticas idealistas que declararam ar-
Pode-se falar de patrimónios culturais autênticos? É desejá- tísticos os ohjetos belos ou que suscitaram uma contemplação
vel que permaneçam intactos, sem serem usados? Tem sentido, desinteressada, sem fins práticos, quais seriam os objetos que
na atualidade, continuar opondo o patrimônio cultural ou os tra- justificariam a existência da disciplina estética, da arte como prá-
balhos artesanais como o campo do que deve ser conservado e a tica diferenciada e das instituições que as exibem e as valorizam?]
arte como conjunto de movimentos de criatividade e invenção? Muitos diretores de museus decidiram que os objetos já não são
A o caducarem certas indagações que haviam organizado as tão importantes e redesenharam as salas de exposição ou deslo-
disciplinas em territórios distintos - a história e a arqueologia se- caram a experiência estética para relações intersubjetivas alheias
paradas da sociologia da arte, a antropologia em departamentos à instrumentação mercantil (Bourriaud). Descobriram que os
desconectados dos sociólogos e outros especialistas na moder- novos públicos visitam museus não para ver obras excepcionais
nidade e na globalização - , descobrimos que as novas perguntas ou aprender uma lição sobre indígenas africanos ou rituais afro-
são transdisciplinares. Inúmeras pesquisas em escala mundial es- brasileiros que desconhecem, mas, sim, pela curiosidade que lhes
tão criando as condições para que os conhecimentos alcançados suscita u m programa de televisão, porque se preocupam com o
em cada ciência se refaçam em projetos sensíveis à complexidade desmatamento da Amazónia, ou então chegam pela primeira vez
transversal dos processos (Appadurai, Arturo Escobar, Hannerz, ao Louvre porque leram o Código da Vinci.
Lins Ribeiro, Renato Ortiz, Sennett). Trata-se de algo semelhante Os antropólogos duvidam que seu objeto de estudo possa
ao que está acontecendo com os artistas e os praticantes das mí- chamar-se cultura, os museólogos não conseguem expor esse "ob-
dias: interconectam estratégias criativas e comunicacionais. Nos jeto" que acumula centenas de definições, tantas como as de arte,
Estados Unidos, em Pequim, Tóquio, Barcelona ou Buenos Aires, e os especialistas em patrimônio reiniciam, a cada ano, a tarefa de
desde o fim do século x x , aqueles que administram museus, fa- justificar sua defesa e preservação. O principio segundo o qual a
zem curadorias de exposições ou atuam como artistas estudam noção de patrimônio agrupava "obras culturais de valor extraor-
antropologia, comunicação e economia para desenvolver estraté- dinário", como proclamam os documentos da Unesco, tornou-se
gias de marketing cultural. D o mesmo modo, leem livros e revis- insustentável. As tentativas dessa instituição de tirar seu progra-
tas, em papel ou eletrônicos, seguem blogs e cultivam redes sociais ma de patrimônio da humanidade" do beco sem saída fracassam
que transcendem o mundo da arte. ao tentar diferenciar taxativamente a arte, o patrimônio, o turis-
U m mundo acaba não só quando é preciso arquivar as res- mo e a midia.
postas, mas tamhém quando as perguntas que as originaram per- Alguns sociólogos rechaçam a ideia de que sua tarefa resida
dem sentido. em averiguar o que é a sociedade ou o que é um fato social, argu-
Levamos décadas tentando encontrar a pergunta pertinen- mentando que não existe uma estrutura de relações ou u m esta-
te para substituir aquela que indagava o que é arte. Não é fácil do de coisas estabilizado e com certa homogeneidade. Segundo
descartá-la tendo em vista que os funerais de despedida da arte runo Latour, eles já não procuram "modelos" macrossociais, ou
não impediram sua existência e renovação, nem que houvesse po- a descrição de grandes conjuntos ou grupos, e sim compreender
lémica em torno das ohras expostas em museus, galerias, ruas ou
desertos. C o m que palavras podemos substitui-la? Depois de tan- Foster, El Retorno de lo Real, 2001, p. 51
48 A SOCIEDADE SEM RELATO ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS 49
como OS atores se agrupam, em que processos formam redes, de- junto de relações sociais entre artistas, instituições, curadores,
pois as desfazem recompondo-as de outro modo, como articu- críticos, públicos e até empresas e dispositivos publicitários que
lam conexões diversas para conseguir seus fins. Latour redefiniu constroem o reconhecimento de certos ohjetos como artísticos.
0 sentido do social ao propor que se relessem como estratégias A troca da pergunta estética precisa se encarregar, ao mesmo tem-
sempre mutantes de atores-rede os agrupamentos cientificos ou po, de como vai se transformando a indagação pelo social.
políticos, os movimentos sociais e as estruturações e desestru- A partir da redefinição do artista como produtor (Benja-
turações dos espaços urbanos. Eu diria que esta nova visão do min e os construtivistas) trabalha-se considerando o processo
social se manifesta com maior eloquência nos estudos sobre jo- de produção-circulação-consumo. Recentemente, as modifica-
vens quando eles descrevem sua combinação flexível de recursos ções do pensamento económico conduzem a uma concepção
formais e informais para conseguir trabalho, quando apelam a não substancialista, na qual importa a valorização tanto material
instituições e redes não legais, conseguem roupas, discos e víde- como simbólica do ciclo económico. Para esta revisão contri-
os tanto em cinemas e lojas de marca como em mercados piratas, buem aqueles que definem o artista como etnógrafo ou antropó-
vendem e compram os mesmos produtos ou imitações que se logo, assim como o reposicionamento da arte no debate sobre a
confundem com "as verdadeiras"". Se os atores não generalizam identidade, a alteridade, a m u l t i e interculturalidade. A pesquisa
u m único tipo de comportamento, com que direito o pesquisador destes processos modifica a agenda da antropologia e de outras
social vai construir explicações megaestruturais, que abarcam o ciências sociais: admite-se que não se pode entender o socioe-
conjunto das práticas? Precisamos de instrumentos diferentes conómico sem o cultural, nem ao contrário; passa-se do estudo
dos que antes captavam a ordem e as classificações. de culturas locais e nacionais a processos de interculturalidade
Encontramos preocupações semelhantes às da estética pós- transnacional.
metafisica naqueles que deixaram de perguntar o que é u m fato Como expressão destas aproximações entre disciplinas artís-
económico ou o que é u m fato politicoíjAo se consolidar a posi- ticas e cientificas, multiplicam-se os livros escritos entre soció-
ção segundo a qual não tem sentido buscar a essência da arte, da logos da arte e filósofos, antropólogos e artistas, assim como os
cultura ou da sociedade porque o que denominamos com esses frequentes encontros entre uns e outros e sua colaboração em
termos é construído de maneiras distintas em cada pais ou época, exposições. Foucault pensou a partir de Borges e Velásquez. De-
1 a tarefa é formular marcos analíticos que permitam compreen- leuze escreveu sobre Proust, Kafka e Bacon. Derrida parte de Ar-
I der por que e como são construídos desse modo, de que maneira taud, Bataille e Blanchot. Bourdieu dedica-se a Flaubert e a Hans
funcionam ou falham; e como, entre esses processos, ocorrem Haacke. Nem sempre se trata de uma convergência amigável. O
interações inesperadas^ giro transdisciplinar da arte, da antropologia e da sociologia con-
Uma hipótese metodológica deste livro é que para produ- figura uma situação do saber na qual entram em conflito a análise
zir perguntas não metafísicas a pesquisa levada a cabo em cada sobre processos estéticos que realizam estas ciências com experi-
mentações desenvolvidas por artistas e com situações intercultu-
campo precisa se articular com as indagações dos outros campos.
rais de circulação e de recepção. Mudam também os modos pelos
Assim, na medida em que alguns filósofos e sociólogos, como
quais as obras e as experiências artísticas são reinterpretadas ou
Edelman, Goodman e Heinich, substituem a questão o que é a
arte por quando há arte, remetem-nos de imediato para o con- isciplinadas pelas instituições que as expõem.
Os projetos e as ohras dos artistas escolhidos nestas páginas
11. Reguillo, "Legitimidad(es) Divergentes", 2007; H o p e n h a y n , " I n c l u - vao além de confirmar a antiga ideia de que a arte é uma via de
sión y Exclusión Social en la Juventud Latinoamericana", 2008 onhecimento. A importância dada às obras e aos seus processos
50 A SOCIEDADE SEM RELATO ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS 51
vador nesta ecologia comunicacional. Mais oferta e mais acesso tes para avaliar ou organizar suas coleções, definindo o grau de
equivalem a mais participação? O YouTube, o MySpace ou o Fa- confidencialidade de seu perfil, como se faz no Facebook (www.
cebook melhoraram a criatividade e a qualidade, ou contrihuiram independent-collectors.com). Entre esta última rede que facilita
para repensar os critérios estéticos herdados da arte e dos meios a interconexão restringida a colecionadores e as que estendem o
audiovisuais? acesso sem limites, os mais diversos usos da web estão reconfigu-
Os novos hábitos gerados nos usuários da rede e as misturas rando a circulação das artes visuais, mas não em uma só direção.
de formatos e alianças entre produtores de conteúdos visuais, A reflexão mais radical sobre esses processos ocorre na cor-
textuais e software estão incidindo nos espaços da arte, desde os rente de historiadores e teóricos da arte que reformula o campo
museus até as bienais, as feiras e os sites especializados da internet. artístico como cultura visual, u m "campo interdisciplinar", objeto
Alteram-se neste processo os vínculos entre criação, espetáculo, dessa quase disciplina denominada "estudos visuais" (Bal, Bar-
entretenimento e participação; entre o que até poucos anos atrás riendos, Brea, Guasch, Mitchell, Moxey, entre outros). Alguns
se organizava sob as categorias de culto, popular e de massa; entre autores sustentam que as práticas separadas da pintura, da escul-
o local, o translocal e o global; entre autoria, reprodução e acesso; tura ou da gráfica (e a história da arte como organização disci-
entre elaboração simbólica e intensidade da estimulação sensual plinar de seu estudo) cederam lugar a uma história das imagens,
direta. O reposicionamento das artes que Walter Benjamin come- na qual aquilo que vínhamos chamando de arte perde qualquer
çou a antever a propósito da "reprodutibilidade mecânica" se tor- especificidade. O u se trata, antes, de u m reposicionamento no
nou complexo e se expandiu em u m tempo de intertextualidade conjunto de meios e linguagens visuais de práticas artísticas nas
eletrônica. Entre as remodelações da experiência, encontra-se o quais várias questões estéticas - experiências com o imaginário e
deslocamento para além da arte de u m registro exclusivamente 0 sensorial, valorização do formal - mudam de sentido? Mesmo
perceptual. Percorrer exposições implica ler muitos textos, escu- que optemos por uma ou outra posição, é evidente que a autono-
tar longos discursos em vídeos, atravessar instalações e expor-se a mia da arte e da estética é questionada ao ingressar em u m regime
impactos sonoros. As muralhas entre géneros, entre arte e publi- que organiza de outra maneira, nas palavras de Jacques Rancière,
cidade, entre jogo e reflexão, desmoronaram. modos de produção de ohras ou práticas, formas de visibilidade
Esta experiência intermidial se amplia ao percorrer os sites de tais práticas e modos de pensar suas relações, na medida em
da web. O que se conta neles? Mesmo quando predomina a i n - que se reconfiguram a sensibilidade comum e a politica.
formação dos emissores (e estes costumam ser coletivos), reú- O que ganhamos e o que perdemos ao declarar, como alguiòs^
nem não só listas de galerias, museus e bienais de todos os paí- estudos culturais e visuais, o fim das disciplinas? U m dos riscos
ses como também debates e diálogos, fotos, vídeos, entrevistas, e nos desinteressarmos pelos saberes e estratégias metodológicas
textos heterogéneos, anúncios comerciais ou não, análises de que continuam sendo úteis. O u esquecermos que a atual crise do
emoções (www.wefeelfine.org), encontros para ativismo (www. saber é, em parte, consequência de pesquisas sociológicas e antro-
critical-art.net, wvvw.yomango.net), calendários de feiras, festi- pológicas cuja autocrítica dos projetos históricos de cada ciência
vais, bienais e artigos sohre esses encontros (www.artfairsinter- 01 atingida transcendendo as normas fixadas pelos fundadores. '
national.com), como e onde comprar obras, como descarregar Assim como não é tão simples declarar que, em vista de suas
materiais catalogados e descatalogados (www.ubu.com). E cen- foelahorações, a história da arte, a estética ou a antropologia se
tenas e centenas mais, como as redes onde cibercolecionadores fi>rnaram obsoletas, não podemos proclamar a morte definitiva
de diversos continentes trocam informações e opiniões sobre o arte e de sua autonomia pelo simples fato de grande parte do
valor dos artistas, das novas figuras, ou encontram ideias diferen- que continua recebendo esse nome se mostrar além do designado
A SOCIEDADE SEM RELATO ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS SS
54
como seu campo próprio. Alguns analistas da arte e da literatura, os atores, não permite tirar conclusões tão rotundas como as de
em distintas latitudes, proclamam nos primeiros anos do século alguns teóricos da estética. O percurso por ateliês e exposições
X X I a passagem para uma etapa pós-autônoma de suas áreas de de artistas, por museus, galerias e bienais, a observação do que
trabalho. Victor Tupitsyn, em u m artigo intitulado "Post-auto- dizem a midia e os espectadores, tudo isso revela, como veremos,
nomous Art", apresenta sua posição, compartilhada por outros fortes mudanças nas condições de produção, circulação e recep-
artistas e historiadores russos (llya Kabakov e Margarita Tu- ção da arte: uma parte das transformações das práticas artísticas
pitsyn), de que a arte contemporânea deve ser analisada como ocorre quando elas abandonam as instituições especializadas.
u m "espetáculo global para turistas", devido ao fato de o espaço Por isso, a noção de campo autónomo não consegue abarcar o
do museu "ter sido completamente desintimizado" e os artistas, momento contemporâneo. Contudo, esse conjunto de observa-
ções mostra que as obras se fazem e se reproduzem em condições
junto com os diretores de museus, leilões e indústrias do entre-
variáveis, que os artistas, os críticos e os curadores atuam dentro
tenimento e da memória serem "homens de negócios interna-
ejora do mundo da arte. A pesquisa não pode impor-lhes nem as
cionais que oferecem serviços para milhões de japoneses, chi-
restrições de u m campo que eles já não aceitam murado, nem a
neses, australianos e outros que visitam os museus sem acreditar
dissolução em uma totalidade social em que já não se cultivariam
na arte, de modo semelhante a como visitam igrejas sem confiar
linguagens e práticas de comunicação diferentes. É legitimo falar
nessas religiões"'*.
de uma condição pós-autônoma em contraste com a independên-
A critica literária argentina Josefina Ludmer reuniu romances
cia alcançada pela arte na modernidade, mas não de uma etapa
'' • é escritos em que encontra duas operações que os afastam do que
que substituiria esse periodo moderno por algo radicalmente di-
se vinha entendendo por literatura: a) para essas escrituras "a reali-
ferente e oposto.
dade (caso se pense nela a partir da midia, que a constituiria cons-
tantemente) é ficção e a ficção é realidade", como se evidenciaria A reelaboração da teoria estética e da análise critica precisa
na mistura de relações referenciais ou de verossimilhança no tes- se encarregar das múltiplas pertenças e das localizações móveis
temunho, na autobiografia, na reportagem jornalistica, na crónica, de atores que exibem a arte ao mesmo tempo nos museus, na mi-
no diário intimo e até na etnografia; b) "todo o cultural é econó- dia, no ciberespaço e nas ruas. Esse processo mantém certo gosto
mico e todo o económico é cultural (e literário)", como se obser- pela forma tanto nos espaços "próprios" como em outras zonas
varia no fato de que as próprias empresas transnacionais igualam onde as imagens se fazem visíveis e as escrituras legíveis sob uma
a produção de livros, jornais e programas televisivos. Conclusão: normatividade heterônoma. A tarefa não é renunciar à diferença
vivemos em uma continuidade de "realidade-ficção" onde mesmo de certos "criadores" e "obras", mas perceber como seus autores
as obras que aparecem como literatura não podem ser lidas com entram em conflito e negociam seu sentido nos intercâmbios
critérios literários, como autor, estilo, texto e sentido". com as indústrias culturais ou em meio ao pragmatismo social.
Talvez tudo fosse mais simples se tivéssemos transitado da Atualmente, existem mais motivos para duvidar da possibilidade
autonomia da arte e da literatura para u m periodo no qual am- 5 arte do que quando Mallarmé se perguntava sohre o livro ou
bos se dissolvessem no fluxo generalizado das imagens e das es- os construtivistas indagavam sobre como se inserir no design grá-
crituras. Adotar a posição da antropologia, ou seja, a descrição co e no design de ohjetos cotidianos. Desde então, somaram-se
e a compreensão dos processos a partir do que fazem e dizem cacassos ao procurar-se lugar para a poesia na prosa do mundo,
"las, ao observar e escutar os artistas hoje, parece que para muitos
^^aspiração estética não consiste em conseguir uma integração
12. Tupitsyn, Post-autonomous Art", 2004, p. 273.
13. Ludmer, "Literaturas Postautónomas", 2009. iz e sim em manter viva a interrogação sobre sua contingência.
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como seu campo próprio. Alguns analistas da arte e da literatura, os atores, não permite tirar conclusões tão rotundas como as de
em distintas latitudes, proclamam nos primeiros anos do século alguns teóricos da estética. O percurso por ateliês e exposições
X X I a passagem para uma etapa pós-autônoma de suas áreas de de artistas, por museus, galerias e bienais, a observação do que
trabalho. Victor Tupitsyn, em u m artigo intitulado "Post-auto- dizem a midia e os espectadores, tudo isso revela, como veremos,
nomous Art", apresenta sua posição, compartilhada por outros fortes mudanças nas condições de produção, circulação e recep-
artistas e historiadores russos (llya Kabakov e Margarita Tu- ção da arte: uma parte das transformações das práticas artísticas
pitsyn), de que a arte contemporânea deve ser analisada como ocorre quando elas abandonam as instituições especializadas.
u m "espetáculo global para turistas", devido ao fato de o espaço Por isso, a noção de campo autónomo não consegue abarcar o
do museu "ter sido completamente desintimizado" e os artistas, momento contemporâneo. Contudo, esse conjunto de observa-
ções mostra que as obras se fazem e se reproduzem em condições
junto com os diretores de museus, leilões e indústrias do entre-
variáveis, que os artistas, os críticos e os curadores atuam dentro
tenimento e da memória serem "homens de negócios interna-
ejora do mundo da arte. A pesquisa não pode impor-lhes nem as
cionais que oferecem serviços para milhões de japoneses, chi-
restrições de u m campo que eles já não aceitam murado, nem a
neses, australianos e outros que visitam os museus sem acreditar
dissolução em uma totalidade social em que já não se cultivariam
na arte, de modo semelhante a como visitam igrejas sem confiar
linguagens e práticas de comunicação diferentes. É legitimo falar
nessas religiões"'*.
de uma condição pós-autônoma em contraste com a independên-
A critica literária argentina Josefina Ludmer reuniu romances
cia alcançada pela arte na modernidade, mas não de uma etapa
• é escritos em que encontra duas operações que os afastam do que
que substituiria esse período moderno por algo radicalmente di-
se vinha entendendo por literatura: a) para essas escrituras "a reali-
ferente e oposto.
dade (caso se pense nela a partir da midia, que a constituiria cons-
tantemente) é ficção e a ficção é realidade", como se evidenciaria A reelaboração da teoria estética e da análise critica precisa
na mistura de relações referenciais ou de verossimilhança no tes- se encarregar das múltiplas pertenças e das localizações móveis
temunho, na autobiografia, na reportagem jornalistica, na crónica, de atores que exibem a arte ao mesmo tempo nos museus, na mi-
no diário intimo e até na etnografia; b) "todo o cultural é econó- dia, no ciberespaço e nas ruas. Esse processo mantém certo gosto
mico e todo o económico é cultural (e literário)", como se obser- pela forma tanto nos espaços "próprios" como em outras zonas
varia no fato de que as próprias empresas transnacionais igualam onde as imagens se fazem visíveis e as escrituras legíveis sob uma
a produção de livros, jornais e programas televisivos. Conclusão: normatividade heterônoma. A tarefa não é renunciar à diferença
vivemos em uma continuidade de "realidade-ficção", onde mesmo de certos "criadores" e "obras" mas perceber como seus autores
as obras que aparecem como literatura não podem ser lidas com entram em conflito e negociam seu sentido nos intercâmbios
critérios literários, como autor, estilo, texto e sentido". com as indústrias culturais ou em meio ao pragmatismo social.
Talvez tudo fosse mais simples se tivéssemos transitado da Atualmente, existem mais motivos para duvidar da possibilidade
autonomia da arte e da literatura para u m periodo no qual am- 3 arte do que quando Mallarmé se perguntava sohre o livro ou
bos se dissolvessem no fluxo generalizado das imagens e das es- os construtivistas indagavam sobre como se inserir no design grá-
crituras. Adotar a posição da antropologia, ou seja, a descrição co e no design de ohjetos cotidianos. Desde então, somaram-se
e a compreensão dos processos a partir do que fazem e dizem cacassos ao procurar-se lugar para a poesia na prosa do mundo,
"las, ao observar e escutar os artistas hoje, parece que para muitos
^^aspiração estética não consiste em conseguir uma integração
12. Tupitsyn, Post-autonomous Art", 2004, p. 273.
13. Ludmer, "Literaturas Postautónomas", 2009. 'z e sim em manter viva a interrogação sobre sua contingência.
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Não há relato que conjure esta tensão. Mais ainda: a arte parece campos ocupando-se da explosão gerada pelas produçõe£.ç_ultu,-
existir enquanto a tensão fica irresoluta. rais "ilegítimas" - a revista Actes de la Recherche, dirigida por ele,
onde publicou seu famoso texto sobre os campos da alta costura e
da alta cultura, incluiu muitos artigos sobre outros territórios do
o a U E o CAMPO ARTÍSTICO NÃO E X P L I C A DA A R T E gosto, como o esporte, o corpo e a publicidade.).
Uma terceira critica à sociologia da arte e da literatura proposta
Uma das criticas dirigidas a Bourdieu é o fato de ele ter esten- por Bourdieu diz respeito a seus limites em relação à inovação. Os
dido demais a noção de campo e ter postulado que existem lógicas sociólogos analisam como se organizam artistas que já possuem
plenamente autónomas na gestão da saúde, da moradia, da moda, uma obra, ou os escritores que já publicaram. Mostram, a posterio-
do esporte e de outras áreas da vida social. Devemos reconhecer, ri, como se formou u m cânone e uma comunidade de especialistas
no entanto, que ele mostrou a importância de que nas sociedades que o estruturou e o defende, ou seus adversários que o renovam.
modernas as atividades humanas se organizem segundo a dinâ- Mas o que fazer com o papel criativo dos indivíduos? O marxis-
mica própria de suas tarefas mais do que por obediência a pres- mo, escrevera Sartre na Crítica da Razão Dialética, pode explicar
crições religiosas ou ordens politicas. O desenvolvimento da arte, por que Valéry era um escritor pequeno-burguês, mas não por que
da literatura, da medicina e de qualquer disciplina seria alcançado todos os intelectuais pequeno-hurgueses não são Valéry. A socio-
atendo-se à lógica própria de sua prática: pintar, escrever roman- logia contribui para entender a maneira pela qual a cooperação e
ces, encontrar a origem das doenças e curá-las. a concorrência entre muitos atores modela a arte e a literatura de
Outra critica, mais recente, à obra de Bourdieu questiona se uma época, inclusive a lógica das vanguardas rebeldes. N o entanto,
a arte e a literatura funcionam agora estruturadas em campos au- há algo desse fenómeno que cada época chama de arte que não é
tónomos. Os escritores decidem a maneira pela qual compõem captado pelo olhar sociológico: os fatos estéticos não se esgotam
suas ohras somente a partir de critérios editoriais e de acordo em tomadas de posição dos artistas e em estratégias de distinção
com as expectativas dos leitores ou, antes, uns e outros depen- dos compradores e dos públicos.
dem daqueles que investem nas editoras os fundos que sobram de A documentação do material para uma revisão sobre a inter-
seus negócios petrolíferos ou bancários? O destino ressonante ou midialidade da arte e a coparticipação de artistas, membros do
frustrado de u m romance ou de uma performance seria elaborado campo artístico e outros agentes sociais e midiáticos leva déca-
em uma relação estética entre os escritores e os artistas com seus das. Vejamos como foi gerida a valorização de Frida Kahlo em
públicos, com a mediação de instituições especializadas, ou seria exposições associadas a operações multimidia durante 2007, ano
um efeito da publicidade ou de prémios outorgados em sintonia em que se celebrou o centenário de seu nascimento.
com pesquisas mercadológicas, ou ainda da virtual capacidade de A principal revisão da obra de Frida Kahlo aconteceu na ex-
u m romance se transformar em roteiro de u m filme? Hoje, a so- posição entre junho e agosto de 2007 no Museu do Palácio de Be-
ciologia da arte e da literatura analisa, além da articulação interna as Artes, da cidade do México, com 354 peças que incluíam qua-
dos campos artísticos, suas alianças com mercados e modas, cujos ros, fotos, cartas e documentos. Recebeu, em dois meses, 4 4 0
objetivos são alheios à lógica própria das criações. (Cabe reconhe- niil visitantes, e depois viajou para o Museu da Filadélfia e para o
cer, seguindo a observação de Nathalie Heinich"*, que - ainda que e Arte Moderna de São Francisco, para o Japão e para a Espanha.
Bourdieu não tenha reformulado sua teoria da autonomia dos Como acontece com outros artistas, as obras de Frida ne-
cessitam ser contextualizadas. Os curadores decidiram exibir,
14. Heinich, Pourquoi Bourdieu, 2007. lunto com suas pinturas, suas cartas e performances públicas, os
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