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46 A SOCIEDADE SEM RELATO

ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS


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relação à situação - também indecisa - do patrimônio, dos artesa- tos neos, pós e discursos excêntricos, H a l Foster escreveu que res-
natos, da mídia, da organização das cidades e do turismo. A s artes ta "uma melancolia" que "se distanciou de seu objeto perdido"'".
reconfiguram-se e m u m a interdependência c o m esses processos O u será preciso reconhecer que agora os objetos são outros?
sociais, c o m o parte de u m a geopolítica cultural globalizada. Desprestigiadas as estéticas idealistas que declararam ar-
Pode-se falar de patrimónios culturais autênticos? É desejá- tísticos os objetos belos o u que suscitaram u m a contemplação
vel que permaneçam intactos, sem serem usados? T e m sentido, desinteressada, sem fins práticos, quais seriam os objetos que
na atualidade, continuar opondo o patrimônio cultural ou os tra- justificariam a existência da disciplina estética, da arte c o m o prá-
balhos artesanais como o campo do que deve ser conservado e a tica diferenciada e das instituições que as exibem e as valorizam? ^
arte como conjunto de movimentos de criatividade e invenção? Muitos diretores de museus decidiram que os objetos já não são
A o caducarem certas indagações que haviam organizado as tão importantes e redesenharam as salas de exposição o u deslo-
disciplinas em territórios distintos - a história e a arqueologia se- caram a experiência estética para relações intersuhjetivas alheias
paradas da sociologia da arte, a antropologia e m departamentos à instrumentação mercantil ( B o u r r i a u d ) . D e s c o b r i r a m que os
desconectados dos sociólogos e outros especialistas na moder- novos públicos visitam museus não para ver obras excepcionais
nidade e na globalização - , descobrimos que as novas perguntas ou aprender uma lição sobre indígenas africanos ou rituais afro-
são transdisciplinares. Inúmeras pesquisas e m escala mundial es- brasileiros que desconhecem, mas, sim, pela curiosidade que lhes
tão criando as condições para que os conhecimentos alcançados suscita u m programa de televisão, porque se preocupam c o m o
e m cada ciência se refaçam em projetos sensíveis à complexidade desmatamento da Amazónia, o u então chegam pela primeira vez
transversal dos processos (Appadurai, Arturo Escobar, Hannerz, ao Louvre porque leram o Código da Vinci.
L i n s Ribeiro, Renato Ortiz, Sennett). Trata-se de algo semelhante O s antropólogos duvidam que seu objeto de estudo possa
ao que está acontecendo c o m os artistas e os praticantes das mí- chamar-se cultura, os museólogos não conseguem expor esse "ob-
dias: interconectam estratégias criativas e comunicacionais. N o s jeto" que acumula centenas de definições, tantas como as de arte,
Estados Unidos, e m Pequim, Tóquio, Barcelona ou Buenos Aires, e os especialistas em patrimônio reiniciam, a cada ano, a tarefa de
desde o fim do século x x , aqueles que administram museus, fa- justificar sua defesa e preservação. O princípio segundo o qual a
zem curadorias de exposições ou atuam como artistas estudam noção de patrimônio agrupava "obras culturais de valor extraor-
antropologia, comunicação e economia para desenvolver estraté- dinário", como proclamam os documentos da Unesco, tornou-se
gias de marketing cultural. D o m e s m o modo, leem livros e revis- insustentável. A s tentativas dessa instituição de tirar seu progra-
tas, em papel o u eletrônicos, seguem hlogs e cultivam redes sociais ma de "patrimônio da humanidade" do heco sem saída fracassam
que transcendem o mundo da arte. ao tentar diferenciar taxativamente a arte, o patrimônio, o turis-
U m m u n d o acaba não só quando é preciso arquivar as res- mo e a mídia.

postas, mas também quando as perguntas que as originaram per- Alguns sociólogos rechaçam a ideia de que sua tarefa resida
^ dem sentido. em averiguar o que é a sociedade o u o que é um fato social, argu-
L e v a m o s décadas tentando encontrar a pergunta pertinen- mentando que não existe u m a estrutura de relações o u u m esta-
te para substituir aquela que indagava o que é arte. N ã o é fácil •^o de coisas estabilizado e c o m certa homogeneidade. Segundo
descartá-la tendo em vista que os funerais de despedida da arte ^runo Latour, eles já não procuram "modelos" macrossociais, o u
não impediram sua existência e renovação, n e m que houvesse po- ^ descrição de grandes conjuntos o u grupos, e s i m compreender
lémica e m torno das obras expostas e m museus, galerias, ruas o u
10.
desertos. C o m que palavras podemos substituí-la? D e p o i s de tan- Foster, El Retorno de lo Real, 2001, p. 51
MÍ.-C/') ur,,> r O T í i / M U I / TIVMV/.

A Sociedade sem Relato


Antropologia e Estética da Iminência

nl L

NESTOR GARCÍA CANCLINI

ESP U N I V E R S I D A D E D E SAO PAULO


Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro
Reitor João Grandino Rodas
Vice-reitor Hélio Nogueira da Cruz
AlW (iíTT

E D I T O R A DA U N I V E R S I D A D E D E SÃO PAULO

Diretor-presidente Plinio Martins Filho

COMISSÃO E D I T O R I A L

Presidente Rubens Ricupero


Vice-presidente Carlos Alberto Barbosa Dantas
Antonio Penteado Mendonça
Chester Luiz Galvão Cesar
Ivan Gilberto Sandoval Falleiros
Mary Macedo de Camargo Neves Lafer
• - i'
Sedi Hirano

Editora-assistente Carla Fernanda Fontana |edusp


Chefe Téc. Div. Editorial Cristiane Silvestrin Íl^'i\',u'Ò<yA. xiJr.) ii- í
Copyright © zoiz by Néstor Garcia Canclinl

Titulo do original em espanhol:


La Sociedad sin Relato: Antropologia y Estética de la Inminencia

Para Magali

Ficha catalográfica elaborada pelo Departamento Técnico do Sistema


Integrado de Bibliotecas da usp. Adaptada conforme normas da Edusp.

Garcia Canclini, Néstor.


A Sociedade sem Relato; Antropologia e Estética da Iminência./Néstor
Garcia Canclini; tradução, Maria Paula Gurgel Ribeiro. - São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, zoií.
264 p.: ih; 21 cm.

Tradução de: La Sociedad sin Relato: Antropologia y Estética de la In-


minencia
Inclui bibliografia.
Inclui fotos.
ISBN 978-85-314-1369-8

1. Antropologia cultural e social. 2. Antropologia da arte. 3. Diversidade


cultural. I. Ribeiro, Maria Paula Gurgel. 11. Titulo. lll. Titulo: Antropologia
e estética da iminência.

CDD 306

Direitos em lingua portuguesa reservados à


Edusp - Editora da Universidade de São Paulo
Av. Corifeu de Azevedo Marques, 1975, térreo
05581-001 - Butantã - São Paulo - SP - Brasil

Divisão Comercial: Tel. (11) 3091-4008 / 3091-4150


SAC (11) 3091-2911 - Fax (11) 3091-4151

www.edusp.com.br - e-mail: edusp^usp.br

Printed in Brazil 2012

Foi feito o depósito legal


A .4

1 ifttuorí/>noj] Êoqrrii,
Agradecimentos 11

A B E R T U R A : A A R T E F O R A D E SI 15

D a Transgressão à Pós-autonomia 23
Queda de Muros e do Relato Social 25

1. ESTÉTICAS CIÊNCIAS SOCIAIS:

DÚVIDAS CONVERGENTES 33

Conversa entre o Sociólogo e o Artista: ,ò


Bourdieu - Haacke 39
E m Busca do Objeto Transversal 43
A Arte entre as Mídias 51 O
O que o Campo Artístico não Explica da Arte 56
O Poder da Iminência 60

2. CULTURAS VISUAIS:

ENTRE A ARTE E O PATRIMÔNIO 65

Mundialização do Local 69
Patrimónios Destinados à Reinterpretação 74
O Vazio como Patrimônio 77
Distribuição Global do Poder Simbólico
(Gabriel Orozco) 81
Patrimônio e Arte: Condições Compartilhadas 95

3. REAPROPRIAÇÕES DOS OBJETOS:

ARTE, MARKETING OU CULTURA? 99

C o m o se Constrói uma Marca Artístico-patrimonial loi


D o Repertório "Autêntico" à Tradução Intercultural 106
Artistas que se Negam a Representar Marcas 110
Conceitos versus Metáforas? 121
4. AVALIAR A ARTE: ENTRE MERCADO E POLÍTICA 127

D e que Relações a Estética Relacional Trata 130


Os Artistas como Trabalhadores do Dissenso 134
O Mistério da Arte e o Segredo dos Leilões 139
D a Etnografia do Campo à Teoria Social 145

AGRADECIMENTOS
5. LOCALIZAÇÕES INCERTAS I49

Inserções em Circuitos: Antoni Muntadas <^


e Cildo Meireles 152
Redistribuir o que se Leva em Conta: Alfredo Jaar 165
O Museu Fora de Si: León Ferrari 168
Localizações Múltiplas e Mídias Digitais 177 -ÍT t

6. AGONIA D O PÚBLICO E TÁTICAS D E SOBREVIVÊNCIA l8l

Visões Incompletas: D a Solidariedade à Espionagem 183


A Perturbadora Beleza do não Relato 195
O Arquivo de Interrupções de Carlos Amorales 201

7. COMO A ARTE FAZ SOCIEDADE 207

Os Públicos Completam as Obras 213


O que a Arte Consegue quando é Rechaçada 216 x
Desencantos: Entre Arte e Política (Teresa Margolles) 221

Epílogo 233 f.ú


Bibliografia 247 o

u ' f.

)
41

O reconhecimento a muitos artistas, críticos, cientistas sociais


e filósofos que me estimularam a repensar a sociedade e a arte
contemporânea aparece nestas páginas. A s que dedico a Francis
Alys, Carlos Amorales, L e ó n Ferrari, A n t o n i Muntadas e Gabriel
Orozco derivam de convites para escrever em catálogos ou livros
sobre suas obras, de visitas prolongadas a seus atelíês e a suas ex-
posições.
Basear a discussão teórica em u m a compreensão etnográfica
transnacional do que hoje acontece nas artes e nas culturas requer
que se passe muito tempo em ateliês, galerias, museus, bienais,
feiras e simpósios de diversos países, conversar c o m espectadores
que desfrutam ou rechaçam. Q u a n d o se tem a possibilidade de
pensar em companhia - às vezes das mesmas pessoas em diferen-
tes cidades e em instituições cujas estratégias diferem - , e de con-
tinuar por e-mail as conversas e os debates, aumentam as chances
de corrigir u m a primeira impressão ou u m hábito intelectual que
teimam em permanecer do nosso lado quando no m u n d o já estão
acontecendo outras coisas: por isso sou grato, entre outros, a Rita
Eder, A n d r e a Giunta, M a n u e l Gutiérrez Estévez, Nelly Richard,
Graciela Speranza e George Yúdice.
A Universidade Autõnoma Metropolitana do México me ofe-
receu o tempo de pesquisa e a possibilidade de confrontar essas
propostas intelectuais e estéticas e m u m seminário de pós-gradu-
ação em 2009. U m a das alunas. Paz Sastre, colaborou na busca de
informação em rede e me fez sugestões sobre o texto. D a mesma
forma, apoiaram-me eficientemente Gabriela Alarcon, Rosario
Mata e Cecilia Meira, c o m o assistentes de pesquisa. Quatro ca-
pítulos constituíram a base de u m seminário, em janeiro de 2010,
na Universidade Central de Barcelona, dirigido por A n n a Maria
G u a s c h e Joaquin Barriendos Rodriguez. Também me ajudaram
a entender o que eu estava fazendo e m partes-chave do livro as
leituras de Marcelo C o h e n , A n d r e a Giunta, Alejandro G r i m s o n ,
14 A SOCIEDADE SEM RELATO

Jesus Martín-Barbero, F i a m m a Montezemolo, Graciela Speranza


eJuanVilloro.
Compartilhar c o m Magali L a r a o gozo de sua pintura e seu
olhar sobre os meus textos, e c o m ela ver centenas de exposições
na Argentina, no Brasil, na Colômbia, na C h i n a , na E s p a n h a , nos
Estados U n i d o s , na Itália, no Japão e no México, ser surpreendido
pelos rituais, desfrutar o trabalho e o jogo de conhecer a arte, seus ABERTURA
autores e seus públicos, fez-nos cruzar juntos muito mais frontei- A A r t e F o r a d e Si
ras que as dos países e das tendências estéticas.

H
o que está acontecendo c o m a arte, cuja morte foi anunciada
tantas vezes, para que e m poucas décadas tenha se transformado
em u m a alternativa para investidores decepcionados, laboratório
de experimentação intelectual na sociologia, na antropologia, na
filosofia e na psicanálise, manancial da moda, do design e de o u -
tras táticas de distinção? Insiste-se, até mesmo, que ela ocupe o
lugar deixado vacante pela política e proponha espaços coletivos
de gestão intercultural.
A partir do início do século x x a sociologia mostrou a neces-
sidade de entender os movimentos artísticos e m conexão c o m os
processos sociais. Agora, essa implicação "externa" da arte é mais
visível devido ao crescente valor económico e midiático alcan-
çado por inúmeras ohras. Para explicar o fenómeno não bastam
as hipóteses que postulavam - da mesma forma que se disse a
respeito da religião - que as artes oferecem cenas imaginárias onde
se compensam as frustrações reais, seja como evasão que leva a se
resignar, seja como criação de utopias que realimentam esperan-
ças: " u m a espécie de religião alternativa para ateus", segundo a
frase de Sarah l h o r n t o n ' .
T a m p o u c o parece suficiente o argumento da sociologia crí-
tica, que vê nas escolhas estéticas um lugar de distinção simbólica.
A compreensão da arte culta e das surpresas das vanguardas, v i s -
ta c o m o u m d o m , dizia Pierre B o u r d i e u , torna u m eufemismo as
desigualdades económicas e a dignidade aos privilégios. C o m o
se reelabora o papel da arte quando a distinção estética é conse-
guida c o m tantos outros recursos do gosto, desde a roupa e os
artefatos c o m design até os sites vocacionais, quando a inova-
ção minoritária é popularizada pela mídia? O grande compareci-
mento aos museus de arte contemporânea leva-nos a duvidar do
efeito de distinção para as elites culturais: e m 2005-2006 o MOMA

lhornton, Siete Dias en el Mundo dei Arte, 2009, p. 12.


A ARTE FORA DE SI 19
i8 A SOCIEDADE SEM RELATO

de ditaduras, a eleição de seus governantes, prolifera o ceticismo:


de Nova York teve 2 670 0 0 0 visitantes, o P o m p i d o u de Paris, 2,5
altos índices de abstenção nos países onde o voto não é obrigató-
milhões, e a Tate M o d e r n , a atração mais popular de L o n d r e s ,
rio, índices elevados de anulação de voto, paródias cínicas do jogo
recebeu quatro milhões. A difusão mundial pela internet, que
político na televisão e na internet em países onde hão obrigato-
permite conhecer obras exibidas e m muitos países, assim c o m o
riedade. U m teatro de simulações suspeitas.
as críticas e as polémicas no m e s m o instante, reduziu o segredo e
E m compensação, a arte joga c o m as imagens e seus m o v i -
a exclusividade desses santuários.
mentos construindo situações explicitamente imaginárias, c o m
Poder-se-iam acumular exemplos para mostrar a persistência
efeitos desfrutáveis ou que podemos limitar se nos perturbam:
destes usos sociais da arte - compensação de frustrações, distin-
vamos embora da exposição. A maior parte de suas intervenções
ção simbólica - , mas precisamos observar os novos papéis que
na sociedade se fixa e m museus, galerias o u bienais. Investe-se
estendem sua ação para além do que se organiza c o m o campo
no mercado de arte por u m gosto que costuma durar, para obter
artístico. Outras explicações vinculadas aos sucessos e aos fra-
distinção simbólica ou rendimentos monetários mais estáveis
cassos da globalização são possíveis: as artes dramatizam a ago-
que os da e c o n o m i a produtiva o u financeira.
nia das utopias emancipadoras, renovam experiências sensíveis
É verdade que as tendências artísticas são fugazes, mas u m
comuns em u m m u n d o tão interconectado quanto dividido e há
amplo setor do público se acostumou a que esses vaivéns sejam
o desejo de viver essas experiências em pactos não catastróficos
parte do jogo. Podemos encontrar prazer na inovação, o u aderir
c o m a ficção.
a distintas correntes e sentir compatíveis as preferências por P i -
* -i A economia, que pretendeu ser a mais consistente das ciên-
casso, Bacon ou Bill Viola. Situar-se na última onda, na penúltima
cias sociais, mostra agora seus recursos de evidência (estatísticas,
ou em algumas anteriores, que às vezes se reciclam, não apresen-
relações entre custos e lucros, entre dívidas e produtividades)
ta tantos riscos de exclusão social o u desmoronamentos pessoais
como dados alucinantes. O neoliheralismo, anunciado como úni-
como investir na moeda do próprio país, em dólares ou em ações
co pensamento capaz de ordenar os intercâmhios e controlar as
de u m a empresa transnacional.
desmesuras da inflação, acabou subordinando a economia dura -
- L O êxito da arte reside em seu caráter "inofensivo" ou ineficaz?
a que produz bens tangíveis - a delírios c o m o dinheiro. E m vez de
Exploraremos este ponto a partir de outra hipótese: a arte é o l u -
organizar a sociedade c o m regras científicas, os economistas no-
gar da iminência. S e u atrativo procede, e m parte, do fato de anun-
meiam as desordens c o m metáforas: culpam a " b o l h a " que inflou
ciar algo que pode acontecer, prometer o sentido ou modificá-lo
a especulação c o m os benefícios das tecnologias digitais, depois
com insinuações. N ã o compromete fatalmente c o m fatos duros.
culpam as bolhas imobiliárias ou de investimentos sem sustenta-
Deixa o que disse e m suspense. A exposição de D o r a Garcia, e m
ção. O s cientistas, trabalhadores de conceitos e cifras, recorrem a
Santiago de Compostela, no final de 2009, intitulada ^Dónde Van
vertiginosas imagens, c o m o se não houvesse nada a que se agarrar
los Personajes cuando Termina la Novela ?, propõe esta via de leitu-
e m u m a época de trabalho s e m contratos, lucros que sobem e des-
ra para suas obras: " U m a boa pergunta deve evitar, a todo custo,
pencam em horas.
uma resposta".
A política também se tornou u m alarde inverossímil.
N ã o quero reincidir no discurso sobre a imaterialidade da re-
Eaz tempo que custa reconhecê-la c o m o o lugar onde se disputa
presentação artística (a chuva pintada em u m quadro não molha,
o poder efetivo das instituições, a administração da riqueza o u as
a explosão na tela não nos m a c h u c a ) ; tampouco no argumento da
garantias do bem-estar. Vamos votar a cada três ou quatro anos
insularidade do campo artístico, segundo o qual as relações ali se-
c o m dificuldade para detectar algum político não corrupto, algu-
guem u m a lógica distinta do restante da sociedade. A o dizer que a
ma promessa crível. M e s m o em nações que recuperam, depois
20 A SOCIEDADE SEM RELATO

arte se situa na iminência, postulamos u m a relação possível c o m


"o real" tão oblíqua ou indireta quanto na música ou nas pinturas
abstratas. A s obras não simplesmente "suspendem" a realidade,
mas se encontram e m u m momento prévio, quando o real é pos-
sível, quando ainda não se desfez. A s obras tratam os fatos c o m o
acontecimentos que estão a ponto de ser.
Será preciso provar esta hipótese não só a partir do que ocorre
nos museus, mas tamhém na expansão da arte para além de seu
próprio campo, quando este se apaga ao se misturar c o m o desen-
volvimento urbano, as indústrias do design e do turismo. Agora
vemos que o predomínio da forma sobre a função, que antes de-
marcava a cena artística, caracteriza os modos de fazer política
ou economia. Desconfiguram-se os programas que diferenciam
realidade e ficção, verdade e simulacro. Foí-se o tempo e m que
se reduzia a cultura á ideologia e a ideologia à manipulação dos
dominantes; as simulações aparecem diariamente em todas as se-
ções dos periódicos.
Dezenas de ativistas do Greenpeace escalam edifícios da E x -
pal - uma empresa espanhola que vende hombas de fragmen-
tação - , perguntam no quinto andar se os trabalhadores têm
armamento nos escritórios, entregam u m vídeo de crianças do
C a m b o j a mutiladas, enchem o chão c o m siluetas das vítimas e
distribuem pernas soltas amputadas.
A s performances de guerrilheiros disfarçados de policiais
ou de militares antes só aconteciam e m uns poucos países "per-
tubados pela subversão". Agora, em qualquer das cidades onde
agem narcotraficantes e sequestradores, os jornais e a televisão
documentam enfrentamentos à bala entre grupos que vestem
uniformes idênticos, seja porque u m dos dois se disfarçou, seja
porque pertencem à mesma corporação, que está "infiltrada". N o
México sabia-se há anos que havia "fuga" de petróleo e gasolina
pelos dutos, mas as investigações sobre as redes de narcotrafican-
tes revelaram, em 2009, que e m 30% das 557 aberturas clandesti-
nas onde eram feitos "desvios" havia participação de O s Zetas,
PIGURA L Dora Garcia, ^Dónde Van los Personajes cuando Termina la
braço armado do cartel do Golfo, e de funcionários da Petróleos
ovela? Dois vídeos de quatorze minutos, coloridos, som estéreo, le-
Mexicanos, que lhes emprestavam uniformes e veículos oficiais
gendas em inglês. Coleção CGAC (Santiago de Compostela) e Frac
para realizar essas operações.
oourgogne (Dijon, França), 2009.
A SOCIEDADE SEM RELATO A ARTE FORA DE SI
22

E m que seção colocar estas notícias: e m política, policial, D A T R A N S G R E S S Ã O À P Ó S - A U T O N O M I A .

economia o u espetáculos? Se é difícil diferenciar estas zonas, os


artistas p o d e m ainda demarcar u m espaço próprio? A extensão O s artistas, que tanto batalham desde o século x i x por sua auto-
dos simulacros cria u m a paisagem na qual certas pretensões das nomia, quase nunca se deram h e m c o m as fronteiras. Entretanto,
artes - surpresa, transgressão irónica da ordem - vão se diluindo. o que se entendia por fronteiras m u d o u . D e s d e Mareei D u c h a m p
A s distintas indefinições entre ficção e realidade confundem-se até o final do século x x , a transgressão foi u m a constante na prá-
devido ao ocaso de visões totalizadoras que situam as identidades tica artística. O s meios de praticá-la, de certa forma, contrihuí-
em posições estáveis. ram para reforçar a diferença. A história contemporânea da arte

N ã o só a arte perde autonomia ao ser imitada por m o v i m e n - é u m a combinação paradoxal de condutas dedicadas a afiançar

tos sociais disfarçados. A s misturas difusas entre o ilusório e o a independência de u m campo próprio e outras obstinadas em

real também abismam o mercado da arte, como veremos e m des- derrubar os limites que o separam.

crições etnográficas de leilões, e m que os bilionários dissimulam Nos momentos utópicos, deixou-se vulnerável a fronteira que
seus inexplicáveis lucros especulando c o m obras artísticas. O se- separava os artistas das pessoas comuns, e se estendeu a noção
gredo sobre q u e m compra e coleciona, as explosões de preços de artista a todos e a noção de arte a qualquer objeto c o m u m ,
e suas cíclicas quedas (como aconteceu em 1990 e 2008) fazem seja implicando o público na obra, seja reivindicando as manei-
suspeitar de intersecções mais complexas entre arte e sociedade, ras cotidianas de criar, seja, ainda, exaltando o atrativo dos obje-
entre criatividade, indústria e finanças, do que as que alimenta- tos triviais (desde a pop art até a arte política). N o s momentos
ram os dilemas entre valor económico e valor simbólico nas esté- desconstrutores, esvaziou-se o conteúdo (as monocromías, de

ticas clássicas. E x i s t e m mais processos dentro e fora do campo, e Malevitch a Yves K l e i n ) ou diluiu-se o receptáculo (as pinturas

e m suas interações, que contribuem para a "desdefinição" da arte, que fogem da moldura: Pollock, E r a n k Stella, L u i s Felipe N o é ) .

do que quando H a r o l d Rosemberg c u n h o u esta expressão nos A fim de erodir os limites do gosto, Piero M a n z o n i levou às sa-

anos de 1960. las de exposição noventa latas de conserva de Merda de Artista


para vender a grama de acordo c o m a cotação do ouro. Outros
O entrelaçamento da prática artística c o m as demais levan-
urinavam ou se automutilavam diante do público (os acionistas
ta suspeitas em relação aos instrumentos teóricos e aos métodos
vienenses) o u irrompiam em museus e bienais c o m cadáveres de
c o m os quais se tenta compreendê-la na sociologia moderna e
animais e cobertas ensanguentadas e m tiroteios do narcotráfico
na estética pós-moderna. Servem para alguma coisa as noções de
(Teresa Margolles).
m u n d o da arte ( B e c k e r ) e de campo da arte ( B o u r d i e u ) , quando
sobram sinais da interdependência dos museus, dos leilões e dos A introdução nos espaços artísticos de objetos ou ações "ig-
artistas c o m os grandes atores económicos, políticos e midiáti- nóbeis" acaba reforçando a singularidade desses espaços e dos ar-
cos? A j u d a m as análises de Bourriaud sobre a estética relacional tistas. Mediante dois procedimentos, tentou-se sair desse círculo
ou são mais produtivas as propostas críticas de Rancière, quando autorreferido, fechado e incompreensível para aqueles que não
distingue entre estéticas do consenso e do dissenso? Q u e papel compartilham os segredos das vanguardas.
desempenham artistas c o m o A n t o n i Muntadas, León Eerrari e U m deles é a reinserção das experiências que se pretendem
Carlos Amorales, que também reformulam estes vínculos de i n - artísticas em lugares profanos: na seção económica do Le Monde,
terdependência em suas obras e montagens? Fred Forest e Hervé Fischer, do Coletivo Arte Sociológica, ofere-
ceram investir na compra do M 2 Artístico, na fronteira da França
com a Suíça, prometendo outorgar o título honorífico de "cida-
A SOCIEDADE SEM RELATO A ARTE FORA DE SI
24

dão" desse território e dar participação e m programas de jardins chamamos arte que estão arrancando-a de sua experiência para-
públicos, espaços de reflexão e atos contestatórios aos compra- doxal de encapsulação-transgressão.
dores. A outra via é a ação exercida e m 1989, por B e r n a r d Bazile, A s transgressões supõem a existência de estruturas que opri-
quando abriu u m a das latas de Merda do Artista, de M a n z o n i , e m e m e de narrativas que as justificam. Ficar atrelado ao desejo
mostrou "não só a defasagem entre a realidade do conteúdo (a de acabar c o m essas ordens e, ao m e s m o tempo, cultivar c o m i n -
exibição de u m pedaço de estopa), o imaginário do receptácu- sistência a separação, a transgressão, implica que essas estruturas
lo (o mais impuro fragmento do corpo do artista) e a simbólica e essas narrativas mantêm vigência. O que acontece quando se
do conjunto ( u m dos mais puros momentos de transgressão das esgotam?
fronteiras da arte)"; também exibiu a mais-valia assim consegui-
da e, no final, o aumento do valor da lata de M a n z o n i aberta por
Bazile, vendida pela galeria Pailhas, de Marselha, pelo dobro do Q U E D A D E M U R O S E D O R E L A T O SOCIAL

preço que a lata iniciaP.


É destino do campo da arte ensimesmar-se no reiterado de- Terminamos o século x x s e m paradigmas de desenvolvimento,
sejo de romper suas fronteiras e desembocar, c o m o nestes dois sem paradigmas que expliquem a sociedade: dizia-se que só c o n -
últimos casos, e m simples transgressões de segundo grau que não távamos c o m múltiplas narrativas. C o m e ç a m o s o século x x i c o m
m u d a m nada? N e m levando o m u n d o ao museu, n e m saindo do relatos dispersos e fragmentados. Islamitas acreditam em alguns,
museu, n e m esvaziando o m u s e u e a obra, n e m a desmateriali- fundamentalistas cristãos e m outros, e seguidores de algum cau-
zando, n e m omitindo o n o m e do autor, n e m blasfemando e pro- dilho no restante. Tais relatos c o m frequência perdem adeptos,
vocando a censura pode-se superar o mal-estar que provoca esta diminuem sua eficácia por conta de dissidências ou esfacelam-se
oscilação entre querer a autonomia e não poder transcendê-la. em paródias de si mesmos.
Talvez as respostas para esta interrogação não surjam do A penúltima grande narrativa ocidental, auspiciada pela
campo artístico, mas do que está ocorrendo ao intersectar-se queda do M u r o de B e r l i m em 1989, imaginou que haveria u m só
c o m outros e tornar-se arte pós-autônoma. C o m este termo re- mundo c o m u m único centro - Estados U n i d o s - e que seu estilo
firo-me ao processo das últimas décadas n o qual aumentam os de modernização capitalista, segundo Erancis Fukuyama, torna-
deslocamentos das práticas artísticas baseadas e m objetos a prá- ria o planeta homogéneo. E s s e "grande relato" durou até que a
ticas baseadas e m contextos até chegar a inserir as obras nos meios outra "grande queda", a das Torres Gémeas, direcionou o olhar
de comunicação, espaços urbanos, redes digitais e formas de partici- para os argumentos de Samuel Huntington sobre a persistência
pação social onde parece diluir-se a diferença estética. Muitas obras de civilizações em choque, o poder compartilhado do inglês c o m
continuam sendo exibidas e m museus e bienais, são assinadas outras línguas e a multipolaridade económica e cultural. A m b a s
por artistas e algumas recebem prémios de arte; mas os prémios, as propostas tiveram seus ecos e m representações artísticas e nos
os museus e as bienais compartilham a difusão e a consagração imaginários sobre a mundialização dos mercados simbólicos: de
c o m as revistas de atualidade e a televisão. A assinatura, a noção Nova York c o m o única metrópole passamos a reconhecer a multi-
de autor, fica subsumida na publicidade, na mídia e nos coletivos focalidade e a multiculturalidade. A profusão de bienais e m todos
não artísticos. M a i s do que os esforços dos artistas o u dos críticos os continentes, interagindo formas distintas de se modernizar, de
e m romper a couraça, são as novas posições atribuídas ao que se globalizar e de figurar esses processos, cancela as ahstrações
mundializadas. Q u a n d o falo e m sociedade s e m relato não quero
2. Heinich, Le triple jeu de Vart contemporain, 1998, p. 92. 0'j dizer que faltem relatos, c o m o n o pós-modernismo que criticou
A SOCIEDADE SEM RELATO A ARTE FORA DE SI
26 27

as metanarrativas; refiro-me à condição histórica na qual n e n h u m ras e migrações, dedicaram livros, obras visuais, números inteiros
relato organiza a diversidade e m u m mundo cuja interdependên- de revistas e sites para elaborar a nova situação.
cia leva muitos a sentirem falta dessa estruturação. E s t a agenda política e cultural foi sacudida, sem ser cancela-
' E m novembro de 2009, livros, revistas, programas televi- da, em 15 de setembro de 2008, dia em que a quebra do L e h m a n
sivos e exposições celebraram os vinte anos da queda do m u r o Brothers levou ao seu pico dramático a desordem neoliberal em
de B e r l i m . N o D e u t s c h e s H i s t o r i c h e s M u s e u m dessa cidade, a vários continentes. Milhões de pessoas perderam seu trabalho,
mostra 1989-2009 - O Muro de Berlim: Artistas pela Liberdade seus investimentos e suas economias em poucas semanas, o con-
reiterou u m a leitura oficial do ocorrido e m 9 de novembro de sumo retraiu-se e lojas, fábricas e outros bancos quebraram, e m
1989: a queda do muro c o m o libertadora de fluxos h u m a n o s que efeito cascata. Muitas fundações suspenderam seus financiamen-
não p o d i a m ser detidos. N o entanto, agora duvidamos de q u e m tos a museus, projetos culturais e pesquisas científicas. Philippe
se beneficiou. O que dizer dos muros consturfdos o u daqueles Vergne - diretor da D i a A r t Foundation - sugeriu, e m u m a con-
que depois foram ampliados ? A página na web da exposição de- ferência de meados de 2009 e m Saint L o u i s , uma aproximação
tém-se e m lugares c o m u n s : reunificação alemã, nova estrutura entre a quebra do banco de investimento e o ganho estrondoso
para a E u r o p a , fim de u m a o r d e m m u n d i a l bipolar. A rigor, a or- de 198 milhões de dólares do artista D a m i e n Hirst quando orga-
d e m m u n d i a l havia deixado de ser bipolar muito antes: a C h i n a nizou na Sothehy seu próprio leilão, ocorrido no mesmo dia 15 de
e o J a p ã o estavam crescendo, os capitais árabes expandiam-se setembro, sem mediação de galeristas . "Provocativa coincidên-
em todo o Ocidente. Avançava u m a recomposição geopolítica cia", reiterou A n t h o n y H u b e r m a n : no m e s m o dia e m que o mer-
que não pode ser condensada na queda do muro. A s c o m e m o - cado se mostrou imperfeito e imprevisível, fonte de "extraordiná-
rações mais produtivas são as que problematizam o sentido do rias ilusões e fúrias de multidões", nas palavras de Paul K r u g m a n ,
que festejam. a manobra estratégica de u m artista para escapar das "loucuras
Se voltarmos o olhar para a América Latina, as democracias eufóricas do mercado da arte" levou sua autonomia a uma "refres-
atuais têm mais a ver c o m outras datas: o fim das ditaduras no cante" e "cínica" reformulação das regras da economia artística^
C o n e Sul e na América Central e m meados dos anos de 1980, as É óbvio que este gesto de autonomia c o m relação ao mer-
crises económicas de 1994 e 1995, o abandono de projetos nacio- cado poderia ser praticado por apenas dez o u vinte artistas que,
nais c o m o o do México a partir de 1982, que se consolidou desde junto c o m D a m i e n Hirst, encabeçam a lista de preços. E s s a pre-
1994 c o m o Tratado de L i v r e Comércio da América do Norte. tensão não pode ser estendida às instituições artísticas e aos pro-
Trata-se de eventos que agravaram a desigualdade e a decompo- jetos coletivos que v i r a m cair seus financiamentos. A s vacilações
sição do capitalismo nesta região. dos museus de primeira linha depois da crise de 2008 mostram
O século X X I começou duas vezes. O ataque da A l Q a e d a a mais sua dependência do mercado e o desconcerto sobre c o m o
N o v a York e Washington, e m u de setembro de 2001, impôs n a evitar serem arrastados pela desordem económica: concentrar-
cena política e midiática o deslocamento que alguns estudos já se nas megaexposições c o m alarde de marketing, como a Tate
v i n h a m anunciando: passamos do multiculturalismo, entendido Modern e outros recintos britânicos? Vender franquias, erguer
c o m o reconhecimento das diferenças dentro de cada nação, para réplicas em A b u - D h a b i espetacularizando-as c o m arquitetos cé-
os conflitos interculturais e m u m a geopolítica glohal onde todas lebres, como tentam, nessa capital dos E m i r a d o s Árabes, o L o u -
as sociedades são interdependentes. A reflexão cultural e a práti- vre, convocando Jean Nouvel, e o Guggenheim, E r a n k G e h r y ?
ca artística, que vinham trabalhando estas tensões mundializadas
n a pesquisa interétnica, assim c o m o as discussões sobre frontei- 3- Huberman, "Talent is Overrated", 2009, p. 109.
2^8 A SOCIEDADE SEM RELATO A ARTE FORA DE SI
29
trJ
yX^^TÚ^O^odelo teórico do campo artístico, associado, como vere- _ D e u m lado, muitos movimentos artísticos deixaram de se i n -
X ^ o s em Bourdieu, a uma época na qual ainda se podiam analisar os teressar pela autonomia ou interagiram c o m outras áreas da vida

movimentos da arte como parte de culturas nacionais, foi esgotan- social - o design, a m o d a , a mídia, as batalhas políticas imediatas.

do sua produtividade à medida que nos globalizamos. Tampouco D e outro, caducaram os paradigmas que continham as peripécias
socioeconómicas, e as promessas de revolução o u bem-estar fica-
convence como alternativa o nomadismo que imaginava u m mundo
ram sem chão. Nesta incerteza análoga da arte e da sociedade, a
sem fronteiras. O s fluxos transnacionais de imagens têm velocida-
arte não pode refundar u m lugar próprio e talvez sua tarefa seja
des distintas se provêm de países economicamente poderosos o u
seu modo de olhar "o que está além do último limite: o extra-
despossuídos. A s pessoas, entre elas os artistas, tropeçam e m mais
artístico, o m u n d o de fora, a história que passa, a cultura alheia",
barreiras do que suas obras. Estas duas abstrações magnas - a u n i -
escreve T i c i o E s c o b a r e m u m livro que tem o mesmo título desta
versabdade da criação e a autonomia da arte - mostram-se incon-
introdução'*.
sistentes cada vez que se levantam novos muros, quando se exigem
mais vistos para os trabalhadores do que para as mercadorias que A arte perde sua autonomia por diferentes vias. A mais co-
produzem. Alguns produtores culturais encontram na resistência a nhecida é a inserção e m u m mercado artístico de grande escala
estas discriminações ou na reivindicação de suas diferenças mate- (obras vendidas por mais de 8 milhões de dólares e m 2008), c o m
rial para sua arte. Porém, estas interações e travas multidirecionais regras heterônomas, às vezes semelhantes às de circuitos de bens
já não contam c o m uma narrativa que as organize. E m h o r a eu pre- comuns. E s s e mercado estende-se dos recintos de consagração
tenda examinar artistas que trabalham c o m resistências e c o m tra- ocidental - Nova York, Londres e Berlim - para a C h i n a , a Rússia e
duções interculturais, que criticam relatos dominantes, crescem, os Emirados Árabes. Misturam-se c o m economias capitalistas ou
sobretudo entre os jovens, relatos destotalizados, fragmentos de mistas, regimes autoritários e democráticos. O s mistérios da arte
uma visualidade sem história. O estado de época depois do fracas- transmutam-se e m segredos dos leilões, os preços das obras são
so soviético e das recorrentes catástrofes capitalistas é " u m fim da comparados c o m o preço dos bónus, das ações e do Dow-Jones^
história" em u m sentido diferente do de Eukuyama: uma perda de H á outros exemplos que revelam a situação pós-autônoma
experiência histórica. Esta organização "presentista" do sentido se da arte nas múltiplas inserções sociais dos artistas. Falaremos de
agudiza, tanto na arte como na vida cotidiana, pela obsolescência u m dos atuais casos emblemáticos, o de Takashi Murakami, cujos
das inovações tecnológicas. mn quadros se assemelham à roupa e às bolsas que ele fabrica para a
A arte tornou-se pós-autônoma e m u m m u n d o que não sabe Louis Vuitton, assim como sua obra artística mostra continuida-
o que fazer c o m a insignificância ou c o m a discordância de rela- de c o m o mangá e os videogames. Contudo, lembremos que figu-
tos. A o falar desta arte disseminada e m u m a globalização que não ras anteriores, ligadas a forças transformadoras na política, como
consegue se articular, já não podemos pensar e m u m a história e o caso de Frida Kahlo, transformaram-se e m emblemas do fe-
c o m uma orientação, n e m e m u m modelo de desenvolvimento minismo, tema de filmes comerciais e capas de revistas polítíco-
para a sociedade. E s t a m o s longe dos tempos e m que os artistas culturais, de turismo e de moda. E m outras épocas, indivíduos i n -
discutiam o que fazer para mudar o m u n d o o u ao menos repre- dignados defendiam o uso legítimo da arte e m face da degradação
sentar suas transições revelando o que "o sistema" escondia. M a l desses símbolos; mais adiante será preciso se perguntar se alguma
conseguem agir, c o m o acontece c o m os prejudicados que tentam coisa no roteiro de vida oferecido por essa artista a tornou flexível
se organizar, na iminência do que pode acontecer ou nos restos
pouco explicáveis do que foi desvencilhado pela globalização. A Escobar, £ / A r t e Fuera de St, 2004, p. 148.
arte trabalha agora nos rastros do ingovernável. " Artprice, Le marché de Vart contemporain 2007-2008, 2008.
30 A SOCIEDADE SEM RELATO
A ARTE FORA DE S I 31
para o multiemprego e por que os fabricantes de roupa, ténis o u
de relógios descobriram nela u m dispositivo para dar significados uma sociedade onde não faz mais sentido a permanência da dico-
transcendentes a seus sucessos de temporadas. tomia esquerda/direita c o m o opção política e u m a ciência social
O s estudos sobre a fortuna crítica dos artistas, seja durante sua que pressupõe novas ferramentas para estudar esta paisagem.
vida (de Picasso a D a m i e n H i r s t ) , seja depois de sua morte (Van Este livro busca u m a linha analítica que se ocupe da arte c o n -
G o g h ) , c o m a intervenção de atores midiáticos, políticos, ligados temporânea a partir dos contextos culturais e sociais que tornam
ao turismo ou ao comércio icônico, revelam como se combinam possível sua condição pós-autônoma. V o u me deter e m projetos
os valores estéticos c o m outros motivos de admiração. O Uvro de singulares de artistas que mantenham certa independência e m

Nathalie Heinich, A Glória de Van Gogh, mostrou que este pintor, relação à religião, à política, à mídia e aos mercados. E n t r e a inser-

longe de ter sido ignorado ou incompreendido, foi celebrado pela ção social inevitável e o desejo de autonomia está e m jogo o lugar
da transgressão criadora, do dissenso crítico e desse sentido da
crítica, e é pouco crível que seu fim trágico deva ser atribuído a
iminência que faz do estético algo que não termina de se produ-
decepções profissionais. Isso não impediu que biografias e estu-
zir, não procura se transformar e m u m ofício codificado n e m e m
dos sobre seu trabalho armassem u m a ressonância c o m motivos
mercadoria rentável.
religiosos, extraídos do repertório da santidade, para construir u m
sentimento de dívida coletiva para c o m o grande artista sacrifi-
cado pela sua arte, "enquanto se desenvolvem diversas modalida-
des de absolvição individual - por meio da compra de obras, pelo
olhar que se pousa sobre elas, pela presença nos lugares onde o
pintor viveu, que se tornaram espaços de culto"*.
Atarefa da análise sociológica, esclarece Heinich, não é desmi-
tificar as crenças n e m denunciar as ilusões, mas, sim, compreender
as razões que formaram, na modernidade, maneiras específicas de
singularização e de criação de valor simhólico. A o multiplicar os
pontos de vista e decifrar as alianças entre experiências subjetivas
e globahzação do gosto, pode-se vislumbrar uma nova compreen-
são do lugar da arte na recomposição do sentido.
Multiplicar os pontos de vista: nós nos afastamos do reducio-
nismo sociológico que irrita, c o m razão, artistas e pesquisadores
que se preocupam c o m a especificidade estética. É preciso ensaiar
u m a visão da arte expandida pelas zonas da vida social, sem obri-
gá-la a representar "estratégias de distinção", a exercer "violência
simbólica" ou dominação dos "legítimos" sobre os demais. A o
explorar vínculos diversificados entre criação e mercado, entre
insatisfações estéticas e mal-estares políticos, é preciso iluminar
as correspondências entre u m a arte cuja redefinição lhe é custosa,

6. Heinich, La Sociologia dei Arte, 2002, p. 58.


1. ESTÉTICAE CIÊNCIAS SOCIAIS
Dúvidas Convergentes
Na medida em que as artes foram adquirindo, como nunca an-
tes na modernidade, funções econõmicas, sociais e políticas, en-
quanto estimulam a renovação das ciências sociais e da filosofia,
os artistas não cessam de duvidar sobre sua existência e seu lugar
na sociedade. Parece u m paradoxo: os artistas saem dos museus
para se inserir em redes sociais (arte sociológica, arte etnográ-
fica, ações pós-politicas), enquanto atores de outros campos
mantêm a respiração da arte e se comprometem com suas con-
tribuições (filósofos, sociólogos e antropólogos pensam a partir
de inovações artísticas e fazendo curadoria de exposições; atores
políticos e movimentos sociais usam performances em espaços
públicos).
Esses movimentos raras vezes se encontram, e não está claro
como poderiam consegui-lo. Os artistas lançam uma bola de plas-
tilina na rua (Gabriel Orozco) ou fabricam "coletores", brinque-
dos produzidos com latas, restos industriais e peças magnéticas
(Francis Alys) para que se vá colando partes soltas da vida urba-
na. Alys passeou com os coletores utilizando uma corda, como
se fossem cachorros, pelas ruas para recolher pregos, arames,
resíduos metálicos ahandonados: em seus percursos ia armando
uma memória da cidade ao acaso. O que ficava grudado no cole-
tor deixava de ser lixo para se transformar em u m documento de
sua pesquisa sobre o que é usado e descartado.
De modo análogo, sua série fotográfica Ambulantes registra
carrinhos para transportar todo tipo de mercadorias e identifi-
ca vendedores ou viajantes, que constituem fragmentos de nar-
rativas sobre como se transita diariamente pelo centro histórico
da Cidade do México. Mais do que como criador do singular, o
artista reconcebe sua tarefa como observador de personagens
comuns, descobridor dos "sete níveis do lixo", alguém que tenta
realizar constatações comuns, como a maneira pela qual os ca-
G orros fazem uso próprio de uma parte da rua, ou de que forma
A SOCIEDADE SEM RELATO ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS
36

O derretimento de u m bloco de gelo é empurrado durante nove carecemos de teorias universalmente válidas tanto da arte como
horas pelo centro da capital mexicana. da globalização. Revisemos, pois, brevemente, o que vem acon-
tecendo com as tentativas das teorias da arte para construir u m
saber universalmente válido.
A estética filosófica procurou universalizar sua reflexão, mas
estava associada ao desenvolvimento da modernidade europeia,
da razão ilustrada ou do romantismo. O pensamento estético foi
intérprete da autonomização da arte quando o capitalismo e a se-
cularização geraram instituições específicas e públicos dispostos
a se relacionar com as obras usando critérios de avaliação dife-
rentes dos empregados pelos poderes religiosos ou políticos. O
traço predominante das estéticas modernas foi o que Kant de-
nominou objetos construídos, seguindo uma finalidade sem fim;
nas palavras de Umberto Eco, as experiências nas quais as formas
prevalecem sobre a função.
F I G U R A 2. Francis Alys, The Colledor, em colabora-
A sociologia demonstrou que a autonomia da arte e da litera-
ção com Felipe Sanabria. México, 1991-1992- ,
tura não foi só u m movimento de mentalidades. A partir do século
X V I I I , a burguesia - transformada em cliente dos artistas - , assim
Como se situa entre os demais ofícios quem se define como como a criação de museus, galerias e salões literários autonomi-
u m espectador dedicado a esperar "que o acidente aconteça"? zaram suas práticas ao estabelecer instâncias propriamente esté-
Deixa que seu suéter vá se desfiando enquanto caminha; em seu ticas para avaliar a arte e a literatura. Bourdieu nâo foi o primeiro
trajeto o fio se perde e a vestimenta se desfaz, como se sua tarefa, a advertir que u m dos traços da modernidade era a constituição
comenta Cuauhtémoc Medina, consistisse em perder o "fio da de campos autónomos, onde os criadores se vinculavam àque-
narração"'. les que tinham especificamente a ver com seu trabalho, mas ele
Enquanto isso, as instituições e os mercados falam a partir construiu uma teoria mais sofisticada e rigorosa sohre as maneiras
de estruturas e programas, emhora saibamos que estas formas pelas quais a arte se separou de seus condicionamentos externos.
sociais não têm a consistência nem a certeza de outras épocas. Com base em estudos sociológicos sobre a arte e a literatura
Como imaginar neste mundo sem centro nem paradigmas, entre foi possível entender como foram se formando, na modernida-
as rupturas da globalização, uma conversa dos artistas que trans- de, outros campos autónomos: a ciência levada a cabo em uni-
formam o lixo em documentos com os profissionais decepciona- versidades e laboratórios, fundamentada apenas nas regras da
dos com as estruturas e seus modos de representar? pesquisa empírica e na argumentação racional, o campo político
Não é u m problema menor discutir a situação das artes - como disputa laica pelo poder sem derivar a ordem social dos
incompreensível se não a olharmos em escala global - quando mandatos divinos.
Tanto nas ciências como nas artes, o conceito de campo aca-
1. Alys e Medina, Diez Cuadras alrededor dei Estúdio, 2006. ou com a noção romântica e individualista do génio que des-
cobre conhecimentos imprevistos ou cria ohras excepcionais.
G sem cair, tampouco, no determinismo social. A o cingir-se à
ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS 39
38 A SOCIEDADE SEM RELATO

estrutura interna de cada campo e às regras específicas para pro- ceituais que guiam as diversas práticas artísticas. Mas o próprio
plural, que tem o mérito de admitir muitos modos de fazer arte,
duzir arte, literatura ou ciência, a pesquisa sociológica superou
suscita dúvidas ao adjudicar-lhes o nome de teorias. Podemos
as pretensões de explicar a criação e o saber a partir de coações
chamá-las de teoria, um termo aplicado a concepções científicas
macrossociais, como o modo de produção ou a classe. As obras e
com coerência interna, u m encadeamento lógico de proposições
as práticas dos artistas estão condicionadas não pelo todo social,
capazes de serem contrastadas com referentes empíricos e que
mas por esse conjunto de relações em que interagem agentes e
aspiram à universalidade?
instituições especializadas em produzir arte, exibi-la, vendê-la,
Os movimentos de vanguarda do século x x , ao relativizar os
avaliá-la e apropriar-se dela. Graças a Bourdieu, saímos da opo-
valores estéticos e a fundamentação do gosto, admitiram a exis-
sição abismal e abstrata entre o indivíduo criador e a sociedade
tência de múltiplas poéticas. Ao colocar, acima da representação,
capitalista para compreender as tensões entre projetos artísticos
a experimentação nos modos de representar ou aludir ao real,
e condicionamentos concretos de galerias, museus, críticos, cole-
perturbaram a ordem clássica e o museu como templo de con-
cionadores e espectadores.
sagração e exibição da arte. Acabaram desconstruindo o sentido
Howard S. Becker, bom u m olhar mais antropológico, ou an-
autónomo da arte e o relato que havia organizado seus vínculos
tes, etnográfico, destacou que fazer arte é uma atividade coopera-
com a politica, o mercado e a mídia.
tiva: como músico, além de antropólogo, parecia-lhe óbvio que
u m concerto precisa do trabalho grupai, ou seja, de uma orques-
tra, da colaboração do compositor, dos técnicos, das escolas onde
C O N V E R S A E N T R E O S O C I Ó L O G O E O ARTISTA:
todos eles se formaram, da publicidade e dos fabricantes de instru-
B O U R D I E U - H A A C K E
mentos. Estudar a arte, e saber quando há arte, implica entender a
obra no contexto de sua produção, circulação e apropriação. Mas
qual é hoje esse contexto? Bourdieu falava de campos e Becker, de Uma primeira dificuldade para compreender a decomposição da
ordem moderna é, como acahamos de dizer, não reconhecer a
mundos da arte. Ambos consideravam que a definição, a avaliação
limitação de sua vigência no Ocidente e sua insustentabilidade
e a compreensão da arte se realizavam em espaços e circuitos autô-
em uma época de interações globais. O segundo problema é epis-
nomosp^ independência e a autocontenção das práticas artísticas,
temológico: procurar a explicação apenas nos atores e nos pro-
' que delimitavam quem tinha legitimidade para dizer o que é arte,
cessos aos quais a teoria moderna havia atrihuido certas tarefas
desvaneceram-se.
que não cumpriram.
É possível estender esta noção de arte a sociedades não mo-
No diálogo que tiveram em 1999, Pierre Bourdieu e Hans
dernas nem ocidentais? A antropologia demonstrou, por exem-
Haacke - um a partir da sociologia das práticas intelectuais e polí-
plo, nos trabalhos de Clifford Geertz e de Sally Price, que em
ticas, outro a partir das experiências de artista - tentaram explicar
outros povos havia preocupação com as formas dos ohjetos e o
suas decepções: os intelectuais passaram do pensamento critico
modo de trabalhar a sensibilidade, mas isso não pode ser enten-
a gestão, os Estados dão cada vez menos dinheiro e querem con-
dido como critérios de beleza ou de predomínio da forma sobre
ú-olar mais, a Europa foi se dohrando ao modelo estadunidense
a função das estéticas eurocêntricas.
e ceder a sponsors privados a sobrevivência de museus, rádios
Mesmo no Ocidente, as vanguardas artísticas cultivaram di-
televisões, escolas, hospitais e laboratórios. A observação ex-
ferentes tipos de beleza, e também de feiúra, do abjeto, do sinistro
^ usiva dos mesmos atores, entre os quais o programa ilustrado e
e outras alterações das experiências e da sensibilidade. Propôs-se
estatal que havia distribuído responsabilidades, leva a constatar
chamar teorias da arte, em vez de estética, as postulações con-
A SOCIEDADE SEM RELATO ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS 41
40

O impossível: nâo cabe esperar que o mecenato de empresas pri- se a única modalidade em que eles se apresentam é a que estudou ?
vadas patrocine ações de interesse público independentemente a ciência social clássica, a história da arte ou as vanguardas. O u sei ,
de críticas à sua voracidade; tudo piorará se o Estado abandonar talvez outros modos de pesquisar - sob convénios público-priva-S '
suas tarefas e pensar unicamente sob a lógica da rentabilidade e dos - , de gerir a cultura e comunicá-la (onde as indústrias audiovi-|
do lucro. suais e as redes digitais têm papéis-chave) estão remodelando, em\
Bourdieu e Haacke são suficientemente lúcidos para reco- circuitos diferentes, a produção, a circulação e a recepção da artej
nhecer que as ações culturais e científicas do Estado tampouco da ciência e da cultura.
garantem sempre o predomínio do interesse público, a qualidade Bourdieu lança uma boa frase para caracterizar a ineficiência
da pesquisa e da arte, a publicação de livros melhores e a pro- de intelectuais, sindicatos e partidos nas atuais condições das dis-
moção de artistas qualificados. Não obstante, a comparação na putas pelo poder: "[eles] têm u m atraso de três ou quatro guerras
/ história de aquisições de arte contemporânea de uma instituição simbólicas"'. Ele se refere ao uso de técnicas de ação e manifes-
\, como o Museu de Arte Moderna de Nova York, com as tação arcaicas para se opor às empresas e a suas relações públicas
J de uma instituição púhlica, como o Centro Pompidou de Paris, sofisticadas. Por isso, valoriza a capacidade dos artistas de espan-
\ Haacke a concluir que os funcionários dependentes do Es- tar, surpreender e desconcertar.
/ tado "podem se permitir ser mais audazes" e mais "arriscados do O mesmo fez Hans Haacke quando, em 1991, respondeu a u m
I ponto de vista do mercado, da moral ou da ideologia"*. convite para produzir obras com documentação fotográfica da his-
Seria possível discutir esta afirmação se diferenciássemos, ao tória do principal edifício nazista em Munique e expô-las in loco.
menos, as tendências públicas das privadas (flutuantes) nos Esta- Utilizando como titulo a primeira frase de uma canção nazista que
dos Unidos e na Erança. Também seria preciso se preocupar com falava de içar a handeira, Haacke pendurou umas bandeirolas com
a maneira pela qual Bourdieu interpreta a desintegração dos siste- a lista de empresas alemãs que haviam vendido material bélico
mas públicos e a aprovação eleitoral dos cidadãos. "O sistema pú- para o Iraque, entre elas a Daimler-Benz, a Ruhrgas e a Siemens.
blico deixa uma margem maior de liberdade, mas é preciso ser ca- O jornalista da Spiegel, autor do artigo do qual o artista obtivera
paz de usá-lo", afirma Bourdieu, e, "lamentavelmente, os cidadãos e a informação, espantou-se com o fato de que certas empresas que
os intelectuais não estão preparados para esta liberdade em relação não tinham reclamado por causa do seu texto acusaram Haacke
ao Estado, talvez porque esperem demais dele em termos pessoais: judicialmente. "A questão, diz este, não é só dizer alguma coisa,
carreiras, condecorações". A critica, encerrada em sua própria ló- tomar posição, mas também criar uma provocação frutífera"^.
gica, começa com acusações estruturais ao Estado e às empresas Uma das diferenças entre o sociólogo e o artista consiste em
para desembocar em suspeitas morais sobre os indivíduos. que, enquanto o primeiro analisa as estruturas e vê seus fracassos
Bourdieu lembra, em um momento da conversa, um principio como falhas ou armadilhas estruturais, o segundo desdohra a es-
epistemológico que ele difundiu desde seus primeiros livros, no- tratégia dos interstícios. "Acredita-se que a censura e a autocen-
toriamente em Ofício de Sociólogo: " U m pensamento verdadeirí7 sura estão por todos os lados - e é verdade, existem. Mas se os
mente critico deve começar por uma critica dos fundamentos eco( limites forem colocados à prova, às vezes se encontram buracos
nõmicos e sociais mais ou menos inconscientes do pensamento/, nas paredes que podem ser perfurados"'. Nós nos enganaríamos se
critico". Concordo. Isto implica em questionar se o Estado, as em-
presas e os cidadãos sejam os únicos atores, ou ainda questionai*^ 3. idem, p. 28.
4. Idem, p. 30.
s. Idem, pp. 86-87.
2. Bourdieu e Haacke, Libre-échange: entretiens avec Hans Haacke, 1994-
A SOCIEDADE SEM RELATO
42 ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAISi
43

acreditássemos que o artista é u m observador mais astuto do que o trabalho artístico não aparece neste diálogo como predo-
o sociólogo. N o transcurso do diálogo, Haacke mostra que sua ha- mínio da forma sobre a função, nem como desmitificação da ló-
bilidade para produzir escândalos, como os de outros artistas que gica oculta de cada campo. Haacke, como outros artistas concei-
menciona - Duchamp, Tatlin, Rodchenko - , deriva de uma consi- tuais e performáticos, compreende a estrutura dos partidos, das
deração cuidadosa dos conceitos e dos deslizamentos de sentido igrejas, da publicidade e das audiências, e a partir desse conheci-
que ocorrem ao aplicar às formas funções não habituais. mento move de seus lugares habituais os objetos e as mensagens.
Sua prática elude a autonomia de cada campo, opõe-se a ela:
H H : Acho que poucas vezes o público daquilo que chamamos
"a arte" é homogéneo. Há sempre uma tensão entre aqueles que se [...] Me parece que a insistência na "forma" ou na "mensagem" é
interessam antes de mais nada "pelo que se conta" e aqueles que uma espécie de separatismo. U m e outro são altamente políticos. Se
privilegiam a maneira como se conta. Nem uns nem outros podem se fala da função de propaganda de toda arte, gostaria de acrescentar
compreender e apreciar a obra de arte em seu justo valor. As "for- o seguinte: a significação e o impacto que um dado objeto tem não
mas" falam e o "sujeito" se inscreve nas "formas". O conjunto está estão fixados para sempre. Felizmente, a maior parte das pessoas
inevitavelmente impregnado de significações ideológicas. Não é não está tão preocupada com a pretensa força da arte^.
diferente no meu trabalho. Há aqueles que se sentem atraidos pelo H H : Pode-se aprender muito com a publicidade. Entre os mer-
tema e as informações... cenários da publicidade há pessoas muito inteligentes, verdadeiros
P B : A mensagem... especialistas da comunicação. O sentido prático exige que se apren-
H H : [...] explicita ou implícita. Talvez sintam que suas opiniões dam as técnicas e as estratégias de comunicação. Não se pode sub-
se reforçam quando se dão conta de que não são os únicos que pen- verter aquilo que não se domina.
sam de tal maneira. Gostamos quando nos defrontamos com alguma P B : Para fazer ações ao mesmo tempo simbolicamente eficazes
coisa que nos ajuda a articular nossas ideias vagas e dá a elas uma e politicamente complexas, sem concessões, não seria preciso reunir
forma mais clara. Então, pregar para um convertido, como se diz, equipes nas quais haveria pesquisadores, artistas, gente de teatro e es-
não é de forma alguma perda de tempo. Isso é feito por boa parte pecialistas da comunicação (publicitários, gráficos, jornalistas etc.)
da publicidade e todos os candidatos às eleições, e com boas razões. e, assim, mobilizar uma força equivalente às forças simbólicas que se
Ao contrário dos simpatizantes, há pessoas que não estão de acor- trata de enfrentar?
do, incluídos aqueles que tentam suprimir minhas obras - há vários H H : Acho que o importante é que seja divertido. É preciso obter
exemplos espetaculares. As tentativas de censura ao menos demons- prazer, e é necessário que isso dê prazer ao públicol
tram que os censores pensam que a exposição das minhas obras
pode ter consequências. Entre estes dois extremos, há um público
que é curioso, mas que ainda não tem opiniões muito afiançadas. Ali EM BUSCA DO OBJETO T R A N S V E R S A L P
é onde encontramos pessoas dispostas a reexaminar suas posições
provisórias. Correspondem, grosso modo, ao público para o qual os Na confrontação com a sociedade, e com o que as ciências sociais
especialistas de marketing e das relações públicas apontam, encarre- revelam dela, a estética sobrevive não como u m campo norma-
gados de ampliar o mercado de um produto de opiniões. É também tivo, mas como u m âmbito aberto em que buscamos/ormasnâo
nesse setor vago que se situa uma boa parte da imprensa*.
7 Idem, p. 94
^- Idem, p. 111. "í
6. Idem, pp. 92-93-
44 A S O C I E D A D E S E M RELATO ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS
45

separadas radicalmente de todo tipo de função; representações como se organizam, com que operações a avaliam e a diferenciam
mais interessadas no conhecimento - inclusive do que não exis- de outras atividades. Isso implica simplificar a questão em alguma
te - do que na verdade; experiências despreocupadas por algum medida, uma vez que ela é trasladada da ontologia para a análise
tipo de transcendência e interessadas em abrir possibilidades em daqueles que, com regras e ohjetos próprios, produzem arte e que
u m mundo sem normas preestabelecidas. Mais do que uma esté- em diferentes culturas são chamados de artistas.
tica como disciplina, encontramos o estético como uma reflexão Ao analisar de que maneira se comportam aqueles que fazem
disseminada que trabalha sobre as práticas ainda denominadas arte, expõem-na, vendem-na, criticam-na ou a recebem, perce-
artísticas e que explora o desejo ou "a vontade de forma"'. Essa bemos que está ocorrendo algo mais que um giro linguistico ou
ênfase formal aparece em outras cenas: nos ambientes de traba- sociológico ou antropológico da arte. Estamos em meio de um.
lho e de consumo, na ciência e tecnologia, na organização e reno- N giro transdisciplinar, intermedial e globalizado que contribui para
vação do espaço urbano, nas mensagens e nas contramensagens ^ redefinir o que entendíamos por arte tanto no Ocidente moderno
que circulam em redes de comunicação de massa. como no Ocidente pré-glohal. A o mesmo tempo, as artes parti-
Podemos aprofundar a diferença entre estéticas filosóficas e cipam na redefinição das ciências sociais, as quais tamhém ques-
teorias da arte nutridas nas ciências sociais a propósito do objeto tionam sua própria identidade e encontram na arte não a solução,
de estudo. Não seria o mesmo que perguntar o que é arte, ou de a saída, mas, como dizia Maurice Merleau-Ponty sobre o marxis-
que estamos falando quando falamos de arte, ou, ainda, o que mo, um lugar para onde se vai "para aprender a pensar".
estamos fazendo quando dizemos que produzimos arte? Aque- Nós, artistas e cientistas sociais, estamos ligados pela incerte-
les que ainda buscam a essência ou uma definição universal da za: assim como o desmoronamento da metafísica e da crítica an-
arte se dirigem às estéticas filosóficas. Outros julgam que são os tropológica ao eurocentrismo desqualificaram a pergunta sobre o
discursos que definem o artístico: o impacto da semiótica e dos queéa arte e propuseram substitui-la pela interrogação quando há
visual and cultural studies levou a superestimar a conformação arte, a decomposição e as transações do capitalismo e da globali-
das práticas sociais a partir de relatos ou processos de significa- zação tiraram abruptamente as certezas que a economia, a antro-
ção; o sentido da arte teria que ser averiguado desconstruindo pologia e a sociologia tinham para definir seus ohjetos de estudo,
ou interpretando os modos em que eram nomeados. Segundo combinar as escalas da análise e os critérios para a pesquisa.
a terceira perspectiva, a antropológica, para definir a arte é ne- A arte ficou desenmoldurada porque, como veremos, as tenta-^
cessário observar o comportamento dos artistas e ficar atento a tivas de ordená-la sob uma normatividade estética ou uma teoria
como eles o representam. sobre a autonomia dos campos (Bourdieu) ou dos mundos (Be-
Estéticas filosóficas: o que é arte. Semiótica: o que a arte diz e cker) quase não funcionam. Tampouco os filósofos ou os cien-
de que estamos falando quando falamos de arte. Antropologia: o tistas sociais contam com conceitos epistemologicamente con-
que fazem aqueles que se chamam artistas. vincentes para prover os artistas, os políticos e os movimentos
De acordo com autores como Anthony Downey, James Clif- sociais de categorias de análises universalizáveis.
ford e Hal Foster, nos últimos anos prevalece a terceira corrente. Por que uma pintura é melhor do que outra? Por que se con-
Deu-se u m "giro etnográfico" no estudo da arte e na própria prá- servam e difundem certas obras nos museus? É possível esten-
tica dos artistas: diante da dificuldade de chegarmos a respostas <ier a noção de arte a sociedades não ocidentais e não modernas?
universalizantes, observamos o que fazem os que dizem fazer arte. Continuam tendo sentido, mesmo no Ocidente, as noções de arte
^ de estética? Os estudos históricos, antropológicos ou estéticos
9. Richard, Resíduosy Metáforas, 1998, p. 11. 1'eformularam-se no sentido de repensar a condição das artes em
A SOCIEDADE SEM RELATO
46 ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS 47

relação à situação - também indecisa - do patrimônio, dos artesa- tos neos, pós e discursos excêntricos, Hal Eoster escreveu que res-
natos, da midia, da organização das cidades e do turismo. As artes ta "uma melancolia" que "se distanciou de seu objeto perdido"'".
reconfiguram-se em uma interdependência com esses processos Ou será preciso reconhecer que agora os objetos são outros?
sociais, como parte de uma geopolítica cultural globalizada. Desprestigiadas as estéticas idealistas que declararam ar-
Pode-se falar de patrimónios culturais autênticos? É desejá- tísticos os ohjetos belos ou que suscitaram uma contemplação
vel que permaneçam intactos, sem serem usados? Tem sentido, desinteressada, sem fins práticos, quais seriam os objetos que
na atualidade, continuar opondo o patrimônio cultural ou os tra- justificariam a existência da disciplina estética, da arte como prá-
balhos artesanais como o campo do que deve ser conservado e a tica diferenciada e das instituições que as exibem e as valorizam?]
arte como conjunto de movimentos de criatividade e invenção? Muitos diretores de museus decidiram que os objetos já não são
A o caducarem certas indagações que haviam organizado as tão importantes e redesenharam as salas de exposição ou deslo-
disciplinas em territórios distintos - a história e a arqueologia se- caram a experiência estética para relações intersubjetivas alheias
paradas da sociologia da arte, a antropologia em departamentos à instrumentação mercantil (Bourriaud). Descobriram que os
desconectados dos sociólogos e outros especialistas na moder- novos públicos visitam museus não para ver obras excepcionais
nidade e na globalização - , descobrimos que as novas perguntas ou aprender uma lição sobre indígenas africanos ou rituais afro-
são transdisciplinares. Inúmeras pesquisas em escala mundial es- brasileiros que desconhecem, mas, sim, pela curiosidade que lhes
tão criando as condições para que os conhecimentos alcançados suscita u m programa de televisão, porque se preocupam com o
em cada ciência se refaçam em projetos sensíveis à complexidade desmatamento da Amazónia, ou então chegam pela primeira vez
transversal dos processos (Appadurai, Arturo Escobar, Hannerz, ao Louvre porque leram o Código da Vinci.
Lins Ribeiro, Renato Ortiz, Sennett). Trata-se de algo semelhante Os antropólogos duvidam que seu objeto de estudo possa
ao que está acontecendo com os artistas e os praticantes das mí- chamar-se cultura, os museólogos não conseguem expor esse "ob-
dias: interconectam estratégias criativas e comunicacionais. Nos jeto" que acumula centenas de definições, tantas como as de arte,
Estados Unidos, em Pequim, Tóquio, Barcelona ou Buenos Aires, e os especialistas em patrimônio reiniciam, a cada ano, a tarefa de
desde o fim do século x x , aqueles que administram museus, fa- justificar sua defesa e preservação. O principio segundo o qual a
zem curadorias de exposições ou atuam como artistas estudam noção de patrimônio agrupava "obras culturais de valor extraor-
antropologia, comunicação e economia para desenvolver estraté- dinário", como proclamam os documentos da Unesco, tornou-se
gias de marketing cultural. D o mesmo modo, leem livros e revis- insustentável. As tentativas dessa instituição de tirar seu progra-
tas, em papel ou eletrônicos, seguem blogs e cultivam redes sociais ma de patrimônio da humanidade" do beco sem saída fracassam
que transcendem o mundo da arte. ao tentar diferenciar taxativamente a arte, o patrimônio, o turis-
U m mundo acaba não só quando é preciso arquivar as res- mo e a midia.
postas, mas tamhém quando as perguntas que as originaram per- Alguns sociólogos rechaçam a ideia de que sua tarefa resida
dem sentido. em averiguar o que é a sociedade ou o que é um fato social, argu-
Levamos décadas tentando encontrar a pergunta pertinen- mentando que não existe uma estrutura de relações ou u m esta-
te para substituir aquela que indagava o que é arte. Não é fácil do de coisas estabilizado e com certa homogeneidade. Segundo
descartá-la tendo em vista que os funerais de despedida da arte runo Latour, eles já não procuram "modelos" macrossociais, ou
não impediram sua existência e renovação, nem que houvesse po- a descrição de grandes conjuntos ou grupos, e sim compreender
lémica em torno das ohras expostas em museus, galerias, ruas ou
desertos. C o m que palavras podemos substitui-la? Depois de tan- Foster, El Retorno de lo Real, 2001, p. 51
48 A SOCIEDADE SEM RELATO ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS 49

como OS atores se agrupam, em que processos formam redes, de- junto de relações sociais entre artistas, instituições, curadores,
pois as desfazem recompondo-as de outro modo, como articu- críticos, públicos e até empresas e dispositivos publicitários que
lam conexões diversas para conseguir seus fins. Latour redefiniu constroem o reconhecimento de certos ohjetos como artísticos.
0 sentido do social ao propor que se relessem como estratégias A troca da pergunta estética precisa se encarregar, ao mesmo tem-
sempre mutantes de atores-rede os agrupamentos cientificos ou po, de como vai se transformando a indagação pelo social.
políticos, os movimentos sociais e as estruturações e desestru- A partir da redefinição do artista como produtor (Benja-
turações dos espaços urbanos. Eu diria que esta nova visão do min e os construtivistas) trabalha-se considerando o processo
social se manifesta com maior eloquência nos estudos sobre jo- de produção-circulação-consumo. Recentemente, as modifica-
vens quando eles descrevem sua combinação flexível de recursos ções do pensamento económico conduzem a uma concepção
formais e informais para conseguir trabalho, quando apelam a não substancialista, na qual importa a valorização tanto material
instituições e redes não legais, conseguem roupas, discos e víde- como simbólica do ciclo económico. Para esta revisão contri-
os tanto em cinemas e lojas de marca como em mercados piratas, buem aqueles que definem o artista como etnógrafo ou antropó-
vendem e compram os mesmos produtos ou imitações que se logo, assim como o reposicionamento da arte no debate sobre a
confundem com "as verdadeiras"". Se os atores não generalizam identidade, a alteridade, a m u l t i e interculturalidade. A pesquisa
u m único tipo de comportamento, com que direito o pesquisador destes processos modifica a agenda da antropologia e de outras
social vai construir explicações megaestruturais, que abarcam o ciências sociais: admite-se que não se pode entender o socioe-
conjunto das práticas? Precisamos de instrumentos diferentes conómico sem o cultural, nem ao contrário; passa-se do estudo
dos que antes captavam a ordem e as classificações. de culturas locais e nacionais a processos de interculturalidade
Encontramos preocupações semelhantes às da estética pós- transnacional.
metafisica naqueles que deixaram de perguntar o que é u m fato Como expressão destas aproximações entre disciplinas artís-
económico ou o que é u m fato politicoíjAo se consolidar a posi- ticas e cientificas, multiplicam-se os livros escritos entre soció-
ção segundo a qual não tem sentido buscar a essência da arte, da logos da arte e filósofos, antropólogos e artistas, assim como os
cultura ou da sociedade porque o que denominamos com esses frequentes encontros entre uns e outros e sua colaboração em
termos é construído de maneiras distintas em cada pais ou época, exposições. Foucault pensou a partir de Borges e Velásquez. De-
1 a tarefa é formular marcos analíticos que permitam compreen- leuze escreveu sobre Proust, Kafka e Bacon. Derrida parte de Ar-
I der por que e como são construídos desse modo, de que maneira taud, Bataille e Blanchot. Bourdieu dedica-se a Flaubert e a Hans
funcionam ou falham; e como, entre esses processos, ocorrem Haacke. Nem sempre se trata de uma convergência amigável. O
interações inesperadas^ giro transdisciplinar da arte, da antropologia e da sociologia con-
Uma hipótese metodológica deste livro é que para produ- figura uma situação do saber na qual entram em conflito a análise
zir perguntas não metafísicas a pesquisa levada a cabo em cada sobre processos estéticos que realizam estas ciências com experi-
mentações desenvolvidas por artistas e com situações intercultu-
campo precisa se articular com as indagações dos outros campos.
rais de circulação e de recepção. Mudam também os modos pelos
Assim, na medida em que alguns filósofos e sociólogos, como
quais as obras e as experiências artísticas são reinterpretadas ou
Edelman, Goodman e Heinich, substituem a questão o que é a
arte por quando há arte, remetem-nos de imediato para o con- isciplinadas pelas instituições que as expõem.
Os projetos e as ohras dos artistas escolhidos nestas páginas
11. Reguillo, "Legitimidad(es) Divergentes", 2007; H o p e n h a y n , " I n c l u - vao além de confirmar a antiga ideia de que a arte é uma via de
sión y Exclusión Social en la Juventud Latinoamericana", 2008 onhecimento. A importância dada às obras e aos seus processos
50 A SOCIEDADE SEM RELATO ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS 51

de ressignificação leva em conta seu sentido parcialmente autó- A A R T E E N T R E AS MÍDIAS

nomo. Examinam-se as obras como parte de processos sociais e


mostra-se que, ao mesmo tempo, esse sentido não se esgota no Não basta falar do giro interdisciplinar da arte nem remodelar os
que a materialidade da obra diz. Também se trata de escutar o que projetos artísticos em conexão com as ciências sociais. Sabemos
essas procuras, mais do que as obras, declaram sobre determina- que hoje a prática da arte, seus formatos e sua comunicação se
das encruzilhadas da contemporaneidade. León Eerrari propõe modificam no momento em que os artistas plásticos interagem
uma "teoria" das cumplicidades entre religião e politica do terror com as tecnologias audiovisuais e digitais. Embora o cinema e a
ao associar o inferno cristão e os campos de concentração; Anto- televisão venham estimulando a reelaboração do trabalho artísti-
ni Muntadas e Santiago Sierra, por caminhos diversos, encenam co desde meados do século x x , o vasto desdobramento do vídeo,
criticas da tradução e dos acessos interculturais; Carlos Amorales das animações por computador, dos videogames e dos usos mul-
trabalha a representação do social através das interrupções. Por timidia dos telefones celulares fizeram explodir os limites prévios
que trazê-los a u m mesmo livro? Porque são modos de pensar os das artes visuais. Artistas jovens e outros que dedicaram décadas
paradoxos que nos desconcertam quando u m mundo acaba e ou- à pintura usam vários suportes e diversas técnicas em uma mes-
tro mal se inicia. ma obra (instalação ou vídeos que combinam fotografias fixas,
Estes artistas - alguns deles leitores habituais das ciências so- desenhos e ações visuais). Graphic novéis, quadrinhos e anima-
ciais - incitam perguntas sociológicas ou antropológicas. Mas tal- ções modificam as maneiras de fazer cinema {Watchmen, Valsa
vez seu interesse maior resida no fato de que aquilo que comporta com Bashir). Assim como se lê em papel ou em telas, e se escuta
conhecimento em suas obras exige modificar a noção de ciência música ao vivo, no rádio, na televisão e em iPods, as criações vi-
e os métodos com os quais procuramos conhecer. Estamos longe suais são ressignificadas em muitas instituições, cenas e redes de
da arte como caminho do saber oposto à racionalidade cientifica comunicação, como o YouTube.
ou como ilustração de ideias políticas ou filosóficas. Os artistas A etapa mais recente está representada pela web 2.0, onde
apresentam-se como pesquisadores e pensadores que desafiam, circulam tantas "criações" de artistas e de usuários - o que os
em seus trabalhos, os consensos antropológicos e filosóficos so- criadores iniciam e outros modificam - que as fronteiras entre
hre as ordens sociais, sobre as redes de comunicação ou os víncu- arte e não arte se "desdefinem". Todos os propósitos da arte de
los entre indivíduos e seus modos de se agrupar. diferentes épocas subordinam-se à tendência de ampliar a par-
Ao mesmo tempo em que procuro me ater a uma compreen- ticipação. Diz-se que uma rede é melhor quanto mais usuários
são interna das obras, postulo-as como experiências epistemo- incluir, quando incrementa sem cessar vídeos, fotografias e hlogs.
lógicas que renovam as formas de perguntar, traduzir e trabalhar Mais do que ohras, encontramos diálogos, expressões de desejos,
com o incompreensível ou o surpreendente. O fato de nenhum intercâmbios, compras, informação sobre o que os outros falaram
desses artistas oferecerem programas ou respostas doutrinárias ou compraram. Mais do que obras e espectadores, encontramos
ajuda a nos concentrarmos nos dilemas da interrogação. Sua fluxos que circulam através de objetos, pessoas e imagens. Aque-
liberdade, maior que a de u m cientista social, para dizer com les que provêem conteúdos não são só profissionais. Democra-
metáforas condensações e incertezas do sentido que não encon- hza-se a inovação; entramos em uma era de inovação aberta e
tramos como formular em conceitos leva a reconsiderar as arti- «nultidirecional. O uso abundante de noções vagas e imprecisas
culações entre estes dois modos de abarcar o que nos escapa no oomo multidão não ajuda a definir o caráter dos atores nem das
presente. interações na rede, nem encontramos ainda conceitos apropria-
i s para avaliar sociológica e esteticamente o que é criativo e ino-
52. A SOCIEDADE SEM RELATO ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS 51

vador nesta ecologia comunicacional. Mais oferta e mais acesso tes para avaliar ou organizar suas coleções, definindo o grau de
equivalem a mais participação? O YouTube, o MySpace ou o Fa- confidencialidade de seu perfil, como se faz no Facebook (www.
cebook melhoraram a criatividade e a qualidade, ou contrihuiram independent-collectors.com). Entre esta última rede que facilita
para repensar os critérios estéticos herdados da arte e dos meios a interconexão restringida a colecionadores e as que estendem o
audiovisuais? acesso sem limites, os mais diversos usos da web estão reconfigu-
Os novos hábitos gerados nos usuários da rede e as misturas rando a circulação das artes visuais, mas não em uma só direção.
de formatos e alianças entre produtores de conteúdos visuais, A reflexão mais radical sobre esses processos ocorre na cor-
textuais e software estão incidindo nos espaços da arte, desde os rente de historiadores e teóricos da arte que reformula o campo
museus até as bienais, as feiras e os sites especializados da internet. artístico como cultura visual, u m "campo interdisciplinar", objeto
Alteram-se neste processo os vínculos entre criação, espetáculo, dessa quase disciplina denominada "estudos visuais" (Bal, Bar-
entretenimento e participação; entre o que até poucos anos atrás riendos, Brea, Guasch, Mitchell, Moxey, entre outros). Alguns
se organizava sob as categorias de culto, popular e de massa; entre autores sustentam que as práticas separadas da pintura, da escul-
o local, o translocal e o global; entre autoria, reprodução e acesso; tura ou da gráfica (e a história da arte como organização disci-
entre elaboração simbólica e intensidade da estimulação sensual plinar de seu estudo) cederam lugar a uma história das imagens,
direta. O reposicionamento das artes que Walter Benjamin come- na qual aquilo que vínhamos chamando de arte perde qualquer
çou a antever a propósito da "reprodutibilidade mecânica" se tor- especificidade. O u se trata, antes, de u m reposicionamento no
nou complexo e se expandiu em u m tempo de intertextualidade conjunto de meios e linguagens visuais de práticas artísticas nas
eletrônica. Entre as remodelações da experiência, encontra-se o quais várias questões estéticas - experiências com o imaginário e
deslocamento para além da arte de u m registro exclusivamente 0 sensorial, valorização do formal - mudam de sentido? Mesmo
perceptual. Percorrer exposições implica ler muitos textos, escu- que optemos por uma ou outra posição, é evidente que a autono-
tar longos discursos em vídeos, atravessar instalações e expor-se a mia da arte e da estética é questionada ao ingressar em u m regime
impactos sonoros. As muralhas entre géneros, entre arte e publi- que organiza de outra maneira, nas palavras de Jacques Rancière,
cidade, entre jogo e reflexão, desmoronaram. modos de produção de ohras ou práticas, formas de visibilidade
Esta experiência intermidial se amplia ao percorrer os sites de tais práticas e modos de pensar suas relações, na medida em
da web. O que se conta neles? Mesmo quando predomina a i n - que se reconfiguram a sensibilidade comum e a politica.
formação dos emissores (e estes costumam ser coletivos), reú- O que ganhamos e o que perdemos ao declarar, como alguiòs^
nem não só listas de galerias, museus e bienais de todos os paí- estudos culturais e visuais, o fim das disciplinas? U m dos riscos
ses como também debates e diálogos, fotos, vídeos, entrevistas, e nos desinteressarmos pelos saberes e estratégias metodológicas
textos heterogéneos, anúncios comerciais ou não, análises de que continuam sendo úteis. O u esquecermos que a atual crise do
emoções (www.wefeelfine.org), encontros para ativismo (www. saber é, em parte, consequência de pesquisas sociológicas e antro-
critical-art.net, wvvw.yomango.net), calendários de feiras, festi- pológicas cuja autocrítica dos projetos históricos de cada ciência
vais, bienais e artigos sohre esses encontros (www.artfairsinter- 01 atingida transcendendo as normas fixadas pelos fundadores. '
national.com), como e onde comprar obras, como descarregar Assim como não é tão simples declarar que, em vista de suas
materiais catalogados e descatalogados (www.ubu.com). E cen- foelahorações, a história da arte, a estética ou a antropologia se
tenas e centenas mais, como as redes onde cibercolecionadores fi>rnaram obsoletas, não podemos proclamar a morte definitiva
de diversos continentes trocam informações e opiniões sobre o arte e de sua autonomia pelo simples fato de grande parte do
valor dos artistas, das novas figuras, ou encontram ideias diferen- que continua recebendo esse nome se mostrar além do designado
A SOCIEDADE SEM RELATO ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS SS
54

como seu campo próprio. Alguns analistas da arte e da literatura, os atores, não permite tirar conclusões tão rotundas como as de
em distintas latitudes, proclamam nos primeiros anos do século alguns teóricos da estética. O percurso por ateliês e exposições
X X I a passagem para uma etapa pós-autônoma de suas áreas de de artistas, por museus, galerias e bienais, a observação do que
trabalho. Victor Tupitsyn, em u m artigo intitulado "Post-auto- dizem a midia e os espectadores, tudo isso revela, como veremos,
nomous Art", apresenta sua posição, compartilhada por outros fortes mudanças nas condições de produção, circulação e recep-
artistas e historiadores russos (llya Kabakov e Margarita Tu- ção da arte: uma parte das transformações das práticas artísticas
pitsyn), de que a arte contemporânea deve ser analisada como ocorre quando elas abandonam as instituições especializadas.
u m "espetáculo global para turistas", devido ao fato de o espaço Por isso, a noção de campo autónomo não consegue abarcar o
do museu "ter sido completamente desintimizado" e os artistas, momento contemporâneo. Contudo, esse conjunto de observa-
ções mostra que as obras se fazem e se reproduzem em condições
junto com os diretores de museus, leilões e indústrias do entre-
variáveis, que os artistas, os críticos e os curadores atuam dentro
tenimento e da memória serem "homens de negócios interna-
ejora do mundo da arte. A pesquisa não pode impor-lhes nem as
cionais que oferecem serviços para milhões de japoneses, chi-
restrições de u m campo que eles já não aceitam murado, nem a
neses, australianos e outros que visitam os museus sem acreditar
dissolução em uma totalidade social em que já não se cultivariam
na arte, de modo semelhante a como visitam igrejas sem confiar
linguagens e práticas de comunicação diferentes. É legitimo falar
nessas religiões"'*.
de uma condição pós-autônoma em contraste com a independên-
A critica literária argentina Josefina Ludmer reuniu romances
cia alcançada pela arte na modernidade, mas não de uma etapa
'' • é escritos em que encontra duas operações que os afastam do que
que substituiria esse periodo moderno por algo radicalmente di-
se vinha entendendo por literatura: a) para essas escrituras "a reali-
ferente e oposto.
dade (caso se pense nela a partir da midia, que a constituiria cons-
tantemente) é ficção e a ficção é realidade", como se evidenciaria A reelaboração da teoria estética e da análise critica precisa
na mistura de relações referenciais ou de verossimilhança no tes- se encarregar das múltiplas pertenças e das localizações móveis
temunho, na autobiografia, na reportagem jornalistica, na crónica, de atores que exibem a arte ao mesmo tempo nos museus, na mi-
no diário intimo e até na etnografia; b) "todo o cultural é econó- dia, no ciberespaço e nas ruas. Esse processo mantém certo gosto
mico e todo o económico é cultural (e literário)", como se obser- pela forma tanto nos espaços "próprios" como em outras zonas
varia no fato de que as próprias empresas transnacionais igualam onde as imagens se fazem visíveis e as escrituras legíveis sob uma
a produção de livros, jornais e programas televisivos. Conclusão: normatividade heterônoma. A tarefa não é renunciar à diferença
vivemos em uma continuidade de "realidade-ficção" onde mesmo de certos "criadores" e "obras", mas perceber como seus autores
as obras que aparecem como literatura não podem ser lidas com entram em conflito e negociam seu sentido nos intercâmbios
critérios literários, como autor, estilo, texto e sentido". com as indústrias culturais ou em meio ao pragmatismo social.
Talvez tudo fosse mais simples se tivéssemos transitado da Atualmente, existem mais motivos para duvidar da possibilidade
autonomia da arte e da literatura para u m periodo no qual am- 5 arte do que quando Mallarmé se perguntava sohre o livro ou
bos se dissolvessem no fluxo generalizado das imagens e das es- os construtivistas indagavam sobre como se inserir no design grá-
crituras. Adotar a posição da antropologia, ou seja, a descrição co e no design de ohjetos cotidianos. Desde então, somaram-se
e a compreensão dos processos a partir do que fazem e dizem cacassos ao procurar-se lugar para a poesia na prosa do mundo,
"las, ao observar e escutar os artistas hoje, parece que para muitos
^^aspiração estética não consiste em conseguir uma integração
12. Tupitsyn, Post-autonomous Art", 2004, p. 273.
13. Ludmer, "Literaturas Postautónomas", 2009. iz e sim em manter viva a interrogação sobre sua contingência.
A SOCIEDADE SEM RELATO ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS 55
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como seu campo próprio. Alguns analistas da arte e da literatura, os atores, não permite tirar conclusões tão rotundas como as de
em distintas latitudes, proclamam nos primeiros anos do século alguns teóricos da estética. O percurso por ateliês e exposições
X X I a passagem para uma etapa pós-autônoma de suas áreas de de artistas, por museus, galerias e bienais, a observação do que
trabalho. Victor Tupitsyn, em u m artigo intitulado "Post-auto- dizem a midia e os espectadores, tudo isso revela, como veremos,
nomous Art", apresenta sua posição, compartilhada por outros fortes mudanças nas condições de produção, circulação e recep-
artistas e historiadores russos (llya Kabakov e Margarita Tu- ção da arte: uma parte das transformações das práticas artísticas
pitsyn), de que a arte contemporânea deve ser analisada como ocorre quando elas abandonam as instituições especializadas.
u m "espetáculo global para turistas", devido ao fato de o espaço Por isso, a noção de campo autónomo não consegue abarcar o
do museu "ter sido completamente desintimizado" e os artistas, momento contemporâneo. Contudo, esse conjunto de observa-
ções mostra que as obras se fazem e se reproduzem em condições
junto com os diretores de museus, leilões e indústrias do entre-
variáveis, que os artistas, os críticos e os curadores atuam dentro
tenimento e da memória serem "homens de negócios interna-
ejora do mundo da arte. A pesquisa não pode impor-lhes nem as
cionais que oferecem serviços para milhões de japoneses, chi-
restrições de u m campo que eles já não aceitam murado, nem a
neses, australianos e outros que visitam os museus sem acreditar
dissolução em uma totalidade social em que já não se cultivariam
na arte, de modo semelhante a como visitam igrejas sem confiar
linguagens e práticas de comunicação diferentes. É legitimo falar
nessas religiões"'*.
de uma condição pós-autônoma em contraste com a independên-
A critica literária argentina Josefina Ludmer reuniu romances
cia alcançada pela arte na modernidade, mas não de uma etapa
• é escritos em que encontra duas operações que os afastam do que
que substituiria esse período moderno por algo radicalmente di-
se vinha entendendo por literatura: a) para essas escrituras "a reali-
ferente e oposto.
dade (caso se pense nela a partir da midia, que a constituiria cons-
tantemente) é ficção e a ficção é realidade", como se evidenciaria A reelaboração da teoria estética e da análise critica precisa
na mistura de relações referenciais ou de verossimilhança no tes- se encarregar das múltiplas pertenças e das localizações móveis
temunho, na autobiografia, na reportagem jornalistica, na crónica, de atores que exibem a arte ao mesmo tempo nos museus, na mi-
no diário intimo e até na etnografia; b) "todo o cultural é econó- dia, no ciberespaço e nas ruas. Esse processo mantém certo gosto
mico e todo o económico é cultural (e literário)", como se obser- pela forma tanto nos espaços "próprios" como em outras zonas
varia no fato de que as próprias empresas transnacionais igualam onde as imagens se fazem visíveis e as escrituras legíveis sob uma
a produção de livros, jornais e programas televisivos. Conclusão: normatividade heterônoma. A tarefa não é renunciar à diferença
vivemos em uma continuidade de "realidade-ficção", onde mesmo de certos "criadores" e "obras" mas perceber como seus autores
as obras que aparecem como literatura não podem ser lidas com entram em conflito e negociam seu sentido nos intercâmbios
critérios literários, como autor, estilo, texto e sentido". com as indústrias culturais ou em meio ao pragmatismo social.
Talvez tudo fosse mais simples se tivéssemos transitado da Atualmente, existem mais motivos para duvidar da possibilidade
autonomia da arte e da literatura para u m periodo no qual am- 3 arte do que quando Mallarmé se perguntava sohre o livro ou
bos se dissolvessem no fluxo generalizado das imagens e das es- os construtivistas indagavam sobre como se inserir no design grá-
crituras. Adotar a posição da antropologia, ou seja, a descrição co e no design de ohjetos cotidianos. Desde então, somaram-se
e a compreensão dos processos a partir do que fazem e dizem cacassos ao procurar-se lugar para a poesia na prosa do mundo,
"las, ao observar e escutar os artistas hoje, parece que para muitos
^^aspiração estética não consiste em conseguir uma integração
12. Tupitsyn, Post-autonomous Art", 2004, p. 273.
13. Ludmer, "Literaturas Postautónomas", 2009. 'z e sim em manter viva a interrogação sobre sua contingência.
A SOCIEDADE SEM RELATO ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS
56 57

Não há relato que conjure esta tensão. Mais ainda: a arte parece campos ocupando-se da explosão gerada pelas produçõe£.ç_ultu,-
existir enquanto a tensão fica irresoluta. rais "ilegítimas" - a revista Actes de la Recherche, dirigida por ele,
onde publicou seu famoso texto sobre os campos da alta costura e
da alta cultura, incluiu muitos artigos sobre outros territórios do
o a U E o CAMPO ARTÍSTICO NÃO E X P L I C A DA A R T E gosto, como o esporte, o corpo e a publicidade.).
Uma terceira critica à sociologia da arte e da literatura proposta
Uma das criticas dirigidas a Bourdieu é o fato de ele ter esten- por Bourdieu diz respeito a seus limites em relação à inovação. Os
dido demais a noção de campo e ter postulado que existem lógicas sociólogos analisam como se organizam artistas que já possuem
plenamente autónomas na gestão da saúde, da moradia, da moda, uma obra, ou os escritores que já publicaram. Mostram, a posterio-
do esporte e de outras áreas da vida social. Devemos reconhecer, ri, como se formou u m cânone e uma comunidade de especialistas
no entanto, que ele mostrou a importância de que nas sociedades que o estruturou e o defende, ou seus adversários que o renovam.
modernas as atividades humanas se organizem segundo a dinâ- Mas o que fazer com o papel criativo dos indivíduos? O marxis-
mica própria de suas tarefas mais do que por obediência a pres- mo, escrevera Sartre na Crítica da Razão Dialética, pode explicar
crições religiosas ou ordens politicas. O desenvolvimento da arte, por que Valéry era um escritor pequeno-burguês, mas não por que
da literatura, da medicina e de qualquer disciplina seria alcançado todos os intelectuais pequeno-hurgueses não são Valéry. A socio-
atendo-se à lógica própria de sua prática: pintar, escrever roman- logia contribui para entender a maneira pela qual a cooperação e
ces, encontrar a origem das doenças e curá-las. a concorrência entre muitos atores modela a arte e a literatura de
Outra critica, mais recente, à obra de Bourdieu questiona se uma época, inclusive a lógica das vanguardas rebeldes. N o entanto,
a arte e a literatura funcionam agora estruturadas em campos au- há algo desse fenómeno que cada época chama de arte que não é
tónomos. Os escritores decidem a maneira pela qual compõem captado pelo olhar sociológico: os fatos estéticos não se esgotam
suas ohras somente a partir de critérios editoriais e de acordo em tomadas de posição dos artistas e em estratégias de distinção
com as expectativas dos leitores ou, antes, uns e outros depen- dos compradores e dos públicos.
dem daqueles que investem nas editoras os fundos que sobram de A documentação do material para uma revisão sobre a inter-
seus negócios petrolíferos ou bancários? O destino ressonante ou midialidade da arte e a coparticipação de artistas, membros do
frustrado de u m romance ou de uma performance seria elaborado campo artístico e outros agentes sociais e midiáticos leva déca-
em uma relação estética entre os escritores e os artistas com seus das. Vejamos como foi gerida a valorização de Frida Kahlo em
públicos, com a mediação de instituições especializadas, ou seria exposições associadas a operações multimidia durante 2007, ano
um efeito da publicidade ou de prémios outorgados em sintonia em que se celebrou o centenário de seu nascimento.
com pesquisas mercadológicas, ou ainda da virtual capacidade de A principal revisão da obra de Frida Kahlo aconteceu na ex-
u m romance se transformar em roteiro de u m filme? Hoje, a so- posição entre junho e agosto de 2007 no Museu do Palácio de Be-
ciologia da arte e da literatura analisa, além da articulação interna as Artes, da cidade do México, com 354 peças que incluíam qua-
dos campos artísticos, suas alianças com mercados e modas, cujos ros, fotos, cartas e documentos. Recebeu, em dois meses, 4 4 0
objetivos são alheios à lógica própria das criações. (Cabe reconhe- niil visitantes, e depois viajou para o Museu da Filadélfia e para o
cer, seguindo a observação de Nathalie Heinich"*, que - ainda que e Arte Moderna de São Francisco, para o Japão e para a Espanha.
Bourdieu não tenha reformulado sua teoria da autonomia dos Como acontece com outros artistas, as obras de Frida ne-
cessitam ser contextualizadas. Os curadores decidiram exibir,
14. Heinich, Pourquoi Bourdieu, 2007. lunto com suas pinturas, suas cartas e performances públicas, os
A SOCIEDADE SEM RELATO
58 ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS 59

documentos nos quais figuram amantes, amigos, personagens


Se, como demonstram os estudos sobre visitantes de mu-
de seus quadros ou que promoveram suas exposições: Diego
seus'*, a figura artística de Frida está imbricada com o discurso
Rivera, Trotski, Henry Ford, Nelson Rockfeller e André Bre-
pós-revolucionário, feminista e com o sentido sacrificai de uma
ton. A midia mostrou seus vestidos comentando sua opção por parte das vanguardas; se ela própria elaborou seu personagem para
modistas de primeira linha, assim como a compra via telefone ser a intersecção entre esses relatos do século x x (por exemplo, ao
de sua obra Raíces pela soma mais elevada obtida por uma peça modificar sua data de nascimento de 1907 para 1910, para coincidir
latino-americana - 5,6 milhões de dólares - , durante o leilão da com o inicio da Revolução Mexicana), não parece razoável pres-
Sothehy's de Nova York, em maio de 2 0 0 6 . Como deslindar as cindir dos contextos para compreender o significado cultural de
reinterpretações de seu trabalho propostas nas galerias da Tate seu trabalho e a possibilidade de ter acesso a ele.
Modern das exibidas nas vitrines de lojas londrinas, ou dos livros
No entanto, a narrativa biográfica e suas condições de produ-
de pesquisa sobre ela e do filme com o qual a atriz Salma Hayek,
ção e inserção sociocultural não conseguem responder o porquê
ao representá-la, foi indicada ao Oscar em 2 0 0 2 ? de sua pintura e o que podemos ler em sua obra. Houve outras
Favorece ou prejudica a obra de Frida Kahlo lembrar sua mi- mulheres que estiveram perto de Diego Rivera (Lupe Marin),
litância comunista, sua inquietante relação entre a dor e o prazer, que foram artistas e belas (Nahui Ollin), que pintaram tragica-
a multiplicação de sua imagem em números que lhe dedicaram a mente seus corpos e foram amantes de artistas famosos (Maria
Elie, a Harpers e outras revistas para criar o "look Frida", ou seu fe- Izquierdo em relação a Rufino Tamayo), mas não realizaram a
minismo adotado em diferentes versões por mexicanas, chicanas'^ obra de Frida.
e europeias? Não é fácil traçar a fronteira entre tequilas, óculos,
Não é inútil conhecer o contexto de uma obra e os m o d õ P
perfumes, ténis e corseletes italianos que levam o nome de Frida
pelos quais u m artista construiu socialmente seu lugar. Contu-
e de seus quadros, se entre eles figura o corselete que ela pintou
do, permanece a pergunta sobre a razão de ser Frida e não outra
estampando a foice e o martelo.
pessoa que pintou Mi Nana y Yo, La Venadita, ou Raíces. As r e s - U
Os sociólogos haviam desprezado as noções de criação ex-
postas centradas nos acidentes e nas doenças, no narcisismo dos
cepcional e de artistas geniais. E a estética moderna havia pedido
insistentes autorretratos, nos amores e na militância, mostram-
que nos centrássemos nas obras. Mas agora aparecem nos meios
se insuficientes. É o momento no qual se detêm as explicações
de comunicação de massa relatos que exaltam a excepcionalidade
mediante condicionamentos históricos e industrialização das
dos criadores e a relacionam com suas biografias de sofredores ou
imagens: para avançar devemos nos confrontar com o trabalho
malditos. Por meio de entrevistas com artistas, invenções sobre
^enigmático que por ora continuamos chamando de arte.È omõ\
sua vida pessoal ou sobre o "angustioso" trabalho preparatório de
i mento no qual retornamos da sociologia da arte para a e s t é t i c a , ^
uma obra pictórica, as revistas e a televisão mantêm vigentes os
Fica claro que a primeira dificuldade é estabelecer qual no- \
argumentos românticos do criador solitário e incompreendido,
Ção de arte ou de experiência estética deve ser escolhida, e por
da obra que exalta os valores do espirito em oposição ao mate-
que empregar uma específica entre as centenas existentes. Em
rialismo generalizado. O discurso estético idealista, que deixou
vista da proliferação de definições e de dissidências, não have- \
de servir para representar o processo criador, recicla-se como re-
na outra conclusão a não ser nos desligarmos de qualquer teoria V
curso complementar destinado a "garantir" a verossimilhança da
Universalmente válida e nos resignarmos, com relativismo antro-
experiência artística no momento do consumo.

Garcia Canclini, " U n a Pasión L l a m a d a Frida Kahlo", 2007; " F r i d a y Ia


15. Mexicano (a) (ou seu descendente) que vive nos Estados Unidos.
industrialización de la C u l t u r a " 2007. : i .'i; v. n „ ,
ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS 61
6o A SOCIEDADE SEM RELATO

ges- "estes dados sugerem que a muralha no espaço e o incêndio


pológico, a nomear como arte aquilo que fazem aqueles que se
no tempo foram barreiras mágicas destinadas a deter a morte";
chamam ou são chamados de artistas?
"talvez o imperador e seus magos acreditassem que a mortalidade
fosse intrínseca e que ela não poderia entrar em u m orbe fecha-
do". Também destacou que aqueles que esconderam livros foram
O P O D E R DA IMINÊNCIA
marcados com u m ferro incandescente e condenados a construir,
até o dia de sua morte, a desaforada muralha: talvez, pensa Bor-
Autodenominam-se ou são chamados de artistas? Costuma-
ges, "a muralha tenha sido uma metáfora, talvez Shih Huang T i
se responder a esta pergunta examinando as convenções estabe-
tenha condenado aqueles que adoravam o passado a uma obra
lecidas socialmente e as negociações entre programas institu-
tão vasta como o passado, tão torpe e tão inútil". Algumas formas
cionais e projetos criadores. Como decidir, nesse jogo pendular,
remetem a outras, e o que menos importa é o "conteúdo" que
quando se reúnem ou se perdem os requisitos para que algo seja
usam em cada ocasião.
avaliado como arte? Continuamos no circulo sem saida entre o
Do que fala essa correspondência entre formas? Como seu
que pretende ser arte e a sociologia que desmascara cada resposta
conteúdo não é decisivo, conclui Borges, o que importa é o que
como eco de condicionamentos preexistentes.
insinuam sem chegar a nomear: "A música, os estados de felicida-
Há outro caminho, talvez, que não consiste em dar razão aos
de, a mitologia, as caras trabalhadas pelo tempo, certos crepúscu-
argumentos estéticos nem às explicações sociológicas. Tenho em
los e certos lugares, querem nos dizer alguma coisa, ou disseram
mente artistas e escritores segundo os quais seu trabalho consis-
algo que não deveríamos ter perdido, ou estão por dizer alguma
tiria em fazer alguma coisa que não sabem bem o que é. Explore-
coisa; esta iminência de uma revelação que não se produz talvez
mos se, a partir de suas afirmações perplexas, podemos entender
seja o fato estético"''.
o que significa fazer ciência sohre a arte (ou sobre qualquer obje-
Ser escritor ou artista, portanto, não seria aprender u m oficio
to social) e o que significa fazer sociedade.
codificado, cumprir requisitos fixados por um cânone e assim per-
U m dos escritores que mais claramente expressou a experiên-
tencer a u m campo onde se conseguem efeitos que se justificam
cia do que não podia apreender foi Borges. Em "A Muralha e os
por si mesmos, tampouco seria pactuar a partir desse campo com
Livros", indagou-se sobre a coincidência de que o homem que
outras práticas - políticas, publicitárias, institucionais - que da-
ordenou a edificação da quase infinita muralha chinesa fosse o
riam repercussão aos jogos estéticos. A literatura e a arte dão res-1
mesmo que determinou que se queimassem todos os livros an-
sonância a vozes que procedem de diversos lugares da sociedade ''
teriores a ele. Borges sustentou que as duas decisões não consti-
e as escutam de modos diferentes de outros, fazem com elas algo
tuiam nenhum mistério para os historiadores: o imperador Shih
distinto dos discursos políticos, sociológicos ou religiosos. O que
Huang T i , que submeteu ao seu poder os seis reinos, suprimiu
devem fazer para transformá-las em literatura ou arte? Ninguém
o sistema feudal, erigiu a muralha para se defender e queimou
sabe de antemão. Diz Ricardo Piglia: "um escritor escreve para sa-
os livros porque a oposição os invocava para elogiar os antigos
ber o que é a literatura"".
imperadores. Borges propôs não ler só os acontecimentos, mas
Talvez sua especificidade resida nesse modo de dizer que
as metáforas. Chamou sua atenção o fato de que o mesmo impe-
•lao chega a se pronunciar plenamente, nessa iminência de uma
rador que construiu a muralha e queimou os livros tenha proi-
bido que se mencionasse a morte, tenha procurado o elixir da
»7 Borges, " L a M u r a l l a y los Libres", 1994, p. 13. . ; ;
imortalidade e se tornado recluso em u m palácio figurativo, que
' • Piglia, Crítica yFicdón, 2001, p. 11 ,,
constava de tantos cómodos como de dias no ano; conclui Bor-
62 A SOCIEDADE SEM RELATO
ESTÉTICA E CIÊNCIAS SOCIAIS 63

revelação. Encontro u m antecedente desta postura na frase es-


niento habitual dos signos para "segregar uma significação nova".
crita por Walter Benjamin quinze anos antes de Borges, em 1935,
Não estabelece u m sentido radicalmente distinto, consolidado,
ao definir a aura da arte como "a manifestação irrepetível de uma
mas uma "iminência de começo do mundo"*'.
distância"". i-
O livro ou o quadro, como ohjetos acabados, dão a essa pro-
Urgem dois esclarecimentos: este falar no lugar da iminência
cura a aparência de descobrimento excepcional e rotundo. Mas o
não coloca o artista como u m ser de exceção nem atribui à obra
autor de Signos lembra a cámera lenta que registrou o trabalho de
um caráter único. A palavra que incomoda hoje na linda frase de
Matisse: o pincel que à primeira vista saltava de u m ato para outro
Benjamin é irrepetível, com a qual ele aludia ao sentido singular
parecia meditar, "tentar dez movimentos possíveis, dançar diante
de cada obra artística que estaria se evaporando ao se reproduzir
da tela, tocá-la várias vezes e por fim cair [...] com o único traço
mecanicamente, como nas fotos e no cinema. Já no inicio dos
necessário". O que essa filmagem revela? Que o pintor não era
anos de 1990, José Luis Brea continuava encontrando aura na
"como o Deus de Leihiniz" u m demiurgo resolvendo u m imenso
arte contemporânea e dizia que, mais do que o seu desapareci-
problema de mínimos e máximos, nem tampouco alguém que
mento, assistimos a u m esfriamento. Em u m estudo mais recente,
simplesmente vai buscar u m martelo para afundar u m prego. A
Juan Antonio Ramirez documentou a persistência de uma busca
mão de Matisse vacilou entre as vinte condições dispersas no
do resplendor ou do mistério aurático mediante outros proce-
quadro, como o escritor diante da palavra antes de pronunciá-la,
dimentos, não só nas estéticas museográficas ou de restauração
diante do "fundo de silêncio que não deixa de rodeá-la, sem o qual
ideológica, mas também em explorações inovadoras com as ima-
ela não diria nada, ou inclusive desnudar os fios de silêncio com
gens, de Beuys a Pistoletto, de Mariko M o r i a Francese Torres e
os quais se mistura". Assim, "acrescenta uma nova dimensão a este
a Ana Mendieta. A obra de arte reaquece sua aura "na época do
mundo seguro demais de si fazendo vibrar ali a contingência"**.
original multiplicado"**.
Iminência, contingência, manifestação de uma distância:
Maurice Merleau-Ponty, que soube articular como poucos o
junto a esta linha estética observamos, no que fazem ou dizem
saber da linguistica e o dos artistas, dizia que estes não fazem mais
fazer aqueles que se autodenominam artistas, a valorização reite-
do que se especializar no "uso criador" da linguagem, mas compar-
rada do predomínio da forma sohre a função. Às vezes, ambas as
tilhando sua interdependência com o "uso empírico", como de fato
correntes se associam, como quando o trabalho formal sem efi-
fazemos todos. O uso empírico é "a lembrança oportuna de um
ciência pragmática apresenta os fatos artísticos como a iminência
signo preestabelecido", ou, nas palavras de Mallarmé, "a peça gasta
de algo que não chega a acontecer. Em outros casos, vemos que
que coloca minha mão em silêncio" quando preciso me comuni-
a arte/az, tem uma função embora de outra ordem que nos atos
car. O pintor ou o escritor também utilizam as estruturas conven-
sociais comuns. É u m modo de fazer que deixa algo não resolvido.
cionais da linguagem, "a massa de relações de signos estabelecidos
Tratou-se de conjurar várias vezes esta ambivalência do saber
que possibilitam a compreensão entre o autor e o leitor da obra".
entre o rigor da ciência e as instituições dos artistas, entre con-
Contudo levam essa "linguagem falada", como faz qualquer um
ceitos e metáforas. A epistemologia, desde o positivismo até o
que deseja que a linguagem seja "falante", para u m momento cria-
construtivismo, procurou delimitar o cientifico para diferenciá-lo
dor. O escritor que procura interpelar o leitor transfigura o ordena-
outros territórios. Assim, os discursos logicamente sustentá-
cis e expostos em formato académico se separaram dos ensaios
19. Benjamin, " L a O b r a de Arte en la É p o c a de su Reproductibilidad Téc-
nica", 1973, p. 24.
2!' ÍI"'^*"-Ponty- Signes, 1960, pp. 20 e 57.
20. Ramirez, El Objeto y el Aura, 2009, p. 190.
^- ^'*«'",pp. 58663.
64 A SOCIEDADE SEM RELATO

que aproveitam a potencialidade multivoca das metáforas. O s


trabalhos interdisciplinares e interculturais nos situam em uma
w
época mais fecunda para reexaminar o que entendemos por sa-
ber: como reunir o rigor dos conceitos com outros modos de ex-
plicação, compreensão e expressão. Estas páginas indisciplinadas
tentam, em parte, transcender os muros académicos e as moldu- 2. CULTURAS VISUAIS
ras das obras artísticas, discutindo êxitos e desacertos de Pier- E n t r e a A r t e e o Patrimônio
re Bourdieu, Nathalie H e i n i c h e Jacques Rancière como estetas
(enquanto em seus exercícios filosóficos, sociológicos e antropo-
lógicos subjazem estéticas), ou os de Jorge L u i s Borges, Erancis
Alys, A n t o n i Muntadas, L e ó n Ferrari, ou Carlos Amorales não
só por sua criatividade artística, mas também pela filosofia ou a
antropologia que insinuam: Gabriel Orozco concebe seus ateliês-
oficina, situados e m diferentes paises, como móveis "plataformas
para pensar".
E por isso que confluem, em cada capitulo deste livro, pesqui-
sas e debates feitos por cientistas sociais e filósofos nas fronteiras
desestabilizadas de suas disciplinas e, ao mesmo tempo, obras dos
artistas, sua recepção e os modos pelos quais se incorporam às
tramas sociais, culturais e até epistemológicas. A s ohras artísticas
não aparecem como ilustrações de pensamentos, mas para obser-
var seus dispositivos conceituais e formais que m u d a m os mo-
dos de tornar visíveis as perguntas. Nas propostas teóricas e nos
resultados de pesquisas, mais que fundamentos ou conclusões,
experimentamos caminhos e enigmas do saber.

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