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O laboratório de Gramsci

Filosofia, História e Política


O laboratório de Gramsci
Filosofia, História e Política

Alvaro Bianchi

Buscar a real identidade na aparente diferença e
contradição, e procurar a substancial diversida-
de sob a aparente identidade é a mais delicada,
incompreendida e, contudo, essencial virtude do
crítico das idéias e do historiador do desenvolvi-
mento histórico.
” (Q 24, § 3, p. 2268.)
S umário

Prefácio 09

Advertência 11

Introdução 13

Eterno/Provisório 21
Espaços 35
Tempos 47

Materialismo/Idealismo 55
Anti-Bukharin 66
Anti-Croce 95

Estrutura/Superestrutura 121
Política 143
Relações 158

Estado/Sociedade civil 173


Bobbio 178
Maquiavel 187
Guerra de movimento/Guerra de posição 199
Oriente 209
Trotsky 216

Revolução/Restauração 253
Gioberti 276
Fascismo 286

Conclusão 297

Referências Bibliográficas 303


Prefácio

O livro de Alvaro Bianchi, O laboratório de Gramsci, tem início com


uma tentativa de resposta a por que alguns autores chegam a tomar parte do
senso comum, independentemente da complexidade de sua obra. Também
Gramsci, decênios depois de sua primeira aparição editorial é objeto per se
de análises, bem como é “utilizado” e estudado como chave de compreensão
da época atual.
Nesse sentido, Bianchi passa em revista as aventuras da difusão do
pensamento gramsciano através das diversas interpretações às quais deu lugar
sua internacionalização e tenta, ao mesmo tempo, uma leitura “genética” dos
Cadernos do cárcere, por meio de suas fontes. Com isso, atinge uma correta
contextualização dos textos, que lhe permite uma reconstrução rigorosamente
apegada a eles – o que, por sua vez, o conduz a apreciar a relação entre filosofia,
política e história característica da obra gramsciana.
Uma importante novidade para a literatura gramsciana na América
Latina (e não apenas) é a exposição sintética, mas essencial, dos autores com os
quais Gramsci “discute” (Croce, Gioberti, etc.). Com isso se preenche um vazio
e se satisfaz uma necessidade imperiosa principalmente dos jovens estudiosos
que ignoram quase todos esses autores, que são, entretanto, em seu conjunto,
a fonte bibliográfica dos Cadernos. Em suas próprias palavras, o autor faz uma
revisão crítica dos textos dos Cadernos, levando em conta o ritmo de sua elabora-
ção. Contribui assim a uma compreensão mais clara de seu conteúdo, chegando
a ocupar um importante lugar na literatura gramsciana em geral, e não apenas
na latino-americana.
De sua metodologia, são exemplos os títulos dos capítulos, que dão
uma idéia do trabalho minucioso que o autor levará a cabo, trabalho que com
justa razão pode ser considerado uma contribuição siginificativa ao estudo do
pensamento gramsciano, inesgotável pelo fato de que, como diz Alvaro Bianchi

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ao início de seu livro, constitui parte do senso comum contêmporâneo. A isso


deveria se acrescentar, por último, a extensa bibliografia, atualizada com muito
cuidado e que muito contribuirá para facilitar o estudo de Gramsci.

Dora Kanoussi
Pesquisadora do Instituto de Ciencias Sociales y Humani-
dades da Benemérita Universidad Autônoma de Puebla (México) e
membro do comitê coordenador da International Gramsci Society
Advertência

As obras mais citadas ao longo do texto serão referidas de acordo com


as siglas abaixo. Para facilitar a leitura e a comparação entre diferentes edições,
citamos os Quaderni del carcere sempre a partir de sua edição crítica (cf. abaixo
Q) adotando a seguinte nomenclatura: Q xx, § yy, p. zz, onde Q indica a edição
crítica, xx o número do caderno, yy o parágrafo e zz a página).

cc Gramsci, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1999 ss, 6v.
cf Gramsci, Antonio. La città futura: 1917-1918: a cura di Sergio Ca-
prioglio. Turim: Einaudi, 1982.
cpc Gramsci, Antonio. La costruzione del Partito Comunista 1923-1926.
Turim: Einaudi, 1978.
ct Gramsci, Antonio. Cronache Torinesi: 1913-1917: a cura di Sergio
Caprioglio. Turim: Einaudi, 1980.
l Gramsci, Antonio. Lettere 1908-1926: a cura de Antonio A. San-
tucci. Turim: Einaudi, 1992.
lc Gramsci, Antonio. Lettere dal carcere: a cura di Segio Caprioglio e
Elsa Fubini. Turim: Einaudi, 1973.
lcw Lênin, Vladimir Ilitch. Collected works. 4 ed. Moscou: Progress,
1960 ss.
mecw Marx, Karl e Engels, Friedrich. Collected works. Nova York: Inter-
national Publisher, 1976ss.
nm Gramsci, Antonio. Il nostro Marx: 1918-1919: a cura di Sergio Ca-
prioglio. Turim: Einaudi, 1984.
q Gramsci, Antonio. Quaderni del carcere: edizione critica dell’Istituto
Gramsci. A cura di Valentino Gerratana. Turim: Einaudi, 1977.

11
sf Gramsci, Antonio. Socialismo e fascismo: L’Ordine Nuovo (1921-
1922). Turim: Einaudi, 1966.
Introdução

É difícil compreender as razões que levam alguns autores a se tornarem


parte de certo ambiente intelectual. Há, evidentemente, aqueles que com talento
midiático compensam a carência de idéias originais e se transformam em best-sel-
lers. Esses são lidos e comentados. Suas platitudes alimentam conversas informais
e até mesmo alguns artigos. Mas não é a esses autores que é aqui feita referência, e
sim àqueles que conformam um senso comum intelectual ou acadêmico.
Por que Habermas e Bourdieu são tão citados, por exemplo? Prova-
velmente não é devido ao estilo literário desses autores. Eles não possuem uma
prosa fácil, daquelas apropriadas a uma obra de divulgação, acessível a um grande
público. A argumentação deles não é simples e a teoria que apresentam é densa e
complexa o bastante para afastar aqueles “desocupados leitores” aos quais Miguel
de Cervantes dirigia as palavras iniciais de seu Don Quixote de la Mancha.
E, no entanto, conceitos complexos como “esfera pública” ou “habitus” sa-
íram das páginas de seus livros e se transformam em moeda corrente no intercâmbio
intelectual, inundando, primeiro, as revistas acadêmicas especializadas e, depois, as
páginas dos suplementos culturais de jornais e revistas de grande circulação. Nessa
jusante, muito da teoria se detém nos acidentes que margeiam o córrego, e aquilo
que deságua no senso comum está longe de satisfazer os requisitos de rigor e preci-
são que haviam sido atendidos pelos autores originais. Nesse processo, os conceitos
deixam de expressar uma realidade complexa e multifacetada, adquirindo o status de
slogans teóricos, marcas de distinção do bem pensar e bem falar.
Esse percurso é surpreendente, devido à dificuldade que é própria da
obra desses autores. Pouco ou nada há nelas que permitiria antever esse destino.
Após a leitura de seus artigos e livros, uma confissão poderia ser ouvida em meio
a um consternado suspiro: como é difícil a teoria. E, no entanto, o destino da
obra, sua recepção, parece ir contra a intenção de seus autores e do que suas
obras tinham a dizer. Sim, porque se suas idéias e conceitos, seus livros e artigos,

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são lidos e relidos, aguardados e guardados, não é devido a um mal entendido ou


a uma operação midiática, e sim porque sempre tiveram algo a nos dizer, muito
embora esse algo nem sempre seja igual ao que se espera ouvir ou ler.
Destino similar parece ter tido a obra de Antonio Gramsci. Com uma
parte composta por artigos publicados na imprensa e destinados, segundo seu
próprio autor, a “perecer no fim do dia” e, outra, por notas de estudo tomadas
em condições precárias, e condenadas a morrerem com seu autor, tal obra sobre-
viveu às próprias circunstâncias de sua composição e se tornou também sinal de
distinção do bem pensar e bem falar. “Hegemonia”, “bloco histórico”, “intelectual
orgânico” e “sociedade civil”, conceitos-chave de uma reflexão paciente e meti-
culosa, complexa e intrincada, ocuparam o vocabulário intelectual e político a
partir de meados dos anos 1970. E o fizeram como parte de um senso comum
teórico-político.
O contexto da luta contra as ditaduras latino-americanas, concomitante
ao processo de crise e decomposição das organizações tradicionais da esquerda,
criou em nosso continente um ambiente favorável a essa recepção. Não era apenas
um modismo. Sua obra mostrou perenidade surpreendente abaixo do Rio Bravo
e os tais conceitos, de fato, tiveram uma resistência superior à que se poderia
imaginar. A recente conclusão de novas edições cuidadosamente preparadas, das
obras de Gramsci no México e no Brasil ilustra o vigor desse pensamento.
O absolutamente surpreendente dessa difusão é que ela se desenvol-
veu em claro descompasso com o caminho que a obra de Gramsci percorreu
em sua Itália: uma retração dos estudos gramscianos na península foi acom-
panhada de uma ampla difusão na América Latina (cf. Liguori e Meta, 2005,
p. 7 e Aricó, 2005, p. 109). A situação política na qual esse desenvolvimento
desigual ocorreu é importante para sua compreensão. Marcada pelo colapso
do “socialismo real” e pelo fim do Partido Comunista Italiano (PCI), a evo-
lução desses estudos pôde se afastar das determinações da conjuntura política
e das necessidades do momento (cf. Durante, 1999, p. 3-4). Mas a crise do
“partito di Gramsci” repercutiu negativamente, no contexto italiano, na di-
fusão da obra daquele que era identificado como seu fundador. O apelo das
idéias de Gramsci não era o mesmo, o que explicaria o declínio quantitativo
das pesquisas a ele dedicadas.
introdução 15

Foi esse mesmo contexto, entretanto, que libertou o marxista sardo


de seu segundo encarceramento, permitindo a internacionalização dos estudos
gramscianos e a abertura à investigação dos novos problemas apresentados seja
pelas transformações do mundo contêmporâneo, seja pelo reconhecimento de
novas realidades políticas e sociais.1 As transformações nesse campo de estudo
podem ser ilustradas pela apropriação criativa das categorias gramscianas – e,
particularmente, do conceito de hegemonia – em novas áreas de pesquisa, como
as relações internacionais, os estudos culturais, a pedagogia e a psicologia.
Embora tenha gerado pesquisas extremamente férteis, a apropriação
das categorias gramscianas tanto nesses novos contextos nacionais, como em
novas áreas de investigação, nem sempre teve como pressuposto uma reconstru-
ção rigorosa do pensamento do marxista sardo. O ponto de partida para muitos
desses novos estudos foi, assim, uma leitura filologicamente débole da obra de
Gramsci e, principalmente dos Quaderni del carcere.
Contraditoriamente, foi no contexto italiano de declínio dos estu-
dos gramscianos que se tornou possível uma abordagem metodológica mais
rigorosa no tratamento do texto e de suas fontes. Assim, ao final de seu
alentado trabalho de reconstrução da trajetória do debate a respeito da obra
de Gramsci, Guido Liguori podia vislumbrar a emergência de um programa
de pesquisa no qual a contextualização efetiva do pensamento do marxista
sardo permitiria aprofundar uma “escavação conceitual” capaz de identificar
as múltiplas fontes de sua reflexão, bem como seu lugar na história (Ligu-
ori, 1996, p. 254). Quem sabe esse programa de escavação conceitual não
possa ser também um programa que ponha fim à escravidão conceitual, ao
aprisionamento do pensamento de Gramsci nos quadros teóricos e políticos
do senso comum?

1
Sobre a internacionalização dos estudos gramscianos, ver a coletânea organizada por Santucci
(1995). Para a difusão de Gramsci na América Latina, ver o estudo pioneiro de Aricó (2005).
Na Argentina foi recentemente publicado o minucioso trabalho de Raúl Burgos (2004) sobre a
trajetória do grupo Pasado y Presente, dirigido por José Aricó. A difusão de Gramsci no Brasil foi
objeto de controvérsia envolvendo Coutinho (1999, p. 279-313) e Dias (1996b). Dois autores
procuraram tratar a questão de modo mais abrangente: Simionatto (2004) e Secco (2002 e 2006,
caps. VI e VII).
16 alvaro bianchi

A metodologia genética que tem caracterizado recentes pesquisas não


torna o texto mais fácil e, pelo contrário, revela a dificuldade que lhe é própria.
Tal metodogologia também não fornece a “verdadeira” interpretação e sequer uma
interpretação livre de pressupostos. Mas tem permitido um maior rigor na recons-
trução do laboratório de Gramsci, evitando aquilo que Dante Germino (2002, p.
130-131) denominou expropriação, por oposição à intepretação do texto.
Assumindo o caráter inacabado dos Quaderni e provisório das formu-
lações ali contidas, esse enfoque tem se empenhado em uma “contextualização
eficaz” do pensamento gramsciano, capaz de permitir uma reconstrução rigo-
rosa do percurso da formulação conceitual ao longo dos textos. Uma apropria-
ção positiva do pensamento gramsciano, ou seja, um “uso” daqueles conceitos
que de modo paciente destilou em seu laboratório, em contextos e situações
diferentes daquelas orginais, é possível e mesmo desejável. Só faz sentido voltar
mais uma vez aos Quaderni porque neles é possível encontrar um pensamento
vivo, capaz de informar uma renovada prática teórica e política engajada em
projetos de emancipação social. Mas o uso deve ter como pressuposto uma
interpretação consistente.
Este livro está voltado tanto para aqueles preocupados com a interpretação
do pensamento de Antonio Gramsci como para os que querem mudar o mundo.
Mas ele faz mais sentido para aqueles que querem as duas coisas ao mesmo tem-
po. A sempre citada Tese sobre Feuerbach 11 – “Os filósofos não fizeram, senão,
interpretar [interpretiert] o mundo de diversos modos, o que importa é mudá-lo
[verändern]” (mecw, v. 5, p. 5) – foi para Gramsci a matriz de um programa
teórico político. Os Quaderni poderiam ser lidos como a reflexão teórica a respeito
de uma prática confiscada pela prisão. Mas são mais do que isso. Neles, a própria
reflexão teórica é parte de um projeto pedagógico que visava à conformação de
novos intelectuais da classe trabalhadora (cf. Lisa, 1981, p. 377).
O objeto deste livro é interpretar um ponto central dessa reflexão: a
relação entre filosofia e política nos Quaderni del carcere. Neles, a unidade entre
teoria e prática desdobrava-se teoricamente na unidade entre filosofia, história e
política. Essa unidade desenvolveu-se no projeto de pesquisa que Gramsci levou
a cabo na prisão sob a “determinação em última instância” da política. Com-
preenda-se: é o próprio projeto de pesquisa que é político, daí tal determinação.
introdução 17

Reconhecer essa unidade significa afirmar que a história (e a historiografia), as-


sim como a filosofia, mesmo aquela que afirma sua neutralidade axiológica, são
também elas constitutivas do campo político do qual querem manter distância.
A afirmação dessa unidade não cancela, entretanto, a particularidade
do trabalho historiográfico e teórico. O rigor “científico”, os métodos e técnicas
de pesquisa mobilizados, o teste implacável dos resultados obtidos são requisitos
incontornáveis mesmo para uma pesquisa engajada. Gramsci estava ciente desses
requisitos e sua pesquisa filosófica encerrava uma prática teórica autoconsciente,
assim como sua pesquisa histórica envolvia uma prática historiográfica. Seu pensa-
mento não é politicista, como muitos apressadamente afirmaram, e sim político.
A política é, assim, o tema central, o mais importante e desenvolvido
nos Quaderni, mas obviamente não é o único. Do mesmo modo, na reflexão
filosófica de Gramsci, a parte mais importante e desenvolvida é sua “filosofia
da política”, mas esta não compreende toda a reflexão (cf. Martelli, 1996, p.
59). A tentativa de reduzir a relação entre filosofia e política nos Quaderni a um
empreendimento de refundação da filosofia marxista como uma gnoseologia
da política, ou gnoseologia das superestruturas (Buci-Gucksmann, 1980), é,
portanto, exagerada.
Justifica-se, desse modo, a escolha do tema que atravessa a reflexão que
é aqui apresentada ao leitor. Mais uma última exlicação se torna necessária.
Toda obra tem um público. A definição mais genérica que posso pensar para
ele é dada pelo fato de residir na América Latina e, particularmente, no Brasil.
Um leitor italiano poderia julgar desnecessária uma exposição sintética do pen-
samento de Vincenzo Gioberti ou de Benedetto Croce em uma obra dedicada
aos Quaderni. Mas esse não é o caso em nosso continente. Gramsci já tem seu
visto de residente permanente na América Latina, onde foi acolhido de modo
generoso, como tantos outros imigrantes. Mas ainda é um estrangeiro e sua
cultura nos é, em grande medida, estranha.
Maquiavel, Guicciardini, Cuoco, Gioberti, Croce ou Gentile não fre-
qüentam nossas universidades, à exceção do primeiro. Percebi, em cursos que
ministrei nos quais o pensamento político de Gramsci era o objeto, que uma das
dificuldades enfrentadas pelos alunos mais jovens era resultado do estranhamen-
to que a relação de alteridade com a cultura gramsciana provocava. Para encurtar
18 alvaro bianchi

essa distância oceânica, procurei, sempre que necessário e possível, reconstruir o


diálogo de Gramsci com suas fontes, o que implicou, em algumas oportunida-
des, que essas fontes também falassem.

* * *

Este livro é o resultado de investigação realizada no âmbito do Grupo


de Pesquisa Marxismo e Teoria Política, sediado no Centro de Estudos Marxis-
tas (Cemarx) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Estadual de Campinas. A pesquisa recebeu, em sua fase final, apoio institucional
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (cnpq).
Resultados preliminares dessa investigação foram publicados nas revistas Outu-
bro, Crítica Marxista, Novos Rumos, Revista de Sociologia e Política e Universidade
e Sociedade. Dois cursos, um na pós-graduação em Ciência Política, no segundo
semestre de 2005, e outro na graduação em Ciências Sociais, no primeiro semes-
tre de 2006, forneceram-me a oportunidade e o estímulo necessário para uma
reflexão mais detida sobre temas que há alguns anos me acompanhavam.
O trabalho de investigação mobilizou um grupo de jovens pesquisadores,
alunos de graduação e pós-graduação da Unicamp, que participaram ativamente
de seminários e grupos de estudos. Eles foram importantes interlocutores, além de
fonte de estímulo para a conclusão deste trabalho: Douglas Alves Santos, Leandro
Galastri, Luciana Aliaga, Paula Berbert, Renato César Ferreira Fernandes, Tatiana
Prado Vargas e Thaís Mesquita Favoretto. Foi também para eles que escrevi este
livro, com a espectativa de que possa estimular suas prórpias pesquisas.
Também participaram desses seminários Marco Vanzulli, da Università
di Milano-Bicocca; Rita Medici, da Università di Bologna; e Ruy Braga, da Uni-
versidade de São Paulo. Edmundo Fernandes Dias, da Universidade Estadual
de Campinas, foi sempre um interlocutor importante. Carlos Zacarias de Sena
Junior, da Universidade do Estado da Bahia, e Marcos Del Roio, da Univesida-
de Estadual Paulista Campus Marília, gentilmente leram versões preliminares e
contribuiram de modo importante para o desenvolvimento da pesquisa. Dora
Kanoussi, da Universidad Autonoma de Puebla, acompanhou a pesquisa à dis-
introdução 19

tância, facilitou-me livros de difícil acesso e gentilmente aceitou prefaciar este


livro. Tatiana Fonseca Oliveira revirou os sebos de Nápoles até encontrar as
obras que lhe havia pedido. Os colegas do Departamento de Ciência Política
da Unicamp, particularmente Sebastião Velasco e Cruz, Rachel Meneguello e
Andrei Koerner, permitiram que tivesse as condições institucionais necessárias
para levar adiante a investigação. No Centro de Estudos Marxistas da Unicamp
(Cemarx), Armando Boito, Caio Navarro de Toledo e Andréia Galvão acolhe-
ram-me de modo fraternal. A todos agradeço o apoio e interlocução, ao mesmo
tempo em que os desresponsabilizo do conteúdo deste texto.
Nada teria sido suficiente sem Patrícia e Gabriel, que me proporciona-
ram o amor, a felicidade e a buliçosa tranqüilidade que deram sentido a tudo. É
a eles que dedico este livro.
Eterno/Provisório

Quando em 2 de junho de 1928 o Ministério Público tomou a


palavra no processo contra Antonio Gramsci e outros líderes do Partito Co-
munista d’Italia (pcd’i) presos com ele, uma violenta exposição de motivos
condenando-o foi proferida. Sobre Gramsci, o pronunciamento expôs sua
total irracionalidade: “por vinte anos devemos impedir que este cérebro fun-
cione” (apud Fiori, 1979, p. 285). O processo se arrastava desde a prisão
do dirigente comunista pela polícia fascista, em novembro de 1926. Mas a
prisão não impedia o cérebro de funcionar. Já antes mesmo da sentença, em
uma carta escrita a sua cunhada, Tatiana Schucht, em março de 1927, ele
afirmava: “Estou atormentado (...) por esta idéia: de que é preciso fazer algo
für ewig. (...) Em suma, gostaria, segundo um plano pré-estabelecido, de
ocupar-me intensa e sistematicamente de alguns temas que me absorvessem
e centralizassem minha vida interior” (lc, p. 58).
A principal dificuldade que os Quaderni apresentam para seu leitor
está no paradoxo de que esse projeto de pesquisa “für ewig” (para sempre)
materializou-se neles sob a forma de notas provisórias e inacabadas. Nada in-
dica que Gramsci, em algum momento de seu trabalho, tivesse abandonado
essa determinação inicial. A variedade dos temas abordados, a profundidade
do tratamento, a visada estratégica da reflexão indicam claramente a preten-
são de escrever para além da conjuntura imediata. E há fortes indícios de que
à medida em que esse trabalho avançava, ampliavam-se seus objetivos. Na
carta citada, era apresentado o primeiro esboço daquilo que ficou conhecido
como os Quaderni del carcere. Quatro eram os temas sobre os quais Gramsci
pretendia se debruçar:

1º) uma pesquisa sobre a formação do espírito público na Itália no século passa-
do; em outras palavras, uma pesquisa sobre os intelectuais italianos, suas origens,

21
22 alvaro bianchi

agrupamentos segundo as correntes culturais, diversos modos de pensar, etc. (...)


2º) Um estudo de lingüística comparada! (...) 3º) Um estudo sobre teatro de
Pirandello e a transformação do gosto teatral italiano que Pirandello representou
e contribuiu para determinar. (...) 4º) Um ensaio sobre os romances de folhetim
e o gosto popular na literatura. (LC, p. 58-59.)

Conectando esses diferentes temas estava “o espírito popular criativo”


em suas diversas manifestações (idem, p. 59). Für ewig, para sempre. Não eram as
questões da análise de conjuntura as que atraíam Gramsci na prisão. Seu projeto
procurava apresentar um conjunto de temas que resgatavam algumas de suas
preocupações juvenis: seus estudos sobre lingüística e sua atividade de crítico
literário. As razões desse empreendimento pareciam ser de ordem intelectual e
psicológica. O marxista italiano procurava organizar sua vida na prisão de modo
a torná-la, se não tolerável, pelo menos suportável. A carta a sua cunhada não
deixava de registrar essas motivações, que o conectavam a uma vida de liberdade
plena. Na carta, o prisioneiro lembrava de modo autobiográfico seus “‘remorsos’
intelectuais” por ter abandonado seus estudos de lingüística. Narrava, também,
sua atividade de crítico literário durante os anos de 1915 e 1920: “Sabia que
eu (...) descobri e contribuí para popularizar o teatro de Pirandello?” (idem, p.
129).
Mas o projeto também incorporava uma forte dimensão política e so-
cial, presente particularmente na primeira das áreas de concentração, na qual
se destacava a investigação sobre a formação dos grupos intelectuais dirigentes
italianos. A essa dimensão referia-se o próprio Gramsci na carta citada. “Você se
recorda de meu texto, muito curto e superficial, sobre a Itália Meridional e sobre
a importância de B. Croce?”, perguntava a Tatiana (idem, p. 128), fazendo men-
ção a seu escrito Alcuni temi della questione meridionale, ensaio pré-carcerário
no qual Gramsci discutia a formação social meridional, incorporando à análise
das classes sociais o lugar ocupado pelos intelectuais.2 Sobre o caráter político
desse texto, não há lugar a dúvidas, daí a importância da reveladora referência.
Mas essa dimensão política aparecia ainda diluída nesse primeiro projeto, como

2
O ensaio, escrito em 1926, foi publicado apenas em 1930 na revista Lo Stato operaio, mantida
pelo pcd’i em Paris (cpc, p. 137-158).
eterno/provisório 23

é possível verificar na declaração de intenção de Gramsci de desenvolver ampla-


mente a tese esboçada em Alcuni temi della questione meridionale mas “de um
ponto de vista ‘desinteressado’, für ewig” (idem).
O resultado dessa atividade planejada por Gramsci foram os 33 cadernos
escolares de capa dura que preencheu com suas anotações durante os anos de
prisão. São notas sobre o teatro italiano, a lingüística e a cultura popular, mas
também sobre filosofia, história, economia e, principalmente, política. A varieda-
de de temas é enorme, o que fez Eric Hobsbawm constatar certa feita que nesses
cadernos é possível encontrar contribuições importantes e originais em todos os
campos das chamadas ciências humanas, com exceção, talvez, da economia.
O projeto do cárcere teve, entretanto, que ser adiado por razões “técnicas”,
como costumava dizer seu autor. Seu amigo Piero Sraffa havia aberto uma conta
em uma livraria de Milão, na qual Gramsci podia encomendar livros, mas foi só
no começo de 1929 que recebeu autorização para fazer anotações em um caderno,
além do material necessário para tanto. No Primo Quaderno, cuja redação iniciou
no dia 8 de fevereiro de 1929, começou seu trabalho com a seguinte anotação:

Notas e apontamentos.
Argumentos principais:
1) Teoria da história e da historiografia.
2) Desenvolvimento da burguesia italiana até 1870.
3) Formação dos grupos intelectuais italianos: desenvolvimento, atitudes.
4) A literatura popular dos romances de folhetim e as razões de sua permanência e
influência.
5) Cavalcante Cavalcanti: a sua posição na estrutura e na arte da Divina Comédia.
6) Origens e desenvolvimento da Ação Católica na Itália e na Europa.
7) O conceito de folclore.
8) Experiências da vida no cárcere.
9) A ‘questão meridional’ e a questão das ilhas.
10) Observações sobre a população italiana: sua composição, função da emigração.
11) Americanismo e fordismo.
12) A questão da língua na Itália: Manzoni e G. I. Ascoli.
13) O ‘senso comum’ (cf. 7).
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14) Tipos de revista: teórica, crítico-histórica, de cultura geral (divulgação).


15) Neogramáticos e neolingüistas (‘essa mesa redonda é quadrada’).
16) Os sobrinhos do padre Bresciani. (Q 1, p. 5)

A nota do Primo Quaderno revelava o desenvolvimento que o pro-


jeto original havia recebido. Aos temas de cultura listados na carta de 1928,
somavam-se outros de teoria e análise social e política, tais como as questões de
teoria da história, a formação da burguesia italiana e a “questão meridional”.
Importante, também, era a inclusão de um item sobre o americanismo e o for-
dismo, resgatando temas que motivaram sua reflexão quando do biennio rosso
em Turim. O próprio Gramsci apresentou a questão a sua cunhada, em uma
carta de 25 de março de 1929, indicando uma concentração de seus interesses
em torno de um número de áreas reduzidas:

Decidi ocupar-me predominantemente e tomar notas sobre estes três assuntos:


1) A história italiana no século XIX, com especial referência à formação e ao de-
senvolvimento dos grupos intelectuais; 2) A teoria da história e da historiografia;
3) O americanismo e o fordismo. (lc, p. 264)3

Gramsci iniciou a redação desses cadernos com notas sobre temas


muito variados e comentários de livros e artigos que lia na prisão. Os títulos
que o autor colocava perante cada parágrafo se repetiam várias vezes, indican-
do que o projeto de, dedicar a alguns temas específicos seguia de pé. Mas aos
poucos impuseram-se temas nos quais a análise política e social aparecia de
modo mais intenso.
A partir do início de 1930 ocorreu uma politização acentuada do projeto
de pesquisa gramsciano. O ponto de virada parece ser uma enigmática nota de
duas linhas escrita entre dezembro de 1929 e fevereiro de 1930, de acordo com a
datação de Francioni (1984, p. 140). Nela, Gramsci registra em francês: “A ‘fórmu-
la’ de Léon Blum. Le pouvoir est tentant. Mais seule l’opposition est confortable”.

3
De modo inapropriado, esta carta é datada de 24 de fevereiro de 1929 na nova edição brasileira
dos Cadernos do cárcere (cc, v. 1, p. 78). Na edição das Cartas do cárcere organizada pela mesma
equipe, a data é registrada de modo correto (Gramsci, 2005, v. 1, p. 328).
eterno/provisório 25

(Q 1, § 40, p. 29.) Tem início aí aquilo que Francioni denominou a “‘explosão’


da reflexão mais diretamente teórico política” (1987, p. 30). Importantes nesse
movimento são o § 43, sob a rubrica Riviste tipo – uma longa nota dedicada à
questão dos intelectuais – e o § 44, Direzione política di classe prima e dopo l’andata
al governo, no qual aparece pela primeira vez o conceito de “revolução passiva,
segundo a expressão de V[icenzo]. Cuoco” (Q 1, § 44, p. 41).
Quais as razões desse giro? A explicação deve ser procurada fora do texto
gramsciano. A motivar tal inflexão estavam os dilemas da luta contra o fascismo; o
giro sectário da Internacional Comunista dado pelo 6º Congresso (1928) e consoli-
dado pelo 10º Plen do Comitê Executivo (1929); e a crescente stalinização da União
Soviética. Os acontecimentos do ano de 1930 no PCd’I e na Internacional Comu-
nista coincidem com o início de uma série de discussões que Gramsci manteve com
seus companheiros de infortúnio (Fiori, 1979, p. 308-318 e Buci-Glucksmann,
1980, p. 303-310). O tema mais importante da política italiana de então era, para
Gramsci, a questão da Constituinte e de sua eficácia na luta contra o fascismo, mas
esse era articulado, segundo narrado por Athos Lisa, um dos participantes dessas
conversas, com a questão dos “intelectuais e o partido” e com o tema do “problema
militar e o partido” (1981, p. 376). Foi a partir desse momento que a crítica da
política assumiu a posição central no projeto gramsciano de pesquisa.
As novas preocupações de Gramsci na prisão e suas conversas com os
colegas apontavam nessa direção. Em uma nota escrita no Quaderno 8, prova-
velmente entre os meses de novembro e dezembro de 1930 (cf. Francioni, 1984,
p. 142), Gramsci reforçava suas preocupações indicadas na carta a Tatiana de
25 de março de 1929, expandindo-as e dando-lhes a forma de um programa de
pesquisa. Escrevia ele:

Notas esparsas e apontamentos para uma história dos intelectuais italianos (...)
Ensaios principais: Introdução geral. Desenvolvimento dos intelectuais italianos até
1870: diversos períodos. – A literatura popular dos romances de folhetim. – Fol-
clore e senso comum. – A questão da língua literária e dos dialetos. – Os sobrinhos
do Padre Bresciani. – Reforma e Renascimento. – Maquiavel. – A escola e a educa-
ção nacional. – A posição de B. Croce na cultura italiana até a guerra mundial. – O
Risorgimento e o partido de ação. – Ugo Foscolo na formação da retórica nacional.
26 alvaro bianchi

– O teatro italiano. – História da Ação Católica: católicos integristas, jesuítas, mo-


dernistas. – A Comuna medieval, fase econômico-corporativa do Estado. – Função
cosmopolita dos intelectuais italianos até o século XVIII. – Reações à ausência de
um caráter popular-nacional da cultura na Itália: os futuristas. – A escola única e
o que ela significa para toda a organização da cultura nacional. – O ‘lorianismo’
como uma das características dos intelectuais italianos. – A ausência de ‘jacobinis-
mo’ no Risorgimento italiano. – Maquiavel como técnico da política e como políti-
co integral ou em ato. Apêndices: Americanismo e fordismo. (Q, p. 935)

Esta nota era antecedida por um conjunto de ressalvas que Gramsci fa-
zia a seu próprio trabalho e que permitem definir de modo mais preciso o sentido
atribuído a elas pelo seu autor. O objetivo dessas notas não era uma “compilação
enciclopédica” sobre os intelectuais. Os “Saggi principale” eram de caráter provisório
e a partir deles seria possível construir alguns ensaios independentes, mas não um
trabalho orgânico e sistemático. Entretanto, é importante destacar que essa nota não
circunscrevia o âmbito do conjunto da pesquisa gramsciana, o que é indicado pela
inscrição Apêndices, no plural, seguida apenas de uma única indicação – Americanis-
mo e fordismo –, denotando a intenção de agregar outros itens. O resto da página
encontra se em branco, mas é possível que Gramsci pretendesse enumerar ali outros
temas que não encontrassem lugar nesse conjunto de ensaios sobre os intelectuais.
Pelo estágio em que se encontravam os cadernos já redigidos, é possível
perceber que nem todo o material escrito encontraria seu lugar nesse conjunto de
ensaios sobre os intelectuais. Além do tema Americanismo e fordismo, já previsto
na carta a Tatiana e cuja inclusão como apêndice revela seu caráter autônomo,
poderíamos incluir nessa categoria aquelas notas registradas sob o título Appunti di
filosofia, presentes nos cadernos 4, 7 e 8. Por outro lado, mesmo temas indicados
nesses Saggi principale receberiam, posteriormente, um desenvolvimento muito
diferente, como o estudo sobre Benedetto Croce presente no Quaderno 10, que
não se limitou a seu papel no pós-guerra (cf. Gerratana, 1997, p. 16).4

4
De acordo com a datação de Francioni, os Apuntti do Quaderno 4 já se encontravam totalmente
redigidos quando da nota no Quaderno 8, enquanto o início dos Apuntti do Quaderno 7 coincide
com a redação da nota e lhe sucede. Evidentemente os Apuntti do Quaderno 8 são posteriores à
nota escrita na primeira página (Francioni, 1984, p. 141-142).
eterno/provisório 27

Qual o lugar dessa enumeração de Saggi principale na história interna


dos Quaderni del carcere, pergunta Francioni? “Não propriamente uma refor-
mulação do conjunto do programa de trabalho gramsciano, mas um projeto
orgânico para a sistematização e o desenvolvimento de uma seção vasta e autô-
noma” (1984, p. 78). Não é de se minimizar o lugar da questão dos intelectuais
no conjunto da reflexão gramsciana e nos Quaderni. De fato, não apenas se
encontra essa questão em seus escritos anteriores à prisão, como esse tema esteve
presente em todos os diferentes planos que Gramsci fez para a redação dos Qua-
derni. Mas a questão dos intelectuais, apesar de sua importância, não esgotava
a pesquisa gramsciana, foi dado a entender em uma carta redigida em 17 de
novembro de 1930, data próxima à nota e que resume seu conteúdo:

detive-me em três ou quatro temas principais, um dos quais é aquele da função


cosmopolita que tiveram os intelectuais italianos até o século XVIII, que, por
sua vez, se divide em várias partes: o Renascimento e Maquiavel, etc. Se tivesse a
possibilidade de consultar o material necessário, acredito que daria para fazer um
livro realmente interessante e que ainda não existe; digo livro, só para me referir à
introdução a uma série de trabalhos monográficos, porque a questão se apresenta
diferentemente nas diferentes épocas e, em minha opinião, seria preciso recon-
duzir ao tempo do Império Romano. Enquanto isso escrevo notas, até porque a
leitura do relativamente pouco que tenho me faz recordar as velhas leituras do
passado. (lc, p. 378. Grifos meus)

O tema dessa carta foi retomado em outra, de 3 de agosto de 1931, posterior,


portanto, à redação da nota. Nessa missiva, o marxista sardo avaliava as dificuldades
para o desenvolvimento de sua pesquisa e, provavelmente, do próprio plano dos
Saggi principale. “Havia me proposto pensar uma certa série de questões”, afirmava,
para a seguir constatar que “devia acontecer que, num certo ponto, estas reflexões
deveriam passar a uma fase de documentação e, portanto, a uma fase de trabalho e
de elaboração que requer grandes bibliotecas. A ausência de meios técnicos que lhe
permitissem levar adiante o estudo dessas “questões” não impedia, entretanto, de
continuar seu trabalho, “mas o fato é que não tenho mais grandes curiosidades por
determinadas direções gerais, pelo menos por enquanto”, concluía, consternado. E
28 alvaro bianchi

a seguir afirmava, enquadrando sua pesquisa sobre os intelectuais em uma temática


mais ampla, até então não revelada nos diferentes planos dos Quaderni:

um dos argumentos que mais me interessaram nestes últimos anos foi fixar al-
guns aspectos característicos na história dos intelectuais italianos. Este interesse
nasceu, por uma parte, do desejo de aprofundar o conceito de Estado e, por outra
parte, de compreender alguns aspectos do desenvolvimento histórico do povo italiano.
(lc, p. 459-460. Grifos meus)

Poucas horas depois de redigir essa carta, na noite do mesmo dia 3,


seu autor foi acometido por uma grave crise de saúde. Não é possível atribuir
exclusivamente a essa crise as transformações pelas quais passará seu plano de
pesquisa e redação, mas certamente ela influenciou seu ritmo. Após aquela noi-
te, abandonou, conforme nota Gerratana, os exercícios de tradução e concen-
trou suas forças no aprofundamento da pesquisa e em sua reestruturação em
uma nova série de cadernos, que denominou de “especiais” (Gerratana, 1997, p.
37-38). Em carta a Tatiana de 22 de fevereiro de 1932 já antecipava essa inten-
ção, solicitando-lhe o envio de pequenos cadernos, “para reordenar estas notas,
dividindo-as por argumento e, desse modo, sistematizando-as” (lc, p. 576).
De acordo com a datação de Francioni (1984, p. 85-93), pouco depois
da carta, provavelmente entre março e abril de 1932, Gramsci redigiu no Qua-
derno 8, na página seguinte do projeto dos Saggi principale, a última versão de
seu plano de trabalho, denominando-a Raggruppamenti di materia:

Reagrupamentos de matéria:
1º Intelectuais. Questões escolares.
2º Maquiavel.
3º Noções enciclopédicas e temas de cultura.
4º Introdução ao estudo da filosofia e notas críticas a um Ensaio popular de sociologia.
5º História da Ação Católica. Católicos integristas – jesuítas – modernistas.
6º Miscelânea de notas variadas de erudição (Passado e presente).
7º Risorgimento italiano (no sentido da Età del Risorgimento italiano de Omodeo,
mas insistindo sobre os motivos mais estritamente italianos.
8º Os sobrinhos do Padre Bresciani. A literatura popular (Notas de literatura).
eterno/provisório 29

9º Lorianismo.
10º Apontamentos sobre jornalismo. (Q, p. 936)

Não se trata de um plano completo, mas é o último dos projetos de


Gramsci para os Quaderni. Para Gerratana, embora não seja definitiva, a pro-
posta dos “Raggruppamenti di materia” continha um projeto de cadernos mono-
gráficos que se materializaria nos chamados “cadernos especiais” (1997, p. 38).
Francioni, por sua vez, considera esses Raggruppamenti di materia um “índice
incompleto” com vistas à construção dos cadernos monográficos e, ao mesmo
tempo, um desenho alternativo aos “Saggi principale” sobre os intelectuais, lista-
dos na página anterior (1984, p. 86).
A redação dos cadernos especiais teve início em 1932, agrupando te-
maticamente o material previamente escrito, reformulando-o e acrescentando
novas e inéditas passagens. À medida que transcrevia o material para os novos
cadernos, seu autor riscava nos antigos, com grandes traços oblíquos paralelos,
as passagens reproduzidas, sem que no entanto isso comprometesse a leitura
posterior. Os cadernos especiais iniciados foram os seguintes (a numeração foi
dada posteriormente por Gerratana na edição crítica):5

Caderno 10 – A filosofia de Benedetto Croce (100 páginas).


Caderno 11 – Sem título, mas cujo conteúdo corresponde ao item 4º do “Rag-
gruppamenti” (Introdução ao estudo da filosofia e notas críticas a um Ensaio popular
de sociologia – 80 páginas).
Caderno 12 – Apontamentos e notas esparsas para um grupo de ensaios sobre a
história dos intelectuais e da cultura na Itália (24 páginas em formato grande).
Caderno 13 – Notas sobre a política de Maquiavel (60 páginas em formato grande).
Caderno 16 – Argumentos de cultura, 1º (74 páginas).
Caderno 18 – Nicolau Maquiavel II (3 páginas em formato grande).
Caderno 19 – Sem título, mas cujo conteúdo corresponde ao item 7º dos Rag-
gruppamenti (Risorgimento italiano – 132 páginas).
Caderno 20 – Ação Católica. – Católicos integrais, jesuítas e modernistas (23 páginas).

5
Para as questões de método da edição crítica, ver Gerratana (1997).
30 alvaro bianchi

Caderno 21 – Problemas da cultura nacional italiana, 1º Literatura popular (32


páginas).
Caderno 22 – Americanismo e fordismo (46 páginas).
Caderno 23 – Crítica literária (75 páginas).
Caderno 24 – Jornalismo (18 páginas).
Caderno 25 – À margem da história (história dos grupos sociais subalternos) (17
páginas).
Caderno 26 – Argumentos de cultura: 2º (11 páginas).
Caderno 27 – Observações sobre o folclore (7 páginas).
Caderno 28 – Lorianismo (18 páginas).
Caderno 29 – Notas para uma introdução ao estudo da gramática (10 páginas).

Como é possível verificar, os cadernos 11, 12, 13, 16, 18, 19, 20, 21,
23, 24, 26 e 28 coincidem com os temas dos “Raggruppamenti”. Por sua vez,
o conteúdo do caderno 10 – A filosofia de Benedetto Croce – consta apenas par-
cialmente do plano dos Saggi principale mas não dos Raggruppamenti; o tema
do Quaderno 22 – Americanismo e fordismo – coincide com o plano do Primo
Quaderno e o apêndice dos “Saggi principale”; não há menção nos planos ante-
riores ao conteúdo do Quaderno 25 – À margem da história (história dos grupos
sociais subalternos) –; as Observações sobre o folclore do Quaderno 27 estavam
previstas nos planos do Primo Quaderno e dos Saggi principale; e as Notas para
uma introdução ao estudo da gramática do Quaderno 29 constavam da carta de
19 de março de 1927 e do plano do Primo Quaderno.
A redação dos cadernos especiais foi bastante acidentada, seja pelas
condições da vida carcerária, seja pela debilitada saúde de seu autor. Os cadernos
especiais de número 16 em diante, particularmente, escritos a partir de meados
de 1933, foram bastante afetados por essas condições. Gramsci, entretanto,
manteve essa atividade intelectual até meados de 1935, quando a deterioração
de seu estado físico o impediu de continuar. Logo depois foi transferido para
uma clínica de saúde em liberdade condicional, onde não teve mais condições
deexercer seu labor nos Quaderni. No início de abril de 1937 foi posto em
liberdade, mas morreu poucos dias depois, em 27 de abril.
eterno/provisório 31

As discrepâncias existentes entre os projetos desenhados por Gramsci


e os cadernos especiais é um problema a ser esclarecido e sobre o qual só é
possível construir hipóteses. Fabio Frosini no seminário sobre os Quaderni del
carcere ocorrido em 2000, em Roma, procurou abordar essa questão (cf. Frosini,
2003, p. 62-65). Com esse propósito sugeriu a hipótese de que o reagrupamento
temático tivesse sido abandonado (mas não repudiado) por Gramsci em um
primeiro momento. De acordo com Frosini, entre a primavera e o verão de
1932, Gramsci teria oscilado entre duas hipóteses de trabalho: uma presente
nos Raggruppamenti di materia, que daria a pesquisa por encerrada e procuraria
organizar disciplinarmente o material recolhido, e outra presente no elenco de
Saggi principale, com vistas a inaugurar uma segunda fase do trabalho de pesqui-
sa sobre os intelectuais e que, conforme a carta de 7 de setembro de 1931 a Ta-
tiana, deveria ser completado por um elenco de ensaios sobre a teoria da história
e da historiografia e outro sobre americanismo e fordismo (idem, p. 63).
Investigando a estrutura e história desse material, Frosini (2003, p. 65)
chamou a atenção para o fato de que o título que organiza o elenco dos Saggi
principale – Note sparse e appunti per uma storia degli intellettuali italiani é quase
idêntico ao título que Gramsci dá ao Quaderno 12 – Appunti e note sparse per um
gruppo di saggi sulla storia degli inteletuali e della cultura in Italia. A similaridade
indicaria que o Quaderno 12 seria a materialização do projeto de exposição de-
senhado nos Saggi principale.
Permanece a questão identificada pelo próprio Frosini: o resultado do
Quaderno 12 apresenta uma clara contradição entre o título e seu conteúdo e
uma congruência entre esse mesmo conteúdo e a proposta temática contida
nos Raggruppamenti di materia sob a rubrica Intellettuali. Quistione scolastiche”
(idem, p. 66).6 Por que essa contradição e essa congruência? Frosini dá a enten-
der que o projeto inicial não foi aquele de fato levado a cabo e que o projeto
dos Raggruppamenti di materia foi retomado como um programa mínimo de
trabalho, após a gravíssima crise de saúde de 7 de março de 1933 (idem).

6
De fato, o § 1 do Quaderno 12 não tem título, mas está dedicado à questão dos intelectuais, assim
como o § 3. O § 2, por sua vez, intitula-se Osservazioni sulla scuola: per la ricerca del principio
educativo. O Quaderno 12 é composto apenas por esses três parágrafos citados e reúne textos de
segunda redação presentes anteriormente no Quaderno 4.
32 alvaro bianchi

Mas é de se questionar se, de fato, o Quaderno 12 começou a ser re-


digido como parte do programa anunciado pelo conjunto dos Saggi principale.
Ainda em agosto de 1931, cerca de seis meses depois, portanto, da redação do
elenco de Saggi principale, Gramsci colocava em dúvida seu programa de pesqui-
sa: “Pode-se dizer que já não tenho mais um verdadeiro programa de estudos e de
trabalho”, afirmava na ocasião (lc, p. 459). São várias as razões das idas e vindas
dos projetos. Notável é, por exemplo, a pressão que seu amigo Piero Sraffa fazia
por intermédio de Tatiana, incentivando-o a assumir projetos mais circunscritos
que evitassem o desperdício de energias físicas e intelectuais. Depois de sugerir
que Gramsci fizesse algumas traduções, Sraffa passou a incentivá-lo a dedicar-se
à questão dos intelectuais.7
Respondendo à pressão de Sraffa, Gramsci afirmou em uma carta de 7
de setembro de 1931 que “se tiver vontade e me permitirem as autoridades su-
periores farei um esboço da matéria que não deverá ter menos do que cinqüenta
páginas” (lc, p. 482). Mas permanecia com todas as suas dúvidas a respeito,
como se pode ver em uma carta de 2 de maio de 1932:

Não sei se vou lhe mandar algum dia o esquema que havia prometido sobre os
‘intelectuais italianos’. O ponto de vista do qual observo a questão às vezes muda:
talvez seja ainda cedo para resumir e sintetizar. Trata-se de uma matéria ainda em
estado fluido, que deverá ser posteriormente mais elaborada. (LC, p. 615.)

Não tem sido suficientemente destacado que esta carta coincide com
o início da redação do Quaderno 12. As dúvidas sobre o programa de investiga-
ção e o modo de exposição do resultado de sua pesquisa atingiam, portanto, a

7
Gramsci percebeu claramente essa interlocução com o amigo por intermédio de sua cunhada e foi
com ele que dialogou de modo implícito em vários momentos. Na carta de 7 de setembro de 1931,
por exemplo, escreveu a sua cunhada: “Percebe-se que você falou com Piero [Sraffa], porque certas
coisas só ele pode ter lhe dito”. E na mesma carta envia mensagem claramente destinada ao amigo,
mas construída de modo cuidadoso, de modo a evitar a censura: “Li, num artigo do senador Ei-
naudi, que Piero está preparando uma edição crítica do economista inglês David Ricardo; Einaudi
elogia muito a iniciativa e eu também fico muito contente.” (lc, p. 480-481.) Para a reconstrução
dessa interlocução, ver Sraffa (1991).
eterno/provisório 33

proposta contida nos Saggi principale. As dúvidas de Gramsci a respeito de seu


trabalho sobre os intelectuais permitem compreender o caráter provisório e in-
completo não apenas da exposição de sua investigação, mas também da própria
investigação. O autor dos Quaderni era muito cuidadoso a esse respeito e em
três ocasiões fez referência a essa provisoriedade (ver a discussão desses textos em
Frosini, 2003, p. 73-74 e Baratta, 2004, p. 95n).
A primeira dessas ocasiões encontra-se no Quaderno 4, no interior dos
Appunti di filosofia I. Ao final de uma nota, escrita provavelmente entre maio e
agosto de 1930, a respeito da teleologia no manual de materialismo histórico de
Nicolai Bukharin, irrompe entre parênteses, sem qualquer conexão com o tema
tratado nesse texto, uma mensagem de alerta:

Recordar em geral que todas estas notas são provisórias e escritas ao correr da pluma:
elas devem ser revistas e controladas minuciosamente porque certamente contêm
inexatidões, anacronismos, falsas aproximações, etc., que não implicam danos, por-
que as notas têm apenas a missão de rápido pró-memória. (Q 4, § 16, p. 438)

O segundo sinal de alerta foi redigido, provavelmente, entre novembro


e dezembro de 1930, no Quaderno 8. Trata-se do texto que, colocado logo após
o título Note sparse e appunti per una storia degli intellettuali italiani antecede
o elenco de Saggi principale. Essas linhas têm um claro sentido metodológico,
orientando os procedimentos de pesquisa e de registro dos resultados:

1º Caráter provisório - de pró-memória - de tais notas e apontamentos; 2º Delas


poderão resultar ensaios independentes, não um trabalho orgânico de conjunto;
3º Ainda não pode haver uma distinção entre a parte principal e aquela secundária
da exposição, entre aquilo que seria o ‘texto’ e aquilo que deveriam ser as ‘notas’; 4º
Trata-se freqüentemente de afirmações não controladas, que poderiam ser denomi-
nadas de ‘primeira aproximação’: algumas delas poderão ser abandonadas nas pes-
quisas ulteriores e talvez a afirmação oposta pudesse demonstrar-se a exata; 5º Não
devem causar uma má impressão a vastidão e a incerteza dos limites do tema, por
causa do que dizemos acima: não há absolutamente a intenção de compilar uma
mistura confusa sobre os intelectuais, uma compilação enciclopédica que queira
preencher toda as ‘lacunas’ possíveis e inimagináveis. (Q 8, p. 935)
34 alvaro bianchi

O tom desta segunda nota é, como pode se ver facilmente, de extrema


cautela. A afirmação de que o caráter provisório das notas não implicaria danos
a seu conteúdo presente no primeiro texto era abandonada. Em seu lugar, a nota
do Quaderno 8 afirmava claramente que talvez elas contivessem graves erros e que
precisassem ser abandonadas ou corrigidas. Um terceiro e último sinal de alerta,
redigido no ano de 1932, aparecia na Avvertenza que abre o Quaderno 11. Trata-se
de uma segunda versão do texto presente no Quaderno 4 acima citado:

As notas contidas neste caderno, como nos demais, foram escritas ao correr da
pluma, para um rápido pró-memória. Elas devem ser completamente revistas
e controladas minuciosamente porque contêm certamente inexatidões, falsas
aproximações, anacronismos. Escritas sem ter presente os livros a que se referem,
é possível que após o controle devam ser radicalmente corrigidas porque exata-
mente o contrário do que se afirma resulta ser o verdadeiro. (Q 11, p. 1365)

Agora o autor reconhece não apenas que poderia haver erros como
também que as notas poderiam ser “radicalmente corrigidas”. A presença dessa
“Avvertenza” no início do Quaderno 11, o mais acabado de todos, é significati-
va. Mas significativa para quem? Para o autor das notas, a advertência deveria
ser óbvia e, portanto, dispensável. Se os Quaderni del carcere fossem apenas o
registro de uma investigação em andamento, um “caderno de campo” no qual
o pesquisador registrava suas reflexões e o resultado de sua atividade científica,
se essas notas se destinavam apenas à leitura de seu próprio autor, então, que
sentido teria essa advertência?
Gramsci parece, com esses sinais de alerta, antever o destino que seus Qua-
derni teriam. É sabido que sempre ofereceu resistência à publicação de trabalhos
que não considerava prontos. Na já citada carta a Tatiana de 7 de setembro de 1931
ilustrava essa sua atitude: “Em dez anos de jornalismo escrevi linhas suficientes para
constituir 15 ou 20 volumes de 400 p[áginas]., mas essas eram escritas no dia-a-dia
e deviam, a meu ver, morrer no fim do dia. Sempre recusei fazer coletâneas, mesmo
limitadas”. (lc, p. 480). Foi por essa razão que evitou, em 1918, autorizar a publi-
cação de uma seleção de artigos seus e que, em 1921, preferiu recolher o manuscrito
que já se encontrava em vias de publicação na editora de Giuseppe Prezzolini, pa-
gando os custos de uma parte já feita da composição (idem).
eterno/provisório 35

Mas os alertas dos Quaderni parecem estar assentados não apenas na


conhecida prudência de seu autor, como na convicção da incompletude e provi-
soriedade do material reunido e na percepção de que essa condição poderia não
ser reconhecida por eventuais leitores. Escrevendo a respeito da obra de Marx,
Gramsci colocou a questão de fundo:

Entre as obras do pensador dado, além disso, é preciso distinguir aquelas que
ele concluiu e publicou daquelas que permaneceram inéditas, porque não con-
cluídas, e foram publicadas por amigos e discípulos, com revisões, modificações,
cortes, ou seja, com uma intervenção ativa do editor. É evidente que o conteúdo
desta obra póstuma deve ser tomado com muito discernimento e cautela, porque
não pode ser considerado definitivo, mas apenas material ainda em elaboração,
ainda provisório; não se pode excluir que essas obras, especialmente se há muito
em elaboração sem que o autor não se decidisse nunca a completá-las (no todo
ou em parte), fossem repudiadas pelo autor ou consideradas insatisfatórias. (Q
16, § 2, p. 1842)

Embora as observações acima fossem relativas à obra de Marx, eram,


também, apropriadas para aquela que ele mesmo estava escrevendo. Todo o
conteúdo dessa nota parece ter um duplo sentido e se referir, ao mesmo tempo
a Marx e ao próprio Gramsci. Constitui assim, juntamente com aquelas ad-
vertências a respeito do caráter provisório, um convite a seus futuros leitores
à prudência e ao paciente diálogo com o texto (cf. Baratta, 2004, p. 89). O
convite pronunciado pelo marxista sardo, entretanto, tardou a ser ouvido.
Espaços

Após a morte de Gramsci, sua cunhada Tatiana e o líder comunista


Palmiro Togliatti se encarregaram de recuperar os Quaderni e de levá-los em
segurança para Moscou. A primeira notícia sobre sua publicação foi dada pelo
próprio Togliatti em um artigo não assinado publicado no dia 30 de abril de
1944 no jornal do Partido Comunista Italiano, L’Unità:

O tema principal [dos Quaderni] é uma ‘história dos intelectuais italianos’ na


qual é examinada criticamente a função assumida pelos intelectuais como instru-
36 alvaro bianchi

mento das castas dirigentes para manter seu domínio sobre as classes populares,
a rebelião de alguns grandes pensadores perante essa função e os acontecimen-
tos relativos da história e do pensamento italiano. A atenção maior é dedicada
aos anos 1800 e aos nossos tempos e um caderno inteiro trata da filosofia de
B[enedetto]. Croce, o papa laico (...) cuja ditadura sobre a intelectualidade do
último século encobre e assegura a ditadura da casta burguesa reacionária na
ordem econômica e política. (Togliatti, 2001, p. 94-95)

O artigo de Togliatti já fixava uma modalidade de divulgação da obra


de Gramsci que assumiria sua forma material com a reorganização temática do
texto. Em 1947, a editora Einaudi lançou o primeiro volume das obras de An-
tonio Gramsci (Lettere dal carcere), e, a partir de 1948, vieram à luz os Quaderni,
organizados tematicamente e publicados com os seguintes títulos: Il materialis-
mo storico e la filosofia di Benedetto Croce (1948); Gli intelletualli e l’organizazione
della cultura (1949); Il Risorgimento (1949); Note sul Macchiavelli, sulla politica
e sullo Stato moderno (1949); Letteratura e vita nazionale (1950); e Passato e
presente (1951). A reorganização não é completamente arbitrária, na medida em
que poderia ser justificada a partir dos Raggruppamenti di matéria do Quaderno
8. Mas nem por isso deixa de ser problemática. A edição misturava material
escrito nos cadernos miscelâneas com o material dos cadernos especiais, fundia
notas redigidas em momentos diferentes e mudava sua ordem.
Em alguns casos, o material inserido por Gramsci em um cader-
no era, simplesmente, descartado. Em Il materialismo storico e la filosofia di
Benedetto Croce não constavam oito parágrafos presentes no Quaderno 10
e quatro eram transcritos apenas parcialmente. Do Quaderno 11, a adver-
tência e duas notas permaneceram inéditas (cf. Francioni, 1987, p. 20-21).
Como editor dos Quaderni, o líder comunista Palmiro Togliatti também
eliminou importantes passagens consideradas comprometedoras pelo Parti-
do Comunista Italiano. Foram acrescentados, também, textos introdutórios
que tinham por objetivo orientar o leitor em determinadas direções. Assim,
já no Prefácio dos editores do primeiro dos volumes, é possível ler: “Esses
escritos de Gramsci não poderiam ser compreendidos e valorizados de modo
adequado, se não tivessem sido adquiridos os progressos realizados pela con-
eterno/provisório 37

cepção marxista nas três primeiras décadas deste século, devido à atividade
teórica e prática de Lênin e Stalin.” (Gramsci, 1949, p. XVI.)
A afirmação repete o grosseiro retrato construído por Palmiro Togliatti
no artigo “Antonio Gramsci capo della classe operaia italiana” publicado, pela
primeira vez em 1937, no qual Gramsci aparece (e perece) portando “a ban-
deira invencível de Marx-Engels-Lênin-Stalin” (Togliatti, 2001, p. 89). Para o
secretário-geral do PCI, Gramsci não apenas seria um portador desse estandarte
como um discípulo teórico de Stalin: “Gramsci desenvolveu, de 1924 a 1926,
uma atividade excepcional. (...) São deste período os escritos de Gramsci dedi-
cados principalmente a elucidar as questões teóricas da natureza do partido, de
sua estratégia, de sua teoria e de sua organização, nos quais se sente mais forte
a influência profunda exercida sobre ele pela obra de Stalin.” (Idem, p. 82.)
A operação de transformação de Gramsci em um stalinista levada a cabo por
Togliatti foi interpretada como uma tentativa de “salvaguardar o nome de Gra-
msci” perante a Internacional Comunista (p. ex. Liguori, 1996, p. 17), mas se
parece, também, com uma tentativa de salvaguardar a si próprio e ao stalinismo,
apropriando-se do prestígio do prisioneiro de Mussolini.
Os problemas da primeira edição dos Quaderni são acumulativos. Em
primeiro lugar, induzem o leitor a considerar o texto gramsciano como um todo
plenamente acabado e coerente. Não apenas o caráter fragmentário da obra
tornava-se opaco ao leitor, como o agrupamento das notas seguiu o critério
de uma “enciclopédia em compendio de todas as ciências” (Garin, 1996, p.
291), de caráter humanista e até mesmo acadêmico, “uma hierarquia disciplinar
de tipo medieval e idealista: primeiro a filosofia, depois a cultura em geral, a
história, a política e, finalmente, a literatura e a arte” (Monasta, 1985, p. 32)^,
na qual “filósofos, historiadores, políticos, letrados poderiam, assim, encontrar
textos de interesse deles”. (Baratta, 2004, p. 65)
Em segundo lugar, a particular modalidade de investigação do autor
dos Quaderni, “o ritmo do pensamento”, como gostava de dizer, era apagada e
se perdiam as reais determinações dos conceitos por ele elaborados. A própria
ordem de publicação dos escritos tendeu a fazer com que a emergência da crítica
da política na sua produção carcerária perdesse a força original e o autor assim
reconstruído se aproximasse muito da imagem de um crítico da cultura e teó-
38 alvaro bianchi

rico das superestruturas, tão divulgada. O prefácio de Il materialismo storico e


la filosofia di Benedetto Croce reforçava o sentido dessa reconstrução, definindo
os escritos ali reunidos como “o coroamento de toda a pesquisa conduzida por
Gramsci nos anos de prisão, a justificativa teórica, filosófica da impostação dada
ao problema dos intelectuais e da cultura”. (Gramsci, 1949, p. XVI)8
Em terceiro lugar, a inserção dos prefácios e de notas dos editores im-
punha uma chave de leitura stalinizada e fortemente marcada pela nova política
do PCI. Assim, no prefácio de Il materialismo storico e la filosofia di Benedetto
Croce, seus autores faziam os tradicionais alertas a respeito da censura levada a
cabo pela administração carcerária e da necessidade de Gramsci codificar o tex-
to, evitando falar “do proletariado, do comunismo, do bolchevismo, de Marx,
de Engels, de Lênin, de Stalin, do Partido” (idem). A seguir, os mesmos autores
exemplificavam o procedimento de Gramsci, citando uma passagem que veio a
se tornar célebre e inserindo entre colchetes as explicações dos editores:

Que isso não seja ‘fútil’ é demonstrado pelo fato de que ... o maior teórico mo-
derno [Lênin] da filosofia da práxis [do marxismo] ... tenha em oposição às di-
versas tendências ‘econômicas’ revalorizado a frente de luta cultural e construído
a doutrina da hegemonia [da hegemonia do proletariado – isto é das alianças da
classe operária] como forma atual da doutrina quarantottesca [isto é a doutrina
de Marx e não a falsificação feita por Trotsky] da ‘revolução permanente’. (idem,
p. xix-xx. Cf. Q 10/I, § 12, p. 1235)

A sobreposição desses problemas teve impactos profundos sobre a re-


cepção de Gramsci. A ordenação arbitrária das notas escritas na prisão tendeu
a produzir a impressão de um texto acabado, como já foi dito. Nessas circuns-
tâncias, os conceitos aparecem na maioria das vezes em suas formulações mais

8
Sobre a primeira edição dos Quaderni, ver Gerratana (1997, p. 57-72). Chiara Daniele (2005)
reuniu a extensa documentação referente à publicação dessa primeira edição por Palmiro Togliatti.
Para o debate que antecedeu e se seguiu a esta edição e, particularmente, seu nexo com o giro polí-
tico do pci após a Segunda Guerra Mundial (a denominada “svolta di Salerno”), ver Liguori (1996,
p. 28-52). Sobre o sentido político da operação de edição dos cadernos 10 e 11, ver a hipótese de
Francioni (1987, p. 45).
eterno/provisório 39

maduras e é possível a partir daí reduzir o contexto da descoberta a uma ilumi-


nação. A hipótese da “iluminação” gramsciana é reforçada pela impossibilidade
de separar a investigação da exposição. O que está registrado nos Quaderni é
sempre parte da investigação. Ora, a publicação quase que exclusiva das notas
dos cadernos especiais tende a dar à investigação um caráter mais coerente e
finalizado do que ela de fato teve e reforçar a impressão de que Gramsci chegou
a essas conclusões em um momento. Na prisão, assim como Paulo no caminho
de Damasco e Rousseau em Vincennes, Gramsci teria de modo instantâneo
construído mentalmente sua filosofia da práxis.
Para se ter idéia do grau de confusão provocado pelo rearranjo dos
textos gramscianos pela edição temática dos Quaderni del carcere, pode-se to-
mar como exemplo a interpretação que Nicos Poulantzas faz da questão do
historicismo que se apresenta nessas notas. Rebatendo para Gramsci de modo
esquemático a tese althusseriana da ruptura epistemológica entre o jovem Marx
e o da maturidade, afirmou o autor de Pouvoir politique et classes sociales:

é possível localizar em Gramsci uma cesura nítida entre a suas obras de juven-
tude – entre outras, os artigos do Ordine Nuovo até Il materialismo storico e la
filosofia di Benedetto Croce inclusive – de concepção tipicamente historicista, e as
suas obras de maturidade, de teoria política, os Quaderni di [sic!] carcere – entre
eles Maquiavel, etc. – nos quais elabora o conceito de hegemonia. (Poulantazas,
1977, p. 134)

Ora, não apenas Il materialismo storico e la filosofia di Benedetto Cro-


ce é parte dos Quaderni del carcere, como vários dos parágrafos que compõem
aquela “obra” foram escritos após Gramsci ter iniciado a redação do Quaderno
13, no qual se encontra a maior parte dos textos que fazem parte de Note sul
Machiavelli, sulla politica e sullo stato moderno (1949). Certamente Poulantzas
não tinha como saber a respeito da datação dos parágrafos dos Quaderni, o que
só foi estabelecido no imprescindível estudo de Gianni Francioni (1984). Mas
já em 1967 Gerratana havia comentado o processo de preparação de uma edição
crítica, destacando sua fragmentariedade, no congresso de estudos gramscianos
ocorrido em Cagliari. Tal congresso não era estranho aos franceses, uma vez
que nele Jacques Texier havia tido uma importante participação comentando a
40 alvaro bianchi

apresentação de Norberto Bobbio (cf. Texier, 1975). Mas embora bastasse uma
leitura atenta do prefácio dos editores a Il materialismo storico e la filosofia di
Benedetto Croce para não cometer esse grosseiro equívoco, é preciso reconhecer
que a edição temática induzia ao erro.9
Recém-publicados, os textos começaram a percorrer o mundo. Apenas
três anos após a publicação das Lettere dal carcere na Itália, elas foram traduzi-
das para o espanhol e publicadas na Argentina pela editora Lautaro.10 A edição
desse texto foi seguida pela publicação, pela mesma editora, de El materialismo
histórico y la filosofia de Benedetto Croce (1958), Los intelectuales y la organización
de la cultura (1960), Literatura y vida nacional (1961) e Notas sobre Maquiavelo,
sobre la política y sobre el Estado moderno (1962). Ficaram de fora, entretanto, os
volumes Il Risorgimento e Passato e presente, que tiveram que esperar o final dos
anos 1970 para virem à luz pela editora mexicana Juan Pablos (cf. Burgos, 2004,
p. 32 e 42-43 e Aricó, 2005, p. 49-50).
Pode não ser coincidência, ressaltou Jaime Massardo (1999), que a
primeira edição dos Quaderni fora da Itália tenha ocorrido no único país da
América Latina que, segundo Gramsci, não necessitaria atravessar uma fase de
Kulturkampf e de advento de um Estado moderno laico (Q 3, § 5, p. 290). En-

9
Louis Althusser e seus discípulos tiveram em grande medida o mérito de terem projetado a obra
de Gramsci no debate filosófico francês. Mas seus estudos publicados na década de 1960 revelam
um conhecimento apenas superficial, incompatível com a extensão da crítica que pretendiam pro-
mover. Assim, por exemplo, Althusser em meio a sua pretensiosa crítica ao historicismo chega a
interpolar entre colchetes no interior de uma nota de Gramsci dedicada à crítica ao Ensaio popular
uma observação, indicando erroneamente ao leitor que essa obra seria de autoria de Benedetto
Croce, ao invés de Nicolai Bukharin, como saberia qualquer um que tivesse lido com atenção o
texto que o filósofo francês criticava (Althusser, 1980, p. 70). As incompreensões e os desconhe-
cimentos não são exclusividade de Althusser e seus discípulos. Comentando criticamente a leitura
que Althusser fez de Gramsci, Aricó escreveu (em 1987!) que Para leer el Capital, era o “título com
o qual se traduziu para o espanhol seu célebre Pour Marx, redigido em colaboração com alguns de
seus discípulos”. (Aricó, 2005, p. 132.)
10
A editora Lautaro, dirigida por Sara Maglione de Jorge e Gregorio Levin era controlada pelo
Partido Comunista Argentino (pca) e coube a um dirigente desse partido, Héctor Pedro Agosti, a
coordenação da edição de Gramsci na Argentina.
eterno/provisório 41

tretanto, para Aricó, tradutor e apresentador de vários desses livros, tudo pode
ter sido apenas um equívoco, na medida em que a publicação e aceitação de
Gramsci ocorreram devido a um “virtual desconhecimento da especificidade
de sua obra” por parte do Partido Comunista Argentino (pca). Por essa razão,
o sardo teria permanecido marginal na cultura dos comunistas argentinos (cf.
Aricó, 2005, p. 49).
Mesmo assim, na margem, essa cultura vivificou uma importante
corrente político, intelectual-nucleada na revista Pasado y Presente, editada
em Córdoba a partir de abril de 1963, por José Aricó, Oscar del Barco e
outros, expulsos do pca poucos meses depois.11 Foi por meio desse movimento
cultural proveniente da Argentina que o pensamento e a obra de Gramsci
começaram a circular mais intensamente no Brasil. O nome de Gramsci já era,
entretanto, conhecido aqui. Jovens intelectuais vinculados ao Partido Comu-
nista Brasileiro (pcb) passaram a citá-lo e o sardo encontrou maior espaço em
revistas editadas por militantes do partido, como a Revista Brasiliense, dirigida
por Caio Prado Jr. No final dos anos 1950, Elias Chaves Neto utilizava essas
idéias em suas análises da política, além de citar Héctor Agosti (cf. Secco,
2002, p. 24). E no começo dos anos 1960, Antonio Cândido, Carlos Nelson
Coutinho e Leandro Konder fizeram referências ao pensamento filosófico e
à crítica literária de Antonio Gramsci (cf. Coutinho, 1999, p. 283). Coube,
entretanto, a Michael Löwy (1962), um uso mais consistente do pensamento
gramsciano pela primeira vez, para a análise dos problemas políticos, em um
artigo publicado, novamente, na Revista Brasiliense.
Foi nesse contexto de difusão do pensamento gramsciano na Améri-
ca Latina que teve início, a partir de meados dos anos 1960 a preparação da
edição brasileira dos Quaderni del carcere, pela editora Civilização Brasileira.
Desde, pelo menos, outubro de 1962, conforme esclareceu recentemen-
te Coutinho (1999a, p. 32-38) a partir da análise da correspondência do

11
A esse respeito, o ensaio-testemunho de Aricó é imprescindível (2005, p. 89-108). De modo
minucioso, o trabalho de Raúl Burgos (2004) reconstrói essa trajetória. Kohan (2005,) em uma
breve resenha, censurou Burgos por permanecer preso à versão do próprio Aricó e ressaltou que os
estudos gramscianos na Argentina não se limitavam ao grupo de Pasado y presente e teriam incluído
a revista La rosa blindada, dirigida por José Luis Mangieri.
42 alvaro bianchi

editor-proprietário da editora brasileira, Ênio Silveira, com o então diretor


do Istituto Gramsci, Franco Ferri, havia contatos com vistas à publicação da
obra de Gramsci no Brasil. O projeto esteve sempre sob direção de Silveira,
que escolheu os tradutores, os apresentadores dos volumes e definiu que
livros seriam publicados.
Essa primeira edição brasileira foi feita, evidentemente, com base na
edição temática togliattiana. Para evitar um juízo anacrônico, vale ressaltar que
essa era a única edição disponível no final dos anos 1960 e que a edição argen-
tina seguia o mesmo critério. Com traduções e preparação dos originais de Luiz
Mário Gazzaneo, Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, a edição brasileira
reproduzia os problemas da edição original e acrescentava sua cota. Os prefácios
da edição italiana foram sumariamente suprimidos, deixando o leitor brasileiro
sem saber que se tratava de uma reconstrução do texto original, mas as notas
“esclarecendo” passagens do original foram mantidas.
A tradução também trazia suas deficiências próprias. Os problemas eram
muito maiores no volume Maquiavel, a política e o Estado moderno, traduzido
por Luiz Mário Gazzaneo, sendo o mais gritante a passagem na qual a revolução
“quarantottesca” (Q 13, § 7, p. 1566) – referente às revoluções de 1848 – se
transformava por um passe de mágica em “jacobino-revolucionária” (Gramsci,
1991, p. 92). Também grave é a tradução de liberismo, de uso freqüente no idio-
ma italiano, e referente a livre-cambismo por “liberalismo”, também existente
em italiano mas que se refere ao movimento político de defesa das liberdades
individuais (idem, p. 32).
Tanto o editor-proprietário como os tradutores dessa edição tinham
vínculos com o pcb. Mas, repetindo o fenômeno que já se havia verificado na
Argentina, foi apenas na margem desse partido e entre os intelectuais que a
obra de Gramsci repercutiu. Como reconheceu Coutinho (1999, p. 286), essa
primeira difusão no Brasil estava ainda muito marcada pela leitura togliattiana e
enfatizava os aspectos filosóficos e culturais da obra do marxista sardo. Repetia-
se, assim, a impostação inicial dada à difusão dos Quaderni na Itália.
Posteriormente, Coutinho (1999a, p. 35-35) esclareceu que ao con-
trário do que ele mesmo imaginava, o editor Ênio Silveira, já no início das
negociações com o Istituto Gramsci, havia optado por suprimir os volumes O
eterno/provisório 43

Risorgimento e Passado e presente, o que teve grande impacto na recepção de


Gramsci no Brasil.12 Assim, a não publicação desses volumes não foi uma decor-
rência do Ato Institucional no 5, de dezembro de 1968, como chegou a escrever
o mesmo autor (Coutinho, 1999, p. 285). Mas, certamente, o ai-5 e a radical
mudança do ambiente político cultural que teve aí seu início condicionaram
a recepção de Gramsci no Brasil e, provavelmente, determinaram o fracasso
editorial dessas primeiras edições.
Felizmente, a partir de 1975 foi possível contar com uma edição crítica
dos Quaderni del carcere, publicada na Itália pela mesma editora Einaudi, sob a
responsabilidade de Valentino Gerratana. A edição trouxe à luz a totalidade dos
cadernos escritos por Gramsci na prisão – com a exceção dos quatro dedicados
à tradução –, organizados cronologicamente. Seguindo as ocasionais indicações
de Gramsci em suas cartas e nos próprios Quaderni, a edição crítica numerou
todos os cadernos cronologicamente de 1 a 29 (são excluídos da numeração os
cadernos de tradução), bem como os parágrafos em seu interior. Os cadernos
foram divididos em miscelâneas, onde predominam as notas esparsas sobre vá-
rios temas (volumes 1 a 9, 14, 15 e 17), e especiais (10 a 13, 16, 18 a 29), mas
apresentados contiguamente de acordo com a sua numeração.
A edição Gerratana também dividiu os parágrafos em textos A, redigidos
nos cadernos miscelâneos e reescritos, com ou sem modificações, nos cadernos
especiais como textos C; e textos B, de redação única, presentes na maioria das
vezes nos cadernos miscelâneos. Tal apresentação permite uma reconstrução do
percurso da reflexão gramsciana ao longo de seus anos de prisão. Não faltaram
críticas à edição, como aquelas apresentadas por Gianni Francioni, que sugere
uma nova datação dos cadernos e propõe uma separação mais nítida entre os
miscelâneos e os especiais.13 As críticas não retiram, entretanto, o valor da edição
Gerratana, que se tornou uma ferramenta indispensável para um tratamento
mais aprofundado da produção intelectual gramsciana.

12
Avaliações críticas dessa edição e de seu impacto nos estudos gramscianos brasileiros podem ser
vistas em Nosella (2004, p. 27-35) e Dias (1996b).
13
Sobre o acalorado debate a respeito da edição Gerratana e da publicação de uma nova edição das
obras de Gramsci, ver. (Liguori) 1996, p. 247-253).
44 alvaro bianchi

Sua grande virtude está, como o editor aponta, na possibilidade de


captar a unidade do pensamento de Antonio Gramsci no próprio processo de
sua construção. Revelava-se assim o caráter assistemático e, até mesmo, anti-
sistemático, ao mesmo tempo que profundamente orgânico, do empreendi-
mento intelectual levado a cabo nos Quaderni. Segundo Gerratana, o “estudo
do desenvolvimento do pensamento gramsciano no corpus dos Quaderni (...)
faz compreender o quanto esse pensamento é vivo e unitário por intermédio,
propriamente, de sua fragmentação”. (Gerratana, 1997, p. 25)
A opção dos editores brasileiros e, particularmente, de Carlos Nelson
Coutinho, quando decidiram lançar uma nova edição dos Quaderni del carcere
pela editora Civilização Brasileira no final dos anos 1990, não foi, entretanto, a
edição Gerratana. Optaram por um modo misto, no qual a divisão temática é
mantida, mas os cadernos especiais são apresentados integralmente nessas divi-
sões, seguidos das passagens dos cadernos miscelâneos nas quais os temas eram
tratados. Os textos A da edição Gerratana foram, entretanto, suprimidos. Os
seis volumes foram assim organizados:

Volume 1 – Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce.


Volume 2 – Os intelectuais, o princípio educativo. Jornalismo.
Volume 3 – Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política.
Volume 4 – Temas de cultura. Ação católica. Americanismo e fordismo.
Volume 5 – O Risorgimento . Notas sobre a história da Itália.
Volume 6 – Literatura. Folclore. Gramática. Apêndices. Variantes e índices.

Os méritos da presente edição são inegáveis. Os mais evidentes dizem


respeito à publicação, pela primeira vez em português, de boa parte da produção
carcerária, notadamente dos textos que compunham o Quaderno 19 sobre o
Risorgimento italiano. A discussão sobre o processo de construção do Estado
nacional italiano por meio de uma revolução passiva, que permite compreender
de modo mais abrangente as formas do conceito de hegemonia no pensamento
gramsciano e os limites da capacidade de direção das classes dominantes, foi en-
riquecida pela publicação desse caderno, o mais extenso da produção carcerária.
Merecem destaque, também, a publicação no volume 1 dos diferentes projetos
eterno/provisório 45

de Gramsci para os Quaderni e a incorporação no volume 6 de duas importantes


ferramentas para a pesquisa crítica: a tabela de correspondências completa, que
permite localizar todos os parágrafos da edição Gerratana na edição brasileira, e
a datação elaborada por Gianni Francioni (1984) da redação dos Quaderni.
A tradução corrige várias falhas e, dentre elas, a expressão “quarantottes-
ca”, que passa a ser traduzida por “própria de 1848”, o que não deixa de ser uma
boa solução para um problema difícil (cc, v. 3, p. 24). Liberismo, por sua vez, volta
ao texto gramsciano.14 Como seria de se esperar, os “esclarecimentos” dos editores
da edição togliattiana também foram suprimidos, bem como os prefácios da velha
edição temática. A nova edição, entretanto, não está isenta de erros. Dois deles são
bastante graves porque incidem no material que deveria permitir uma pesquisa
crítica. No volume 1, a importantíssima carta a Tatiana Schucht de 25 de março
de 1929 aparece com a data de “24 de fevereiro de 1929” (cc, v. 1, p. 78). E na
reprodução da cronologia de Francioni, a data da redação das “Notas esparsas”
que iniciam o Quaderno 8 aparece equivocadamente como sendo “entre novem-
bro e dezembro de 1931”, em vez de “entre novembro e dezembro de 1930”, e
o “Reagrupamento de matéria” também é datado como sendo redigido “entre
novembro e dezembro de 1931”, ao invés de “entre março e abril de 1932”, como
Francioni (cc, v. 6, p. 460 e Francioni, 1984, p. 142). Coincidentemente, as datas
equivocadamente imputadas a Francioni na edição brasileira são as mesmas que
Gerratana atribui a essas passagens na edição crítica (Q, p. 2395-2396).
Todos aqueles que se interessam no Brasil pelo pensamento de An-
tonio Gramsci têm agora em suas mãos uma edição muito mais confiável e
completa dos Cadernos. O mérito é sem dúvida de Carlos Nelson Coutinho,
Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Mas a opção dos res-
ponsáveis pela nova edição não soluciona alguns problemas constatados ao
longo dos anos. Em vez de adotarem a edição crítica de Gerratana, optaram

14
Sobre a importância da distinção entre liberalismo e liberismo para o pensamento político
italiano ver Rego (2001, p. 78-80). Em uma resenha da edição brasileira dos Cadernos assinalei
equivocadamente que, embora adequada, a utilização do neologismo liberismo mereceria uma nota
explicativa (Bianchi, 2004). De fato, no caderno 13, publicado no volume 3 dos Cadernos do
cárcere, os autores não justificavam o uso da expressão, mas a justificativa já se encontrava nas notas
ao caderno 10, previamente publicado (cc, v.1, p. 483). Corrijo aqui então minha omissão.
46 alvaro bianchi

por uma versão mista, como já foi dito. O resultado final dificulta enorme-
mente a reconstrução do lessico gramsciano. O trabalho filológico necessário
para tal reconstrução é muitas vezes inviabilizado pela forma de organização
do texto e pela supressão dos textos A. A não ser que o pesquisador recorra
à tabela de correspondências e se ampare na edição Gerratana, esse trabalho
pode se tornar impossível.15
A opção editorial pode ser justificada de várias maneiras e Coutinho
argumenta nesse sentido na bela apresentação publicada no volume 1. Mas é
de se notar que exatamente no momento em que a editora Era, do México,
completava sua publicação em seis volumes dos Cadernos do cárcere, baseada na
edição Gerratana, veio à luz no Brasil uma versão que sintetiza um magnífico
esforço editorial, mas que fica longe de ser definitiva. A nova edição brasileira
está longe, também, de poder ser considerada uma edição “temático-crítica”,
como a ela se referem Carlos Nelson Coutinho e Andréa de Paula Teixeira
(2003, p. 10). E não é a organização temática que impede tal tratamento, mas
a supressão dos parágrafos A, o que torna a publicação dos textos originais in-
completa, bem como os limites de seu aparelho crítico, muito aquém daquele
elaborado por Gerratana.
Se o objetivo era agradar um público mais amplo que fatalmen-
te encontraria dificuldades com a aridez da edição Gerratana, por que não
simplesmente completar a velha coleção temática, mantendo-a no catálogo,
e publicar, paralelamente, a edição crítica, como acabam de fazer no Méxi-
co? O trabalho de leitura dos Cadernos do cárcere não fica mais fácil porque
seus temas foram agrupados. O próprio Gramsci já havia resolvido a questão
reunindo o material nos chamados cadernos especiais. A leitura dos cadernos
continuará, infelizmente, árdua.

15
Sobre a importância desses textos, vale o recente alerta de Baratta: “Aqui é preciso evidenciar
um outro não insignificante problema relacionado a Gramsci escritor. A reelaboração das suas
notas e apontamentos de primeira redação em ‘Cadernos especiais’ representa certamente um passo
adiante na direção de uma almejada redação ‘definitiva’, mas apenas em parte: nem sempre o
que se ganha compensa o que se perde (em força, objetividade, eficácia). Muitos mal-entendidos,
não pouca superficialidade de leitura, tiveram origem na Itália de uma escassa atenção à primeira
redação de boa parte dos Cadernos”. (Baratta, 2004, p. 98)
eterno/provisório 47

Tempos

Coube aos estudos pioneiros de Valentino Gerratana (1997) e de Gianni


Francioni (1984) estabelecer as ferramentas que permitiram o desenvolvimento
de novas e originais pesquisas que renovaram os estudos gramscianos. A partir
da edição crítica dos Quaderni del carcere, publicados por Gerratana em 1975,
tornou-se possível superar as leituras sistemáticas que impunham artificialmente
uma ordem externa ao texto e desenvolver investigações que procuravam cap-
tar a unidade do pensamento de Antonio Gramsci no próprio processo de sua
construção. Posteriormente, Francioni levou a cabo uma meticulosa datação
dos parágrafos no interior de cada caderno (1984), o que permitiu valorizar a
história interna dos Quaderni.
Com base nessas ferramentas, desde o ano de 2000, o seminário sobre o
lessico gramsciano realizado em Roma tem explorado uma metodologia filológica, re-
novando os estudos sobre a obra do marxista sardo (ver, p. ex. Baratta, 2004; Frosini,
2003; Frosini e Liguori, 2004; e Medici, 2000). Esse método de restauração, como
é denominando por Gerratana (1997), encontra-se fortemente ancorado no próprio
Gramsci. Em uma nota escrita a respeito da obra de Marx, afirmava esse autor:

Se se quer estudar o nascimento de uma concepção de mundo que nunca foi ex-
posta sistematicamente por seus fundador (...), é preciso fazer preliminarmente um
trabalho filológico minucioso e conduzido com o máximo escrúpulo de exatidão,
de honestidade científica e de lealdade intelectual, de ausência de todo precon-
ceito e apriorismo ou posição pré-concebida. É preciso, inicialmente, reconstruir
o processo de desenvolvimento intelectual do pensador dado para identificar os
elementos que se tornam estáveis e ‘permanentes’, ou seja, que são assumidos como
pensamento próprio, diverso e superior ao ‘material’ precedentemente estudado
e que lhe serviu de estímulo; apenas estes elementos são momentos essenciais do
processo de desenvolvimento. (...) a pesquisa do leitmotiv, do ritmo do pensamen-
to em desenvolvimento deve ser mais importante que as afirmações particulares e
casuais e que os aforismos isolados. (Q 16, § 2, p. 1840-1842)
48 alvaro bianchi

A minuciosa discussão a respeito desse parágrafo e daqueles que lhe seguem


feita por Baratta (2004, cap. iv) ressalta o valor metodológico que Gramsci atribuía a
essa passagem. Os cuidados que o sardo exigia a respeito da obra de Marx tornam-se
ainda mais importantes para a leitura dos Quaderni devido a suas características
fragmentárias e inconclusas. As exigências metodológicas necessárias para seu estudo
não anulam, entretanto, o valor da obra, embora comprometam irremediavelmente
interpretações ligeiras. Depois dos trabalhos pioneiros de Gerratana e Francioni,
tornou-se possível assumir o caráter fragmentário e inconcluso da reflexão gramscia-
na, sem com isso deixar de apreender sua unidade ou coerência interna.
A compreensão do caráter vivo e unitário desse pensamento impõe mais
uma exigência metodológica: a reconstrução das fontes teóricas dos Quaderni e
das Lettere. A contextualização eficaz do pensamento gramsciano e a reconstrução
de suas fontes possibilita restaurar o diálogo crítico que Gramsci estabeleceu com
autores que compunham o ambiente literário da época e acompanhar de modo
minucioso o processo de construção de seu novo léxico político. Tal contextu-
alização permite reencontrar o pensamento do marxista italiano na confluência
histórica da revolução italiana com o movimento comunista internacional.
As fontes fundamentais da elaboração teórica do marxista sardo não deve-
riam, portanto, ser procuradas exclusivamente no seio da Internacional Comunista
(como p. ex. Gruppi, 1987 e 2000), muito embora os debates teóricos nesse contex-
to sejam fundamentais para sua compreensão. Nem deveriam ser consideradas como
pertencentes a um contexto geográfico e intelectual restrito, apesar de ele iluminar
importantes aspectos teóricos (como p. ex. Bellamy, 1987 e 1990). Trata-se, antes
de tudo, de reconhecer a complexidade das fontes do pensamento gramsciano e de
verificar como ele se insere no contexto político-cultural italiano e europeu.
Tais contextos não são, entretanto, contêmporâneos entre si. A noção
de discordância dos tempos, desenvolvida por Daniel Bensaïd (1995 e 1996)
é, aqui, de grande importância. Rejeitando a concepção de tempo linear e
homogêneo, Bensaïd resgata na obra de Marx uma noção do tempo marcada
pelo contratempo e pela não-contêmporaneidade, capaz de explodir e frag-
mentar as linhas evolutivas próprias da historiografia positivista, revelando
descontinuidades radicais e saltos acrobáticos no espaço-tempo da história. Ao
invés de uma concepção teleológica da história, que a reduziria a mera espera,
eterno/provisório 49

uma concepção da história como tragédia. Ao invés de uma narrativa historio-


gráfica que pusesse ordem no caos dos fatos, uma nova escrita da história. Pois
foi uma nova escrita da história que Gramsci começou a produzir na prisão,
naquele exato momento em que escreveu a sua cunhada, em março de 1927,
relatando seu projeto de “fazer algo für ewig”.
Sua técnica de escrita revela a complexidade do projeto. Os diferentes
cadernos não foram redigidos segundo uma ordem cronológica. Vários eram
confeccionados ao mesmo tempo; alguns eram temporariamente deixados de
lado, enquanto outros eram iniciados; páginas em branco eram intercaladas
para serem preenchidas mais tarde, tudo isso em um meticuloso processo de
artesanato intelectual. A transcrição de uma nota pertencente a um “caderno
miscelâneo” para um “caderno especial”, por sua vez, não era um fato mecânico.
Inserindo uma nota ao lado de outras e no interior de pesquisas muitas vezes
diferentes da original, a transcrição era parte da paciente confecção de uma
intrincada rede conceitual que interconectava diferentes temas por meio de uma
multidão de fragmentos (Buttigieg, 1990, p. 65).
Em parte, alertou Buttigieg, o caráter fragmentário dos Quaderni se deve
ao método “filológico” que estrutura sua composição e exige uma atenção cuida-
dosa pelo particular a partir do qual o universal cobrava vida (idem, p. 80). Nessa
relação dialética entre o universal e o particular, a discordância dos tempos ditada
pela história se manifestava objetivamente, mas de modo complexo, na materiali-
dade do texto gramsciano. De modo complexo porque a investigação e a exposi-
ção partilhavam o mesmo suporte, os Quaderni del carcere e as Lettere dal carcere,
sendo, desse modo, impossível separar materialmente o momento da investigação
do momento da exposição (cf. Coutinho, 1999, p. 79-80). Mas também porque
se trata da exposição provisória de uma investigação inacabada.16

16
Segundo Coutinho, “os Cadernos contêm um primeiro tratamento sistemático do material da
investigação, embora Gramsci não tenha tido o tempo e as condições necessárias para trabalhá-lo
adequadamente segundo o método da expostição” (1999, p. 79). O mesmo Coutinho parece ter se
distanciado dessa afirmação ao escrever, recentemente, que “os ‘cadernos especiais’ são tentativas
(ainda que nem sempre exitosas, é verdade) de passar do método da investigação, próprio dos
‘cadernos miscelâneos’, àquele da exposição” (2003, p. 69).
50 alvaro bianchi

A estrutura da obra revela o movimento da reflexão de seu autor. Na


complexidade do texto, e por meio dele, torna se possível reencontrar o tempo his-
tórico no qual foi produzido, o tempo de sua época, e o tempo biográfico, aquele
de sua própria existência na prisão. O tempo da obra não é aquele que determina
as demais temporalidades, mas é aquele que as revela. É por meio dele que se torna
possível reconstruir o léxico temático e conceitual que tem lugar nos Quaderni.
É nele que os ritmos da produção da obra estão cristalizados sob a forma de uma
sofisticada notação e que a história – a sua própria, a de seu passado e de seu
presente – impregna o texto. O caráter provisório da obra, sua fragmentariedade,
enfim, sua não contêmporaneidade, exige uma nova abordagem.
Gramsci alertava que “toda pesquisa tem seu método determinado” (Q
11, § 15, p. 122). A leitura dos Quaderni impõe que essa máxima seja levada a
sério. Revelar o ritmo do pensamento registrado nele exige estar atento à pluralida-
de de seus tempos. Tome-se um conceito-chave, o de hegemonia, e se comparem
duas versões. A primeira delas está presente no Quaderno 1 e foi redigida, prova-
velmente, entre fevereiro e março de 1929; a segunda insere-se no Quaderno 19,
no contexto de uma pesquisa sobre o Risorgimento, e foi escrita, provavelmente,
entre fevereiro de 1934 e fevereiro de 1935. Nelas, dizia Gramsci:

O critério histórico-político sobre o qual se deve fundar a própria pesquisa é o se-


guinte: que uma classe é dominante de duas maneiras, quer dizer, é “dirigente” e
“dominante”. É dirigente das classes aliadas, é dominante das classes adversárias.
Por isso uma classe, antes mesmo de chegar ao poder, pode ser “dirigente” (e deve
sê-lo): quando está no poder torna-se dominante, mas continua a ser, também,
“dirigente”. Os moderados continuaram a dirigir o Partito d’Azione mesmo de-
pois de [18]70 e o “transformismo” é a expressão política dessa ação de direção;
toda a política italiana de [18]70 até hoje é caracterizada pelo “transformismo”,
isto é, pela elaboração de uma classe dirigente nos quadros fixados pelos mode-
rados depois de 1848, com a absorção dos elementos ativos, tanto das classes
aliadas como das inimigas. A direção política torna-se um aspecto de domínio,
enquanto a absorção das elites das classes inimigas produz a decapitação destas
e a própria impotência. Pode-se e se deve ser uma “hegemonia política” mesmo
antes de ir ao governo e não se precisa contar somente com o poder e a força
eterno/provisório 51

material que este poder dá para exercer a direção ou hegemonia política. Da


política dos moderados aparece clara esta verdade e é a solução desse problema
que tornou possível o Risorgimento na forma e nos limites nos quais ele ocorreu,
de revolução sem revolução [ou de revolução passiva, segundo a expressão de V.
Cuoco]. (Q 1, § 44, p. 41.)

O critério metodológico sobre o qual é preciso fundar a própria análise é o seguin-


te: que a supremacia de um grupo social se manifesta de duas maneiras, como
“domínio” e como “direção intelectual e moral”. Um grupo social é dominante
dos grupos adversários que tende a “liquidar” ou submeter, mesmo que com a
força armada, e é dirigente dos grupos afins e aliados. Um grupo social pode e
deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governativo (esta é uma das
condições principais para a própria conquista do poder); depois, quando exer-
cita o poder e na medida em que o mantém fortemente em suas mãos, torna-se
dominante, mas deve continuar sendo “dirigente”. Os moderados continuaram
a dirigir o Partito d’Azione mesmo depois de 1870 e 1876, e o assim chamado
‘transformismo’ não é mais que a expressão parlamentar desta ação hegemônica
intelectual, moral e política. Pode-se dizer, por outro lado, que toda a vida es-
tatal italiana de 1848 em diante é caracterizada pelo transformismo, isto é, pela
elaboração de uma classe dirigente sempre mais ampla nos quadros fixados pelos
moderados depois de 1848 e da queda da utopia neogüelfa e federalista, com a
absorção gradual, mas contínua e obtida com métodos diversos em sua própria
eficácia, dos elementos ativos, tanto dos grupos aliados como dos adversários
que pareciam inimigos irreconciliáveis. Nesse sentido, a direção política torna-se
um aspecto da função de domínio, na medida em que a absorção das elites dos
grupos inimigos conduz à decapitação destes e ao próprio aniquilamento por
um período muito longo. Da política dos moderados aparece claro que ela pode
ou deve ser uma atividade hegemônica mesmo antes de ir ao poder e que não
precisa contar somente com as forças materiais que o poder dá para exercer uma
direção eficaz: precisamente a brilhante solução deste problema tornou possível o
Risorgimento na forma e nos limites nos quais ele ocorreu, sem “Terror”, como
“revolução sem revolução”, ou seja, como “revolução passiva”, para empregar
uma expressão de Cuoco em um sentido um pouco diferente daquele que ele
usava. (Q 19, § 24, p. 2010-2011)
52 alvaro bianchi

A nota do Primo Quaderno é de grande relavância. É nela que pela


primeira vez aparecem algumas expressões que marcaram a pesquisa gramscia-
na: direção, dominação, hegemonia política e transformismo. Mas as diferen-
ças entre a primeira e a segunda construção não deixam de ser importantes. As
mais sutis são as mais reveladoras. Por que Gramsci coloca entre aspas várias
dessas expressões na primeira versão – “direção”, “dominação” e “hegemonia
política” – e retira essas marcas na segunda? E por que faz o contrário, colo-
cando aspas na segunda versão em palavras – “revolução passiva” – que não
tinham na primeira?
Analisando essas discrepâncias, Ragazzini (2002) recorreu a uma ines-
perada “filologia das aspas” para explicar o processo de construção do léxico
temático e conceitual gramsciano. Era por meio de um particular uso dessas
marcas que o autor dos Quaderni assinalava o estágio de elaboração dos concei-
tos, registrando vocábulos e expressões de uso corrente ou que não pertenciam
ao âmbito da filosofia da práxis. Na segunda versão do texto, a ausência das
aspas indicaria uma incorporação dos termos ao léxico gramsciano, assumindo,
entretanto, um significado que não era mais idêntico àquele original. O inverso
também é freqüente nos Quaderni, como se pode ver pelo uso da expressão
“revolução passiva”. No Primo Quaderno ela era assimilada completamente pelo
texto gramsciano, que a incorporava como parte de seu léxico. Mas no Quader-
no 19 ela aparecia entre aspas, e seguida da advertência de que era utilizada “em
um sentido um pouco diferente” daquele original.
Esse recurso parece ser uma imposição do próprio processo de produ-
ção teórica de Gramsci. O intenso diálogo crítico com a cultura de sua época
fazia com que se apropriasse livremente de conceitos que, depois de reconstru-
ídos, passavam a fazer parte de sua própria concepção, assumindo significados
renovados. Sua leitura da obra filosófica de Marx e das interpretações a res-
peito já lhe haviam feito perceber quantos problemas decorrem da utilização
de um vocabulário ultrapassado. Daí a importância que atribuiu à suposta
afirmação de Napoleão Bonaparte perante a Academia de Bolonha: “quando
se encontra alguma coisa verdadeiramente nova, é necessário adequar-lhe um
vocábulo completamente novo a fim de manter de modo preciso e distinto a
idéia” (Q 11, § 27, p. 1433).
eterno/provisório 53

Mas o que acontece quando não é possível construir esse novo vocabu-
lário? Nesse caso, devem-se explicitar os novos sentidos atribuídos às palavras,
o que Gramsci procurava fazer de modo minucioso em sua escrita, demarcando
aquilo que era novo do velho. Para explicitar esses novos sentidos que velhos
conceitos assumem, é preciso conhecer os antigos. É preciso reconstruir o
diálogo crítico que Gramsci estabeleceu com Nicolau Maquiavel e Francesco
Guicciardini, com Antonio Labriola e Georges Sorel, com Benedetto Croce e
Giovanni Gentile, com Vladimir Lênin e Leon Trotsky. Foi por meio deles que
Gramsci, no cárcere, se comunicou com o mundo e dialogou com seu tempo,
reencontrando por meio do texto a história que lhe fora confiscada pela prisão.
Materialismo/Idealismo

A partir de maio de 1930, Gramsci começou a desenvolver na prisão


um extenso programa de pesquisa filosófica. Para tanto abriu uma nova seção no
Quaderno 4, com vistas a recolher as anotações de sua investigação. Essa seção,
intitulada Appunti di filosofia, foi desenvolvida nos cadernos 7 e 8, e a maior
parte do material ali apresentado foi posteriormente reorganizado nos cadernos
especiais 10 e 11.
A redação dos Appunti di filosofia dos cadernos 4 e 717 foi levada a cabo
sob a égide do programa de pesquisa contido na carta a Tatiana de 25 de março
de 1929 e o mesmo se pode dizer dos parágrafos da terceira série dos Appunti,
contidos no Quaderno 8 e redigidos até fevereiro de 1932. Construídos em torno
da temática mais ampla da “teoria da história e da historiografia” esses primeiros
apontamentos organizavam-se em torno de um conjunto de rubricas recorrentes
e de suas variantes: Problemi fontamentali del marxismo, Struttura e superestruttura,
Note e osservazioni critiche sul ‘Saggio popolare’, Croce e Marx, etc.
Com a redação dessas notas seu autor pretendia contribuir para uma
renovação do materialismo histórico, trabalhando teoricamente seus conceitos
fundamentais. Dessa maneira, a teoria marxista poderia se colocar em condições
de competir lado a lado com a filosofia contêmporânea mais avançada de sua épo-
ca, identificada na figura de Benedetto Croce, respondendo à crítica neoidealista.
Poderia, ao mesmo tempo, subtrair o marxismo da corrente materialista-vulgar da
qual o texto de Bukharin era apenas um exemplo (cf. Frosini, 2003, p. 67).
A carta de 1929 em que Gramsci enumerava os temas principais dessa
pesquisa já anunciava a intenção de tratar Croce e Bukharin no interior de uma
mesma problemática. Depois de enumerar suas novas prioridades de pesquisa –

17
Os Appunti di filosofia I presentes no Quaderno 4 foram redigidos, segundo Francioni, entre
maio de 1930 e novembro do mesmo ano; os Appunti di filosofia II, do Quaderno 7, entre novem-
bro de 1930 e novembro de 1931 (1984, p. 141-142).

55
56 alvaro bianchi

a história italiana do século XIX e a questão dos intelectuais; teoria da história


e da historiografia; e americanismo e fordismo –, Gramsci enumerava os livros
que já possuía e pedia outros:

sobre a teoria da história, gostaria de ter um volume francês lançado recentemente:


Bukharin, Théorie du matérialisme historique, Editions Sociales – Rue Valette 3,
Paris (Ve.), e as Œuvres philosophiques de Marx, publicadas pelo ed. Alfred Costes
Paris: Tome Ie, Contribution à la critique de la Philosophie du droit de Hegel – Tome
II, Critique de la critique critique, contra Bruno Bauer e consortes. – Já tenho os
livros mais importantes de Benedetto Croce a respeito. (lc, p. 264-265)18

A abrangência do tratamento dado a Bukharin e Croce nos Quaderni


era uma exigência de seus propósitos: o combate ao “duplo revisionismo” que
tinha como resultado um “marxismo ‘em combinação’”. No desenvolvimento
desse combate, o projeto filosófico de Gramsci tornou-se mais abrangente, ga-
nhando novos contornos. Na primavera de 1932 ocorreu um importante giro
na pesquisa filosófica, registrado pela súbita aparição nos Appunti di filosofia do
Quaderno 8 de duas novas rubricas: Introduzione allo studio della filosofia (§ 204,
redigido entre fevereiro e março de 1932) e “Punti per un saggio su Croce” (§
225, redigido em abril do mesmo ano). Esse giro, apontado por Frosini (2003)
em sua minuciosa reconstrução da questão filosófica nos Quaderni, coincide
com a redação dos Raggruppamenti di matéria e com o início da redação dos
cadernos especiais, particularmente dos cadernos 10 e 11.
Nesses parágrafos, a questão filosófica assumia nova impostação. Dei-
xava de ser guiada por uma pesquisa sobre o materialismo histórico e seu desen-
volvimento e passava a assumir, por um lado, o estudo aprofundado e a crítica
do pensamento de Croce, e não apenas de sua relação com o marxismo, e, por
outro, uma crítica ao Ensaio popular de Bukharin, com vistas a construir uma
alternativa sob a forma de uma Introduzione alla filosofia.
Segundo Frosini (2003, p. 70-72 e 113-122), essa nova impostação
da pesquisa gramsciana era ditada por uma avaliação equivocada das recentes

18
Na mesma carta, Gramsci pedia outros livros de Croce que haviam ficado em Roma: Elementi
di politica, Breviario di Estetica e Hegel (cf. LC, p. 263).
materialismo/idealismo 57

tendências do debate filosófico na União Soviética inspirada pela leitura de ar-


tigo de d.s. Mirsky (1931). O artigo de Mirsky era uma versão, francamente
favorável a Stalin, do debate filosófico que teve lugar na União Soviética entre
os “dialéticos” partidários de Deborin e os “mecanicistas”, com os quais Bukha-
rin era identificado. Num ambiente político no qual o debate verdadeiramente
teórico pouco contava, a intervenção do aparelho partidário na discussão era
concebida como parte da “progressiva bolchevização de todos os aspectos da
vida na União Soviética” (Mirsky, 1931, p. 649). A “bolchevização” da filosofia
era apresentada como parte da luta contra o trotskismo, a direita bukhariniana,
o menchevismo e até mesmo o “liberalismo pequeno-burguês” que estaria repre-
sentado tanto nas concepções dos “dialéticos” liderados por a.m. Deborin, como
dos “mecanicistas” alinhados com a.k. Timiriazev.
Na cadeia, manejando escassas informações, Gramsci interpretou, de
modo bizarro, a “bolchevização” da filosofia como um novo momento da cons-
trução do socialismo e de renascimento do materialismo histórico (cf. Frosini,
2003, p. 119). Particularmente importante nessa interpretação foi a ênfase dada
por Mirsky em seu artigo à necessidade de estabelecer um novo nexo entre teoria
e prática que implicasse “em igual medida a subordinação do pensamento teórico
às demandas da prática revolucionária e o firme embasamento de todo trabalho
prático na consciência teórica.” (Mirsky, 1931, p. 653). Também merece destaque
a importante notícia dada nesse artigo da publicação dos cadernos filosóficos de
Lênin, muito embora Gramsci não pareça citá-los ao longo dos Quaderni.
Dessa ênfase, Gramsci deduzia que estava ocorrendo na União Sovi-
ética “a passagem de uma concepção mecanicista e puramente exterior a uma
concepção ativista que se aproxima mais, como se é observado, a uma justa
compreensão da unidade de teoria e prática, ainda que não tenha ainda atingido
todo o seu significado sintético” (Q 11, § 12, p. 1387). Longe de ser parte
de um renascimento do materialismo histórico, a afirmação da “unidade teoria
e prática” era efeito do raso pragmatismo e da instrumentalização da filosofia
operada pela burocracia soviética. O cancelamento do debate entre “dialéticos” e
“mecanicistas” por meio de decreto governamental, a “reforma” da Academia de
Ciência, os expurgos no conselho editorial da revista Sob a bandeira do marxismo
58 alvaro bianchi

não eram episódios de uma reforma intelectual e moral. Se há uma analogia


possível, é com a contra-reforma e seus tribunais inquisitoriais.
A interpretação dada por Gramsci a esse texto de Mirsky deve servir
como alerta a respeito dos limites materiais de sua investigação. Mas para os pro-
pósitos deste trabalho é importante ressaltar o resultado absolutamente paradoxal
dessa bizarra interpretação: os cadernos 10 e 11 surgidos como resultados desse
giro representam o ponto máximo de desenvolvimento criativo da investigação
filosófica por parte de seu autor em linhas que evidentemente não são compatí-
veis com o medíocre Diamat transformado em ideologia de Estado por Stalin em
Materialismo histórico e materialismo dialético (1976). Tais cadernos sintetizam,
também, uma aproximação maior a uma forma de exposição definitiva, embora não
possam ser considerados como a apresentação acabada dos resultados da investiga-
ção filosófica, como fez, por exemplo, a edição Toglitatti, reunindo-os no volume
intitulado Il materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce.
Era a partir da revalorização de Labriola que Gramsci pretendia levar
adiante esse empreendimento, tal como revelou no § 3 dos Appunti di Filosofia
I, uma nota que deve ser lida em conjunto com o § 31 do Quaderno 3. Labriola
era para o marxista sardo o ponto de partida que lhe permitiria criticar a “dupla
revisão” e a “dupla combinação” à qual o marxismo estava submetido. Por um
lado, alguns dos elementos do materialismo histórico haviam sido absorvidos
por correntes idealistas, como Croce, Sorel e Bergson. Por outro, a busca de
uma “filosofia” que contivesse o marxismo havia levado os marxistas “oficiais” a
encontrá-la seja no materialismo vulgar, como Plekhanov, seja no idealismo, a
exemplo de Max Adler, que atribuiu ao kantismo essa posição.
Antonio Labriola distinguiu-se, entretanto, de uns e outros, afir-
mando a auto-suficiência filosófica do marxismo.19 Tal afirmação constituiu
o vigamento que sustentou seu diálogo crítico com Georges Sorel na série
de cartas reunidas em Discorrendo di socialismo e di filosofia. Encarando os
movimentos revisionistas que procuravam compatibilizar Marx com a cul-
tura filosófica precedente, Labriola protestava: “esta doutrina [o marxismo]
contém em si as condições e os modos de sua própria filosofia e é, assim,

19
Ver o desenvolvimento dado à questão por Leonardo Paggi (1973).
materialismo/idealismo 59

em sua origem como em sua substância, intimamente internacional” (2000,


p. 216). O marxismo não estaria, entretanto, fechado a outras formas de
conhecimento. Importante para esse filósofo era o nexo que o marxismo de-
veria estabelecer com as ciências sociais empíricas e a possibilidade de ele se
desenvolver “incorporando os resultados da pesquisa empírica conduzida pe-
las várias disciplinas” (Vacca, 1983, p. 79). E é a partir dessa perspectiva que
se pode entender o entusiasmo provocado em Labriola pelo Anti-Dühring
de Friedrich Engels:

O verdadeiro efeito desse livro sobre os socialistas de outros países e idiomas me


parece que deva ser capacitá-los para que assumam as atitudes críticas que lhes
permitam escrever todos os anti-x necessários para combater todas as coisas que
obstaculizem ou contaminem o socialismo em nome das tantas sociologias que
hoje pululam por todos os lados. (Labriola, 2000, p. 233)

Às ressalvas que Sorel manifestava quanto ao desenvolvimento de uma


filosofia intrínseca e imanente aos supostos e premissas do materialismo histó-
rico, Labriola respondia com a afirmação da “filosofia da práxis, que é o cerne
do materialismo histórico. Esta é a filosofia imanente às coisas sobre as quais se
filosofa. Da vida ao pensamento, e não do pensamento à vida; este é o processo
realista. Do trabalho que é um conhecer operando ao conhecimento como teo-
ria abstrata, e não deste àquele”. (Labriola, 2000, p. 238)
Essa revalorização que Labriola promoveu da práxis como uma cate-
goria central do materialismo histórico encontrava-se amparada em uma leitura
precisa das Teses sobre Feuerbach de Marx. Criava, assim, as condições para uma
ruptura teórica com as concepções dualistas que marcavam a separação prática e
epistemológica entre espírito e matéria, trabalho intelectual e trabalho manual,
teoria e prática (cf. Paggi, 1973, p. 1323-1324). Ao mesmo tempo, afirmando a
práxis como fundamento da sociabilidade humana e a filosofia da práxis como
“a teoria do homem que trabalha” (Labriola, 2000, p. 255), o filósofo marxista
podia afirmar a superação

de toda forma de idealismo que considere as coisas empiricamente existentes como


reflexos, reprodução, imitação, exemplo, conseqüência ou o que for de um pensa-
60 alvaro bianchi

mento, seja como for, pressuposto, bem como o fim do materialismo naturalista, no
sentido que a palavra assumia tradicionalmente até há pouco. (idem, p. 238)

Era portanto na oposição ao idealismo e ao materialismo vulgar que o


autor de Discorrendo di socialismo e di filosofia perfilava sua leitura da obra de
Marx e Engels. Concebendo a práxis de modo histórico e realista, identificava-a
com o trabalho e a atividade produtiva, com o conhecimento e a experimenta-
ção científica e com a mediação social entre o homem e a natureza (cf. Martelli,
2001, p. 88). A revalorização da práxis no discurso filosófico tinha, desse modo,
uma função de distinção, na medida em que delimitava a fronteira que separava
o marxismo das filosofias concorrentes, mas tinha, principalmente uma função
de transgressão dessas próprias fronteiras, colocando o marxismo em confronto
aberto com as demais filosofias concorrentes com vistas não ao simples cancela-
mento destas e sim a sua superação dialética.
Era esse programa de afirmação do marxismo que mobilizava Gramsci
na prisão. Comentando a necessidade de combater a subordinação filosófica do
marxismo às variantes do idealismo ou do materialismo-naturalista, o marxista
sardo afirmava: “Labriola se distingue de uns e de outros com sua afirmação
de que o próprio marxismo é uma filosofia independente e original. É preciso
trabalhar nessa direção, continuando e desenvolvendo a posição de Labriola.”
(Q 4, § 3, p. 422)
Na transcrição das notas dos cadernos miscelâneas para os cadernos
especiais, Gramsci procedeu a uma reforma criptográfica, com vistas a escapar
da censura. Nessa reforma, substituiu na maioria dos casos as expressões mate-
rialismo histórico e marxismo por filosofia da práxis. Tal alteração pode ter tido
como motivação a censura, mas a escolha da expressão filosofia da práxis era,
também, um ato com significado teórico-político por meio do qual Gramsci
indicava aquilo que caracterizava a filosofia de Marx e, ao mesmo tempo, a linha
sobre a qual ela deveria se desenvolver (cf. Medici, 2000 e Frosini, 2004).
O desenvolvimento sobre essa linha implicava um confronto com
o “marxismo em combinação” e o “duplo revisionismo”. Mas não se tratava
apenas da crítica do revisionismo, como poderia deixar transparecer aquele
projeto filosófico original. Nos cadernos 10 e 11, essa crítica tinha por objetivo
o desenvolvimento da filosofia da práxis. As formas de enfrentar esse problema
materialismo/idealismo 61

e de desenvolver a filosofia por meio do confronto com esses movimentos


eram, entretanto, diversas. O movimento explicitado por Gramsci revelava
uma contradição. A absorção do marxismo pelo idealismo era o resultado da
força teórica e política demonstrada pela herança intelectual do autor de O
Capital. A transformação do marxismo em um momento da cultura de sua
época o havia tornado, desse modo, parte do “senso comum” contêmporâneo
para certos estratos da intelectualidade. Essa absorção não poderia preservar,
evidentemente, o caráter revolucionário da teoria; era necessário desmembrá-
la e depurá-la e, desse modo, esterilizá-la. É a partir dessa perspectiva que pode
ser compreendido o empreendimento intelectual dos jovens Benedetto Croce
(1927) e Giovanni Gentile (2003) e o diálogo crítico que estabeleceram com
o pensamento de Marx.
Contraditoriamente, o desenvolvimento do marxismo após a morte de
Marx e Engels, ao invés de afirmar essa força interna, procurava combiná-lo com
filosofias não marxistas, com efeitos deletérios para seu próprio desenvolvimento
como concepção de mundo, enfraquecendo-o perante seus adversários filosóficos.
O momento de absorção do marxismo como parte da cultura da época coincidia,
assim, com o enfraquecimento de sua capacidade de intervenção na “luta de ‘he-
gemonias’ políticas”. Como isso veio a ocorrer?, perguntava-se Gramsci.
O marxista sardo compreendia esse movimento por meio da analogia
Renascimento-Reforma. Apoiando-se em uma leitura livre do livro de Bene-
detto Croce, Storia dell’età barocca in Italia, identificava no Renascimento um
movimento aristocrático de elevada elaboração, mas incapaz de criar um movi-
mento cultural socialmente abrangente. A Reforma, por sua vez, apesar de sua
penetração popular, não representava, em um primeiro momento, uma nova
elaboração de uma cultura superior.20 Era no interior dessa analogia histórica
que explicava o desenvolvimento histórico do marxismo:

20
Para mais detalhes, ver Frosini, 2004a. Segundo Croce, o “movimento do Renascimento per-
maneceu aristocrático, de círculos eleitos e, na própria Itália, que foi sua mãe e nutriz, não deixou
os círculos das cortes, não penetrou até o povo, não se tornou costume ou ‘preconceito’, ou seja,
persuasão coletiva e fé. A Reforma, ao invés, teve porém essa eficácia de penetração popular, mas
pagou-a com um atraso em seu desenvolvimento intrínseco, com a lenta e várias vezes interrompi-
da maturação de seu germe vital” (Croce, 1946a, p. 11-12.).
62 alvaro bianchi

Renascimento-Reforma – Filosofia alemã – Revolução francesa – laicismo [libe-


ralismo] – historicismo – filosofia moderna – materialismo histórico. O materia-
lismo histórico é o coroamento de todo esse movimento de reforma intelectual
e moral em sua dialética cultura popular-alta cultura. Corresponde à Reforma
+ Revolução Francesa, universalidade + política; atravessa agora a fase popular,
tornando-se, também, ‘preconceito’ e ‘superstição’. (Q 4, § 3, p. 424)

Em sua fase de expansão popular, o marxismo assumia a forma da Refor-


ma. Mas sob essa forma confundia-se com o materialismo. Por razões de ordem
“didática”, o marxismo em sua fase de expansão precisou enfrentar a mentalidade
popular recorrendo a formas de cultura um pouco superiores a ela, mas insufi-
cientes para combater a ideologia das classes cultas. Essa era uma das tendências
dominantes do marxismo “oficial”, como gostava de chamá-lo Gramsci. Expoente
dessa tendência era Plekhanov, que em sua reconstrução das “fontes” da filosofia
de Marx confundia a cultura filosófica pessoal de Marx, ou seja, os filósofos que ele
havia estudado, com as bases filosóficas do próprio materialismo histórico:

O estudo da cultura filosófica de um homem como Marx é não só interessante como


necessário, contanto que não se esqueça que tal estudo faz parte apenas da reconstru-
ção de sua biografia intelectual e que os elementos de spinozismo, de feuerbachismo,
de hegelianismo, de materialismo francês, etc. não são de nenhum modo partes es-
senciais da filosofia da práxis, nem esta se reduz a eles, mas o que sobretudo interessa
é precisamente a superação das velhas filosofias, a nova síntese ou os elementos da
nova síntese, o novo modo de conceber a filosofia. (Q 11, § 27, p. 1436)

A redução do marxismo a suas fontes implicava em uma subordinação


da filosofia da práxis às mesmas. Contraditoriamente, esse processo levava o
marxismo aquém de Marx e do próprio Hegel. Na identificação da filosofia do
marxismo com a filosofia do materialismo retrocedia-se em direção a uma “me-
tafísica da matéria”, que reencontrava por meio desta o eterno e o absoluto (Q
11, § 62, p. 1489). Achille Loria era um dos casos mais grotescos a esse respeito
e por essa razão chamou a atenção de Labriola, que se referindo a ele, escreveu:
“Alguns vulgarizadores do marxismo tem despojado esta doutrina da filosofia
que lhe é imanente para reduzi-la a um simples aperçu da variação das condições
materialismo/idealismo 63

históricas pela variação das condições históricas.” (2000, p. 250. Cf. tb. a crítica
de Croce, 1927, p. 21-54 e os comentários de Gramsci nos Quaderni sob a
rubrica Lorianismo.) Era necessário, assim, marcar distância desse materialismo
natural-cientificista, afirmando o materialismo histórico como sua superação.
Também o neoidealismo italiano, com sua “metafísica do espírito” con-
duzia a esse ponto da história da filosofia que antecedia a Hegel. Com efeito,
Benedetto Croce inseria-se no debate italiano sobre a crise do marxismo, o que
o levou, primeiro, a um diálogo crítico com este e com o autor que introduziu
o materialismo histórico na Itália, Antonio Labriola; e, depois, a um projeto de
aniquilação do próprio marxismo teórico. Esse projeto de aniquilação se deu no
interior da sucessiva edificação de uma “filosofia do espírito”, com sua pretensão
de ser o fundamento de uma operação de hegemonia cultural que completaria
a obra de confutação do materialismo histórico. Afirmando que o marxismo
era também uma metafísica da matéria, o neoidealismo italiano convergia nesse
ponto com o materialismo vulgar (cf. Martelli, 2001, p. 71).
Tanto a metafísica da matéria como a metafísica do espírito suprimiam
do horizonte filosófico aquela que era, para Gramsci, a principal contribuição de
Hegel, a “consciência das contradições” (Q 11, § 62, p. 1487). Era justamente
essa a contribuição da qual Marx se apropriou de modo mais intenso, superando
o idealismo presente no pensamento hegeliano, compreendendo essa consciência
como a expressão das contradições da época histórica e afirmando um novo lugar
para o filósofo, que passa a ser visto como “elemento da contradição”, capaz de
convertê-la em princípio de conhecimento e, portanto, de ação (idem). Para Gra-
msci, a superioridade da filosofia da práxis estaria, justamente, em sua capacidade
de ser teoria das contradições “existentes na história e na sociedade” (Q 10/II, §
41, p. 1320. Cf. tb. Losurdo, 1997, p. 105-109). Segundo o marxista sardo,

Hegel, situado entre a Revolução Francesa e a Restauração, dialetizou os dois mo-


mentos da vida filosófica, materialismo e espiritualismo. Os seguidores de Hegel
destruíram essa unidade e se voltaram ao velho materialismo com Feuerbach e
ao espiritualismo da direita hegeliana. Marx, em sua juventude, reviveu toda
essa experiência: hegeliano, materialista feuerbachiano, marxista, isto é, refez a
unidade desfeita em uma nova construção filosófica: já nas teses sobre Feuerbach
64 alvaro bianchi

aparece claramente esta sua nova construção, esta sua nova filosofia. Muitos ma-
terialistas históricos refizeram com Marx aquilo que havia sido feito com Hegel,
ou seja, da unidade dialética retornaram ao materialismo cru, enquanto, como
foi dito, a alta cultura moderna, idealista vulgar, procurou incorporar aquilo do
marxismo que lhe era indispensável. (Q 4, § 3, p. 424)

Combinar o programa de elaboração cultural próprio do Renascimento


com a expansão popular da Reforma era o desafio para a afirmação do marxismo
como força hegemônica. Do ponto de vista prático, esse desafio deveria ser resolvido
com a formação de uma intelectualidade de novo tipo, selecionada não nas classes
tradicionais, mas nas classes populares. Do ponto de vista teórico, esse programa
exigia um novo conceito de ortodoxia, cunhado a partir das indicações já presentes
na reflexão de Labriola a respeito da auto-suficiência da filosofia da práxis.
A questão já havia sido abordada por Georgy e Lukács em História e cons-
ciência de classe, obra que Gramsci conhecia. Afirmava o húngaro que a ortodoxia
marxista referia-se exclusivamente ao método e à totalidade concreta como a cate-
goria fundamental da realidade. Nessa perspectiva, o marxismo ortodoxo não seria
um dogmatismo que implicasse numa adesão acrítica aos resultados da pesquisa
de Marx. Também não seria a afirmação de uma ou outra tese, nem o culto a um
“livro sagrado”. Para Lukács, a “ortodoxia em matéria de marxismo refere-se pelo
contrário, e exclusivamente, ao método”. (Lukács, 1989, p. 15)
Como método de investigação, o materialismo dialético constituía-se,
para o marxista húngaro, em um horizonte teórico que só poderia ser superado
com a superação do próprio capitalismo. Desse modo, a afirmação do marxis-
mo como tal implicava na recusa de toda tentativa de superar, completar ou
melhorar esse método, tentativas essas que não faziam mais do que levar a sua
vulgarização e fazer dele um ecletismo (idem).
Na prisão, Gramsci também enfrentou o problema da construção de um
conceito não dogmático e crítico de ortodoxia. Em um ambiente político-cultural
no qual a heterodoxia costumava ser associada à heresia, o problema apresentava
grande complexidade. Gramsci formularia, entretanto, uma definição de ortodo-
xia diferente daquela apresentada por Lukács. O que definia o marxismo ortodoxo
não era, para o marxista sardo, o seu grau de pureza metodológica. A ortodoxia
deveria se assentar num critério fundamentalmente prático:
materialismo/idealismo 65

A ortodoxia não deve ser procurada neste ou naquele seguidor da filosofia da


práxis, nesta ou naquela tendência vinculada a correntes estranhas à doutrina
original, e sim no conceito fundamental de que a filosofia da práxis ‘basta a si
mesma’, contém todos os elementos fundamentais para construir uma concep-
ção de mundo total e integral, uma filosofia e teoria das ciências naturais, e não
somente isso, mas sim, também, para vivificar uma organização prática integral
da sociedade, ou seja, converter-se em uma total, integral civilização (Q 11, §
27, p. 1434).

As diferenças entre os dois autores são sutis, mas importantes.


Lukács afirmava que a ortodoxia não residia na fé em uma “tese, nem na
exegese de um livro ‘sagrado’”. Gramsci, por sua vez, referia-se a correntes
e indivíduos. O húngaro abominava a transformação do marxismo em um
“ecletismo”; já o sardo temia que o marxismo perdesse seu poder de “vivifi-
car uma organização prática integral da sociedade, ou seja, converter-se em
uma total, integral civilização”.
Os dois autores tratavam de problemas diferentes. Um ressaltava as
complicações metodológicas decorrentes da incorporação de teorias extrínsecas
ao marxismo, o outro preocupava-se com os desdobramentos práticos dessa
incorporação. “Correntes”, “seguidores da filosofia da práxis” e “organização
prática” são palavras fortes. O resultado de sua utilização era uma definição de
ortodoxia forjada para o combate ideológico.
O lugar que uma definição de ortodoxia que afirma a auto-suficiência
teórica da filosofia da práxis preenchia no pensamento de Gramsci torna-se mais
claro quando revelado o lugar que ela ocupa na estrutura material dos Quaderni.
Tal definição apareceu pela primeira vez nos Appunti di filosofia I presentes no
Quaderno 4, com o título Il concetto di ‘ortodossia’ (Q 4, § 14, p. 435-436), entre
a primeira nota dedicada exclusivamente ao Ensaio popular de Bukharin, inti-
tulada Note e osservazioni critiche sul ‘Saggio popolare’ (Q 4, § 13, p. 434-435), e
uma nota dedicada a Croce (Q 4, § 15, p. 436-437). Mas era a partir da crítica
ao primeiro que essa definição de ortodoxia era cunhada, o que se evidencia
na referência feita aos “discípulos de Marx”, coisa que Gramsci sabia que não
poderia ser dita de Croce.
66 alvaro bianchi

Anti-Bukharin

A relação de Gramsci com o pensamento filosófico e político de Bukharin


é extremamente complexa e até mesmo contraditória. Um tratamento da questão
exclusivamente focado no Quaderno 11, no qual eram criticadas as posições teó-
ricas do comunista soviético, pode oferecer o risco de simplificar essa relação. A
questão não foi até o momento esclarecida de modo satisfatório, muito embora al-
guns estudos sintéticos tenham abordado o tema (cf. p. ex. Zanardo, 1974) e obras
de conteúdo diverso tenham discutido o problema (cf. p. ex. Buci-Glucksmann,
1980, p. 257-301 e 321-347 e Paggi, 1973, 1334-1337).
A mudança de postura de Gramsci a respeito das posições teóricas do
dirigente soviético é notável. É bastante conhecido que no primeiro semestre
de 1925 organizou uma “escola do partido”, com o objetivo de “preencher o
vazio existente entre aquilo que deveria ser e aquilo que não é” (CPC, p. 50).
O projeto estava políticamente orientado pelo propósito de evitar que depois
de um período de ilegalidade o pdc’i fosse vítima de um “irrefreável impulso à
ação pela ação”, sem “qualquer consideração das relações reais das forças sociais”
(idem, p. 51). Para conter esse impulso e organizar uma ação eficaz, fazia-se
necessária uma adequada formação teórica e política de todos os militantes do
partido, e não apenas daqueles que ocupavam postos de direção.
Gramsci estava preocupado com a possibilidade de o Partido Comunista
repetir os erros cometidos pelos socialistas no imediato pós-guerra, quando os jovens
aderentes ao partido, sem preparação política ou mesmo noções da teoria marxista,
foram presa fácil do oportunismo pequeno-burguês (idem, p. 52). A escassa tradição
do movimento operário italiano de luta na frente ideológica tornava o perigo ainda
maior. Daí a importância da escola. Gramsci concebeu o primeiro curso dessa escola
em três séries de lições: “uma sobre a teoria do materialismo histórico; uma sobre
elementos fundamentais de política geral; uma sobre o Partido Comunista e os prin-
cípios de organização que lhe são próprios”. (idem, p. 56)
Chama a atenção que para essa primeira série de lições, ou seja, a
que tratava do materialismo histórico, o comunista italiano tenha organizado
o curso em torno da “tradução do livro do companheiro Bukharin, sobre a
teoria do materialismo histórico”, que continha “um tratamento completo do
materialismo/idealismo 67

argumento” (idem, p. 56). Conforme constatou Buci-Glucksmann a partir da


cópia do material desse curso que se encontrava nos arquivos do PC italiano na
década de 1970, de reproduzia a introdução e o segundo capítulo do livro de
Bukharin, completando-os com dois textos de Engels sobre a dialética hegelia-
na e a concepção materialista da história, e com trechos do “Prefácio de 1859”
de Marx à Contribuição à crítica da economia política (cf. Buci-Glucksmann,
1980, p. 261).21
O texto traduzido do manual de Bukharin continha uma série de su-
pressões e interpolações feitas provavelmente pelo próprio Gramsci. Importan-
te, por exemplo, era o cancelamento da passagem na qual Bukharin reduzia o
materialismo histórico a uma sociologia e criticava aqueles que viam nele “um
‘método’ vivo de pesquisa histórica” demonstrável apenas nas obras referentes a
“fatos concretos” (Bukharin, 1974, p. 114). No lugar dessa passagem, Gramsci
acrescentava outra de sua lavra, na qual criticava a concepção croceana que iden-
tificava no marxismo um “cânone de ciência histórica” e reconduzia o materia-
lismo histórico ao movimento vivo da história (cf. Paggi, 1973, p. 1335). Com-
parando a versão original do texto com aquela produzida por Gramsci, Paggi
argumenta ser possível encontrar indícios da rejeição do materialismo histórico
como sociologia que estaria posteriormente sediada nos Quaderni (idem).
Nos Quaderni, por sua vez, Gramsci criticou tudo do tratado de
Bukharin. A começar pelo título (Teoria do materialismo histórico) e o subtítulo
(Ensaio popular de sociologia marxista). Afirmava o marxista sardo que o título do
livro não correspondia a seu conteúdo. Pois, se o objetivo era uma apresentação
sistemática da teoria do materialismo histórico, ele deveria começar por uma
introdução geral que definisse o que é a filosofia, qual sua relação com uma
concepção de mundo e como o materialismo histórico renovaria essa concepção.
Apenas tomando como ponto de partida essas definições seria possível recons-
truir os pressupostos filosóficos da teoria do materialismo histórico.
Mas, ao invés de seguir esse caminho, Bukharin teria mantido a questão
em aberto e essa indefinição teria lhe permitido deixar sem justificação aquele

21
Sobre a importãncia desse texto de Marx para a reflexão gramsciana nos Quaderni, ver o capítulo
Estrutura/Superestrutura deste livro.
68 alvaro bianchi

que seria o pressuposto implícito de toda sua obra: o de que “a filosofia do


materialismo histórico é o materialismo filosófico” (Q 4, § 13, p. 434). A crítica
de Gramsci a Bukharin, entretanto, nem sempre foi justa. De fato, a sofisticação
intelectual do comunista soviético chama a atenção do leitor contêmporâneo,
acostumado às ralas idéias dos dirigentes da esquerda atual. Transitando com
familiaridade pelo ambiente cultural e filosófico de sua época, Bukharin levava a
cabo um verdadeiro tour de force teórico em seu manual. O resultado, entretan-
to, nem sempre era satisfatório.
As referências ao texto do dirigente soviético feitas por Gramsci ao lon-
go dos Quaderni eram particularmente imprecisas, o que denota a ausência desse
livro em sua biblioteca. Martelli argumenta que a identificação de Bukahrin com
o materialismo do século XVIII era exagerada e que o empreendimento deste era
muito similar à aquele de Gramsci e poderia ser resumido em uma tentativa de
“renovar, atualizar o estatuto teórico do marxismo perante as novas instâncias da
ciência e da filosofia contêmporânea” (Martelli, 2001, p. 64). O que surpreende
na crítica do marxista sardo a Bukharin não são algumas imprecisões e exageros,
e sim, justamente, a escolha de criticá-lo, depois de ter utilizado seu livro em
1925 na escola do pcd’i. Se o alvo era o materialismo vulgar, não faria mais
sentido confutar Plekhanov, cuja obra Os princípios fundamentais do marxismo
Gramsci possuía na prisão? Ao preferir a crítica a Bukharin, não estaria Gramsci
optando por uma crítica teórica ao grupo dirigente soviético?
A crítica a Bukharin e às linhas de desenvolvimento da filosofia da práxis
tinham início em uma definição do objeto e da prática da reflexão filosófica. A no-
ção que articulava a exposição desse desenvolvimento foi explicitada por Gramsci
no § 12 do Quaderni 11, retomando aquela importante nota de caráter programá-
tico da terceira série dos Appunti di filosofia na qual a rubrica Un’introduzione allo
studio della filosofia aparecia pela primeira vez (Q 8, § 204). Em sua última versão,
essa nota constitui o primeiro parágrafo de uma seção intitulada Appunti per una
introduzione e un avviamento allo studio della filosofia e della storia della cultura e de
uma subseção denominada Alcuni punti preliminari di referimento:

É necessário destruir o preconceito de que a filosofia é uma coisa muito difícil


devido a ser uma atividade intelectual própria de uma categoria de cientistas
materialismo/idealismo 69

especialistas, de filósofos profissionais ou sistemáticos. Portanto, será preciso de-


monstrar que todos os homens são filósofos, definindo os limites e as caracterís-
ticas dessa filosofia (“espontânea”) de “todo o mundo”, isto é, o senso comum e
a religião. (Q 8, § 204, p. 1063)

É necessário destruir o preconceito muito difundido de que a filosofia é uma coi-


sa muito difícil devido a ser uma atividade intelectual própria de uma categoria
de cientistas especialistas ou de filósofos profissionais e sistemáticos. Portanto, é
preciso demonstrar preliminarmente que todos os homens são “filósofos”, defi-
nindo os limites e as características dessa “filosofia espontânea”, própria de “todo
o mundo”, isto é da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem, que é
um conjunto de noções e de conceitos determinados, e não somente de pala-
vras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso;
3) na religião popular e, portanto, em todo o sistema de crenças, superstições,
opiniões, modos de ver e atuar que se revelam naquilo que geralmente se chama
“folclore”. (Q 11, § 12, p. 1375)

Essa definição extremamente ampla da atividade filosófica e daqueles


que exerciam essa atividade já se fazia notar em Gramsci antes mesmo de sua
prisão. Em um artigo publicado no jornal L’Unità de 1º de abril de 1926, o mar-
xista sardo perguntava: “Que é um filósofo? É necessário distinguir filósofo de
professor de filosofia. Assim como todo homem é um artista, do mesmo modo,
todo homem é um filósofo, na medida em que é capaz de pensar e expressar uma
atividade intelectiva”. (Apud Paggi, 1973, p. 1327)
A questão de fundo era, obviamente, o conceito de filosofia. Em sua
primeira versão, no Quaderno 8, Gramsci, por meio de uma nota acrescida
posteriormente, remetia ao § 17 da segunda parte do Quaderno 10, escrito
sob a rubrica Introduzione allo studio della filosofia. Principi e preliminari. O
tema deste último parágrafo era, justamente, o conceito de filosofia. “Que
devemos entender por filosofia, por filosofia de uma época histórica, e qual
a importância e a significação das filosofias dos filósofos em cada uma dessas
épocas históricas?”, perguntava o sardo (Q 10/II, § 16, p. 1255). O ponto
de partida para a elucidação da questão era a definição que Benedetto Croce
dava de religião – “uma concepção de mundo que se transformou em norma
70 alvaro bianchi

de vida”.22 Colocado o foco na relação existente entre concepção de mundo


e vida prática, Gramsci afirmava que, nesse caso, “a maior parte dos homens
são filósofos, na medida em que atuam praticamente e nesta sua ação (nas
linhas diretivas da própria conduta) está contida implicitamente uma con-
cepção de mundo, uma filosofia” (idem).
Assumir como ponto de partida a definição de Croce não significava
uma adesão acrítica a sua concepção. No Quaderno 11, a apropriação livre e
crítica que Gramsci fez da definição croceana torna-se clara: “O problema da
religião, entendida não no sentido confessional, mas naquele laico, de unidade
de fé entre uma concepção de mundo e uma norma de conduta adequada; mas
por que chamar esta unidade de fé de ‘religião’ e não chamá-la de ‘ideologia’ ou
mesmo de ‘política’?” (Q 11, § 12, p. 1378.)
A questão é, portanto, a relação entre filosofia e política. O § 204 do
Quaderno 8 ocupava, assim, a posição de charneira entre o Quaderno 11 e o
Quaderno 10, orientando a polêmica contra Bukharin e contra Croce. Esta re-
ferência preliminar já definia o âmbito da luta ideológica e a importância de
um combate ao naturalismo cientificista de Bukharin e ao idealismo de Croce.
Essa luta não deveria se reduzir a uma atividade dos intelectuais, mas deveria
abarcar “todos os homens”, na medida em que estes também seriam portadores
de uma “filosofia espontânea”, ou seja, todos fariam parte de uma determinada
concepção de mundo e, por meio dessa concepção, todos pertenceriam a um
determinado grupo social.
A participação em certa concepção de mundo não seria sempre do
mesmo tipo. Ela poderia ser passiva, afirmava Gramsci, e assim o é quando se
participa de “uma concepção de mundo ‘imposta’ mecanicamente pelo ambien-
te externo” (Q 11, § 12, p. 1375). Ou poderia ser ativa, o que ocorreria quando
o indivíduo elaborasse sua própria concepção de mundo de modo crítico e

22
Falando a respeito da “religião da liberdade”, escrevia Croce em sua Storia d’Europa nel secolo
decimonono: “Ora, aquele que recolha e considere todos esses traços do ideal liberal não duvidará
em denominá-lo, como era, uma ‘religião’: denominá-lo assim, bem dito, quando se atenha ao es-
sencial e intrínseco de toda religião, que reside sempre em uma concepção da realidade e uma ética
conforme, e se prescinda do elemento mitológico, pelo qual apenas secundariamente as religiões se
diferenciam das filosofias” (Croce, 1999, p. 28-29).
materialismo/idealismo 71

consciente e por meio dela se vinculasse a um grupo social que lhe permitis-
se “participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si
mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria
personalidade” (idem, p. 1376).
Mas o homem ativo, dizia o marxista italiano, não teria necessaria-
mente uma clara consciência teórica de seu agir e seria possível, até mesmo,
que sua consciência estivesse em contraste e oposição com sua ação. Seria
possível, de certa maneira, afirmar que possuiria duas consciências, “uma
implícita em seu agir, que realmente o une a todos os seus colaboradores na
transformação prática da realidade”. Mas além dessa haveria outra, “superfi-
cialmente explícita ou verbal, que herdou do passado e acolhe sem crítica”
(idem, p. 1385). Essa consciência “verbal” seria, pois, aquela afirmada com
palavras e a que se acreditaria seguir, “porque a segue em ‘tempos normais’, ou
seja, quando a conduta não é independente e autônoma, e sim precisamente
submissa e subordinada” (idem, p. 1379).
Não se pense, entretanto, que essa concepção verbal e superficial não
influencia o comportamento humano. Ela o “amarra a um grupo social deter-
minado, influi na conduta moral, na orientação da vontade, de modo mais ou
menos enérgico, que pode chegar até o ponto em que o caráter contraditório da
consciência não permite nenhuma ação, nenhuma decisão, nenhuma escolha e
produz um estado de passividade moral e política” (idem, p. 1386). Haveria assim
uma tensão permanente entre o agir e a consciência, e a resolução dessa situação só
poderia ocorrer pela superação da consciência vinculada ao passado e pela emer-
gência de uma nova consciência, pela unidade entre teoria e prática. Que todos
fossem portadores de uma “filosofia espontânea” não significava que todos fossem
filósofos “sem aspas”, ou seja, filósofos no sentido pleno da palavra:

No sentido mais imediato e exato, não se pode ser filósofo – isto é, ter uma con-
cepção de mundo criticamente coerente – sem a consciência da própria histori-
cidade, da fase de desenvolvimento por ela apresentada e do fato de que ela está
em contradição com outras concepções ou com elementos de outras concepções.
(idem, p. 1377)
72 alvaro bianchi

Gramsci não estava disposto a diluir as diferenças existentes entre a


filosofia e o senso comum. “A filosofia é uma ordem intelectual” e como tal é
“crítica e coerente”, afirmava (idem, p. 1378). Nesse sentido, ela é um pensa-
mento metodicamente elaborado em contraposição a uma concepção “ocasio-
nal e desagregada” (idem, p. 1376) e às “características difusas e dispersas de
um pensamento genérico de certa época em certo ambiente popular” (idem,
p. 1382). Essa diferença faz com que toda filosofia que quiser se converter em
substrato de uma civilização nova e integral deva se apresentar como superação
do modo de pensar precedente e do pensamento concreto existente:

Uma filosofia da práxis não pode se apresentar inicialmente senão em uma ati-
tude polêmica e crítica, como superação do modo de pensar precedente e do
pensamento concreto existente (o mundo cultural existente). Portanto, acima de
tudo, como crítica do “senso comum” (depois de ter se baseado no senso comum
para demonstrar que “todos” são filósofos e que não se trata de introduzir ex novo
uma ciência na vida individual de “todos”, e sim de inovar e fazer “crítica” uma
atividade já existente) e, portanto, da filosofia dos intelectuais, que tem dado
lugar à historia da filosofia e que, enquanto individual (e de fato se desenvol-
ve essencialmente na atividade de indivíduos isolados particularmente dotados)
pode se considerar como as “pontas” do progresso do senso comum, pelo menos
do senso comum dos estratos mais cultos da sociedade e, através destes, também
do senso comum popular. (Idem, p. 1383)

Essa afirmação crítica e polêmica apresentava a filosofia da práxis como


uma filosofia de combate. Como tal, ela deveria cruzar armas com a filosofia
de sua época e a apropriação desta pelo senso comum, apresentando-se, por
meio da crítica, como a superação filosófica dessa filosofia e do senso comum,
e a superação prática da separação existente entre o filósofo profissional (o in-
telectual) e o “filósofo” espontâneo. As formas desse combate também eram aí
definidas. A crítica ao senso comum deve ser também uma crítica à filosofia
dos intelectuais porque estes assimilam a filosofia da época como seu horizonte
intelectual, como senso comum, devido a sua participação naquilo que Labriola
denominava “ambiente literário” (2000, p. 205). Essa difusão da filosofia sob a
materialismo/idealismo 73

forma de senso comum conforma, também, aquela concepção de mundo popu-


lar que deita suas raízes no “ambiente externo”.
A relação entre essa “filosofia superior” dos intelectuais e o senso
comum era, segundo Gramsci, assegurada pela política. Para o catolicismo
esse nexo implicava na manutenção da distância que separava os intelectuais
dos “simples” e no controle sobre os intelectuais para que essa distância não
ultrapassasse certos limites. Outros são os objetivos da filosofia da práxis para
o marxista sardo. Ela não busca manter os “simples” em “sua filosofia primi-
tiva do senso comum, mas busca, ao contrário, conduzi-los a uma concepção
de vida superior” (Q 11, § 12, p. 1384). O contato que estimula entre os
intelectuais e o povo teria, por essa razão, o objetivo de “forjar um bloco inte-
lectual-moral que torne politicamente possível um progresso intelectual de massa,
e não apenas de pequenos grupos intelectuais” (idem, p. 1385. Grifos meus).
O programa de pesquisa dos Quaderni pode, desse modo, ser lido como a
fundamentação teórica para a formação do “próprio grupo de intelectuais” (cf.
Kanoussi e Mena, 1985, p. 40).
O lugar dos intelectuais no pensamento de Gramsci é extremamente
importante e nunca é demais salientá-lo. Começou a ser definido já no período
pré-carcerário, alcançando um elevado grau de elaboração em seu Alguns temas
sobre a questão meridional, escrito em 1926, pouco antes de sua prisão. Nessas ricas
notas, os intelectuais, principalmente os meridionais, são considerados um dos
estratos sociais mais importantes da vida nacional italiana (CPC, p. 137-158).
Na prisão, o tema dos intelectuais foi retomado e, associado à teoria da
hegemonia e ao conceito de Estado em sentido orgânico, ocupou uma posição
estratégica no pensamento político gramsciano (cf. LC, p. 549-560). A relevân-
cia dada pelo marxista sardo ao tema ficou na lembrança de seus companheiros
de infortúnio. Athos Lisa conta que, nas discussões que Gramsci manteve na
cadeia, o tema dos intelectuais tinha uma importância fundamental e estava as-
sociado ao problema central da Constituinte, ou seja, às formas da luta política
revolucionária na Itália (Lisa, 1981, p. 376). Em outros depoimentos, antigos
companheiros de prisão, como Giovanni Lai (Quercioli, 1977, p. 208) e Angelo
Scucchia (idem, p. 220), corroboram a afirmação de Lisa.
74 alvaro bianchi

Na abordagem gramsciana, a questão dos intelectuais dizia respeito


às formas de exercício das funções de direção e dominação dos grupos sociais
antagonistas e, por essa via, à formação do pessoal encarregado ou especia-
lizado. Problema esse que está associado ao exercício dessas funções pela
burguesia, mas também às questões colocadas pela construção de uma nova
sociedade na União Soviética. No Quaderno 11, o tema era posto de modo
sintético e relacionado à crítica ao Ensaio popular de Bukahrin. Os intelec-
tuais, afirmava Gramsci, concebem-se a si próprios como “independentes da
luta dos grupos, e não como expressão de um processo dialético por meio
do qual todo grupo social dominante elabora uma categoria de intelectuais
própria” (Q 11, § 16, p. 1406-1407).
A questão dos intelectuais não era, pois, para Gramsci, sociológica e
sim política (Sassoon, 1987, p. 255). A temática dos intelectuais esboçada no
Quaderno 11 e desenvolvida no Quaderno 12 é, para Kanoussi e Mena, “idêntica
à do partido enquanto forma organizativa da massa e ‘pensador coletivo’ que
suscita uma reforma intelectual e moral e a conforma a uma vontade coletiva
nacional-popular” (1985, p. 69). A conformação dos grupos de intelectuais era,
pois, uma questão estratégica, o que explica a importância dada por Gramsci
a esse tema na prisão. Com suas conversas ele estava, também, educando esses
novos intelectuais-militantes. Para o marxista sardo,

todo novo organismo histórico (tipo de sociedade) cria uma nova superestru-
tura, cujos representantes especializados e porta-bandeiras (os intelectuais) não
podem, senão, ser concebidos, também, como ‘novos’ intelectuais surgidos da
nova situação e não como continuação da intelectualidade precedente. (Q 11,
§ 16, p. 1407)

Daí porque o tema dos intelectuais aparecesse, no Quaderno 12, como


uma história dos intelectuais, descrevendo o processo de constituição desses
“novos” intelectuais orgânicos e seu nexo com a intelectualidade precendente. O
lugar ocupado pelos intelectuais na sociedade moderna era definido pelo desen-
volvimento histórico do Estado e por sua “ampliação”. A ampliação do Estado
deve ser entendida não como um dado, mas como um processo histórico no
qual ocorre a incorporação das funções de direção e dos aparelhos de hegemonia
materialismo/idealismo 75

próprios dessas funções (cf. Sassoon, 1987, p. 255). Processo esse que é carac-
terístico do Ocidente, na conhecida metáfora gramsciana, ou seja, dos países
capitalistas centrais. Mas é próprio de um Ocidente histórico, concreto. Próprio
de um conjunto de países que a partir do final do século passado protagonizam
um complexo processo de transformações econômicas, sociais e políticas conhe-
cido como a fase imperialista do capitalismo.
Foi justamente a percepção dessa incorporação das funções de direção
ao Estado que colocou o tema dos intelectuais em primeiro plano no pen-
samento gramsciano. A discussão dos intelectuais pode ser traduzida em uma
análise da relação entre dirigentes e dirigidos, dominantes e dominados ou, em
outras palavras, em um estudo sobre a construção e o exercício da supremacia de
uma classe ou fração de classe sobre o conjunto da sociedade.
O início do Quaderno 12, dedicado à história dos intelectuais (Appunti
e note sparse per un gruppo di saggi sulla storia degli intellettuali), começa com uma
interrogação que define o âmbito da pesquisa: “os intelectuais são um grupo social
autônomo e independente, ou todo grupo social tem sua própria categoria espe-
cializada de intelectuais?” (Q 12, § 1, p. 1513.) A pergunta estava dirigida contra
as acepções que recorriam a uma definição ocupacional da condição de intelectual,
restringindo seu âmbito às profissões liberais ou às atividades acadêmicas. Essa
primeira interrogação era acompanhada por outra, que se colocava logo a seguir:

Quais são os limites “máximos” da acepção de “intelectual”? Pode ser encontrado


um critério unitário para caracterizar igualmente todas as diversas e díspares ati-
vidades intelectuais e para distinguir estas ao mesmo tempo e de maneira essen-
cial das atividades dos outros agrupamentos sociais? O erro metodológico mais
difundido parece-me o de ter buscado esse critério de distinção no intrínseco das
atividades intelectuais e não, pelo contrário, no conjunto do sistema de relações
nas quais aquelas (e, portanto, os grupos que as encarnam) vêm a se encontrar
no complexo geral das relações sociais. (idem, p. 1516.)

Para Gramsci existiam duas formas principais por meio das quais ocor-
reu o processo histórico real de formação das diversas categorias de intelectuais.
A primeira forma é a que denominou de “intelectuais orgânicos”, especializações
de aspectos parciais da atividade primitiva do novo tipo social que a nova classe
76 alvaro bianchi

trouxe à luz. A questão foi formulada pela primeira vez no Quaderno 4 e reto-
mada, com uma pequena mas importante variante, no Quaderno 12, dedicado
à questão dos intelectuais:

Todo grupo social, nascendo sobre a base originária de uma função essencial
no mundo da produção econômica, cria conjuntamente, organicamente, um
ou mais estratos de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da
própria função no campo econômico. (Q 4, § 49, p. 474-475)

Todo grupo social, nascendo sobre o terreno originário de uma função essencial
no mundo da produção econômica, cria conjuntamente, organicamente, um
ou mais estratos de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da
própria função não apenas no campo econômico, como também no social e
político. (Q 12, § 1, p. 1513. Grifos meus)

A alteração no texto registrada no Quaderno 12 destaca, justamente, que


o exercício da direção não se restringe ao ambiente econômico, mas se estende
aos âmbitos social e político. Portanto, se é verdade que “a hegemonia nasce
da fábrica”, como afirmou Gramsci no Quaderno 22 (§ 2, p. 2146), também é
importante ressaltar que a hegemonia não se restringe à fábrica.23
A segunda forma é a que o marxista italiano denominou de intelectuais
“tradicionais”. Todo grupo social emergente encontrou categorias sociais pre-
existentes, intelectuais representantes, muitas vezes, da continuidade histórica
interrompida. Dentre essas categorias, a mais típica é a dos eclesiásticos, que
durante muito tempo monopolizaram o ensino, a moral, a justiça e, eviden-
temente, a ideologia religiosa, ou seja, a forma que a filosofia e a ciência as-
sumiram no mundo medieval. Os eclesiásticos encontravam-se organicamente
vinculados à aristocracia e possuíam, além do monopólio da ideologia e de sua

23
A passagem que citamos do Quaderno 22 é datada por Francioni entre fevereiro e março de
1934. Sua primeira versão é de fevereiro ou março de 1930. A passagem do Quaderno 4 sobre
os intelectuais é de outubro ou novembro de 1930 e sua versão do Quaderno 12 foi redigida em
meados de 1932. A ressalva a respeito da dimensão social e política da função dos intelectuais foi
feita, portanto, depois da redação da nota sobre o Americanismo do Primo Quaderno e antes de sua
segunda versão no Quaderno 22 (cf. Francioni, 1984, p. 140-145).
materialismo/idealismo 77

reprodução, direitos de propriedade fundiária e os privilégios vinculados a essas


propriedades. Mas é possível enumerar, também, os administradores, cientistas
e filósofos não eclesiásticos amparados pelo absolutismo.
Se há tão variados tipos de intelectuais, o que os distingue, então? O
caráter distintivo encontra-se no conjunto do sistema de relações no qual as ati-
vidades intelectuais se localizam. Uma vez feita essa ressalva, Gramsci introduzia
uma definição de extrema importância: “Todos os homens são intelectuais, pode-
ria se afirmar, portanto; mas não todos os homens têm na sociedade a função de
intelectuais” (Q 12, § 1, p. 1516). A rigor inexistem não-intelectuais, na medida
em que não existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção
intelectual, de tal modo que não é possível separar o homo faber do homo sapiens.
Era aí retomada, em outros termos, a já conhecida definição apresentada no Qua-
derno 11: “todos os homens são ‘filósofos’”, desde que sejam definidos os limites
da filosofia espontânea presente na linguagem, religião, senso comum e no bom
senso. Assim, todos os homens são intelectuais porque fora de suas profissões são
“filósofos”, artistas, participam de uma concepção de mundo ou possuem uma
linha de conduta conscientemente definida vinculada a essa concepção.
Todos são intelectuais, mas só alguns exercem essa função na sociedade.
A atividade intelectual é diferenciada em graus que podem adquirir uma di-
mensão qualitativa, abarcando em um extremo os criadores de diversas ciências
e no outro os mais humildes administradores e divulgadores de um patrimônio
cultural acumulado previamente. Do ponto de vista histórico, o que é impor-
tante destacar é a formação de categorias especializadas nas funções intelectuais,
em conexão com os grupos sociais mais importantes. Estes grupos lutam pela
assimilação e conquista ideológica dos intelectuais tradicionais, luta que é mais
eficiente se o grupo dado possuir seus próprios intelectuais orgânicos.
A relação entre esses intelectuais e o mundo da produção é mediada
pelo conjunto das superestruturas das quais os intelectuais são funcionários. O
grau de organicidade dos intelectuais pode ser medido através de uma gradação
das superestruturas às quais estão vinculados. A passagem da primeira redação
do Quaderno 4 para a segunda, no Quaderno 12, mostra que o conceito de
hegemonia adquiria em 1932 contornos mais nítidos para Gramsci. Vale a pena,
portanto, citar os textos longamente:
78 alvaro bianchi

a relação entre os intelectuais e a produção não é imediata, como ocorre


com os grupos sociais fundamentais, mas é mediada, e é mediada por dois
tipos de organização social: a) pela sociedade civil, isto é, pelo conjunto
de organizações privadas da sociedade, b) pelo Estado. Os intelectuais têm
uma função na “hegemonia” que o grupo dominante exercita sobre toda a
sociedade e no “domínio” sobre ela que se encarna no Estado, e essa função
é, precisamente “organizativa” ou conectiva: os intelectuais têm a função de
organizar a hegemonia social de um grupo e seu domínio estatal, isto é, o
consenso decorrente do prestígio da função no mundo produtivo e o aparato
de coerção para aqueles grupos que não “consentem” nem ativamente nem
passivamente, ou para aqueles momentos de crise de comando e de direção
nos quais o consenso espontâneo atravessa uma crise. (Q 4, § 49, p. 476)

a relação entre os intelectuais e a produção não é imediata, como ocorre com


os grupos sociais fundamentais, mas é “mediada” em diversos graus, por todo
o tecido social, pelo complexo das superestruturas, das quais os intelectuais são
os “funcionários”. É possível mensurar a “organicidade” dos diversos estratos
intelectuais, a própria conexão mais ou menos estreita com um grupo social
fundamental, fixando uma gradação das funções e das superestruturas de baixo
para cima (da base estrutural para cima). É possível, por enquanto, estabelecer
dois grandes “planos” superestruturais, o que se pode chamar de “sociedade
civil”, ou seja, do conjunto de organismos vulgarmente chamados “privados”,
e o da “sociedade política ou Estado”, e que correspondem à função de “hege-
monia” que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e a de “domínio
direto” ou de mando que se expressa no Estado e no governo “jurídico”. Estas
funções são, precisamente, organizativas e conectivas. Os intelectuais são os
“encarregados” pelo grupo dominante para o exercício das funções subalternas
da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso “espontâneo”
dado pelas grandes massas da população à orientação impressa à vida social
pelo grupo dominante fundamental, consenso que nasce “historicamente” do
prestígio (e portanto da confiança) derivado pelo grupo dominante de sua po-
sição e de sua função no mundo da produção; 2) do aparelho de coerção estatal
que assegura “legalmente” a disciplina daqueles grupos que não “consentem”
nem ativa nem passivamente, mas que está constituído por toda a sociedade
materialismo/idealismo 79

em previsão dos momentos de crise no mando e na direção nos quais o con-


senso espontâneo falha. (Q 12, § 1, p. 1518-1519)

Esse enfoque ampliava sobremaneira o conceito de intelectual e o


inseria na elaboração do conceito de hegemonia. Se a relação entre a função
dos intelectuais e a construção da hegemonia já se encontrava na nota do
Quaderno 4, redigida em 1930, foi no Quaderno 12, de 1932, que ela se
expandiu articulando duas duplas conceituais: a) sociedade civil e socieda-
de política ou Estado; b) direção e dominação. O argumento exposto na
segunda redação desse texto foi minuciosamente reconstruído, dando lugar
a uma concepção na qual as relações ente os conceitos no interior de uma
dupla e das duplas entre si são multidimensionais. Ao invés de destacar o
antagonismo ente sociedade civil e sociedade política ou entre as funções de
direção e dominação, era indicada a unidade-diferenciação existente no in-
terior dessas duplas conceituais. O lugar ocupado pelos intelectuais é chave
para compreender essa unidade-diferenciação, pois são eles os agentes de
ambas as funções.
É claro que essa perspectiva pressupõe a diferenciação e hierarquização
entre os intelectuais, à qual já foi feita referência. Gramsci falava até mesmo
em certa divisão de trabalho. Essa diferenciação não é só funcional. O marxista
italiano distinguia, por exemplo, os intelectuais de tipo urbano daqueles de tipo
rural. Os intelectuais urbanos cresceram conjuntamente com a indústria, não
têm autonomia e se limitam a executar o plano de produção estabelecido pelo
estado-maior da indústria (Q 12, § 1, p. 1520).
Os intelectuais de tipo rural são, por sua vez, em grande medida “tradi-
cionais”. Vinculam-se à massa social camponesa e à pequena burguesia da cida-
de ainda não absorvida e assimilada pelo sistema capitalista. Os intelectuais de
tipo rural exercem sobre a massa camponesa uma função de mediação política,
colocando, com sua atividade profissional, essa massa em contato com a admi-
nistração estatal. Tal é a força dessa mediação política, que o desenvolvimento
orgânico das massas camponesas está vinculado, em grande medida, ao movi-
mento dos intelectuais e deles depende. Não é o que ocorre com os técnicos de
fábrica. Sua mediação profissional não se traduz em uma mediação política, não
exercendo função política sobre suas massas intelectuais.
80 alvaro bianchi

O contato entre os intelectuais e o povo é uma condição política da ele-


vação cultural das massas. Um “progresso intelectual de massa” que é, também,
político, na medida em que se realiza por meio da política e tem por resultado
uma nova relação entre os grupos sociais, na qual teoria e prática se encontram
finalmente unificadas. O processo por meio do qual esse progresso tem lugar
não é, entretanto, pacífico. Gramsci destacava o caráter conflitivo da afirmação
de uma nova personalidade e de uma nova força hegemônica:

A compreensão crítica de si mesmo se produz, pois, por meio de uma luta de


‘hegemonias’ políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética, a
seguir da política, para chegar a uma elaboração superior da própria concepção
do real. A consciência de ser parte de uma determinada força hegemônica (ou
seja, a consciência política) é a primeira fase para uma ulterior e progressiva
autoconsciência na qual teoria e prática finalmente se unificam (Q 11, § 12, p.
1386. Grifos meus).

A unidade entre teoria e prática, tão alardeada e tão pouco compre-


endida, era assim, para Gramsci, um devir histórico e não um fato mecânico
deduzido da ação das massas. A política e a luta entre os grupos sociais não se
reduziriam a uma atividade prática. Elas envolvem, também, a conformação e
afirmação de uma identidade filosófica que garantisse a unidade do grupo social
e imprimisse um sentido a uma prática transformadora e à constituição de um
grupo intelectual próprio. Era nesse nexo teoria-prática que Gramsci colocava o
conceito de hegemonia.
A afirmação de uma nova concepção da luta política fazia desse con-
ceito um importante progresso político-prático. Mas ele possuía, também, uma
dimensão filosófica, “já que implica e supõe necessariamente uma unidade in-
telectual e uma ética adequada a uma concepção do real que superou o senso
comum e se tornou crítica, mesmo que dentro de limites ainda restritos.” (idem,
p. 1385-1386) Esse era, entretanto, um programa filosófico-político e não uma
descrição da elaboração filosófica predominante no marxismo da época. Persisti-
riam, no interior da filosofia da práxis, resíduos de concepções mecanicistas que
manteriam a “teoria como serva da práxis” (idem, p. 1386). Tal subordinação da
materialismo/idealismo 81

teoria à prática era sinal de um desenvolvimento ainda insuficiente da filosofia


da práxis. Para Gramsci:

A insistência no elemento “prático” do nexo teoria-prática, depois de haver cindido


e separado e não somente diferenciado os dois elementos (operação meramente
mecânica e convencional), significa que se atravessa uma fase histórica relativamen-
te primitiva, uma fase ainda econômico-corporativa, na qual se transforma quanti-
tativamente o quadro geral da “estrutura” e a qualidade da superestrutura adequada
está em vias de surgir, mas ainda não está organicamente formada. Deve-se destacar
a importância e o significado que têm, no mundo, moderno, os partidos políticos
na elaboração e difusão das concepções de mundo na medida em que elaboram
essencialmente a ética e a política adequadas a elas. (idem, p. 1386-1387)

O praticismo decorrente dessa subordinação expressava a incapacidade de


o movimento dos trabalhadores superar o nível das reivindicações imediatas, sin-
tetizadas em um programa e em uma prática de tipo econômico-corporativo. A
alternativa não seria, certamente, a constituição de um teoricismo e o insulamento
da atividade intelectual, o que retiraria à teoria sua possibilidade de se afirmar como
força material, sujeitando-a à realidade presente. Para superar esse nível econômico-
corporativo e passar ao nível da luta efetiva pela constituição de uma nova hege-
monia, seria necessário fundir a constituição intelectual de uma nova concepção de
mundo à constituição prática dessa concepção. A importância atribuída por Gramsci
aos partidos políticos deve-se a sua capacidade de realizar essa fusão:

os partidos são os elaboradores das novas intelectualidades integrais e totali-


tárias, isto é, o crisol da unificação de teoria e prática entendida como pro-
cesso histórico real; e compreende-se, assim, como seja necessária que a sua
formação se realize através da adesão individual e não ao modo “trabalhista”,
já que – se se trata de dirigir organicamente “toda a massa economicamente
ativa” – deve-se dirigi-la não segundo velhos esquemas, mas inovando; e esta
inovação só pode se tornar de massa, em seus primeiros estágios, por inter-
médio de uma elite na qual a concepção implícita na atividade humana já
tenha se tornado, em certa medida, consciência atual coerente e sistemática,
e vontade precisa e decidida. (Q 11, § 12, p. 1387)
82 alvaro bianchi

A capacidade de fundir constituição intelectual e constituição prática de


uma concepção de mundo seria tanto maior quanto maior fosse a radicalidade
inovadora e antagônica das concepções que deseja difundir, ou seja, quanto maior
fosse o grau do conflito estabelecido com os antigos modos de pensar. Muito
embora o manual de Bukharin fosse parte de um projeto de afirmação de um novo
“progresso intelectual de massa”, o viés teórico por ele adotado condenaria essas
massas populares a uma situação de subalternidade ideológica (cf. Frosini, 2003,
p. 106). É por essa razão que Gramsci foi tão severo com a atitude filosófica de
Bukharin. Diluindo o marxismo na filosofia do materialismo, o dirigente soviético
estava criando um obstáculo à afirmação de uma nova hegemonia.
Concebida como filosofia de massa, ou seja, como parte efetiva de um
projeto de “reforma intelectual”, a filosofia da práxis deveria assumir, segundo
Gramsci, uma “forma polêmica, de luta perpétua” (Q 11, § 13, p. 1397). Se o
objetivo era constituir uma nova filosofia de massa, ou seja, uma concepção de
mundo capaz de organizar a vida intelectual das classes subalternas e da qual
essas mesmas classes fazem parte ativamente, então era em primeiro lugar contra
o senso comum que essa filosofia deveria se enfrentar.
A subordinação da filosofia da práxis ao materialismo filosófico promo-
vida por Bukharin, ao invés de contrapor-se criticamente a esse senso comum,
aceitava-o como ponto de partida. Pois no senso comum, afirmava Gramsci, pre-
dominam os elementos “realistas” e “materialistas” que nascem diretamente da ex-
periência sensorial dos indivíduos, constituindo espontaneamente uma concepção
ptolomaica, antropomórfica e antropocêntrica (Q 13, § 13, p. 1397). O marxista
sardo chamava a atenção para o fato de que, ao contrário do que um senso comum
“filosófico” poderia imaginar, esse materialismo do senso comum “não está em
contradição com o elemento religioso” e é, até mesmo, “supersticioso” (idem).
Na base desse materialismo do senso comum estaria a crença de que a
natureza teria sido criada por deus antes mesmo da criação do homem, que teria
encontrado essa natureza de forma acabada e a recebido como dádiva. Não se
tratava apenas de um materialismo do senso comum, uma vez que mesmo na
tradição filosófica italiana era possível encontrar não poucos pensadores que espo-
savam esse ponto de vista. No pensamento do filósofo do Risorgimento Vincenzo
Gioberti, por exemplo, o conhecimento humano não era senão uma intuição do
materialismo/idealismo 83

mundo externo, mas a própria idéia de um mundo externo não seria concebível
sem o recurso a uma esfera sobrenatural (cf. Haddock, 1998, p. 709).
Elidindo a crítica à origem supersticiosa do senso comum, o Ensaio popu-
lar não era capaz sequer de combater de modo eficaz os fundamentos teológicos do
idealismo subjetivista. Tal ineficácia transparecia na crítica de Bukharin a Berkeley.
Pretendia o marxista soviético enfrentar a concepção subjetivista que reduzia a
realidade a uma criação do espírito e sua influência na filosofia e na ciência con-
têmporânea. Para tal, denunciava a posição que o subjetivismo radical de Berkeley
havia assumido a partir do século XVII, tornando-se uma communis doctorum
opinio com a “tenacidade de um preconceito popular” (Bukharin, 1971).
Afirmava Bukharin que apenas Adão, abrindo os olhos e vendo o
mundo pela primeira vez poderia incorrer na ilusão de que esse mundo exis-
tiria apenas porque ele o pensava e via (idem). Para ser fiel à metáfora, não é
possível pensar a psicologia de Adão, como faz o marxista soviético, uma vez
que ele é o objeto da criação e não seu sujeito. Em toda a narrativa bíblica da
gênese, que é uma extensão da criação do mundo, somente deus é sujeito e,
por essa razão, não existe uma descrição do momento em que Adão desperta
no seu primeiro sopro de vida.
Mas supondo que fosse possível, no âmbito dessa metáfora bíblica,
pensar esse despertar, ainda assim seria mais provável que Adão incorresse na
ilusão de que o mundo que via tinha uma existência material externa a ele,
porque assim havia sido criado por deus. Apoiando-se na leitura da Bíblia, o
senso comum religioso estaria, assim, muito mais próximo do materialismo vul-
gar do que do subjetivismo filosófico, o que enfraqueceria e até inviabilizaria o
argumento do autor do Ensaio popular.
Apesar das duras críticas, Gramsci partilhava com Bukharin a oposição
ao solipsismo. Discutindo as elucubrações de Giuseppe A. Borgese a respeito
das partículas subatômicas, afirmava serem “puros jogos de palavras, de ciência
romanceada e não de um novo pensamento científico ou filosófico”. E pergun-
tava: “Será que a matéria vista ao microscópio não é mais matéria realmente
objetiva, mas uma criação do espírito humano que não existe objetivamente ou
empiricamente?” (Q 11, § 36, p. 1451). A resposta à própria pergunta é uma
cabal rejeição da idéia de que o pensamento criaria a matéria:
84 alvaro bianchi

Se fosse verdade que os fenômenos infinitamente pequenos em questão não pu-


dessem ser considerados existentes independentemente do sujeito que os obser-
va, eles na realidade não seriam nem mesmo ‘observados’, mas ‘criados’, e cairiam
no mesmo domínio da pura intuição fantástica do indivíduo. (...) Não se trataria
nem mesmo de ‘solipsismo’, mas de demiurgia ou bruxaria. (idem, p. 1454)

A insuficiência da crítica de Bukharin às filosofias subjetivistas residiria


em outro ponto: ela estaria na confusão entre a communis doctorum opinio e o
“preconceito tradicional”. É preciso distinguir, entretanto, afirmava Gramsci,
“os grandes sistemas filosóficos tradicionais e a religião do alto clero, isto é, a
concepção do mundo dos intelectuais e da alta cultura” (Q 11, § 13, p. 1396)
e a filosofia do senso comum, “‘a filosofia dos não filósofos’, isto é, a concepção
do mundo absorvida acriticamente, pelos vários ambientes sociais e culturais
nos quais se desenvolve a individualidade moral do homem médio” (idem). Feita
a distinção, ficaria evidente quão inócua era a abordagem bukhariniana que,
no combate ao misticismo da filosofia especulativa, não faria senão reforçar as
superstições daqueles que deveriam ser emancipados delas.
Entretanto, a crítica de Gramsci ao materialismo vulgar nem sempre
foi inequívoca e seus resultados às vezes aparecem como contraditórios. Por
isso, não foram poucos os que o acusaram de resvalar ou simplesmente cair no
idealismo. Um dos herdeiros da corrente bordiguista na Itália, Onorato Damen,
não vacilava, por exemplo, em remeter o marxista sardo para o âmbito de um
“neoidealismo historicista”, quando não de um “pré-marxismo filosófico” (Da-
men, 1988, cap. 1). Opinião assemelhada aparece, também, em leituras a destra,
como, por exemplo, Luciano Gruppi, que afirmou ter o autor dos Quaderni
caído “efetivamente no idealismo” (Gruppi, 1978, p. 119), e Carlos Nelson
Coutinho, para quem Gramsci “nunca superou inteiramente a concepção neo-
hegeliana de Gentile e de Croce, para os quais ‘toda realidade é espírito’, sendo
a própria natureza uma ‘categoria do espírito’” (1999, p. 107).
Tais leituras tendem a confundir a crítica que Gramsci fez à pretensão
de objetividade epistemológica, ou seja, à possibilidade acalentada pelo positi-
vismo de um conhecimento absolutamente objetivo, a-histórico e, portanto,
a-humano, com uma crítica à objetividade ontológica da matéria, ou seja, à sua
realidade objetiva (cf. Martelli, 1996, p. 27). No âmbito da crítica a Bukharin,
materialismo/idealismo 85

a ênfase de Gramsci está posta na crítica à pretensão de objetividade epistemo-


lógica (idem, p. 28). Mas a confusão é agravada pelo fato de o próprio Gramsci
não fazer uma distinção clara entre o significado epistemológico e o significado
ontológico da objetividade e, com freqüência, passar rapidamente, no interior
de uma mesma nota, de um para o outro.
Tome-se, por exemplo, o sempre citado § 17 do Quaderno 11, intitu-
lado La cosi detta ‘realtà del mondo esterno’. Afirmava Gramsci nesse parágrafo
que o argumento de Bukharin estaria mal colocado. A concepção subjetivista
criticada pelo autor do Ensaio popular era a forma mais completa e avançada da
filosofia moderna e o materialismo histórico teria, segundo Gramsci, traduzido
“em linguagem realista e historicista aquilo que a filosofia tradicional expressava
em linguagem especulativa” (Q 11, § 17, p. 1413).
Não era, entretanto com toda e qualquer concepção subjetivista da
realidade que o marxismo estabeleceria um diálogo crítico. Aqui, como em
outras oportunidades, era com Hegel que esse diálogo deveria ser travado. A
ressalva era acompanhada da rejeição explícita das “formas bizarras” assumidas
por essa concepção subjetivista, como aquela de Tolstoi, que acreditava poder
surpreender o momento no qual seu espírito não teria tido tempo de criar nada
e, portanto, nada veria. Mas uma coisa é enfrentar essas “formas bizarras”, outra
é terçar armas com os expoentes da filosofia subjetiva. Segundo Gramsci,

A ressalva que se deve fazer ao Ensaio popular é a de ter apresentado a concepção


subjetivista assim como ela aparece na crítica do senso comum e de ter acolhido
a concepção da realidade objetiva do mundo externo em sua forma mais trivial
e acrítica sem sequer suspeitar que se possa mover contra ela a objeção de misti-
cismo. (Q 11, § 17, p. 1415)

Essa forma “trivial e acrítica” era o resultado de uma compreensão mecâ-


nica da questão. Procurando fugir de uma solução reducionista do problema, per-
guntava Gramsci: “Pode existir uma objetividade extra-histórica e extra-humana?
Mas quem julgará essa objetividade? Quem poderá colocar-se nessa espécie de
‘ponto de vista do cosmo-em-si’, e que significará um tal ponto de vista?” (Q 11,
§ 17, p. 1415). Apenas um deus poderia reivindicar tal ponto de vista universal.
Para responder à questão, tornava-se necessário recorrer “à história e ao homem
86 alvaro bianchi

para demonstrar a realidade objetiva. Objetivo significa sempre ‘humanamente


objetivo’, o que pode corresponder exatamente a ‘historicamente subjetivo’, isto é,
objetivo significaria ‘universal subjetivo’” (idem, p. 1415-1416).
A dificuldade de interpretar esse parágrafo reside no deslocamento re-
alizado por Gramsci da análise da objetividade ontológica do mundo exterior
para uma análise crítica da objetividade do conhecimento. O parágrafo passa,
assim, de uma crítica às “formas bizarras” do subjetivismo, que negariam a exis-
tência da matéria fora do pensamento, para uma crítica daquela objetividade
epistemológica, que reivindicaria um conhecimento objetivo e uma ciência livre
de pressupostos. A continuação do parágrafo torna explícito esse deslocamento.
Afirmava nele Gramsci:

O homem conhece objetivamente na medida em que o conhecimento é real para


todo o gênero humano historicamente unificado em um sistema cultural unitário;
mas esse processo de unificação histórica tem lugar com o desaparecimento das
contradições internas que dilaceram a sociedade humana, contradições que são a
condição da formação dos grupos e do nascimento das ideologias não universal-
concretas, mas que se tornam caducas imediatamente, por causa da origem prá-
tica da sua substância. (idem, p. 1416.)

A referência ao homem que “conhece objetivamente” deixa claro que é


a possibilidade de um conhecimento fora da história que Gramsci está questio-
nando, e não a existência objetiva da matéria. Carlos Nelson Coutinho critica
essa passagem do texto, afirmando que a partir dela “torna-se difícil não só ex-
plicar a objetividade da lei da gravidade antes que todos os homens tomassem
conhecimento dela, antes que ela se tornasse um ‘universal subjetivo’, mas é di-
fícil até mesmo compreender a objetividade dos fatos sociais”. E arremata: “será
que a lei da queda tendencial da taxa de lucro (ainda que seja uma objetivação
humana, e não uma objetividade natural) precisa esperar ser um ‘universal sub-
jetivo’ para se tornar uma realidade objetiva (...)?” (Coutinho, 1999, p. 106.)
De modo adequado, Coutinho notou que Gramsci está tratando nessa
passagem de uma questão epistemológica, e não ontológica. Mas a confusão
reside na identidade que o intérprete estabelece entre a gravitação e a “lei da
gravidade” e entre a tendência da taxa de lucro a cair e a lei da queda tendencial
materialismo/idealismo 87

da taxa de lucro, ou seja, entre o real e o real pensado. Certamente a gravitação


não precisava se tornar um “universal subjetivo” para ser uma força, mas ela pre-
cisou de Isaac Newton para ser pensada sob a forma de lei. A força gravitacional
existia objetivamente antes de Newton, mas a lei da gravitação é uma relação
matemática, ela não poderia ter uma existência objetiva antes de ser deduzida
pelo físico inglês.
Como modelo explicativo, a lei newtoniana da gravitação universal
apresentou limites teóricos que foram encarados no século XX pela teoria da
relatividade geral, de Einstein, em um diferente contexto “historicamente sub-
jetivo”. Se a lei existia antes de ser enunciada, seus limites seriam limites da
natureza? E a teoria da relatividade geral também existiria antes de ser enunciada
por Einstein? Nesse caso haveria duas naturezas, uma newtoniana e outra eins-
teiniana? É preciso pois ter cuidado para não fetichizar a ciência e confundir a
realidade pensada com a própria realidade.24
A referência à “lei da gravidade” feita por Coutinho não é ocasional.
Ela remete ao Prefácio de A ideologia alemã e à crítica sarcástica que Marx e En-
gels fizeram àqueles que acreditavam que as pessoas afundavam na água apenas
porque possuíam a “idéia da gravidade [Gedanken der Schwere]” (mecw, v. 5,
p. 24). Mas a afirmação de Coutinho inverte o significado original da ironia
marx-engelsiana ao atribuir à lei da gravitação, ou seja, à “idéia de gravidade” a
condição de “realidade objetiva”.
A esse respeito cabe lembrar que a crítica de Gramsci é cognata àquela
que Georgy Lukács fez em 1925 ao manual de Bukharin. Afirmava Lukács que
nessa obra o soviético teria se situado perigosamente próximo àquilo que Marx
denominou “materialismo burguês”, “rejeitando todos os elementos do método
marxista que derivam da filosófica clássica alemã” (Lukács, 1974, p. 43). Essa
aproximação ao materialismo natural-cientificista obscureceria o caráter específi-
co do marxismo, para o qual “todos os fenômenos econômicos ou ‘sociológicos’

24
Gruppi defende tese similar à de Coutinho, mas distingue claramente aquilo que é independen-
te de nós e aquilo que objetivamos mediante uma ação ou ato do pensamento, argumentando que
Gramsci confundiria ambas as dimensões (Gruppi, 2000, p. 119-120). Para a crítica a Gruppi, ver
Martelli (1996, p. 37-38).
88 alvaro bianchi

derivam das relações sociais entre os homens. A ‘ênfase’ conferida a uma falsa
‘objetividade’ na teoria conduz ao fetichismo” (idem, p. 44).
Como escapar então do solipsismo próprio do idealismo subjetivista
e desse fetichismo que caracteriza o materialismo vulgar? Gramsci apresentou
a questão em um conjunto de textos, em sua maioria de primeira redação
agrupados ao final do caderno especial dedicado a Bukahrin, sob o subtítulo
“Appunti miscellanei”. Tal posição implica afirmar que constituem o ápice da
reflexão filosófica de Gramsci.25 Afirmava nesses parágrafos que até o momento
do idealismo clássico alemão a filosofia havia sido concebida como uma ativi-
dade receptiva, que acolhia no pensamento um mundo exterior absolutamente
imutável, ou uma atividade ordenadora, capaz de arrumar o mundo por meio
do pensamento, sem, entretanto, transformá-lo. A filosofia clássica alemã, por
sua vez, introduziu em um sentido idealista e especulativo o conceito de criação
(Q 11, § 59, p. 1485-1486).
Gramsci identificava no idealismo alemão uma verdadeira revolução
no pensamento e considerava, como já visto, que era nele que a filosofia da
práxis encontrava seu impulso. Mas o que significa esse conceito de criação? E
como seria possível utilizá-lo sem cair no solipsismo, pressupondo que o mundo
exterior é criado pelo pensamento? Segundo Gramsci,

Para escapar do solipsismo e, ao mesmo tempo, das concepções mecanicistas que


estão implícitas na concepção do pensamento como atividade receptiva e ordena-
dora, deve-se colocar a questão de modo “historicista” e, simultaneamente, colocar
na base da filosofia a “vontade” (em última instância, a atividade prática ou polí-
tica), mas uma vontade racional, não arbitrária, que se realiza na medida em que
corresponde às necessidades objetivas históricas, isto é, em que é a própria história
universal no momento de sua realização progressiva. (idem, p. 1485)

A síntese da história da filosofia feita por Gramsci era, sem dúvida,


muito simplificadora. Mas a solução que dava para escapar do idealismo e do
materialismo vulgar era extremamente rica de significados. A solução estava for-

25
Esses parágrafos foram redigidos provavelmente nos últimos meses de 1932 ou no início de
1933 (cf. Francioni, 1984, p. 145).
materialismo/idealismo 89

temente ancorada na leitura labriolana das Teses sobre Feuerbach. Era por meio
de uma revalorização da práxis histórica que o autor dos Quaderni procurava
resolver as aporias do “duplo revisionismo”. Foi por essa razão que para marcar
sua solução preferiu, a partir dos cadernos 10 e 11, falar de filosofia da práxis
em vez de materialismo histórico, procurando dessa maneira destacar o caráter
histórico de sua concepção. Assim, parafraseando uma passagem de Lênin em
Materialismo e empirocriticismo,26 escrevia Gramsci:

Foi esquecido que, numa expressão muito comum [i.e., o materialismo históri-
co], seria necessário destacar o segundo termo ‘histórico’ e não o primeiro, de
origem metafísica. A filosofia da práxis é o ‘historicismo’ absoluto, a munda-
nização e terrenalidade absoluta do pensamento, um humanismo absoluto da
história. (Q 11, § 27, p. 1437)

Em sua dimensão histórica, o pensamento é parte da realidade que


se quer pensar e, na medida em que “modifica a maneira de sentir do maior
número”, ou seja, das massas, ele é também, uma força material capaz de
modificar a própria realidade (Q 11, § 59, p. 1486. Grifos meus). A escolha
das palavras foi cuidadosa e parece marcar a distância que separava a filo-
sofia da práxis gramsciana (de inspiração labriolana) daquela apresentada
por Giovanni Gentile, que procurava subsumir o pensamento marxiano no
interior da filosofia attualista.
Tomando como ponto de partida uma leitura particular das mesmas Teses
sobre Feuerbach, das quais foi o primeiro tradutor na Itália, Gentile procedia a uma
impressionante ampliação do conceito de práxis, no qual a atividade tornava-se
práxis do pensamento e a objetividade a objetividade pensada. Em vez de uma
relação dialética entre sujeito e objeto, a “construção unilateral do objeto pelo

26
Dizia Lênin: “Partindo de Feuerbach e amadurecidos na luta contra os remendões, é natural que
Marx e Engels tivessem, sobretudo, se dedicado a concluir a filosofia materialista, quer dizer, a con-
cepção materialista da história, e não a gnoseologia materialista. Como resultado, nas suas obras
que tratam do materialismo dialético, insistiram muito mais sobre o lado dialético que sobre o lado
materialista; tratando do materialismo histórico, insistiram muito mais sobre o lado histórico do
que sobre o lado materialista” (lcw, v. 14, p. 329).
90 alvaro bianchi

sujeito” (Martelli, 2001, p. 89). A chave desse procedimento teórico encontrava-se


em uma tradução equivocada da versão publicada por Engels das Teses.27
Na primeira dessas Teses, no momento em que Marx discutia os limi-
tes do materialismo feuerbachiano, Gentile traduzia o substantivo-chave do
parágrafo, “der Gegenstand” (o objeto, a coisa), por “il termine del pensiero” (o
termo ou a conclusão do pensamento), para logo a seguir esclarecer em uma
nota de rodapé que a “atividade objetiva” (gegenständliche Tätigkeit) significava
“atividade que faça, ponha, crie o objeto sensível” (Gentile, 2003, p. 68-69).
Na mesma nota, Gentile esvaziava o caráter revolucionário da atividade prá-
tico crítica. Assim, onde Marx escrevia “É por isso que ele [Feuerbach] não
compreende o significado da atividade ‘revolucionária’, da atividade ‘prático-
crítica’ [Er begreift daher nicht die Bedeutung der ‘revolutionären’, der ‘praktisch-
kritischen’ Tätigkeit]” (cf. Labica, 1990, p. 26 e 31), Gentile traduzia: “por
isso ele não entende o significado que os ‘revolucionários’ dão à atividade
prático-crítica [Perciò egli non intende il significato che i ‘rivoluzionari’ dànno
all’attività pratico-critica]” (Gentile, 2003, p. 69).
Esse esvaziamento era completado na terceira das teses, aquela que
enunciava a condição da autotransformação (a palavra Selbstveränderung era
suprimida na versão de Engels), Nela a estratégica frase final era assim traduzida
por Gentile: “A coincidência da mudança do ambiente e da atividade humana
pode ser concebida e entendida racionalmente [concepito e inteso razionalmente]
apenas como práxis subvertida [prassi rovesciata]” (Gentile, 2003, p. 69).Assim
o erro de Gentile invertia completamente o sentido da práxis, uma vez que não
se trata no original alemão de uma “práxis subvertida”, e sim de uma “práxis
subversiva” (umwälzende Praxis).28
A transformação do sentido das Teses permitia a Gentile afirmar
que, quando “se conhece, se constrói, se faz o objeto e quando se o faz ou
se constrói um objeto, ele é conhecido; portanto o objeto é um produto

27
Para a versão original de Marx e a publicada por Engels, bem como a comparação entre ambas,
ver o minucioso trabalho de Labica (1990).
28
Na versão original de Marx consta “revolutionäre Praxis” (“práxis revolucionária”), em vez de
“umwälzende Praxis”.
materialismo/idealismo 91

do sujeito” (Gentile, 2003, p. 77). Tais objetos constituídos por essa práti-
ca poderiam ser teóricos ou práticos, poderiam ser conhecimentos e fatos,
afirmava o filósofo neoidealista. Mas a construção permanente do objeto
modificaria as circunstâncias, a educação e o ambiente do sujeito, modifi-
cando desse modo o próprio sujeito. O efeito reagiria então sobre a causa
e “a própria relação se subverte, o efeito fazendo-se causa da causa torna-se
efeito, permanecendo, entretanto, causa”. Desse modo, “a práxis que tinha
como princípio o sujeito e fim o objeto, se subverte, regressando do objeto
(princípio) ao sujeito (termo)” (Gentile, 2003, p. 85. Ver os comentários de
Martelli, 1996, p. 25).
O tema central da obra La filosofia de Marx, escrita por Gentile, o con-
ceito de práxis, constituía-se, desse modo, em uma chave para resolver idealisti-
camente a relação sujeito-objeto, declarando a identidade entre os dois termos
(cf. Badaloni e Muscetta, 1990, p. 36). Para o filósofo neoidealista,

Práxis quer dizer relação entre sujeito e objeto. Por isso, nem o indivíduo-
sujeito, nem o indivíduo objeto como tais sic et simpliciter; mas um na ne-
cessária relação com o outro e vice-versa. Por isso, também, a identidade dos
opostos. Não educador de uma parte e educados de outra, como se tem dito,
mas educadores que são educados; e educados que educam. (Gentile, 2003, p.
160. Grifos meus.)

Tal identidade permitia a Gentile uma solução da relação entre teoria


e práxis sob a forma, novamente, de uma identidade. Por um lado a práxis
era concebida como originária, livre e idêntica ao pensamento, e, por outro,
o pensamento era concebido como uma consciência teórica da prática em ato
e, portanto, como idêntico à práxis (cf. Badaloni e Muscetta, 1990, p. 37). A
questão da relação entre teoria e prática era central também para Gramsci, assim
como o lugar atribuído às Teses sobre Feuerbach. Mas a solução dada à questão
era radicalmente diferente daquela de Gentile.
Na prisão, Gramsci empreendeu alguns exercícios de tradução nos
Quaderni, dentre os quais se destacam alguns textos de Marx, como as pró-
prias Teses sobre Feuerbach e o “Prefácio de 1859” à Contribuição à Crítica
da Economia Política, textos-chave para a reconstrução do marxismo que
92 alvaro bianchi

pretendia empreender.29 Embora não fossem exatas, as soluções que o mar-


xista sardo encontrou em seu exercício de tradução das Teses aproximavam-
se mais do texto de Marx que as de Gentile. Na primeira tese, por exemplo,
o substantivo “der Gegenstand” era traduzido por “l’oggetto” (o objeto) e o
parágrafo final da mesma Tese tinha sua tradução gentiliana revista de modo
exato e a “atividade” voltava a ser “revolucionária” (“pertanto egli non con-
cepisce l’importanza della attività ‘rivoluzionaria’, dell’atività pratico-critica”)
(Q, p. 2355). A solução dada por Gramsci à terceira tese não era, entre-
tanto, precisa, embora fosse diferente daquela avançada por Gentile. Em
vez de traduzir “umwälzende Práxis” por “práxis subversiva” (em italiano,
prassi rovesciante ou prassi sovvertitrice), como seria mais exato (cf. Martelli,
1996, p. 25 e 2001, p. 90-92), Gramsci traduziu por “subversão da práxis”
(“rovesciamento della práxis”) (Q, p. 2356).
Embora não seja satisfatória, esta última versão do texto de Marx di-
fere daquela de Gentile e expressa, in nuce, a impossibilidade de identificar um
a outro.30 De acordo com Martelli (1996, p. 27), na fórmula gramsciana, o
complemento “da práxis” é definido em um sentido ativo e equivale, portanto, a
“práxis subversiva” (“prassi rovesciante”), ao contrário, portanto, de Gentile.31 A
interpretação de Martelli ganha força se comparada à tradução da primeira tese,

29
Sobre a importânica dos cadernos de tradução de Gramsci ver Borghese (1981) e Francioni
(1992).
30
Augusto Del Noce insistiu na tese de que o pensamento gramsciano seria um capítulo da
história do neoidealismo italiano e, particularmente, do attualismo gentiliano (cf. Del Noce,
1978), amparando essa tese está a afirmação de que um e outro sustentariam sua filosofia em
um ativismo da vontade. Domenico Losurdo critica essa tese de modo preciso e competente,
marcando toda a distância não apenas política, como também teórica, que existe entre o
ideólogo do fascismo Giovanni Gentile e o dirigente comunista Antonio Gramsci (Losurdo,
1997, cap. III).
31
Em italiano a partícula di (della = di + la) pode estabelecer uma relação de especificação,
na qual determina o conceito mais amplo expresso pelo nome do qual depende, mas pode,
também, na dependência de um nome derivado do verbo (como é o caso de “il rovesciamen-
to”), expressar uma especificação subjetiva, designando o sujeito lógico da ação, nesse caso, o
sujeito é “la praxis”.
materialismo/idealismo 93

na qual a atividade prático-crítica não teria um “significado” atribuído pelos


“revolucionários”, como na versão gentiliana, mas seria, na versão gramsciana,
“atividade ‘revolucionária’”.
Revolucionária, a práxis não cria o objeto, como pretendia Gentile, mas
transforma o mundo, como afirmava Marx na décima primeira de suas Teses sobre
Feuerbach. Era esse o sentido no qual Gramsci empregava a noção de “subversão
da práxis” nos Quaderni. A expressão não foi de uso corrente, mas aparecerá em
um texto B localizado no Quaderno 8, em um contexto teórico significativo para
a presente discussão. Nessa nota, na qual era investigada a relação existente entre a
estrutura e a superestrutura, seu autor escrevia a respeito da “existência das condi-
ções objetivas para a subversão da práxis”, ou seja, para a própria revolução (Q 8,
§ 182, p. 1051). A existência de condições objetivas para tal revolução permitiria
nessa situação a emergência das condições subjetivas, aquela situação na qual “o
‘racional’ é real ativa e efetivamente” (idem). O sentido atribuído à noção de “sub-
versão da práxis” era, nesse contexto o de uma “subversão pela práxis”, a transfor-
mação radical da ordem existente mediante uma atividade revolucionária.
A questão política posta no Quaderno 8 foi colocada em chave filo-
sófica no § 14 do Quaderno 11. Trata-se de um texto de grande complexidade
e alcance, que reúne os §§ 174 e 186 presentes no Quaderno 8, ampliando e
desenvolvendo o conteúdo desses. Gramsci iniciava o parágrafo afirmando que
a ausência de uma concepção dialética do movimento histórico impedia o autor
do Ensaio popular de levar ao cabo uma crítica efetiva da metafísica e da filosofia
especulativa. A crítica de Bukharin aos sistemas filosóficos do idealismo estaria
vazada em termos dogmáticos (Q 11 , § 14, p. 1401-1402).
Para superar tal dogmatismo, afirmava o sardo, seria necessário pensar
o valor histórico das filosofias, ou seja, concebê-las como “expressão necessária
e inseparável de uma determinada ação histórica, de uma determinada práxis,
mas superada e ‘inutilizada’ em um período posterior”. A historicização da filo-
sofia permitiria conceber o pensamento desse modo, sem cair no “ceticismo e
no relativismo moral e ideológico” (idem, p. 1402). Respondendo aos desafios
colocados por essa filosofia que se tratava de criticar, o autor do Ensaio popular
não conseguia elaborar o conceito de filosofia da práxis como “metodologia
histórica”. Ficava, desse modo, muito aquém do desenvolvimento filosófico do
94 alvaro bianchi

idealismo contêmporâneo, pois “não consegue colocar e resolver do ponto de


vista da dialética real o problema que Croce colocou e procurou resolver do
ponto de vista especulativo” (idem).
Nesta última afirmação ficam claros os juízos que Gramsci emitia a
respeito das diferentes vertentes do revisionismo. Postando o marxismo aquém
do umbral filosófico que o próprio idealismo havia atingido, o determinismo
do manual de Bukharin provocava em Gramsci uma censura sem reservas. O
idealismo contêmporâneo e, principalmente, Croce e Gentile, representavam
para o marxista sardo o limite ao qual o pensamento burguês europeu havia
chegado e um desafio a ser superado dialeticamente. A crítica do autor dos Qua-
derni ao marxista soviético residia no fato de este ter confrontado o idealismo e,
nessa luta, procurado, em vez de superá-lo, o refúgio seguro em um pensamento
menos elaborado. Elidindo os problemas filosóficos colocados pelo idealismo
contêmporâneo e retrocedendo em direção às posições filosóficas de um ma-
terialismo vulgar, Bukharin reencontrava uma “forma, ainda que ingênua, de
metafísica” (Q 11 , § 14, p. 1402).
A filosofia do autor do Ensaio popular era assim, segundo Gramsci, um
“aristotelismo positivista”. Partindo de uma metafísica ingênua, o marxista sovié-
tico transformava o marxismo em uma “‘sociologia’ do materialismo metafísico”
cujo objetivo era investigar a “lei da causalidade, a pesquisa da regularidade, da
normalidade, da uniformidade” presente na sociedade (idem, p. 1403). Mas, na
busca daquilo que era, sua investigação acabava perdendo o que poderia ser. Pois
a revolução não é a regularidade, a normalidade e a uniformidade. Ela não é a
expressão de um tempo homogêneo no qual a repetição tem lugar. A revolução
é a irregularidade, a anormalidade, a descontinuidade. E era na busca de uma
teoria da revolução que Gramsci interrogava a teoria bukhariniana: “Mas como, a
partir desse modo de conceber, é possível deduzir a ‘subversão da práxis’?” (idem).
Como, nos marcos do materialismo vulgar, seria possível conceber a revolução?
Conceber a revolução como uma possibilidade exige o abandono da idéia
positivista de um tempo homogêneo. Para Gramsci, o marxismo não era uma
ciência das regularidades históricas e, por essa razão, anunciava sua filosofia da
práxis como “uma expressão das contradições históricas” (Q11, § 62, p. 1488). E
como tal, a filosofia da práxis é finita. Seu tempo, entretanto, ainda é o presente
materialismo/idealismo 95

a ser superado. Sua hora, a hora de sua finitude, ainda não chegou. A filosofia da
práxis é ainda expressão das contradições de nosso tempo e, como tal, deveria
ser desenvolvida: como um pensamento que conspira contra as condições de sua
existência. Como um pensamento que se entende a si próprio como política.

Anti-Croce

O lugar de Croce na cultura italiana da primeira metade do século XX


é singular. Tendo feito sua carreira à margem do sistema universitário, o crítico
napolitano exerceu uma função hegemônica no ambiente cultural italiano, que só
poderia encontrar paralelo no lugar que Goethe ocupou na Alemanha do século
XIX (cf. Hughes, 1979, p. 201; Garin, 1996, p. 3-4; Bellamy, 1987, p. 72). Para
isso, utilizou a revista La Critica e a editora Laterza para saturar a vida cultural
da península com um único ponto de vista: o renascimento cultural da Itália e o
conseqüente aniquilamento dos vestígios do pensamento do século XVIII ainda
existentes, particularmente, do positivismo (cf. Jacobitti, 1980, p. 69-70).
Não é exagero falar de saturação cultural. Entre 1882, data de seus pri-
meiros textos juvenis, até 1952, quando de sua morte, Croce publicou cerca de 30
mil páginas e acompanhou criteriosamente as freqüentes reedições dos 72 volu-
mes de sua obra. A esse grande número de escritos seria necessário acrescentar seus
cadernos de viagem e o enorme epistolário que manteve com alguns dos principais
expoentes do ambiente literário de sua época (cf. Badaloni e Muscetta, 1990, p.
15-33). O resultado foi um colossal empreendimento intelectual com vistas à
reconfiguração desse ambiente literário e o exercício pleno de sua hegemonia cul-
tural nele. Com plena consciência do alcance desse empreendimento, o próprio
Croce considerava ter contribuído de modo decisivo para afirmar na Itália:

o renovado conceito de filosofia em sua tradição especulativa e dialética, e não


mais positivista e classificatória, a ampla visão da história, a união da erudição
com o filosofar, o sentido vivíssimo da poesia e da arte em seu próprio caráter
original e, com isso, a via aberta ao reconhecimento em sua positividade e auto-
nomia de todas as categorias ideais. (Croce, 1947a, p. 86)
96 alvaro bianchi

De um modo geral, a busca desses resultados unifica as diferentes fases


do pensamento croceano.32 Os meios intelectuais mobilizados para a realização
desse objetivo variaram, entretanto, no tempo. Tal empreendimento começou,
ou pelo menos ganhou corpo, com a aproximação de Benedetto Croce ao mar-
xismo. Não é exato afirmar que de foi marxista ou mesmo socialista, muito
embora tenha mantido com ambos um intenso diálogo durante toda sua vida.33
A relação do crítico napolitano com o marxismo não se desenvolveu de modo
linear, e é possível identificar ao menos duas fases nela. Nesta primeira, à qual
é feita referência agora, Croce inseriu-se no debate da época e no movimento
revisionista que afirmava a “crise do marxismo”.
Como parte dessa vertente revisionista, Croce atribuiu, nos ensaios
reunidos em Materialismo storico ed economia marxistica, obra publicada em
1899,34 um valor positivo a certos aspectos da teoria marxista, ao mesmo tem-
po em que procurou corrigir aqueles que seriam os principais senões dessa
teoria. No Prefácio da primeira edição dessa obra, afirmava que, assim como
Georges Sorel, seu objetivo era “livrar o núcleo são e realista do pensamento
de Marx dos adornos metafísicos e literários de seu autor e das exegeses e
deduções pouco cautelosas da escola” (1927, p. IX).
Esse empreendimento intelectual era interpretado como uma missão
libertadora e revivificadora, pois se tratava de libertar o marxismo das mãos dos
marxistas e de lhe dar nova vida, embora com pretensões mais modestas. Era no
âmbito desse projeto que o crítico napolitano definia que o materialismo histórico

32
Para uma discussão das diferentes fases do pensamento croceano, ver Badaloni e Muscetta
(1990, p. 62-75).
33
Com base naquilo que o próprio Croce escreveu, é possível dizer que ele não se reconheceria na
afirmação feita por Finocchiaro de que seu pensamento teria sido marxista (2002, p. 10). Opinião
mais matizada é sustentada por Hughes (1979, p. 82-89). Segundo Badaloni: “Ainda que não
tenha sido socialista ou marxista, Croce, assim como Gentile, necessitou do marxismo para dar
uma base racional a sua atividade de crítico e historiador” (Badaloni e Muscetta, 1990, p. 62).
34
Os ensaios haviam sido publicados originalmente entre 1895 e 1899 em periódicos italianos
e na revista francesa Devenir sociale, dirigida por Georges Sorel. Eles são o resultado do diálogo
crítico de Croce com Antonio Labriola, a quem a obra foi dedicada.
materialismo/idealismo 97

não era nem uma filosofia da história nem um novo método historiográfico, mas
apenas “um cânone de interpretação histórica”, que aconselhava a “dirigir a aten-
ção ao chamado substrato econômico da sociedade, para compreender melhor
suas configurações e vicissitudes” (Croce, 1927, p. 79. Cf. tb. 1946, p. 47).
Para ser bem sucedida, essa valorização do marxismo como “cânone
de interpretação” tinha que acertar as contas com a noção de luta de classes.
Pois era como pensamento que chama a atenção para o “substrato econômico”
que o marxismo poderia perder seu caráter revolucionário e não como pensa-
mento que chama a atenção para o caráter permanente do antagonismo social.
Segundo Croce, a história seria uma luta de classes apenas quando existissem
classes sociais (fato sobre o qual Engels já havia chamado a atenção), quando
existissem interesses antagônicos e quando as classes fossem conscientes desse
antagonismo. Mas nem sempre existiriam esses interesses antagônicos e, se
existissem, não seriam necessariamente conscientes. Assim, o enunciado de
que a “a história é luta de classes” também, segundo Croce, deveria ser re-
duzido ao “valor de cânone e de orientação que reconhecemos em geral na
concepção materialista” (idem, p. 85).
Marx foi, para Croce, uma ferramenta para a crítica da filosofia po-
sitivista predominante na Itália, e um meio para a elaboração de sua filosofia
do espírito, concebida por meio da distinção entre as diferentes formas que
definiam a maneira a partir da qual o espírito operava de modo universal. Em
sua memória apresentada no ano de 1900 na Academia Pontaniana de Napoli,
intitulada Tesi fondamental di un’estetica come scienza dell’espressione e linguistica
generale, Croce elaborou uma primeira versão desse sistema filosófico. Esse tex-
to, revisado e ampliado, passou a integrar, em 1907, o livro Estetica come scienza
dell’espressione e linguistica generale (Croce, 1945), primeiro dos quatro volumes
de Croce dedicados à Filosofia dello Spirito.35
O procedimento filosófico padrão de Croce era um percurso no qual
distinção-classificação-definição era ponto essencial (cf. Garin 1996, p. 3-31).

35
Os outros volumes são Logica come sicenza del concetto puro, publicado originalmente em 1908
(Croce, 1947); Filosofia della pratica: Economia ed etica, de 1908 (Croce, 1947); e Teoria e storia
della storiografia, de 1915 (Croce, 2001).
98 alvaro bianchi

Assim, o ponto de partida da exposição – literalmente, pois isso era afirmado no


primeiro parágrafo de sua Estética – não podia deixar de ser uma afirmação de
tipo esquemático e classificatório. Nela, Croce diferenciava as duas formas que
o conhecimento adquiria: “conhecimento intuitivo ou conhecimento lógico;
conhecimento pela fantasia e conhecimento pelo intelecto; conhecimento do
individual ou conhecimento do universal” (Croce, 1945, p. 3). Tais formas do co-
nhecimento corresponderiam, respectivamente, à Estética e à Lógica, que, embora
fossem diversas, não se encontravam separadas. Muito embora a forma estética
fosse independente da forma intelectiva e, nesse sentido, poderia ser considerada
a forma primeira, o contrário não poderia ser dito. A inteligência necessitaria se
expressar e, por essa razão, não poderia existir sem a estética (idem, p. 23).
As formas intuitiva (Estética) e intelectiva (Lógica) esgotavam para
Croce todo o domínio teórico do espírito, mas seu conhecimento pleno exigiria
o estabelecimento das relações existentes entre o espírito teórico e o espírito
prático. Com a forma teórica o homem compreenderia as coisas e se apropriaria
delas por meio do intelecto, com a prática as transformaria e criaria (idem, p.
54). A forma ou atividade prática seria, desse modo, correspondente à vontade.
O argumento de Croce não deixava de ser tautológico, uma vez que definia a
vontade como “a atividade do espírito (...) produtora não de conhecimento, mas
de ações” (Croce, 1945, p. 53). Repetir-se-ia quanto a essas duas formas – teóri-
cas e práticas – a mesma relação que já havia sido estabelecida entre a atividade
estética e a atividade intelectiva. A forma teórica seria a forma primeira e inde-
pendente, e a forma prática não poderia sem ela existir. Isso não significava que
o homem prático necessitasse para operar de um sistema filosófico elaborado, e
sim de intuições e conceitos que lhe permitissem orientar sua ação.
O primeiro grau da atividade prática seria, para Croce, a atividade me-
ramente útil ou econômica, e o segundo, a atividade moral: “A Economia é como
a Estética da vida prática; a Moral, como a Lógica” (idem, p. 61). O conceito
de atividade econômica recebia tratamento detalhado. Procurava Croce superar a
confusão existente entre os conceitos de útil e egoísmo. Uma vez que o egoísmo
é imoral, a confusão colocaria a Economia em uma posição não distinta, mas
antagônica à Ética. Mas mesmo o homem mais escrupuloso deveria conduzir sua
vida por um sentido de utilidade se não desejasse operar sem sentido algum.
materialismo/idealismo 99

O autor da Estetica procurava resolver a questão do mesmo modo como


havia estabelecido a relação entre Estética e Lógica. O altruísta que procura um
fim moral não poderia deixar de procurá-lo utilmente (economicamente), mobi-
lizando os meios acessíveis com vistas à obtenção do fim almejado. Já que apenas
o indivíduo poderia ser o ator da ação, um fim racional (moral) só poderia ser
desejado como um fim particular. A atividade econômica se encontraria implicada
na atividade ética, mas a recíproca não seria verdadeira. A atividade econômica
seria, assim, primeira e independente com relação à atividade ética (idem, p. 63).
A atividade complexa do pensamento era, assim, decomposta em qua-
tro graus: a individualidade e universalidade teoréticas, referentes à intuição e
expressão do individual (Estética) e à concepção do universal (Lógica), respec-
tivamente; e a individualidade e a universalidade práticas, correspondentes às
volições do particular (Economia) e às volições do universal (Ética). A relação
entre esses diferentes momentos ou graus do espírito seria uma relação de impli-
cação regressiva. Croce resumia assim sua teoria das formas do espírito:

Neste esboço sumário que fizemos do conjunto da filosofia do espírito em seus


momentos fundamentais, o espírito é concebido, então, como percorrendo quatro
momentos ou graus, dispostos de modo que a atividade teórica esteja para a prática
como o primeiro grau teórico está para o segundo teórico e o primeiro prático para
o segundo prático. Os quatro momentos se implicam regressivamente por seu ca-
ráter concreto: o conceito não pode estar sem expressão, o útil sem uma e o outro,
e a moralidade sem os três graus que o precedem. (idem, p. 68)

Os inúmeros problemas da formulação de uma filosofia do espírito não


se encontravam, entretanto, resolvidos, coisa que as sucessivas revisões dos três
primeiros volumes que compunham sua investigação e o acréscimo de um quar-
to dedicado à história iriam demonstrar. A tentativa de restringir toda a ativida-
de humana àquelas quatro formas implicava exclusão do âmbito do “espírito”
de toda ação que não pudesse ser nelas enquadradas ou na redução arbitrária de
tais atividades a uma das formas previamente definidas.
Tendo assentado com sua Estetica os pressupostos da filosofia do espírito,
Croce não deixou de se debater com os limites do próprio sistema, sem chegar a
resolver a tensão existente entre uma classificação formal e apriorística das formas
100 alvaro bianchi

do espírito e uma análise efetiva da experiência humana (cf. Garin, 1996, p. 21). A
tensão manifestava-se no interior da própria obra croceana entre o esquematismo
classificatório dos quatro volumes que reuniam sua Filosofia dello Spirito e a rique-
za da análise presente nos volumes de seus Scritti di Storia Letteraria e Politica.
Os problemas mais graves apareciam justamente nas esferas nas quais
essa experiência assumia a forma de atividade prática, o âmbito daquilo que esse
autor chamou de “filosofia da prática”, os domínios da Economia e da Ética (cf.
Croce, 1923. Ver tb. Martelli, 2001, p. 118-121). No mesmo ano em que Croce
escreveu a primeira versão de sua filosofia do espírito, nas Tesi fondamentali de
1900, redigiu também duas cartas que tinham por destinatário Vilfredo Pareto
discutindo o “princípio econômico”, cartas essas que integram a obra Materia-
lismo storico ed economia marxistica (Croce, 1927, p. 225-247). As cartas não
faziam, obviamente, parte da primeira edição dessa obra, publicada um ano
antes, mas passaram a integrar a edição seguinte, de 1906. Além da importância
para a reconstrução do percurso que levou Croce a sua filosofia do espírito, essas
cartas, na posição que ocupam em Materialismo storico..., revelam que aquilo
que este denominava de Economia era ponto nodal de seu inicial afastamento
da obra de Marx.
Na carta a Pareto de 15 de maio de 1900, a relação existente entre os
domínios da Economia e da Ética era abordada. O fato econômico era definido
como “a atividade prática do homem enquanto se considere em si, independen-
temente de toda determinação moral ou imoral”. Estabelecendo a autonomia
do útil e distinguindo a ação econômica de uma moralidade concebida em sua
pureza categorial, Croce enunciava nessas cartas as bases para sua filosofia da
prática (cf. Bonetti, 2000, p. 13).
O preço desse enunciado era, entretanto, elevado. Um conceito tão laxo
do fato econômico trazia como conseqüência a subsunção pelo econômico de
toda atividade com vistas a transformar de algum modo o ambiente e, portanto,
implicava uma redução do direito e da política a meras expressões da atividade
econômica. Essa expansão conceitual configurava um surpreendente economi-
cismo. Depois de criticar, primeiro, a operação levada a cabo por Achille Loria
e, depois, a suposta transformação por parte de Marx da economia em um “deus
oculto”, Croce paradoxalmente subsumia na economia parte da superestrutura.
materialismo/idealismo 101

Na Estetica, esse procedimento de subsunção se manifestava no tratamento


dispensado ao direito: “o direito é uma fórmula (oral ou escrita, aqui pouco impor-
ta), na qual é fixada uma relação econômica desejada por um indivíduo ou uma
coletividade” (Croce, 1945, p. 69). Em Filosofia della pratica, o tema foi retomado e
tratado de modo detalhado, preservando a formulação inicial em seus pontos mais
importantes: o pertencimento do direito à esfera da atividade prática, a distinção
entre moral e direito, e a redução do direito à Economia (cf. 1923, p. 307-390).
Do mesmo modo, para Benedetto Croce, a ação política era aquela guiada
pelo sentido da utilidade, ou seja, era a ação dirigida por um fim considerado útil
pelo agente e, desse modo, era reconduzida para o âmbito da Economia. O critério
que permitiria avaliar uma ação política seria, desse modo, um critério de eficácia.
Dirigida com vistas à obtenção de um fim útil, tal ação não poderia ser qualificada
como moral ou imoral, e sim, apenas, como eficaz ou ineficaz (Croce, 1994, p. 250-
251). Definida desse modo a política, tornava-se possível distingui-la da ação moral
e ética, aquela ação dirigida com vistas à realização do bem. Não se tratava, entretan-
to, de afirmar a moralidade ou imoralidade da política, e sim sua amoralidade.
A distinção entre filosofia e política implicava, também, uma especiali-
zação ou especificação dos sujeitos. A distinção das formas espirituais encontrava
nos indivíduos singulares a especificidade de suas vocações (cf. Bobbio, 1955,
p. 102). A demarcação que Croce levava a cabo entre essas formas encontrava,
dessa maneira, sedes fisicamente separadas: “o filósofo” e o “homem da política”,
aos quais continuamente fazia referência.
A separação física entre essas formas não deixava de colocar um proble-
ma, que o filósofo napolitano tentava resolver no âmbito do espírito. Embora
estabelecesse a distinção entre moral e política, Croce assegurava formalmente o
nexo existente entre elas. A distinção significaria, para ele, não uma separação,
mas uma “unidade concreta e viva” (Croce, 1994, p. 203), uma unidade que
se verificava na medida em que ambas eram “momentos necessários da vida
espiritual” (Croce, 1993, p. 241). Mas o nexo indicava também o sentido no
qual se processava a unificação. A consciência ética e moral e a consciência eco-
nômica e política partilhariam a mesma forma prática, mas seguindo o modo de
implicação dos diferentes graus do espírito, a econômica e a política, como ações
geradas pelo sentido de utilidade, se resolveriam na eticidade.
102 alvaro bianchi

Assim como nas implicações regressivas dos diferentes graus do espíri-


to, o “espírito ético encontra, pois, na política a premissa de sua atividade e, por
sua vez, seu instrumento, quase um corpo ao qual infunde uma alma renovada
e utiliza para seus fins” (Croce, 1994, p. 266). A anterioridade da política com
relação à moral tornaria possível que esta servisse de “instrumento à vida moral”
(idem, p. 267). Embora expressasse essa relação entre os distintos por meio de
uma linguagem hegeliana, o empreendimento croceano era antidialético, uma
vez que o nexo existente entre os diferentes graus do espírito não constituía uma
relação de mútua interpenetração e reciprocidade, e sim de implicação unilateral
do nível superior no inferior (cf. Fontana, 1993, p. 60).
Se a forma discursiva era de inspiração claramente hegeliana, as con-
clusões às quais chegava o filósofo napolitano afastavam-no do alemão. Com-
preender o Estado e a moral era, para Croce, um problema teórico da alçada da
filosofia. Diferentes seriam as questões referentes às orientações da ação políti-
ca. Seriam questões práticas e diriam respeito ao político, e não ao filósofo. O
problema político, assim como todo problema prático, deveria ser considerado
como um empreendimento criativo e, portanto, pessoal e individual. Croce
rompia decididamente nesse ponto com Hegel, para afirmar na política o pri-
mado do indivíduo sobre o Estado.
A afirmação da autonomia da política implicava não apenas a distin-
ção entre ética e política acima analisada, como também uma distinção entre a
“filosofia da política” e a “ciência empírica da política”. Retomando a idéia de
uma identidade entre filosofia e história, afirmada em sua Logica come scienza
del concetto puro (Croce, 1947), Croce escrevia que a finalidade da filosofia da
política era a explicação da história da atividade política “em sua dupla forma de
história econômica e meramente política e de história ético-política ou moral”
(1994, p. 281). A ciência da política, por sua vez, teria o objetivo de fixar o
conhecimento de modo a torná-lo rapidamente acessível ao espírito com vistas
à ação ou a nova indagações. O procedimento que permitiria à ciência empírica
da política atingir seus objetivos deveria ser a redução da multiplicidade histó-
rica a um pequeno número de “tipos e classes”, ou seja, “os fatos considerados
em seu conteúdo abstrato (...) e despojados de sua vida própria, dada pela forma
espiritual, quer dizer, pela individualidade” (Idem, p. 282).
materialismo/idealismo 103

O juízo de Croce a respeito da ciência empírica da política não


era, evidentemente, positivo, como, aliás, não o era para qualquer “ciência
empírica”. Argumentava que ao retomar o material criticamente elaborado
pela filosofia e pela crítica histórica, a ciência empírica da política esvaziava
o conteúdo vivo desse material e seu significado. Esse juízo negativo tinha
também um caráter metodológico: ele serviria para prevenir a filosofia da
contaminação por parte de uma vulgar filosofia prática.36 Seria assim pos-
sível evitar uma identificação entre a verdade lógica e a verdade política,
erro este que poderia ter como conseqüência uma absolutização do pensa-
mento prático. Mas esse juízo negativo também serviria para alertar contra
a transformação de caprichos e paixões individuais em teoremas “da ciência
mecânica que tomou por objeto o Estado e a sociedade” (idem, p. 286). Esse
último erro consistiria em um apagamento das fronteiras entre filosofia e
práxis, acreditando ter a ação política uma determinação conceitual univer-
sal, quando, na verdade, tal ação só pode encontrar sua verdade na sua plena
individualidade (cf. Zarone, 1990, p. 189).
Levando em conta o ambiente intelectual de sua época e, particular-
mente, o contexto italiano, chama a atenção essa recusa de uma ciência política,
rejeição que se colocava na contramão do empreendimento levado a cabo por
Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto, dentre outros. Ao contrário desses autores,
empenhados na demonstração da possibilidade de um conhecimento científico
da política, o autor de Etica e politica colocava em dúvida o potencial de uma
ciência que procedesse por meio de “pesudoconceitos” e classificações (Croce,
1994, p. 288).37 O âmbito que o filósofo napolitano atribuía à ciência empírica

36
Quando a prática é objeto da filosofia, esta é uma “filosofia da prática”. Quando a prática é o
objetivo da filosofia, esta é uma mera “filosofia prática”.
37
Para Croce, o conceito puro é omni e ultra-representativo e não se refere a esta ou aquela
representação particular ou a este ou aquele grupo de representações. Os pseudoconceitos, por sua
vez, seriam representações gerais que simulariam uma falsa universalidade. As ciências empíricas
operariam a partir de tais pseudoconceitos (cf. Croce, 1947, 13-36 e Bonetti, 2000, p. 18-22). A
solução elaborada por Croce lhe permitia romper o nó górdio existente entre a Kulturwissenschaften
e a Naturwissenschaften com um golpe de caneta, expelindo arbitariamente todas as noções cientí-
ficas do campo do conhecimento puro (cf. Garin, 1996, p. 23).
104 alvaro bianchi

da política estava muito longe, desse modo, daquele que Mosca procurava deter-
minar. Para Croce, a ciência empírica da política teria apenas um valor restrito
a sua “utilidade instrumental” (idem). Reconhecido esse valor instrumental, se
impediria que a ciência da política degenerasse em filosofemas abstratos e prin-
cípios absolutos contaminando tanto a filosofia como a historiografia.
Essa restrição do âmbito de atuação e da validade da ciência política refor-
çava a distinção que Croce levava a cabo entre teoria e prática, filosofia e política.
Tal distinção, na ênfase que recebia, permitia-lhe recomendar aos filósofos que não
perturbassem a política com uma filosofia inoportuna. Por essa razão, chegou a de-
nunciar o “cretinismo filosófico” e a “fixação filosófica”, assim como Marx havia feito
com o cretinismo parlamentar (Croce, 1993, p. 281. Cf. tb. Bobbio, 1955, p. 105).
Mas a distinção também permitia “preservar o juízo histórico da contaminação da
prática política, que lhe retira amplitude e imparcialidade” (Croce, 1994, p. 290).
Uma vez desenvolvida essa distinção entre a política e a moral na
primeira seção de seus Elementi di politica, Croce passava em revista, na se-
ção seguinte, a história da filosofia da política, de modo a tornar sua filosofia
da política o ponto de culminância de toda a filosofia da política preceden-
te.38 O ponto de partida para tanto não era, senão Maquiavel, considerado
como um expoente da “política pura” e símbolo de uma profunda crise no
desenvolvimento da ciência. Para o filósofo napolitano, Maquiavel teria sido
o inaugurador da “autonomia da política”, anunciando pela primeira vez de
maneira clara as antinomias existentes entre ética e política (idem, p. 292).
Estabelecendo, por um lado, o conhecimento como pensamento “puro”,
e, por outro, a política como “puro” poder e “pura” utilidade, afirmava-se ao mes-
mo tempo a distinção radical entre pensamento e ação, universal e concreto. Como
atividade teórica, a filosofia seria uma atividade desinteressada confinada ao puro
pensamento sem poder se verter em uma prática, a menos que se corrompesse e
perdesse sua pureza. Como atividade prática, a política era lugar das paixões e dos

38
Os Elementi di política, publicados originalmente em 1925, passaram em 1930 a integrar a obra
Etica e politica, deste ano, juntamente com os Frammenti di etica, escritos em 1922. A primeira
seção dos Elementi di política intitulava-se “Politica ‘in nuce’” e a segunda a qual é feita referência
era “Storia della filosofia della política”. Para a história dessa obra, ver a minuciosa nota de Giuseppe
Galasso (Croce, 1994, p. 423-486).
materialismo/idealismo 105

interesses, sem nunca atingir o nível da verdade filosófica, a não ser que deixasse de
ser política e passasse a ser o objeto da filosofia (cf. Fontana, 1993, p. 9).
Esse empreendimento intelectual de Benedetto Croce teve forte im-
pacto sobre o jovem sardo. A admiração que alimentava por Croce é inegável,
a ponto de considerá-lo “o maior pensador da Europa neste momento” (CF,
p. 22). O importante papel atribuído ao crítico napolitano na constituição de
uma nova concepção de mundo pode ser avaliado pela posição que ele ocupava
nas discussões do Clube de Vida Moral, organizado por Gramsci em 1917 para
promover a educação dos jovens socialistas de Turim. Na carta ao pedagogo
Giuseppe Lombardo Radice a respeito das atividades do Clube, o marxista sardo
relatou a organização de estudos sobre “um capítulo de Cultura e vita morale
de B[enedetto]. Croce (...), um comentário de Croce na Critica ou outro, mas
sempre algo que seja marcado pelo movimento idealista atual” (L, p. 92-93).
Colocando-se ao lado de Bendetto Croce e também de Giovanni Genti-
le, o jovem Gramsci cerrava fileiras contra a cultura positivista que predominava
no interior do movimento socialista italiano. Gramsci identificava-se, durante
os primeiros anos de sua vida política, mais com a valorização da ação humana
presente no neoidealismo italiano do que com o grosseiro determinismo econô-
mico que tinha sua máxima expressão teórica nas obras de Achille Loria e sua
face política nos líderes socialistas Filippo Turati e Claudio Treves.
A caracterização de Gramsci a respeito de Treves e de sua revista Critica
sociale é elucidativa a esse respeito. Comentando o diálogo intitulado La morte
del socialismo, de Benedetto Croce (1993, p. 147-156), afirmava o sardo que a
dissolução do “mito” do socialismo era necessária. Tal mito era na verdade uma
“superstição”, era a crença de que o socialismo era um postulado do “positivismo
filosófico”. Essa concepção, que não era científica, mas simplesmente mecânica,
podia ser encontrada no “reformismo teórico” de Claudio Treves, “que não passa
de um passatempo de fatalismo positivista, cujos determinantes são energias
sociais abstraídas do homem e da vontade, incompreensíveis e absurdas: uma
forma de misticismo árido, sem os sobressaltos de uma paixão sofrida.” (cf, p.
25.) Mas se Gramsci utilizava o argumento de Croce não era para concordar
com ele a respeito da “morte do socialismo”, e sim para afirmar que este não
estaria morto enquanto vivessem “homens de boa vontade” (cf, p. 26).
106 alvaro bianchi

Também no plano político o neoidealismo italiano parecia oferecer uma


alternativa atraente, seja contra o conservadorismo da Igreja Católica, seja para
a questão do Mezzogiorno e da modernização italiana. Contra o clericalismo re-
acionário, o chamado de Croce a uma vida sem religião mitológica, sintetizado
em um artigo de 1915 – Religione e serenità – republicado pelo próprio Gramsci
em 1917, era considerado um programa para o homem moderno (cf. Croce,
1999, p. 29-32). Na cadeia, o marxista sardo não economizava elogios a essa
concepção: “Esse ponto parece-me ainda hoje a maior contribuição à cultura
mundial dada pelos modernos intelectuais italianos, parece-me uma conquista
civil que não deve ser perdida” (lc, p. 466). Era como parte de um movimento
anticlerical e laico que Gramsci sentia-se próximo do neoidealismo.
No que diz respeito à controversa questão do Mezzogiorno, ao invés
da tradicional dicotomia Norte-Sul – que encontrava seus defensores até mes-
mo entre socialistas da época e Giovanni Gentile e, principalmente, Benedetto
Croce – pareciam oferecer uma visão mais matizada da constituição histórica
das diferenças entre as duas regiões. No que diz respeito a essa questão, Croce e
Gentile eram interpretados por Gramsci como expressão teórica do Risorgimento
e de uma revolução burguesa que era necessário levar até as últimas conseqü-
ências para resolver a questão meridional. A interpretação de Gramsci ia, entre-
tanto, muito além do ponto no qual Croce e Gentile gostariam de se deter. Ela
radicalizava politicamente aquilo que para eles eram apenas tímidas idéias. No
seu ponto de chegada, o sardo não tinha mais a companhia de seus mestres (cf.
Losurdo, 1997, p. 21).
A formação político-intelectual do jovem Gramsci ocorreu no âmbito
do autodenominado “renascimento idealista” italiano. Mas afirmar, por isso, uma
identidade de Gramsci com o neoidealismo nesse estágio de seu desenvolvimento
político-intelectual seria certamente um exagero. Gramsci, entretanto, partilhava,
como visto, alguns temas em comum com esse neoidelismo e, particularmente,
a crítica ao positivismo e ao naturalismo (cf. Garin, 1996, p. 354). Não seria
exagerado dizer, portanto, que foi por meio do diálogo crítico com essa corrente
que o jovem sardo afirmou sua própria identidade política e intelectual.
Foi a partir do impacto provocado pela Revolução Russa de 1917 que
Gramsci começou a se afastar de Croce e Gentile. O afastamento coincidiu
materialismo/idealismo 107

com uma segunda fase da relação do crítico napolitano com o marxismo, cujo
início pode ser datado no já citado diálogo a respeito da “morte do socialismo”.
A partir do início da Primeira Guerra Mundial e, principalmente, da Revolução
Russa, essa posição foi radicalizada, convertendo-se em franco antagonismo (cf.
Finocchiaro, 2002, p. 9). Nessa nova fase, o objetivo de Croce não era mais a
revisão do marxismo, e sim sua liquidação. Marx, afirmava o crítico napolitano
no Prefácio de 1917 a Materialismo storico ed economia marxistica, não era mais
o mestre ao qual era preciso render homenagem (cf. Croce, 1927, p. XIII).
A guerra teria mostrado a insuficiência de uma concepção baseada na luta de
classes. Era preciso, portanto, aumentar a distância do antigo mentor.
A evolução intelectual de Croce demonstrava da trajetória do revisionis-
mo. Tendo começado sua carreira intelectual influenciado pelo marxismo, havia
dele tomado tal distância, que se podia declarar adversário. O anti-socialismo do
crítico italiano já se tornara evidente em Cultura e vita morale. Depois de 1917,
esse anti-socialismo havia recebido a forma de um radical anticomunismo. Em
sua Storia d’Europa nel secolo decimonono, publicada em 1932 e concebida como
uma exaltação da burguesia liberal, o comunismo era uma das “religiões opostas”
aos princípios éticos e à política liberal, religião essa que deveria ser derrotada
para que esses princípios pudessem se realizar plenamente (Croce, 1999, p. 47-
53 e 425-438. Ver tb. Badaloni e Muscetta, 1990, p. 89-92.)
Nessa passagem do anti-socialismo de Cultura e vita morale ao anti-
comunismo de Storia d’Europa é possível identificar uma clara radicalização e
uma acentuada politização do discurso teórico. Pois não era apenas o comu-
nismo que ameaçaria a liberdade. O próprio materialismo histórico constitui-
ria uma ameaça, já que sua “metafísica materialista e determinista” levaria os
comunistas a esperarem pela crise, ficando “rígidos e intransigentes ao lado
dos democratas e liberais”, para logo a seguir se voltar contra eles e destruir
tudo (Croce, 1999, p. 254.)
Um pequeno texto, escrito em 1928 para o jornal estadunidense St.
Louis Post Dispatch e publicado na Itália em 1934, sintetiza a atitude beligerante
assumida por Croce perante o marxismo. O título desse texto já era um verda-
deiro programa: Contro le sopravvivenze del materialismo storico (Croce, 1934).
Logo no primeiro parágrafo, o crítico napolitano explicitava seu propósito:
108 alvaro bianchi

Se me fosse permitido dirigir uma recomendação aos historiadores, aos teóricos


da política e aos publicistas de nossos dias (...), diria que eles deveriam estar aten-
tos para impedir que em seus juízos e raciocínios se infiltrem conceitos derivados
do “materialismo histórico” e ser diligentes para expulsá-los quando tenham se
introduzido e persistam. (idem, p. 4)

As razões dessa recomendação eram de ordem teórica e política. Con-


siderava seu autor que o materialismo histórico já havia sido confutado e supe-
rado pela crítica filosófica. Implicitamente, aparece o juízo de que ele próprio
havia levado essa missão até seu fim. Mas persistiriam ainda na opinião comum
sobrevivências e superstições derivadas do materialismo histórico. Particular-
mente perigosa era a suposta subversão do princípio hegeliano levada a cabo por
Marx e que teria convertido a Idéia na Matéria e, especificamente, na matéria
econômica, que assumiria “o lugar do antigo Deus e o caráter de última e única
realidade” (idem, p. 5. Cf. Martelli, 2001, p. 58-62).
Para Croce, o panlogismo hegeliano teria se convertido no panecono-
micismo marxiano. Todos os pensamentos, sentimentos, volições morais, toda
ciência e arte, todas as religiões, tradições ou costumes seriam para o marxismo
mera aparência ou ilusão, seriam apenas “superestrutura” (idem). Ao proceder
desse modo, o marxismo, segundo o editor de La Critica, teria manifestado sua
radical oposição às concepções éticas e políticas do liberalismo e, até mesmo, a
toda a evolução do pensamento ocidental.
O caráter político da acusação era reforçado pelos conceitos do materia-
lismo histórico que Croce julgava mais urgente afastar da opinião comum: “classe
dominante”, “burguesia” e “luta de classes”. E julgava necessário afastar esses con-
ceitos para livremente poder afirmar que a “liberdade não é função da burguesia
ou de outra economia, mas da alma humana e de suas necessidades profundas;
e não tem qualidade ou origem econômica, mas moral e religiosa e é, para dizer
tudo em uma palavra, a forma moderna do cristianismo.” (Croce, 1934, p. 10.)
À medida que o crítico napolitano assumia essa posição beligerante,
o sardo tomava distância. Mas não se tratava de uma simples ruptura. Gramsci
nutria no final da década de 1910 o projeto de superar dialeticamente a filosofia
neoidealista italiana, do mesmo modo que Marx e Engels haviam feito com o
idealismo alemão (cf. Losurdo, 1997, p. 31). Tal projeto era, nesse momento, um
materialismo/idealismo 109

projeto político. O que se tratava era de superar os limites políticos aos quais a
filosofia neoidealista havia se condenado com sua oposição à Revolução Russa.39
A atitude de Gramsci para com o neoidealismo e, principalmente para
com Benedetto Croce, com quem havia se identificado mais, evoluiu ao longo
dos primeiros anos da década de 1920. Aos poucos a referência ao crítico
napolitano praticamente desapareceu de seus escritos, ressurgindo, entretanto,
em 1926, no importante texto Alcuni temi della quistione meridionale. Mas o
juízo agora estava longe de ser positivo. Nesse texto, o dirigente comunista
atribuía aos intelectuais meridionais Benedetto Croce e Giustino Fortunato
um papel-chave na constituição de um bloco agrário formado pela “grande
massa camponesa amorfa e desagregada, os intelectuais da pequena e média
burguesia rural, os grandes proprietários de terras e os grandes intelectuais.”
(CPC, p. 150.) As funções de organização, centralização e dominação no inte-
rior desse bloco caberiam aos “grande proprietários, no campo político, e aos
grandes intelectuais no campo ideológico”. Mas era no campo ideológico que
a centralização era mais eficaz, daí o juízo extremamente negativo a respeito
dos intelectuais meridionais:

Como é natural, é no campo ideológico que a centralização se verifica com maior


eficácia e precisão. Giustino Fortunato e Benedetto Croce representam, por isso,
a chave da abóbada do sistema meridional e, em um certo sentido, são as duas
maiores figuras da reação italiana. (idem)

A crítica desenvolvida em Alcuni temi della quistione meridionale cons-


truía-se a partir da posição de Croce como organizador intelectual de um mo-
vimento politicamente reacionário. Esse texto foi publicado em 1930, no jornal
Lo Stato operaio, mas é muito provável que Croce não tivesse conhecimento dele
quando, em 1947, resenhou as Lettere dal carcere, havia pouco publicadas pela
editora Einaudi. Foi nessa resenha que procurou se apropriar do legado do sardo
afastando-o do marxismo e afirmando que “como homem de pensamento, ele
[Gramsci] foi dos nossos, daqueles que nos primeiros decênios do século na Itá-

39
Sobre a posição de Croce e Gentile a respeito da Revolução Russa, ver Martelli (2001, p.
175-181).
110 alvaro bianchi

lia empenharam-se em formar uma mentalidade filosófica e histórica adequada


aos problemas do presente” (Croce, 1947a, p. 86).
Mas rapidamente mudou de opinião depois de ler os primeiros vo-
lumes dos escritos do cárcere editados a partir de 1948. Já por ocasião da
publicação de Il materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce, o crítico
napolitano procurou esvaziar o alcance da oposição que lhe era dirigida por
seu autor. Afirmava Croce que o lançamento do livro havia sido precedido por
“mirabolantes anúncios” pelos quais Gramsci, “homem sério”, não poderia ser
responsabilizado. Tais anúncios, entretanto, não corresponderiam ao conteú-
do do livro: um conjunto de notas de caráter provisório, destinadas a serem
abandonadas posteriormente (Croce, 1948, p. 78).
Os limites dessas anotações não seriam apenas decorrentes das con-
dições adversas nas quais foram produzidas, mas, segundo Croce, inerentes ao
próprio programa de pesquisa gramsciano: a reconstrução de uma “filosofia da
práxis”. Tal programa subordinaria o pensamento a um “desejo prático”, es-
crevia. Desse modo, “a crítica àquela particular obra filosófica” – a do próprio
Croce, que evitava afirmar que ele era o alvo da crítica – tornava-se um “discurso
vazio”, restando apenas o contraste de um desejo prático a outro desejo prático,
contraste esse que era prático-político e não filosófico (idem).
Tal juízo a respeito da obra de Gramsci seria repetido em um comentário
escrito em 1950, no qual Croce protestava contra o que julgava ser uma repercus-
são excessiva e imerecida dos cadernos gramscianos, afirmando que, ao contrário
do que muitos diziam, “Gramsci não podia criar um novo pensamento e com-
pletar a portentosa revolução [intelectual] que lhe era atribuída porque (...) sua
intenção era unicamente a de fundar na Itália um partido político, ofício que não
tem nada a ver com a desapaixonada busca da verdade” (Croce, 1950, p. 231).
Obviamente, o que incomodou Croce, como deixou transparecer nas
resenhas que publicou a respeito de alguns volumes das obras de Gramsci, foi
o tratamento que este lhe dispensou (cf. Croce, 1948, 1949 e 1949a). Mas
a crítica gramsciana, e isso ele não poderia negar, era motivada pela própria
posição de organizador da cultura contêmporânea que o diretor de La Critica
atribuía a si próprio. Era a partir de uma investigação sobre a questão dos
intelectuais e do lugar de Croce na vida política italiana que Gramsci preten-
materialismo/idealismo 111

dia iniciar sua pesquisa no cárcere, como demonstra já aquela carta-programa


dirigida a Tatiana em março de 1927. na qual o projeto de um trabalho für
ewig era anunciado. A questão Croce, portanto, foi desenvolvida no cárcere
paralelamente à questão dos intelectuais.
O tratamento dado ao crítico napolitano nos Quaderni sofreu, entre-
tanto, sucessivas ampliações. No projeto inicial aparecia como parte de um estu-
do sobre os intelectuais; passava, posteriormente, a ocupar um lugar importante
na investigação a respeito da teoria da história e da historiografia; tornava-se
objeto central de uma crítica abrangente ao revisionismo das correntes mar-
xistas européias e de seu lugar como líder dessas correntes; e, por último, o
pensamento do filósofo napolitano balizava uma pesquisa sobre a renovação
da filosofia da práxis como o expoente da filosofia que deveria ser superada. O
projeto filosófico do jovem Gramsci era assim retomado e ampliado, recebendo
nova impostação no conjunto da reflexão levada a cabo na prisão.
A percepção do lugar de Croce na cultura européia era reforçada por
uma carta de Sorel ao editor de La Critica, na qual o francês revelava que
Eduard Bernstein teria se inspirado “em uma certa medida” nos trabalhos
desse. A influência sobre Bernstein era superlativizada por Gramsci em uma
carta de 18 de abril de 1932, na qual afirmava que o “próprio Bernstein
escreveu ter sido induzido a reelaborar todo o seu pensamento filosófico e
econômico depois de ler os ensaios de Croce” (lc, p. 609). O juízo a respeito
da influência de Croce sobre a social-democracia alemã era, certamente,
exagerado e revelava um viés excessivamente italiano da questão por parte de
Gramsci. Mas ele é importante porque permite compreender o alcance real
da crítica ao filósofo napolitano. Segundo Gramsci, ele teria sido o “líder in-
telectual das correntes revisionistas: em um primeiro momento (ao final do
século XIX inspirador de Bernstein e de Sorel); e em um segundo momento,
não mais de revisão, e sim de liquidação” (Q 8, § 225, p. 1082). Enfrentá-lo
significava, assim, enfrentar aquele que foi um dos expoentes principais do
revisionismo e que havia se tornado um de seus principais adversários. A
crítica a Croce era parte de “luta de hegemonias”.
O marxista italiano não desconhecia, entretanto, a especificidade des-
sa luta e do combate ideológico. Na luta política e militar pode ser conveniente
112 alvaro bianchi

“a tática de atacar nos pontos de menor resistência para estar em condições de


atacar no ponto mais forte, com o máximo de forças disponíveis precisamen-
te por ter eliminado os auxiliares mais débeis”. Mas na frente ideológica, “a
derrota dos auxiliares e dos seguidores menores tem uma importância quase
desprezível; neste é necessário combater contra os mais eminentes”. Uma nova
ciência, e esse é o caso do marxismo, “alcança a prova de sua eficiência e
vitalidade fecunda quando demonstra saber afrontar os grandes campeões de
tendências opostas, quando resolve com seus próprios meios as questões vitais
que aqueles colocaram, ou demonstra peremptoriamente que tais questões são
falsos problemas” (Q 11, § 22, p. 1423).
Ao marxismo não seria dado o direito de escolher os adversários
na frente ideológica. Eles seriam previamente definidos. E Croce era um
dos principais. Foi no interior do Quaderno 10, intitulado La filosofia di
Benedetto Croce, que Gramsci reuniu e reorganizou as notas dos cadernos
miscelâneos referentes ao crítico napolitano, enfrentando, a seu modo, tal
adversário. O Quaderno está dividido em duas partes, a segunda das quais
congrega a maior parte das anotações. Três são as rubricas que organizam
essa seção: Introduzione allo studio della fiosofia (Q 10/II, §§ 6, 9, 10, 12,
13, 17, 21, 24, 28, 35, 43, 44, 46, 48, 40, 52 e 54), Punti per lo studio
dell’economia (Q 10/II, §§ 15, 23, 32, 37, 53 e 57) e Punti per um saggio su
B. Croce (Q 10/II, §§ 11, 14, 16, 18, 22, 26, 29, 31, 33, 34, 36, 38, 39, 41,
45, 47, 49, 51, 56, 58, 59, 60 e 61).
Nas notas de introdução ao estudo da filosofia, era levado a cabo o
projeto de reconstrução da filosofia da práxis que tinha seu paralelo naquela
seção do Quaderno 11 intitulada Appunti per uma introduzione e un avvia-
mento allo studio della filosofia e della storia della cultura. O ângulo de crítica
a Croce nessas notas do Quaderno 10 era filosófico, mas o objeto da crítica
gramsciana não era a filosofia do espírito croceana per se, conforme alerta Dora
Kanoussi (2000, p. 67). Não se trata, assim, de um estudo sobre o conjunto
da produção neoidealista: “O que, sim, analisa com todo detalhe e refuta com
muita atenção e profundidade são as críticas croceanas à filosofia da práxis,
críticas que o induzem a revisar a própria filosofia da práxis” (idem, p. 67-
68). Por meio dessa crítica, procurava Gramsci traduzir o neoidealismo para
materialismo/idealismo 113

a linguagem da filosofia da práxis, ou seja, superar sua filosofia por meio do


desenvolvimento crítico do marxismo.40
Nos Quaderni, a superação da filosofia croceana passava a ser parte do
programa filosófico do marxismo. Gramsci, em uma nota B presente em La
filosofia di B. Croce I, no Quaderno 10, rememorava um artigo da juventude,
publicado em 1917, no qual teria afirmado que “a filosofia croceana podia
ser a premissa de uma retomada da filosofia da práxis em nossos dias”. A
questão, afirmava, não teria sido desenvolvida de modo adequado pois ainda
era “tendencialmente croceano”.41 Na prisão, ele considerava inadiável essa
retomada da filosofia da práxis. O trabalho de crítica da filosofia clássica alemã
realizado por Marx e Engels deveria ter prosseguimento na crítica à filosofia de
Benedetto Croce. Para Gramsci:

Este é o único modo historicamente fecundo de determinar uma retomada


adequada da filosofia da práxis, de elevar esta concepção que, pela necessida-
de da vida política imediata, tem se “vulgarizado”, à altura que deve atingir
para a solução das tarefas mais complexas que o desenvolvimento atual da
luta propõe, isto é a criação de uma nova cultura integral que tenha as ca-
racterísticas de massa da Reforma protestante e do Iluminismo francês e as
características de classicidade da cultura grega e do Renascimento italiano,
uma cultura que, retomando as palavras de Carducci, sintetize Maximilien
Robespierre e Emanuel Kant, a política e a filosofia numa unidade dialética
intrínseca a um grupo social não só francês ou alemão, mas europeu e mun-
dial. (Q 10/I, § 11, p. 1233)

No contexto italiano, a apropriação crítica da herança filosófica alemã


significava acertar as contas com Croce. O “anti-x” preconizado por Labriola

40
As notas sobre economia dizem respeito, em sua maioria, à rejeição, argumentada por Croce em
Materialismo storico ed economia marxistica, à lei do valor e à queda tendencial da taxa de lucro. O
tema foi discutido em Bianchi (2002).
41
Como esclarece Gerratana no aparelho crítico dos Quaderni e se pode constatar facilmente na
leitura do texto publicado em 11 de fevereiro de 1917, não há sombra de menção nele à filosofia
croceana como premissa de uma retomada do marxismo (CF, p. 21).
114 alvaro bianchi

(2000, p. 233) recebia, em uma de suas traduções possíveis – a luta contra a


apropriação idealista do marxismo – a forma de um “anti-Croce”:

deve-se fazer esse acerto de contas da maneira mais ampla e profunda possível.
Um trabalho de tal gênero, um anti-Croce que na atmosfera cultural moderna
pudesse ter o significado e importância que teve o Anti-Dühring para a geração
precedente à guerra mundial, mereceria que um inteiro grupo de homens lhe
dedicasse dez anos de atividade. (Q 10/I, § 11, p. 1234)

Enfrentar Croce era, desse modo, enfrentar ativamente a crítica idea-


lista ao marxismo, ou seja, enfrentar a crítica com um programa filosófico de
superação do próprio idealismo e de fortalecimento do materialismo histórico.
Gramsci rejeitava, desse modo, a posição derrotista assumida por Max Adler
e Otto Bauer perante o idealismo. que implicou em uma absorção acrítica do
kantismo. A atitude ativa perante Croce era uma resposta ativa às conseqüências
políticas de sua filosofia e a seu militantismo cultural.
Diferente era o objetivo das notas reunidas sob a rubrica “Punti per
um saggio su B. Croce” ou similares. Nelas era discutida a relação de Croce com
sua época a partir de uma perspectiva eminentemente política, denunciando o
caráter reacionário de seu empreendimento intelectual. Estabelecendo seu signi-
ficado político, o historicismo conservador do crítico napolitano era reduzido a
sua dimensão ideológica (cf. Kanoussi, 2000, p. 67).
Certamente, Croce não concordaria com essa politização de seu pen-
samento e, muito menos, com a afirmação de que sua filosofia seria fortemente
política. Sua radical distinção entre ética e política, presente já em sua análise da
obra de Maquiavel, desdobrava-se em uma clara cisão entre pensamento e ação,
filosofia e ideologia (Croce, 1994, p. 249-297).42 Tal cisão permitia ao crítico
napolitano afirmar o caráter puro da filosofia e do pensamento que se apresen-
tava como lugar do universal, por oposição a uma política que se afirmava como
o lugar dos interesses e das paixões particulares.

42
Sobre a análise croceana de Maquiavel e a leitura gramsciana desta, ver Fontana (1993) e Medici
(1990, p. 161-207).
materialismo/idealismo 115

Gramsci denunciou essa cisão entre pensamento e ação e afirmou di-


versas vezes que a atitude de Croce em suas obras não deveria ser considerada
“como um juízo filosófico, e sim como um ato político de significação prática
imediata” (Q 10/II, § 41, p. 1291). As conclusões que esse filósofo pretendia
olimpicamente atribuir a um “juízo histórico-filosófico” não eram senão “um
ato de vontade” com um “fim prático” (lc, p. 384). Era essa caracterização
política que fazia da reflexão histórico-filosófica do crítico napolitano, o que
lhe permitia escrever no Quaderno 12 que “Croce se sente fortemente ligado a
Aristóteles e a Platão, mas não esconde, entretanto, sua ligação com os senadores
Agnelli e Benni e precisamente nisso deve ser procurado o caráter mais relevante
da filosofia de Croce.” (Q 12, § 1, p. 1515.)
O crítico napolitano não gostou nada dessa afirmação e reclamou dela
em uma pequena resenha do livro Gli intellettuali e l’organizzazione della cul-
tura (Croce, 1949). Insinuou nessa ocasião que o texto de Gramsci poderia ter
sido adulterado pelos editores – “suspeitei de erro cometido na transcrição do
texto de Gramsci” –, disse saber que o senador Agnelli era dono da Fiat, mas
desconhecer Benni, e protestou perante a asseveração de que era na relação com
esses personagens que deveria ser encontrado o “caráter mais relevante” de seu
filosofar (idem, p. 95).
O texto de Gramsci não deveria ser tomado ao pé da letra, assim como
tantos outros que escreveu. Mas ele tinha um profundo significado político, pois
indicava o lugar que a filosofia de Croce ocupava na política da época como “um
instrumento extremamente eficaz de hegemonia, ainda que de vez em quando se
encontrasse em contraste com este ou aquele governo” (lc, p. 481). A filosofia
croceana era uma sofisticada filosofia da reação. Ela era a filosofia da atualização
do capitalismo italiano por meio de transformações moleculares. Esse caráter
fortemente político do pensamento do crítico napolitano evidenciava-se clara-
mente em sua já citada cruzada teórica contra o marxismo e em sua revisão da
história italiana e européia. Posicionar-se contra essa filosofia era combater a
hegemonia do pensamento croceano.
O sentido da crítica gramsciana a Croce permite compreender de modo
mais aprofundado o que se entende por “luta de hegemonias” na “frente filo-
sófica”. Não se trata, como destacou Badaloni, de um mero choque de idéias, e
116 alvaro bianchi

sim do confronto de comportamentos e concepções de mundo que são próprios


de dois modos de produção diversos (1978, p. 11). A “luta de hegemonias”
compreende o conflito de racionalidades que expressam formas civilizatórias
diferentes (Dias, 1996, p. 10).
Nesse confronto, acertar as contas com o projeto historiográfico cro-
ceano era fundamental. Para Gramsci, o empreendimento do editor de La
Critica assinalava claramente sua mudança de atitude para com o materialis-
mo histórico. Em uma carta a Tatiana datada de 9 de maio de 1932, Gramsci
resumia a historiografia croceana como uma tentativa de completar a revisão
do marxismo iniciada no final do século XX, por meio da elaboração de uma
“teoria da história como história ético-política em contraposição à história
econômico-jurídica, que representava a teoria derivada do materialismo histó-
rico depois do processo revisionista que ela havia sofrido por obra do próprio
Croce” (lc, p. 619).
A atitude de Gramsci com relação à noção de “história ético-política”,
como em muitos outros casos, expressava não uma simples negação, mas uma
complexa apropriação crítica do conceito croceano por meio de uma operação
de tradução, que retirava a noção de seu contexto teórico original e a inseria
de modo subordinado em um novo corpo teórico. Originalmente circunscrita
pela filosofia do espírito, a história da vida moral ou civil era, para o filósofo
napolitano, “a única história, a história por excelência” (Croce, 1994, p. 318).
Essa história era concebida como uma alternativa historiográfica tanto ao natu-
ralismo determinista, do qual o materialismo histórico seria uma variante, como
ao utilitarismo ético predominante no século XIX.
O alvo de Croce era, privilegiadamente, o materialismo histórico, in-
dicando claramente que seu empreendimento não era mais de tipo revisionista,
como aquele levado a cabo em Materialismo storico ed economia marxistica, e sim
um empreendimento que tinha por objetivo a liquidação teórica e política do
marxismo. Já era passado o tempo no qual afirmava a validade de revalorizar o
“substrato econômico” da história, segundo ele a principal contribuição do mar-
xismo como “cânone de interpretação histórica” (Croce, 1927, p. 79). Agora,
segundo o diretor da revista La Critica, era necessário constituir uma história
que cifrasse “na vida moral seu princípio e seu objeto” (Croce, 1994, p. 320). A
materialismo/idealismo 117

história ético-política era apresentada, assim, como reação ao economicismo e


ao mecanicismo fatalista que identificava com o marxismo.
A história moral advogada por Croce não teria, entretanto, o objetivo
de contrapor à história do passado aquilo que ele deveria ter sido. Para evitar
essa confusão entre a história moral e uma “história moralista”, Croce adotava a
expressão “história ético-política”. Também distinguia esta última da historie de
la civilisation francesa, bem como da Staatsgeschichte alemã. A primeira, nascida
no ambiente do Iluminismo, teria se reduzido a uma “história do intelectua-
lismo, da ciência positiva e da progressiva derrocada das crenças religiosas ou
mitológicas e suas superstições” (1994, p. 323-324). A historia alemã do Estado
(Staatsgeschichte), por sua vez, concebia como a única realidade ética e verdadei-
ra. Para o filósofo napolitano,

A história moral ou ético-política deve libertar-se desses defeitos da teoria e dessa


pressão do contingente, corrigindo-se e concebendo como objeto próprio não
apenas o Estado e o governo do Estado e a expansão do Estado, como também,
o que está fora do Estado, coopera com ele, procura modificá-lo, derrocá-lo e
substituí-lo: a formação das instituições morais em seu sentido mais abrangente,
incluindo as instituições religiosas e as seitas revolucionárias, os sentimentos,
costumes, fantasias e mitos de tendência e conteúdo prático. (idem, p. 325.)

Concebida desse modo, a história ético-política chegava àquilo que


era para Croce a “própria vida do Estado”. Era, pois, no âmbito dessa histó-
ria ético-política que as demais dimensões históricas (a economia, a cultura,
etc.) encontrariam sua resolução. Era contra essa tentativa de reduzir toda
a história à história ético-política que a crítica de Gramsci se voltava. Tal
procedimento teria como conseqüência nada além de uma “história ‘especu-
lativa’ ou ‘filosófica’” (lc, p. 619).
Esse caráter especulativo marcou fortemente a obra Storia d’Europa
nel secolo decimonono (1999), na qual toda a história era reduzida à historia da
“liberdade”. Nessa redução, afirmava Gramsci, Croce “confunde a ‘liberdade’
como princípio filosófico e conceito especulativo e liberdade como ideologia, ou
seja, como instrumento prático de governo, elemento de uma moral hegemô-
nica”. Mas, para reconstruir seu papel como “instrumento prático de governo”,
118 alvaro bianchi

seria necessário compreendê-la a partir do nexo prático sobre o qual ela se funda,
ou seja, reencontrar na ideologia da liberdade a própria “dialética da história”, os
momentos “da força e da luta” (LC, p. 619-620).
Ao mesmo tempo em que estava engajado em uma crítica aos pressupos-
tos políticos da crítica croceana, ou precisamente por isso, Gramsci se mostrava
aberto a uma apropriação crítica do próprio conceito de “história ético-política”
como um “‘cânone empírico’ de investigação histórica” (Q 10/I, § 12, p. 1325).
A afirmação de Gramsci tem um tom claramente provocativo, na medida em
que foi o próprio Croce quem afirmou que o materialismo histórico teria valor
como um “cânone empírico de investigação histórica”.

O pensamento de Croce deve, pelo menos, ser apreciado como valor instrumen-
tal, e, assim, pode-se dizer que ele atraiu energicamente a atenção para a impor-
tância dos fatos culturais e do pensamento no desenvolvimento da história, sobre
a função dos grandes intelectuais na vida orgânica da sociedade civil e do Estado,
sobre o momento da hegemonia e do consenso como forma necessária do bloco
histórico concreto. (Q 10/I, § 12, p. 1235. Cf. tb. LC, p. 616)

Mas não era como cânone de investigação histórica que Gramsci se


apropriava desse conceito, e sim como parte de sua teoria da hegemonia. Uma
noção que no interior da filosofia do espírito croceana se apresentava como cha-
ve historiográfica era traduzida por Gramsci em uma noção da “ciência e arte da
política”, como gostava de dizer. Partindo do pressuposto de que história, políti-
ca e filosofia se identificam, Gramsci interpretava a construção croceana de uma
alternativa historiográfica ao materialismo histórico como uma intervenção no
debate político da época. Tornava-se, assim, possível retraduzir aquela interven-
ção política que Croce havia colocado sob a forma de uma historiografia, nova-
mente em política. Comentando esse empreendimento político-historiográfico
levado a cabo pelo filósofo napolitano, Gramsci escrevia:

A aproximação dos dois termos, ética e política, para indicar a historiografia crocea-
na mais recente é a expressão das exigências nas quais se move o pensamento histó-
rico croceano: a ética se refere à atividade da sociedade civil, à hegemonia; a política
refere-se à iniciativa e à coerção estatal governativa. (Q 10/II, § 41, p. 1302)
materialismo/idealismo 119

Ora, esse juízo é de grande importância não apenas para uma teoria
da hegemonia, o que tem sido freqüentemente ressaltado, mas também para
uma teoria do Estado em seu sentido integral, como será visto mais adiante.
No âmbito de uma teoria gramsciana da revolução e do Estado, o conceito de
história ético-política ganhava um conteúdo materialista e claramente oposto à
perspectiva moderada que orientava seu sentido original.
A apropriação da teoria da história ético-política não era feita de modo
acrítico. Gramsci coloca em suspeição que a historiografia do filósofo meridio-
nal fosse verdadeiramente ético-política. Segundo o marxista sardo, Croce teria
fracassado tanto em sua tentativa de superar todo economicismo e mecanicis-
mo, como em seu intento de livrar o pensamento moderno de todo traço de
transcendência e de teologia. Por um lado, a redução croceana da filosofia da
práxis a um cânone empírico de interpretação histórica, chamando a atenção
dos historiadores para a importância dos fatos econômicos “não fez mais que
reduzi-la a uma forma de ‘economicismo’”, diminuindo a distância entre Croce
e Loria (Q 10/I, § 13, p. 1236). Por outro, ao reduzir toda a história à história
ético-política, Croce “criou uma nova forma de história retórica; sua forma atual
é, de fato, a história especulativa” (LC, p. 620).
Não era, portanto, de modo esquemático que Gramsci aceitava a teoria
da história ético-política, nem ela era inserida de modo mecânico no interior da
filosofia da práxis. A apropriação crítica ocorria como superação. Para isso, a teo-
ria da história ético-política era retirada do interior da historiografia especulativa
de Croce e traduzida na linguagem realista da filosofia da práxis.43 O marxista
sardo se apropriava, desse modo, não de toda a concepção croceana da história,
mas de alguns de seus elementos, inserindo-os de modo orgânico em uma teoria
diferente da original e, desse modo, atribuindo-lhe um significado diverso.
A importância que Gramsci imputava ao pensamento de Croce e à
necessidade de realizar esse procedimento de tradução se revela na comparação
que estabelecia entre os processos políticos sobre os quais o conceito de história
ético-política fazia recair a atenção e o processo histórico de transição ao socia-
lismo na União Soviética sob a direção de Lênin:

43
Sobre a tradução de categorias croceanas por Gramsci, ver Frosini (2003, p. 136-137).
120 alvaro bianchi

no mesmo período no qual Croce elaborava este seu suposto porrete, a filosofia
da práxis, em seu maior teórico moderno [i.e. Lênin] era, elaborada no mesmo
sentido e o momento da ‘hegemonia” ou da direção cultural era justamente,
revalorizado sistematicamente em oposição a algumas concepções mecanicistas e
fatalistas do economicismo. (LC, p. 616. Cf. tb. Q 10/I, § 12, p. 1235)

Essa passagem é chave para a reconstrução do conceito de hegemonia no


pensamento gramsciano mas, apesar de exaustivamente citada, não é analisada
com o cuidado necessário. A construção dessa afirmação por Gramsci era muito
cuidadosa e ciente de suas repercussões tanto para a teoria do Estado como para
a teoria da revolução. No que diz respeito a uma teoria do Estado, afirmava que
o conceito de hegemonia não se contrapunha à teoria do Estado-força, mas a
complementava. As funções de dominação próprias da sociedade política não
seriam canceladas pelas funções de direção política, que teriam lugar privilegiado
na sociedade civil. Daí a necessidade de uma teoria que desse conta do Estado
em seu sentido integral ou orgânico, ou seja, uma teoria que explicasse todas as
funções estatais e não apenas a dominação/coerção ou a direção/consenso.
Por meio da tradução da “história ético-política” croceana para a lin-
guagem da filosofia da práxis, Gramsci construiu uma teoria da hegemonia
que se constituía como momento de uma teoria da revolução. O historicismo
especulativo do crítico napolitano era superado por um “historicismo realis-
ta” (Q 10/I, p. 1208). no qual o movimento automático da tese cedia lugar à
luta aberta das forças sociais antagônicas. Em vez da tranqüila previsão, que
reafirmava constantemente a tese, a certeza de que só a luta pode ser prevista
cientificamente (Q 11, § 15, p. 1403). A teoria da hegemonia era, ela própria,
um momento da teoria da revolução, e não uma teoria do reformismo, como
muitas vezes foi lida.
Estrutura/Superestrutura

No início da década de 1950, um historiador cioso de seu ofício


protestou contra o que julgava ser uma subestimação da obra histórica de
Marx. Referia-se ele à profusão de estudos que se desenvolviam na época
sobre sua filosofia, política e economia, enquanto obras do calibre de A luta
de classes na França e O dezoito brumário de Luís Bonaparte passavam quase
desapercebidas (Krieger, 1953, p. 381). Em sua defesa de uma revalorização
dessas obras, o referido historiador não deixou de culpar Engels pelo lugar
subalterno que elas ocupavam. De fato, na “Introdução à edição alemã de
1895” de A luta de classes na França, Engels dava a entender que essas obras
históricas não passavam de aplicações práticas de teorias formuladas alhures
(cf. mecw, v. 27, p. 506).
Transcorridos mais de cinqüenta anos desse sensato protesto, muitas
coisas mudaram. Seja pelos historiadores, seja por aqueles interessados em teo-
rizar uma concepção marxista do Estado ou da política, aquelas obras antes su-
bestimadas foram revalorizadas (cf. p. ex. Codato e Perissinotto, 2001 e Codato,
2005). Mas a crítica formulada por Krieger não deixa de ter sua atualidade. Não
são raros os autores que ainda hoje promovem uma separação entre os textos
históricos de Marx e os chamados textos metodológicos, ou programáticos, con-
vertendo-o ora num filósofo, ora num historiador, ora num ativista político.
Atitude diferente, e até mesmo oposta, fica patente na obra de Gra-
msci. Ao longo dela é possível perceber uma tenaz tentativa de fusão daqueles
materiais da obra de Marx que resultaram da reflexão metodológica (como, por
exemplo, o “Prefácio de 1859” e Miséria da filosofia) e os que provêm da análise
histórica e política concreta (principalmente O dezoito brumário de Luís Bona-
parte). A operação realizada por Gramsci com o objetivo de afirmar uma leitura
não economicista dos textos metodológicos de Marx era levada a cabo com a
mediação de seus textos históricos.

121
Engels, injustamente acusado por Krieger, em mais de uma oportunida-
de observou a importância das obras históricas para a compreensão da teoria de
Marx e, particularmente, a importância d’O dezoito brumário de Luís Bonaparte.44
E Benedetto Croce, ecoando essas observações do amigo de Marx, utilizava-as
em sua polêmica contra “a pretendida redução da história ao fator econômico”
(Croce, 1927, p. 11-12). Essa observação foi apropriada por Gramsci e, de modo
irônico, dirigida contra o próprio Croce, afirmando a necessidade de avaliar o
pensamento deste “não pelo que pretende ser, e sim pelo que realmente é e se
manifesta nas obras históricas concretas” (Q 10/I, § 12, p. 1235).
Era, assim, repetida uma afirmação realizada anteriormente, num con-
texto muito mais esclarecedor para os problemas aqui tratados. Logo depois de
criticar a pretensão de reduduzir toda flutuação política e ideológica a uma mera
manifestação imediata da estrutura, Gramsci recomendava combatê-la com as
obras políticas e históricas concretas. E ressaltava: “para isso são importantes,
especialmente, o 18 Brumário e os escritos sobre a Questão oriental, mas também
outros (Revolução e contra-revolução na Alemanha,45 A guerra civil na França e
menores)” (Q 7, § 24, p. 871-872). Gramsci era categórico ao afirmar que uma
análise dessas obras permitiria definir melhor “a metodologia histórica marxista,
integrando, iluminando ou interpretando as afirmações teóricas dispersas em
todas as obras” (idem).
A fusão promovida por Gramsci entre metodologia e história con-
creta era de tal forma, que aquelas “cautelas” que Marx introduzia em sua
análise histórica e política penetravam na formulação metodológica através da
afirmação da vontade humana. Que essa vontade não estava ausente da análise

44
Ver a esse respeito as cartas de Engels datadas de 21 de setembro de 1890 e de 25 de janeiro de
1894 (Cf. mecw, v. 49, p. 36 e v. 50, p. 267).
45
Durante muito tempo acreditou-se que Revolução e contra-revolução na Alemanha fosse da auto-
ria de Marx. A obra, na verdade, foi escrita por Engels, a pedido de Marx, e publicada entre 1851 e
1852 na New York Daily Tribune, do qual Marx era correspondente. Somente em 1913, depois da
publicação da correspondência de Marx e Engels, foi descoberta a verdadeira autoria desse texto.
Portanto, quando Gramsci atribuiu a autoria a Marx no Quaderno 7 (1930-1932), esse equívoco
já se havia desfeito.
estrutura/superestrutura 123

marxiana não resta a menor dúvida. O que dizer das primeiras páginas de A
luta de classes na França? Somente depois de analisar as diferentes frações de
classe e, principalmente, da aristocracia financeira, somente depois de expli-
citar a crise fiscal do Estado, somente depois de expor os “sórdidos interesses”
que moviam as diferentes claques parlamentares, somente depois disso é que
aparecia a crise econômica (mecw, v. 10, p. 52). As palavras eram cuidado-
samente escolhidas por Marx: os conhecidos acontecimentos econômicos de
caráter mundial que tiveram lugar no ano de 1848 – a crise agrícola e a crise
geral do comércio e da indústria na Inglaterra – “aceleraram” o desconten-
tamento geral (idem). Não criaram nem produziram, mas precipitaram um
processo que possuía sua própria temporalidade e existência, criando uma
singularidade nova e potencialmente explosiva.
A riqueza das ferramentas interpretativas existentes nessas obras de
cunho histórico concreto é inestimável. Nada mais justo que promover a reva-
lorização dessas obras. Não se trata apenas de inseri-las nos estudos históricos
referentes aos temas por elas abordados. Isso, a rigor, não seria sequer o mais
importante. Importante é encontrar nelas seu verdadeiro valor metodológico,
verificando como aquelas formulações angulosas dos textos teóricos e programá-
ticos tomavam formas plásticas nas análises históricas e políticas.
Foi por meio da Revolução Francesa que a história entrou na reflexão
marxiana. É bastante conhecida a marcante influência que essa revolução exer-
ceu em sua obra, e quem ler seus escritos juvenis encontrará neles um grande
número de referências. Para o círculo de jovens intelectuais alemães que Marx
freqüentava no começo da década de 1840, a Revolução Francesa era um mode-
lo e se tivessem visto Napoleão na Renânia, não hesitariam em dizer com o velho
mestre que haviam presenciado o “espírito do mundo” passar a cavalo.
No verão de 1843, Marx se dedicou a estudar a história dessa revolu-
ção. Mignet, Thiers, Condorcet, madame Roland e madame de Staël estiveram
entre suas leituras de então, e é sabido que, em 1845, planejou escrever uma
obra sobre a sociedade burguesa e a revolução comunista cujo primeiro capítulo
estaria dedicado “à história do nascimento do Estado moderno, ou à Revolução
Francesa” (mecw, v. 4, p. 666). Tal obra nunca veio à luz. Também não escre-
veu, ou pelo menos dela não se tem notícia alguma, a história da Convenção,
124 alvaro bianchi

como certa vez pretendeu fazer (McLellan, 1990, p. 119). A inexistência de


uma obra definitiva a repeito não indica, entretanto, a ausência de uma reflexão
sobre o tema, reflexão essa que ocorreu, em grande medida, como parte de
uma elaboração sobre a transformação social. Por que a Alemanha não seguiu o
exemplo francês?, perguntava-se o Marx dos escritos juvenis. Como nascem e se
desenvolvem as revoluções?, interrogava-se em 1848 e nos anos posteriores.
Assim, em seus escritos metodológicos ou programáticos, ao pensar a
revolução Marx, tomava, fundamentalmente, a Revolução Francesa como refe-
rência. Essse modelo se afirmava no terreno da interpretação histórica, ou seja, no
estudo que fez das causas da revolução e também no esboço de uma mecânica da
revolução, ou seja, dos diversos momentos de articulação das forças sociais antago-
nistas no interior do próprio processo revolucionário, momentos esses que seriam
sintetizados na fórmula marxiana da revolução permanente (cf. Bianchi, 2007a).
O terreno que aqui será explorado é o primeiro: é o espaço teórico
definido pela tentativa de criar um modo de interpretação histórica. Os textos
de cunho metodológico e programático nos quais esse modo foi desenhado são
por demais conhecidos, a começar pelo Manifesto Comunista. Esse texto, escrito
em colaboração com Friedrich Engels entre o final de 1847 e os primeiros meses
de 1848, tinha um claro objetivo político. O Manifesto havia sido encomendado
pelo Congresso da Liga dos Comunistas e deveria conter “um programa deta-
lhado do partido, ao mesmo tempo teórico e prático”, segundo narravam Marx
e Engels no prefácio à edição alemã de 1872 (mecw, v. 23, p. 174). Os nexos
estabelecidos nesse programa entre a revolução que se avizinhava e a Revolução
Francesa de 1789 são evidentes e saltam aos olhos no esquema interpretativo
proposto. Diz o Manifesto:

os meios de produção e de troca que serviram de base para a formação da bur-


guesia foram criados no seio da sociedade feudal. Em um certo estágio de de-
senvolvimento desses meios de produção e de troca, as condições nas quais a
sociedade feudal produzia e trocava, a organização feudal da agricultura e da
manufatura, em uma palavra, o regime feudal de propriedade, deixaram de cor-
responder às forças produtivas em pleno desenvolvimento. Entravavam a produ-
ção em lugar de fazê-la avançar. Transformaram-se em outras tantas cadeias que
estrutura/superestrutura 125

era preciso despedaçar. Foram despedaçadas. Em seu lugar, estabeleceu-se a livre


concorrência, com uma organização social e política adequada, com a suprema-
cia econômica e política da classe burguesa. (mecw, v. 6, p. 489)

A formulação sofreu desenvolvimentos posteriores, denotando o


avanço da pesquisa de Marx. No Manifesto, a contradição central ainda era lo-
calizada na relação existente entre o desenvolvimento dos meios de produção e
as relações de propriedade, o que não deixa de revelar uma concepção jurídica
das relações sociais. Mas embora não se trate de um enunciado completamen-
te maduro, chama a atenção sua semelhança com a muito famosa passagem
escrita por Marx onze anos mais tarde no “Prefácio de 1859” à Contribuição
para a crítica da economia política. A concepção jurídica das relações sociais
era, nesse novo texto, deixada para trás e a contradição apresentada era aquela
que se verificava entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações
de produção. Segundo Marx:

Em certo grau de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da socie-


dade entram em colisão com as relações de produção existentes, ou, o que é a sua
expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham
movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas
relações transformam-se no seu entrave. Começa então uma era de revolução
social. (mecw, v. 29, p. 263).

A crueza dessas fórmulas facilitou a apropriação dogmática por parte do


nascente movimento socialista e sua consolidação em uma versão economicista e
evolucionista, que tinha entre seus autores expoentes da Segunda Internacional.
Esse tipo de apropriação alcançou o status de paradigma na versão desenvolvida
por Karl Kautsky. Em sua conhecida obra Der Weg zur Macht (O caminho do
poder), essa concepção aparece de modo cristalino. Nela, o líder ideológico da
social-democracia alemã descrevia como o desenvolvimento do capitalismo ha-
via convertido a classe trabalhadora no fundamento da vida social e a burguesia
em algo inútil para o desenvolvimento da produção. O proletariado havia se
transformado, segundo Kautsky, na classe mais numerosa e na força sobre o qual
se fundamentava o poder estatal. Faltava-lhe apenas a consciência.
126 alvaro bianchi

Essa consciência era fornecida pelos êxitos da social-democracia na


luta contra o adversário e pela vitoriosa participação nos embates eleitorais, que
elevavam o poder e o sentimento de força do proletariado. É claro que na tática
da social-democracia alemã ganhava cada vez mais peso a atividade parlamentar.
Para Kautsky, a reação burguesa estava assentada no “medo de que as contínuas
vitórias eleitorais do partido socialista dêem ao proletariado um grande senti-
mento de força e intimidem de tal modo seus adversários que toda resistência
se torne impossível, e sendo impotentes os poderes públicos se produziria um
completo deslocamento de forças no Estado” (Kautsky, 1978, p. 207). A possi-
bilidade de derrotas não era descartada por Kautsky, mas elas não impediam a
vitória final: “o irresistível e rápido progresso do proletariado em seu conjunto,
apesar de algumas derrotas muito duras, se torna tão evidente que nada poderá
arrebatar nossa fé em sua vitória definitiva” (idem).
Estavam aí presentes as duas teses que fizeram a ligação entre as vá-
rias formas que a ideologia do progresso assumiu: a tese da irreversibilidade e
linearidade do tempo e a tese do aperfeiçoamento técnico ou moral (Balibar,
1995, p. 108). Nas afirmações de Kautsky expressava-se a marcha inelutável
do progresso no interior de um tempo homogêneo. A história seria um pro-
cesso automático, baseado no seu processo de autotransformação segundo um
movimento que uns chamam de flecha e outros de espiral, que poderia ser rá-
pido ou lento, mas que sem dúvida chegaria a seu destino. O aperfeiçoamento
gradual da técnica, da moral e – por que não? – da consciência era outra das
teses presentes em Kautsky. Pé ante pé, a humanidade caminharia para frente,
e o mesmo se poderia dizer do número de votos da social-democracia. Até
mesmo os eventuais reveses seriam identificados como percalços necessários
para a vitória final. Vitória que, evidentemente, nunca veio.
Não há como confiscar às formulações de Kautsky seus antecedentes
no Manifesto e no “Prefácio de 1859” anteriormente citados. Para os marxistas,
seria muito fácil proceder dessa forma e qualificar a leitura kautskiana como
uma deturpação. Fácil também seria a rejeição dessas passagens como algo es-
tranho ao corpo teórico da obra de Marx e resumir sua teoria àqueles textos
depurados de toda contaminação. Mais difícil é proceder a uma reconstrução da
teoria de Marx, por intermédio dessas passagens, elucidando os nexos existentes
estrutura/superestrutura 127

entre elas e o conjunto de seu pensamento, de modo a rejeitar o economicismo


e o determinismo que apareciam em formulações como as de Karl Kautsky.
Esse último foi o caminho seguido pelo marxista italiano Antonio Gra-
msci. Em um curto e instigante artigo de polêmica com François Furet, André
Tosel assinalou que Gramsci interpretou as fórmulas presentes no “Prefácio de
1859”, demonstrando que elas contêm “princípios, os do materialismo históri-
co, que asseguram um contato com a especificidade do processo revolucionário”
(Tosel, 1994, p. 42). Para uma compreensão mais exata da questão, torna-se
necessário se afastar da ordem material dos Quaderni estabelecida pela edição
Gerrratana e analisar a elaboração da questão a partir de um critério cronológi-
co, procurando revelar a maneira pela qual esse contato foi estabelecido.46
O texto de Marx adentrou nos Quaderni primeiramente em um con-
junto de notas A (Q 7, § 20) e C (Q 11, § 22) inscritos no âmbito da crítica
ao Ensaio popular de Bukharin que o marxista sardo levou a cabo. Segundo
Francioni (1984, p. 142 e 144), a primeira versão (texto A) teria sido redigida
entre novembro-dezembro de 1930 e fevereiro de 1931, e sua segunda versão
(texto C) entre julho e agosto de 1932. Escrevia Gramsci:

O “Ensaio popular”. Não é tratado o ponto fundamental: como das estruturas nas-
ce o movimento histórico? E entretanto esse é o ponto crucial de toda a questão do
materialismo histórico, é o problema da unidade entre a sociedade e a “natureza”.
As duas proposições: – 1) a “sociedade” não se coloca problemas para cuja solução
não tenham se dado as condições (premissas) necessárias e suficientes; 2) nenhu-
ma forma de sociedade desaparece antes de ter esgotado todas suas possibilidades
de desenvolvimento – deveriam ter sido analisadas em todas suas possibilidades e
conseqüências. Apenas nesse terreno é possível eliminar todo mecanicismo e todo
traço de “milagre” supersticioso. Também nesse terreno deve ser colocado o pro-
blema da formação dos grupos políticos ativos e, em última análise, o problema da
função das grandes personalidades da história. (Q 7, § 20, p. 869)

46
É preciso deixar claro, entretanto, que essa ordem cronológica é estabelecida de modo aproxi-
mado e não exato. Trata-se aqui de construir uma interpretação da questão e não de encontrar a
verdade do texto.
128 alvaro bianchi

Questões gerais. I. Não é tratado este ponto fundamental: como nasce o movimen-
to histórico sobre a base da estrutura. Entretanto, o problema é ao menos sugerido
nos Problemi fondamentali de Plekhanov e poderia ser desenvolvido. Além disso,
este é o ponto crucial de todas as questões sugeridas em torno à filosofia da práxis e
sem tê-lo resolvido não se pode resolver o outro, o das relações entre a sociedade e a
“natureza”, a qual no Ensaio é dedicado um capítulo especial. As duas proposições
do prefácio à Crítica da economia política: 1) A humanidade se coloca sempre
somente aquelas tarefas que pode resolver; (...) a tarefa entretanto surge somente
onde as condições materiais para sua solução existem ou, ao menos estão em pro-
cesso de seu devir; 2) Uma formação social não perece antes de ter desenvolvido
todas as forças produtivas para as quais ela é ainda suficiente e de que novas e mais
elevadas relações de produção tenham ocupado seu lugar: antes de que as condi-
ções materiais de existência destas últimas tenham sido incubadas no próprio seio
da velha sociedade – deveriam ter sido analisadas em todo seu alcance e conseqü-
ência. Apenas neste terreno é possível eliminar todo mecanicismo e todo traço de
“milagre” supersticioso; apenas nele deve ser colocado o problema da formação dos
grupos políticos ativos e, em última análise, também o problema da função das
grandes personalidades da história. (Q 11, § 22, p. 1422)

Notável nesses textos é a afirmação que seu autor faz a respeito da necessá-
ria eliminação de todo mecanicismo e a importância que atribui ao “Prefácio” para a
supressão de todo “traço de ‘milagre’ supersticioso”, de fé na transformação automá-
tica da sociedade. A ordem do enunciado gramsciano tem grande importância para
tal e é preciso destacar que está em posições inversa à utilizada por Marx.47 Segundo

47
Deixa-se para depois a análise das diferenças terminológicas. Vale a pena, entretanto, comparar
agora o texto de Gramsci com a versão original do “Prefácio”: “Jamais uma sociedade desaparece
antes de desenvolver todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de pro-
dução superiores lhe substituem antes que as condições materiais de sua existência se produzam
no próprio seio da velha sociedade. É por isso que a humanidade nunca se coloca problemas que
não seja capaz de resolver: considerando melhor as coisas, se descobrirá sempre que o problema só
surgiu quando as condições materiais para resolvê-lo já existiam ou estavam em vias de aparecer”
(mecw, v. 29, p. 263). A tradução completa do “Prefácio de 1859” encontra-se nos extratos dos
cadernos de traduções (Q, p. 2358-2360).
estrutura/superestrutura 129

André Tosel, esses dois princípios, tal qual reformulados por Gramsci, seriam “o
princípio objetivo da contradição entre relações de produção e forças produtivas,
o princípio subjetivo da maturação das condições ideológico-políticas de solução
da contradição” (Tosel, 1994, p. 42). A primeira dessas regras produz otimismo e
confiança e indica a possibilidade de superação da ordem vigente. A segunda inspira
temor, prudência e Alerta que a superação antes enunciada não ocorre de forma
mecânica e sem resistência, “induz o político a não levar em conta apenas a energia
que a sua ‘parte’ pode desenvolver, mas também os impulsos hegemônicos que o
adversário também pode emitir” (Badaloni, 1978, p. 28).
Na passagem da primeira versão para a segunda, o enquadramento as-
sumia uma dimensão mais ampla mediante a referência a Plekhanov. A própria
crítica a Bukharin adquiria uma nova envergadura a partir do momento em
que o nome do pai do marxismo russo era anunciado. Ao estabelecer um nexo
Plekhanov-Bukharin, o alvo da crítica passava a ser uma tradição marxista do-
minante na Rússia que encontrava seu lugar em parcelas expressivas do grupo
dirigente soviético.
Tais temas foram desenvolvidos por Gramsci em uma nota no mes-
mo Quaderno 11 (§ 29) dedicada à concepção de “instrumento técnico”
presente no manual de Bukharin, composta a partir de textos presentes ante-
riormente no Quaderno 4 (§ § 12 e 19). O marxista soviético não era sequer
mencionado nas notas do Quaderno 4, e seu comparecimento na segunda
redação indica que Gramsci estava disposto a tratar a importante questão
das relações entre estrutura e superestrutura no marco de sua polêmica con-
tra o revisionismo bukhariniano e seus efeitos negativos no desenvolvimento
do marxismo soviético.
Ao equiparar nesse parágrafo o autor do Ensaio popular ao famigerado
Achille Loria, o marxista sardo mostrava o quão negativo era seu juízo: “a esse
respeito, o modo de pensar exposto no Ensaio não é diferente daquele de Loria,
se não for ainda mais criticável e superficial” (Q 11, § 29, p. 1441). A compa-
ração entre os dois autores balizava o alcance da crítica ao positivismo que tinha
lugar nos Quaderni, bem como sua dimensão política. Tanto Bukharin como
Loria – um no âmbito do movimento comunista internacional outro, no do
socialismo italiano travessão exerciam uma influência negativa e constituíam
130 alvaro bianchi

um obstáculo a uma reforma intelectual e moral que precisaria ser superado pela
crítica (cf. Buttigieg, 1990, p. 70-71 e 75).
A crítica a Loria e ao lorianismo, presente desde o Primo Quaderno,
encontrava-se fortemente inspirada no devastador ataque que Benedetto Croce
já havia movido contra ele. Inscrito em Materialismo storico ed economia mar-
xistica, esse ataque revelou para o público italiano que a teoria de Loria não
era senão uma sucessão de plágios e deturpações da obra de Marx. Plágio e
deturpação era o que o expoente do “economicismo histórico” havia feito com o
“Prefácio de 1859” de Marx. Em La terra ed il sistema sociale, por exemplo, Loria
transfigurava completamente a passagem anteriormente citada do “Prefácio”,
na qual Marx comentava a contradição existente entre o desenvolvimento das
forças produtivas e as relações de produção existentes. Segundo Loria,

A um dado estágio do desenvolvimento do instrumento produtivo corresponde, e


sobre ele se erige, um dado sistema de produção e, portanto, de relações econô-
micas, as quais constituem, posteriormente, todo o modo de ser da sociedade.
Mas a evolução incessante dos métodos produtivos gera, cedo ou tarde, uma
metamorfose radical do instrumento técnico, que torna intolerável aquele sistema
de produção e economia, que estava fundado num estágio anterior da técnica.
Então, a forma econômica envelhecida é destruída mediante uma revolução so-
cial e substituída por uma forma econômica superior, correspondente à nova fase
do instrumento produtivo. (Apud Croce, 1927, p. 40-41. Grifos meus)

Nessa transfiguração, as forças produtivas eram reduzidas ao instru-


mento técnico para, a seguir, subordinar o movimento histórico ao processo
de obsolescência desse instrumento. O brutal automatismo que essa concepção
encerrava e a supressão que ela acarretava da vontade humana na história moti-
varam a dura réplica croceana, que denunciou o caráter burlesco e macarrônico
da teoria de Loria. Segundo Croce, ainda que Marx tivesse em O Capital indi-
cado a importância da técnica e até mesmo invocado uma “história da técnica”,
nunca tinha sequer sonhado em tornar o “‘instrumento técnico’ a causa última
e suprema do desenvolvimento econômico” (Croce, 1927, p. 40).
Gramsci apropriou-se dessa réplica de modo quase literal em algumas
passagens, estendendo-a à concepção de “instrumento técnico” que se fazia pre-
estrutura/superestrutura 131

sente no manual de Bukharin. Assim, depois de citar no Quaderno 11 o “Prefácio”


de Marx e o texto de Loria tal qual haviam sido transcritos por Croce, reproduziu,
a seguir, quase letra a letra, a crítica que o filósofo napolitano havia feito:

O trecho do [Prefácio a] Zur Kritik contêm as expressões “grau de desenvolvi-


mento das forças de produção materiais”, “modo de produção da vida material”,
“condições econômicas de produção” e similares, as quais afirmam certamente
que o desenvolvimento econômico é determinado pelas condições materiais,
mas não reduzem estas apenas à “metamorfose do instrumento técnico”. (Q 11,
§ 29, p. 1440. Cf. Croce, 1927, p. 41)

E a seguir, após rejeitar de modo cabal o economicismo loriano, o


marxista sardo retornava à crítica de Bukharin, afirmando que este não teria
sequer citado tal “Prefácio” em seu Ensaio popular, o que seria um absurdo, uma
vez que esse texto era “a fonte autêntica mais importante para uma reconstru-
ção da filosofia da práxis” (Q 11, § 29, p. 1441).48 A concepção mecanicista
desenvolvida pelo autor do Ensaio teria dificultado a compreensão adequada
da estrutura e das superestruturas. Definindo o “instrumento técnico” como
qualquer ferramenta ou utensílio, até mesmo os instrumentos musicais eram
considerados como tal. Em seu manual, Bukharin chegava às raias do insólito
ao afirmar que “a técnica da música depende, em primeiro lugar, da técnica da
produção material”, o que o levava considerar que

a distribuição dos membros de uma orquestra está determinada, da mesma for-


ma que em uma fábrica, pelos instrumentos ou grupos de instrumentos. Em
outras palavras, sua disposição e organização está condicionada pela técnica mu-
sical, e através desta última se encontra ligada à própria base do desenvolvimento
social, à produção material, (Bukharin, 1974, p. 275)

Esse “modo barroco de pensar” confundia mais do que esclarecia a


distinção entre estrutura e superestruturas e poderia dar origem a uma série de

48
Desta vez a afirmação de Gramsci é equivocada, na medida em que o texto marxiano é citado no
Ensaio (cf. Bukharin, 1974, p. 289-290).
132 alvaro bianchi

questões também “barrocas”. As bibliotecas e os laboratórios dos cientistas se-


riam parte da estrutura ou da superestrutura?, interrogava o sardo. Existem ins-
trumentos que fazem parte ao mesmo tempo da estrutura e da superestrutura?
Como explicar o caso da matemática, que durante séculos não teve instrumen-
tos próprios para seu desenvolvimento? Se fosse possível dizer, como Bukharin,
que uma arte ou uma ciência se desenvolveriam graças ao desenvolvimento dos
“instrumentos técnicos”, por que não se poderia afirmar que o desenvolvimento
da arte e da ciência havia promovido o aprimoramento dos instrumentos?
As questões em si são inadequadas. Mas elas permitem compreender
“como o elemento causal, retirado das ciências naturais para explicar a historia
humana, é um puro arbítrio” (Q 11, § 30, p. 1444). O ponto chave que está
sendo discutido nessas notas do Quaderno 11 diz respeito ao conceito de es-
trutura. Gramsci enfatiza que a filosofia da práxis não estuda uma máquina (o
“instrumento técnico”) para conhecer a estrutura atômica do material do qual é
composta ou as propriedades físico-químicas ou mecânicas de seus componen-
tes. A filosofia da práxis estuda uma máquina apenas “enquanto é momento das
forças materiais de produção, enquanto é objeto de propriedade de determina-
das forças sociais, enquanto expressa uma relação social e esta corresponde a um
determinado período histórico” (Q 11, § 30, p. 1443.)
A técnica, como parte das forças materiais de produção, não está fora
da história. Essa técnica, assim como o “conjunto das forças materiais de produ-
ção, é simultaneamente uma cristalização de toda a história passada e a base da
história presente e futura, é um documento e simultaneamente uma força ativa
de propulsão” (idem). Desse modo, o desenvolvimento da técnica não era causa
do movimento histórico, como afirmado por Loria e Bukharin. O desenvolvi-
mento das forças materiais de produção, do qual a técnica é apenas uma parte,
é, dialeticamente, o efeito desse movimento e sua causa.
É preciso tomar esta última afirmação de modo cauteloso para evitar
novamente o mecanicismo. O tempo da estrutura é lento. No desenvolvimento
histórico, o conjunto das forças materiais de produção é, segundo Gramsci,

o elemento menos variável no desenvolvimento histórico, aquele que, em


cada ocasião concreta, pode ser determinado e medido com exatidão ma-
estrutura/superestrutura 133

temática, que pode dar lugar, portanto, a observações e critérios de caráter


experimental e, conseqüentemente, à reconstrução de um robusto esqueleto
do devir histórico. (Q 11, § 30, p. 1443)

Essa afirmação mais uma vez remetia ao “Prefácio de 1859”, uma vez
que nele Marx alertava que no estudo das transformações sociais era necessário
distinguir as mudanças nas formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou
filosóficas, daquelas mudanças nas condições econômicas de produção, “as quais
podem ser determinadas com a precisão das ciências naturais” (mecw, v. 29, p.
263). Essa observação era mobilizada por Gramsci contra a acusação de Croce
de que o materialismo histórico teria destacado a estrutura das superestruturas,
restabelecendo um dualismo de tipo teológico no qual a estrutura ocuparia o
lugar de um “deus-oculto”. Mas ao afirmar que a estrutura poderia ser estudada
“com os métodos das ciências naturais”, já ficava claro que ela era concebida de
modo “ultra-realista” e não poderia, portanto, ocupar o lugar de uma divindade
criadora do real (Q 10/II, § 41, p. 1300).
Em vez de conceber a estrutura como algo imóvel e absoluto, a filosofia
da práxis a concebia como “a própria realidade em movimento”. A acusação de
Croce era, portanto, segundo o marxista sardo, “vazia e superficial” (idem). A
filosofia da práxis, em vez de destacar a estrutura das superestruturas, reconhecia
o desenvolvimento histórico das mesmas como intimamente conexo e necessa-
riamente recíproco.
A questão das superestruturas também recebia em Gramsci um extenso
tratamento. A atenção dedicada ao tema não permite, entretanto, reduzir seu
pensamento a uma “teoria das superestruturas”, como procurou fazer Norberto
Bobbio, em sua intervenção no congresso de estudos gramscianos ocorrido em
Cagliari, no ano de 1967 (cf. Bobbio, 1975). Também na análise das superes-
truturas Gramsci destacava o nexo que elas mantinham com as estruturas, com
base no “Prefácio de 1859”.
Essa análise torna-se mais clara quando localizada na geografia dos Qua-
derni. A referência a esse “Prefácio” presente no Quaderno 7 (§ 20) e acima citada
era precedida e sucedida por duas importantes anotações referentes à questão da
superestrutura e da ideologia (Q 7, §§ 19 e 21). As questões estavam claramente ar-
ticuladas com a colocação do problema pelo texto de Marx e por sua reinterpretação
134 alvaro bianchi

por Gramsci. No § 19, Gramsci protestava contra o uso vulgar e pejorativo da ex-
pressão ideologia quando ela designava “as elucubrações arbitrárias de determinados
indivíduos” (Q 7, § 19, p. 868). Tal uso implicava em afirmar que “toda ideologia é
‘pura’ aparência, inútil, estúpida, etc” (idem).
Esse reducionismo impedia, segundo Gramsci, uma justa análise teóri-
ca do conceito de ideologia. Era necessário distinguir, entretanto, as “ideologias
historicamente orgânicas, isto é, necessárias a uma determinada estrutura”, e
aquelas que seriam arbitrárias e voluntaristas. Enquanto as últimas não alimen-
tariam senão movimentos individualistas e pequenas polêmicas, as ideologias
historicamente necessárias “‘organizam’ as massas humanas, formam o terreno
no qual os homens se movimentam, adquirem consciência da própria posição,
lutam, etc (idem). A ideologia é, desse modo, o aspecto de massa de toda con-
cepção filosófica.
Com seu protesto contra essa confusão terminológica, o marxista sar-
do procurava reservar a expressão ideologia em seu sentido forte para designar
“a superestrutura necessária de uma determinada estrutura” (idem). Com esse
propósito, Gramsci recordava, no § 21 do mesmo Quaderno 7, a afirmação fei-
ta por Marx em O capital a respeito da “solidez das crenças populares”,49 bem
como aquela passagem da Crítica da filosofia do direito de Hegel: “Introdução”,
na qual era feita referência à força material das ideologias.50
Por meio de tais passagens seria possível pensar uma teoria materia-
lista das ideologias na qual as forças materiais são o conteúdo e as ideologias
a forma, sendo essa distinção entre forma e conteúdo uma distinção meto-
dológica e não orgânica, “porque as forças materiais não seriam concebíveis
historicamente sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais, sem as

49
“O segredo da expressão de valor, ou seja, todos os tipos de trabalho são iguais e equivalentes
na medida em que são e por serem trabalho humano em geral, só poderia ser descoberto a partir
do momento em que a idéia da igualdade humana possuísse já a firmeza de um preconceito popular”
(mecw, v. 35, p. 70. Grifos meus.)
50
“A arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica das armas, a força material deve ser
derrubada pela força material; mas a teoria também se torna uma força material tão logo se apodera
das massas.” (mecw, v. 3, p. 182. Grifos meus)
estrutura/superestrutura 135

forças materiais” (Q 7, § 21, p. 869). Essa teoria foi desenvolvida por Gramsci
ainda nos marcos do “Prefácio de 1859”.
Repetidamente o marxista sardo parafraseou uma afirmação feita por
Marx nesse mesmo texto e escreveu que os “homens tomam consciência de sua
posição social e, portanto, de suas tarefas, sobre o terreno da ideologia” (Q 10/II,
§ 41, p. 1319).51 A partir dessa afirmação é possível compreender a superestru-
tura como uma realidade objetiva e operante que mantém um nexo indissolúvel
com a estrutura. Dora Kanoussi tem insistido que tal afirmação constitui um
terceiro e imprescindível cânone de interpretação histórica (Kanoussi e Mena,
1985, p. 39 e Kanoussi, 2000, p. 58).
A incorporação desse terceiro “cânone” permite sublinhar que as supe-
restruturas – as ideologias, inclusive – não são para a filosofia da práxis formas
arbitrárias, “são fatos históricos reais, os quais devem ser combatidos e revelados
em sua natureza de instrumentos de domínio” (Q 10/II, § 41, p. 1319). As
razões desse necessário combate são de natureza política. É por meio dele que
se torna possível “tornar os governados intelectualmente independentes dos
governantes, (...) destruir uma hegemonia e criar uma outra, como momento
necessário da subversão da práxis” (idem).
Contestando a acusação de Croce, que afirmava serem as superestru-
turas meras aparências para o marxismo, Gramsci argumentava que como fatos
históricos as superestruturas eram isso mesmo. Mas a concepção das superes-
truturas como aparência não significaria para o marxismo outra coisa que a
afirmação da historicidade e caducidade de toda filosofia, ao lado da afirmação
da validade histórica de todo sistema e de sua necessidade (cf. Q 13, § 10, p.
1570). O postulado de que é no terreno ideológico que os homens adquirem
consciência de suas relações sociais não faria senão corroborar a necessidade e a
validade dessa “aparência” (idem).

51
Segundo Marx, “mudanças nas fundações econômicas promovem cedo ou tarde a transformação
do imenso conjunto da superestrutura. No estudo de tais transformações é sempre importante dis-
tinguir entre as transformações materiais das condições econômicas de produção, as quais podem
ser determinadas com a precisão das ciências naturais, e as transformações jurídicas, políticas, reli-
giosas, artísticas ou filosóficas – em resumo, as formas ideológicas nas quais os homens se tornam
conscientes desse conflito e lutam para resolvê-lo” (mecw, v. 29, p. 263).
136 alvaro bianchi

A diferença fundamental entre a filosofia da práxis e as outras filosofias


é que estas últimas não seriam senão criações inorgânicas, contraditórias, pois
tentam conciliar interesses opostos e excludentes e, por essa razão, extinguem-se
assim que a necessidade de proceder a essa conciliação cessa. A filosofia da práxis,
pelo contrário, coloca claramente as contradições da história e da sociedade. É
ela própria “teoria de tais contradições” e, por essa razão, não pretende resolvê-las
intelectualmente, mas expressá-las. Ao contrário das filosofias especulativas – o
neoidealismo croceano entre elas –, a filosofia da práxis é também uma “crítica das
ideologias”. Como “teoria das contradições” a filosofia da práxis é, pois, um instru-
mento da hegemonia das classes subalternas (Q 10/II, § 41, p. 1319-1320).
Esse modo dialético de encarar a questão das relações entre estrutura e
superestrutura era apresentado por Gramsci em um texto B, intitulado “Il ter-
mine di ‘catarsi’”, redigido provavelmente no final de maio de 1932, poucos dias
antes, portanto, da redação do texto referente aos dois princípios do “Prefácio
de 1859” presente no Quaderno 11. Seu autor afirmava nessa nota que o termo
catarse poderia ser usado para indicar a passagem do “objetivo ao subjetivo e
da necessidade à liberdade”, do momento meramente econômico ao momento
ético-político (cf. Q 10/II, § 6, p. 1244).
Nesse momento catártico, a estrutura deixaria de ser uma força exterior
capaz de esmagar os indivíduos e condená-los a uma situação de passividade,
e passaria a ser condição da liberdade desses homens, um meio para a criação
de novas formas ético-políticas por meio da elaboração superior da estrutura
em superestrutura. A determinação desse momento catártico era, assim, ponto
crucial da filosofia da práxis, na medida em que esse momento coincidiria com o
próprio movimento histórico. Gramsci concluía essa nota recorrendo mais uma
vez ao “Prefácio de 1859”:

Recordar os dois pontos entre os quais oscila esse processo: – que nenhuma
sociedade se coloca desafios para cuja solução já não existam ou estejam em vias
de aparecer as condições necessárias e suficientes; – e que nenhuma sociedade
perece antes de ter expressado todo seu conteúdo potencial. (idem)

Gramsci procurou desenvolver os conceitos de estrutura e superestru-


tura e estabelecer a relação precisa entre ambos aproximando-os do conceito
estrutura/superestrutura 137

de bloco histórico (Q 10/II, § 41, p. 1321), “construído por Sorel” (idem, p.


1300). Tal conceito era reinterpretado à luz do “Prefácio de 1859” e da afirma-
ção de que os homens adquirem consciência da própria posição social e de seus
objetivos no terreno das superestruturas. Para Gramsci, “isso significa que entre
estrutura e superestrutura existe um nexo necessário e vital.” (Idem.)
O conceito de bloco histórico tinha, entretanto, em Gramsci, sen-
tido diverso daquele que assumia na obra de Sorel. Neste último, o conceito
descrevia um sistema de imagens, um mito capaz de manter acessa a chama
revolucionária, que é preciso tomar “em bloco como forças históricas” (Sorel,
1930, p. 32). Mas em Gramsci o conceito de “bloco histórico” adquiria “vigo-
rosa relação dialético-material com a realidade, assumindo-se como a unidade
dialética entre forças produtivas, relações sociais de produção e superestrutura
jurídico-política num dado momento histórico” (Galastri, 2007, p. 141). Era
nesse sentido que Gramsci definia: “Conceito de ‘bloco histórico’, isto é, uni-
dade entre a natureza e o espírito (estrutura e superestrutura), unidade dos
contrários e dos distintos” (Q 13, § 10, p. 1569).
Sobre esse conceito de “bloco histórico”, é importante registrar que
freqüentemente foi utilizado de modo equivocado, como sinônimo de aliança
de classes. As origens do equívoco podem ser encontradas no uso que o Parti-
to Comunista Italiano (PCI) passou a fazer da expressão no pós-guerra.52 No
congresso de estudos gramscianos realizado em janeiro de 1958, por exemplo,
Palmiro Togliatti discorreu sobre o “conceito de aliança elaborado por Gramsci”,
caracterizado pelo “nexo fundamental, orgânico, o qual se torna a base de um
novo bloco histórico” (2001, p. 251-252). Ainda assim, embora os conceitos
fossem aproximados, não era estabelecida, pelo menos nessa intervenção, uma
clara identidade entre bloco histórico e aliança social.
Essa identidade foi posta, entretanto, de modo cristalino por Roger
Garaudy em uma série de textos de intervenção no debate político do final dos
anos 1960 e início dos 1970. Afirmava o filósofo francês que o conceito de bloco
histórico “na concepção de Gramsci” expressava “ao mesmo tempo a unidade

52
Sobre o uso do conceito de bloco histórico no Partido Comunista Italiano, ver o depoimento de
um de seus dirigentes, Giorgio Napolitano (1970).
138 alvaro bianchi

complexa da base econômica de sua sociedade e de suas superestruturas políticas


e, por outro lado a nova organização das forças de classe que decorrem.” (1971,
p. 170). Assim, segundo Garaudy, o conceito de bloco histórico designaria uma
aliança estratégica, “objetivamente fundada sobre uma nova relação entre a base
e a superestrutura” (idem).
Em um livro bastante conhecido, embora hoje já datado, Hugues Portelli
afirmava, de modo apropriado, que a determinação de uma aliança de classes pelas
transformações na estrutura, como fazia Garaudy, consistia em um procedimen-
to tipicamente economicista (1977, p. 95-96). Contrariava-se, claramente, não
apenas o espírito que animava os Quaderni, como sua própria letra. Mas embora
não partilhasse de alguns dos pressupostos de Garaudy, Portelli dividia com este a
afirmação do bloco histórico como uma aliança de classes.
Não era, entretanto, com o sentido de uma aliança de classes e, muito
menos como slogan da conciliação, que Gramsci utilizava esse conceito. Em
sua acepção original, o conceito de bloco histórico era concebido como uma
ferramenta crítica com vistas à interpretação das relações históricas, portanto,
concretas e moventes, existentes entre estrutura e superestrutura, condições ob-
jetivas e condições subjetivas, forças materiais de produção e ideologias.
O conceito de bloco histórico permitia, desse modo, a análise crítico-
histórica da unificação dos processos de reprodução social das relações políticas
e reprodução político-ideológica das relações sociais que se verificam de modo
mais intenso no capitalismo contêmporâneo. Semeraro, de modo feliz, chamou
a concepção gramsciana de “reticular” (2006, p. 53). Nessa concepção, o bloco
histórico designaria a relação dialética existente entre “a espessura ‘objetiva’ das
forças materiais existentes na sociedade e a prática de uma política livre e criativa
desencadeada por grupos socialmente organizados” (idem, p. 54).
Embora enunciada de modo preciso, a questão não se encontrava com-
pletamente solucionada para Gramsci, e ele retornou ao tema a partir de uma
perspectiva explicitamente política em uma importante nota de seus Appunti di
Filosofia I, denominada Rapporti tra struttura e superestrutture. Tal nota, destina-
da a discutir os critérios metodológicos da análise política marxista com base no
“Prefácio de 1859”, depois seria retomada no conhecido § 17 do Quaderno 13,
intitulado Analisi delle situazioni: raporti di forza. As notas começam assim:
estrutura/superestrutura 139

Relação entre estrutura e superestrutura. Este problema me parece ser o problema


crucial do materialismo histórico. Elementos para orientar-se: 1º) o princípio de
que “nenhuma sociedade assume encargos para cuja solução ainda não existam as
condições necessárias e suficientes” (ou que pelo menos não estejam em vias de
aparecer e se desenvolver); 2º) o de que “nenhuma sociedade se dissolve e pode ser
substituída antes de desenvolver e completar todas as formas de vida implícitas nas
suas relações” (ver o exato enunciado deste princípio). (Q 4, § 38, p. 455)

Análise das situações: relações de força. É o problema das relações entre estrutura e
superestrutura que deve ser posto com exatidão e resolvido para chegar a uma justa
análise das forças que atuam na história de um determinado período e determinar
sua própria relação. É necessário mover-se no âmbito de dois princípios: 1) o de
que nenhuma sociedade assume encargos para cuja solução ainda não existam as
condições necessárias e suficientes, ou que pelo menos não estejam em vias de apa-
recer e se desenvolver; 2) o de que nenhuma sociedade se dissolve e pode ser subs-
tituída antes de desenvolver e completar todas as formas de vida implícitas nas suas
relações (verificar o exato enunciado destes princípios). (Q 13, § 17, p. 1579)

Segundo Francioni (1984, p. 141), a passagem do Quaderno 4 teria


sido redigida em outubro de 1930 e incorporada ao Quaderno 13 entre maio
de 1932 e os primeiros meses de 1934. Giuseppe Cospito acredita que essa
nota possa ter sido redigida entre outubro e dezembro de 1933 –, de todo
modo, depois da grave crise de saúde de março daquele ano. Assim, embora
nesse período Gramsci já tivesse revisado completamente sua impostação ini-
cial sobre a relação estrutura-superestrutura e o “Prefácio de 1859”, lhe falta-
riam as condições para levar a cabo a reformulação necessária, contentando-se,
assim, em introduzir pequenas, mas significativas variantes ao texto (Cospito,
2000, p. 103. Cf. tb. Cospito, 2004).
A passagem guardava certa distância do texto original de Marx, muito
embora Gramsci tivesse anexado à margem do manuscrito do Quaderno 13 uma
tradução literal realizada por ele próprio. Que a citação foi feita recorrendo ini-
cialmente à memória é evidente pela própria observação recomendando consul-
tar o texto original. Mas as modificações não podem ser creditadas unicamente
140 alvaro bianchi

às lacunas da memória, e sua interpretação é útil para esclarecer certos pontos


do pensamento gramsciano.
As diferenças entre os textos foram apontadas por Nicola Badaloni
(1978, p. 27-28) e saltam aos olhos. Em vez de “forças produtivas”, Gramsci
utilizou a expressão “formas de vida”; e aquilo que Marx chamava de “condi-
ções materiais de existência” aparecia no texto gramsciano como “condições
necessárias e suficientes”. Para interpretar essa passagem do texto gramsciano
e sua relação com o prefácio de Marx, Badaloni (1978, p. 28) ressaltou o vín-
culo existente entre os dois “princípios” destacados por Gramsci e seu objeto:
“a crítica da política”.
As opções terminológicas de Gramsci têm grande importância. Ao
eliminar a palavra “material” ele afastava a estrutura desse nível da análise, jus-
tamente o nível que indica o momento da passagem a outra formação social, o
momento no qual esse “problema” é colocado historicamente. Segundo Bada-
loni, no resumo gramsciano, o problema “torna-se mais geral e é visto pelo lado
da subjetividade”, o que pode ser apreciado pela utilização do termo “formas de
vida”, que Gramsci usa de modo bastante freqüente (Badaloni, 1991, p. 47).
A modificação introduzida pelo marxista italiano dizia respeito justa-
mente ao princípio subjetivo. Tratava-se de revalorizar, no texto marxiano, o
lugar ocupado pela intervenção humana, introduzindo o tema da vontade. O
próprio Gramsci explicitava o problema ao afirmar que

A proposição de que “a sociedade não coloca diante de si problemas para cuja solução
ainda não existam as premissas materiais”. É o problema da formação de uma
vontade coletiva que depende imediatamente desta proposição. Analisar critica-
mente o significado da proposição implica indagar como se formam as vontades
coletivas permanentes, e como tais vontades se propõem objetivos imediatos e
mediatos concretos, isto é, uma linha de ação coletiva. (Q 8, § 195, p. 1057)

O resultado desse rearranjo do texto marxiano de modo a destacar


aquilo que é seu “núcleo racional” é uma poderosa ferramenta de análise capaz
de elucidar as conexões existentes entre estrutura e superestrutura. De Felice
(1978, p. 197) destacou que o recorrente apelo de Gramsci ao “Prefácio de
1859”, justamente aquele texto que era tomado como ponto de partida de
estrutura/superestrutura 141

toda a leitura evolucionista e economicista por parte das correntes marxistas


da época, mostra que sua elaboração inscrevia-se em um debate internacional
sobre o nó teoria-movimento e apresentava uma alternativa interpretativa às
questões vinculadas aos materiais históricos representados pela Revolução
Russa, pela derrota do movimento operário no Ocidente e pela solução capi-
talista à crise do capitalismo.
Interpretado dessa forma, o “Prefácio de 1859” tinha seu conteúdo
revalorizado. No pensamento hegemônico na social-democracia alemã, ele não
fazia mais que apontar o destino ao qual levaria o caminho do acúmulo gradual
das forças proletárias, empurradas pelo próprio desenvolvimento do capitalismo
e fortalecidas pelas vitórias eleitorais do partido. Era instrumento ideológico
do morfinismo do proletariado, para usar uma expressão de Gramsci, que não
teria outra coisa a fazer do que aguardar o inevitável desenlace. Esse mesmo
texto, na formulação gramsciana, transformava-se numa vigorosa denúncia de
todo economicismo e automatismo, bem como recebia um uso “revolucioná-
rio”, transformando-se em “instrumento interpretativo da revolução proletária”
(Paggi, 1973, p. 1321).
A maturidade das condições objetivas, aquelas explicitadas no primeiro dos
princípios que constitui o “Prefácio de 1859”, parece ser para Gramsci um dado
sobre o qual não é necessário insistir, trata-se de uma constante. A questão decisiva
colocada por Gramsci – “como nasce o movimento histórico sobre a base da estru-
tura” – estava, pois, na solução do segundo princípio, aquele que dizia respeito à
maturidade das condições políticas e ideológicas. Ao assim proceder, Gramsci reela-
borava criticamente uma definição do marxismo apresentada em seu célebre artigo
La rivoluzione contro il “Capitale”, publicado em dezembro de 1917:

[o marxismo] não situa nunca como fator máximo da história os fatos econômicos
brutos, e sim, sempre, o homem, a sociedade dos homens, dos homens que se re-
únem, se compreendem, e desenvolvem através desses contatos (civilização) uma
vontade social, coletiva, e entendem os fatos econômicos e os julgam, adaptando-os
a sua vontade até que esta se converta no motor da economia em plasmadora da rea-
lidade objetiva, a qual vive, move-se e toma o caráter de matéria telúrica em ebulição,
canalizável por onde a vontade desejar e como a vontade desejar. (cf, p. 514)
142 alvaro bianchi

Nesse texto, Gramsci não se intimidava ao anunciar a distância que


poderia separá-lo de Marx (cf. Gerratana 1997, p. 91-92 e Medici, 2000, p.
65). Defendendo a capacidade de iniciativa política demonstrada pelos bolche-
viques na Rússia de 1917, Gramsci, visivelmente marcado pelo neoidealismo
italiano, afirmava exageradamente que aqueles teriam renegado o pensamento
de Marx, “contaminado de incrustações positivistas e naturalistas.” (CF, p. 514.)
Destacava-se no artigo a afirmação do “primado da vontade humana sobre os
processos objetivos das relações econômicas”, que Gramsci reivindicava com
base em uma concepção idealista mais próxima daquela de Fichte e Kant que do
próprio Hegel (cf. Gerratana, 1997, p. 92).53
Escrevia o jovem Gramsci que “os cânones de crítica histórica do
marxismo” captavam a realidade em situações de “normalidade”, nas quais
o desenvolvimento da experiência das classes ocorria lentamente. Repetin-
do teses que poderiam ser encontradas, por exemplo, em Kautsky, afirmava
Gramsci que “normalmente” o proletariado reagia contra sua situação mi-
serável e, no conflito que o opunha à burguesia, tornava-se cada vez mais
“consciente do próprio poder, da própria capacidade de assumir a respon-
sabilidade de se converter em árbitro do próprio destino” (cf, p. 515). Mas
a guerra que havia acelerado o tempo histórico na Europa não era uma
situação de normalidade: “Na Rússia, entretanto, a guerra serviu para des-
pertar as vontades” (idem).
Esse voluntarismo radical sofreu importante moderação à medida
que a relação de Gramsci com o marxismo tornou-se mais intensa. Já no
período do Ordine Nuovo é possível notar uma nova maneira de colocar a
relação entre as condições objetivas e as subjetivas, na qual a vontade con-
tinuava a ocupar uma posição de destaque, mas a questão decisiva era iden-
tificar as condições nas quais ela se tornaria “operante” e apareceria como o
“elemento decisivo” (Gerratana, 1997, p. 102). Foi para essa nova direção
que a pesquisa nos Quaderni se orientou.

53
Opinião diferente a respeito desse texto tem Edmundo Fernandes Dias (2000, p. 113), para
quem não se trata de voluntarismo, e sim da interpenetração entre vontade e história.
estrutura/superestrutura 143

Política

É absolutamente surpreendente que Antonio Gramsci tenha sido


apresentado ao público italiano do pós-guerra primeiramente como um
“teórico da cultura”. E mais surpreendente é a persistência dessa imagem.
Certamente há nos Quaderni uma abordagem consistente da cultura e, par-
ticularmente, da cultura italiana. Nos diversos planos de trabalho que an-
tecederam o início da redação dos Quaderni essa questão aparecia de modo
persistente. E mesmo após o início da redação ela permanece. Mas a questão
que a partir de determinado momento passou a organizar o empenho gra-
msciano era outra: a política.
Já foi apontado o momento no qual ocorreu a explosão da reflexão
propriamente política. Trata-se daquela observação a respeito do poder e
da oposição, creditada a Leon Blum e inscrita no § 40 do Primo Quaderno.
Se esse é um momento chave é porque inaugura essa reflexão, e não porque
a partir dele ela já surja como acabada ou madura. Temas importantes do
pensamento gramsciano aparecerão no mesmo Quaderno em notas seguintes
a esse parágrafo, particularmente no § 43 (Riviste tipo) e no § 44 (Direzio-
ne política di classe prima e dopo l’andata al governo). Mas esses parágrafos
parecem definir apenas um conjunto de problemas de pesquisa e hipóteses
de trabalho.
A colocação desses problemas nessas importantes notas era claramente
histórica e remetia de modo recorrente ao desenvolvimento italiano e à difi-
culdade de afirmação de uma unidade nacional no Risorgimento. A localização
da segunda versão desses §§ 43 e 44 no interior dos cadernos 20, 24 e, princi-
palmente, 19 reforçava essa ênfase. Foi a partir desses problemas e após aquela
primeira formulação que Gramsci parece ter identificado a necessidade de uma
reflexão mais sistemática sobre a atividade política e aquilo que denominava de
“ciência política” ou “ciência da política”. Nessa reflexão o diálogo com Maquia-
vel ocupava uma posição estratégica.
A importância da pesquisa sobre o florentino torna-se evidente já no
Primo Quaderno, muito embora não fizesse parte do índice que Gramsci co-
locou em seu início. Esse era, entretanto, um dos temas enumerados tanto na
144 alvaro bianchi

coleção de argumento dos Saggi principali, como nos Raggruppamenti di materia


antepostos ao Quaderno 8. A respeito das notas sobre Maquiavel, Leonardo Pa-
ggi destacou que é possível identificar dois grandes temas que, embora interco-
nectados, se apresentam de modo formalmente distinto: 1) uma pesquisa sobre
a interpretação marxista da obra do secretário florentino; 2) a tradução para
o marxismo de alguns conceitos presentes nela (Paggi, 1984, p. 387. Cf. tb.
Finocchiaro, 2002, p. 125-126).54
O tratamento dado ao autor de Il Principe nos Quaderni acom-
panhou a transformação gradual do programa de pesquisa gramsciano e
as novas ênfases que ele foi adquirindo. Nos diferentes planos de trabalho
escritos, Maquiavel apareceu primeiro naquele elenco de Saggi principale, re-
digido no final de 1930, e concentrado na história dos intelectuais italianos.
Os parágrafos referentes ao secretário florentino que podem ser encontradas
nos cadernos 1 e 2 parecem se inserir, claramente, dentro dessa perspectiva.
Trata-se de notas referentes ao caráter histórico de sua obra (Q 1, § 10, p.
8-9 e Q 2, § 31, p. 189 e § 41, p. 196-197) e à sua posição de intelectual
cosmopolita (Q 1, § 150, p. 133).
As notas presentes no Quaderno 2 são mais ou menos contêmporâneas
daquelas inscritas no Quaderno 4 e que fazem parte do conjunto que recebeu o
subtítulo de Appunti di Filosofia I, redigido, provavelmente, entre maio e outu-
bro de 1930 (cf Francioni, 1984, p. 141). Mas a abordagem do Quaderno 4 já
não era apenas histórica. Em seu interior, o estudo da obra de Maquiavel e de
seus comentadores passava a fazer parte de uma abrangente investigação sobre
o conceito de política e a atividade política no âmbito de uma filosofia da prá-
xis. Os títulos que Gramsci antepunha a seus parágrafos já permitem perceber

54
À observação de Paggi é necessário acrescentar que Gramsci começava sua investigação no Primo
Quaderno no âmbito de uma reflexão sobre a interpretação da obra de Maquiavel, ressaltando o
tempo que lhe era próprio e a necessidade de tratá-la de modo histórico (Q 1, § 10, p. 8-9). A pes-
quisa a respeito da “autonomia do fato político” própria daquele segundo bloco temático apontado
por Paggi apareceria apenas mais tarde, no Quaderno 4, § 56. Segundo Francioni, esse parágrafo
data de novembro de 1930 (1984, p. 141). Era concomitante, portanto, àquelas discussões na
prisão narradas por Athos Lisa, as quais assinalaram um giro político no interior dos Quaderni.
estrutura/superestrutura 145

esse deslocamento: Machiavellismo e marxismo (Q 4, § 4, p. 425), Machiavelli e


Marx (Q 4, § 8, p. 430) e Marx e Machiavelli (Q 4, § 10, p. 432).
O lugar de Maquiavel nesse projeto gramsciano de reflexão sobre a
teoria e a atividade política é inegável. Rita Medici (1990, p. 188) alertou que
esse lugar parece contraditório com aquela reivindicação feita pelo próprio Gra-
msci, retomando uma tese de Labriola, a respeito da independência da filosofia
da práxis e a recusa de toda tentativa de completá-la com outras doutrinas (cf.
Labriola, 2000, p. 216, Q 4, § 3, p. 422). Se Gramsci pôde atribuir esse papel
a Maquiavel sem que isso se constituísse em uma antinomia foi porque viu no
secretário florentino uma “primeira figura da filosofia da práxis” (Lefort, 1986).
É por isso que nas notas intituladas Marx e Machiavelli ambos os autores não
apareciam opostos um ao outro, nem como complementares, e sim como auto-
res que partilhavam um mesmo lugar.55
Tal lugar parece ser justificado no início do Quaderno 4 em uma pe-
quena nota de oito linhas intitulada Machiavellismo e marxismo. Refletindo
provavelmente a respeito da interminável querela referente aos objetivos de Il
Principe – a quem ensinava Maquiavel? –, escrevia o marxista sardo:

Dupla interpretação de Maquiavel: por parte dos homens de Estado tirânicos


que desejam conservar e aumentar sua dominação e por parte daquelas ten-
dências liberais que querem modificar as formas de governo. (...) Croce escreve
que isso demonstra a validade objetiva das posições de Maquiavel, o que é
justíssimo. (Q 4, §, p. 425)

Entretanto, nem todas as posições de Maquiavel deveriam ser conside-


radas portadoras de uma “validade objetiva”. Aquelas às quais Gramsci atribui
esse estatuto são as que poderiam ser integradas no âmbito da filosofia da práxis
como cânones de interpretação. Por outro lado, a caracterização maquiaveliana
a respeito da natureza humana deveria ser claramente rejeitada. Segundo o autor
dos Quaderni, a inovação fundamental introduzida por Marx na ciência política

55
Nas notas intituladas Croce e Marx, pelo contrário, ambos os autores são colocados em oposi-
ção.
146 alvaro bianchi

e histórica, quando comparado com Maquiavel, foi à crítica a idéia de uma


“natureza humana” fixa e imutável (Q 4, § 8, p. 430-431).
A rejeição a essa idéia permitiria conceber uma ciência política que em
seu conteúdo concreto se identificaria com uma ciência histórica. Maquiavel
pensou a política como uma prática que se afirma em um tempo circular no
qual a regularidade da natureza humana garantiria a constância dos ciclos his-
tóricos. A acuidade do florentino para o passado justificava-se pelo seu efeito
demonstrativo daquilo que poderia vir a ser. Daí sua insistência na necessidade
de articular “uma longa experiência das coisas modernas e um contínuo estudo
das antigas” (Maquiavel, 1971, p. 257).
A recusa de uma natureza humana fixa permitia a Gramsci livrar-se de uma
concepção cíclica do tempo sem com isso abrir mão daquela importante sensibilida-
de histórica. Também para o sardo a experiência contêmporânea e o estudo da histó-
ria forneciam a chave para a inteligibilidade do presente. Libertado o pensamento de
Maquiavel das amarras que lhe eram impostas por aquela idéia de natureza humana,
revelava-se seu núcleo racional. Esse núcleo, segundo Gramsci, era:

1) A afirmação de que a política é uma atividade independente e autônoma


que tem seus princípios e suas leis diversas daquelas da moral e da religião
em geral (...); 2) o conteúdo prático e imediato da arte da política estudado e
afirmado com objetividade realista, em dependência da primeira afirmação.
(Q 4, § 8, p. 431)

No primeiro dos pontos enumerados nessa citação, Gramsci retoma-


va explicitamente a idéia de “autonomia da política” da leitura que Benedetto
Croce fez da obra do florentino. Segundo o filósofo napolitano, “Maquiavel
descobriu a necessidade e a autonomia da política, que está além – ou melhor,
aquém – do bem e do mal moral, que tem leis contra as quais é inútil rebelar-
se, que não pode ser exorcizada nem expulsa do mundo com água benta”
(Croce, 1994, p. 292).56

56
A abordagem croceana já havia sido antecipada, embora de forma muito sumária, em Filosofia
della pratica (Croce, 1923, p. 266-268).
estrutura/superestrutura 147

Ao afirmar que Maquiavel inaugurava a “autonomia da política”, o


filósofo napolitano apresentava-o como um precursor da distinção entre as dife-
rentes esferas do espírito. Contrariamente àqueles que liam Il Principe como um
manual de política prática, Croce destacava que o conceito de “autonomia da
política” presente nele era um “conceito profundamente filosófico e representa a
verdadeira e própria fundação da filosofia política” (idem).
O conteúdo propriamente filosófico do discurso do florentino era re-
valorizado em detrimento daquilo que Croce considerava ser a casuística e o
preceptismo político que caracterizava o pensamento dos maquiavelianos. Ma-
quiavel não poderia ser considerado, desse modo, o fundador de uma “ciência
empírica da política”, como muitos pensaram. Ele era, na verdade, o fundador
da moderna filosofia da política.
Essa leitura antimaquiaveliana da obra de Maquiavel era possível por-
que Croce separava as tendências práticas e políticas, ou seja, afastava a política
em ato da reflexão a respeito dessas práticas e políticas, apartava a esfera da
filosofia da esfera da política. Procedimento semelhante era levado a cabo na
separação entre a historiografia e a história em ato. O exemplo dado por Croce
a esse respeito em Teoria e storia della storiografia era, justamente, o florentino.
Para o filósofo napolitano,

Maquiavel é historiador enquanto se esforça pra compreender o curso dos acon-


tecimentos e é político, ou pelo menos publicista, quando apresenta ou acaricia
seu ideal de um príncipe fundador de um forte Estado nacional e o faz refletir na
história que narra (...). Maquiavel pertence, então, por uma vertente, à história
do pensamento do Renascimento e, por outra, à história da prática do Renasci-
mento. (Croce, 2001, p. 189-190)

A afirmação de Maquiavel como descobridor da autonomia da política


ressaltava seu papel como filósofo do Renascimento e não como político dessa
época histórica. Embora esteja em constante diálogo com a interpretação de
Francesco De Sanctis, Croce afastava-se das conclusões desse historiador do Ri-
sorgimento. Em sua monumental Storia della letteratura italiana, De Sanctis atri-
buía ao secretário florentino a função de “consciência e pensamento do século” e
“ao mesmo tempo a mais profunda negação do medievo e a afirmação mais clara
148 alvaro bianchi

dos novos tempos” (De Sanctis, 1968, p. 454). Essa dupla função – negativa e
positiva – que havia sido levada a cabo pela Reforma protestante no restante
da Europa teria assumido na Itália uma forma diferente. De Sanctis afirmava,
então, que na península “Lutero foi Nicolau Maquiavel” (Idem). Como homem
do Renascimento, o Maquiavel de De Sanctis foi também um reformador.
Esse dualismo também era destacado por Croce. O secretário floren-
tino, afirmava em Etica e politica, era comumente identificado com o Renas-
cimento. Mas ele pertenceria, também, ao movimento da Reforma e ao seu
desejo, dentro e fora da Itália, de “conhecer o homem e pesquisar o problema de
sua alma [anima]” (Croce, 1993, p. 292). O sentido a partir do qual Maquiavel
era identificado com o espírito da Reforma diferia, entretanto, daquele afirmado
por De Sanctis. Para Croce, o secretário florentino era um reformador da filoso-
fia e não da sociedade de sua época. Por essa razão poderia estar inserido em um
movimento de pesquisa do “problema da alma”, do espírito humano. Maquiavel
assumia, desse modo, o lugar de precursor da filosofia do espírito.
A afirmação do autor de Il Principe como descobridor da autonomia da
política que foi discutida até aqui se tornou célebre e fez de Croce um dos expo-
entes da moderna maquiavelística, apesar de ter dedicado a ele apenas pequenos
artigos e páginas esparsas, encontradas, principalmente, em Etica e Política e
em Storia della età barocca in Italia (cf. Cochrane, 1961, p. 115-116 e Medici,
1990 p. 166). A influência dessa leitura croceana sobre a reflexão de Gramsci
nos Quaderni del carcere é inegável. As referências são por demais explícitas para
serem recusadas. Levando em consideração essas referências, Finocchiaro afirma
simplesmente que o marxista sardo “aceita” de Croce essa tese fundamental (Fi-
nocchiaro, 2002, p. 133). Na verdade, embora ele tenha acolhido a expressão
e faça uso corrente dela nos Quaderni, não fez o mesmo com seu conteúdo. Os
fundamentos e os resultados dessa tese eram, para Croce e Gramsci, diferentes
(Medici, 1990, p. 167), senão contrapostos (cf. Fontana, 1993, p. 7 e 52-73 e
Frosini, 2003, p.164).
Para Gramsci, a afirmação de uma “autonomia da política” implicava
o reconhecimento de que a política não poderia ser reduzida à religião ou à
ética. Como campo do conhecimento e como atividade, ou seja, como ciência
e prática, teoria e práxis, a ciência política e a política tinham regras próprias
estrutura/superestrutura 149

que as distinguiam de outras formas do conhecimento e da atividade humanas.


Mas tal “autonomia” parece não implicar, na obra de Gramsci, uma separação
radical entre política e moral. Por essa razão, Gramsci encontrava em Maquiavel
um precursor da filosofia da práxis em sentido pleno, ou seja, o criador de uma
“ciência-ação revolucionária” (cf. Martelli, 1996, p. 170).
A questão dizia respeito, portanto, à “relação dialética” que a “autono-
mia da política” poderia ter com outras formas históricas. A fórmula croceana
era inteiramente insuficiente, senão equivocada. A relação da política com a
arte, a moral e a filosofia seria uma relação indeterminada de mera implicação,
como sugeria a “dialética dos distintos”? Gramsci rejeitava claramente essa in-
determinação, e afirmava que a arte, a moral e a filosofia “serviam” a política,
podendo se reduzir a um momento desta, mas afirmar o contrário seria um
equívoco. Desse modo, postulava a “prioridade do fato político-econômico, isto
é, a ‘estrutura’ como ponto de referência e de ‘causação’ dialética, não mecânica
das superestruturas” (Q 4, § 56, p. 503).
Estabelecer esse nexo estrutura-superestrutura era, também, definir o
conceito da política no âmbito da filosofia da práxis. Essa era, para o autor dos
Quaderni, a primeira questão a resolver em um tratamento da obra de Maquia-
vel. A definição não dizia respeito apenas ao lugar que uma filosofia da política
deveria ter no âmbito da filosofia da práxis. Se a política é práxis, então essa
era uma questão facilmente resolvida: a filosofia da práxis política era a própria
filosofia da práxis.
A reflexão a respeito de Maquiavel, que a princípio se encontrava de
modo esparso nos Quaderni ganhou ritmo e intensidade no interior do importan-
te Quaderno 8, em um conjunto de notas escritas entre janeiro e abril de 1932 e
depois reescritas, em sua maioria no Quaderno 13, entre maio de 1932 e os pri-
meiros meses de 1934 (cf. Francioni, 1984, p. 142 e 144).57 A abordagem corrente
dessas notas tende a destacar a metáfora do “moderno príncipe”, presente já no § 1
do Quaderno 13, e o lugar do partido político no processo de constituição de um

57
Maquiavel foi citado em todos os cadernos anteriores ao 8, com a exceção do 7. Mas neles nunca
dedicou mais do que três parágrafos ao florentino. No Quaderno 8, ao invés, é possível encontrar
referências nos §§ 21, 37, 43, 44, 48, 56, 58, 61, 78, 84, 86, 114, 132, 162 e 163.
150 alvaro bianchi

novo Estado. De modo apropriado, Rita Medici chamou a atenção para a escassez
de referências a essa temática nos Quaderni (Medici, 2000, p. 162).58 Tal temática
é, sem dúvida, de grande importância, mas ela não fornece um critério interno de
unidade da abordagem gramsciana de Maquiavel.
A questão que poderia fornecer um critério de unidade foi colocada por
Gramsci, originalmente no Quaderno 8: qual o lugar da atividade política na fi-
losofia da práxis? A própria colocação do problema já marcava distância daquela
assumida por Croce, na medida em que o marxista sardo indicava, já na pergunta
que fazia, a unidade entre filosofia e política (Q 8, § 61, p. 977).59 Apontando
as diferenças existentes entre os dois intérpretes, Frosini argumentou que para o
filósofo napolitano a afirmação maquiaveliana da autonomia da política era uma
descoberta de valor filosófico, enquanto para Gramsci essa dimensão filosófica po-
deria ser afirmada, porque implicava um revolucionamento de toda a concepção
do mundo e uma reinterpretação também da moral e da filosofia. Assim, Gramsci
“subverte a perspectiva croceana, na medida em que avista na própria política a
descoberta in nuce de uma inteira nova filosofia” (Frosini, 2003, p. 164).
Croce, como já visto, fundamentava sua concepção da política a partir
da distinção das diversas formas do espírito, e a definia como um momento da
prática autônomo e independente das demais formas, ainda que relacionado
com elas mediante o nexo circular dos distintos. Gramsci procurava desenvolver
esse conceito em sentido contraposto àquele do filósofo napolitano, em uma
passagem rica de significados:

Onde tudo é prática, em uma filosofia da práxis, a distinção não será entre mo-
mentos do Espírito absoluto, mas entre estrutura e superestrutura, tratar-se-á de
fixar a posição dialética da atividade política como distinção nas superestruturas,

58
De fato, no Quaderno especial dedicado a Maquiavel só há duas referências ao “príncipe moder-
no” (Q 13, § 1, p. 1558 e § 21, p. 1601-1602).
59
Depois de subsumir a interpretação gramsciana da “autonomia da política” na filosofia do es-
pírito croceana, Finocchiaro acusa Gramsci de confundir atividade política com ciência política
(cf, Finocchiaro, 2002, p. 124). Só faria sentido afirmar tal confusão se Gramsci tivesse aceito a
separação entre política e filosofia, coisa que sempre rejeitou.
estrutura/superestrutura 151

e se poderá dizer que a atividade política é, justamente, o primeiro momento ou


primeiro grau das superestruturas, é o momento no qual todas as superestruturas
encontram-se ainda na fase imediata de mera afirmação voluntária, indistinta e
elementar. (Q 8, § 61, p. 977)

A partir dessa definição, torna-se compreensível a identidade entre


história e política, bem como a afirmação de que “toda a vida é política”. Toda
a práxis humana carrega em si uma dimensão política, muito embora essa di-
mensão não preencha todo seu conteúdo. Se a história é conflito, não há como
negar que todo conflito é, também, em maior ou menor medida, explícita ou
implicitamente, política. O conceito de distinção, reelaborado no âmbito da
filosofia da práxis, permitia conceber todo o sistema de superestruturas como
“(sistema de) distinções políticas” (idem).
Tratava-se, então, para Gramsci, de retomar essa “autonomia” da políti-
ca fundada por Maquiavel, procurando, a partir dessa definição, construir uma
ciência da política como forma da filosofia da práxis, que tivesse como método
uma “objetividade realista”. A retomada do princípio da “verità effettuale della
cosa” – com o qual Maquiavel pretendia abordar a política como ela é e não a sua
imaginação e, desse modo, orientar uma prática política eficaz –, assumia uma
posição estratégica nesse empreendimento.60
Era esse princípio cognitivo partilhado tanto pelo marxismo como por
Maquiavel, o que permitia ao autor dos Quaderni considerar o último como
uma prefiguração do marxismo (cf. Lefort, 1986, p. 245). Ao recusar o projeto
intelectual de construir de modo idealizado um modelo de Estado, e ao assumir
como objeto a ação política imediata, o secretário florentino estava, também, re-
cusando todo traço de idealismo metafísico. Seu pensamento político era, desse
modo, materialista e histórico. Segundo Gramsci:

[Maquiavel] em sua crítica do presente expressou conceitos gerais que se apresen-


tam de forma aforística e não-sistemática e uma concepção de mundo original

60
“Porém, sendo minha intenção escrever algo útil para quem me ler, parece-me mais con-
veniente procurar a verdade efetiva das coisas [verità effettuale della cosa] do que a imaginação
desta.”(Maquiavel, 1971, p. 280)
152 alvaro bianchi

que se poderia, também essa, chamar de ‘filosofia da práxis’ ou ‘neo-humanismo’,


na media em que não reconhece elementos transcendentais ou imanentistas (em
sentido metafísico), mas se baseia completamente na ação concreta do homem,
que pela sua necessidade histórica opera e transforma a realidade. (Q 5, § 127,
p. 657)

A atribuição ao pensamento do secretário florentino de uma marca


fortemente realista era própria da ciência política italiana do início do século
XX e essencial no fenômeno do “maquiavelismo” ou do “retorno a Maquiavel”
que caracterizava a reflexão sobre a política no contexto da Primeira Guerra
Mundial (cf. Medici, 1990, p. 14). O realismo de Maquiavel era, entretanto,
problematizado nos Quaderni. A interpretação do marxista sardo ia além da
tradicional análise que via em Il Principe uma reflexão sobre a política como ela é
e percebia, nesse texto, uma reflexão articulada a respeito do ser e do dever ser da
política. Compreende-se assim a importância que Gramsci atribuía ao epílogo
de Il Príncipe, no qual se exortava a “tomar a Itália e libertá-la dos bárbaros”
(Machiavelli, 1971, p. 296-298): tratava-se de uma parte necessária, momento
fundamental no qual todo o “dever ser” condensava-se em um chamado à ação
política concreta.
A afirmação da validade objetiva de Maquiavel não implicava uma neu-
tralidade perante os meios e os fins. Se o realismo tiver por objetivo a definição dos
meios eficazes para a obtenção de um determinado fim, é possível considerar que
ele é uma técnica política. Mesmo a partir dessa definição, o realismo não poderia
ser identificado com um cinismo vulgar, uma vez que os meios não seriam justifi-
cados pelos fins, e sim pela sua eficácia. A “verdade efetiva das coisas” encerraria,
pois, um critério de causalidade eficiente. Os meios válidos seriam apenas aqueles
considerados capazes de produzir os resultados desejados.
Como técnica política, o realismo não excluiria, a priori, nenhuma
finalidade. Mas o realismo que é comum a Maquiavel e Marx não diz respeito
a uma técnica, e sim a um princípio cognitivo. Como tal, o realismo considera
que a realidade empírica é o resultado da atividade humana e, por essa razão,
acessível ao conhecimento. Tal realismo não exclui toda utopia, desde que esta
assuma um caráter concreto, sendo resultado de uma análise paciente e rigorosa
do real. A condição de legitimidade histórica está no fato de o dever ser estar
estrutura/superestrutura 153

inscrito previamente no ser. O futuro deita raízes no presente e apenas nessa


condição ele se torna um futuro “previsível”.
Foi a esse ponto que Gramsci chamou a atenção em uma nota presente
primeiramente no Quaderno 8 (§ 84) e, depois, transcrita para o Quaderno 13 (§
16), acentuando o caráter superficial e mecânico de um realismo vulgar. A nota
contestava a preferência que o líder reformista Paolo Treves tinha pelo realismo
moderado de Francesco Guicciardini, em detrimento do realismo engajado de
Maquiavel. Tal preferência era fortemente afim à moderação do intérprete, que,
desse modo, justificava sua própria posição política.
Em sua resposta, Gramsci distinguia o “diplomata” (Guicciardini) do
“político” e o “cientista da política” do “político em ato”. O diplomata e o
cientista da política poderiam ter como horizonte uma realidade já constituí-
da. Mas Maquiavel não era um mero cientista, e sim um homem de partido,
“um político em ato”, e como tal tinha por objetivo “criar novas relações de
forças e por isso não pode deixar de se ocupar do dever ser” (Q 13, § 16, p.
1577). Ser e dever ser guardariam assim uma íntima relação: “O político em
ato é um criador, um suscitador, mas não cria a partir do nada nem se move
no turvo vazio de seus desejos e sonhos. Toma como base a realidade efetiva”
(idem, p. 1578. Grifos meus).
Ao adotar a expressão “realtà effettuale” (realidade efetiva) em vez da-
quela que originalmente aparecia em Maquiavel (verità effettuale), Gramsci des-
tacava de modo ainda mais intenso seu conteúdo objetivo e realista. O político
em ato, tal como Maquiavel, deve ser capaz de ler a realidade efetiva, a relação
de forças existentes e em contínuo movimento. Mas os objetivos dessa leitura
não são a conservação e a estabilização dessas forças, nem a acomodação a elas,
como um realismo vulgar – o de Treves, por exemplo – poderia dar a entender.
A posição do secretário florentino, segundo Gramsci, avizinhava-se da filosofia
da práxis, na medida em que também ele procurou construir um “realismo po-
pular” (Q 14 § 33, p. 1691).
Para esse realismo popular, a leitura da realidade efetiva tem por obje-
tivo encontrar nesta as possibilidades de transformação realmente efetivas. Não
se trata, pois, de conservar, estabilizar ou se acomodar, trata-se de transformar o
mundo. O realismo popular é, assim, capaz de revelar uma realidade que é igual
154 alvaro bianchi

a si própria, mas que contém, ao mesmo tempo, aquilo que lhe é diferente. É
por essa razão que, segundo Gramsci:

Aplicar a vontade à criação de um novo equilíbrio das forças realmente existentes


e operantes, fundando-se sobre aquela determinada força que se considera pro-
gressiva, e potencializando-a para fazê-la triunfar é, sempre, mover-se no terreno
da realidade efetiva, mas para dominá-la e superá-la (ou contribuir para tal). O
‘dever ser’ é, portanto, concreto, é a única interpretação realista e historicista da
realidade, é a única história em ato e filosofia em ato, a única política. (Q 13,
§16, p. 1578)

Comparando o realismo de Maquiavel de Marx, Claude Lefort argu-


mentou que a conhecida Tese sobre Feuerbach 11 – “Os filósofos não fizeram,
senão, interpretar [interpretiert] o mundo de diversos modos, o que importa
é mudá-lo [verändern]” (mecw, v. 5, p. 5) – implicaria um chamado à ação,
mas nada acrescentaria ao conhecimento da realidade (Lefort, 1990, p. 188).
A interpretação do filósofo francês parece separar teoria e prática de uma ma-
neira estranha a Marx e, principalmente, estranha à compreensão de Gramsci a
respeito. Se a “realidade é práxis”, como indica o próprio Lefort (idem), então o
sentido da práxis dá sentido à realidade que se quer conhecer, bem como fornece
o ponto de vista a partir do qual é levada a cabo essa prática cognoscente.
A pretensão de uma objetividade absoluta encerrada na suposta autono-
mia do conhecimento da realidade efetiva perante todo projeto de transforma-
ção dessa realidade elimina do ato do conhecimento o sujeito deste. Entretanto,
a realidade efetiva pode ser conhecida apenas por um sujeito real. Daí a ênfase
de Gramsci na posição ocupada por Maquiavel. Para isso, o secretário florentino
não poderia ser considerado apenas um “cientista da política”. Como “político
em ato”, ele deveria ser compreendido como o sujeito teórico e prático de um
projeto de transformação da realidade.
O interesse que Gramsci manifestou nos Quaderni del carcere pela obra
de Maquiavel deve ser interpretado como constitutivo de um desenvolvimento
crítico e uma nova problematização do tema da vontade (cf. Medici, 2000, p.
66). O caráter fundamental de O Príncipe de Maquiavel estava para Gramsci na
fusão da ciência política e da ideologia política na forma dramática do “mito”,
estrutura/superestrutura 155

bem como na relação de unidade que se estabelece nessa obra entre uma racio-
nalidade universalizada e uma “vontade coletiva” particularizada, personificada
na figura do condottiero. Assim, segundo o marxista sardo,

O processo de formação de uma determinada vontade coletiva, para um determi-


nado fim político, é representado não por meio de investigações e classificações
pedantes de princípios e critérios de um método de ação, mas como qualidades,
traços característicos, deveres, necessidades de uma pessoa concreta, o que põe
em movimento a fantasia artística de quem se quer convencer e dá uma forma
mais concreta às paixões políticas. (Q 13, § 1, p. 1555)

Gramsci propunha a respeito de Il Principe uma chave de interpretação


baseada no conceito soreliano de mito, como uma criação da “fantasia concreta”
que atuaria sobre um povo para despertar e organizar sua vontade coletiva com
vistas à construção de um novo Estado (idem, p. 1556). Daí, afirmava Gramsci,
o caráter de “manifesto político” da obra do secretário florentino.61
Torna-se interessante a comparação feita por Gramsci entre o mito maquia-
veliano e o soreliano. Segundo Sorel, um mito permitiria representar a ação imediata
“sob a forma de imagens de batalhas que asseguram o triunfo de sua causa” (1930,
p. 32). Esse conjunto de imagens permitiria “em bloco e unicamente por meio da
intuição” evocar “a massa de sentimentos que correspondem às diversas manifesta-
ções da guerra travada pelo socialismo contra a sociedade moderna” (idem, p. 173,
cf. tb; p. 182). Como “construções de um futuro indeterminado no tempo” (idem,
p. 177), tais mitos teriam a capacidade de, ao mesmo tempo, despertar a esperança
e a mobilização necessária para sua realização. O escritor francês considerava que “a
greve geral dos sindicalistas e a revolução catastrófica de Marx são mitos” (idem, p.
32). Mas afirmava claramente sua predileção pelo mito dos sindicalistas:

As greves engendraram no proletariado os sentimentos mais nobres, profundos


e motivadores que ele possui; a greve geral agrupa todos esses sentimentos numa

61
A analogia com o Manifesto Comunista é óbvia e é possível que o marxista sardo tivesse em mente
aquela passagem na qual Benedetto Croce afirmava ter sido Marx o “Maquiavel do proletariado”
(Croce, 1927, p. 112).
156 alvaro bianchi

imagem de conjunto e, por sua aproximação, atribui a cada um deles seu má-
ximo de intensidade. Recorrendo a lembranças pungentes de conflitos particu-
lares, dá um colorido intenso a todos os detalhes da composição apresentada à
consciência. Obtemos, assim, essa intuição do socialismo que a linguagem não
podia oferecer de maneira perfeitamente clara – e a obtemos num conjunto per-
cebido instantaneamente. (idem, p. 182)

Era esse estatuto que Sorel atribuía à greve geral que motivava a crítica de
Gramsci. Segundo o marxista sardo, a realização máxima da práxis política na con-
cepção de Sorel estava circunscrita a um momento econômico-corporativo, momen-
to “negativo e preliminar”, consubstanciado na greve geral, na qual predominava o
impulso irracional e “arbitrário”, a pura espontaneidade (Q 13, § 1, p. 1556-1557).
O mito soreliano teria uma capacidade de dissolver o existente, de negá-lo. Mas essa
negação do presente não seria dialética. Ela não produziria uma nova síntese.
Faltava à concepção de Sorel um momento “construtivo”. A vontade
coletiva, ao abandonar a sua “fase primitiva e elementar de sua mera formação”,
logo se desagregaria em uma multiplicidade disforme de vontades particulares.
Faltaria o elemento capaz de soldar essas vontades, transformando-as em força
histórica criadora. O mito soreliano poderia, desse modo, estimular a destruição
das “relações morais e jurídicas existentes”, mas era incapaz de ser um “produtor
de realidades”: “não pode existir destruição, negação, sem uma implícita cons-
trução, afirmação, e não num sentido ‘metafísico’, mas praticamente, isto é,
politicamente, como programa de partido” (idem, p. 1557).
Detrás da espontaneidade do sindicalismo revolucionário, não haveria
senão um puro mecanicismo, “um máximo de determinismo, por trás do idea-
lismo um materialismo absoluto”, ou seja, vulgar (idem). Daí que o sindicalis-
mo teórico e o anarquismo pudessem ser assemelhados ao liberalismo. Mas o
liberalismo é um programa teórico das classes dominantes, destinado a “mudar,
quando triunfa, o pessoal dirigente de um Estado e o programa econômico
do próprio Estado” (Q 13, § 18, p. 1590) e, portanto, é um programa com
vistas a preservar uma situação de dominação de classes imprimindo uma nova
direção e atualizando a organização estatal. O sindicalismo revolucionário, por
sua vez, se refere ao grupo social subalterno (a classe trabalhadora) que, com
essa teoria, “é impedido de tornar-se dominante, de desenvolver-se para além da
estrutura/superestrutura 157

fase econômico-corporativa, para elevar-se à fase de hegemonia ético-política na


sociedade civil e dominante no Estado” (Idem, p. 1590).
Em Maquiavel, pelo contrário, a práxis política assumia um caráter po-
sitivo e construtivo, consubstanciado na fundação de um “novo Estado” e “novas
estruturas nacionais e sociais” (idem, p. 1556 e 1558). O “mito” não seria, desse
modo, o momento do irracional, mas a mediação particular da própria práxis
política, que permitiria a criação de uma nova ordem. A constituição de uma
nova ordem e das dificuldades desse processo era tema recorrente em Maquiavel
(cf. Medici, 2000, p. 141-142). Em Il Principe afirmava o secretário florentino
que não havia coisa “mais difícil de se fazer, mais duvidosa de se alcançar, ou
mais perigosa de se manejar do que ser o introdutor de uma nova ordem” (Ma-
chiavelli, 1971, p. 265). E, no mesmo sentido nos Discorsi sulla prima deca di
Tito Livio, escrevia que encontrar “métodos e ordens novas” era tão perigoso
quanto a descoberta de mares e terras desconhecidas (idem, p. 76).
Para Gramsci, a construção de uma nova ordem exigia esse caráter
positivo e construtivo do mito-príncipe, o que lhe permitia atribuir a Maquia-
vel um “jacobinismo precoce”, no qual identificava o “germe (mais ou menos
fecundo) de sua concepção da revolução nacional” (Q 13 § 1, p. 1560). Se
Maquiavel era precocemente jacobino, os partidários de Robespierre eram por
sua vez “‘encarnação categórica’ do Príncipe de Maquiavel”. Era, entretanto, a
aversão ao jacobinismo que afastava Sorel da política e tornava sua concepção
de “mito” abstrata.62 Contrariamente, para o marxista sardo, os jacobinos, eram
expressão de um moderno maquiavelismo e um exemplo de “como se formou
concretamente e atuou uma vontade coletiva”, compreendendo essa vontade
“em seu sentido geral e mais moderno, a vontade como consciência operosa da
necessidade histórica, como protagonista de um drama histórico real e efetivo.”
(Idem, p. 1559.) Era esse o conteúdo do jacobinismo partilhado por Gramsci.

62
Gramsci partilhou essa aversão em sua juventude (cf. Losurdo, 1997, p. 26). Rita Medici ressal-
tou que o antijacobinismo juvenil de Gramsci devia-se não apenas à influência de Croce e Gentile,
ressaltada por Losurdo, mas também à de Sorel (Medici, 2000, p. 70). No mesmo sentido, ver Del
Roio (2005, p. 37-39). Para um tratamento abrangente da evolução do pensamento de Gramsci a
respeito do jacobinismo, ver Medici (2004).
158 alvaro bianchi

Relações

A questão que a pesquisa de Gramsci em torno do “Prefácio de 1859”


permitia enfrentar era, justamente, “quando é possível dizer que existem as
condições para que se possa criar e desenvolver uma vontade coletiva nacional-
popular?”. Para responder essa questão, seria necessária a análise do conjunto
das relações sociais que permitiam o desenvolvimento da vontade social, uma
“análise histórica (econômica) da estrutura social do país” (idem). Somente a
partir dessa análise seria possível identificar o “campo de possibilidades que as
forças relativamente permanentes e contrapostas utilizam, na medida de sua
capacidade política, em sentido oposto” (Paggi, 1973, p. 1347).
O “Prefácio de 1859” assumia uma posição-chave no âmbito de uma
pesquisa sobre as relações de forças políticas entre as classes sociais. Por meio
de um deslocamento de uma nota do plano “filosófico” do Quaderno 4 (§ 38
– Rapporti tra struttura e superestrutture) para o plano propriamente político do
Quaderno 13 (§ 17 – Analisi delle situazioni: raporti di forza), a questão teórica
aparentemente insolúvel com a qual Gramsci vinha se debatendo – as relações
entre estrutura e superestrutura – assumia um significado efetivo (cf. Cospito,
2000, p. 103).
Os cânones de metodologia histórica extraídos por Gramsci a partir
dos princípios apresentados pelo “Prefácio de 1859” ganhavam, com o novo
enquadramento, uma dimensão estratégica. Conectavam-se a outros temas e se
articulavam a novos conceitos, redesenhando a trama conceitual dos Quaderni.
Em sua nova sede, os cânones do “Prefácio” permitiam separar aquilo que era
ocasional e resultado da ação dos grupos e personalidades políticas e dava lugar
à “crítica política miúda” daquilo que era permanente e resultado da ação das
classes sociais e dava lugar à “crítica histórico-social” (Q 13, § 17, p. 1579).
É de extrema importância para uma valorização exata do alcance desses
cânones a distinção que Gramsci fez entre a grande e a pequena política. O que
permitia distinguir uma e outra era, justamente, a dimensão estratégica que
poderia, por meio desses cânones, ser apreendida. Tal dimensão estratégica era
destacada por uma pequena alteração na passagem da primeira para a segunda
versão desses parágrafos:
estrutura/superestrutura 159

A grande política abraça as questões vinculadas com a fundação de novos Esta-


dos e com a luta pela defesa e a conservação de uma determinada estrutura social
política. (Q 8, § 48, p. 970. Grifos meus)

A grande política compreende as questões vinculadas à fundação de novos Esta-


dos, com a luta pela destruição, defesa, conservação de determinadas estruturas
orgânicas econômico-sociais. (Q 13 § 5, p. 1563-1564. Grifos meus)

Parte das alterações feitas por Gramsci nesse texto tinham o evidente
objetivo de torná-lo mais preciso. Assim, esclarecia que a grande política não
diz respeito apenas à “luta pela defesa e a conservação” de um determinada
estrutura, mas também a sua destruição. Também era importante a substitui-
ção de “estrutura social política” por “estruturas orgânicas econômico-sociais”.
Evidentemente, a grande política ainda é política e, por essa razão, provoca
estranhamento essa última alteração. Por que teria sido suprimida a palavra
“política”? E que sentido tem o acréscimo de “orgânicas”, como adjetivo de
estruturas, na segunda versão? Esse é um dos casos a respeito dos quais é
possível apenas supor o sentido das alterações, mas se pode imaginar que elas
tivessem por objetivo demarcar mais claramente a distância que separa a gran-
de política, que tem por objetivo a transformação ou conservação das relações
de produção, da pequena política, que tem por objetivo a substituição de uma
fração do grupo dirigente por outra.
Na mesma nota, a pequena política era definida como a “política do
dia-a-dia, política parlamentar, de corredor, de intriga” (Q 13, § 5, p. 1573).
Nessa dimensão da atividade, as questões eram apenas “parciais e cotidianas”
e colocavam frente a frente no interior de uma estrutura estável “as diversas
frações de uma mesma classe política” (idem). Ao afirmar como própria da
grande política a luta pela transformação e/ou conservação de “determinadas
estruturas orgânicas econômico-sociais”, era ressaltado o caráter estratégico do
antagonismo social. O que está em jogo na alta política é a conformação de uma
nova hegemonia, de um novo bloco histórico cuja possibilidade está inscrita na
totalidade social (cf. Dias, 1996, p. 14).
A exclusão do antagonismo social e da “grande política” do âmbito
da vida estatal e a redução desta a pequenos jogos de intriga entre claques par-
160 alvaro bianchi

lamentares não deixava de ser, segundo Gramsci, a “alta política” das classes
dominantes. Era esse mecanismo de ocultamento dos conflitos sociais o que per-
mitia reduzir os agentes à condição de cidadãos, abstraindo suas determinações
sociais e transformando-os em unidades isoladas (cf. Dias, 1996, p. 25). Nesse
ocultamento próprio do liberalismo, mesmo quando agrupados em partidos,
esses agentes não deixam de ser indivíduos. Era essa ilusão do real o que permitia
a Croce afirmar que no Estado cada um de seus membros era vez por outra
“soberano e súdito” (1994, p. 261).
A percepção do mecanismo de ilusão levava Gramsci a reconhecer em
Giolitti um expoente da “grande política” mesmo quando este a rebaixava ao
nível da “pequena política” ou precisamente por essa razão. A exposição dos
Quaderni pode ser considerada incompleta nesse ponto. Pois além da ilusão que
transforma a grande política em pequena política, seria possível pensar aquela
que se desenvolve em sentido oposto, transformando a pequena política em
uma falsa grande política. Se aquela primeira forma tinha no liberal Giolitti
seu expoente, a segunda encontrava seus representantes no interior do Partito
Socialista Italiano (psi).
A supressão da palavra política não cancelava, portanto, a dimensão
estratégica do conflito social, mas permitia destacar que esta se localiza além da-
quilo que comumente era denominado de “política” – as pequenas escaramuças
parlamentares, a polêmica vazia nos jornais, os escândalos ministeriais. A grande
política está presente no cotidiano, mas naquela dimensão do presente na qual é
possível encontrar as classes antagônicas em conflito aberto ou dissimulado.
Distinguir a grande política da pequena política equivale a diferenciar a
conjuntura da situação. Gramsci ressaltava que no estudo de uma estrutura era
preciso distinguir os movimentos orgânicos (permanentes) daqueles conjunturais
(ocasionais, imediatos, acidentais). Desvendar a estrutura e seu presente é uma
operação que exige decompor o tempo em suas manifestações variadas: o tempo
da época, da situação e da conjuntura; da economia, do social e da política; da
estratégia e da tática; da propaganda e da agitação. Uma decomposição que só
tem sentido quando seguida pela resolução dessas múltiplas temporalidades na
história do presente. A distinção não deveria servir de base para uma separação
estrutura/superestrutura 161

radical dessas temporalidades. A distinção deveria ter o propósito de esclarecer a


relação existente entre esses tempos.
Foi com vistas a essa distinção que Gramsci procurou estabelecer um
conceito de conjuntura e indicar a relação deste conceito com a atividade política.
Dois são os momentos nos quais esse conceito foi objeto de uma tentativa de defi-
nição, ambos no interior de uma rubrica denominada “Nozioni enciclopediche”.

Noções enciclopédicas. Conjuntura. Origem da expressão: serve para compreender


melhor o conceito. Em italiano = flutuação econômica. Ligada aos fenômenos
do pós-guerra muito rápidos no tempo. (Em italiano o significado de “ocasião
(econômica) favorável” ficou para a palavra “conjuntura”: a conjuntura seria o
conjunto de características imediatas e transitórias da situação econômica e por
este conceito haveria que entender, então, as características mais fundamentais
e permanentes da própria situação. O estudo da conjuntura está, pois, mais es-
treitamente ligado à política imediata, à “tática” (e à agitação), enquanto que a
“situação” está ligada à “estratégia” e à propaganda, etc.). (Q 6, § 130, p. 797)

Noções enciclopédicas. (...) Conjuntura. A conjuntura pode ser definida como o con-
junto de circunstâncias que determinam o mercado em uma dada fase, se estas
circunstâncias são concebidas como em movimento, isto é, como um conjunto
que dá lugar a um processo de sempre novas combinações, processo que é o ciclo
econômico. Estuda-se a conjuntura para prever e conseqüentemente também de-
terminar, dentro de certos limites, o ciclo econômico em um sentido favorável aos
negócios. Por essa razão a conjuntura foi também definida como a oscilação da
situação econômica, ou o conjunto das oscilações. (Q 15, § 16, p. 1774)

A comparação entre ambas as definições permite perceber que seu autor


estava preocupado em, primeiramente, definir a chamada “conjuntura econômica”.
A primeira definição, inscrita no Quaderno 6, tem uma redação confusa, mas pare-
ce indicar a diferença entre “o conjunto de características imediatas e transitórias”
(conjuntura) e “as características mais fundamentais e permanentes” (situação). No
mesmo sentido aponta a nota do Quaderno 15, que procurava definir o conceito no
âmbito de uma pesquisa sobre a crise e os ciclos econômicos. A dimensão propria-
mente política do conceito era explorada na passagem final do primeiro parágrafo,
162 alvaro bianchi

na qual era estabelecida a distinção existente entre, por um lado, a constelação con-
ceitual conjuntura-tática-agitação e, por outro, situação-estratégia-propaganda. Tais
constelações agrupam conceitos-chave da crítica e da ação política.
O foco inicial na dimensão econômica da conjuntura deve ser com-
preendido como parte da crítica gramsciana ao economicismo. A denúncia do
economicismo e do automatismo acarretava a rejeição de uma visão fatalista
da história, muito em voga à época, que derivava a crise revolucionária dire-
tamente da crise econômica. Tal derivação tendia a aproximar os diferentes
tempos da política e da economia e terminava por diluir a superestrutura na
estrutura. A concepção de Gramsci era antagônica e tendia a afirmar a discor-
dância desses tempos. Atento aos contratempos que poderiam evitar a eclosão
de uma crise política ou modulá-la, afirmava: “pode-se excluir que, de per si,
as crises econômicas imediatas produzam acontecimentos fundamentais; ape-
nas podem criar um terreno favorável à difusão de determinadas maneiras de
pensar, de formular e resolver as questões que envolvem todo o curso ulterior
da vida estatal” (Q 13, § 17, p. 1587).63
Nessa passagem, Gramsci destacava a assincronia existente entre as mu-
danças econômicas e as mudanças políticas. Reconhecer essa diversidade temporal
é um importante antídoto contra todo automatismo. Tal reconhecimento permite
compreender a discordância dos tempos das mudanças na estrutura e na superestru-
tura. Essa discordância faz com que perante o tempo acelerado das formas políticas
e ideológicas, e dos conflitos que tem aí seu lugar, a estrutura apareça como fixa,
devido a seu lento movimento. A ação das massas, bem como seus movimentos
políticos e ideológicos, possui uma temporalidade própria que não necessariamente
é a temporalidade da crise econômica. Pelo contrário, na maioria das vezes, os mo-
vimentos das massas encontram-se atrasados em relação aos fenômenos econômicos
conjunturais. Segundo Gramsci, na análise economicista da realidade,

não se leva em conta o fator ‘tempo’ e, em última análise, não se leva em conta
a própria ‘economia’, no sentido de que não se compreende como os fatos ideo-

63
Para um desenvolvimento maior das relações entre crise econômica e crise política, ver Bianchi
(2002).
estrutura/superestrutura 163

lógicos de massa estão sempre atrasados em relação aos fenômenos econômicos


de massa e como, portanto, em determinados momentos, o impulso automático
devido ao fator econômico é desacelerado, é travado ou até mesmo destruído mo-
mentaneamente por elementos ideológicos tradicionais. (Q 13, § 23, p. 1612)

Identificar a discordância dos tempos da política e da economia é re-


conhecer que uma multiplicidade de tempos pode ser contêmporânea de tal
forma que, interagindo uns com os outros, apresentem como produto final não
a resultante de um “paralelograma de forças”, mas uma singularidade histórica,
uma conjuntura específica. Conjuntura e situação eram os termos a partir dos
quais tinha lugar a análise propriamente política do “Prefácio de 1859” no §
17 do Quaderno 13, no qual eram relacionados tais conceitos com a grande
política e a pequena política. A comparação entre a primeira e a segunda versão
do texto permite vislumbrar o processo de amadurecimento desses conceitos em
seu pensamento. Ausentes da primeira versão passam a ocupar importante lugar
na segunda, servindo como ponto de articulação do discurso e lhe atribuindo
profundidade e exatidão:

No estudo de uma estrutura, é necessário distinguir aquilo que é permanente


daquilo que é ocasional. Aquilo que é ocasional dá lugar à crítica política, aquilo
que é permanente dá lugar à crítica histórico-social; aquilo que é ocasional serve
para julgar os grupos e personalidades políticas, aquilo que é permanente, para
julgar os grandes grupos sociais. (Q 4 § 38, p. 455)

Todavia, no estudo de uma estrutura, é necessário distinguir os movimentos


orgânicos (relativamente permanentes) dos movimentos que se podem chamar
de conjuntura (e se apresentam como ocasionais, imediatos, quase acidentais).
Os fenômenos de conjuntura também dependem, certamente, de movimentos
orgânicos, mas seu significado não tem um amplo alcance histórico: eles dão
lugar a uma crítica política miúda, do dia-a-dia, que investe os pequenos grupos
dirigentes e as personalidades imediatamente responsáveis pelo poder. Os fenô-
menos orgânicos dão margem à crítica histórico-social, que investe os grandes
agrupamentos, acima das pessoas imediatamente responsáveis e acima do pessoal
dirigente. (Q 13, § 17, p. 1579)
164 alvaro bianchi

Gramsci queria evitar que a crise política fosse deduzida diretamen-


te dos aspectos mais imediatos da crise econômica. Por essa razão, distinguia
claramente a conjuntura, na qual a crise cíclica do capitalismo se revelava, da
situação, o tempo no qual tinha lugar a crise orgânica. Assim, afirmava o autor
dos Quaderni que durante, uma crise que se prolongava durante alguns decê-
nios, revelavam-se contradições insolúveis, ao mesmo tempo em que as forças
políticas que atuavam na defesa dessa estrutura esforçavam-se para superar essas
contradições. Esses esforços constituíam o terreno do ocasional, terreno no qual
a estrutura se atualizava.
A presença de uma crise desse tipo e os conflitos que nascem em seu
interior revelavam, segundo Gramsci, “que existem já as condições necessárias e
suficientes para que determinadas tarefas possam e, portanto, devam ser resolvi-
das historicamente” (Q 13, § 17, p. 1580). Aparecia aqui com força a dimensão
estratégica que a leitura gramsciana do “Prefácio de 1859” assumia. Com base
no texto de Marx era possível uma distinção entre movimentos orgânicos e fatos
conjunturais aplicável a “todo tipo de situação”, e não apenas aos contextos de
crise e revolução. A ausência de uma relação justa entre esses movimentos era
considerada pelo marxista sardo um erro freqüente na análise histórico-política.
Mas as conseqüências desse erro eram mais graves na política do que na histo-
riografia, na medida que, enquanto esta última tinha o objetivo de reconstruir a
história passada, a política almejava a construção do presente e do futuro.
Gramsci exemplificava a utilização desses critérios metodológicos por
meio de um caso histórico concreto, o mesmo que motivou as reflexões originais
de Marx: a Revolução Francesa. Tal caso era compreendido em uma escala his-
tórica amplificada. Para extrair todas as conclusões necessárias, é preciso ter em
mente, afirmava Gramsci, que somente em 1870-1871, com a Comuna de Paris,
esgotaram-se historicamente todas as possibilidades históricas que vieram à luz
em 1789. As contradições internas à estrutura francesa se manifestaram em longo
prazo, em um período histórico marcado por transformações que se processaram
através de ondas com um comprimento cada vez maior: 1789, 1794, 1799, 1804,
1815, 1830, 1848, 1870. O estudo dessas ondas sucessivas permitiria, segundo
Gramsci, “reconstruir as relações entre estrutura e superestruturas, de um lado, e,
estrutura/superestrutura 165

de outro, as relações entre o curso do movimento orgânico e o curso do movimen-


to de conjuntura da estrutura” (Q 13, § 17, p. 1582).
A reconstrução dessas complexas relações era um dos pilares de sus-
tentação do edifício teórico gramsciano. Encontrar na aparente contingência
da conjuntura as formas estruturadas e estruturantes que configuram o cam-
po do possível era um antídoto contra o imediatismo. Perceber a conjuntura
como o momento no qual a síntese das múltiplas contradições existentes na
estrutura assumia a condição de atualidade por meio do conflito presente
constituindo uma particularidade histórica era um antídoto contra o fatalis-
mo. Uma fina sensibilidade para a multiplicidade dos tempos da política e
do social permitiu a Gramsci navegar arriscadamente entre Cila e Caríbdis.
As contradições presentes muitas vezes nos Quaderni atestam quão perigosa
era essa travessia.
O marxista sardo procurava apreender essa multiplicidade dos tempos
da política e do social por meio de uma série de “cânones de pesquisa e in-
terpretação” das relações de forças. Como encontro de tempos discordantes as
situações estudadas por Gramsci implicavam, segundo Portantiero, “o conheci-
mento do desenvolvimento desigual das relações de força em cada um dos níveis
que, articuladamente, compõem o social como objeto real e como conceito.”
(Portantiero, 1979, p. 60).
Tais cânones permitiriam apreender as tendências existentes no real
sem considerá-las como “causas históricas” (cf. Q 13, § 17, p. 1583). A aplicação
desses cânones e a análise do real não são fins em si mesmas. Elas só adquirem
significado “se servem para justificar uma atividade prática, uma iniciativa de
vontade”. A análise permite identificar aqueles pontos nos quais a concentração
da vontade coletiva pode obter os melhores resultados, “sugerem as operações
táticas imediatas, indicam a melhor maneira de empreender uma campanha de
agitação política, a linguagem que será mais bem compreendida pelas multidões,
etc” (idem, p. 1588-1589).
O autor dos Quaderni estabelecia como ponto de partida a análise da
relação de forças vinculada à estrutura objetiva. Tal relação pode ser apreciada
com os “métodos das ciências exatas ou físicas” (idem, p. 1538). Os grupos sociais
erguem-se sobre a base dessa estrutura, do grau de desenvolvimento das forças
166 alvaro bianchi

materiais de produção, cada qual ocupando uma posição dada na divisão social
do trabalho. Nesse nível, a classe existe objetivamente. Ela é uma quantidade, um
lugar, uma função. Localiza-se, aqui, uma “realidade rebelde”, mas essencial para
verificar se existem na sociedade, ou se podem se desenvolver nela, as condições
necessárias e suficientes para sua transformação. Ou seja, ela permite verificar o
realismo, a atualidade e o grau de adequação das ideologias nascidas sobre o solo
dessa realidade rebelde e das contradições geradas em seu desenvolvimento.
O posicionamento dessa dimensão como o primeiro nível da análise
reforça o caráter estruturado e estruturante da estrutura econômico-social na
análise gramsciana. A suposição de que o autor dos Quaderni teria invertido as
posições ocupadas pela estrutura e pela superestrutura em sua análise do real (p.
ex. Bobbio, 1975) enfrenta sérias dificuldades para se sustentar quando cotejada
com o § 17. Mas Gramsci, já foi dito, não pretendia deduzir a conjuntura da
estrutura. O resultado da análise das relações de forças objetivas fixava uma
constante para uma situação política, revelando os conflitos potenciais existen-
tes na realidade e suas possibilidades de desenvolvimento, ou seja, sua aderência
ao real. Nesse sentido, a análise de Marx a respeito das revoluções de 1848,
investigando a imaturidade social e política de um proletariado ainda em fase de
constituição, é exemplar.
A fixidez da estrutura e da relação de forças objetivas que nela tem lugar
é o resultado do lento tempo de maturação das forças produtivas. Para Gramsci,
estas são “o elemento menos variável no desenvolvimento histórico, é aquele que
uma e outra vez pode ser identificado e medido com exatidão matemática, que
pode dar lugar, portanto a observações e a critérios” (Q 11 § 30, p. 1443). É,
portanto, na longue durée, naquilo que os economistas denominam de “tendên-
cias seculares”, que essa relação encontra seu tempo.
O segundo nível da análise dizia respeito à correlação de forças políti-
co-ideológicas, capaz de estimar o grau de homogeneidade, autoconsciência e
organização dos vários grupos sociais. Aí são apreendidos os diversos momen-
tos da consciência política coletiva, momentos que se combinam horizontal
e verticalmente, nacional e internacionalmente, criando arranjos originais e
historicamente concretos. A definição dos diferentes momentos dessa relação
de forças político-ideológicas tinha também um caráter prescritivo, na medida
estrutura/superestrutura 167

em que indicava aonde se deveria chegar: a formação de uma concepção de


mundo renovada na qual a classe se reconhecesse e reconhecesse a forma estatal
própria a essa concepção.
O momento primitivo dessa relação era denominado por Gramsci de
econômico-corporativo e expressava a situação na qual é percebida “a unidade
homogênea e o dever de organizá-la, a unidade do grupo profissional, mas ainda
não a do grupo social mais amplo” (idem, p. 1583-1584). Os interesses que sol-
dam essa unidade são imediatos, egoístas e particularistas, incapazes de adquirir
um conteúdo universal e, por essa razão, inabilitados para criar uma “civilização
estatal propriamente integral” (Q 5, § 123, p. 646). O economicismo, a cuja
crítica o autor dos Quaderni dedicou tanta atenção, era por ele considerado
como o efeito teórico de uma consciência e de uma organização que ainda não
conseguiu superar essa fase econômico-corporativa.
A apropriação pelas classes subalternas do modelo teórico do libera-
lismo que procurava isolar a política das demais esferas da atividade humana
– Croce, por exemplo – tinha, segundo Gramsci, um efeito perverso para essas
mesmas classes. Tal apropriação, por meio do sindicalismo teórico, impedia as
classes subalternas de se tornarem dominantes e se desenvolverem além da fase
econômica-corporativa. Dessa forma, a independência e a autonomia do grupo
subalterno que o movimento do sindicalismo teórico diz representar eram sacri-
ficadas à hegemonia intelectual do grupo dominante (Q 13, § 18, p. 1590).
Uma forma menos primitiva constitui o momento seguinte dessa rela-
ção político-ideológica. Nesse momento, seria possível verificar a solidariedade
de interesses de todos os membros do grupo social, mas ainda no terreno me-
ramente econômico, no qual a questão estatal, ou seja, a atividade plenamente
política, ainda não se colocava. Como tal, esse novo momento apresentar-se-ia
como uma superação dos estreitos marcos corporativos, mas expressaria uma
identidade que se constrói, ainda, no terreno do econômico.
Apesar de ter superado a dimensão estreitamente corporativa, nesse
momento a transformação do grupo subordinado em dominante sequer seria
colocada, como no caso do fabianismo; apresentada de forma ineficaz, como
na social-democracia; ou posta como o salto imediato do regime dos grupos ao
regime da perfeita igualdade, como no anarquismo. O economicismo presen-
168 alvaro bianchi

te nesses momentos da construção da identidade ideológica e organizativa das


classes carregava consigo uma importante conseqüência política e formava uma
barreira para a constituição de uma concepção de mundo própria das classes
subalternas. Para Gramsci, o economicismo não era um problema meramente
teórico; tratava-se de um problema eminentemente político.
O terceiro momento descrito era aquele no qual se verificava uma fase
estritamente política dos grupos sociais e a passagem da estrutura à esfera das
superestruturas complexas. Este é o momento no qual ocorre a criação da “he-
gemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de grupos subordina-
dos” (Q 13, § 17, p. 1584). Segundo Gramsci:

é a fase na qual as ideologias gestadas precedentemente transformam-se em “par-


tido”, entram em confronto e lutam até que apenas uma delas ou pelo menos
uma única combinação delas tenda a prevalecer, a se impor, a difundir-se sobre
toda a área social, determinando, além da unicidade dos fins econômicos e polí-
ticos, também a unidade intelectual e moral, pondo todas as questões em torno
das quais ferve a luta não no plano corporativo, mas sobre um plano “universal”,
criando assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de
grupos subordinados (idem.)

É neste momento que culmina o processo de desenvolvimento e auto-


organização das classes sociais, de formação de uma nova vontade coletiva, da
qual o partido político, “o moderno príncipe é ao mesmo tempo o organizador
e a expressão ativa e operante” (Q 13, § 1, p. 1561). A análise de tal processo
resumia uma paciente reflexão a respeito do movimento operário no primeiro
quartel do século XX. A passagem de um momento a outro não se expressava
teoricamente por meio de um cancelamento, mas sim por uma superação. A
construção de uma hegemonia implicava, desse modo, a relaboração da dimen-
são econômica ou mesmo corporativa da luta das classes subalternas como parte
de um programa totalizante.
O modo como Gramsci compreendia esse processo e a reelaboração
de seus momentos primeiros em uma nova concepção de mundo e uma prática
política conforme a ela pode ser compreendido a partir de uma nota na qual
discutiu o “movimento turinês”, a experiência do biennio rosso. Retomando as
estrutura/superestrutura 169

contraditórias afirmações de que essa experiência teria sido “espontaneísta” ou


“voluntarista”, o antigo editor do jornal Ordine Nuovo reconhecia o fundamento
“espontâneo” da ação real para afirmar que este não poderia nem havia sido
descuidado ou desprezado. O movimento espontâneo havia sido, segundo Gra-
msci, “educado (...) mas de modo vivo, historicamente eficiente, com a teoria
moderna” (Q 3, § 48, p. 330).
O processo de construção da hegemonia não pode deixar de ter uma
dimensão econômica (ver Burgio, 2003, p. 31). A reforma intelectual e moral
na qual esse processo se traduz é uma “elevação civil dos estratos deprimidos da
sociedade”. Elevação essa que tem início no próprio combate do partido que
representa e organiza esses estratos, mas que só pode se desenvolver plenamen-
te em uma nova forma estatal e após “uma precedente reforma econômica e
uma transformação nas posições sociais e no mundo econômico” (Q 13, § 1, p.
1561). Por essa razão, uma reforma intelectual e moral deve estar ligada a um
“programa de reforma econômica”, ou seja, “o programa de reforma econômica
é, precisamente, o modo concreto com o qual se apresenta toda reforma intelec-
tual e moral” (idem).
A exata compreensão dessa relação entre a “reforma intelectual e moral”
e a “reforma econômica” é fundamental. Sem a última, a primeira não seria,
senão, puro voluntarismo. A “reforma econômica” também fornecia o limite até
o qual as concessões aos grupos aliados era possível. Segundo Gramsci,

o fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que se deve levar em conta os


interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida;
que se forma certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça
sacrifícios de ordem econômico-corporativa. Mas é também indubitável que os
sacrifícios e o compromisso não se relacionam com o essencial, pois se a hege-
monia é ético-política também é econômica; não pode deixar de se fundamentar
na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade
econômica. (Q 13, § 18, p. 1591)

O processo de construção de uma hegemonia, o qual se desenvolve para-


lelamente à formação da autoconsciência e da auto-organização das classes, corres-
ponde em certa medida à passagem da “classe em si” à “classe para si”. De acordo
170 alvaro bianchi

com depoimento de Angelo Scucchia a Mima Paulesu Quercioli, esse foi um dos
primeiros temas tratados por Gramsci em sua conversa com seus companheiros
detentos em Turi: “Considerava, de fato, fundamental e primordial aprofundar
esses conceitos da classe operária que da ‘classe em si’ se torna a ‘classe para si’, isto
é, da classe que adquire consciência de sua própria função histórica, luta politica-
mente e expressa o partido.” (Quercioli, 1977, p. 220).
Essa passagem na qual ocorre construção dos sujeitos políticos não era
concebida de modo voluntarista por Gramsci. O estudo dos diferentes momen-
tos dessa passagem levado a cabo nos Quaderni del carcere desenvolve, ao invés
de negar, a reflexão de Gramsci na Introduzione al primo corso della scuola interna
di partito, escrita em 1925. Não seria correto, advertia nesse texto, exigir de um
operário comum uma consciência completa das funções que sua classe era cha-
mada a desenvolver no processo histórico. Antes da conquista do Estado seria
impossível modificar completamente a consciência de toda a classe operária.
Gramsci retomava aí uma solução já desenvolvida por Trotsky em Literatura e
revolução: a consciência só se modificaria completamente na totalidade da classe
quando o proletariado se transformasse em classe dominante, controlando os
aparelhos de produção e o poder estatal (cpc, p. 54. Cf. Trotsky, 1980 e Paggi,
1973, p. 1349).
Até aqui foram tratadas as relações de forças objetivas e as relações
político-ideológicas. Gramsci completava sua análise das relações de forças com
um terceiro nível, denominado relação de forças militares, considerado por ele
o “imediatamente decisivo em cada caso” (Q 13, § 17, p. 1585. Grifos meus).
Também aqui eram distinguidos dois momentos: um primeiro, que poderia ser
denominado de técnico-militar, representando uma dimensão mais estritamente
conflitiva; e outro, político-militar.
A utilização de uma terminologia militar neste terceiro nível não tem ou-
tro significado que o de construir uma analogia com a política. Gramsci não teria
desenvolvido toda sua exposição a respeito das relações de forças entre as classes
fundamentais para, subitamente, deslocar seu foco para o conflito interestatal na
arena internacional. A própria discussão sobre a relação de forças militares a partir
da análise do Risorgimento permite compreender a analogia (cf. Q 13, § 17, p.
1586 e Q 19, § 28, p. 2048-2054). A relação de forças militares não é senão uma
estrutura/superestrutura 171

relação de forças estratégicas que se verifica no próprio momento do confronto


aberto ou de sua preparação entre as classes sociais fundamentais.
Explicava Gramsci no Quaderno 19 que a expressão “direção militar”
não deveria ser entendida unicamente no sentido estrito, “deve-se entender, ao
invés, em senso muito mais abrangente e aderente à direção política propria-
mente dita.” (Q 19, § 13, p. 2048.) A direção militar pode compreender, por-
tanto, não apenas as questões técnicas referentes à mobilização de um exército,
mas também “a mobilização político-insurreicional de forças populares” (idem,
p. 2050). Perante a afirmação de um momento “imediatamente decisivo” iden-
tificado com a “mobilização político-insurreicional” torna-se difícil sustentar,
como propôs Coutinho (1999, p. 135), uma oposição antagônica entre “a idéia
de um choque frontal com o Estado” e “a idéia de uma ‘longa marcha’ através
das instituições da sociedade civil”.
De acordo com a narrativa de Athos Lisa, o “problema militar e o par-
tido” era um dos principais temas tratados por Gramsci em suas conversas com
outros prisioneiros. Embora o relato não seja sempre conceitualmente preciso,
não deixa lugar a dúvidas sobre a importância do tema e sobre sua relação com
o problema da insurreição. Segundo Lisa, Gramsci afirmava que:

a conquista violenta do poder exige do partido do proletariado a criação de uma


organização de tipo militar que, apesar de sua forma molecular, se difunda em
todas as ramificações da organização estatal burguesa e seja capaz de vulnerá-la e
de assestar-lhe fortes golpes no momento decisivo da luta. (Lisa, 1981, p. 378.)

Percebe-se que Lisa não estava consciente da ampliação gramsciana do


conceito de Estado, mas isso não invalida a colocação geral do problema. A
“questão militar” era a questão da insurreição. A supressão do horizonte insur-
recional e do momento da ruptura revolucionária, levada ao cabo por muitos
intérpretes do pensamento político gramsciano, exige que na análise das relações
de forças esse terceiro momento seja descurado. É sintomático, pois, que em
seu ensaio sobre a análise de conjuntura em Gramsci, Portantiero ignore, sem
maiores explicações, esse terceiro grau da correlação de forças, interrompendo a
descrição do § 17 do Quaderno 13 antes de chegar à relação de forças militares
172 alvaro bianchi

(cf. Portantiero, 1979, p. 69). Era a própria revolução, a cancelada. A supressão


analítica das relações de forças militares equivale à anulação daquele nível consi-
derado por Gramsci o “imediatamente decisivo”.
Os distintos níveis da análise da relação de forças expressam níveis
de abstração analítica diferentes. Para além de uma lógica da exposição, há
aqui uma lógica do próprio movimento histórico. O esquema desenvolvido
era simétrico àquele desenhado pelos dois princípios expressos pelo “Prefácio
de 1859”. Os três níveis apresentados diziam respeito a graus diferentes de
intervenção da vontade humana. No primeiro nível haveria o movimento da
estrutura a se impor, a “realidade rebelde”, independente da ação imediata
dos sujeitos históricos. É o princípio objetivo da contradição entre forças pro-
dutivas e relações de produção; uma definição epocale. Mas seria no terceiro
nível, naquele no qual ocorre o choque direto entre os sujeitos sociais, que essa
contradição encontraria sua solução. Este é o nível da realização da vontade
como “consciência atuante da necessidade histórica, como protagonista de um
drama real e efetivo”, o nível da revolução (Q 13, § 1, p. 1560). O movimento
histórico, dizia Gramsci, oscila, constantemente, entre o primeiro e o terceiro
momento da correlação de forças através da mediação do segundo momento,
o da correlação de forças política. Nível no qual se tornaria possível a passa-
gem “da estrutura às superestruturas complexas”.
Era este, e não outro qualquer, o ponto de chegada da reflexão sobre a
análise de situações e relações de forças. Os cânones de investigação paciente-
mente construídos a partir do material do “Prefácio de 1859” tinham o objetivo
de identificar a possibilidade da revolução e as condições de sua vitória. A análise
da “realidade efetiva” articulava-se desse modo com meticulosa investigação a
respeito da eficácia das formas de luta política.
estrutura/superestrutura 173

Estado/Sociedade civil

Não há como negar a existência de uma leitura hegemônica da obra de


Gramsci. Nela, o marxista sardo se afirmaria como um teórico das superestrutu-
ras, um profeta da sociedade civil “organizada” e um defensor da “conquista de
espaços” na democracia. O epicentro dessa leitura pode ser encontrado em uma
apropriação reducionista do conceito gramsciano de Estado em seu sentido “or-
gânico e mais amplo” para a qual a interpretação de Norberto Bobbio tornou-se
paradigmática. Nessa apropriação, a unidade entre estrutura e superestrutura,
sociedade política e sociedade civil, ditadura e hegemonia é cindida, e uma re-
lação de antagonismo é constituída entre cada um desses termos. Para superar
os falsos antagonismos instituídos entre esses conceitos e revalorizar o caráter
unitário e orgânico do pensamento de Gramsci é necessária, como tem sido
enfatizado até aqui, uma leitura que valorize o caráter fragmentário da obra do
marxista sardo, as fontes às quais ele recorre e o tempo de sua produção.
O ponto de partida para a análise do conceito de Estado pode ser uma
nota, presente já no Primo Quaderno, intitulada “La concezione dello Stato secondo
la produttività [funzione] delle classi sociale”. Nessa nota, afirmava Gramsci: “Para
as classes produtivas (burguesia capitalista e proletariado moderno), o Estado
não é concebível mais que como forma concreta de um determinado mundo
econômico, de um determinado sistema de produção” (Q 1, § 150, p. 132). O
Estado é a expressão, no terreno das superestruturas, de uma determinada forma
de organização social da produção. Assim, a conquista do poder e a afirmação de
um novo mundo econômico e produtivo são indissociáveis, e é dessa condição
unitária que decorre a própria unidade da classe que é, ao mesmo tempo, polí-
tica e economicamente dominante.
Esta definição é, entretanto, apenas um ponto de partida. Perguntas
pertinentes não encontram, nesse marco preliminar, respostas satisfatórias.
Gramsci está ciente dessas dificuldades. Ainda nesse parágrafos coloca a neces-
sidade de conceber essa articulação entre economia e política sem descurar as
complexas relações existentes entre desenvolvimento econômico e político local
(nacional) e internacional. Bem como o processo de racionalização por meio do
qual os intelectuais fazem com que a função histórica do Estado apareça como
determinação do absoluto.
A segunda versão dessa nota, inscrita no interior do Quaderno 10,
revela que Gramsci considerava necessário aumentar as salvaguardas que
impedissem a constituição de uma concepção reducionista do Estado. Essa
nova versão denota um esforço crescente do autor ao longo dos Quaderni com
vistas a depurar o materialismo histórico de todo resíduo economicista. Esse
empenho tornava-se cada vez mais evidente à medida que a redação avançava
no tempo e que as notas anteriores eram retomadas nos cadernos especiais
(cf. Cospito, 2000, p. 101). Na segunda versão do texto, que está aqui sendo
analisada, o marxista italiano reproduzia uma importante passagem da versão
original, mas acrescentava alguns cuidados:

Se bem que seja certo que para as classes produtivas fundamentais (burguesia
capitalista e proletariado moderno) o Estado não seja concebível mais que como
forma concreta de um determinado mundo econômico, de um determinado
sistema de produção, não é dito que a relação entre meios e fins seja facilmente
determinada e assuma o aspecto de um esquema simples e óbvio a primeira vista.
(Q 10/II, § 61, p. 1360)

As precauções tomadas por ele eram plenamente justificadas. Afinal,


como explicar, por exemplo, o caso de seu próprio país no século XIX sem
tomar esses cuidados e evitar uma concepção instrumentalista? A necessidade de
renovação do Estado italiano não foi definida por uma profunda transformação
na estrutura social. Se bem que essa transformação estivesse se processando, ela
ainda não havia gerado forças sociais progressivas vigorosas o suficiente para
dirigir a mudança social. As forças sociais emergentes representavam, mais que a
força do presente, as possibilidades do futuro, e as mudanças que se processavam
no Estado não refletiam uma organização econômica previamente existente. A
renovação do Estado italiano precedia, assim, a modernização da economia.
estado/sociedade civil 175

Mas, para além dessa realidade que se apresentava sobre o terreno


nacional italiano, havia uma situação internacional favorável à expansão e à
vitória dessas forças. E foi a combinação entre as forças progressivas escassas
e insuficientes e essa situação internacional que permitiu a renovação do Esta-
do italiano e determinou os limites sob os quais ela se deu (Q 10/II, § 61, p.
1360). O caso italiano mostra que as relações entre Estado capitalista e o mundo
econômico (relações entre superestrutura e estrutura) não podem ser determi-
nadas de maneira fácil sob a forma de um simples esquema. Para entendê-las,
é preciso ter em mente que esses dois conjuntos formam uma totalidade que
possui em seu interior diversas temporalidades. Esse desencontro dos tempos
das superestruturas e das estruturas constitui a maior dificuldade enfrentada
pelas teorias instrumentalistas do Estado, que, definindo-o como mero reflexo
do mundo econômico, não conseguem explicar as transições ao capitalismo nas
quais a transformação do Estado se antecipa à plena transformação do mundo
econômico (cf. Saes, 1994, p. 20).
O desenvolvimento da economia e da política encontram intimamente
vinculados e marcados por influências, ações e reações recíprocas, pelas lutas
que protagonizam as classes em presença e suas formas superestruturais no ter-
reno nacional e internacional. Reconhecer esses vínculos não implica admitir
que transformações no mundo econômico provoquem uma reação imediata que
modifique as formas superestruturais, ou vice-versa. Certo descompasso entre as
mudanças ocorridas nesses conjuntos é, até mesmo, previsível, muito embora
exista uma tendência à adequação de um a outro. Esta tendência não é, senão, a
busca de uma otimização das condições de produção e reprodução das relações
sociais capitalistas por meio da unidade econômica e política da classe dominan-
te, unidade que se processa no Estado.
Dessa maneira, o “Estado é concebido como organismo próprio de um
grupo, destinado a criar as condições favoráveis à máxima expansão do próprio
grupo” (Q 13, § 17, p. 1584).64 Mas, atenção: essa expansão, para ser eficazmen-
te levada a cabo, não poderia aparecer como a realização dos interesses exclusivos
dos grupos diretamente beneficiados. Ela deve se apresentar como uma expan-

64
Na redação original Gramsci refere-se ao conceito de “Estado-governo” (Q 4, § 38, p. 458).
176 alvaro bianchi

são universal – expressão de toda a sociedade –, por meio da incorporação à vida


estatal das reivindicações e interesses dos grupos subalternos, subtraindo-os de
sua lógica própria e enquadrando-os na ordem vigente. Incorporação essa que
é o resultado contraditório de lutas permanentes e da formação de equilíbrios
instáveis e de arranjos de força entre as classes. Processo limitado pelas necessi-
dades de reprodução da própria ordem e que se restringe, portanto, ao nível das
reivindicações econômico-corporativas.
Esse é o ponto da exposição no qual se faz necessário precisar os
contornos do Estado. Os elementos gerais foram, em grande medida, apre-
sentados e o leitor mais atento e familiarizado com o tema não terá muitas
dificuldades em prever aonde se quer chegar. O Estado é, aqui, entendido em
seu sentido orgânico e mais amplo como o conjunto formado pela sociedade
política e sociedade civil. No Quaderno 6, redigido entre novembro de 1930 e
janeiro de 1932 (cf. Francioni, 1984, p. 141-142) e composto em sua maioria
de textos B, essa definição foi apresentada de modo explícito por Gramsci, sob
o conceito de “Estado integral”.
A formulação apareceu pela primeira vez no interior da análise do pro-
cesso de constituição de uma ordem social após a Revolução Francesa de 1789,
na qual a burguesia “pode se apresentar como ‘Estado’ integral, com todas as
forças intelectuais e morais necessárias e suficientes para organizar uma socieda-
de completa perfeita.” (Q 6, § 10, p. 691.) A construção do texto gramsciano
punha-se em nexo evidente com o “Prefácio de 1859”. Tendo reunido as condi-
ções necessárias e suficientes para a superação da antiga ordem, pôde a burguesia
proceder à completa reorganização da sociedade. No mesmo sentido, fazendo
referência ao desenvolvimento político da Revolução Francesa após 1793, Gra-
msci referia-se à iniciativa jacobina de

unificar ditatorialmente os elementos constitutivos do Estado em senso orgâ-


nico e mais amplo (Estado propriamente dito e sociedade civil) em uma busca
desesperada de apertar no punho toda a vida popular e nacional, mas aparece
também como a primeira raiz do Estado laico moderno, independente da Igreja,
que procura e encontra em si próprio, em sua vida complexa, todos os elementos
de sua personalidade histórica. (Q 6, § 87, p. 763)
estado/sociedade civil 177

Fica claro que a definição de Estado até aqui esboçada procurava evitar
uma concepção que o reduziria ao aparelho coercitivo. A construção do consenso
também encontrava lugar nesse Estado. De modo resumido, mas nem por isso
menos significativo, Gramsci apresentava sua concepção de maneira já clássica,
“Estado = sociedade política + sociedade civil, ou seja, hegemonia encouraçada
de coerção” (Q 6, § 88, p. 763-764), ou como dirá mais adiante, no mesmo
Quaderno, “Estado (no sentido integral: ditadura + hegemonia)” (Q 6, § 155,
p. 810-811). A questão era enquadrada no plano de pesquisa dos Quaderni do
seguinte modo em uma carta de 7 de setembro de 1931:

eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente, que se


refere aos grandes intelectuais. Este estudo também leva a certas determinações
do conceito de Estado, que é usualmente entendido como sociedade política (ou
ditadura, ou aparelho coercitivo, para conformar a massa popular segundo o tipo
de produção e a economia de um momento dado), e não como um equilíbrio
da sociedade política com a sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social
sobre toda a sociedade nacional exercida através das organizações ditas privadas,
como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.), é especialmente na sociedade civil
que operam os intelectuais. (lc, p. 481)

É essa definição que Christine Buci-Gluksmann sintetiza com a fórmula


de “Estado ampliado” (1980, p. 126-148). Embora forte, essa fórmula pode gerar, e
tem gerado, simplificações excessivas e algumas confusões; por essa razão são pruden-
tes as observações de Liguori a respeito: por um lado, o conceito de Estado ampliado
acolhe a distinção entre Estado e sociedade civil sem cancelar ou suprimir qualquer
dos dois termos e, por outro, indica “que esta unidade advém, se a expressão me é
permitida, sob a hegemonia do Estado” (Liguori, 2006, p. 13). No mesmo sentido,
Prestipino (2004, p. 70-71) afirma que o esquema rudimentar Estado = coerção e
sociedade civil = hegemonia é contrário à complexa análise gramsciana, na qual não
existe uma rígida divisão de tarefas entre as duas esferas e, pelo contrário, tem-se em
vista dar conta das novas tarefas hegemônicas próprias do Estado.
Tomem-se estes dois termos chaves: sociedade política e sociedade civil.
O conceito de sociedade política está claro no texto gramsciano. Trata-se do
Estado no sentido restrito, ou seja, o aparelho governamental encarregado da
178 alvaro bianchi

administração direta e do exercício legal da coerção sobre aqueles que não con-
sentem nem ativa nem passivamente, também chamado nos Quaderni de “Esta-
do político” ou “Estado-governo”. Gramsci não perde, em momento nenhum,
esta dimensão, ou seja, não perde de vista a dimensão coercitiva da política,
muito embora não reduza a política a ela.
Mais complexa é a definição do conceito de sociedade civil. Seja porque
no texto gramsciano o conceito tem contornos bastante imprecisos; seja, porque
não existe apenas uma definição para o termo; seja porque na linguagem política
contêmporânea o termo “sociedade civil” foi incorporado fazendo, muitas vezes,
referências ao próprio Gramsci, embora com um sentido diferente; seja por tudo
isso, a confusão é grande.65

Bobbio

Responsável por parte considerável dessa confusão foi a influente inter-


pretação de Norberto Bobbio (1975) do conceito de sociedade civil em Gramsci.
Identificando uma dicotomia entre sociedade civil e Estado no pensamento gra-
msciano, Bobbio afirmou que Gramsci afastou-se da acepção marxiana do pri-
meiro termo. Enquanto para Marx o momento da sociedade civil coincidiria com
a base material da sociedade, a estrutura, por oposição à superestrutura, para o
marxista italiano, a sociedade civil “não pertenceria ao momento da estrutura, mas
àquele da superestrutura” (idem, p. 85). Segundo Bobbio, Gramsci, partilharia,
com Marx, entretanto, a idéia de que a sociedade civil determinaria o conjunto do
desenvolvimento histórico: “tanto em Marx como em Gramsci a sociedade civil,
e não o Estado como em Hegel, representa o momento ativo e positivo do desen-
volvimento histórico. Mas em Marx esse momento ativo e positivo é estrutural
enquanto para Gramsci é superestrutural.” (Idem, p. 86.) Para sustentar sua tese,
Bobbio toma como ponto de partida uma nota de Gramsci sobre os intelectuais:

65
Vários são os autores que identificaram o uso variado e muitas vezes indiscriminado do conceito
de sociedade civil. Destacamos a respeito Costa (1997) e Foley e Edwards (1996).
estado/sociedade civil 179

É possível, por enquanto, estabelecer dois grandes “planos” superestruturais, o


que se pode chamar de “sociedade civil”, ou seja, do conjunto de organismos
vulgarmente chamados “privados”, e o da “sociedade política ou Estado”, e que
correspondem à função de “hegemonia” que o grupo dominante exerce em toda
a sociedade e a de “domínio direto” ou de mando, que se expressa no Estado e no
governo “jurídico”. (Q 12, § 1, p. 1518 e Bobbio, 1975, p. 85)

Tal é, sem dúvida, a acepção mais freqüente que o termo sociedade civil
encontra nos Quaderni del carcere. Nessa acepção, a sociedade civil é entendida
como o “conjunto de organismos vulgarmente chamados ‘privados’”. Sobre es-
ses “organismos” é importante destacar seu caráter material, como faz Gramsci
no já citado Quaderno 6, utilizando de modo preciso as expressões “aparelho
hegemônico de um grupo social” (Q 6, § 136, p. 800) e “aparelho ‘privado’ de
hegemonia” (Q 6, § 137, p. 801). A materialidade dos processos de conformação
de uma hegemonia ganha, assim, destaque (cf. Liguori, 2006, p. 24). A luta de
hegemonias não é apenas luta entre “concepções de mundo”, como, por exem-
plo, aparece no Quaderno 10, ela é também luta dos aparelhos que funcionam
como suportes materiais dessas ideologias, organizando-as e difundindo-as.
A lista de tais aparelhos hegemônicos é grande, mas conhecida: igrejas,
escolas, associações privadas, sindicatos, partidos e imprensa são alguns deles. A
função desses organismos é articular o consenso das grandes massas e sua adesão
à orientação social impressa pelos grupos dominantes. Esse conjunto de organis-
mos, entretanto, não é socialmente indiferenciado. Os cortes classistas e as lutas
entre os diferentes grupos sociais atravessam os aparelhos hegemônicos e con-
trapõem uns a outros. Esse alerta se justifica na medida em que, no vocabulário
político hodierno, um conceito tocquevilliano de “sociedade civil” tornou-se
preponderante. Nesse conceito, sociedade civil passou a significar um conjunto
de associações situadas fora da esfera estatal, indiferenciadas e potencialmente
progressistas, agentes da transformação social e portadoras de interesses univer-
sais não contraditórios. Tal concepção é partilhada implicitamente por Bobbio
no momento em que afirma uma positividade imanente a essa esfera.
Mas vale alertar a existência daquilo que Simone Chambers e Jeffrey
Kopstein (2001) denominaram apropriadamente de “bad civil society”: o
desenvolvimento de correntes autoritárias ou, até mesmo, totalitárias, no
180 alvaro bianchi

interior da própria sociedade civil, e não à sua margem, como foi o caso
do nazismo na República de Weimar e do fascismo na Itália de Grams-
ci. Percebida não como um todo indiferenciado, mas como um conjunto
marcado pelos profundos antagonismos classistas, a sociedade civil perde
seu véu ilusório. Não se trata apenas da distribuição desigual de recursos
comunicativos que impediriam o livre acesso a uma esfera pública; trata-se,
também, da defesa de desenhos societários antagônicos. Em vez do local da
universalização de interesses particularistas, ela passa a ser vista como um
espaço da luta de classes e da afirmação de projetos antagônicos (cf. Dias,
1996, p. 66-68). A estratégia política de ocupação de espaços na sociedade
civil, advogada por uma leitura reformista, quando não liberal, de Gramsci,
não faz sentido para o autor dos Quaderni. O que se trata é da criação de
novos espaços autônomos das classes subalternas e da negação dos espaços
políticos das classes dominantes.
Além de afirmar a positividade imanente da sociedade civil, Bobbio lhe
atribuiu o papel de determinação da história. Segundo Bobbio, o conceito de
sociedade civil expresso por Gramsci derivaria diretamente de Hegel, e não de
Marx, ao contrário do que muitos acreditam. Pois em Hegel a sociedade civil
compreenderia não apenas o momento das relações econômicas, como tam-
bém as formas de organização espontâneas e voluntárias que ele identificava nas
corporações, consideradas “a segunda raiz ética do Estado, a que está fundada
na sociedade civil” (Hegel, 2003, § 255, p. 68). A fórmula hegeliana aparece
de modo quase literal em um esclarecedor texto A inserido por Gramsci no
Quaderno 6 e citado, também, por Bobbio:

É preciso distinguir a sociedade civil tal como é entendida por Hegel e no sen-
tido em que freqüentemente se emprega nestas notas (ou seja, no sentido de
hegemonia política e cultural de um grupo social sobre a sociedade inteira, como
conteúdo ético do Estado) do sentido que lhe dão os católicos, para os quais a
sociedade civil é, pelo contrario, a sociedade política ou o Estado em confronto
com a sociedade familiar e a Igreja. (Q 6, § 24 p. 703. Grifos meus)

A semelhança da fórmula gramsciana daquela de Hegel é, assim, não


só evidente como assumida por ele próprio. É de se notar, entretanto, que o co-
estado/sociedade civil 181

nhecimento que Gramsci possuía da obra de Hegel nem sempre era consistente
(cf. nota Semeraro, 2001, p. 134 a partir da análise de Q 1, § 152, p. 134-135).
Assim, era provavelmente a partir de Croce que o marxista sardo se aproximava
de Hegel. Coube a Bobbio o mérito de colocar em destaque de maneira enfá-
tica esse nexo Gramsci-Hegel. Mas não é possível deduzir a partir desse nexo a
afirmação de que Gramsci, apropriando-se livremente do conceito hegeliano,
teria conferido à sociedade civil (e, portanto, à superestrutura) o lugar ativo a
ela atribuído por Marx.
A aproximação de Gramsci a Hegel, por parte do filósofo turinês, te-
ria como propósito marcar o rompimento do primeiro com a teoria marxista
e sua reconversão a um idealismo. Como um “teórico das superestruturas”, o
marxista sardo veria, desse modo, sua teoria reduzida à denominada “história
ético-política” de Benedetto Croce (cf. Semeraro, 2001, p. 185 e Liguori, 2006,
p. 31). A recorrente crítica que Gramsci levava a cabo, principalmente no Qua-
derno 10, à hipóstase do momento ético-político por parte de Croce desautoriza,
entretanto, essa redução.
De modo adequado, Coutinho (1999, p. 122) criticou a interpretação
de Bobbio, afirmando que se o conceito de sociedade civil de Gramsci não é o
mesmo de Marx, não haveria razão para lhe atribuir a mesma função de deter-
minação em última instância. E não há, de fato, no texto gramsciano, nada que
permita afirmar que o marxista sardo tivesse reinvertido Hegel, colocando-o de
novo sobre sua própria cabeça e afirmado a superestrutura como determinante
do processo histórico.
O argumento de Bobbio revela-se ainda mais frágil quando analisados
os demais sentidos que o conceito de sociedade civil assume no pensamento
gramsciano. Como alertou Texier, a própria passagem citada por Bobbio reve-
la que Gramsci define “freqüentemente” (“spesso”, no texto em italiano), mas
não de modo exclusivo, a sociedade civil como lugar da “hegemonia política
e cultural de um grupo social” (Texier, 1988, p. 8). De fato, esse parece não
ser o único significado que Gramsci atribui ao termo sociedade civil. Veja-se,
por exemplo, uma passagem do § 19 do Quaderno 13, intitulada Alcuni aspetti
teorici e pratici dell “economismo’”
182 alvaro bianchi

A formulação do movimento da livre troca baseia-se num erro teórico do qual


não é difícil identificar a origem prática: a distinção entre sociedade política e
sociedade civil, que de distinção metódica se transforma e é apresentada como
distinção orgânica. Assim, afirma-se que a atividade econômica é própria da so-
ciedade civil e que o Estado não deve intervir em sua regulamentação. Mas,
como na realidade factual, sociedade civil e Estado se identificam, deve-se consi-
derar que também o liberismo é uma “regulamentação” de caráter estatal, intro-
duzida e mantida por caminhos legislativos e coercitivos: é um fato de vontade
consciente dos próprios fins, e não a expressão espontânea, automática, do fato
econômico. (Q 13, § 18, p. 1589-1590)

A idéia de que Gramsci teria excluído a economia capitalista da socie-


dade civil, ao contrário de Marx e, até mesmo de Hegel66 – idéia sustentada não
só por Bobbio, como também por Cohen e Arato (2000, p. 174) – não resiste a
uma análise detalhada da passagem acima. Nela, a sociedade civil aparece como
o locus da atividade econômica propriamente dita, o terreno dos interesses ma-
teriais imediatos, da propriedade privada, a sociedade econômica burguesa, ou
aquilo que hoje se chamaria o mundo dos negócios.
Esses dois sentidos são utilizados de modos diferentes por Gramsci. No
primeiro, a sociedade civil está associada às formas de exercício e afirmação da
supremacia de uma classe sobre o conjunto da sociedade. Faz parte de um pro-
grama de pesquisa que visa esclarecer não só os processos de revolução burguesa
e de fundação de um novo Estado, como a longevidade e fortaleza das institui-
ções políticas do Ocidente capitalista e a possibilidade de instauração de uma
nova ordem social e política. No segundo sentido, freqüentemente apresentado
entre aspas, destaca-se a capacidade de iniciativa econômica que o Estado possui
no capitalismo contêmporâneo.
O nexo entre essas duas formas de manifestação do conceito nem sem-
pre se encontra claro em Gramsci, daí que autores como Badaloni (1978, p.
37-47) e Francioni (1987, p. 191-193) possam afirmar que Gramsci trabalharia

66
Vale destacar que, para Hegel, a “mediação da carência e a satisfação do singular pelo seu trabalho
e pelo trabalho e pela satisfação de todos os demais”, o denominado “sistema de carências”, era
momento constitutivo da sociedade civil (cf. Hegel, 2003, § 188, p. 21).
estado/sociedade civil 183

com uma tríplice distinção: sociedade econômica, sociedade civil e sociedade


política. Nessa perspectiva, a análise dos três momentos da relação de forças
presentes no Quaderno 13 seria uma análise das relações que se verificariam na
sociedade econômica, como relações de forças objetivas; na sociedade civil, como
relações de forças político-ideológicas; e na sociedade política, como relações de
forças político-militares (cf. tb. os comentários de Medici, 2000, p. 166-167).
Entretanto, o que aqui cabe ressaltar é que a sociedade civil, tanto
em um sentido – conjunto de organismos privados responsáveis pela ar-
ticulação do consenso – como no outro – locus da atividade econômica
–, mantém uma relação de unidade-distinção com a sociedade política. A
reelaboração do “nexo dos distintos” croceano constituiu uma importante
contribuição de Gramsci, fundamental para a compreensão desses nexos
entre sociedade política e sociedade civil.
Para Croce, como já foi visto, o Espírito diferenciava-se em suas formas
teórica e prática e estas, em seus graus superior e inferior. Os graus do belo e do
verdadeiro compunham os diferentes graus da forma teórica, enquanto o útil e
o bem conformavam a forma prática. Destacava Croce que entre esses diferentes
graus não existia relação de oposição, mas apenas de unidade e distinção, ou
seja, belo, verdadeiro, útil e bem não eram opostos entre si. O nexo dos distintos
croceano permitia a seu idealizador empreender uma reforma conservadora e
especulativa da dialética na qual era recusada a negação interna ao conceito.
Segundo Croce:

a distinção do conceito não implica negação do conceito e sequer qualquer coisa


que esteja fora do conceito, mas apenas o próprio conceito em sua verdade, o
uno-distinto: uno somente porque distinto, e distinto somente porque uno. A
unidade e a distinção são correlativas, ou seja, inseparáveis. (1947, p. 49)

A crítica de Gramsci a essa concepção era explícita e apontava para a


superação do nexo dos distintos croceano. Gramsci equivocava-se, entretanto
ao atribuir a Croce uma “dialética dos distintos’, uma vez que para o filósofo
napolitano a dialética é sempre uma relação entre opostos (cf. p. ex. Croce,
1947, p. 64-65. Ver tb. Martelli, 2001, p. 116). Sem abandonar a idéia de que
no interior de uma unidade fosse possível encontrar não apenas opostos, como
184 alvaro bianchi

também distintos, o marxista sardo rejeitava severamente o caráter especulativo


do pensamento croceano, que reduzia a dialética histórica a uma alternância
de formas puras do conceito (cf. Prestipino, 2004, p. 56). Rejeitava, também,
a supressão croceana da negação e a conseqüente reprodução infindável da tese
que não seria nunca superada pela antítese.
Desse modo, para Gramsci, a distinção era concebida, segundo Pres-
tipino, como uma forma de oposição não antagonista na qual cada distinto
se encontra em uma relação de “tensão (dialética) com o outro” (2004, p. 68).
A possibilidade de essa relação de tensa unidade converter-se em oposição
não era descartada, entretanto, por Gramsci. Mas essa conversão não era um
a priori. Martelli esclarece a esse respeito que “ainda que os distintos não
sejam opostos, em certas condições podem tornar-se, ou seja, a oposição não é
senão a distinção, a diversidade, a alteridade que se subverte em antagonismo”
(Martelli, 2001, p. 116).
Por meio das categorias de unidade e distinção, Gramsci tematizava a
“elaboração superior da estrutura em superestrutura” (Q 10/II, § 6, p. 1244), ou
seja, o processo por meio do qual o particular que tem sede na sociedade econô-
mica se universaliza na sociedade civil. Nesse processo, a sociedade econômica
se “faz Estado”, ou seja, no seu vir-a-ser, a estrutura se superestruturaliza como
sociedade civil no Estado integral (cf. Prestipino, 2004, p. 71).
Mantendo sociedade política e sociedade civil uma relação de unidade-
distinção, formam dois planos superpostos que só podem ser separados com fins
meramente analíticos. Por essa razão, Gramsci destacava que a unidade (“identida-
de”) entre Estado e sociedade civil é sempre “orgânica” e que a “distinção” é apenas
“metódica” (cf. idem). Não é essa, entretanto, a interpretação de Texier, para quem
a unidade orgânica apontada por Gramsci na citação acima entre sociedade civil
e sociedade política vale apenas para a relação entre Estado (sociedade política)
e economia (sociedade civil) e não para a relação hegemonia-ditadura (1988, p.
10). A unidade existente entre sociedade política e sociedade civil como o locus
da atividade econômica aparecia de forma explícita em Gramsci na passagem já
citada de “Alcuni aspetti teorici e pratici dell’‘economismo’”. Mas também era afir-
mada a unidade entre a sociedade política e a sociedade civil como o conjunto de
organismos privados responsáveis pela articulação do consenso.
estado/sociedade civil 185

A incompreensão dessa unidade orgânica entre sociedade civil e socie-


dade política tem levado alguns autores a afirmarem que Gramsci teria caracte-
rizado a sociedade civil como uma esfera autônoma do Estado que é sustentado
dentre outros, por Baker (1998, p. 81) e por Cohen e Arato (2000, p. 175).67
Embora Coutinho (2006, p. 41 e 46-47) recuse a dicotomia radical que esses
autores estabelecem entre a sociedade civil e o Estado, partilha até certo ponto
da concepção que atribui à sociedade civil uma “autonomia material (e não só
funcional) em relação ao Estado em sentido estrito.” (1999, p. 129 e 2006, p.
38). A afirmação de Coutinho encontra-se assentada em um pressuposto histó-
rico questionável – o caráter exclusivamente contêmporâneo da sociedade civil
– e em uma concepção teórica de difícil sustentação – o estabelecimento de uma
relação algébrica entre dominação e direção.
Historicamente, Coutinho afirma, a autonomia material da socie-
dade civil seria um “traço específico de sua manifestação nas sociedades capi-
talistas mais complexas.” (1999, p. 131). O intérprete não deixa, entretanto,
de reconhecer a ambigüidade presente nos Quaderni, nos quais Gramsci pa-
receria oscilar entre uma posição que afirma a presença da sociedade civil em
sociedades pré-capitalistas e outra, na qual esta seria característica distintiva
das sociedades nas quais haveria níveis elevados de socialização da política e
de auto-organização de grupos sociais” (idem). Como dito anteriormente, a
tese é historicamente questionável e se ampara em uma concepção historio-
graficamente ultrapassada sobre as sociedades pré-capitalistas e, particular-
mente sobre o medievo.
Foge completamente dos propósitos deste texto discutir a improprie-
dade histórica dessa tese. Ressalte-se apenas que ela é inconsistente com o tex-
to dos Quaderni, no qual as relações Estado-Igreja na Idade Média fornecem
importante recurso analógico para a discussão do Estado contêmporâneo e de
suas relações com a sociedade civil. Mas não se trata apenas de uma analogia
histórica, como revela a pesquisa gramsciana sobre a “formação dos grupos inte-
lectuais italianos” e seu lugar na sociedade civil, presente já no índice do Primo

67
Para uma crítica das leituras sobre a sociedade civil que têm prevalecido no universo acadêmico
anglo-saxão, ver Liguori (2006, p. 37-38).
186 alvaro bianchi

Quaderno, datado de 1929. Pesquisa essa que extrapola em muito o reduzido


âmbito das “sociedades complexas”.68
Certamente, não se pretende aqui estabelecer um conceito trans-
histórico de sociedade civil que identifique formas de socialização que se de-
senvolveram em realidades muito diferentes entre si e sob diferentes maneiras.
Mas também aqui história e política se identificam. A questão principal para
Coutinho não é de ordem historiográfica, e sim política. Seu argumento é cons-
truído de modo rigoroso com o propósito de estabelecer uma identidade entre
“sociedades complexas do capitalismo recente” e a afirmação de uma concepção
algébrica da relação entre consenso e coerção, na qual uma variável apresentaria
comportamento inversamente proporcional à outra. Segundo Coutinho:

o fato de que um Estado seja mais hegemônico-consensual e menos ‘ditatorial’,


ou vice-versa, depende da autonomia relativa das esferas superestruturais, da pre-
dominância de uma ou de outra, predominância e autonomia que, por sua vez,
dependem não apenas do grau de socialização da política alcançado pela socie-
dade em questão, mas também da correlação de forças entre as classes sociais que
disputam entre si a supremacia. (1999, p. 131)

Por mais que Coutinho afirme a unidade entre coerção e consenso, o


verdadeiro sentido dessa unidade se perde em sua fórmula algébrica. Pois se uma
ampliação da sociedade civil implica um esvaziamento das funções coercitivas
do Estado, isso só pode ocorrer porque uma anula a outra. Nessa concepção
algébrica, extravia-se a dialética da unidade-distinção que caracteriza a formula-
ção gramsciana. O próprio exercício da hegemonia era entendido por Gramsci
como uma combinação entre coerção e consenso, mesmo nos regimes políticos
nos quais imperavam as formas democrático-liberais:

O exercício “normal” da hegemonia, no terreno clássico do regime parlamentar,


caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram varia-

68
Uma análise historicamente bem informada sobre o lugar desses intelectuais na Idade Média,
próxima a Gramsci em muitos sentidos e distante de Coutinho, pode ser encontrada em Le Goff
(2003).
estado/sociedade civil 187

damente, sem que a força suplante muito o consenso, ou melhor, procurando


obter que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chama-
dos órgãos da opinião pública – jornais e associações –, os quais, por isso, em de-
terminadas situações, são artificialmente multiplicados. (Q 13, § 37, p. 1638)

Assim, se na conhecida assenção do Quaderno 6 a hegemonia aparecia


em uma fórmula clássica “encouraçada de coerção”, na passagem acima apre-
sentada, é a força que aparece “encouraçada pela hegemonia”.69 Não se justifica,
portanto, a pouca importância que alguns autores inspirados no pensamento
gramsciano deram à dimensão coercitiva do Estado. Justificando a escassa
atenção que havia dedicado ao tema em sua obra Gramsci et l’Etat, Christine
Buci-Glucksmann (1980 e 1980a) afirmou que o pensamento marxista havia
enfatizado tanto a coerção, que julgava apropriado enfatizar o consenso para
contrabalançar os resultados. O resultado, entretanto, é uma análise unidi-
mensional, na qual a “dupla perspectiva” gramsciana perde-se, restando apenas
a articulação do consenso como forma de afirmação política. Gramsci como
proto-habermasiano...

Maquiavel

A respeito da relação dialética de unidade-distinção entre força e consenso,


é importante retomar as fontes do pensamento gramsciano e, em primeiro lugar,
Maquiavel. A questão fundamental aparece em uma nota na qual o comunista sar-
do pretendia estabelecer a distinção entre “pequena política” e “grande política”:
“Maquiavel examina especialmente as questões de grande política: criação de novos
Estados, conservação e defesa de estruturas orgânicas em seu conjunto; questões de
ditadura e de hegemonia sobre vasta escala, isto é, sobre toda a área estatal.” (Q 13, § 5,
p. 1564. Grifos meus). O tema-chave, que unificava a discussão sobre a interpreta-

69
A nota do Quaderno 6 é datada por Francioni entre março e agosto de 1931. A nota do Qua-
derno 13 aparece como texto A já no Primo Quaderno (§ 48, p. 59) e é datada por Francioni ente
fevereiro e março de 1929, e sua segunda redação (aquela que citamos) é datada entre maio de 1932
e os primeiros meses de 1934 pelo mesmo autor (Francioni, 1984, p. 140, 142 e 144).
188 alvaro bianchi

ção histórica da obra do florentino e a tradução de alguns conceitos para o âmbito


do marxismo era, portanto, a criação e a conservação de novos Estados.
É nesse contexto teórico-político que a passagem citada torna-se de
grande importância para uma valoração adequada das relações entre coerção
e consenso. Referindo-se à distinção que Luigi Russo fazia no interior da obra
maquiaveliana, destacando Il Principe como o tratado da ditadura e os Discorsi
sopra la prima deca di Tito Livio como o tratado da hegemonia, Gramsci obser-
vava que em Il Principe não faltavam referências “ao momento da hegemonia ou
do consenso ao lado daquele da autoridade e da força” e concluía afirmando que
“não há oposição de princípio [em Maquiavel] entre principado e república mas
que se trata, acima de tudo, das hipóstases dos dois momentos da autoridade
e da universalidade” (idem). Na interpretação de Gramsci, torna-se claro que
as separações entre autoridade e universalidade, força e consenso, ditadura e
hegemonia eram, para Maquiavel, arbitrárias. Em uma nota na qual Gramsci
fez referência a um contêmporâneo de Maquiavel, Francesco Guicciardini, tal
arbitrariedade revela-se plenamente:70

Afirma Guicciardini que, para a vida de um Estado, duas coisas são absolutamen-
te necessárias: as armas e a religião. A fórmula de Guicciardini pode-se traduzir
em várias outras fórmulas menos drásticas: força e consenso, coerção e persuasão,
Estado e Igreja, sociedade política e sociedade civil, política e moral (história ético-
política de Croce), direito e liberdade, ordem e disciplina ou, com um juízo implí-
cito de sabor libertário, violência e fraude. (Q 6, § 87, p. 762-763)

A referência não deixa de ser a Maquiavel, uma vez que Guicciardini


pôs a questão em um comentário aos Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio.
Afirmava Maquiavel nessa obra que “a religião servia para comandar os exérci-
tos, animar a Plebe, preservar os homens bons e fazer com que os culpados se
envergonhem” e que “onde há religião facilmente podem se introduzir as armas
e onde há apenas armas dificilmente se poderá introduzir aquela” (Machiavelli,
1971, p. 94). A esse respeito, Guicciardini escrevia em suas Considerazioni in-

70
É possível que a referência a Guicciardini seja apenas indireta, decorrente da leitura de artigo de
Paolo Treves (cf. o aparelho crítico de Gerratana em Q, p. 2720).
estado/sociedade civil 189

torno ai Discorsi del Machiavelli sopra la prima deca di Tito Livio: “É certo que
armas e religião são fundamentos principais das repúblicas e dos reinos e são tão
necessários que faltando qualquer um deles pode-se dizer que faltam as partes
vitais e substanciais” (Guicciardini, 1933, p. 21).
O tema presente nos Discorsi não é estranho a Il Principe. Nesta última
obra, Maquiavel registrava que “os principais fundamentos que devem ter todos
os estados (stati), sejam novos, velhos ou mistos, são as boas leis e as boas armas”
(Machiavelli, 1971, p. 275). A questão dos fundamentos do poder tem longa
história no pensamento político e sua investigação foi, por muitos, considerada
o objeto da filosofia política par excellence. Na tradição política italiana, marcada
pela presença de Maquiavel e Guicciardini, era recorrente a insistência na dupla
natureza do poder político. O filósofo piemontês Vincenzo Gioberti, líder dos
moderados na primeira metade do século XIX, por exemplo, em sua obra Del
primato moral e civile degli italiani, de 1843, afirmava maquiavelianamente ser
o poder soberano fundado

parte na força moral, isto é, sobre o direito, parte em sua força material, isto é,
sobre os exércitos; e ainda que devido à malignidade humana as armas sejam ne-
cessárias para proteger a opinião, estas não podem se desenvolver como aquelas
(...) se não são consentidas por muitos benévolos. (Gioberti, 1932, v. I, p. 95)

A partir de Maquiavel e Guicciardini essa tradição se destacou por duas


razões. Em primeiro lugar, porque unificava a condição do exercício do poder
político (a coerção, “as armas”) e a condição de legitimidade desse poder (a
“religião”, “as leis”), criando um nexo indissociável entre ambas. Em segundo
lugar, porque estas dupla fonte do poder político era afirmada, em seu caráter
indissociável, como necessária em todas as formas de Estado, fossem “repúbli-
cas” ou “reinos”, “novos, velhos ou mistos”.
O Estado é marcado dessa maneira pela presença de elementos que
mantêm entre si uma relação tensa de distinção, sem que cada um deles chegue
a anular seu par no processo histórico; pelo contrário, cada um molda e até
mesmo reforça o outro. A separação orgânica desses elementos não é senão uma
hipóstase e, como tal, uma arbitrária abstração. Era essa concepção unitária do
poder político que Gramsci denominava de “dupla perspectiva”:
190 alvaro bianchi

Outro ponto a ser fixado e desenvolvido é o da “dupla perspectiva” na ação po-


lítica e na vida estatal. Vários são os graus através dos quais se pode apresentar
a dupla perspectiva, dos mais elementares aos mais complexos. Mas eles podem
se reduzir teoricamente a dois graus fundamentais correspondentes à natureza
dúplice do Centauro maquiavélico, férica e humana, da força e do consenso, da
autoridade e da hegemonia, da violência e da civilidade, do momento individual
e daquele universal (da “Igreja” e do “Estado”), da agitação e da propaganda, da
tática e da estratégia. (Q 13, § 14, p. 1576)

A imagem do Centauro é forte e serve para destacar a unidade orgânica


entre a coerção e o consenso. É possível separar a metade fera da metade homem
sem que ocorra a morte do Centauro? É possível separar a condição de existência
do poder político de sua condição de legitimidade? É possível haver coerção sem
consenso? Mas tais questões podem induzir a um erro. Nessa concepção unitária,
que era de Maquiavel, mas também de Gramsci, não é apenas a coerção que não
pode existir sem o consenso. Também o consenso não pode existir sem a coerção.
Trata-se, portanto, de uma “relação dialética” entre essas duas naturezas
do poder político (idem). O marxista sardo protestava no parágrafo citado contra
aqueles que faziam da “dupla perspectiva” algo mesquinho ou banal, reduzindo
as duas naturezas do poder político a suas formas imediatas e colocando-as em
relação de sucessão – primeiro uma, depois a outra. Esse protesto torna-se pleno
de significado se referido àquela forma de apropriação da obra do secretário
florentino já citada que separava Il Principe dos Discorsi, reduzindo a primeira
obra a uma análise do momento coercitivo da fundação de um novo Estado e a
segunda a uma análise do momento do consenso e da expansão de um Estado. A
ressalva que Gramsci fez a respeito de Il Principe, identificando nessa obra várias
referências ao “momento da hegemonia”, permitiu-lhe recusar a separação entre
coerção e consenso. Agora, tratava-se de reconhecer que as duas naturezas do
poder político, embora possuíssem tempos distintos, eram coetâneas entre si.
Cabe ver, entretanto, se além de coetânes, coerção e consenso podem
ser, também, coextensivs, ou seja, se podem atingir com intensidades diversas
os mesmos espaços da vida política. Gramsci, é sabido, enfatizou que a coerção
tinha sede na sociedade política, e o consenso, na sociedade civil. Mas isso signi-
ficaria para o marxista sardo a definição de esferas exclusivas e excludentes para
estado/sociedade civil 191

uma função e para a outra? A questão não era tratada de modo direto no Qua-
derno 13, no qual parte importante da reflexão sobre o florentino encontrava
seu lugar, nem nos cadernos que o antecedem. Mas ela aparece em várias notas
presentes nos cadernos 14, 15 e 17.
Esse conjunto de cadernos tem características bastante particulares. A
redação do Quaderno 14 começou em dezembro de 1932, após ter início o
Quaderno 13, portanto, com o § 4. Os três parágrafos precedentes são de março
de 1935, conforme constata Francioni (1984, p. 116) a partir do estudo das
referências neles citadas. Ele foi interrompido em fevereiro de 1933, quando
Gramsci empreendeu a redação do Quaderno 15, e foi retomado em março de
1935. O Quaderno 15, por sua vez, registrava em uma importante advertência
em sua primeira folha a tônica desses novos miscelâneos: “Caderno iniciado em
1933 e escrito sem ter em conta aquelas divisões das matérias e dos reagrupa-
mentos de notas em cadernos especiais” (Q 15, p. 1748). O último desses novos
cadernos é o de número 17. Ele tem início após o término do Quaderno 15, em
agosto de 1933, e foi concluído em junho de 1935, pouco antes de Gramsci
interromper seu trabalho.
A redação desses cadernos coincide com o momento no qual a con-
fecção dos cadernos 10, 11, 12 e 13 encontrava-se bastante avançada ou em
vias de conclusão e marca uma fase de transição que se estendeu até meados de
1933, constituindo o último período de uma atividade criativa intensa. Após
sua transferência a Formia, em dezembro de 1933, e com a piora de seu estado
de saúde, esse trabalho criativo chegou praticamente a seu fim. A partir daí o
prisioneiro do fascismo limitou-se, praticamente, a transcrever para os cadernos
especiais, de modo cada vez mais literal, os textos já presentes nos miscelâneos
(cf. Frosini, 2003, p. 26).
Por que razão Gramsci teria dado início a novos cadernos miscelâneos
depois de já ter começado a redação dos especiais? E por que a rubrica Maquiavel
aparece nesses miscelâneos em um momento no qual a redação do Quaderno 13
encontrava-se adiantada ou em vias de conclusão? É possível que tivesse constatado
lacunas existentes em sua pesquisa e que retomasse desse modo o trabalho dos misce-
lâneos com vistas a saná-las, ao mesmo tempo em que dava seqüência à redação dos
especiais. É possível, também, que pretendesse posteriormente transcrever esse ma-
192 alvaro bianchi

terial em novos especiais, como sugere Frosini (2003, p. 27). De fato, nos primeiros
meses de 1934, depois de ter concluído o Quaderno 13, o marxista sardo deu início a
um novo caderno especial intitulado Niccolò Machiavalli. II, no qual escreveu apenas
três páginas, recolhendo três notas presentes já no Quaderno 2. É possível, assim, que
esta fosse a sede prevista das notas contidas nos cadernos 14, 15 e 17.
Nos temas presentes nesses novos cadernos miscelâneos, predominam
nitidamente as notas nas quais são traduzidos para a filosofia da práxis conceitos
e temas maquiavelianos. Uma comparação entre alguns temas presentes no Qua-
derno 13 e no Quaderno 14 é importante para um maior enriquecimento dos con-
ceitos de sociedade civil e Estado, bem como para uma identificação mais precisa
dos nexos existentes entre consenso e coerção. Discutindo as questões do “homem
coletivo” e do “conformismo social”, registrava Gramsci no Quaderno 13:

Tarefa educativa e formativa do Estado, que sempre tem a finalidade de criar


tipos de civilização novos e mais elevados, de adequar a “civilização” e a mora-
lidade das massas populares mais vastas às necessidades do contínuo desenvol-
vimento do aparelho econômico de produção, e, portanto, de elaborar também
fisicamente os novos tipos de humanidade. (Q 13, § 7, p. 1565-1566)

A conformação do “homem coletivo” encontra seu momento crucial na


passagem do indivíduo singular para a esfera universalizada das classes e, mais
especificamente, para aquela esfera na qual as classes se apresentam como sujei-
tos universais, a esfera da política. Essa passagem era compreendida por Gramsci
como uma “relação pedagógica” ativa, distinta, portanto, de uma mera relação
escolar. É no nexo existente entre governantes e governados, dirigentes e dirigidos,
intelectuais e não intelectuais que se torna possível identificar de modo mais pre-
ciso essa relação e o processo de formação de uma “personalidade histórica”. Desse
modo, toda “relação de hegemonia é, necessariamente, uma relação pedagógica”
de construção de novos sujeitos sociais e políticos (Q 10/II, § 44, p. 1331).
Era essa relação pedagógica, relação de hegemonia, que Gramsci tinha em
mente quando destacava a tarefa “educativa e formativa do Estado”. É o processo
de afirmação de formas civilizatórias que se apresenta nessa tarefa. A incorporação
do indivíduo singular no homem coletivo, a afirmação de uma forma civilizatória
que encontre seu resumo no Estado, exige a aquiescência ativa ou passiva desses
estado/sociedade civil 193

indivíduos. Para isso o Direito cumpre uma importante função. Não se trata,
entretanto, do Direito como mero dispositivo jurídico, que atua por meio de san-
ções legais. O marxista sardo apresentava naquele parágrafo do Quaderno 13 uma
concepção integral do Direito, o qual abrangeria, também,

aquelas atividades que hoje são compreendidas na fórmula de “indiferente jurí-


dico” e que são de domínio da sociedade civil, que opera sem “sanções” e sem
“obrigações” taxativas, mas que nem por isso deixa de exercer uma pressão co-
letiva e obtém resultados objetivos de elaboração nos costumes, nos modos de
pensar e de operar, na moralidade, etc. (Q 13, § 7, p. 1566)

Sabe-se, desde Durkheim que “pressão coletiva” não deixa de ser uma
forma de coerção. A sociologia simbólica contêmporânea, que seguiu as trilhas
abertas pelo fundador do L’Année sociologique, muito contribuiu para desvelar
essas formas de violência que se manifestam fora da esfera regulada pelas formas
jurídicas do Direito. Não há nada nos Quaderni que permita indicar que Gra-
msci conhecesse a obra do francês, embora Benedetto Croce a citasse em Mate-
rialismo storico ed economia marxistica (1927, p. 112). O próprio Croce já havia,
em Etica e política, chamado a atenção para a necessidade de ter um conceito de
força que fosse além da violência física e recobrisse outras formas de coação: “A
idéia de força não deve reduzir à tosca representação que sói sugerir essa palavra,
quase a de tomar pelos cabelos e obrigá-los a curvar-se” (1994, p. 257).
Gramsci não partilhava com Croce a localização dessa afirmação no âm-
bito de uma concepção na qual a sede dessa força, o Estado, “não é um fato, é sim
uma categoria espiritual” (idem). Mas podia, muito bem, subscrever a afirmação
que o crítico napolitano fez a respeito da relação entre força e consenso:

força e consenso são, em política, termos correlatos e onde aparece um o outro


não faltará. Consentimento “forçado”, se objetará; mas todo consentimento é
“forçado”, ou seja, resulta da “força” de certos fatos e, portanto, está “condicio-
nado”. Não existe formação política que elida essa vicissitude: no mais liberal dos
Estados, assim como na mais opressora da tiranias, o consentimento está sempre,
e sempre forçado, condicionado e transitório. Se assim não fosse, não existiriam
nem o Estado nem a vida do Estado. (idem, p. 258)
194 alvaro bianchi

Ao colocar aspas nas expressões “sanções” e “obrigações” quando estas


encontravam sua sede na sociedade civil, Gramsci afastava-se da conotação que
assumiam no senso comum e aproximava-se da fórmula croceana. Mas não era
essa, entretanto, uma questão resolvida de modo explícito ou mesmo definitivo
pelo sardo, embora houvesse sinais de que a considerava importante. A concep-
ção ampliada do Direito aventada por Gramsci era um desenvolvimento teórico
da idéia de Estado integral. Foi por essa razão que resolveu inscrevê-la na nota
do Quaderno 13 muito embora ela estivesse completamente ausente na primeira
redação (Q 8, § 52, p. 972).
O tema foi retomado em algumas notas do Quaderno 14, justamente
aquele que abria um novo ciclo na pesquisa. A maioria dessas notas foi registrada
sob a rubrica “Machiavelli”, muito embora os temas predominantes não disses-
sem respeito à interpretação da obra do secretário florentino, que raras vezes foi
citado diretamente nesse Quaderno. Mas o registro da rubrica é importante, pois
assinalava a continuidade dos temas tratados no Quaderno 13, a unidade que
existe entre os diversos blocos temáticos que nela se articulam e a inserção dessas
notas em um projeto de pesquisa abrangente.
A propósito de um artigo de Mauro Fasiani, colaborador da revista
Riforma Sociale, o autor dos Quaderni perguntava: “Quem é o legislador?” (Q
14, § 9, p. 1662). A interrogação motivava uma série de importantes reflexões
pertinentes para o desenvolvimento de uma teoria integral do Estado. A pri-
meira delas dizia respeito à necessidade de distinguir a “voluntas legislatoris”, ou
seja, a intenção do legislador no ato de concepção da lei, da “voluntas legis”, o
conjunto de conseqüências não previstas decorrentes da aplicação de determina-
da lei, aquilo que a teoria econômica contêmporânea denomina de “unintended
consequences”. A investigação sobre a “voluntas legislatoris” não esgota todo o Di-
reito, e é necessário, para a pesquisa sobre o que este realmente é, levar em conta
a “voluntas legis”. O resultado efetivo da atividade legislativa é marcado, assim,
pela relação dialética existente entre a produção da lei e sua aplicação efetiva.
Essa observação preparava o terreno para outra, de maior alcance para
uma teoria do Estado integral. Se a vontade legislativa não pode ser reduzida à
vontade do legislador, então, é necessário atribuir à palavra legislador um sen-
tido mais amplo, “até o ponto de indicar com ela o conjunto de crenças, de
estado/sociedade civil 195

sentimentos, de interesses e raciocínios difusos em uma coletividade em um


dado período histórico” (Fasiani apud Q 14, § 9, p. 1663). A questão reaparecia
poucas páginas à frente, em uma nota inscrita sob a mesma rubrica. Nela Gra-
msci afirmava que o conceito de “legislador” deveria ser identificado com o de
“político” e, dado que todos são “políticos”, na medida em que fazem parte ativa
ou passivamente da vida política, todos, também, são ativa ou passivamente
“legisladores” (Q 14, § 13, p. 1668).
Em seu sentido restrito, a palavra “legislador” tem um significado
jurídico-estatal preciso, indicando aquelas pessoas que têm um mandato para
exercer a atividade legislativa e têm essa atividade reconhecida e regulamentada
pelas leis de um país. Acontece com a atividade do “legislador” o mesmo que
com a atividade de intelectual. Todos são legisladores, mas nem todos têm uma
função legislativa. Mesmo adotando uma concepção ampliada do Direito e do
legislador, é necessário estabelecer a esfera na qual esse Direito e esse legislador
cumprem uma condição de legitimidade, ou seja, são reconhecidos como tal
pela opinião pública. É necessário, também, identificar a efetividade real dessa
atividade, ou seja, até que ponto os representados praticam, de fato, aquelas
regras que nascem da atividade do “legislador” e que têm “expressão sistemática
normativa” (idem).
O ato legislativo do legislador não pode, portanto, colocar-se além da
história, assumindo a posição de demiurgo do real. Esse ato ganha significado
na medida em que estimula ou reprime tendências já postas na vida social e
política. Tal significado é, então, o resultado das ações e reações intrínsecas a
uma dada esfera social e ao ato legislativo em si. Por essa razão,

nenhum legislador pode ser visto como indivíduo, salvo abstratamente e por co-
modidade de linguagem, porque, na realidade, expressa uma determinada vontade
coletiva disposta a tornar efetiva sua “vontade” , que só é vontade porque a coletivi-
dade está disposta a lhe dar efetividade. (Q 14, § 9, p. 1663. Grifos meus)

Revela-se nessa passagem o diálogo com Maquiavel no uso particu-


lar que seu autor faz da expressão “effetuale”. O diálogo torna-se mais intenso
quando, na seqüência, Gramsci afirma que todo aquele que, no ato legislativo,
prescinde de uma vontade coletiva, não passa de um “fogo-fátuo”, um “profeta
196 alvaro bianchi

desarmado”.71 O profeta, o legislador, precisa ter as armas à disposição para


legislar de modo efetivo. A referência a Maquiavel é menos metafórica do que
parece à primeira vista, pois Gramsci afirmava que o legislador não é apenas
quem “elabora diretrizes que deverão tornar-se normas de conduta para outros”.
É também aquele que “elabora os instrumentos por meio dos quais essas direti-
vas serão ‘impostas’ e sua aplicação será verificada” (Q 14, § 13, p. 1668).
Essa concepção ampliada a respeito do poder de legislar integrava uma
concepção orgânica ou integral do Estado, na qual a existência de uma “ativi-
dade legislativa” era localizada tanto no âmbito da sociedade política, o que é
bastante evidente, como naquele da sociedade civil. Essa dúplice localização
fazia com que a eficácia dessa atividade residisse na capacidade de mobilizar os
instrumentos de coerção tanto no âmbito do aparelho governativo, como no
âmbito dos aparelhos privados de hegemonia:

o poder legislativo máximo reside no pessoal estatal (funcionários eleitos e


de carreira), que tem à disposição as forças coercitivas legais do Estado. Mas
não se pode dizer que os dirigentes de organismos e organizações “privadas”
também não tenham a sua disposição sanções coercivas, até mesmo a pena de
morte. (Q 14, § 13, p. 1668)

Esse tema continuou a ser desenvolvido no § 11 do mesmo Quaderno,


muito embora sob outra rubrica (Argomenti di coltura). Discutia-se nessa nota
a capacidade que constituições têm de se adaptar a diversas conjunturas po-
líticas, particularmente àquelas que seriam desfavoráveis à classe dominante.
O modelo do autor dos Quaderni era a análise que Marx fez da Constituição
espanhola de 1812 (cf. mecw, v. 13, p. 424-433). Nessa perspectiva, afirmava
Gramsci, retomando a idéia da função pedagógica do Estado: “Pode-se dizer,
em geral, que as constituições são acima de tudo ‘textos educativos’ ideológi-
cos e que a Constituição ‘real’ está noutros documentos legislativos (mas espe-
cialmente, na relação efetiva das forças sociais no momento político-militar)”
(Q 14, § 11, p. 1666)

71
“Segue-se que todos os profetas armados vencem e que os desarmados se arruínam.” (Machia-
velli, 1971, p. 263.)
estado/sociedade civil 197

A verdade efetiva da Constituição encontra assim seu espelho na relação


de forças entre as classes sociais e, particularmente, na relação de forças sociais
que se manifesta no conflito aberto, o “momento político-militar”. Conceber o
direito como expressão dessas relações era, para Gramsci, um modo de combater
“a abstração mecanicista e o fatalismo determinista”. Tal concepção necessitava
valorizar as particularidades históricas e nacionais de cada país para ser real-
mente efetiva, bem como a capacidade legislativa (em um sentido ampliado)
e, portanto, coercitiva, que emana da sociedade civil. A relação existente entre
religião e política nos Estados Unidos era, nesse ponto, esclarecedora. Em uma
observação de grande atualidade, registrava Gramsci,

Nos Estados Unidos, legalmente e de fato, não falta a liberdade religiosa dentro
de certos limites, como recorda o processo contra o darwinismo, e se legalmente
(dentro de certos limites) não falta liberdade política, esta falta de fato pela pres-
são econômica e pela aberta violência privada. (idem, p. 1666. Grifos meus)

A força das palavras não deixa dúvida de que Gramsci reencontra agora
a coerção também na esfera da sociedade civil. A seqüência dessa nota permite
ainda esclarecer que essa violência privada é coetânea e coextensiva à violência
jurídico-estatal. Para o autor dos Quaderni, o exame crítico da organização judi-
ciária e policial era de grande importância para a compreensão da configuração
política dos Estados Unidos, pois revelava como essas organizações da sociedade
política “deixam impune e apóiam a violência privada voltada para impedir a
formação de outros partidos além do republicano e do democrático” (Idem, p.
1666-1667. Grifos meus).
Cabe fazer a seguinte pergunta: essa elaboração madura de Gramsci
que identifica a presença da coerção na sociedade civil e do consentimento na
sociedade política não cancela sua anterior distinção das especializações fun-
cionais de ambas as esferas? Ou seja, nesse novo enquadramento teórico faria
ainda sentido distinguir sociedade civil da sociedade política? O desenvolvi-
mento teórico dado por Gramsci à questão no Quaderno 14 não é contraditório
com aquele que encontrava sua sede no Quaderno 6, mas é certamente mais
sutil e sofisticado. Fazendo um uso mais literário do que literal dos conceitos é
possível afirmar que na sociedade civil o consenso é “hegemônico”, enquanto na
198 alvaro bianchi

sociedade política, é a coerção. Ou seja, os espaços institucionais de exercício das


funções de direção e dominação não são exclusivos. à luz desse desenvolvimento
teórico, torna-se difícil aceitar que Gramsci tivesse sido um teórico do consenso,
como muitos pretenderam.
estado/sociedade civil 199

Guerra de movimento/Guerra de posição

A compreensão da justa relação entre força e consenso é o que dá


força à teoria do Estado presente em Gramsci. Ela permite pensar a unidade
existente entre sociedade civil e sociedade política, a resistência do Estado
às crises do capitalismo, as formas da crise e a superação desses momentos
cruciais. Para Gramsci, a análise da política serve para justificar uma ativi-
dade prática, indicando aqueles pontos nos quais a força da vontade deve
concentrar suas energias, maximizando seus resultados. Sua teoria do Estado
era, portanto, não só uma teoria para explicar sua longevidade, mas também
uma teoria para explicar sua crise e as condições para a superação da forma
estatal presente. Era nessa perspectiva que se inseria o tratamento dado por
Gramsci a um conjunto de duplas conceituais de grande alcance estratégico:
guerra de movimento / guerra de posição; Oriente / Ocidente; revolução
permanente / hegemonia.
A analogia ente luta política e estratégia militar começou a ser desen-
volvida já no Primo Quaderno, como parte de uma discussão sobre a direção
política e militar no Risorgimento italiano. Nos §§ 117 e 118 seu autor tratava
da importância da direção política, e até mesmo seu predomínio, na organização
dos exércitos. Destacava Gramsci a propósito que, quanto maior o exército,
mais crescia a importância de subordinar a direção técnico-militar à direção
política (Q 1, § 117, p. 110). A deficiência da função dirigente implicava uma
deficiência técnico-militar (Q 1, § 118, p. 111).
Fica claro que já neste primeiro momento, Gramsci concebia de modo
unitário as funções técnico-militares e políticas, oque era fundamental para sua
elaboração a respeito das relações de forças político-militares. Essas relações eram
tratadas de modo mais abrangente em outras duas notas B presentes no mesmo
Quaderno, redigidas, provavelmente, entre fevereiro e março de 1930, período
de intensa produção intelectual por parte de seu autor (cf. Francioni, 1984,
p. 140). Nesses textos, Gramsci discutia, dentre outros temas, a utilização de
destacamentos assemelhados aos arditi, tropas de assalto utilizadas pelo exército
italiano durante a Primeira Guerra Mundial.72
Na primeira dessas notas, o § 133, o marxista sardo contestava a ten-
dência a generalizar a tática do “arditismo”. Argumentava que ela correspondia
não a uma forma ideal, e sim a uma situação na qual a) existia um exército
regular pouco eficaz e b) as massas se encontravam em um estado de passivi-
dade ou desmoralização e, por essa razão eram substituídas por destacamentos
especiais. O critério geral para tratar desse fenômeno era “que os paralelos
entre a arte militar e a política devem sempre ser estabelecidos cum grano salis,
isto é, apenas como estímulos ao pensamento e como termos simplificadores
ad absurdum” (Q 1, § 133, p. 120).
Na luta política, o elemento de disciplina e hierarquia não é sustentado
por sanções penais, e sim pelo convencimento. Destacamentos militares e grupos
políticos são, portanto, formas muito diferentes de organização e correspondem
a modos distintos de ação. O juízo de Gramsci era claro a respeito: a luta política
é mais complexa que a guerra. Nessa luta, “além da guerra de movimento e
da guerra de assédio ou de posição existem outras formas” (idem. Grifos meus).
Táticas diferentes podiam ser apropriadas para algumas classes e para outras
não, essa era a questão fundamental para o autor dos Quaderni (idem, p. 121).
A crítica era implacável: “na luta política não se pode macaquear os métodos
de luta das classes dominantes sem cair em fáceis emboscadas.” (Idem.) Mas a
crítica era dirigida às formas do arditismo e a sua generalização, e não à “guerra
de movimento”, que não era identificada com essas formas:

72
Após o fim da Primeira Guerra, movimentos de veteranos adotaram a denominação de arditi e
parte deles manteve relações com o fascismo. Inspirados obviamente nos movimentos precedentes,
na primavera de 1921 surgiram os Arditi del popolo, movimento armado constituído com o obje-
tivo de organizar a defesa contra os bandos fascistas. Embora muitos comunistas tivessem aderido
prontamente aos Arditi, a direção do pcd’i, então dirigido pela fração bordiguista, denunciou
o movimento por estar monopolizado por forças que não eram “estritamente revolucionárias” e
anunciou, em julho do mesmo ano, a criação de destacamentos exclusivamente formados por
comunistas. A posição de Gramsci a respeito, mais ponderada, pode ser vista nos artigos Contro
il terrore e Gli ‘Arditi del popolo, publicados no Ordine Nuovo (SF, p. 287-289 e 541-542. Cf. tb.
Hajek, 1984, p. 43-44).
guerra de movimento/guerra de oposição 201

A tática dos arditi não pode ter, então, para certas classes a mesma importância
que para outras; para certas classes é necessária, porque própria, a guerra de mo-
vimento e de manobra. Que no caso da luta política pode combinar um útil e
até mesmo indispensável uso da tática dos arditi. Mas se fixar no modelo militar
é uma estupidez: a política deve, também aqui, ser superior à parte militar e ape-
nas a política cria a possibilidade da manobra e do movimento. (idem.)

A necessidade de distinguir as formas de luta era retomada no § 134,


intitulado “Lotta politica e guerra militare” (Q 1, § 124, p. 122-123). Na guerra
militar, o fim estratégico é a destruição do exército inimigo, a ocupação de seu
território, e a paz seria a decorrência desse fim. Para a guerra chegar a seu térmi-
no sequer seria necessário que o fim estratégico fosse atingido de fato, bastando
apenas que não existissem dúvidas de que ele poderia ser atingido para que a
paz pudesse ser estabelecida sem a necessária destruição do inimigo e ocupação
de seu território.
A luta política, afirmava Gramsci, era muito mais complexa, pois não
se encerraria com a destruição do inimigo. Ela se assemelharia, desse modo,
à “guerra colonial”, na qual o exército vitorioso se propõe a ocupar de modo
estável o território conquistado. Nesse parágrafo, Gramsci apontava que os dife-
rentes momentos da “luta política”, assim como os da “guerra militar”, exigiam
diferentes formas de luta, táticas diversas que deveriam ser empregadas com
muita ponderação. Esses diferentes momentos poderiam se suceder no tempo
ou coexistir e, desse modo, as diversas formas de luta se sucederiam ou coexis-
tiriam dependendo do caso. Gramsci analisava essas combinações a partir do
exemplo da luta anticolonial na Índia:

Assim, a luta política da Índia contra os ingleses (e, em uma certa medida, a da
Alemanha contra a França ou da Hungria contra a Pequena Entente) conhece
três formas de guerra: de movimento, de posição e subterrânea. A resistência pas-
siva de Ghandi é uma guerra de posição que se torna guerra de movimento em
certos momentos e guerra subterrânea em outros: o boicote é guerra de posição,
as greves são guerra de movimento, a preparação clandestina das armas e dos
elementos combativos de assalto é guerra subterrânea. (Q 1, § 134, p. 122.)
202 alvaro bianchi

Gramsci não descartava a utilização de destacamentos assemelhados


aos arditi. Mas a condição para a aceitação do “arditismo” era seu emprego
com muita ponderação, para evitar uma derrota prematura. O marxista sardo
distinguia ainda entre o arditismo moderno, representado pelo movimento
anticolonial indiano e pelas guerrilhas de partigiani, formas de luta de mi-
norias contra maiorias bem organizadas.73 Essa distinção tinha por finalidade
destacar o papel positivo que um arditismo moderno poderia cumprir na luta
política como parte de um conjunto equilibrado de diversas táticas. Segundo
o marxista sardo:

Nestas formas de luta mista, com caráter militar fundamental e caráter polí-
tico preponderante (mas toda luta política tem sempre um substrato militar),
o emprego dos arditi demanda um desenvolvimento tático original para cuja
concepção a experiência da guerra pode fornecer apenas um estímulo, não um
modelo. (Idem, p. 123)

A elaboração de um “desenvolvimento tático original” foi aprofundada


em um texto A do Quaderno 7, redigido provavelmente em novembro de 1930
e transcrito como texto C nas notas sobre Maquiavel do Quaderno 13, prova-
velmente entre maio de 1932 e o início e 1934 (cf. Francioni, 1984, p. 142 e
144). O contexto da redação da primeira nota é importante. Ela se faz presente
sob a rubrica Struttura e superestruttura no interior dos Appunti di Filosofia II
e remete explicitamente aos Appunti di filosofia I, presentes no Quaderno 4,
particularmente aos §§ 12, 38 e 45, apresentados com a mesma rubrica:

Estrutura e superestrutura (ver notas escritas na ‘Primeira série’): Parece-me que


se possa apresentar a este propósito o confronto com a técnica de guerra assim
como foi transformada na última guerra com a passagem da guerra de manobra
à guerra de posição. Recordar o opúsculo de Rosa [Luxemburgo] (...), cuja teoria
era baseada na experiência histórica de 1905 (por outro lado, ao que parece, sem

73
Gramsci citava como exemplos dessas guerrilhas de partigiani os comitagi macedônios e a resis-
tência irlandesa. Pelo menos este último caso estava muito longe de poder ser caracterizado como
movimento de minorias.
guerra de movimento/guerra de oposição 203

estudá-la com exatidão, porque eram desprezados os elementos voluntários e


organizativos muito mais difundidos do que pudesse crer Rosa, que, em virtude
de certo preconceito “economicista” e espontaneísta, desprezava-os inconscien-
temente); esse opúsculo me parece o mais significativo da teoria da guerra de
manobra aplicada à ciência histórica e à arte da política. O elemento econômico
imediato (crises, etc.) é considerado como a artilharia de campo na guerra, cuja
finalidade era abrir a brecha na defesa inimiga, suficiente para que as tropas
irrompessem e obtivessem um sucesso estratégico definitivo, ou pelo menos na
linha necessária para o sucesso definitivo. (Q 7, § 10, p. 858-859)

O programa de pesquisa no qual a nota do Quaderno 7 se inseria estava


voltado à renovação do materialismo histórico e se fazia presente já na nota que
abria o Primo Quaderno, sob a forma de uma investigação sobre a “teoria da
história e da historiografia”. A metáfora militar fornecia, desse modo, a ocasião
para discutir, em primeiro lugar, a relação existente entre crise econômica e crise
política, entre uma crise que se manifesta no âmbito da estrutura econômica da
sociedade e outra que se apresenta na esfera das superestruturas políticas. Era a
crítica ao economicismo que tinha seu lugar neste momento do texto. O des-
dobramento político da reflexão metodológica de Gramsci tornava-se evidente
quando a crítica ao economicismo era explicitamente relacionada à crítica ao
espontaneísmo do qual Rosa Luxemburgo seria portadora.
O conteúdo propriamente político do Quaderno 7 aparece ao leitor
no sutil deslocamento de problemática que se verifica no interior desse § 10.
Assim, a relação estrutura-superestrutura cedia lugar a um desenvolvimento da
metáfora militar a partir da análise das frentes oriental e ocidental da Rússia du-
rante a Primeira Guerra Mundial. Nesse deslocamento, a reflexão sobre a teoria
da história e da historiografia deixava de ser o vetor que dava sentido à pesquisa.
Esse passava a ser um vetor propriamente político: a investigação sobre as formas
da luta proletária no Ocidente capitalista. Aqui as diferenças entre a primeira e
a segunda redação são importantes e merecem ser destacadas:

Na realidade o exército russo tentou a guerra de manobra e de penetração, espe-


cialmente no setor austríaco (mas também na Prússia, nos lagos Masuri) e teve
brilhantes sucessos parciais, mas efêmeros. A guerra de posição não é de fato
204 alvaro bianchi

constituída apenas das trincheiras propriamente ditas, mas de todo o sistema


organizativo e industrial do território que está detrás do exército alinhado, sendo
dada pelo tiro rápido dos canhões, das metralhadoras, dos fuzis e pela própria
concentração (bem como pela própria abundância, que permite substituir rapi-
damente o material perdido depois de uma penetração). (Q 7, § 10, p. 859)

Na realidade o exército russo tentou a guerra de manobra e de penetração, espe-


cialmente no setor austríaco (mas também na Prússia ocidental) teve brilhantes
sucessos, mas efêmeros. A verdade é que não se pode escolher a forma de guerra que
se quer, a menos que se tenha imediatamente uma superioridade esmagadora sobre
o inimigo; sabe-se quantas perdas custou a obstinação dos Estados-maiores em não
querer reconhecer que a guerra de posição era ‘imposta’ pela relação geral de forças em
presença. A guerra de posição não é de fato constituída apenas pelas trincheiras
propriamente ditas, mas todo o sistema organizativo e industrial do território
que está detrás do exército alinhado, sendo imposta pelo tiro rápido dos canhões,
das metralhadoras, dos mosquetões e pela própria concentração de armas em um
determinado ponto, bem como pela própria abundância do fornecimento que
permite substituir rapidamente o material perdido depois de uma penetração e
de um recuo. (Q 13, § 24, p. 1614-1615. Grifos meus)

A análise das frentes ocidental e oriental tem um sentido apenas me-


tafórico e não pode ser interpretada para além dessa condição. Nas passagens
em que Gramsci parece se ater à questão militar, revela um conhecimento in-
suficiente da questão que, de qualquer modo, parece ter sido contraditada pelo
desenvolvimento da técnica militar verificado já na Segunda Guerra Mundial.74
De todo modo, Gramsci parece ser cuidadoso ao contrariar afirmações comuns
à época que davam por cancelada a validade da guerra de movimento.
Esses cuidados aparecem de modo mais nítido na segunda redação des-
sa nota, presente no já citado Quaderno 13, na qual Gramsci introduziu uma

74
Gramsci parece, entretanto, ter estudado com afinco a questão militar, muito embora seu
conhecimento, ao contrário de Trotsky, fosse apenas teórico. Levantamento preliminar realizado
por Leandro Galastri, com base nas obras citadas nos Quaderni, encontrou referências a cerca de
cinqüenta obras, somando livros, opúsculos e artigos.
guerra de movimento/guerra de oposição 205

importante modificação, destacando que a modalidade do conflito militar não


era uma opção das forças em presença, e sim uma imposição decorrente da relação
de forças existente. Esse alerta de Gramsci, lido juntamente com aquele presente
no Primo Quaderno no qual censurava o hábito de imitar (“macaquear”) os mé-
todos de luta das classes dominantes, constitui um antídoto contra toda leitura
reducionista das noções guerra de movimento/guerra de posição.
A guerra de posição não era um programa positivo de ação, e sim uma
exigência objetiva da situação na qual se encontravam as forças sociais e políticas.
Se a guerra de posição era imposta pela relação geral de forças e se só seria pos-
sível impor uma forma de luta quando se tivesse uma superioridade esmagadora
sobre o inimigo, então a guerra de posição era a forma de luta conveniente às
classes dominantes. A ação política das classes subalternas, portanto, deveria ter,
como objetivo a desarticulação da guerra de posição das classes dominantes.
O desenvolvimento da analogia conduzia Gramsci a novo deslocamento,
por meio do qual era revelada a seguir a intenção do autor. Depois de apresentar as
conseqüências da mudança de paradigma militar para a “arte da guerra”, Gramsci
desenvolvia a analogia na “arte e ciência da política”, de modo a definir as modali-
dades de luta política preponderantes, mas não exclusivas, dos “Estados mais avan-
çados”. Que a “guerra de posição” pudesse ser preponderante não anulava a “guerra
de movimento” nem no campo estritamente militar, nem no terreno propriamente
político, como o autor dos Quaderni deixava claro na passagem abaixo:

Com isso não se quer dizer que a tática de assalto e de derrubada e a guerra ma-
nobrada devam ser consideradas como já desaparecidas do estudo da arte militar:
seria um grande erro. Mas essas, nas guerras entre os Estados mais avançados do
ponto de vista industrial e civil, devem ser consideradas reduzidas mais a funções
táticas que a funções estratégicas, assim como era a guerra de assédio no período
precedente da história militar. A mesma redução deve ocorrer na arte e na ciên-
cia da política, pelo menos no que diz respeito aos Estados mais avançados, nos
quais a “sociedade civil” tornou-se uma estrutura muito complexa e resistente às
“irrupções” catastróficas do elemento econômico imediato (crises, depressões,
etc.): as superestruturas da sociedade civil são como o sistema de trincheiras na
guerra moderna. (Q 7, § 10, p. 859-860.)
206 alvaro bianchi

Os próprios técnicos militares que agora se fixaram na guerra de posição, como


antes se haviam fixado na guerra de manobra, certamente não sustentam que o
tipo anterior deva ser considerado como cancelado pela ciência; mas, nas guerras
entre os Estados mais avançados do ponto de vista industrial e civil, a guerra de
manobra deve ser considerada como reduzida a funções táticas mais que estra-
tégicas, deve ser considerada na mesma posição na qual estava anteriormente
a guerra de assédio em relação à guerra de manobra. A mesma redução deve
ocorrer na arte e na ciência política, pelo menos no que diz respeito aos Estados
mais avançados, nos quais a “sociedade civil” tornou-se uma estrutura muito
complexa e resistente às “irrupções” catastróficas do elemento econômico ime-
diato (crises, depressões, etc.); as superestruturas da sociedade civil são como o
sistema de trincheiras na guerra moderna. (Q 13, § 24, p. 1615.)

A diferença que é possível notar entre as duas versões diz respeito a


uma maior ênfase na necessidade de evitar o cancelamento da guerra de mo-
vimento do horizonte estratégico. No parágrafo do Quaderno 13, o protesto
contra esse cancelamento ganhava tons mais fortes, já que não dizia respeito
apenas à supressão da “guerra manobrada” do “estudo da arte militar”, e sim ao
cancelamento pela ciência de uma forma de luta que ainda tinha lugar.
Já na primeira versão do texto as noções de “guerra de movimento” e
“guerra de posição” estavam fortemente relacionados com sua concepção integral
do Estado. Essa relação foi retomada no Quaderno 6, em uma passagem que dis-
cutia a possibilidade da “guerra garibaldina”, ou seja, a utilização da tática de guer-
rilhas “seja na política como na arte militar”.75 Gramsci recusava a validade dessa
tática, afirmando que ela expressava uma perspectiva individualista e localista que
“leva a subestimar o adversário e sua organização de luta”. Segundo Gramsci, na
política esse erro era decorrente “de uma compreensão inexata do que é o Estado
(no significado integral: ditadura + hegemonia), na guerra ocorre um erro similar
transportado ao campo inimigo (incompreensão não apenas do próprio Estado,
mas do Estado inimigo)” (Q 6, § 155, p. 155-157).

75
Segundo Francioni (1984, p. 142 e 144), a redação do § 10 do Quaderno 7 é de novembro de
1930 e antecede a do § 155 do Quaderno 10, datado em outubro de 1931.
guerra de movimento/guerra de oposição 207

O equívoco denunciado por Gramsci não dizia respeito apenas ao des-


conhecimento da função hegemônica desempenhada pelas classes dominantes,
mas também à função governativa-ditatorial de seu poder político. Por essa ra-
zão, assinalava que a incompreensão dizia respeito ao Estado em seu “significado
integral”. A tática adequada consistia, pois, em uma articulação em diferentes
graus das diversas modalidades de confronto. Mas essa articulação não é um
jogo-de-soma-zero. Uma concepção algébrica do Estado que tende a considerar
mais sociedade civil igual a menos sociedade política tem como corolário uma
concepção algébrica das formas de luta das classes subalternas, na qual mais
“guerra de posição” equivale a menos “guerra de movimento”. A solução algé-
brica é uma solução simplificadora e está muito longe dos cuidados constantes
com os quais eram tratadas as relações entre essas diferentes formas de luta. De
fato, Gramsci alertou no mesmo § 10 do Quaderno 7 contra o cancelamento da
“guerra de movimento”.
É preciso destacar, entretanto, que o próprio Gramsci em alguns mo-
mentos deu a entender que a passagem de uma forma de luta a outra implicaria
um cancelamento. Assim, no § 138 do Quaderno 6, redigido, provavelmente em
agosto de 1931 (cf. Francioni, 1984, p. 142) e intitulado “Passato e presente. Pas-
saggio dalla guerra manovrata (e dall’attacco frontale) alla guerra di posizione anche
nel campo politico”, essa passagem de uma forma de luta a outra era discutida
em termos que parecem indicar a anulação de uma forma pela outra. Depois
de advertir que a relação entre a ciência política e a arte da guerra era apenas
indireta, ressaltando seu caráter analógico,76 Gramsci escreveu:

A guerra de posição demanda enormes sacrifícios de massas extraordinárias da


população; por isso é necessária uma concentração inaudita da hegemonia e,
portanto, uma forma de governo mais “intervencionista”, que mais abertamente
tome a ofensiva contra os opositores e organize permanentemente a “impossi-
bilidade” de desorganização interna: controles de todo tipo, políticos, adminis-

76
Destacar essa relação indireta e metafórica é importante, pois a metáfora tem uma relevância
analítica muito superior na esfera da política que no campo militar. Se em vez de uma analogia
fosse construída uma equivalência entre os dois campos, a metáfora não se sustentaria.
208 alvaro bianchi

trativos, etc. reforço das “posições” hegemônicas do grupo dominante, etc. Tudo
isso indica que se entrou em uma fase culminante da situação político-histórica,
porque na política a “guerra de posição”, uma vez vencida, é definitivamente
decisiva. Ou seja, na política, subsiste a guerra de movimento enquanto se trata
de conquistar posições não decisivas e quando não são mobilizáveis todos os
recursos da hegemonia e do Estado, mas quando, por uma razão ou outra es-
tas posições perderam seu próprio valor e só aquelas decisivas têm importância,
então se passa à guerra de assédio, tensa, difícil, na qual se exigem qualidades
excepcionais de paciência e de espírito inventivo. (Q 6, § 138, p. 802)

O argumento apresentado nesse parágrafo é extremamente comple-


xo, mas não recebeu uma segunda versão no Quaderno 13, como seria de
se esperar.77 Desse modo, permanece sem um desenvolvimento posterior que
pudesse esclarecer melhor seu conteúdo. A analogia é desenvolvida nele em
um grau de abstração que a torna ambivalente, dificultando uma compreensão
inequívoca.
Nesse texto, “guerra de movimento” e “guerra de posição” não parecem
se restringir à conquista do poder, mas diriam respeito tanto àquilo que antecede
esse momento – a luta pelo poder político –, quanto àquilo que lhe sucede – a
construção de uma nova ordem. Tendo em vista o processo de construção do
socialismo, a desarticulação do próprio Estado capitalista – concebido em seu
sentido estrito como o conjunto de aparelhos repressivos (sociedade política)
– por meio do “ataque frontal” poderia ser concebida como uma posição “não
decisiva”, muito embora imprescindível. A conquista do Estado seria, assim, o
começo do fim, mas não o fim.
Ainda com respeito a esse parágrafo, seria possível interpretar que uma
vez conquistado o poder político se tornaria necessário mobilizar “todos os re-
cursos da hegemonia e do Estado” com vistas à construção de uma nova ordem.
Nessa nova fase, na qual não se trata apenas de negar a antiga ordem, mas de
construir uma nova ordem e levar a cabo uma plena reforma intelectual e moral,

77
As razões para tanto estão longe de serem claras. Dos 211 parágrafos que compõem o Quaderno
6, apenas 25 foram transcritos em notas C, tendo permanecido 186 parágrafos, inclusive os §§ 138
e 155, que tratam do tema em questão, como textos B.
guerra de movimento/guerra de oposição 209

a “guerra de posição” na sociedade civil ocuparia um papel preponderante. Fica


claro que esta “‘guerra de posição’, uma vez vencida é definitivamente decisiva”,
como afirmava Gramsci.
Guerra de movimento e guerra de posição encontrar-se-íam assim em
um nexo indissociável e diriam respeito a diferentes momentos da luta pela
afirmação de uma nova ordem política e social. O desenvolvimento dado por
Gramsci à questão indica que esse nexo é análogo àquele que se estabelece no in-
terior de seu conceito de Estado integral. Os dois planos conceituais encontram-
se, desse modo, sobrepostos, e é possível afirmar que a guerra de movimento
predomina na luta contra a sociedade política e a guerra de posição afirma sua
supremacia na luta na sociedade civil.

Oriente

Para um maior esclarecimento do tema precendente é importante reto-


mar uma nota B (§ 16) presente no Quaderno 7. Embora localizada no interior
dos Appunti di Filosofia II, essa nota destoa claramente do projeto que esses
apontamentos delimitavam. Ao contrário do § 10 desse mesmo Quaderno, que
enquadrava formalmente a questão no interior de uma pesquisa sobre o mate-
rialismo histórico, a impostação do § 16 era assumidamente política, a começar
pelo seu título: Guerra di posizione e guerra manovrata o frontale. Foi nesse novo
parágrafo que à dupla guerra de movimento / guerra de posição o marxista sardo
sobrepôs outra dupla conceitual: Oriente / Ocidente.
A sobreposição foi empreendida de modo cauteloso, fazendo referên-
cia à teoria de Leon Trotsky. Propunha-se o autor dos Quaderni a investigar
se essa teoria não era o reflexo político da teoria da guerra de movimento e o
reflexo, em última instância, das particularidades de uma formação social na
“qual os quadros da vida nacional são embrionários e frouxos e não se podem
tornar ‘trincheiras ou fortalezas’” (Q 7, § 16, p. 865). A distinção entre Orien-
te e Ocidente era apresentada de modo lapidar em uma conhecida passagem
ao final do mesmo parágrafo:
210 alvaro bianchi

No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no


Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma justa relação e, ao oscilar
o Estado, podia-se discernir imediatamente uma estrutura robusta da sociedade
civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual estava uma
robusta cadeia de fortalezas e casamatas; em medida diversa de Estado para Es-
tado, é claro, mas isso exatamente exigia um reconhecimento acurado do caráter
nacional. (Q 7, § 16, p. 866)

A presença de Trotsky no início do parágrafo não deixa de ser paradoxal,


por várias razões. Em primeiro lugar, porque Trotsky foi um acérrimo opositor
da absolutização da guerra de movimento no campo da estratégia militar, a
qual identificava à teoria política da ofensiva, defendida pela extrema-esquerda
no 3º Congresso da Internacional Comunista (cf. Anderson, 2002, p. 93-95).
Em segundo, porque, como o próprio Gramsci reconheceu no Quaderno 13 a
distinção entre Oriente e Ocidente havia sido colocada pela primeira vez por
Trotsky em seu discurso a respeito da Nova Política Econômica na Rússia e as
perspectivas da revolução mundial, durante o 4º Congresso da Internacional
Comunista, em 1922.78 Na ocasião, o dirigente bolchevique afirmou a diferença
existente entre a Rússia e os demais países. Enquanto na Rússia havia sido possí-
vel conquistar o poder fácil e rapidamente, era pouco provável que isso ocorresse
na Europa ocidental, onde o proletariado encontraria pela frente “não apenas a
vanguarda de combate da contra-revolução, mas também suas enormes reservas”
(Trotsky, 1974, v. 2, p. 221).

78
“Uma tentativa de iniciar uma revisão dos métodos táticos deveria ter sido aquela exposta por
L Davidovitch Bronstein na quarta reunião, quando fez um confronto entre a frente oriental e a
ocidental: enquanto aquela caiu imediatamente, mas foi seguida por intensas lutas, nesta última a
luta se verificaria ‘antes’. Ou seja, tratar-se-ia de saber se a sociedade civil resiste antes ou depois do
assalto, onde este ocorre, etc. A questão, entretanto, foi exposta apenas em forma literária brilhan-
te, mas sem indicações de caráter prático.” (Q 13, § 24, p. 1616). Essa passagem não se encontra
na primeira versão da nota (Q 7, § 10) e sua inclusão denota o caráter contraditório da relação que
Gramsci mantinha com o pensamento de Trotsky. Rosengarten (1984-1985, p. 78-80) considera
o Relatório de Trotsky “uma antecipação das idéias referentes à hegemonia proletária no Ocidente
que Gramsci desenvolveu plenamente nos Quaderni del carcere”.
guerra de movimento/guerra de oposição 211

A distinção entre Oriente e Ocidente estava em discussão no interior


da Internacional Comunista e pode ser encontrada no livro de Lênin A doença
infantil do “esquerdismo” no comunismo. Discutindo com os abstencionistas a
respeito da participação na atividade parlamentar, o líder comunista apresen-
tava as razões pelas quais a distinção entre as formas políticas era importante.
Segundo Lênin, “na situação concreta e extraordinariamente original do ponto
de vista histórico de 1917, foi fácil à Rússia começar a revolução socialista,
mas continuá-la e levá-la a cabo será mais difícil na Rússia do que aos países
europeus”. Por outro lado, “é mais difícil para a Europa Ocidental do que para
nós [na Rússia] começar a revolução socialista” (lcw, v. 31, p. 64).
As dificuldades na Europa ocidental poderiam ser encontradas, segun-
do Lênin, na existência de sólidas instituições parlamentares e nos “preconceitos
democrático-burgueses e parlamentares” que essas instituições alimentavam nos
setores desorganizados do movimento operário e, principalmente, entre os peque-
nos camponeses (idem). Tais preconceitos constituiriam um obstáculo político a
ser ultrapassado. Em A doença infantil do “esquerdismo” no comunismo, o problema
fundamental abordado era justamente a determinação das formas que a luta dos
trabalhadores deveria assumir para superar esses obstáculos.
A distinção entre Oriente e Ocidente não foi, portanto, uma contribui-
ção original de Gramsci e, na verdade, parece ter sido corrente na Internacional
comunista após 1922. O próprio Gramsci fez essa distinção em um texto enca-
minhado ao comitê dirigente do pcd’i em agosto de 1926, redigido em termos
muito parecidos àqueles utilizados por Trotsky. Nele, o marxista sardo escrevia:

nos países de capitalismo avançado, a classe dominante possui reservas políticas e


organizativas que não possuía, por exemplo, na Rússia, isto significa também que
crises econômicas gravíssimas não têm imediata repercussão no campo político. A
política está sempre em atraso e em grande atraso sobre a economia. O aparelho
estatal é muito mais resistente do que se acredita freqüentemente e, nos momentos
de crise, conseguem, organizar forças fiéis ao regime em uma medida maior que a
profundidade da crise poderia dar a supor. Isso se refere especialmente aos Estados
capitalistas mais importantes. Nos Estados periféricos como a Itália, Polônia, Espa-
nha e Portugal, as forças estatais são menos eficientes. (cpc, p. 121-122.)
212 alvaro bianchi

Três temas apenas apontados nessa passagem constituirão pontos no-


dais da elaboração gramsciana na prisão: a) a distinção Oriente/Ocidente, b)
uma leitura dialética das relações política/economia e c) a formulação de uma
teoria da revolução capaz de dar conta dos desafios postos pelas duas questões
precedentes. Gramsci não trabalhou sobre essas questões partindo de um ima-
ginário ponto zero. Ele o fez a partir da tradição política e teórica que emergiu
nacionalmente na Revolução Russa e se mundializou nos primeiros anos da
Internacional Comunista, tradição à qual Gramsci procurou incorporar a rica
tradição cultural italiana. No que diz respeito à relação Oriente/Ocidente, o
aporte do autor dos Quaderni está em um maior detalhamento e elaboração de
noções que não se encontravam senão em estado rudimentar.
Essa elaboração não solucionou todos os problemas inerentes à metáfo-
ra, e o próprio Gramsci era consciente de suas dificuldades. As noções de Orien-
te e Ocidente, escrevia, poderiam ser consideradas “objetivamente reais’, muito
embora não deixem de ser “uma ‘construção convencional’, isto é, ‘histórica’”
(Q 7, § 25, p. 874). As relações Norte-Sul e Leste-Oeste seriam relações reais,
inimagináveis sem o desenvolvimento da civilização. Como noções espaciais,
qualquer ponto poderia estar simultaneamente ao Leste e ao Oeste de outros
pontos. Mas a afirmação de um Oriente ou um Ocidente deixava de ser uma
questão geográfica e passava a ser uma questão histórica quando se afirmava que
o Japão está no Oriente e a Califórnia no Ocidente.
Como noções históricas, Oriente e Ocidente não são construções do
homem em geral, segundo Gramsci, “mas das classes cultas européias, que por
meio de sua hegemonia cultural fizeram com que todo o mundo as aceitasse.”
(Idem.) Deixaram de ser, nesse sentido, noções espaciais e passaram a significar
“relações entre complexos de civilização”, designando alternadamente “árabe”,
“muçulmano”, “asiático”, etc (idem). Nascido no Oriente italiano, o Mezzogior-
no, e muito atento à quistione meridionale, Gramsci estava em guarda contra
uma apropriação etnocêntrica dessas noções espaciais. Embora as utilizasse, isso
não quer dizer que aceitasse o conteúdo histórico que elas carregavam.
Certamente, as noções que aqui estão sendo tratadas dificilmente
podem se livrar completamente de uma conotação espacial, obscurecendo a
dimensão temporal dessas situações histórico-políticas. Elas podem encobrir a
guerra de movimento/guerra de oposição 213

discordância dos tempos, reduzindo-a a uma distância geográfica. A esse res-


peito, tem razão Perry Anderson, quando assinala que “os termos Leste e Oeste
pressupõem que as formações sociais de cada lado existem na mesma tempo-
ralidade e podem por isso ser opostas uma à outra” (2002, p. 68). Depois de
ter conduzido Gramsci a um suposto “marxismo ocidental”, Anderson (2004,
p. 45-67) não era a pessoa mais indicada para questionar esses conceitos (ver a
respeito a crítica de Losurdo, 1997, p. 241-253). Mas seu alerta é pertinente
porque, apesar de Gramsci, muitos de seus leitores consideraram esses termos
como opostos entre si.
Os conceitos de Oriente e Ocidente, guerra de movimento e guerra de
posição tinham para Gramsci um valor metodológico, na medida em que por
meio deles procurava distinguir diferentes realidades nacionais, bem como dife-
rentes etapas da luta de classes. A utilização dos conceitos de guerra de posição e
guerra de movimento para descrever diferentes momentos das relações de forças no
contexto europeu apareceu em estado puro no Quaderno 10. Segundo Gramsci:

na Europa, de 1789 a 1870, ocorre uma guerra de movimento (política) na revo-


lução francesa, e uma longa guerra de posição de 1815 a 1870; na época atual, a
guerra de movimento ocorre politicamente de março de 1917 a março de 1921 e
é seguida por uma guerra de posição cujo representante, além de prático (para a
Itália), ideológico para a Europa, é o fascismo. (Q 10/I, § 9, p. 1229)79

Nesse parágrafo, a guerra de movimento coincidia com um período de


ofensiva do movimento operário, que teve início com a Revolução Russa e se
encerrou com a Ação de Março de 1921 na Alemanha. A partir de então, teve
início, segundo o autor da nota, um período defensivo caracterizado pela guerra
de posição e representado na Itália pela ascensão do fascismo. A utilização da
analogia militar para designar a passagem de um momento ofensivo da luta
para outro defensivo não era completamente compatível com o uso da metáfora
geográfica. Uma densa sociedade civil, com seus partidos e sindicatos, obvia-
mente não teria desaparecido ou surgido no curso de um mês ou mesmo de um

79
Essa passagem, redigida entre abril e maio de 1932, não se encontrava no respectivo texto A (Q
8 § 236, p. 1088-1089).
214 alvaro bianchi

ano. Por essa razão, se a guerra de posição fosse exclusivamente uma exigência
decorrente do adensamento da sociedade civil não haveria sentido em periodizar
desse modo a passagem de uma forma a outra.
O problema já estava posto nos textos de Lênin e Trotsky, nos quais
uma forte retórica às vezes simplificava excessivamente questões complexas. A
relação inversa entre a revolução socialista e a construção do socialismo que
caracterizavam Oriente e Ocidente era, no discurso de Lênin e, principalmente,
de Trotsky a conseqüência de um movimento desigual (e combinado) de uni-
versalização da economia e da política do capitalismo. Mas essa relação inversa
não poderia ser compreendida de modo absoluto, justamente devido a esse
desenvolvimento desigual e combinado. A revolução socialista na Rússia não
acelerou o tempo da revolução na Alemanha, desarticulando alguns (mas não
todos) obstáculos existentes? E uma revolução na Alemanha não tornaria muito
mais rápida a construção do socialismo na Rússia soviética?
São grandes as dificuldades que se verificam na passagem de uma
leitura sincrônica que valoriza as distinções entre as sociedades “ocidentais” e
“orientais” para uma leitura diacrônica, que valoriza os diferentes momentos
da luta de classes. Luciano Gruppi, por exemplo, procurou separar essas duas
dimensões na definição das noções de guerra de movimento e guerra de posição,
argumentando rapidamente que na dimensão diacrônica esses conceitos “que-
rem indicar fases diversas do decurso histórico e a passagem de abalos rápidos
da estruturação classista e política da sociedade para momentos de estabilidade
relativa.” (2000, p. 138.)
Gruppi, afirma, entretanto, que esse não seria o desenvolvimento mais
profícuo e aprofundado que Gramsci daria a essas noções. O significado mais
rico dessas noções, segundo o comentador, ocorreria quando essas noções não
indicassem “a passagem da ofensiva à defensiva e vice-versa, mas duas estratégias
substancialmente diversas, relativas a duas situações históricas profundamente
diferentes.” (Idem, p. 142.) De modo similar procede Carlos Nelson Coutinho
que procura articular as dimensões sincrônicas e diacrônica do conceito. Para
tal, afirma que a diferença diacrônica ocorre entre “períodos marcados pela de-
bilidade da organização de massas” e períodos “de mais intensa socialização da
política”. Nos primeiros prevaleceria “a ‘guerra de movimento’, o choque frontal
guerra de movimento/guerra de oposição 215

com o Estado-coerção”, enquanto que no segundo teria lugar “a conquista pau-


latina de posições” (Coutinho, 1999, p. 149.)
Desenvolvendo o argumento, Coutinho afirma que a “guerra de mo-
vimento” seria aplicável “não só aos Estados absolutistas e despóticos de tipo
‘oriental’, mas também aos estados liberais elitistas dos dois primeiros terços
do século XIX, ao passo que a ‘guerra de posição’ seria válida para os Estados
democráticos modernos.” (Idem.) Deixando de lado que não faria o menor sen-
tido enfrentar o Estado-coerção em um período marcado pela “debilidade da
organização de massas”, permanece a questão de que força ou a fraqueza dessa
organização é sempre o resultado de uma relação de forças e não uma conseqü-
ência mecânica de uma forma estatal.
A interpretação de Coutinho reduzia a dimensão diacrônica à sincrô-
nica. Mas nesse caso, que sentido teria a periodização de Gramsci? Porque a
“guerra de posição” seria forma predominante na Europa após 1921 e não antes?
E por que o fascismo seria expressão ideológica e prática da guerra de posição?
Coincidiria a ascensão e consolidação do fascismo na Itália e de governos reacio-
nários ou fascistizantes em outros países da Europa com um período de “mais
intensa socialização da política”? Não haviam Gramsci e Togliatti definido o fas-
cismo como um “movimento de reação armada que tem como meta desagregar
e desorganizar a classe trabalhadora a fim de imobilizá-la” (CPC, p. 495)?
A solução proposta por Coutinho esta construída com vistas à afirma-
ção da guerra de posição como estratégia exclusiva no Ocidente, nos “Estados
democráticos modernos”. Conceber uma relação de identidade entre o aden-
samento da sociedade civil e o aumento da participação política só é possível
quando se perde de vista o caráter conflitivo da própria sociedade civil. Uma
sociedade civil mais densa e complexa pode ser coetânea de um processo de
expansão da “socialização da participação política”, mas uma sociedade civil
burguesa mais densa e complexa pode, também, significar (e freqüentemente
significa) uma expansão dos aparelhos privados de controle e passivação das
classes subalternas. Não havia, portanto, qualquer positividade inerente à noção
de Ocidente tal qual utilizada por Gramsci.
Nesse sentido argumenta Del Roio, para quem Gramsci escreve enfren-
tando-se com “o Ocidente inteiro e com a dualidade Ociedente/Oriente gerada
216 alvaro bianchi

pelo seu domínio” (1998, p. 117). A noção de Ocidente utilizada nos Quaderni,
não indicava desse modo um modelo, um programa ou um ideal. Ela apenas
tinha a finalidade de expressar uma situação histórico-política: a existência de
uma sociedade civil mais densa e, contraditoriamente, de maiores obstáculos à
revolução socialista. Articulados com os conceitos de guerra de movimento e
guerra de posição, os conceitos de Oriente e Ocidente ganham significado mais
rico. Somente nessa articulação torna-se possível à pesquisa reconhecer a distin-
ção necessária entre o tempo das formas estatais e o tempo da luta de classes.

Trotsky

A reflexão a respeito de “um desenvolvimento tático original” tor-


nava-se mais importante para Gramsci à medida que tomava conhecimento
das reviravoltas na Internacional Comunista e dos dilemas da construção do
socialismo na União Soviética, resultados tanto do giro sectário consolidado
pelo 10º Plenum do Comitê Executivo da IC, realizado em 1929, como da
consolidação da burocracia stalinista no poder soviético. Tais processos re-
percutiam de modo intenso no interior do PCd’I e haviam estimulado uma
linha sectária na luta contra o fascismo e a recusa à defesa da convocação de
uma Assembléia Constituinte.
As notas redigidas a partir de meados de 1930, a respeito da guerra
de movimento e da guerra de posição não deixavam de expressar, embora
em linguagem muito cifrada, as preocupações de Gramsci a respeito desses
problemas da estratégia e tática do movimento comunista internacional.
Nessa reflexão, o diálogo imaginado com os dirigentes bolcheviques Lênin
e Trotsky assumia grande importância. A elaboração política a respeito da
“guerra de posição” colocava-se em sentido contrário à estratégia staliniana
do “terceiro período” e reivindicava a formulação Lêninista da “frente úni-
ca”. Segundo Gramsci,

Parece-me que Ilich havia compreendido que ocorrera uma mudança da guerra
manobrada, aplicada vitoriosamente no Oriente em [19]17 para a guerra de po-
sição, que era a única possível no Ocidente, onde, como observa Krasnov, num
guerra de movimento/guerra de oposição 217

breve espaço os exércitos podiam acumular quantidades enormes de munição,


onde os quadros sociais eram, por si sós ainda capazes de se tornarem trinchei-
ras extremamente municiadas. Isso me parece significar a fórmula da “frente
única”(Q 7, § 16, p. 866).

Lênin foi dos primeiros a perceber essa mudança. O PCd’I apenas tardia-
mente compreendeu o significado da fórmula política da frente única e o próprio
Gramsci chegou a opor-lhe resistência.80 As primeiras experiências de construção
de uma frente única se deram na Alemanha, onde os comunistas lançaram, por
iniciativa de Paul Levi e Karl Radek, uma Carta Aberta às organizações sindicais
e partidos operários desse país, conclamando a uma luta comum em defesa dos
interesses imediatos da classe trabalhadora (cf. Broué, 1997, p. 204-206 e Hajek,
1984, p. 18-20). A Carta Aberta não encontrou a resposta esperada por parte das
organizações às quais se dirigia e enfrentou, até mesmo, oposição no interior do
próprio Partido Comunista da Alemanha (KPD). Dividido, o partido respondeu à
repressão policial na Saxônia em março do mesmo ano com uma precipitada greve
geral insurrecional.
O fracasso da insurreição terminou com grave derrota para os co-
munistas e um esvaziamento do partido, que perdeu centenas de milhares
de filiados.81 Os conflitos internos não deixaram de aumentar e Paul Levi
rompeu publicamente com a direção do partido, sendo expulso logo depois.
A questão alemã ocupou grande espaço nas discussões do 3º Congresso da
Internacional Comunista realizado em julho de 1921, poucos meses após a
derrota da insurreição. As Teses sobre a Tática adotadas pelo Congresso não
deixaram, entretanto, de refletir o compromisso entre as diferentes correntes.
O texto considerava a ação de Março como “um passo adiante”, ao mesmo
tempo em que condenava “um certo número de camaradas do partido que
apresentaram a ofensiva como o método de luta principal na atual situação”
(Agosti, 1974, p. 426).

80
A respeito da evolução de Gramsci com relação à fórmula política da frente única, o livro de
Marcos Del Roio (2005) é insubstituível.
81
Os dados do próprio partido registravam que o KPD passou de 359.613 membros no início de
1921 a 180.443, no final do mesmo ano (cf. Broué, 1997, p. 221).
218 alvaro bianchi

Os debates no interior do 3º Congresso já sinalizavam a percepção presente


de modo cada vez mais intenso entre as principais lideranças comunistas e, principal-
mente, entre os bolcheviques, de que os momentos mais intensos do ascenso revolu-
cionário já haviam passado. Mas as resoluções aprovadas carregavam ainda forte dose
de ambivalência a esse respeito, resultado do conflito com os partidários da ofensiva e
dos acordos decorrentes. O tom cauteloso na análise da situação e a contêmporização
com os partidários da ofensiva não ocultava, entretanto, que uma nova apreciação do
momento vivido pela luta de classes se consolidava na Internacional.
As Teses sobre a situação mundial e as tarefas da Intenacional Comunista
mostravam de modo claro essa nova apreciação e apontavam as derrotas impostas
aos movimentos da classe trabalhadora no curto espaço que separou o 2º do 3º
Congresso e, principalmente, os reveses sofridos na Polônia pelo Exército Verme-
lho, em agosto de 1920; pelo movimento do proletariado italiano, em setembro
de 1920; e pela insurreição dos operários alemães, em março de 1921 (Agosti,
1974, p. 384). A conclusão à qual chegavam as Teses sobre a situação mundial era
de grande impacto e provocou protestos dos partidários da ofensiva:

O primeiro período do movimento revolucionário posterior à guerra, que se


caracteriza pela sua violência elementar, pelos métodos e objetivos confusos e
pelo grande pânico que tomou conta das classes dominantes, parecer ter, em
grande medida, chegado a seu fim. (...) Os dirigentes da burguesia alardeiam
o poder de seu mecanismo estatal e, inclusive, tomam em todos os países
a ofensiva contra as massas operárias, tanto no plano econômico como no
político. (Idem).

Essas Teses encontravam-se em conformidade com o Relatório sobre


a crise econômica mundial e as novas tarefas da Internacional Comunista, apre-
sentado por Trotsky (1974, v. 1, p. 226-278) no mesmo Congresso. Na apre-
sentação do relatório, o comandante do Exército Vermelho surpreendeu os
delegados, e particularmente os defensores da ofensiva, ao afirmar: “Pela pri-
meira vez, hoje sentimos e vemos que não estamos mais tão perto do objetivo
final, da conquista do poder, da revolução mundial. Em 1919, dizíamo-nos: é
uma questão de meses, hoje dizemos-nos que talvez seja uma questão de anos”
(apud Hajek, 1984, p. 33).
guerra de movimento/guerra de oposição 219

O juízo a respeito da situação mundial e o desenvolvimento da revo-


lução dividiam águas entre as diferentes alas do Congresso. A consciência da
nova situação vivida pelo movimento dos trabalhadores levou Lênin e Trotsky
a protestarem contra o perigo de investidas intempestivas, mas tal consciência
não era partilhada por Bukharin e Zinoviev, que formavam uma importante
minoria da representação bolchevique no Congresso.82 Os discursos de Lênin
e Trotsky, nessa ocasião, foram uma dura crítica ao extremismo e ao blan-
quismo, provavelmente a mais dura feita até esse momento por dirigentes
bolcheviques a membros da Internacional. As conseqüências políticas dessa
nova caracterização podem ser vistas nas Teses sobre a Tática. Retomando
aquela distinção entre a Rússia e a Europa ocidental presente no Relatório do
comandante do Exército Vermelho, as Teses sobre a Tática afirmavam:

Dado que na Europa ocidental e na América, onde as massas operárias estão organi-
zadas em sindicatos e partidos políticos, onde em conseqüência não se pode con-
tar no momento com movimentos espontâneos senão em pouquíssimos casos,
os partidos comunistas usando toda sua influência nos sindicatos, aumentando
sua pressão sobre os outros partidos que se apóiam nas massas operárias, devem
procurar um desencadeamento geral do combate pelos interesses imediatos do
proletariado. (Agosti, 1974, p. 424. Grifos meus.)

Aprovadas por unanimidade, as Teses sobre a Tática representavam uma


importante inflexão na política da Internacional, mas também o compromisso en-
tre as diferentes correntes (cf. Hajek, 1984, p. 33). Tais Teses, defendidas por Lênin
e Trotsky afirmavam que o problema mais importe da Internacional passava a ser
o de “conquistar uma influência determinante sobre a maioria da classe operária e

82
Zinoviev e Bukharin inclinavam-se para a “teoria da ofensiva”. Na véspera do Congresso, Lênin
decidiu impor a disciplina do bureau político do Partido Comunista Russo (bolcheviques) – PCR(b)
– sobre a delegação, impedindo que Zinoviev e Bukharin manifestassem sua própria posição no Con-
gresso da Internacional bem como votassem contra a proposta de tese encaminhada pelo partido (cf.
Hajek, 1984, p. 30). A medida deformava o centralismo democrático e desse modo permitiu que a
delegação russa se apresentasse unida o que facilitou a obtenção de uma maioria sólida no Congresso,
mas criou um grave precedente utilizado posteriormente pela fração stalinista.
220 alvaro bianchi

levar à luta seus estratos determinantes” (Agosti, 1974, p. 413). O conteúdo anti-
blanquista da nova tática da Internacional ficava, assim, definido.
A política da frente única assentava suas raízes nas deliberações do 3º
Congresso, mas ela teve que esperar a reunião do Comitê Executivo da Interna-
cional Comunista realizada em dezembro de 1921 para ser finalmente anuncia-
da. A demora expressava a difícl construção de um contexto político favorável
na Internacional para uma mudança de tática tão importante. Nas Teses votadas
pelo Comitê Executivo essa mudança ganhava forma e conteúdo: “os interesses
gerais do movimento comunista exigem que os partidos comunistas e a Interna-
cional Comunista em seu conjunto apóiem a palavra de ordem da frente única dos
trabalhadores”, anunciava o texto aprovado (Agosti, 1974, p. 524).
As diretivas adotadas na reunião do Comitê apresentavam de modo
coerente, pela primeira vez, a fórmula política da frente única propondo não
apenas a unidade de partidos e sindicatos comunistas e social-democratas,
como, também, a possibilidade de acordos entre as organizações internacionais.
Nas Teses aprovadas nessa reunião, afirmava-se:

enquanto lança a palavra de ordem da frente única dos trabalhadores e permite


acordos de cada seção da Internacional Comunista com os partidos e as asso-
ciações da Segunda Internacional e da Internacional dois e meio, é claro que a
Internacional Comunista não pode refutar-se de concluir acordos deste gênero
também em escala internacional. (Agosti, 1974, p. 529.)

A partir de então, a política da frente única disseminou-se pelas orga-


nizações da Internacional, mas enfrentou reservas em várias delas e a oposição
aberta nas seções francesa e italiana, esta última dirigida pela extrema-esquerda
bordiguista. Embora Gramsci manifestasse sua adesão à fórmula política da
frente única, em um primeiro momento aproximou-se das teses majoritárias
no PCd’I. Afirmava estar persuadido que “não apenas o partido Popular, mas
também uma parte do Partido Socialista deveria ser excluído da frente única
proletária segundo a concepção das teses aprovadas pelo Comitê Executivo am-
pliado, porque fazer um acordo com eles seria igual a fazer um acordo com a
burguesia” (SF, p. 520). E considerava que até mesmo a frente única sindical
teria um fim “prejudicial para a luta política na Itália” (idem).
guerra de movimento/guerra de oposição 221

A posição de Gramsci a esse respeito sofreu importantes modificações


ao longo dos anos, sem abandonar, entretanto, a idéia de que a frente única
era uma estratégia “que deveria partir da centralidade operária e do governo
da produção” (Del Roio, 2005, p. 116), razão pela qual considerava coerente
a exclusão de frações do PSI, posição essa que o aproximava das correntes da
chamada esquerda no interior da Internacional. A evolução de Gramsci a esse
respeito se deu, entretanto, no sentido contrário ao da própria Internacional.
A derrota da revolução alemã em 1923 criou no interior da IC as con-
dições para um novo giro à esquerda que fortalecia os traços sectários de sua
ação política. A fórmula da frente única foi questionada de modo cada vez mais
intenso e no 5º Congresso, realizado em 1924 após a morte de Lênin, esta
passou a ser considerada uma pura manobra, apenas “um modo de agitação de
mobilização revolucionária” (Agosti, 1976, p. 120. Cf. tb. Hajek, 1984, p. 119).
Em contrapartida, a aplicação da frente única “por baixo”, ou seja, sem o acordo
com os dirigentes dos sindicatos e demais partidos operários, era considerada
“sempre e em qualquer parte necessária”, enquanto o método da frente única
“pelo alto”, ou seja, com o acordo, era “categórica e prontamente rejeitado”
(Agosti, 1976, p. 120).
O Congresso já refletia a decadência teórica e política da Internacional e
o fortalecimento em seu interior da fração stalinista. A excomunhão de Trotsky,
que até então havia tido uma posição de grande importância nos congressos
da Internacional, era anunciada da própria tribuna por delegados como Ruth
Fischer, tão inexperientes quanto submissos à nova direção soviética.83 Coube
então a Radek expressar de modo mais agudo a defesa da fórmula da frente úni-
ca em consonância com Trotsky, que sequer compareceu ao Congresso (Hajek,
1984, p. 117-126).
O sectarismo das resoluções do Congresso redundou na identificação
do fascismo com a social-democracia, tese que posteriormente seria desenvolvi-
da na fórmula do “social-fascismo”, e na afirmação de que a frente única como

83
A própria Ruth Fischer foi, em 1926, expulsa do Partido Comunista Alemão e, em 1936,
sentenciada à morte nos processos de Moscou, acusada de “trotskismo”. A partir da década de
1940, residindo nos Estados Unidos, passou a desenvolver uma intensa agitação anticomunista e
em 1947 participou como testemunha de acusação nos tribunais macartistas.
222 alvaro bianchi

coalizão dos partidos comunistas e social-democratas – o governo operário – era


uma distorção operada pelas tendências de direita. Para a IC, o objetivo princi-
pal da tática de frente única consistiria em uma luta “conduzida, principalmen-
te, contra os dirigentes traidores da social-democracia contra-revolucionária.”
(Agosti, 1976, p. 121.)
Poucos meses após o 5º congresso, em setembro de 1924, Stalin escre-
via: “O fascismo é a organização de luta da burguesia que repousa no apoio ativo
da social-democracia. A social-democracia é, objetivamente, a ala moderada do
fascismo.” (Stalin, 1954, v. 6, p. 294). A fórmula da frente única teve a partir
de então uma vida acidentada. Apesar de mantida na letra, sucessivas resoluções
lhe tiraram sua força e acabaram por descaracterizá-la. As Teses aprovadas no 6º
Congresso da Internacional definiam um “terceiro período” na situação mun-
dial, marcado pela “agudização da contradição ente o crescimento das forças
produtivas e a limitação dos mercados”, período este “de novas guerra impe-
rialistas entre Estados imperialistas, destes últimos contra a União Soviética, de
guerras de libertação nacional contra o imperialismo e contra suas intervenções,
de gigantescas lutas de classes.” (Agosti, 1976, p. 933)
A caracterização do “terceiro período” resultava de um compromisso
entre diferentes posições no interior da internacional e, à luz da crise que teve
início em 1929 e da Segunda Guerra Mundial, não estaria equivocada a priori.
Mas a resolução era o suficientemente ambígua para permitir várias interpre-
tações, dentre elas a de Stalin, que em luta contra a influência de Bukharin na
Internacional, tendeu a carregar as tintas nas conseqüências catastrofistas dessa
caracterização (cf. Hajek, 1984, p. 188-189).84
Embora a fórmula da frente única não tivesse desaparecido do discur-
so dos dirigentes da internacional, ela assumia novas conotações. Stalin, por
exemplo, em 1928, referia-se à “frente única entre os trabalhadores dos países
avançados e as massas trabalhadoras das colônias” (Stalin, 1954, v. 11, p. 211.
Cf. tb. Stalin, 1954, v. 13, p. 94). E em 1930 a utilizava como sinônimo de

84
Trotsky foi dos primeiros a escrever que, apesar de dirigir formalmente os trabalhos do 6º Con-
gresso, aos olhos de todos encenava-se o ocaso de Bukharin na Internacional (cf. Trotsky, 1989. Cf.
tb. Broué, 1997, p. 483-485).
guerra de movimento/guerra de oposição 223

aliança dos trabalhadores com os pequenos camponeses (cf. Stalin, 1954, v. 12,
p. 208). Mas suas obras não registram, entre 1928 e 1934, nenhuma menção
à frente única como aliança das organizações sindicais e partidos operários. A
idéia da frente única “pela base” estava completamente consolidada, mas con-
traditoriamente era apresentada uma nova fórmula “a frente única nacional”,
esta sim “pelo alto”, mas com as organizações do nacionalismo burguês, como
o Kuomintang chinês (cf. p. ex. Agosti, 1976, p. 658-671; Stalin, 1954, v. 7, p.
135-154 e v. 9, p. 249-255).
A interpretação sectária que prevaleceu a respeito das resoluções do
6º Congresso havia deixado a direção do PCd’I em uma complicada situação.
Gramsci e Terracini se encontravam na prisão desde 1926 e o núcleo dirigente
do partido era composto por Palmiro Togliatti, Ruggero Grieco e Angelo Tasca.
A apreciação dominante no PCd’I sobre o fascismo estava longe de ser tão sim-
plificadora e rudimentar como a que passou a prevalecer na IC. A experiência
do combate contra o governo de Mussolini durante a crise que se desenvolveu
após o assassinato do deputado socialista Giacomo Matteoti, havia educado aos
dirigentes do partido a esse respeito e estavam menos propensos a falsas identi-
dades entre o fascismo e a social-democracia.85
Em um relatório de junho de 1928, às vésperas do 6º Congresso da
IC, portanto, Togliatti escrevia que uma das particularidades “da reação fascista
é precisamente o fato de que o fascismo, diferentemente da maior parte dos
demais movimentos reacionários europeus, exclui o compromisso com a social-
democracia.” (Togliatti, 1973, v. II, p. 398.) A distinção entre fascismo e social-
democracia se fazia ainda mais clara em um artigo publicado pela primeira vez
em russo em agosto de 1928, na revista da Internacional Comunista:

o fascismo é claramente diferente de todos os regimes reacionários que se afirma-


ram até então no mundo capitalista moderno. Rejeita todo compromisso com
a social-democracia. Persegue-a asperamente; elimina-lhe toda possibilidade de
vida legal; forçou-a a emigrar. (Togliatti, 1973, v. II, p. 548.)

85
Cf. p. ex. alguns dos textos de Gramsci a respeito do assassinato de Mateotti e da posterior
situação italiana (CPC, p. 25-28, 40-43, 85-88. Cf. tb. Spriano, 1976, v. 1, p. 381-404).
224 alvaro bianchi

Mas embora discordasse em pontos importantes dos dirigentes sovi-


éticos e, particularmente, daqueles alinhados com Stalin, Togliatti evitou o
confronto a respeito das “questões russas”. Mais próximo de Bukharin, Tasca
não adotou a mesma posição conciliadora e acabou cometendo crime de
lesa-majestade ao emitir opinião sobre tais questões. Eram opiniões severas.
Tasca, em carta a Togliatti de 20 de janeiro de 1929, chamava Stalin de “um
remastigador das idéias de outros, que rouba sem escrtúpulos e depois apre-
senta de modo esquemático que dá a ilusão de uma força do pensamento
que não existe” (apud Fiori, 1991, p. 33). Mais dura do que a caracterização
era a explicação: “Stalin plagia porque não pode fazer outra coisa, porque
é intelectualmente medíocre e infecundo e porque odeia secretamente a
superioridade intelctual de Trotsky e Bukharin” (idem). Obviamente essas
críticas não passariam em branco.
Diferente foi a postura de Togliatti. Tendo evitado desafiar a auto-
ridade de Stalin, encontrava-se em situação que lhe permitia entregar Tasca
à campanha de difamação e, assim, reconstruir sua posição no aparelho da
IC. O prórpio Togliatti se encarregou de fornecer os arguementos para a
acusação execrando seu antigo companheiro em discurso no Executivo da
Internacional Comunista, chamando-o de “ultraoportunista” e “oportunista
ao estado puro” e afirmando “o caráter antimarxísta ou simplesmente estú-
pido” de sua concepção (idem).
À medida em que a luta de Stalin contra Bukharin se tornava aguda86
na Internacional aumentava a tensão no interior do PCd’I. O ataque se tornou
mais intenso em dezembro de 1928, por ocasião da reunião do Comitê Exe-
cutivo da IC na qual duras críticas foram dirigidas a Humbert-Droz e Serra,
pseudônimo de Angelo Tasca, e aos comunistas alemães Brandler e Thalheimer.
Na ocasião, Stalin afirmou que a presença na IC de pessoas como esses dirigen-
tes do Partido Comunista Alemão, “não deveria mais ser tolerada” (Stalin, 1954,
v. 11, p. 324).

86
Cf. o ataque de Stalin em seu discurso no pleno de outubro de 1928 do Comitê de Moscou e
da Comissão de Controle Moscovita do Partido Comunista da União Soviética (Stalin, 1954, v.
11, p. 231-248).
guerra de movimento/guerra de oposição 225

O caminho para a condenação de Bukahrin ficou assim desimpedido e


em fevereiro de 1929, o mesmo Stalin sentenciou: “A maioria dos camaradas de-
mandam que esta reunião conjunta do Bureau Político do C[omitê].C[entral].
e do Presidium da C[omissão].C[entral].[ de ]C[ontrole]. condene a plataforma
capituladora, direitista-oportunista de Bukharin, Tomsky e Rikov e condenem
a tentativa de Bukharin e seu grupo de formar uma plataforma antipartido com
os trotskistas.” (Stalin, 1954, v. 11, p. 337). Foi nesse contexto paranóico e per-
secutório que o bureau político e o pleno do comitê central do PCd’I, reunidos
entre fevereiro e março de 1929, decidiram sacrificar Tasca, condenando seus
pontos de vista e destituindo-o do cargo de representante italiano no Comitê
Executivo da Internacional Comunista.
Poucos dias depois, em março de 1929, Lo Stato Operaio, publicação
do PCd’I anunciava que a discussão sobre as questões internacionais realizadas
no Comitê Central “revelou a existência, também no seu interior, de uma dife-
renciação que se dá seguindo aproximadamente as mesmas linhas das diferen-
ciações que se deram a propósito da aceitação ou da ‘interpretação’ das decisões
do VI Congresso Mundial, em quase todos os outros partidos da Internacional.”
(Togliatti, 1973, v. II, p. 703. Cf. tb. Fiori, 1979, p. 319-321.)
A reunião do 10º Plenum do Comitê Executivo da IC realizado em
julho de 1929 em Moscou consolidou o giro sectário da Internacional Comu-
nista. A interpretação staliniana do “terceiro período” foi ratificada e o caráter
inevitável de novas situações revolucionárias anunciado (cf. Broué, 1997, p.
493). A resolução aprovada também oficializava a fórmula do social-fascismo,
afirmando que uma “fórmula particular do fascismo em países com partidos
social-democratas fortes, é o social-fascismo.” (Agosti, 1979, p. 103.) A frente
única ficava, assim, definitivamente enterrada, uma vez que sequer a ala es-
querda da social-democracia poderia ser considerada uma aliada na luta pelas
reivindicações imediatas da classe trabalhadora:

O pleno do IKKI impõe sobre todas as seções da Internacional Comunista a


obrigação de intensificar a luta contra a social-democracia internacional, a qual é
o principal baluarte do capitalismo. O pleno do IKKI adverte todos os partidos
a dar especial atenção ao reforço da luta conta a ala “esquerda” da social-demo-
226 alvaro bianchi

cracia, que retarda o processo de desintegração da social-democracia, criando a


ilusão de que ela – a ala “esquerda” – representa uma oposição à linha política
dominante, quando, de fato, mantém com todas suas forças a política do social-
fascismo. (Idem, p. 107.)

Na mesma reunião a situação italiana foi debatida intensamente. A


punição a Tasca foi considerada insuficiente e Manuilski, representante da IC,
em seu informe sobre a situação italiana definiu que as opiniões de Serra eram
incompatíveis com a militância no partido. O Partido italiano foi severamente
censurado e uma nuvem de suspeitas sobre ele se ergueu, certamente adensada
pela lembrança das cartas de Gramsci em 1926 opondo-se aos modos emprega-
dos na luta contra a oposição de Trotsky-Zinoviev-Kamenev.87
Embora manifestasse clara discordância com a Oposição, a carta que
Gramsci escreveu endereçada ao Comitê Central do Partido Comunista Russo
afirmava que Zinoviev, Trotsky e Kamenev haviam sido os mestres do PCd’I e
pedia garantias de que a direção do Partido Comunista da União Soviética não
pretendesse “vencer de modo esmagador essa luta” e estivesse disposto a “evitar
medidas excessivas.” (Daniele, 1999, p. 411.) Togliatti, na época em Moscou,
respondeu a carta reproduzindo o discurso da fração staliniana. A resposta de
Gramsci, atada de 26 de outubro, manifestava claro desacordo com Togliatti:
“esse seu modo de raciocinar provocou-me uma impressão das mais penosas.”
(Idem, p. 437.) Era, segundo Fiori (1991, p. 9 e 13), a consumação da ruptura
política e pessoal entre Gramsci e Togliatti.
Em 1929 os piores temores de Gramsci se realizavam. O afasta-
mento de Nicolai Bukharin e de Jules Humbert-Droz da direção da Inter-
nacional em julho daquele ano foi seguido na Itália pela expulsão de Angelo
Tasca, em setembro de 1929, e de Amadeo Bordiga, em janeiro de 1930
(Spriano, 1976, v. II, p. 227-229 e 254-255). Ao mesmo tempo em que
dirigia o expurgo interno, Togliatti, manifestava publicamente a aceitação
das teses da fração stalinista e, particularmente, a tese do social-fascismo,

87
A carta de Gramsci foi publicada primeiramente por Tasca em 1937 e as cartas de Togliatti
tiveram que esperar sua morte para virem a luz. A volumosa correspondência entre Togliatti e os
dirigentes do PCd’I que estavam na Itália no ano de 1926 foi publicada por Daniele (1999).
guerra de movimento/guerra de oposição 227

abandonando, assim, suas caracterizações anteriores. Assim, em um discurso


pronunciado em fevereiro de 1930, no presidium do Comitê Executivo da
IC, Togliatti definiu a “linha geral de desenvolvimento do processo” como
“uma acentuação da fascistização da social-democracia.” (Togliatti, 1973, v.
III/1, p. 154.) E insistiu nessa questão em seu relatório à mesma reunião: “A
social-democracia italiana se fascistiza com uma extrema facilidade. (...) Por
detrás de toda ação que os elementos da esquerda social-democrata procu-
ram levar a cabo, pode-se demonstrar que essa foi cumprida sob a inspiração
de Mussolini.” (Idem, p. 180.)88
O giro provocou o nascimento de uma nova oposição interna. As
divergências que explodiram a partir de janeiro de 1930 no interior do Buro
político do partido, deram origem à chamada “oposição dos três”: Alfonso
Leonetti, diretor da imprensa ilegal; Pietro Tresso, chefe do movimento sin-
dical; e Paolo Ravazzoli, do buro de organização. Os conflitos tiveram início
com questões referentes à organização do partido, mas logo assumiram como
centro o caráter da luta contra o fascismo e a crítica à política do terceiro
período na IC, levando “os três” a uma rápida aproximação com a Oposição

88
Comentando essa guinada de Togliatti, o organizador de suas Opere, Ernesto Ragioneri afirma:
“É dúvida a meu ver fora de lugar, ou ainda de impossível solução perguntar-se neste ponto em
que medida as posições mantidas por Togliatti no curso desses anos correspondem a convicções
profundas ou derivam de oportunidade tática na complexa dialética entre a linha geral do Comin-
tern e a atividade do partido italiano.” (Togliatti, 1973, p. LXXI). Profundas ou não tais posições
tiveram efeitos práticos negativos sobre o PCd’I permitindo que centenas de prisões fossem efetu-
adas (cf. Spriano, 1976, v. 2 p. 287-207). A política aventureira do PCd’I nos primeiros meses de
1930 na resistência ao fascismo (Broué, 1997, p. 513) revela que na “dialética entre a linha geral
do Comintern e a atividade do partido italiano” prevaleceu absoluta a primeira. Cotejando as
diferentes citações a respeito do “social-fascismo”, Trotsky, no calor dos acontecimentos afirmou:
“os funcionários da I.C. se rearmaram. Ercoli [Togliatti] se apressou em demonstrar que a verdade
lhe é cara, mas que Molotov lhe é mais caro ainda, e... escreveu um relatório defendendo a teo-
ria do social-fascismo. ‘A social-democracia italiana, declarou ele, se fascistiza com uma extrema
facilidade’. Ai! Com maior facilidade ainda se servilizam os funcionários do comunismo oficial.”
(Trotsky, 1979, p. 152.)
228 alvaro bianchi

de Esquerda Internacional, liderada por Leon Trotsky, à expulsão deles em 9


de junho do mesmo ano e à criação da Nova Oposição Italiana.89
Leonetti havia sido muito próximo de Gramsci desde o tempo do
Ordine Nuovo e as posições defendidas pela oposição italiana não eram muito
diferentes das que este último defendia já antes da prisão e durante ela. Desde
1926, data de sua correspondência a Togliatti manifestando sua discordância a
respeito do rumo tomado pela luta contra a Oposição Unificada, pairava sobre o
marxista sardo na Internacional Comunista a suspeita de ter sido pró-trotskista
(cf. Natoli, 1990, p. 76).90 No ambiente paroxístico, que caracterizou a guinada
do “terceiro período” na Internacional Comunista e a “svolta” no partido italia-
no, as dúvidas sobre o posicionamento de Gramsci a respeito da expulsão devem
ter surgido imediatamente.
A pedido de Togliatti, Gennaro Gramsci, irmão de Antonio, regressou
à Itália para visitá-lo na prisão de Turi, informá-lo a respeito da expulsão dos
“três” e recolher sua opinião. De volta a Paris, Gennaro informou a Togliatti:
“Nino está totalmente alinhado com vocês” (apud Fiori, 1979, p. 312). No
depoimento dado a Fiori muitos anos depois, Gennaro contou outra versão: “A
linha do irmão era a de Leonetti, Tresso e Ravazzoli. Não justificava a expulsão
deles e rejeitava a nova orientação da Internacional, compartilhada por Togliatti,
na sua opinião, muito apressadamente” (Fiori, 1979, p. 312). Segundo Fiori,
Gennaro considerou que sua atitude era a única cabível para salvar o irmão: “Se
tivesse dado uma outra resposta (...) nem mesmo Nino [Antonio Gramsci] teria

89
Uma versão desses episódios hostil aos “três” e simpática a Togliatti encontra-se em Spriano
(1976, v. II, cap. 13). A versão de Togliatti (1973, v. III,1, p. 248-280) pode ser lida no seu
relatório à comissão italiana do Executivo da Internacional Comunista. Os documentos da Nova
Oposição Italiana podem ser encontrados em Massari (2004). O mesmo Massari (2004a) e Ma-
razzi (1990) destacam a semelhança que marcava nesse período as posições de Gramsci e da Nova
Oposição Italiana. No mesmo sentido, escrevem Alfonso Leonetti (1974, p. 189) e Anderson
(2002, p. 92-93).
90
Sobre a crítica de Gramsci a respeito da burocracia soviética e da luta da oposição nessa carta, ver
Moscato (1999) e Vacca (1999, cap. VI). Moscato (1999, p. 152-158) considera que a publicação
dessa carta, bloqueada por Togliatti com o aval do burô político do PCd’I poderia ter contribuído
positivamente para a luta da oposição, principalmente fora da União Soviética.
guerra de movimento/guerra de oposição 229

escapado da expulsão” (idem). Essa versão é considerada “verossímil” até mesmo


por Spriano (1976, v. II, p. 280), muito embora a existência de suspeitas na
Internacional Comunista sobre Gramsci tenha sido questionada ou minimizada
por historiadores vinculados à tradição togliattiana. Mas se Gramsci estivesse
em Moscou, ao invés do dútil Togliatti, quem seria capaz de afirmar que o sardo
teria sobrevivido aos expurgos e às execuções?
O próprio Togliatti se encarregou de construir a lenda de um Gramsci
partidário de Stalin ao desfigurar de modo grotesco as posições do marxista
sardo e afirmar que este dizia no ano de 1930 aos comunistas que se mostravam
simpáticos às idéias dos oposicionistas que Trotsky era “la puttana del fascismo”
(Togliatti, 2001, p. 88). Gramsci, desse modo, era colocado “sob a bandeira
invencível de Marx-Engels-Lênin-Stalin” (idem, p. 89). Guido Liguori (1996,
p. 74) considera essa afirmação “sem fundamento e hoje não justificável”. De
fato, o juízo que o marxista sardo emitia a respeito na prisão era muito diferente,
conforme depoimento de Angelo Scucchia: “Sobre Trotsky, um dia Gramsci
disse: ‘Grande historiador, grande revolucionário, mas é um egocêntrico, vê a
si mesmo no centro de todos os acontecimentos e não tem nenhum senso de
partido’.” (Quercioli, 1977, p. 225.)
O juízo psicológico expresso nessa afirmação não era de exclusividade
de Gramsci, embora tenha sido contestado por biógrafos como Isaac Deustcher.
Obviamente dessa avaliação poderiam ser deduzidas atitudes pessoais de antipatia
ou simpatia, mas não posições políticas. Mas o julgamento político expresso na-
quilo que “um dia Gramsci disse” era radicalmente diferente daquele que de modo
sórdido Totgliatti pretendia imputar-lhe. As diferenças políticas que porventura
pudessem afastar Gramsci de Trotsky não implicavam para o primeiro em um des-
conhecimento da posição política e do lugar histórico que cabiam ao segundo.
Não restam dúvidas de que Gramsci estava em desacordo com a políti-
ca da Internacional Comunista e com a aplicação desta por Togliatti no PCd’I e
de que a alternativa política por ele desenhada, a convocação de uma Assembléia
Constituinte na Itália, era idêntica à proposta pela Nova Oposição Internacio-
nal. Essa identidade era desconhecida pelos oposicionistas, mas parece ter sido
pelo menos até certo ponto conhecida pelo autor dos Quaderni, que procurava
se informar a respeito. Este é, sem dúvida, um ponto incômodo para a historio-
230 alvaro bianchi

grafia togliattiana. Pois se a “guerra de posição” era traduzida na fórmula política


frente única, então, em 1930, os principais representantes da guerra de posição
estavam na Oposição de Esquerda Internacional, Trotsky entre eles.
Spriano tentava resolver essa constrangedora situação, invertendo de
modo inverossímil os papéis. Para o historiador do PCd’I, foi Trotsky quem
chegou a partilhar muitas das posições de Gramsci e Terracini (Spriano, 1976,
v. II, p. 274.). Sem fazer menção à crítica ao programa da Internacional Comu-
nista, redigida em 1928 (Trotsky, 1974), Spriano retirava do marxista russo sua
antecipação crítica ao “terceiro período” e à teoria do “social-fascismo”. Já que
em sua narrativa era Trotsky quem concordava com Gramsci e não o contrá-
rio, isso lhe permitia alinhavar de modo rudimentar as passagens dos Quaderni
nas quais Gramsci criticava a Trotsky e afirmar que “se bem chamar Gramsci
de staliniano pode não ter um sentido exato, menos ainda terá hipotetizar sua
solidariedade com Trotsky.” (Spriano, 1976, v. II, p. 276.) E, no entanto, há o
“verossímil” depoimento de Gennaro e a coincidência da política antifascista
entre o marxista sardo e o russo...
Também não há dúvidas de que as notícias levadas por Gennaro cau-
saram em seu irmão forte impacto. Em carta datada de 16 de junho, o próprio
Gramsci confessou esse impacto a sua cunhada: “Recebi há pouco a visita de
meu irmão, o que provocou um movimento de ziguezague em meus pensamen-
tos.” (LC, p. 350.) Segundo Ercole Piacentini, um dos detentos mais próximos
de Gramsci, depois da visita de seu irmão, o dirigente comunista começou a
falar de coisas às quais não havia feito referência até então:

falava de Stalin como de um déspota e dizia conhecer o testamento de Lênin,


no qual se sustentava que Stalin era inapto para se tornar secretário do partido
bolchevique. (...) Uma vez falou da Revolução Francesa. Disse que em certo
ponto os revolucionários haviam começado a cortar-se as cabeças uns aos outros.
Começaram cortando a de Marat – com o qual Gramsci simpatizava porque
era de origem sarda – e termiram por decapitar a revolução. E a propósito disso
acenou ainda com um ‘termidor’ soviético. (apud Fiori, 1991, p. 40).

Em julho, de acordo com depoimento de Giovanni Lai (Quercioli,


1977, p. 207), Gramsci dava início àquela série de conversas com seus compa-
guerra de movimento/guerra de oposição 231

nheiros de prisão nas quais o tema da Constituinte era dos mais importantes.
As informações sobre tais conversas não são coincidentes. Vivia-se o período da
svolta sectária e da agitação contra o social-fascismo e as posições de Gramsci
encontraram forte resistência entre alguns presos identificados com a linha ofi-
cial. Lisa, freqüentemente citado, não narrou desentendimento algum entre os
prisioneiros. Umberto Clementi, por sua vez, contou que Scucchia afirmava que
Gramsci havia adotado “uma posição de social-democrata” (Quercioli, 1977,
p. 199). Sandro Pertini, que esteve preso com Gramsci, descreve que este ficou
profundamente isolado após expor suas posições (idem, p. 211). E Scucchia
descreveu discussões, sem a presença de Gramsci, mas com a de Lisa, nas quais
os adjetivos “oportunismo”, “posições antipartido”, “desviacionismo” e “traição
ideológica” foram freqüentemente usados (idem, p. 222).
O desenlace de tais discussões provocou a ruptura do gurpo de comu-
nistas presos em Turi e o isolamento de Gramsci na cadeia (cf. Fiori, 1991, p.
41-46). Isolamento agravado pelo fato de Gramsci alimentar as suspeitas de
que teria sido abandonado ou mesmo traído pelo grupo dirigente comunista
e, particularmente por Togliatti. Tais suspeitas existiam desde o recebimento
de uma carta do dirigente comunista Ruggero Grieco em 1928 a qual suposta-
mente teria agravado sua posição no processo judicial. Gramsci considerou essa
“estranha carta” (LC, p. 207) um “ato celerado ou uma ligeireza irresponsável”
e não descartou que quem a escreveu “fosse apenas irresponsavelmente estúpido
e outro, menos estúpido, tenha lhe induzido a escrever” (LC, p. 711). O outro
“menos estúpido” era, sem dúvida, Togliatti, com quem havia rompido por oca-
sião da troca de correspondência sobre a “questão russa” em 1926.
As conclusões às quais Gramsci chegou a respeito da carta de Grieco e
de sua situação na cadeia eram, ao que tudo indica, exageradas. Nada havia na
carta que as autoridades fascistas não soubessem de antemão. No estágio atual
da pesquisa documental, já beneficada pela abertura dos arquivos da ex-União
Soviética, também não é possível afirmar que o dirigente comunista tivessse sido
abandonado pelo seu partido e condenado por essa razão a perecer prematu-
ramente. Nesse sentido não há como desresponsabilizar o fascismo pela morte
do dirigente comunista como demonstra, com base em farta documentação,
Michele Pistillo (2003).
232 alvaro bianchi

A conjunção desses episódios – o rompimento com Togliatti em 1926,


a carta de Grieco, a svolta sectária do PCd’I e as discussões na prisão – tornaram
Gramsci cauteloso com as informações que recebia. Ainda em dezembro de
1930, o marxista sardo continuava querendo saber mais sobre a expulsão de
Leonetti, Tresso e Ravazzoli. Quando Bruno Tosin, funcionário da secretaria do
PCd’I em Roma, chegou à prisão de Turi, Gramsci insistentemente lhe pergun-
tou sobre esse tema (Quercioli, 1977, p. 227). Depois dessas conversas iniciais,
conta Tosin, seus companheiros de cela, lhe “explicaram quais haviam sido os
termos da discussão com Gramsci e (...) disseram que praticamente havia ocorri-
do uma ruptura no interior de nosso grupo de prisioneiros.” (Idem, p. 228.)
Ao que tudo indica, depois da visita de seu irmão Gennaro, Gramsci
solicitou às autoridades prisionais permissão para ler alguns livros de Trotsky
com vistas a formar uma opinião mais sólida a respeito: “sua autobiografia
traduzida também em italiano e publicada pela Casa edit. Mondadori e estes
outros dois: La révolution défigurée e Vers le capitalism ou vers le socialisme.” (LC,
p. 364.) Uma carta de 1º de dezembro de 1930 a Tatiana informa que depois de
muita insistência sua requisição foi atendida e pede que lhe envie a autobiografia
de Trotsky, mas não faz menção aos outros dois livros (LC, p. 385).
Teria Gramsci recebido tais livros? Recordando suas conversas com
Gramsci na prisão Angelo Scucchia afirmou que “no cárcere circulava Minha
vida de Trotsky” e que era comum os presos conversarem a respeito “porque
quase todos haviam lido esse livro” (Quercioli, 1977, p. 225). Entretanto,
não é possível afirmar, com certeza que Gramsci esteve de fato entre seus
leitores ou que tenha lido qualquer dos livros de Trotsky que solicitou na
prisão. De fato, nenhum desses livros se encontrava entre aqueles deixados
em sua biblioteca.
Uma análise cuidadosa das Lettere dal carcere e dos Quaderni revela
uma contradição que deveria ser levada em consideração na análise dos textos.
Como visto logo acima, em 1º de dezembro de 1930 Gramsci ainda não estava
de posse da autobiografia de Trotsky. A primeira menção ao livro do dirigente
bolchevique nos escritos de Gramsci pode ser encontrada no Quaderno 3. Nessa
passagem, Gramsci considerava “assombroso” que Trotsky tivesse falado de um
guerra de movimento/guerra de oposição 233

“‘diletantismo’ de Labriola” (Q 3, § 31, p. 309).91 Francioni (1984, p. 140) data


a redação desse parágrafo, com bastante precisão, entre junho e julho de 1930,
o que claramente contradiz a carta. É provável, então, que Gramsci estivesse
citando a obra sem tê-la em mãos, a partir de comentários de terceiros.
Da contradição acima apontada não é possível inferir nada além das
dificuldades do trabalho de pesquisa e composição dos Quaderni. O acesso às
fontes necessárias à investigação era precário e Gramsci freqüentemente pro-
curava contornar essas dificuldades recorrendo a resenhas e testemunhos de
segunda mão. Nunca deixou de estar ciente dessas dificuldades e várias vezes re-
gistrou seu desconforto a respeito. Infelizmente as ressalvas feitas foram muitas
vezes ignoradas pelos intérpretes e leituras superficiais a respeito de complexos
problemas substituíram a pesquisa criteriosa.92 Uma reconstrução cuidadosa da
relação Gramsci-Trotsky nos Quaderni exige, portanto, que os alertas de seu
autor sejam levados a sério.
Trotsky aparecia pela primeira vez já no Primeiro Quaderno no im-
portante § 44 (“Direzione politica di classe prima e dopo l’andata al governo”).
Esse texto é de uma importância fundamental para a estrutura dos Quaderni e
avançava alguns dos temas mais importantes a serem desenvolvidos posterior-
mente. O conceito de hegemonia era nele esboçado com base em um “critério
histórico-político” a partir do qual era necessário “fundar a própria pesquisa”:

91
Para um não italiano não é tão assombroso que Trotsky se referisse desse modo a Labriola.
Manuel Sacristán, por exemplo, em um ensaio que incitava à leitura do filósofo afirmava que
seu “verbalismo, complacido algumas vezes e vergonhoso outras, poderia fazer hoje incomoda
a leitura”, o mesmo autor referia-se ao “genérico gorjeio de um academicismo hoje anacrônico”
(Sacristán, 1969, p. 8 e 9).
92
Comentadores que a respeito de outras questões se mostraram judiciosos passaram muito ra-
pidamente por esse tema (p. ex. Martelli, 1996, p. 91-95, Losurdo, 1997, p. 142, 204 e 242; e
Coutinho, 1999, p. 150-152). A respeito das complexas relações entre Gramsci e Rosa Luxemburg
e Leon Trotsky, Burgio de modo absolutamente questionável chega a afirmar que em ambos os
casos “as páginas dos Quaderni se deixam decifar sem particular esforço” (2003, p. 148). Sena Jr.
(2004) ressaltou as inconsistências e omissões da mitologia brasileira a respeito do antitrotskismo
de Gramsci e a necesidade de uma análsie mais detalhada dos textos.
234 alvaro bianchi

a distinção entre as funções de dominação das classes adversárias e de direção


das classes aliadas.
A distinção permitia a seu autor afirmar que para chegar ao poder uma
classe deveria antes ser dirigente para então, permanecendo dirigente, tornar-se
também dominante: “Pode-se e se deve ser uma ‘hegemonia política’ mesmo
antes de ir ao Governo e não se precisa contar somente com o poder e a força
material que este poder dá para exercer a direção ou hegemonia política.” (Q 1,
§ 44, p. 41.) Essa afirmação orientou a pesquisa gramsciana sobre o conceito de
hegemonia ao longo dos Quaderni. Em seu contexto original ela forneceu um
critério metodológico para a pesquisa sobre a formação dos grupos dirigentes
italianos no Risorgimento. Tal questão lhe permitia, em sua evolução, abordar
um importante problema da teoria da revolução no século XX:

A propósito da palavra de ordem “jacobina” lançada por Marx na Alemanha de


[18]48—[18]49 deve se observar sua complicada fortuna. Retomada, sistema-
tizada, elaborada, intelectualizada pelo grupo Parvus-Bronstein, manifestou-se
inerte e ineficaz em 1905 e a seguir: era uma coisa abstrata, de gabinete científi-
co. A corrente que a combateu nesta sua manifestação intelectualizada, por outro
lado, sem usá-la “propositalmente” a empregou de fato na sua forma histórica,
concreta, viva, adaptada ao tempo e ao lugar, como nascida de todos os poros da
sociedade que ocorria transformar, de aliança entre duas classes com a hegemo-
nia da classe urbana. (Q 1, § 44, p. 54. Grifos meus.)

O argumento desenvolvido nesse parágrafo é bastante sutil e complexo.


De modo ligeiro Secco (2006, p. 75) afirmou que nessa passagem Gramsci teria
questionado Trotsky, “mais uma vez como teórico contrário à hegemonia do
proletariado”. A grosseira definição de Trotsky como um adversário da “hege-
monia do proletariado”, como documentado por Secco (2006, p. 38), era da
lavra de Stalin (1954, v. 6, p. 107ss). Gramsci repetiu de modo acrítico essa
afirmação na já citada carta de 1926, na qual escreveu: “É o princípio e a prática
da hegemonia do proletariado que são colcocados em discussão [pela oposição],
são as relações fundamentaias da aliança ente operários e camponeses, isto é, os
pilares do Estado operário e da revolução” (Daniele, 1999, p. 409-410).
guerra de movimento/guerra de oposição 235

Percebe-se, assim, quão lenta era a ruptura com Stalin e o Partido


Comunista Russo. Fazendo referências aos anos de 1924-1925, Somai (1982,
p. 91) afirmou que Gramsci, assim como a maioria do PCd’I, encontrava-se
pressionado por um lado pela reação fascista e por outro pela Internacional
Comunista, “fonte principal de subsídios financeiros” e de esperança. Nessa
direção agiria também “a confiança na ‘velha guarda’, a convicção de que o ele-
mento principal fosse a continuidade da tradição revolucionária” do Partido
Comunista Russo (idem). O mesmo comentador afirma que o marxista sardo,
assim como boa parte do PCd’I tinha um “conhecimento pouco aprofundado
da luta no interior do PCR” (idem, p. 88).
Por essas razões a citada passagem dos Quaderni não pode ser conside-
rada de modo superficial e um tratamento mais detido se faz necessário. Embora
não tivesse um conhecimento aprofundado da questão, seu autor demontrava
estar informado a respeito tanto das origens marxianas da palavra de ordem
“jacobina” da “revolução permanente”, como do papel de Alexander Parvus
(Israel Lazarevich Helphand) em sua formulação anterior a 1905.93 A afirmação
de que a fórmula era “intelectualista” em 1905, manifestava o desconforto de
Gramsci com a questão e não deixava de ser injusta, dado papel de Trotsky como
dirigente prático do Soviet de Petrogrado durante os eventos daquele ano. Mas
o aspecto mais importante dessa passagem, além dela demonstrar certo conhe-

93
As fontes de tal podem muito bem ter sido a miríade de artigos publicados pela imprensa
da Interrnacional Comunista procurando afirmar as raízes mencheviques da teoria da revolução
permanente. Cf., p. ex. o artigo de Stalin “A revolução de Outubro e as táticas dos comunista rus-
sos”, de dezembro de 1924: “Não é verdade que a teoria da ‘revolução permanente’, a qual Radek
timidamente se abstem de mencionar, foi antecipada em 1905 por Rosa Luxemburg e Trotsky. Na
verdade, essa teoria foi antecipada por Parvus e Trotsky. Agora, dez meses depois, Radek corrige a
si próprio e julga necessário castigar Parvus pela teoria da ‘revolução permanente’. Mas por questão
de justiça Radek deveria também castigar o parceiro de Parvus, Trotsky.” (Stalin, 1954, v. 6, p.
397.) Maitan (1958) protestou de modo muito ligeiro contra a aproximação que Gramsci fazia
entre Parvus e Trotsky. Em importante obra sobre as origens da teoria da revolução permanente
de Trotsky, Alain Brossat (1976, p. 77-86) aponta a dívida intectual deste com Parvus, ao mesmo
tempo que pontua as diferenças.
236 alvaro bianchi

cimento do tema, era que seu autor afirmava que os bolcheviques aplicaram “de
fato” a fórmula da revolução permanente.
Esse juízo, de grande importância para a compreensão da relação Gramsci-
Trotsky, reproduzia, de forma sintética, o tratamento dado pelo marxista sardo a esse
tema em uma carta datada de 9 de fevereiro de 1924. Nela, depois da mapear as
diferentes posições presentes no Partido Comunista Russo, Gramsci afirmava:

é sabido que já em 1905 Trotsky afirmava que na Rússia pudesse se verificar


uma revolução socialista e operária, enquanto os bolcheviques pretendiam ape-
nas estabelecer uma ditadura política do proletariado aliado aos camponeses, a
qual servisse de invólucro ao desenvolvimento do capitalismo, que não deveria
ser ofendido em sua estrutura econômica. É sabido também que em novem-
bro de 1917, enquanto Lênin e a maioria do partido passavam para a posição
de Trotsky e pretendiam tomar em mãos não apenas o governo político mas
também o governo industrial, Zinoviev e Kamenev permaneciam na opinião
tradicional do partido (L, p. 224).

A carta é claramente favorável a Trotsky e emite juízo cristalino a respeito


dos eventos de 1917.94 Sobre o programa da oposição, seu autor considerava que
este tinha o objetivo de aumentar o peso do elemento operário na vida interna do
partido, diminuindo o papel da burocracia e, desse modo, assegurar seu caráter
socialista (idem). Não é possível, entretanto, deduzir dessa carta uma completa
solidariedade com a plataforma dos oposicionistas. Sobre um tema de grande im-
portância, como era o balanço da derrota da revolução alemã em 1923, a carta não
convergia de modo pleno com a posição de Trotsky (cf. Somai, 1982, p. 85).
A apreciação emitida nessa carta não perdurou, entretanto por muito
tempo, mas muito embora Gramsci tivesse, durante os anos de 1925 e 1926,
censurado várias vezes Trotsky e assumido posições favoráveis à fração stalinista,
é notável a persistência do juízo a respeito da posição assumida pelos bolchevi-
ques em 1917. Não há diferença qualitativa a esse respeito entre o texto de 1924

94
Sobre o juízo positivo com relação a Trotsky emitido na carta, ver Ortaggi (1974), Rosengarten
(1984-1985, p. 81), Massari (2004a, p. 21-22) e Del Roio (2005, p. 115).
guerra de movimento/guerra de oposição 237

e o § 44 do Primo Quaderno, redigido provavelmente em fevereiro de 1930 (cf.


Francioni, 1984, p. 140).
A aliança operário e camponesa “com a hegemonia da classe urbana” era
a fórmula bolchevique da revolução permanente. Importa destacar que essa fór-
mula estava muito longe de ser idêntica à “ditadura democrática do proletariado
e do campesinato”, defendida por Lênin em 1905. Gramsci havia percebido isso
claramente em 1924. Duas eram as diferenças fundamentais entre a fórmula
original de Lênin e a de Trotsky, a qual Lênin aplicou “de fato”. A primeira
diferença estava no caráter da revolução, que Trotsky afirmava ser socialista e
Lênin democrática, o que implicava que a revolução deveria servir “de invólucro
ao desenvolvimento do capitalismo, que não deveria ser ofendido em sua es-
trutura econômica”. A segunda diferença estava justamente, na “hegemonia da
classe urbana”, uma vez que a fórmula Lênineana não definia o papel dirigente
do proletariado na “ditadura democrática” e, por essa razão a ditadura era “do
proletariado e do campesinato” e não apenas “do proletariado”.
Uma nova referência direta a Trotsky foi feita por Gramsci nos últimos
meses de 1930, após, portanto, a famosa visita de seu irmão Gennaro. Essa nova
menção ocorria no contexto da discussão a respeito da guerra de movimento e
da guerra de posição. Mais uma vez o autor dos Quaderni procedia de modo
cauteloso, sentindo que avançava sobre terreno movediço:

Guerra de posição e guerra manobrada ou frontal. Deve-se examinar se a famosa


teoria de Bronstein sobre a permanência do movimento não é o reflexo político
da teoria da guerra de movimento (recordar observações do general de cossacos
Krasnov), em ultima análise o reflexo das condições gerais-econômicas-culturais-
sociais de um país no qual os quadros da vida nacional são embrionários e frou-
xos e não se podem tornar “trincheiras ou fortalezas”. Nesse caso seria possível
dizer que Bronstein, que aparecia como um “ocidentalista” era ao invés, cos-
mopolita, isto é, superficialmente nacional e superficialmente ocidentalista ou
europeu. Ao invés, Ilich era profundamente nacional e profundamente europeu.
(Q 7, § 16, p. 866.)

Nessa passagem, Gramsci parece identificar guerra de movimento e a


teoria da revolução permanente, identidade essa que foi objeto de um grande
238 alvaro bianchi

número de comentários muitas vezes superficiais.95 Não foi o caso, entretanto,


de Frank Rosengarten, que destacou “as ambivalências, contradições, mudan-
ças e transformações que é possível encontrar no conjunto da interação de
Gramsci, em todos os níveis, com relação a Trotsky” e procurou comparar as
afirmações do marxista italiano com o próprio texto do dirigente bolchevique
(1984-1985, p. 88-89).
A comparação não deixa de impressionar, pois aquilo que um denomi-
nava de “revolução permanente” nos Quaderni del carcere não é o mesmo que o
outro escrevia e, por outro lado, aquilo que este último denominava de revolução
permanente encontrava-se em algumas de suas formulações muito próximo da
fórmula da hegemonia política do primeiro. O léxico político marxista reservou
à expressão blanquismo para designar “uma transformação política levada a cabo
por uma minoria sem o apoio das grandes massas”. A concepção gramsciana da
política era claramente anti-blanquista e seu desenvolvimento inseria-se naquela
vertente teórica cuja questão nodal era “a da hegemonia do proletariado no pro-
cesso revolucionário” (Del Roio, 2005, p. 90).96 Era justamente essa, a questão
formulada em um texto publicado em 1906 pelo ex-presidente do soviet de
Petrogrado, Balanço e perspectivas. Escrevia Trotsky:

a participação do proletariado em um governo só pode resultar objetivamente pro-


vável e admissível em princípio quando se trate de uma participação dirigente e
dominante. Naturalmente, tal governo pode se chamar de ditadura do proletariado
e dos camponeses, dos camponeses e da intelligentisa ou, finalmente, governo de
coalizão entre a classe operária e a pequena burguesia. Mas a pergunta continua a
mesma: Quem predomina no governo e, portanto, sobre a nação inteira? E se nos

95
Alguns comentadores que procuraram abordar de modo menos preconceituoso as relações
Trotsky-Gramsci (Harman, 1983 e Albamonte e Romano, 2003) fracassaram em sua empreitada
devido a um conhecimento rudimentar da obra de Gramsci, sem apoio nas edições críticas. Ca-
íram, por isso, em análises extremamente superficiais. Em sua maioria não fizeram nada além de
repetir argumentos de Anderson (2002).
96
Na vertente da chamada “refundação”, Del Roio (2005) inclui Lênin, Rosa Luxemburg e Gra-
msci. Mas não há razão plausível para Trotsky não pertencer a essa vertente.
guerra de movimento/guerra de oposição 239

referimos a um governo propriamente operário, então a resposta é: a hegemonia


será da classe operária. (Trotsky, 1971, v. 2, p. 178. Grifos de Trotsky.)

Na distinção entre dirigente e dominante, bem como na afirmação da


hegemonia da classe operária a semelhança entre o léxico dos dois autores impres-
siona. Nem sempre essa semelhança foi tão forte, mas mesmo assim não é possível
identificar a interpretação de Gramsci com o texto de Trotsky. A diferença é óbvia
em um texto que todo comentador deveria conhecer, A revolução permanente, de
1929. Nele Trotsky definia que em seu primeiro aspecto à “teoria da revolução
permanente (...) demonstra que em nossa época, o cumprimento das tarefas de-
mocráticas colocadas para os países burgueses atrasados, os conduzem diretamente
à ditadura do proletariado” (1970, p. 42). Os outros dois aspectos da teoria da
revolução permanente diziam respeito a transformação permanente de todas as
relações sociais no âmbito do processo de construção do socialismo (idem, p. 43)
e ao “caráter internacional da revolução socialista” (idem, p. 43-44). A respeito
deste último aspecto Trotsky esclarecia que a “revolução socialista começa sobre o
terreno nacional”, mas só poderia manter-se nesses estritos quadros “sob a forma
de um regime provisório, mesmo que ele dure muito tempo, como demonstra o
exemplo da União Soviética” (idem, p. 44).97
A teoria da revolução permanente não é, pois, uma definição da situa-
ção, nem dos métodos de luta; não é uma descrição de uma suposta “situação re-
volucionária permanente” nem uma apologia do “ataque frontal”. Desse modo,
alerta Rosengarten, se as afirmações de Gramsci no parágrafo citado (Q 7, § 16)
deixassem de se expressar no modo condicional, como hipótese de investigação,
e fossem transformadas em um juízo definitivo, então seria necessário concordar
com Livio Maitan (1958, p. 580), que disse ser essa interpretação do pensamen-
to de Trotsky uma “vulgar caricatura” (Rosengarten, 1984-1985, p. 89).
Pelo menos em uma passagem, Gramsci não foi tão cuidadoso, dei-
xando um espaço maior para a interpretação denunciada por Maitan. Trata-
se do § 138, do Quaderno 6, no qual era analisada a passagem da guerra de
movimento para a guerra de posição. Gramsci considerava essa questão “a

97
Para sustentar seu argumento, Rosengarten (1984-1985, p. 89) cita integralmente essa passagem
do texto de Trotsky. Sobre a teoria da revolução permanente, ver Bianchi (2000).
240 alvaro bianchi

questão de teoria política mais importante” do pós-guerra e afirmava que


estaria ligada “às questões levantadas por Bronstein, que de um modo ou
outro, pode ser considerado o teórico político do ataque frontal em um
período no qual esse é apenas causa de derrota.” (Q 6, § 138, p. 801-802.)
Qual seria esse “modo ou outro” de considerar Trotsky teórico do “ataque
frontal”? Ele “pode” ou “deve” ser considerado como tal? A formulação era
certamente menos ambígua que as anteriores, mas não deixava de carregar
consigo certas ambivalências. Ignorá-las é ignorar a complexidade da ques-
tão. Se essas ambivalências fossem suprimidas o que restaria seria, mais uma
vez, uma “vulgar caricatura”.
A questão era retomada em uma nota B presente na Parte I do Qua-
derno 10, escrita em abril ou maio de 1932. Os termos da nota eram ainda
parecidos àqueles discutidos acima, assimilavam Lênin à teoria da revolução
permanente e identificavam a teoria da hegemonia com a “forma atual” da
teoria da revolução permanente:

contêmporaneamente a Croce, o maior teórico moderno da filosofia da práxis


[i.e. Lênin] revalorizou, no terreno da luta e da organização política, em oposi-
ção às diversas tendências “economicistas” a frente da luta cultural e construiu a
doutrina da hegemonia como complemento da teoria do Estado-força e como
forma atual da doutrina de 1848 da “revolução permanente”. (Q 10/I, § 12, p.
1235. Cf. tb. LC, p. 616.)

Essa passagem reforça a idéia de que a teoria da hegemonia não se


encontrava em oposição à teoria do “Estado-força”, mas era seu “complemento”.
Coerção e consenso não eram termos opostos no pensamento gramsciano, mas
mantinham entre si uma relação de unidade distinção, como já visto. Mas além
de ser importante para valorizar de modo preciso essa relação, o texto citado
reforça a idéia de que o autor dos Quaderni pretendia construir sua teoria da
hegemonia como uma atualização da teoria da revolução permanente, revalori-
zando-a e transformando-a, ao invés de simplesmente anulá-la ou substiui-la (cf.
Gerratana, 1997, p. 113). A operação teórica de Gramsci era delicada. Procu-
rava preservar aquilo que para ele era o conteúdo vivo da fórmula da revolução
guerra de movimento/guerra de oposição 241

permanente e, por essa razão, optou por preservar a expressão ao invés de sim-
plesmente inventar um neologismo.98
Seu autor avançava de modo cauteloso. Escrevia que a doutrina da he-
gemonia era forma atual da “doutrina de 1848”. A referência explicita era, pois, a
Marx e não a Trotsky. Além disso, a fórmula da “revolução permanente” aparecia
entre aspas no texto, recurso que era usado, de modo bastante freqüente, quan-
do se tratava de uma apropriação crítica. Mas ainda assim era uma apropriação
de uma fórmula cujo desenvolvimento – Gramsci sabia muito bem disso – esta-
va associado de modo indissolúvel ao pensamento político de Trotsky. Em um
texto provavelmente contêmporâneo daquele citado acima, Gramsci elaborou
de modo minucioso essa idéia e, por essa razão, vale a pena citar de modo mais
extenso a passagem:

Também a questão da considerada “revolução permanente”, conceito político


surgido por volta de 1848 como expressão científica do jacobinismo em um pe-
ríodo no qual ainda não haviam sido constituídos os grandes partidos políticos e
os grandes sindicatos econômicos e que ulteriormente será composto e superado
no conceito de “hegemonia civil”. A questão da guerra de posição e da guerra de
movimento, com a questão do arditismo, enquanto vinculada com a ciência po-
lítica: conceito quarantottesco da guerra de movimento em política é, justamente,
aquele da revolução permanente: a guerra de posição em política é o conceito
de hegemonia, que pode nascer apenas depois do advento de certas premissas e,
isto é: as grandes organizações populares de tipo moderno, que representando
como as “trincheiras” e as fortificações permanentes da guerra de posição. (Q 8,
§ 52, p. 972-973).

Conceito político da chamada “revolução permanente”, surgido antes de 1848,


como expressão cientificamente elaborada das experiências jacobinas de 1789
ao Termidor. A fórmula é própria de um período histórico em que não existiam
ainda os grandes partidos políticos de massa e os grandes sindicatos econômicos,
e a sociedade ainda está, por assim dizer, no estado de fluidez sob muitos aspec-

98
Sobre o léxico político de Gramsci e o processo de produção teórica nele condensado ver Burgio
(2003, p. 34-36).
242 alvaro bianchi

tos: maior atraso do campo e monopólio quase completo da eficiência político-


estatal em poucas cidades ou numa só (Paris para a França); aparelho estatal
relativamente pouco desenvolvido e maior autonomia da sociedade civil em re-
lação à atividade estatal; determinado sistema de forças militares e do armamen-
to nacional; maior autonomia das economias nacionais no quadro das relações
econômicas do mercado mundial, etc. No período posterior a 1870, em virtude
da expansão colonial européia, todos estes elementos se modificam, as relações
de organização internas e internacionais do Estado tornam-se mais complexas e
maciças e a fórmula quarantottesca da “revolução permanente” é elaborada e su-
perada na ciência política pela fórmula de “hegemonia civil”. Verifica-se na arte
política aquilo que ocorre na arte militar: a guerra de movimento transforma-se
cada vez mais em guerra de posição, podendo-se dizer que um Estado vence uma
guerra quando a prepara minuciosa e tecnicamente em tempo de paz. Na estru-
tura de massa das democracias modernas, tanto as organizações estatais como o
complexo de associações na vida civil constituem para a arte da política o mesmo
que as “trincheiras” e as fortificações permanentes da frente na guerra de posição:
ela fazem com que seja apenas “parcial” o elemento do movimento que antes
constituía “toda” a guerra, etc. (Q 13, § 7, 1566-1567).

Francioni (1984, p. 113-115 e 144) não consegue precisar a data dos


parágrafos do Quaderno 13 mas afirma que todo ele foi redigido entre maio
de 1932 e o início de 1934. O mais provável, portanto, é que o § 7 tenha sido
escrito nos primeiros meses dessa empreitada. O texto A correspondente (Q 8,
§ 52), por sua vez, foi redigido em fevereiro de 1932 (idem, p. 142). A diferença
de forma e conteúdo entre as duas versões é gritante. O texto da primeira versão
é surpreendentemente confuso e aparenta pressa ou desleixo. Contrasta com
o estilo claro, meticuloso e elegante da maioria dos parágrafos do Quaderni e,
particularmente, com sua segunda versão. Mais importantes do que as questões
de estilo são as referentes ao conteúdo desses parágrafos.
Na passagem da primeira para a segunda versão desaparecia a identifi-
cação mecânica entre guerra de movimento e revolução permanente, guerra de
posição e hegemonia. As definições simplificadoras davam lugar, assim, a noções
construídas por meio da descrição do processo histórico de complexificação do
Estado (em seu sentido estrito) e da sociedade civil. Tal descrição dava destaque
guerra de movimento/guerra de oposição 243

na construção do argumento à passagem da fórmula política marxiana da “revo-


lução permanente” à fórmula política da “hegemonia civil”. A fórmula política
da hegemonia era, assim, a “forma atual” (Q 10/I, § 12, p. 1235) da revolução
permanente, sua “elaboração e superação” (Q 13, § 7, 1566).
O texto, em sua segunda versão, também ajuda a compreender de
modo mais nítido a guerra de movimento própria das “democracias modernas”,
nas quais as organizações das socieade civil constituem um contratempo para
a guerra de movimento. A existência de uma ampla rede de instituições priva-
das exige a recriação das formas de luta das classes subalternas. Nesse contexto
a guerra de movimento não pode resumir toda a luta e deve ser apenas um
momento “parcial” desta. Mas se é um momento parcial é porque continua a
existir mesmo nesse novo contexto. Gramsci protesta contra a transformação da
guerra de movimento em uma tática exclusiva, mas não propõe sua supressão e,
portanto, não cai em erro idêntico mas de sentido oposto.
A partir de maio de 1932, Gramsci parece não insistir na identidade da
guerra de movimento com a revolução permanente, como é possível constatar
na supressão dessa identidade na citada passagem do Quaderno 13. Mas os edi-
tores da edição temática dos Quaderni fizeram questão de enfatizá-la. Assim, em
Note sul Macchiavelli, sulla politica e sullo Stato moderno, em um parágrafo no
qual seu “autor” citava a teoria da revolução permanente, os editores anuncia-
vam em uma nota de rodapé: “O termo revolução permanente é aqui utilizado
para indicar a interpretação errada de Trotski (uma transformação política levada
a cabo por uma minoria sem o apoio das grandes massas) à fórmula de Karl Marx.
Por isso o autor a coloca entre aspas.” (Gramsci, 1966, p. 48n. Grifos meus)
Aqui, não restam dúvidas, trata-se de vulgar caricatura, sem aspas, é claro, pois
não é outra coisa. Nessa vulgar caricatura a teoria da revolução permanente seria
o blanquismo contra o qual Trotsky constantemente lutou.99
Menos preocupado com tais caricaturas e mais com uma colocação
adequada do problema por meio de uma pesquisa filológica rigorosa, Valentino

99
A acusão de blanquismo lançada contra Trotsky era, como tantas outras acusações, de autoria
de Stalin que com sua prosa característica definia Lênin como um “gigante” e Trotsky como um
“anão” blanquista (Stalin, 1954, v. 6, p. 372).
244 alvaro bianchi

Gerratana abordou a questão a partir da análise gramsciana do “Prefácio de


1859”. Esse texto, afirmou o editor dos Quaderni, somente pode ser compreen-
dido de modo adequado se for destacado que Marx tem em mente a definição
de uma “época de revolução social” (Gerratana, 1997, p. 111). A apropriação
gramsciana do “Prefácio” desconstrói o nexo linear entre as condições objetivas
e as condições subejtivas, problematizando aquelas passagens que haviam sido
lidas de modo mecânico e evolutivo. A relação entre os dois “cânones” de in-
terpretação histórica não era, assim, em Gramsci, uma relação de continuidade
imediata, mas uma relação mediada. Para um longo período histórico, para uma
“época de revolução social”, essa mediação caberia à revolução permanente, afir-
mava Gramsci no estratégico § 17 do Quaderno 13:

reconstruir as relações entre estrutura e superestruturas, de um lado, e, de outro,


as relações entre o curso do movimento orgânico e o curso do movimento de
conjuntura da estrutura. Assim, pode-se dizer que a mediação dialética entre os
dois princípios metodológicos enunciados no início desta nota pode ser encontra-
da na fórmula político-histórica da revolução permanente (Q 13, § 17, p. 1582. Ver
a respeito Burgio, 2003, p. 68-69).

A conotação que a expressão revolução permanente (sem aspas no texto


gramsciano) assume nessa passagem é francamente positiva. A questão da revou-
ção permanente – e, portanto, a questão Gramsci-Trotsky – tal qual aparecia em
uma nota que expressa a reflexão madura de Gramsci era ainda uma questão não
plenamente resolvida pelo seu autor. Mas Gerratana indica o caminho pelo qual
essa solução passava. Para uma “época de revolução social”, afirma, é necesssário
compreender “seja a fase da guerra de movimento seja aquela da guerra de posição,
como permanência de uma continuidade revolucionária, ainda que na descon-
tinuidade das diversas formas e fases do processo histórico.” (Gerratana, 1997,
p. 113.) A reformulação do conceito de “revolução permanente” em Gramsci
estava assim muito longe de ser um simples cancelamento das formulas de Marx
e Trotsky. Como forma atual da revolução permanente a fórmula da hegemonia
civil pressupõe a unidade da guerra de movimento e da guerra de posição.
Não se trata, pois, de compreender a complexa relação Gramsci-Trotsky
como uma relação de antagonismo ou de identidade, como muitos fizeram, e
guerra de movimento/guerra de oposição 245

sim de reencontrar nesses autores uma viva preocupação comum com os pro-
blemas de seu tempo e, particularmente, da revolução no Ocidente capitalista
e um empenho igualmente criativo e antidogmático na busca de alternativas. A
diversidade de suas abordagens, as diferentes soluções às quais chegaram atestam
a pluralidade de tradições que confluíram na Internacional Comunista.100 Seus
enfoques, entretanto, partiam de pontos de vista diferentes. Enquanto Gramsci
assumia uma perspectiva que enfatizava as particularidades nacionais dos pro-
cessos políticos, Trotsky trabalhava a partir do ponto de vista internacional.
Não é possível, aqui tratar de modo mais detalhado o internacionalis-
mo metodológico que caracteriza o pensamento do comunista russo (cf. Bian-
chi, 2007). Registra-se, apenas que a caracterização de seu ponto de vista como
“cosmopolita, isto é, superficialmente nacional e superficialmente ocidentalista”, é
desmentida pela sua fina análise das particularidades do desenvolvimento da socie-
dade russa em sua obra Balanço e Perspectivas (cf. p. ex. 1971a, v. 2, p. 147-153). À
análise da sociedade russa seria importante acrescentar seus escritos sobre a Ingla-
terra, a França e a Alemanha nos quais procurou sempre registrar a especificidade
do desenvolvimento do capitalismo em cada um desses países e as características
distintivas de seus movimentos operários (cf. Anderson, 2002, p. 95-96).101
Uma análise poderada dos textos demonstará facilmente que as diversas
perspectivas adotadas por esses diferentes autores não fazem do italiano um “chau-
vinista” nem do russo um “cosmopolita”. A posição de Gramsci, que é a que aqui
interessa apresentar de modo mais circunstanciado poderia ser desenhada a partir
de seus escritos pré-carcerários. Vários autores apontaram em momentos diferen-
tes e com propósitos distintos o dissenso que Gramsci manteve com a direção do
Partido Comunista Russo depois da morte Lênin, e, particularmente, sua oposi-

100
Sobre a diversidade dessas tradições ver Agosti (1988).
101
A acusação de cosmopolitismo foi recorrente na publicística da fração stalinista e não deixava
de carregar forte conteúdo anti-semita, uma vez que Lev Davidovich Bronstein era, como todos
sabem, judeu. A reprodução que Gramsci faz dessa infundada acusação é um dos pontos baixos de
seus Quaderni, assim como a gosseira e estapafúrdia comparação da teoria da revolução permanen-
te com um estupro (Q 7, § 16, p. 866). Esses momentos são raros, entretanto na vida política de
Gramsci, que inúmeras vezes rejeitou a grosseria e a brutalidade no debate político.
246 alvaro bianchi

ção às “premissas e implicações da tese do ‘socialismo em um só país’” (Del Roio,


2005, p. 165), bem como a próximidade existente entre as posições de Gramsci
e Bukharin a partir de 1924, principalmente no que se refere à aliança operário e
camponesa e à Nova Política Econômica (Paggi, 1984, p. 353-365 e Vacca, 1999,
cap. VI).102 Mas mesmo essa aproximação a Bukharian precisa ser problematizada
como dão a entender as duras críticas que lhe foram dirigdas nos Quaderni.
O caráter de Gramsci, sua educação e trajetória militante condiciona-
ram, entretanto, um estilo de oposição muito mais comedido e uma disposição
maior a acordos com vistas à preservação da unidade do Partido e da Interna-
cional (cf. Rosengarten, 1984-1985, p. 91). Diversa era, por exemplo, a posição
de Bordiga, sempre atento à questão internacional e à luta no Partido russo.
Em fevereriro de 1926, meses antes de Gramsci enviar em nome do buro polí-
tico a carta a Togliatti sobre a “questão russa”, Bordiga na reunião do 6º Pleno
Ampliado do Comitê Executivo da Internacional Comunista havia feito uma
corajosa tentativa de denúncia do stalinismo (idem, p. 92). E foi Bordiga tam-
bém quem na reunião da delegação italiana com Stalin perguntou ao principal
defensor da estratégia do “socialismo em um só país” se este acreditava que “o
desenvolvimento da situação russa e dos problemas internos do partido russo
eram ligados ao desenvolvimento do movimento proletário internacional”. A
incrível resposta que obteve sintetizava muito do interesse de Stalin na discussão
e de sua personalidade: “Essa pergunta (...) nunca me tinha sido feita. Nunca
acreditei que um comunista pudesse fazê-la. Deus lhe perdoe por tê-la feito.”
(Apud, Vacca, 1999, p. 39-40.)
Se Gramsci estava pouco propenso a agir como Bordiga, também não
estava, ao contrário de Togliatti, pré-disposto a uma capitulação perante a fração
stalinista. Como se depreende da troca de correspondência com Togliatti, em
1926 pouco antes de sua prisão, Gramsci se dirigia, embora lentamente, em
direção a uma dissenso mais aberto, movimento esse que até aquele momento

102
Coube a Stalin lançar a palavra de ordem do “socialismo em um só país” em um texto datado
de 17 de dezembro de 1924. Seu argumento estava assentado em um tosco jogo de palavras no
qual a construção de uma ditadura do proletariado após a vitória dos socialistas em um país (a
Rússia) rapidamente se trasnformava na “vitória do socialismo em um só país” (Stalin, 1954, v. 6,
p. 378).
guerra de movimento/guerra de oposição 247

estava circunscrito ao âmbito do PCd’I e não o levava em direção à Oposição.


Inquirir a respeito do que teria acontecido se Gramsci não tivesse sido preso é,
entretanto, um exercício inútil.
Nos Quaderni uma única vez foi feita referência a Stalin. Na conste-
lação da história do bolchevismo este era na década de 1920 uma estrela de
pouca luz e não havia nada em seus escritos que aumentasse seu brilho. Gramsci
menciona nessa passagem a transcrição da entrevista de Stalin com a “primeira
delegação operária americana” (Stalin, 1954, v. 10, p. 97-153). Na entrevista
teriam se evidenciado “alguns pontos essenciais da ciência e arte da política”.
A reflexão parece ter sido motivada pela primeira pergunta do colóquio, na
qual um repersentante da delegação estadunidense inquiriu a respeito da con-
tribuição de Lênin à teoria de Marx: “Seria correto dizer que Lênin acreditava
em uma ‘revolução criativa’, enquanto Marx estava mais inclinado a esperar a
culminação do desenvolvimento das forças econômicas?” (idem, p. 97).
A pergunta resumia temas caros a Gramsci, como a relação entre eco-
nomia e política, estrutura e superestrutura, questões essas que nos Quaderni
considerava chaves para a “arte e ciência da política”. A questão era interessante,
mas a resposta mostrava os limites de seu autor. Stalin afirmava que Lênin era “o
mais leal e consistente pupilo de Marx” e que não havia acrescentado “nenhum
‘novo princípio’ ao marxismo”. E, a seguir, afirmava ser o “Lêninismo o marxis-
mo da era do imperialismo e das revoluções proletárias” (idem, p. 97-98). Não
há referências a essas afirmações no texto de Gramsci, que utiliza a entrevista
apenas como um pretexto para abordar uma questão que para ele era crucial:

O ponto que me parece ser necessário desenvolver é este: como segundo a filoso-
fia da práxis (em sua manifestação política) seja na formulação de seu fundador,
mas especialmente no refinamento de seu mais recente grande teórico, a situa-
ção internacional deva ser considerda em seu aspecto nacional. (Q 14, § 68, p.
1728-1729.)

Obviamente, o “fundador” da filosofia da práxis era Marx e seu “mais


recente grande teórico” era Lênin e não Stalin. A questão que era colocada dizia
respeito ao nexo nacional-internacional na revolução e ao posterior processo de
construção do socialismo. Tratava-se de um problema chave para a compreensão
248 alvaro bianchi

seja da chamada “questão russa” em suas variadas manfiestações, seja da evolu-


ção do movimento comunista europeu.
Gramsci explicitou em sua resposta a essa questão um ponto de vista
nacional-internacional. A relação nacional, afirmava, é o “resultado de uma
combinação ‘original’ única (em um certo sentido) que nessa originalidade e
unicidade deve ser compreendida e concebida se se deseja dominá-la e diri-
gi-la.” (Q 14, § 68, p. 1729.) O desenvolvimento dessa unidade nacional era
em direção ao “internacionalismo”, ou mais precisamente, em direção a sua
internacionalização no duplo sentido: de formação que absorve e expressa em
seu interior as tendências da relação de forças internacional e de formação que
se verte para o exterior, tornando-se parte constitutiva dessa mesma relação de
forças. O ponto de partida, entretanto, deveria ser “nacional” e sobre ele era
preciso concentrar a atenção para o desenvolvimento de uma ação política efi-
caz, mas a linha de evolução “a perspectiva” era necessariamente internacional.
Daí a necessidade de estudar atentamente “a combinação das forças nacionais
que a classe internacional deverá dirigir e desenvolver segundo a perspectiva e as
diretivas internacionais.” (Idem.)
A perspectiva apresentada por Gramsci distinguia-se claramente daquela
que orientava o Estado soviético. A análise das particularidades de uma formação
social implicava na adoção de um ponto de vista originalmente nacional, mas não
de uma perspectiva estreitamente nacionalista. Seu ponto de vista não se concen-
trava de modo fixo na dimensão nacional, como na perspectiva do “socialismo
em um só país”. Colocando o olhar inicialmente nesse ponto deslocava a seguir o
lugar da mirada para acompanhar com a vista o processo de internacionalização
da revolução. O nexo nacional-internacional indicava, portanto, também uma
trajetória desejável de desenvolvimento do processo político.
Se o ponto de vista inicial era nacional isto se devia ao caráter nacional
do poder político. Apenas no terreno do Estado-nação pode uma classe tor-
nar-se dirigente, resumindo em sua ação a solução dos problemas que aflijem
o conjunto das classes subalternas de um país. Assim, “uma classe de caráter
internacional enquanto guia estratos sociais estritamente nacionais (intelectuais)
e tambem freqüentemente menos ainda que nacionais, particularistas e muni-
cipalistas (os camponeses), deve ‘nacionalizar-se’ em um certo sentido” (idem).
guerra de movimento/guerra de oposição 249

É nesse porcesso que o proletariado poderia tornar-se Estado e absorver toda a


sociedade na sua “esfera de classe” (Q 8, § 2, p. 937) unificando desse modo na
esfera estatal as classes subalternas (Q 25, § 5, p. 2288). A luta pela construção
de uma nova ordem, o processo de realização da hegemonia, não poderia, por-
tanto, saltar sem mediação alguma para a esfera internacional.
Era a partir dessa perspectiva que Gramsci analisou no Quaderno 14
a polêmica sobre o “socialismo em um só país” envolvendo Trotsky e Stalin.
Embora a crítica a Trotsky seja clara e reproduza alguns argumentos do pró-
prio Stalin, o marxista sardo não afirmava sua solidariedade seja com a tese
do “socialismo em um só país”, seja com seu autor (cf. p. ex. Martelli, 1996,
p. 91-92). Uma original, embora nem sempre exata, interpretação da história
do bolchevismo embasava o argumento. O que caracterizaria o partido de
Lênin e sua história seria a insistência em depurar o internacionalismo de todo
elemento “vago e puramente ideológico” dando-lhe o conteúdo de “política
realista” (Q 14, § 68, p. 1729).
A afirmação que atribuía a Lênin a elaboração prática mais do que
teórica de uma teoria da hegemonia como forma atual da teoria da revolução
permanente pode ser agora melhor compreendida. A articulação das exigências
nacionais no conceito de hegemonia teria recebido uma resposta concreta com
as bandeiras da reforma agrária e da paz que permitiu a constituição de uma
aliança operário e camponesa e deu a maioria nos soviets aos bolcheviques.
Desse modo Lênin teria traduzido nacionalmente o marxismo, dando-lhe um
conteúdo concreto e tornando-o historicamente efetivo.
Gramsci encerrava seu argumento nesse mesmo parágrafo afirmando
que os “conceitos não nacionais (ou seja, não referíveis a cada país particular)”
eram equivocados, pois poderiam provocar a passividade e a inércia antes e
depois da fundação de um novo Estado. Antes porque poderiam alimentar a
passividade e a espera de que todos começassem ao mesmo tempo o movimen-
to, único modo de não ser derrotado. Depois porque alimentaria uma forma
de “‘napoleonismo’ anacrônico e antinatural” (idem, p. 1730). Nessas linhas
Gramsci não fazia senão reproduzir dois argumentos presentes na campanha an-
titrotskista na União Soviética e na Internacional Comunista. O primeiro deles
250 alvaro bianchi

dizia respeito ao suposto derrotismo da concepção trotskiana da revolução.103 O


segundo referia-se ao presumido “napoleonismo”, ou seja, seu desejo de exportar
a revolução por meio do Exército Vermelho, agindo como Napoleão Bonaparte
com a Revolução Francesa.
Ambos os argumentos eram extremamente frágeis. O primeiro deles
era, evidentemente contrário ao que o prórpio Gramsci escrevera e criava uma
imagem esquizofrênica na qual Trotsky seria, ao mesmo tempo, ofensivista e
derrotista. O segundo não correspondia ao que o próprio Trotsky afirmava repe-
tidamente rejeitando a hipótese de uma intervenção com o Exército Vermelho
no cenário europeu. Martelli (1996, p. 94-96) destacou de modo ponderado
que o “napoleonismo” foi colocado em prática por Stalin ao final da Segunda
Guerra Mundial e que, desse modo, o anti-“napoleonismo” gramsciano poderia
paradoxalmente servir à critica da política externa stalinista, mas não à crítica
ao dirigente oposicionista. Do mesmo modo, a crítica ao derrotismo caberia a
Stalin em fevereiro de 1917, quando considerando impossível o advento de uma
revolução operária apoiou o governo provisório de Kerensky, mas não é possível
afirmar que Gramsci estivesse informado a respeito de episódios como esse (cf.
Somai, 1982, p. 87).
Para valorizar de modo adequado o “núcleo racional” desse parágrafo
torna-se necessário a crítica dessas passagens escritas com um viés exclusivamente
polêmico e concentrar-se naquilo que constituí o cerne da concepção gramscia-
na da revolução. O nexo nacional-internacional que Gramsci procurava afirmar
o levava a procurar uma terceira via teórica, na qual a rejeição da posição de
Stalin não implicava em uma adesão a Trotsky. Segundo Martelli (1996, p. 93)

103
A acusão de derrotismo havia sido lançada contra a Oposição Unificada por Stalin nas teses
escritas para 15º Conferência do Partido Comunista da União Soviética, em outubro de 1926: “em
Outubro de 1917, a complicada situação e as dificuldades da transição de uma revolução burguesa
para uma proletária engendraram em uma seção de nosso Partido vacilação, derrotismo e descrédito
na possibilidade do proletariado tomar o poder e mantê-lo (Kamenev, Zinoviev), agora, no presente
período de mudança radial as dificuldades da transição para a nova fase da construção do socialismo
motivaram em certos círculos de nosso partido vacilação, descrédito na possibilidade da vitoriosa
construção do socialismo na URSS. O bloco de oposição é a expressão desse espírito do pessimismo e
do derrotismo nas fileiras de uma seção de nosso Partido.” (Stalin, 1954, v. 8, p. 226.)
guerra de movimento/guerra de oposição 251

nessa concepção a construção do socialismo na União Soviética estaria subordi-


nada a duas condições: o desenvolvimento da luta pela hegemonia no interior
do Estado nacional e o desenvolvimento do processo da revolução européia. A
construção do socialismo teria seu início em uma dimensão nacional, mas só se
completaria em escala mundial.
A partir das condições acima enunciadas não é possível estabelcer opo-
sição alguma entre a posição de Gramsci e aquela de Trotsky, muito embora o
antagonismo de ambas com a defesa do “socialismo em um só país” torne-se
evidente. Já foi dito que Gramsci enfatizava a dimensão nacional da política,
enquanto Trotsky destacava a internacional. Mas o nexo nacional-internacional
não expressava para ambos uma relação de sucessão. A esse respeito ambos con-
cordavam que o processo revolucionário teria como “ponto de partida” o Esta-
do-nação e, portanto, o momento internacional só poderia suceder o momento
nacional. A questão era, pois, qual dessas condições ocupava uma posição deter-
minante nessa relação. Era o sentido da tradução de um termo no outro o que
os distinguia. Desse modo é possível dizer que enquanto Gramsci insistia em
um nexo nacional-internacional, procurando traduzir a realidade internacional
para uma situação nacional particular, Trotsky firmava posição sobre um nexo
nacional-internacional, que destacava o desenvolvimento desigual e combinado
do capitalismo contêmporâneo.
Não se trata, pois, de estabelecer uma falsa identidade entre esses auto-
res, assim como não há mais sentido em uma inventiva oposição de princípios. A
retomada de um diálogo crítico entre suas obras, interrompido pela emergência
simultânea do fascismo e do stalinismo, poderia trazer uma influência positiva
para o marxismo e alimentar a pesquisa crítica sobre as formas da revolução
social. Mas para tal seria necessário deixar preconceitos de lado, abordando di-
retamente os textos dos próprios autores. Com esse propósito a pesquisa deveria
se orientar para a determinação das características realmente distintivas de cada
uma dessas teorias, procurando particularizar suas contribuições.
252 alvaro bianchi

Revolução/Restauração

Uma grande sensibilidade histórica marcava o marxismo de Antonio


Gramsci, a ponto de um comentador afirmar que os Quaderni poderiam ser, por
essa razão, lidos como “um grande livro de história: uma história do Ocidente
burguês” (Burgio, 2002, p. 3). Tal leitura sem dúvida encontra forte evidencia
no próprio texto gramsciano, bem como nos vários planos que escreveu para eles
antes e durante sua composição nos quais a pesquisa histórica ocupava posição
central. Não se deve perder de vista, entretanto, que essa sensibilidade tinha
forte orientação política e visava tanto uma compreensão mais exata do presente
como a construção de uma alternativa à historiografia idealista e conservadora
que predominava no ambiente cultural italiano.
“Historicismo absoluto” era a fórmula polêmica com a qual era resu-
mida essa sensibilidade. A fórmula era fortemente influenciada pelo pensamento
de Benedetto Croce para quem a história não seria possível sem os conceitos fi-
losóficos e a filosofia não teria vida sem a história, uma vez que toda proposição
filosófica “nasce na mente de um determinado indivíduo em um determinado
ponto do tempo e do espaço e entre condições determinadas e é, por isso, sempre
historicamente condicionada.” (Croce, 1947, p. 199.) A história era a filosofia em
sua concretude e aquela incluiria a filosofia que não existiria senão na história e
como história (Croce, 1945, p. 8).
A partir da identidade idealista que estabelecia entre história e filo-
sofia, o crítico napolitano concluía que a história da filosofia, como história
de um momento do espírito, condensaria em si toda a história (Croce, 1947,
p. 201). Foi esse idealismo que Croce resumiu em sua obra madura com a
expressão “historicismo absoluto” (Croce, 1945, p. 8). Era esse radical histori-
cismo idealista o que levava o editor de La Critica a afirmar que “toda história
verdadeira é história contêmporânea”, na medida em que a história real seria
apenas aquela que se apresentaria como objeto do pensamento, ato que só
poderia ocorrer no tempo presente. O desenvolvimento cultural contêmporâ-
neo, por exemplo, permitiria pensar a cultura helênica ou a filosofia platônica
a partir dos incontornáveis problemas atuais mas fora desses problemas elas
não seriam história (Croce, 2001, p. 13-17). Desse modo, a reflexão presen-
te sobre essa cultura e essa filosofia marcaria estas de modo incontornável,
transformando-as em parte de nosso tempo.
Percebe-se que embora rejeitasse explicitamente toda tentativa de iden-
tificação entre a filosofia – e portanto a história, sua idêntica – e a política,
o projeto historicista croceano não deixava de ter um forte impulso prático.
O filósofo reconhecia que as motivações da pesquisa histórica não poderiam
deixar de ser praticamente orientadas e nisso aproximava-se claramente da teoria
weberiana do conhecimento. Mas os resultados ao quais Croce chegava carre-
gavam consigo aquela orientação política e cultural imprimida em sua origem.
A afirmação do caráter contêmporâneo de toda história era marcada de modo
tão nítido pela política presente que dificultava enormemente a reivindicação do
princípio da neutralidade para os resultados dessa pesquisa.
O historicismo absoluto ddo crítico napolitano ganhou forma em sua
historiografia ético-política. O projeto de pesquisa da história ético-política
croceana não era um mero exercício de erudição. Ele tinha o propósito político-
prático de estabelecer um programa hegemônico de reconstrução da vida cultu-
ral e política da península. Construindo uma resposta teórico-política à crise do
liberalismo, do positivismo e do catolicismo, o filósofo napolitano desenvolveu
um amplo programa de renovação ideológica e cultural da sociedade italiana (cf.
Kanoussi e Mena, 1985, p. 46). E embora esse propósito não pudesse ser oculta-
do, Croce permaneceu fiel ao nexo dos distintos por ele estabelecido e continuou
debatendo-se na recusa à identidade entre filosofia/história e política.
Prisioneira do nexo dos distintos a obra croceana encontrava-se carregada
de ambigüidades e contradições. Sua concepção da verdadeira história como his-
tória contêmporânea tornava-lhe incontornável confessar que o nexo indissolúvel
ente vida e pensamento na história implicava no reconhecimento de sua utilidade
(cf. Croce, 2001, p. 17). Ao mesmo tempo afirmava que a “história não é nunca
justiceira, mas sempre justificadora; e justiceira não poderia tornar-se sem tornar-
se injusta, ou seja, confundindo o pensamento com a vida e assumindo como
juízo do pensamento as atrações e repulsas do sentimento.” (Idem, p. 98).
guerra de movimento/guerra de oposição 255

Gramsci, como é sabido, em sua polêmica com Bukharin afirmou que


a “filosofia da práxis é o ‘historicismo’ absoluto, a mundanização e terrenalidade
absoluta do pensamento, um humanismo absoluto da história.” (Q 11, § 27,
p. 1437. Cf. tb. Q 15, § 62, p. 1826-1827.) E o fez com o propósito polêmico
de marcar toda a distância que separava a filosofia da práxis do cientificismo
naturalista e do positivismo que vicejavam no marxismo do início do século
XX. O historicismo gramsciano desenvolve essa afirmação reconhecendo uma
importância central à historicidade dos fatos sociais e dispondo-se a aplicar o
materialismo histórico a si mesmo (cf. p. ex. Löwy, 1988, p. 122 e 128-132).
Se a distância entre o historicismo gramsciano e o cientificismo natu-
ralista ficava evidente no Quaderno 11, era no Quaderno 10 que se manifestava
com toda sua intensidade a oposição ao historicismo croceano. A apropriação
da noção de “historicismo absoluto” por Gramsci era, como tantas outras, uma
radical reinterpretação e relaboração teórica politicamente orientada com a fina-
lidade de eliminar da noção original todo traço de idealismo e moderação polí-
tica. A incorporação do historicismo absoluto à filosofia da práxis era precedida
pela decantação de seu original idealismo. Deixava, assim, de ser expressão do
movimento do espírito e passava a ser a expressão das lutas e conflitos sociais.
Era na análise da história européia e italiana que a radicalidade desse
empreendimento gramsciano evidenciava-se. O conceito de revolução passiva
ocupou um lugar central nesse empreendimento.104 Foi por meio desse conceito,
que Gramsci foi buscar em Vincenzo Cuoco, que pôde desenvolver sua concep-
ção historicista e que sua reflexão nos Quaderni chegou a seu ápice. O conceito
aparece pela primeira vez no Quaderno 4, em um texto redigido provavelmente
em novembro de 1930 (cf. Francioni, p. 141):

Vincenzo Cuoco e a revolução passiva. Vincenzo Cuoco chamou revolução passiva


aquela ocorrida na Itália como resposta às guerras napoleônicas. O conceito de
revolução passiva parece exato não apenas para a Itália, mas também para os outros
países que modernizaram o Estado por meio de uma série de reformas ou de guer-
ras nacionais, sem passar pela revolução política de tipo radical-jacobino. Ver em

104
Kanoussi e Mena chegam a afirmar que “tudo o que está nos Cadernos tem a ver com o
conceito de revolução passiva.” (1985, p. 13.)
256 alvaro bianchi

Cuoco como ele desenvolve o conceito para a Itália. (Q 4, § 57, p. 504.)

Essa passagem parece ter antecedido uma nota colocada à margem do


importantíssimo § 44 do Primo Quaderno, logo após Gramsci discutir a neces-
sidade de um grupo político tornar-se dirigente antes de chegar ao governo,
exemplificando-a com a direção política que os moderados exerceram sobre o
Partito d’Azione, durante o Risorgimento. A passagem já foi citada de modo mais
extenso neste livro, mas vale a pena repetir o trecho: “Da política dos moderados
aparece clara esta verdade e é a solução desse problema que tornou possível o
Risorgimento na forma e nos limites nos quais ele ocorreu, de revolução sem
revolução (ou de revolução passiva segundo a expressão de V. Cuoco).” (Q 1,
§ 44, p. 41.) O problema cuja solução tornou possível o Risorgimento foi o da
direção política e a passagem entre parênteses foi acrescida à margem do texto,
em data incerta, mas, evidentemente, após sua primeira redação em fevereiro ou
março de 1930.
Fortemente influenciado pelo realismo de Maquiavel e pelo historicis-
mo de Vico, Vincenzo Cuoco havia definido a revolução napolitana de 1799
como uma revolução passiva nas qual a massa era “indiferente e inerte” (Cuoco,
1999, p. 210). Distinguia, assim, as revoluções ativas nas quais “o povo diri-
ge prontamente a si próprio em direção àquilo que lhe interessa diretamente”
(idem, p. 172) das revoluções passivas, nas quais “o agente do governo adivinha
o ânimo do povo e lhe apresenta aquilo que deseja e que por si próprio não
saberia obter.” (Idem.)
As referências a Cuoco são, entretanto, exíguas ao longo dos Quaderni e
seu Saggio storico sulla rivoluzione di Napoli não se encontrava entre os livros que
Gramsci tinha à disposição. Gerratana afirma no aparelho crítico dos Quaderni (Q,
p. 2654-2655) que o mais provável é que a apropriação do conceito de revolução
passiva não tivesse tido como ponto de partida a leitura direta dessa obra e sim uma
fonte indireta: La rivoluzione napolitana del 1799, de Benedetto Croce (1998).
O liberalismo elitista de Cuoco, que se manifestava no discurso de oposi-
ção ao “democratismo”, certamente agradava a Croce. Muito embora a ausência de
atividade de um povo concebido metafisicamente como encarnação dos ideais da
nação deixasse o autor do Saggio storico consternado, ele desaprovava a participação
direta na política do povo real e restringia a participação eleitoral àqueles que soubes-
guerra de movimento/guerra de oposição 257

sem “ler e escrever” e “possuam bens, ou tenham uma indústria, ou exercitem uma
arte que não seja servil” (Cuoco, 1999, p. 328), o que excluía os trabalhadores rurais
e boa parte dos urbanos da vida política. É paradoxal, pois, que Gramsci tivesse se
apropriado da fórmula de Cuoco e que a utilizasse contra Croce.
A apropriação dessa fórmula tinha, entretanto, um claro viés metodo-
lógico. Com freqüência Gramsci recorria a um método histórico analógico. Tal
método não pode ser confundido, entretanto, com a vulgar comparação empi-
rista, que encontrando umas poucas semelhanças entre acontecimentos históri-
cos distintos pretende, indutivamente, formular uma “lei histórica”. O método
analógico gramsciano tinha por finalidade não a afirmação de tais “leis” e sim
a construção de conceitos capazes de apreender a complexidade do movimento
histórico. O processo histórico sobre o qual Gramsci inicialmente refletiu por
meio desse conceito foi o da formação do Estado nacional italiano sem uma
revolução política de tipo jacobino.
A formação do Estado moderno era para Gramsci o ato de nascimento
da própria modernidade. Entre a conquista do poder pela burguesia e o nasci-
mento do mundo moderno estabelecia-se, assim, uma forte correspondência
(Burgio, 2003, p. 46-47). Como cânone de interpretação, a revolução passiva
era uma chave teórica para a compreenssão do advento da modernidade capi-
talista na maioria dos países da Europa. Foi por contraposição à idéia de uma
hegemonia política tal qual realizada pelos jacobinos que Gramsci elaborou
teoricamente o conceito de revolução passiva como um cânone de interpretação
histórica. A contraposição já se fazia evidente no Primo Quaderno. Nele, seu
autor afirmava que os jacobinos haviam conquistado

com a luta sua função de partido dirigente: eles se impuseram à burguesia fran-
cesa, conduzindo-a a uma posição muito mais avançada daquela que a burguesia
teria desejado “espontaneamente” e ainda muito mais avançada do que aquela
que as premissas históricas deveriam consentir e, por isso, os golpes de retorno e
a função de Napoleão. (Q 1, § 44, p. 50.)

Para exercer essa função dirigente os jacobinos precisaram deixar de


lado seus interesses corporativos. A resistência das velhas classes dominantes e a
decidida atividade política dos seguidores de Robespierre retiraram da inércia a
258 alvaro bianchi

burguesia e a colocaram sob a direção jacobina. A linguagem e a ideologia dos


jacobinos com sua fraseologia classicista eram apenas aparentemente abstrata e
na verdade, segundo Gramsci, refletiam perfeitamente as necessidades da época:
“aniquilar a classe adversária ou ao menos reduzi-la à impotência” e “alargar os
interesses de classe da burguesia encontrando os interesses comuns entre essa e
os demais estratos do terceiro estado” (Q 1, § 44, p. 51).
Rompendo a estreiteza econômico-corporativa que caracterizava as
antigas classes feudais, a buguesia criou as condições para a absorção de toda a
sociedade a seu universo econômico produtivo por meio da afirmação de uma
igualdade abstrata que se afirmava na esfera de um mercado ao qual todos deve-
riam ter acesso. Ao mesmo tempo alargou as fronteiras da política, incorporan-
do à esfera estatal as classes subalternas por meio da afirmação de uma liberdade
abstrata que se afirmava na esfera dos direitos civis abstratamente iguais para
todos. A expressão máxima desse movimento de expansão econômica e política
havia sido o jacobinismo. Por essa razão, os partidários de Robespierre eram
profundamente realistas:

os jacobinos, então, forçaram a mão, mas sempre no sentido do desenvolvimento


histórico real, porque eles não apenas fundaram o Estado burguês, eles fizeram
da burguesia a classe “dominante”, mas fizeram mais (em um certo sentido),
fizeram da burguesia a classe dirigente, hegemônica, isto é, dotaram o Estado de
uma base permanente. (Idem.)

O nexo entre a análise da Revolução Francesa e o “Prefácio de 1859”


não era ainda explicitamente afirmado por Gramsci no Primo Quaderno. Mas no
Quaderno 4, naquele primeiro esboço a respeito da análise das relações de forças,
Gramsci claramente estabelecia esse vínculo: “Estes critérios metodológicos [do
“Prefácio de 1859”] poderão adquirir toda sua importância apenas se aplicados
ao exame dos estudos históricos concretos. Poder-se-ia fazê-lo utilmente para os
acontecimentos que ocorreram na França de 1789 a 1870.” (Q 4, § 38, p. 456.)
Compreende-se à luz do “Prefácio de 1859” como o jacobinismo possa
ter se tornado para Gramsci uma categoria histórico interpretativa fundamental
(cf. Medici, 2004, p. 115). Os jacobinos expressaram no terreno da política as
“condições necessárias e suficientes” já existentes na França, resolvendo politica-
guerra de movimento/guerra de oposição 259

mente as contradições que se manifestavam na estrutura da sociedade. Fizeram


mais do que transformar a burguesia em governo, ou seja, em classe dominante.
Fizeram dela uma classe nacional dirigente e hegemônica, aglutinando ao seu
redor as forças vivas da França, recriando a própria nação e o Estado, dando-lhes
um conteúdo moderno e libertando as forças produtivas das amarras das antigas
relações de produção. Na análise da Revolução Francesa e do jacobinismo os
Quaderni estabeleciam, desse modo, um estreito paralelismo entre o “processo
de constituição da hegemonia burguesa e a teoria lógico-política das relações de
força que definem a hegemonia em geral.” (Tosel, 1994, p. 43.)
A realização da hegemonia por meio da revolução era o que Gramsci
chamava de “jacobinismo de conteúdo”. O conteúdo do jacobinismo era defini-
do pelo máximo desenvolvimento das energias privadas nacionais, ou seja, pela
constituição e fortalecimento da sociedade civil e pela criação de uma ampla
rede de instituições através das quais o consenso moral e ético era permanente-
mente organizado. Daí que os jacobinos insistissem tanto na identidade entre o
governo e a sociedade civil, procurando unificar no Estado, de maneira ditato-
rial, toda a vida política nacional (Q 6, § 87, p. 763).
A constituição desse moderno Estado teve, então, como pressuposto, o
alargamento de sua própria base histórica. Para realizar sua hegemonia sobre toda
a população, a burguesia incorporou demandas, realizou as aspirações da nação,
assimilou economicamente grupos sociais, transformou sua cultura na cultura de
toda a sociedade. O alargamento da base histórica do Estado foi, assim, acompa-
nhado pela expansão econômica e política da própria burguesia. Para Gramsci o
regime jurídico parlamentar era o resultado desse processo de expansão, expressan-
do a sociedade civil no interior da própria sociedade política:

O desenvolvimento do jacobinismo (de conteúdo) encontrou sua perfeição for-


mal no regime parlamentar, que realiza no período mais rico das energias “priva-
das” na sociedade a hegemonia da classe urbana sobre toda a população na for-
ma hegeliana do governo com o consenso permanentemente organizado (com
a organização deixada à iniciativa privada, portanto de caráter moral ou ético,
porque consenso “voluntário”, de um modo ou outro). (Q 1, § 48, p. 58.)
260 alvaro bianchi

A respeito da Revolução Francesa, Gramsci consultou, principalmente


o primeiro tomo do manual de Albert Mathiez, La Révolution française, que
tinha à disposição na prisão. Com base nessa obra, atribuiu a desagregação do
“bloco urbano de Paris” à votação da Lei Chapelier de 14 de junho de 1791, que
proibia as coalizões operárias, e à Lei do “Maximun” de setembro de 1793, que
congelava os preços e teve como conseqüência uma crise no abastecimento de
Paris. Estariam criadas, assim, as condições para a execução de Robespierre e o
Termidor. Os limites encontrados pelos montagnards em sua ação foram, assim,
os limites da própria hegemonia burguesa. Franquear esses limites seria ir além
do que as “condições necessárias e suficientes” permitiam.
A trajetória dos jacobinos foi, também, a da parábola percorrida pela he-
gemonia burguesa. Enquanto fez avançar toda a sociedade, libertando-a das amar-
ras do passado, a burguesia, por intermédio dos jacobinos, exerceu sua hegemonia
de modo espontâneo ampliando as bases sociais do Estado e constituindo novas
esferas de atividade econômica. Mas chegando a seu limite, os limites da própria
ordem burguesa, o “bloco ideológico” que sustentava essa hegemonia apresentou
suas primeiras fissuras e prontamente o consenso espontâneo foi substituído pela
“‘constrição’ sob formas cada vez menos larvares e indiretas, até chegar às medidas
propriamente policiais e aos golpes de Estado.” (Q 1, § 44, p. 42.)
Evidencia-se, assim, uma situação na qual o universalismo burguês que
havia se manifestado no processo revolucionário revelava-se um universalismo
particularista (Burgio, 2003, p. 70). Em junho de 1848, nas ruas de Paris, ficaram
claros os limites da expansão social e política da burguesia. Os sacrifícios e as con-
cessões que poderia fazer restringiam-se a uma dimensão econômico-corporativa.
Não poderiam abranger seus interesses fundamentais nem colocar em xeque “seu
fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisi-
vo da atividade econõmica” (Q 13, § 18, p. 1591). As nova classes dominantes
chegavam rapidamente a um ponto de saturação, fechando o acesso das classes
subalternas à política e retornando “à concepção do Estado como pura força”.
Atingido esse ponto, a “classe burguesa é saturada: não apenas não assimila novos
elementos, mas desassimila uma parte de si própira (ou pelo menos as desassimila-
ções são miuito maiores do que as assimilações).” (Q 8, § 2, p. 937.)
guerra de movimento/guerra de oposição 261

Os limites que na França apareceram no ápice da revolução, no ano de


1793, manifestaram-se na Itália em seu início, em 1848. Não havia na Itália um
partido como o de Robespierre. O Partido d’Azione, não possuía o “espírito jaco-
bino” ou seja, a vontade de tornar-se um “partido dirigente” (Q 1, § 44, p. 52).
Seus dirigentes, como Mazzini e Garibaldi, não eram grandes proprietários, em-
preendedores comerciais ou industriais, não pertenciam às altas classes e, portanto,
não poderiam exercer sobre estas uma atração espontânea, como a desempenhada
pelos moderados do Piemonte. Muito embora Mazzini considerasse que apenas
o “povo” poderia ser o artífice de uma nova unidade nacional, manifestava recor-
rente aversão ao que denominava “guerra de classes”, aos atentados à propriedade
privada e a todo projeto de “lei agrária” (cf. Procacci, 1978, v. 2, p. 348).
Em sua análise dos moderados e dos mazzinianos o argumento de Gra-
msci assumia a forma de uma sociologia histórica da política, na qual a análise
comparada era sobreposta à investigação das bases sociais das diferentes forças
políticas, complementando esta. Foi nessa investigação das bases sociais desses
partidos que o autor dos Quaderni encontrou os fundamentos de uma diversa
capacidade hegemônica por parte de cada um dos grupos:

os moderados representavam uma classe relativamente homogênea, razão pela


qual a direção sofreu oscilações relativamente limitadas, enquanto o Partito
d’Azione não se apoiava especificamente em nenhuma classe histórica e as osci-
lações que sofriam seus órgãos dirigentes correspondiam aos interesses dos mo-
derados. (Q 1, § 44, p. 41.)

Para tornar-se um partido dirigente o Partito d’Azione necessitava assu-


mir uma função jacobina e agir de modo planejado com um programa de gover-
no que pudesse unificar os anseios da nação. Para imprimir ao Risorgimento uma
direção popular e democrática deveria ter “um programa orgânico de governo,
que abraçasse as reivindicações essenciais das massas populares, em primeiro
lugar dos camponeses.” (Idem, p. 42.) A ausência desse programa evidenciava
os limites históricos do Partito d’Azione. Ficava assim à margem da história a
solução da questão agrária na Itália e, conseqüentemente, ficava também sem
solução a questão do clericalismo e do lugar do Vaticano na vida política da
península (cf. Q 1, § 43, p. 40).
262 alvaro bianchi

A ausência de um programa popular e democrático tornou o Partito


d’Azione uma força política dependente dos moderados. Os laços pessoais de
alguns de seus expoentes, como Garibaldi, com os dirigentes do Piemonte
intensificavam esse caráter subordinado transformando-o em mero instru-
mento de agitação política dos moderados. Tinha razão, portanto, Vittorio
Emanuele II o líder do Piemonte, quando afirmava “ter no bolso” o Partito
d’Azione (cf. Q 1, § 44, p. 41 e Q 15, § 25, p. 1782). A função dirigente
exercida espontaneamente pelos moderados no Risorgimento lhes permitiu
levar a cabo sua hegemonia sobre os intelectuais da península potencializando
sua função de direção ao mesmo tempo em que se unia de modo indissolúvel
aos organizadores do novo aparelho estatal. A inexistência de um jacobinismo
de conteúdo na Itália era compensada pela expansão dos estratos intelectuais
capazes de soldar ideologicamente a nação e pela difusão dos mecanismos
de coerção que garantiam o predomínio das funções de dominação sobre as
classes subalternas (Buci-Glucksmann, 1978, p. 130).105
Permanecia desse modo inconcluso o processo de conformação de um
moderno Estado nacional na península italiana. A hegemonia do Norte pressu-
punha o apoio das forças políticas que no Sul representavam as antigas relações
sociais. Pior, a aliança entre os industriais do Norte e os latifundiários do Sul sob
a base do protecionismo alfandegário condenou o Mezzogiorno ao atraso, blo-
queou a expansão do industrialismo e a realização de uma “revolução econômica
de caráter nacional”, que incorporasse novas zonas econômicas (Q 1, § 149, p.
131). Criavam-se, assim, as condições para um círculo vicioso que em nome do
novo reproduzia a separação entre as duas regiões ameaçando a própria unidade
nacional devido à divisão existente entre o Norte industrial e Sul agrário.
Lampedusa no romance Il Gattopardo sintetizou o destino dessa re-
volução sem revolução na afirmação que o jovem Tancredi fez perante seu
tio Fabrizio, príncipe de Salina: “Se não estivermos lá. Eles fazem uma re-
pública. Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude.”
(Lampedusa, 1958, p. 42.) Fabrizio retomou essa idéia durante sua conversa
com Chevalley que em nome do novo governo lhe oferecera um posto de

105
Sobre o lugar dos intelectuais na análise gramsciana do Risorgimento, ver Vianna (1997, p.
48-57).
guerra de movimento/guerra de oposição 263

senador do Reino. Tendo recusado a oferta explicou-lhe as razões naturais do


atraso do Mezzogiorno em um discurso fortemente marcado pelo positivismo.
Chevalley como não poderia deixar de ser aceitou a recusa, mas intimamente
ponderou: “Este estado de coisas não durará; nossa administração nova, ágil,
moderna, mudará tudo.” A resposta de Fabrizio também se deu sob a forma de
um diálogo interior que carregava uma amargura própria de seu aristocrático
cinismo: “Tudo isto não deveria durar; mas durará sempre; o sempre humano,
quer dizer, um século, dois séculos...; e depois será diferente, mas pior.” (Lam-
pedusa, 1958, p. 219.)
Já no próprio processo de constituição do Estado nacional aparecia
esse fenômeno característico da vida política italiana, denominado de transfor-
mismo ou gattopardismo. Tal fenômeno difundiu-se com o governo da Sinistra
storica de Agostino Depretis e a incorporação ao governo dos elementos ativos
e progressistas da Destra storica no ano de 1882. Desse modo conformou-se
um bloco moderadamente reformador, bloqueando a ação política dos grupos
mais radicais no Parlamento, prática essa que seria desenvolvida nos governos de
Francesco Crespi e Giovanni Giolitti.
A questão do transformismo foi tratada por Gramsci em seus escritos
políticos juvenis. Nesses textos, primeiramente tratou o transformismo como o
resultado da moderação dos radicais do Risorgimento que teriam não apenas mu-
dado de posição, mas renovado os centros dirigentes dos movimentos políticos
conservadores. Em um artigo publicado no jornal Il Grido del Popolo, em março
de 1917 a respeito dos adversários do socialismo, afirmava:

A mentalidade de nossos adversários é transformista. O primeiro núcleo dos


partidos conservadores atuais foi constituído com os homens que no período
entre 1860 e 1880 se converteram das idéias extremas de então (mazzinianismo,
radicalismo antimonárquico, etc.) à idéia da ordem. (CF, p. 71.)

Não eram apenas os adversários mais tenazes dos socialistas que possuí-
am um modo de pensar transformista. Esse era o conteúdo da mentalidade bur-
guesa, bem como, o de alguns membros do próprio Partido Socialista, escrevia
Gramsci em uma artigo intitulado “Il bozzacchine”, publicado no Avanti!, em 4
de junho de 1917. Como modo de agir e pensar o transformismo era expressão
264 alvaro bianchi

do empirismo e do pragmatismo que o marcava. Serva da contingência, a men-


talidade burguesa limitava a ação ao âmbito da pequena política, reproduzindo
as condições de existência do presente. Segundo ele:
O conteúdo da mentalidade burguesa é o transformismo, isto é, o empirismo
político mais trivial. Alguns pseudo-socialistas de hoje eram apenas burgueses
da tradição transformista que haviam mudado o mercado das contingências; seu
cérebro era preenchido por oleografias proletárias superadas, e por isso se diziam
socialistas. E continuam ainda: julgam os socialistas com esta mentalidade trans-
formista e empírica. Não têm outro critério de distinção e de juízo que o fato
singular, isolado. (CF, p. 187-189.)

A sinonímia que Gramsci estabelece entre o transformismo e o empi-


rismo político não constituía uma explicação para o fenômeno, muito embora
permitisse uma visão mais ampla dele. Foi no artigo “Il regime dei pascià”, pu-
blicado no jornal Avanti!, em julho de 1918 que uma explicação era esboçada,
fortemente ancorada na história política italiana. Segundo Gramsci a “Itália é
um país onde sempre se verifica este fenômeno curioso: os homens políticos,
chegando ao poder, têm imediatamente renegado as idéias e os programas de
ação que propugnaram como simples cidadãos.” (NM, p. 217.) Assim, os defen-
sores da liberdade política da oposição uma vez no governo proíbem o congres-
so dos socialistas e os advogados da liberdade econômica da oposição, quando
ministros propugnam o intervencionismo estatal. “Por que esse fenômeno?”,
interrogava-se Gramsci.
Em sua resposta considerava insuficiente a afirmação da ausência de
caráter e de energia moral dos indivíduos. Se dispunha, portanto, a ir além do
artigo citado de maio do ano anterior, em Il Grido del Popolo, intitulado, justa-
mente “Carattere”. As razões desse “fenômeno curioso” remetiam para Gramsci
à formação da própria burguesia italiana e a sua organização em partidos. A
ausência de verdadeiros partidos nacionais da burguesia, a falta de um programa
que sintetizasse o interesse geral dessa classe, permitia a proliferação de interesses
particularistas. A inexistência de partidos nacionais correspondia à inexistência
de uma “burguesia nacional”, com interesses comuns, ausência essa já evidencia-
da no Risorgimento. No lugar desses interesse nacionais de uma classe unificada
restavam, apenas, “interesses locais especulativos de clientelas locais.” (NM, p.
guerra de movimento/guerra de oposição 265

218.) Era essa a chave explicativa retratada no Primo Quaderno e desenvolvida


no Quaderno 19:

Os moderados continuaram a dirigir o Partito d’Azione mesmo depois de [18]70


e o “transformismo” é a expressão política dessa ação de direção; toda a política
italiana de [18]70 até hoje é caracterizada pelo “transformismo”, isto é, pela
elaboração de uma classe dirigente nos quadros fixados pelos moderados depois
de 1848, com a absorção dos elementos ativos, tanto das classes aliadas como
das inimigas. A direção política torna-se um aspecto de domínio, enquanto a
absorção das elites das classes inimigas produz a decapitação destas e a própria
impotência. (Q 1, § 44, p. 41.)

Os moderados continuaram a dirigir o Partito d’Azione mesmo depois de 1870 e


1876 e o assim chamado “transformismo” não é mais que a expressão parlamentar
desta ação hegemônica intelectual, moral e política. Pode-se dizer, por outro lado,
que toda a vida estatal italiana de 1848 em diante é caracterizada pelo transfor-
mismo, isto é, pela elaboração de uma classe dirigente sempre mais ampla nos
quadros fixados pelos moderados depois de 1848 e da queda da utopia neogüelfa e
federalista, com a absorção gradual, mas continua e obtida com métodos diversos
em sua própria eficácia, dos elementos ativos, tanto dos grupos aliados como dos
adversários que pareciam inimigos irreconciliáveis. Nesse sentido, a direção políti-
ca torna-se um aspecto da função de domínio, na medida em que a absorção das
elites dos grupos inimigos conduz à decapitação destes e ao próprio aniquilamento
por um período muito longo. (Q 19, § 24, p. 2010-2011.)

O fenômeno do transformismo caracterizava justamente os “limites”


e as “formas” da hegemonia dos moderados. A direção política dos moderados
sobre as classes subalternas restringia-se à direção que exercia sobre os grupos
dirigentes dessas classes por meio do transformismo, viabilizando uma “radi-
calização dosificada” na qual a energia política dos subalternos era colocada
sob controle (cf. Braga, 1996, p. 172). Nesse contexto, a direção política con-
verteria-se em aspecto da função de domínio. Segundo Voza (2004, p. 191),
Gramsci atribuía aos moderados a realização de uma “plena função hegemônica,
‘dirigente’ e ‘dominante’ ao mesmo tempo”. Não há como negar o exercício de
266 alvaro bianchi

uma eficaz função hegemônica pelos moderados, mas é preciso qualificá-la. A


função dirigente era exercida sobre uma base social estreita: a própria burguesia
industrial, a burguesia agrária meridional e os dirigentes do Partito d’Azione. A
função dominante, por sua vez, espraiava-se por toda a nação e abarcava tanto
o conjunto das classes dominantes como as classes subalternas. A função hege-
mônica plena não pode, portanto, ser confundida com uma hegemonia plena tal
como a realizada pelos jacobinos. Mas ainda assim permanece uma questão que
será possível responder apenas mais adiante: exerceram os moderados, de fato,
uma “função hegemônica plena”?106
O contraste entre a França e a Itália, os jacobinos e os os moderados/
mazzinianos, constituiu um modelo histórico para a análise do processo de
construção dos Estados nacionais europeus. Atividade e passividade, “maior ou
menor energia e radicalidade do processo revolucionário” (Burgio, 2003, p. 54)
forneciam os critérios a partir dos quais era possível compreender as diferentes
formas de chegada à modernidade. Mas uma valoração adequada de tais crité-
rios deve estabelecer o nexo existente entre essas duas formas compreendendo
de modo dinâmico a conformação dos diversos caminhos percorridos. A linha
política sobre a qual se desenvolveu o Risorgimento italiano havia sido pontilha-
da pelos fatores internacionais, segundo Gramsci (Q 1, § 44, p. 54). Essa linha,
que permitia estabelecer o vínculo entre a Revolução Francesa e o Risorgimento,
foi traçada de modo preciso no § 151 do Primo Quaderno, intitulado “Rapporto
storico tra lo Stato moderno francese nato dalla Rivoluzione e gli altri Stati moderno
europei”:

106
Gramsci destacava o caráter limitado da hegemonia burguesa na Itália em um texto de 1926,
intitulado La situazione italiana e i compiti del PCI (1926). Nele atribuia à fragilidade intrínseca
do capitalismo italiano a necessidade dos industriais recorreram, para sobreviver, ao compromisso
econômico e político com os proprietários de terra baseado na solidariedade de interesses existentes
entre alguns grupos privilegiados, em detrimento dos interesses gerais da produção e da maioria
dos trabalhadores. Da mesma maneira que não conseguia organizar a economia nacional a sua
imagem e semelhança, a burguesia industrial não organizava, por conta própria, a sociedade e o
Estado: “Para reforçar o Estado e para defendê-lo, era necessário um compromisso com as classes
sobre as quais a indústria exerce uma hegemonia limitada, particularmente os agrários e a pequena
burguesia” (CPC, p. 491. Grifos meus).
guerra de movimento/guerra de oposição 267

A questão é de sumo interesse porque não é resolvida segundo esquemas socioló-


gicos abstratos. Ela historicamente resulta destes elementos: 1º) Explosão revo-
lucionária na França; 2º) Oposição européia à revolução francesa, à sua expansão
pelos “canais” de classe; 3º) Guerra revolucionária da França com a República
e com Napoleão e constituição de uma hegemonia francesa com tendência a
um Estado universal; 4º) Insurreições nacionais contra a hegemonia francesa e
nascimento dos Estados europeus modernos por ondas sucessivas, mas não por
explosões revolucionárias como a francesa original. (Q 1, § 151, p. 134.)

Do ponto de vista analítico Gramsci considerava que esta última fase,


equivalente à “Restauração”, representava a mais rica de significados e era a
que deveria centralizar sua pesquisa. Era nessa fase que a luta de classes en-
contraria contextos nacionais suficientemente elásticos que permitiram a bur-
guesia chegar ao poder sem passar pelo calvário da revolução, sem lançar mão
do “aparelho terrorista francês”. A elasticidade desses contextos possibilitou
que as velhas classes deixassem de ser dirigentes e se tornassem “governativas”,
fornecendo à burguesia seus quadros intelectuais, como no caso da Inglaterra
(cf. Q 1, § 44, p. 53).107
A expansão da burguesia era exercida, assim, em sentido diverso daque-
le que teve lugar na França. O atraso cultural e econômico da classe burguesa
impedia uma solução progressiva ao problema da expansão da base social do
Estado mediante a incorporação das classes subalernas a sua esfera social e polí-
tica. O povo era assim concebido primordialmente como o inimigo e repelido
do quadro das forças dirigentes (cf. Burgio, 2003, p. 57). Era esse mesmo atraso
cultural e econômico o que levava essa classe a acreditar pouco em suas próprias
forças e a confiar na velha aristocracia as funções de direção política. Falando em
nome da modernidade, Chevalley convidou o nobre Fabrizio para ocupar um
posto no Senado, mas rejeitou a indicação do tosco burguês Calogero Sedàra.
Embora fizesse menção nesse parágrafo à Restauração, foi apenas no
Quaderno 8 em uma nota escrita entre janeiro e fevereiro de 1932, que a re-

107
Gramsci tinha em mente, aqui, a introdução de 1892 de Engels ao livro Do socialismo utópico
ao socialismo científico (cf. MECW, v. 27, p. 298).
268 alvaro bianchi

lação entre o conceito de revolução passiva e a fórmula de Edgar Quinet de


Revolução-Restauração foi estabelecida, embora de modo ainda muito prelimi-
nar. A relação de Gramsci com a obra de Quinet era muito distante. A menção
a esse autor nos Quaderni é raríssima e não há referencia direta a sua obra. A
fonte parece ter sido exclusivamente um artigo de Daniele Mattalia publicado
na revista Nuova Italia, em novembro de 1931. Foi com base nesse artigo que
Gramsci escreveu:

Pesquisar o que significa e como é justificada por Quinet a fórmula da equiva-


lência da revolução-restauração na história italiana. (...) Esse conceito de Quinet
pode ser aproximado daquele de “revolução passiva” de Cuoco? Tanto a “revolu-
ção-restauração” de Quinet como a “revolução passiva” de Cuoco expressariam o
fato histórico da ausência de iniciativa popular no desenvolvimento da história
italiana e o fato de que o “progresso” se verifique como reação das classes do-
minantes ao subversivismo esporádico e desorganizado das massas populares,
com “restaurações” que acolhem uma parte das exigências populares, portanto
“restaurações progressivas” ou “revoluções-restaurações” ou ainda “revoluções
passivas”. (Q 8, § 25, p. 957).

“Revolução passiva” e “revolução-restauração” são conceitos que Gra-


msci mobilizou, neste ponto para expressar os limites e as formas do Risorgimen-
to, da constituição do Estado nacional italiano. Embora a análise das premissas a
partir das quais esse processo de “Restauração” se verificava fosse o resultado de
uma reflexão já madura, não é possível afirmar o mesmo com relação à análise
dos resultados dos processos políticos que tinham lugar a partir desse contexto.
Gramsci ainda não havia elaborado de modo preciso o próprio conceito de revo-
lução passiva, o que fazia com que este fosse definido de modo ainda oscilante,
como é possível denotar a partir das diferenças existentes entre a primeira e a
segunda versão da continuação desse texto:

As “ondas sucessivas” são dadas por uma combinação de lutas sociais de classe e
de guerras nacionais, com o predomínio desta última. (Q 1, § 151, p. 134.)

As “ondas sucessivas” são dadas por uma combinação de lutas sociais de classe, de
guerra de movimento/guerra de oposição 269

intervenções pelo alto do tipo monarquia iluminada e de guerras nacionais, com o pre-
domínio destes dois últimos fenômenos. (Q 10/II, § 61, p. 1358. Grifos meus.)

Embora não esgotasse o conceito de revolução passiva, o papel dirigen-


te assumido pelo Estado acrescido na segunda versão do texto, passaria a ter um
predomínio ainda maior sobre as outras formas na fase mais madura de elabo-
ração dos Quaderni. A questão até aqui apenas intuída foi anunciada naquela
primeira formulação do conceito de revolução passiva, inscrita no Quaderno
4, momento no qual Gramsci destacou a modernização do Estado “por meio
de uma série de reformas ou de guerras nacionais” que permitiram contornar a
“revolução política.” (Q 4, § 57, p. 504.)
Desenhava-se, assim, um vínculo que seria posteriormente desenvolvido
nos Quaderni entre revolução passiva e a centralidade da política (De Felice, 1978, p.
200). Estudando os diferentes fatores que teriam permitido o Risorgimento, Gramsci
identificou o lugar central ocupado pelo aparelho estatal do Piemonte no processo
de transição e conformação de Estado nacional unitário na Itália. O fato de que a
unidade italiana tivesse ocorrido sob a forma de uma revolução passiva e não de
outro modo foi porque “deste desenvolvimento foi motor o Estado piemontês e a
dinastia Savóia.” (Q 6, § 78, p. 747.) Com seu exército, seu corpo diplomático e sua
moderna burocracia o Piemonte forneceu não apenas as forças militares necessárias
à unificação, como também os intelectuais capazes de organizar o consenso.
Para que o Piemonte ocupasse essa posição foi necessária, entretanto,
a ascensão do liberal Cavour ao poder. A supremacia liberal dotou a casa de
Savóia de um programa unitário, superando tanto o “municipalismo” e o “na-
cionalismo exclusivista piemontês” da direita de Solaro della Margarita, como
o neogüelfismo do centro personificado por Vincenzo Gioberti.108 Mas Cavour
e seus partidários, alertava Gramsci, não eram jacobinos italianos: “superaram
a direita de Solaro, mas não qualitativamente, porque conceberam a unidade

108
Os neogüelfos defendiam uma unidade italiana sob a supremacia do papado. Sua denominação
relembra a facção política dos güelfos, ativa nas regiões setentrionais e centrais da Itália a partir do
século XIII. O conflito entre Guelfi e Ghibellini foi retratado por Maquiavel no Libro II de suas
Istorie Fiorentine (1971, p. 658-690).
270 alvaro bianchi

como alargamento do Estado piemontês e do patrimônio da dinastia, não como


movimento nacional de baixo, mas como conquista régia.” (Idem, p. 747).
O lugar da política na transição ocupou posição central no pensamento
maduro de Gramsci. Esse parece ser o ponto de convergência da paciente refle-
xão que encontra seu testemunho material no texto dos Quaderni. No momento
decisivo dessa reflexão, no Quaderno 15, não poderia deixar de comparecer nova-
mente o “Prefácio de 1859”, cuja interpretação era “pedra de toque da reflexão no
cárcere, forma teórica do papel da subjetividade na história própria da filosofia da
práxis gramsciana.” (Kanoussi, 2000, p. 144). Ali afirmava Gramsci:

O conceito de resolução passiva deve ser deduzido rigorosamente dos dois


princípios fundamentais da ciência política: 1) nenhuma formação social de-
saparece enquanto as forças produtivas que nela se desenvolvem encontrarem
lugar para um ulterior movimento progressivo; 2) a sociedade não assume
compromissos para cuja solução ainda não tenham surgido as condições ne-
cessárias, etc. Entende-se que estes princípios devem primeiramente ser de-
senvolvidos criticamente em todas as suas conseqüências e depurados de todo
resíduo de mecanicismo e fatalismo. Assim, devem ser referidos à descrição dos
três momentos fundamentais nos quais pode se distinguir uma “situação” ou
um equilíbrio de forças com o máximo de valorização do segundo momento
ou equilíbrio das forças políticas e, especialmente, do terceiro momento ou
equilíbrio político-militar (Q 15, § 17, p. 1774).

A pauta teórica a partir da qual a “revolução passiva” deveria ser in-


terpretada era, assim, definida por aqueles princípios do “Prefácio de 1859”.
Eles revelavam a articulação particular entre as condições objetivas nas quais
era possível uma modernização passiva da sociedade e da política. Um contexto
nacional no qual predominavam condições objetivas ainda não plenamente de-
senvolvidas e condições subjetivas nas quais as antigas classes dominantes ainda
não haviam esgotado todas as suas potencialidades criava a possibilidade de uma
persistência das antigas formas sociais e políticas no interior de um renovado
invólucro. A “velha” formação social dispunha ainda de energias históricas sufi-
cientes que lhe permitiriam persistir. Gramsci estabelecia, assim, um forte nexo
guerra de movimento/guerra de oposição 271

entre o conceito de revolução passiva e uma “teoria da persistência” que era


construída a partir do texto de Marx (Burgio, 2003, p. 66).
A revolução era passiva, mas a passividade que a caracterizava era aquela
das classes subalternas, e não da classes dominantes. Uma nova estrutura social e
uma renovada forma política surgiam como resultado dos conflitos que contra-
punham o novo ao velho e ao novíssimo, a burguesia às antigas classes feudais
e ao proletariado. A revolução passiva nascia assim da luta social e se constituia
de modo dinâmico alterando os quadros sociais e políticos que caracterizavam o
período precedente (cf. Burgio, 2003, p. 51 e 57). A modernidade que era seu
resultado encontrava-se, por essa razão prenhe de conflito.
“Prefácio de 1859” – Análise das relações de forças – Revolução passi-
va. Os pontos fortes da análise política gramsciana foram articulados de modo
sintético nesse parágrafo. O fluxo de sua reflexão encontrava nesse momento o
ponto de confluência. Mas esse, é sempre bom repetir, foi o resultado de uma
paciente reflexão que nesse momento ainda se encontrava inconclusa. As tenta-
tivas de transformar Gramsci em um pensador “sistemático” ao colocar lado a
lado passagens redigidas em momentos diferentes acabam impondo uma ordem
artificial e perdem de vista o caráter multifacetado dos conceitos que estão sendo
construídos. Esse momento decisivo do argumento gramsciano não pode, pois,
ser considerado seu momento final, dado o caráter provisório dos Quaderni.
Nessa confluência temática a pesquisa a respeito das complexas relações
entre estrutura e superestrutura emergia de um modo diverso daquele que até
então havia marcado os Quaderni.109 Aquela que havia sido considerada a ques-
tão fundamental da filosofia da práxis – “como das estruturas nasce o movimen-
to histórico?” (Q 7, § 20, p. 869) – não era mencionada o que parece refletir um
certo distanciamento da metáfora arquitetônica e as dificuldades para, a partir
dela e do sentido que lhe havia sido imposto pelo marxismo vulgar, pensar um
processo de transição no qual a política ocupava a posição central.
Gramsci não percorria esse caminho sem companhias ilustres. O próprio
Lênin, em sua análise do desenvolvimento do capitalismo na Rússia havia apontado

109
Sobre as diferentes formulações de Gramsci a esse respeito ver Cospito (2004a, especialmente
p. 239-240 para a análise do Quaderno 15).
272 alvaro bianchi

uma via não revolucionária, a via prussiana, como uma possibilidade de resolução da
questão agrária-camponesa (cf. LCW, v. 13, p. 238-242).110 Por outro lado, Trotsky,
havia ressaltado o papel desempenhado pelo capital financeiro e pelo Estado czaris-
ta no processo de constituição do capitalismo na Rússia contornando a revolução
burguesa (cf. Trotsky, 1971a, t. 1, p. 21-27 e t. 2, p. 147-159). A respeito deste
ponto, o que diferenciava o marxista sardo de seus contêmporâneos era a tentativa
de construir um conceito que desse conta da análise dos processos de transição sem
revolução para o capitalismo, como eles haviam feito, mas que, ao mesmo tempo,
tivesse um alcance metodológico, historiográfico e político mais abrangente.
O conceito de revolução passiva passava a ocupar, assim, um ponto
estratégico na tentativa gramsciana de reconstrução da filosofia da práxis de-
purando-a de todo mecanicismo, economicismo e fatalismo. A esse propósito
é importante prestar atenção na sutil construção metodológica anunciada por
Gramsci no § 56 do Quaderno 15:

Risorgimento italiano. Sobre revolução passiva. Protagonistas os “fatos” por assim


dizer e não os “homens individuais”. Como sobre um determinado invólucro
político necessariamente se modificam as relações sociais fundamentais e novas
forças efetivas políticas surgem e se desenvolvem, que influem indiretamente,
com a pressão lenta mas incoercível, sobre forças oficias que se modificam a si
próprias sem perceberem ou quase. (Q 15, § 56, p. 1818-1819.)

Em seu interessante ensaio sobre o conceito de revolução passiva, We-


neck Vianna atribuiu a esse pequeno parágrafo citado acima na sua completude,
um caráter estratégico. Mas ao fazer isso reduziu os “fatos” à estrutura (cf. Vianna,
1997, p. 44). Mas não é essa a questão na passagem citada. Assumindo que as
“condições necessárias e suficientes”, ou seja, as condições objetivas já se encon-
travam pelo menos potencialmente definidas, Gramsci afirmava a centralidade da
política. Que tais condições se façam presentes, ou seja, que a relação contraditória
entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção tenha
chegado a um ponto de saturação, não é garantia de que uma revolução ativa ou

110
O coneito de via prussiana seria, posteriormente desenvolvido por Lukács (1968. Ver tb. Rego,
1996).
guerra de movimento/guerra de oposição 273

passiva tenha lugar. Para que tal revolução ocorra é necessário o concurso de deter-
minações eficazes que se manifestam no âmbito das superestruturas e dos conflitos
sociais. O “protagonismo” histórico não pode ser, portanto, do dado inerte.
Os “fatos” aos quais era feita referência não compunham, portanto, a
estrutura; eles eram os movimentos e partidos políticos que congregando um
sem número de “homens individuais” em um projeto coletivo assumiam a di-
mensão de uma “força material”, como afirmava Marx (MECW, v. 3, p. 182).
Era por essa razão que o autor dos Quaderni opunha os “fatos” aos “homens
individuais” e não ao “homem coletivo”, ao partido político.
Certamente o objetivo de Gramsci não era estabelecer entre a política e
a economia uma daquelas separações que Croce estabelecia de modo mecânico
entre as diferentes “esferas do espírito”, nem instituir a política como um “deus
oculto”. Não se trata, pois, “de afirmar a primazia da superestrutura, e sim o da
sua unidade com as forças produtivas, cuja condição está no domínio consciente
do movimento destas por parte de seus portadores.” (Vianna, 1997, p. 47).O
movimento relatado pelo marxista sardo nesse § 56 era, justamente, o movi-
mento dessa unidade. O processo de lenta maturação das relações estruturais
(sociais), que ocorrem sob uma determinada forma política, o surgimento de
novas forças políticas eficazes, o conflito explícito e implícito entre as novas e
as velhas formas políticas e a lenta transformação política destas últimas. Faltava
nessa passagem fechar o círculo indicando o impacto político desse conflito so-
bre as relações estruturais (sociais), mas isso Gramsci fará em outras passagens.
A relação entre estrutura e superestrutura, que havia sido considera-
da a questão fundamental da filosofia da práxis, recebia uma tradução política
no problema “das relações entre as condições objetivas e subjetivas do evento
histórico” (Q 15, § 25, p. 1781). A partir dos conceitos de revolução passiva
e revolução-restauração, Gramsci colocava claramente o acento nas chamadas
condições subjetivas definindo sua centralidade. Mas a definição dessa posição
central não as tornava independentes das condições objetivas, como explicava:

Parece evidente que nunca possam faltar as chamadas condições subjetivas quan-
do existem as condições objetivas, dado que se trata de simples distinção de cará-
ter didático: portanto, é sobre a medida das forças subjetivas e de sua intensidade
274 alvaro bianchi

que se deve colocar a discussão, ou seja, na relação dialética das forças subjetivas
contrastantes. (Idem, p. 1781.)

Ao adotar os princípios deduzidos do “Prefácio de 1859” como


critérios metodológicos a partir dos quais o conceito de interpretação da re-
volução passiva poderia ser elaborado, este recebia uma nova impostação. O
tema fundamental claramente deixava de ser a formação do Estado nacional
italiano e o conceito de revolução passiva adquiria sentidos mais profundos.
O ponto de partida do estudo ainda era, para Gramsci, “a expressão de
Cuoco a propósito da revolução napolitana de 1799”, mas esse não era senão
uma das fontes, uma vez que o “conceito é completamente modificado e
enriquecido.” (Q 15, § 17, p. 1775.)
Fundamental nesse processo de elaboração foi a identificação da
função do Piemonte no Risorgimento italiano. Esta foi, segundo Gramsci, a
função de uma “classe dirigente” (Q 15, § 59, p. 1822). Presas a seus inte-
resses econômico-corporativos as diferentes frações das classes dominantes
italianas não queriam tornar-se dirigentes, ou seja, não estavam dispostas a
coordenar seus interesses com os interesses e aspirações das demais frações.
“Queriam ‘dominar’ e não ‘dirigir’”, argumentava Gramsci (idem). Coube,
então ao Estado do Piemonte realizar essa função, assumido um papel equi-
valente ao de um “partido”, ou seja, organizando, centralizando e dotando
de um programa a um grupo social.
O estudo da função exercida pelo Piemonte no processo de constitui-
ção do Estado unitário italiano foi fundamental para a elaboração do conceito
gramsciano de hegemonia. Ela revelava a possibilidade de que a função dirigente
não fosse ocupada por um grupo social e sim por um Estado que dirigiria aqueles
que deveriam dirigir. A investigação dessa função era vital para a ampliação do
conceito de revolução passiva e Gramsci imediatamente relembrou as funções
similares ao Piemonte desempenhadas pela Sérvia nos Bálcãs e até mesmo pela
França após a revolução de 1789 no contexto europeu. O autor dos Quaderni
rematava sua reflexão a esse respeito com uma observação de grande importân-
cia para a construção do conceito:

O importante é aprofundar o significado que tem uma função de tipo “Piemon-


guerra de movimento/guerra de oposição 275

te” nas revoluções passivas, isto é, o fato de que um Estado substitua aos grupos
sociais locais na direção de uma luta de renovação. É um dos casos nos quais se
tem uma função de “domínio” e não de “direção” nestes grupos: ditadura sem
hegemonia. A hegemonia será de uma parte do grupo social sobre o grupo intei-
ro, não deste sobre outras forças para fortalecer o movimento, radicalizá-lo, etc.
segundo o modelo jacobino. (Q 15, § 61, p. 1825.)

A passagem é, como se dizia, de grande importância e isso por duas


razões: a primeira delas é porque a função “Piemonte” era especificada e pas-
sava a integrar o conceito de revolução passiva, ou seja, a revolução passiva
era entendida de modo mais definido como um processo de modernização no
qual o Estado ocupava uma função “dirigente”; a segunda, é porque Gramsci
parece nesse parágrafo modificar, ou pelo menos tornar mais preciso seu juízo
sobre os moderados. Estes apenas em um sentido muito restrito teriam exer-
cido uma função de direção. O caráter restrito desse exercício caracterizava na
supremacia dos moderados a inexistência de uma hegemonia sobre as classes
subalternas, tratava-se, afirmava Gramsci utilizando palavras fortes, de uma
“ditadura sem hegemonia”.
Agora é possível voltar à questão que havia sido posta à interpretação
de Pasquale Voza: exerceram os moderados, de fato, uma “função hegemôni-
ca plena”? Apenas à luz do Quaderno 15 a resposta pode ser não. Percorrido
o percurso revela-se o lento processo de construção de uma “teoria geral da
hegemonia: uma teoria que pudesse ser aplicada tanto à hegemonia pro-
letária quanto à hegemonia burguesa” (Gerratana, 1997, p. 122). Mas na
construção dessa teoria geral tornava-se nítida a diferença existente entre a
hegemonia proletária e a hegemonia burguesa.111 Apenas a primeira, como
expressão das classes subalternas pode revelar todo o antagonismo existen-
te na sociedade e, desse modo, superar a distância que separa dirigentes
e dirigidos superando a condição da própria subalternidade. A hegemonia
burguesa permanece sempre como uma hegemonia restrita que oculta o an-

111
Evidentemente, Anderson (2004) não percebe que nos Quaderni são diferenciadas as varias
formas da hegemonia. Por essa razão, acusou seu autor ter simplesmente estendido o uso da noção
de hegemonia no contexto da revolução burguesa para o contexto da revolução operária.
276 alvaro bianchi

tagonismo e, desse modo, reproduz a separação entre dirigentes e dirigidos


e as condições da subalternidade social.
guerra de movimento/guerra de oposição 277

Gioberti

Na análise histórica dos processos de transição e conformação dos mo-


dernos Estados nacionais europeus, Gramsci evidenciava que aquela revolução
que preenchia os critérios de classicismo – a Revolução Francesa –, não foi a
mais universal (Bianchi, 2006, p. 45). Os processos que vieram a se universali-
zar e condicionaram as formas de modernização social e política no continente
europeu foram aqueles nos quais ocorreu a estatização da transição (cf. Buci
Glucksmann, 1978, p. 130 e Braga, 1996, p. 168).
Para chegar a essa conclusão era necessário superar os estreitos marcos nos
quais o conceito de revolução passiva estava confinado em sua condição primeira
de cânone de interpretação do Risorgimento italiano. Desde o primeiro enunciado
desse conceito essa possibilidade se encontrava aberta. Naquela primeira referência
a Vincenzo Cuoco, no Quaderno 4, Gramsci já apontava a possibilidade de que
o conceito pudesse ser aplicado a “outros países que modernizaram o Estado por
meio de uma série de reformas ou de guerras nacionais” (Q 4, § 57, p. 504).
Inicialmente essa extensão do conceito abrangia apenas os países que
no início do século XIX haviam constituído modernos Estados por meio de
ondas sucessivas de reformas, evitando, desse modo, um explosivo processo
revolucionário, como o ocorrido na França. A revolução passiva deixava, desse
modo, de expressar um fenômeno tipicamente italiano e passava a designar
uma forma de transição ao capitalismo e de modernização social e política
que se tornou a forma geral do século XIX. Gramsci não deixava de alimentar
dúvidas a respeito da abrangência do conceito e da possibilidade de generalizá-
lo, mas de forma paciente e meticulosa foi estendendo-o gradativamente, de
modo a abarcar com ele novas situações sociais e políticas. Testemunhas desse
lento processo de elaboração conceitual são o § 151, do Primo Quaderno e
a segunda redação do mesmo, inscrita no Quaderno 10. Depois de apontar
os diferentes elementos que historicamente caracterizavam a “Restauração”,
Gramsci se perguntava:

Esse “modelo” da formação dos Estados modernos pode repetir-se? Isso pode se
excluir, pelo menos quanto à amplitude e no que diz respeito aos grandes Esta-
278 alvaro bianchi

dos. Mas a questão é de suma importância, porque o modelo francês-europeu


criou uma mentalidade (Q 1, § 151, p. 134).

Esse “modelo” da formação dos Estados modernos pode repetir-se em outras con-
dições. Isso deve ser excluído em senso absoluto, ou pode dizer-se que pelo menos em
parte podem ocorrer desenvolvimentos similares, sob a forma de advento de economia
programática? Pode-se excluir para todos os Estados ou apenas para os grandes? A
questão é de suma importância, porque o modelo França-Europa criou uma men-
talidade que, por ter “vergonha de si” ou por ser um “instrumento de governo” não
é por isso menos significativa. (Q 10/II, § 61, p. 1358. Grifos meus.)

Era na segunda versão que irrompia a análsie do advento do fascismo


e da possibilidade de sua promessa modernizante, contida na fórmula de uma
economia programática, constituir um desenvolvimento assemelhado àquele
descrito pelo conceito de revolução passiva quando aplicado à formação dos
estados nacionais no século XIX. A crítica a Croce e a análise do fascismo
confluíam nesse ponto e foi no seio da crítica à filosofia e à historiografia do
filósofo napolitano que Gramsci desenvolveu parte importante de sua reflexão
sobre o fascismo.112
O ponto alto da reflexão do filósofo napolitano e de sua campanha
contra o marxismo era identificado pelo autor dos Quaderni nas obras histó-
ricas deste, principalmente Storia d’Italia dal 1871 al 1915, de 1928, e Storia
d’Europa nel secolo decimonono, publicada originalmente em 1932. Nestas obras,
o falso antagonismo criado por Croce entre a história ético-política e a história
econômico-política o levava a subestimar ou até mesmo a apagar o momento
da força e da luta entre as classes e reduzir toda história a uma parte dela, ao
momento da consolidação de uma hegemonia e de expansão cultural.
A moderação política do filósofo napolitano transparecia nesses ensaios
históricos. Neles, suas narrações têm início a partir de 1815 e 1871, ou seja, a

112
Em sua exposição a respeito do desenvolvimento da interpretação gramsciana do fascismo, Ada-
mson (1980) sequer menciona essa conexão, embora tenha o mérito, entretanto, de ter mostrado
as sucessivas elaborações da interpretação e as substanciais diferenças existentes entre a formulação
dos escritos anteriores à prisão e aquela que está contida nos Quaderni.
guerra de movimento/guerra de oposição 279

partir do próprio momento da restauração. “Alla fine dell’avventura napoleoni-


ca” – era assim que começava sua Storia d’Europa nel secolo decimonono (Croce,
1999, p. 11). Ao final da “aventura napoleônica” o que restava era a restauração.
A história dessa restauração tinha lugar sem a uma precedente historia da revolu-
ção. O momento da luta era desse modo suprimido da história. Gramsci protes-
tava: Croce excluía da história “o momento no qual se elaboram e agrupam e se
alinham as forças em contraste, o momento em que um sistema ético-político se
dissolve e outro se elabora a ferro e fogo, no qual um sistema de relações sociais
se desintegra e decai e outro sistema surge e se afirma” (Q 10/I, § 9, p. 1227).
Na história de Croce só tinha lugar o momento de expansão cultural, ou ético-
político, no qual os grupos dirigentes já haviam consolidado sua dominação.
A depuração que Croce produzia na história teria o objetivo de criar um
movimento ideológico correspondente àquele da época da restauração, ou seja,
um movimento que permitisse a ascensão da burguesia sem lançar mão da forma
jacobino-napoleônica, satisfazendo as demandas populares em pequenas doses,
por meio do estrito cumprimento da lei, ficando a salvo, dessa forma, as velhas
classes feudais, evitando a reforma agrária e o levante das massas populares.
O levante das massas populares. Esse continuava a ser o espectro que
rondava a Europa. Temor atualizado. Não se tratava mais do medo às hordas
sans-culottes, inaugurado pela revolução Francesa, e sim o pavor provocado pelo
moderno proletariado, medo esse que se não foi criado, foi, sem dúvida nenhu-
ma, elevado à enésima potência pela Revolução Russa. Esse medo tornava-se
evidente no “Epílogo” da Storia d’Europa no qual Croce, manifestando aristocrá-
tico temor perante os bárbaros afirmava ser o comunismo “estéril ou sufocador
do pensamento, da religião, da arte, de todas estas e outras coisas que deseja
sujeitar a si e não pode senão destruir.” (1999, p. 427.)
Gramsci considerava essa historiografia croceana a continuidade da
“historiografia da Restauração adaptada às necessidades e aos interesses do pe-
ríodo atual” (Q 10/I, § 6, p. 1220). Tal corrente, após 1848 foi renovada pelo
hegelianismo moderados dos irmãos Spaventa, que, em certo sentido, deram
continuidade ao neogüelfismo. As afinidades de Croce eram intensas e, por essa
razão, chegou a publicar, na coleção Scrittori d’Italia pela editora Laterza a obra
Del rinnovamento civile d’Italia de Vincenzo Gioberti (1911-1912) e Della storia
280 alvaro bianchi

d’Italia dalle origini fino ai nostri giorni, de Cesare Balbo (1912-1913), ambos
dirigentes políticos do partido moderado, embora o mesmo espaço não tenha
sido concedido a Mazzini, que ficou de fora da coleção.
O autor dos Quaderni insistiu no vínculo Gioberti-Croce, o que
não deixa de surpreender. A obra de Gioberti, Del primato morale e civili
degli Italiani, publicada em 1843 teve grande impacto sobre a opinião pú-
blica da época (cf. Haddock, 1998, p. 705-706) e ainda impressiona o leitor
moderno, às vezes negativamente, com seu estilo farto de “rutilantes ouro-
péis retóricos e nacionalistas” (Q 10/I, § 6, p. 1220. Cf. tb. Woolf, 1973,
p. 351). Mas era esse estilo que a época exigia. Abandonando as veleidades
republicanas da juventude e distanciando-se de Mazzini, de quem chegou a
ser muito próximo, Gioberti procurou demonstrar que a Itália possuía em
si mesma todas as condições necessárias para um “Risorgimento nacional
e político e que para que este efetivamente ocorra não há necessidade de
revoluções internas, nem de invasões ou de imitações estrangeiras.” (1932, v.
I, p. 92. Grifos meus.) O filósofo piemontês, encontrava essas condições
em uma leitura da historia da península que destacava o papado como a
principal instituição italiana, a força dirigente detrás das grandes conquistas
do passado e a possibilidade da Itália aspirar um posição de destaque no
concerto das nações (cf. Haddock, 1998, p. 711).
A proposta de Gioberti encontrava-se amparada em um assumido rea-
lismo conservador. O princípio da unidade italiana, afirmava, deveria ser vivo,
concreto e real (Gioberti, 1932, v. I, p. 92). Distanciava-se, assim, daqueles
como Mazzini, que acusava de pretenderem uma unidade baseada nos diversos
povos da península, que se entenderiam entre si e conspirariam para destruir
seus respectivos governos, fazendo da Itália um Estado unitário (idem, p. 93).
Tal unidade não seria provável e, portanto, era impossível. Mas deveria ser tam-
bém indesejável. A união não ocorreria se ao invés de ser “tranqüila e estável”
fosse “agitada e vacilante” (idem, p. 95).
Os jacobinos, sempre eles, era o que deveria ser evitado na Itália, segundo
o filósofo piemontês. A revolução francesa mostrou quão arriscado seria derrubar
um poder legítimo. Como a maioria – senão todos – dos liberais do início do
século XIX, Gioberti manifestava o temor à democracia e o medo de que esta
guerra de movimento/guerra de oposição 281

se convertesse em uma “demogogia” (cf. Gioberti, 1912, v. 3, cap. VI). Depois


de 1789 o Estado francês havia ficado “preso à fúria da plebe, à tirania dos de-
magogos e ao arbítrio de um soldado”. Gioberti não deixava de fazer o elogio da
restauração: “a boa ordem só renasceu quando foi chamada a linhagem dos velhos
príncipes e restituída aquela parte da soberania que eles completavam diretamen-
te” (1932, v. I, p. 95). A restauração seria mesmo inevitável, uma vez que quando
a desordem provocada por uma revolução chegasse a seu ápice, “a ordem antiga
pouco a pouco renasce; mas, como seus componentes foram destruídos e as almas
mal-acostumadas, pena-se longo tempo até restabelecê-la” (idem, p. 96).
Apenas o papado, poderia, segundo Gioberti, corresponder a uma es-
pecificidade italiana e ser uma base nacional para a união. O autor do Primato
propunha a constituição de uma confederação italiana sob a presidência do
papa. Este seria o “verdadeiro princípio da unidade italiana”, “concreto, vivo e
real” (idem, p. 99). A defesa do filósofo piemontês rompia, assim, como longa
tradição no pensamento político italiano, que, como Maquiavel nos Discorsi
(1971, p. 95-96), apontava no Vaticano a ruína e o flagelo da Itália. Ao invés
da causa de tumultos, destruição e violência, Gioberti via no papado um poder
“pacífico por essência e civil”, um poder “perfeitamente ordenado em si próprio
e no modo de proceder, porque é um poder organizado pelo próprio Deus e
constitui o centro da sociedade mais admirável que possa encontrar ou imaginar
entre os homens” (Gioberti, 1932, v. I, p. 99).
Gioberti pensava o advento de um Estado nacional italiano mais como
uma união do que como uma unidade. Ao contrário do projeto mazziniano, rejei-
tava a idéia de uma república una e indivisível e propunha a constituição de uma
confederação na qual Roma seria a sede da fé e o Piemonte das armas. A união da
“cidade santa” e a “província guerreira” criaria as condições para a sonhada união
dos italianos e de seus chefes. As armas e a religião, consideradas por Guicciardini
os fundamentos principais de todo reino encarnavam-se, na proposta giobertiana,
no rei Carlo Alberto do Piemonte e no papa Gregório XVI.
O Primato havia sido cuidadosamente desenhado de modo a não susci-
tar a oposição de Roma ou de Turim. Gioberti omitiu a discussão a respeito da
reforma dos Estados papais bem como evitou referências às tendências ao insu-
lamento político dos piemonteses (cf. Haddock, 1998, p. 712-713). Conscien-
282 alvaro bianchi

temente secundarizou todo programa de reconstrução social da Itália e assumiu


como principal objetivo a união das províncias do único modo que ele julgava
ser realista, possível e até mesmo desejável. O fracasso das revoluções de 1848
e, principalmente, o lamentável papel desempenhado na ocasião pelo papa Pio
IX, levou Gioberti a revisar muitos de seus pontos de vista em Del rinnovamento
civile d’Italia (1911-1912) e a afirmar a centralidade do Piemonte na união
italiana. Chegava desse modo a seu fim a contra-utopia neogüelfa.
O que levava Gramsci a aproximar Croce de Gioberti não era, eviden-
temente, o neogüelfismo do autor do Primato e sim essa obsessão pela mode-
ração e pelo gradualismo, a mal escondida simpatia pela restauração partilhada
por ambos. Daí que o critico napolitano tivesse publicado na coleção que dirigia
na Laterza Del rinnovamento civile d’Italia e não Del primato moral e civile degli
italiani. A obra publicada não defendia mais a supremacia do papado e sim a
“hegemonia da casa de Sávoia, sua missão italiana” (Croce, 1999, p. 216).
A hegemonia desejada era aquela da classe burguesa, como deixava
claro Gioberti em Del Rinovamento. Era na burguesia que o filósofo piemontês,
esperava encontrar os sucedâneos do papa. Para ele a unidade do povo era a
unidade da plebe e da burguesia. Da plebe era de se exigir a “força material e
afetiva”, enquanto da burguesia cabia solicitar a força “industriosa e intelectiva”
(Gioberti, 1911, v. 2, p. 220). Os “conservadores liberais” e “muncipalistas”, por
um lado, e, por outro, os “puritanos” que queriam dar tudo à plebe eram uma
ameaça a essa unidade. Apenas o princípio da automoderação e a hegemonia
da classe que tinha as condições intelectuais para dirigir a sociedade poderiam
preservar essa unidade (cf. Badaloni, 1973, p. 972-973).
Foi no Piemonte dos Savóia que Croce encontrou o herói de sua Storia
d’Europa nel secolo decimonono e dessa hegemonia burguesa. Mas ele não era Vit-
torio Emanuele, o sucessor de Carlo Alberto, e sim Camilo Benso, o conde de
Cavour, o artífice da revolução passiva italiana. A prosa serena Croce, motivo de
elogio de tantos, dentre os quais o próprio Gramsci, perdia-se e transformava-se
em ridícula mistificação quando encontrava seu herói e o descrevia como:

o homem de gênio que a Itália expressou de seu interior e que depois de longa
preparação de estudos políticos e de vida prática, e depois de ter participada dos
guerra de movimento/guerra de oposição 283

acontecimento de [18]48-[18]49 como publicista e jornalista, sentiu que era che-


gada a sua hora e se adiantou para assumir os postos de comando, não, para dizer a
verdade “pensif et pâlisant”, como o chamado de Deus condutor de povos, do qual
fala o poeta, mas tenaz e alegre, como quem sabe que lhe toca fazer e sabe fazê-lo,
voltando-se completamente ao trabalho e às batalhas. (Croce, 1999, p. 259.)

Cavour era para Croce um amante da liberdade que tinha entre suas
grandes realizações a formação de uma “ordenada atividade parlamentar,
com partidos que representassem desejos e recolhessem forças e pudessem
se necessário reagrupar-se para certos fins comuns” (idem). Os debates na
Câmara e no Senado subalpino, a atividade legislativa e política, os acordos
e a solução das crises no âmbito parlamentar representavam, para o filósofo
napolitano o exemplo que Cavour e o Piemonte haviam dado para a Itália
e a Europa.
A prosa laudatória ocultava aqueles problemas sociais e políticos que
nos primeiros anos após a unificação cobraram seu preço. Nenhuma palavra
era dita sobre ae restrições que impediam à grande maioria da população
participar das eleições.113 Ou sobre o crescente pauperismo no meio rural.
Mas mesmo naquilo que revelava, Croce não deixava de transparecer os li-
mites dessa hegemonia burguesa condotta da Cavour. Os acordos parlamen-
tares e o “connubio” que havia reunido em 1852 os liberais de Cavour com
os democratas moderados liderados por Umberto Rattazzi não eram senão o
primeiro passo em direção ao transformismo e implicavam na neutralização
das correntes democrático-revolucionárias (cf. Woolf, 1973, p. 472-473). O
elogio de Croce ao “connubio” encerrava, assim, uma revalorização positiva
do próprio transformismo.
O fundamento filosófico dessa valorização croceana da revolução
passiva e do transformismo era uma dialética mutilada, a dialética da reação.
Essa dialética da reação baseava-se, segundo Grasmci em um erro de origem
prática: a pressuposição mecânica de que no processo dialético “a tese deve ser

113
Nas primeiras eleições gerais da história da Itália, em 1861, foi adotada a lei eleitoral existente
no Piemonte. Apenas 167 mil pessoas tinham direito a voto na Itália setentrional, 55 mil na Itália
central, 129 mil na Itália meridional e 66 mil nas ilhas (cf. Procacci, 1978, v. 2, p. 390).
284 alvaro bianchi

‘conservada’ pela antítese para não destruir o próprio processo, que, portanto,
é ‘previsto’ como uma repetição infinita, mecânica, arbitrariamente pré-fixa-
da” (Q 10/I, § 6, p. 1221). Essa forma de ver o processo dialético é própria
dos intelectuais, afirmava o autor dos Quaderni. Estes concebem a si mesmos
como árbitros de toda luta política real, como personificações da passagem do
momento econômico-corporativo ao momento ético político, em suma, como
a própria síntese do processo dialético: “aquilo que é ‘prática’ para a classe
fundamental torna-se ‘racionalidade’ e especulação para seus intelectuais”,
afirmava Gramsci (Q 10/II, § 61, p. 1359).
Esse deslocamento de perspectiva não deixava de ter conseqüências no
modo como os intelectuais viam a política e o próprio Estado. Se bem “para as
classes fundamentais produtivas (burguesia capitalista e proletariado moderno)
o Estado não seja concebível senão como forma concreta de um determinado
mundo econômico, de um determinado sistema de produção” (Q 10/II, § 61,
p. 1360), o mesmo não ocorre com os intelectuais. Estes vêem o Estado “como
uma coisa em si, um absoluto racional”, um artefato do pensamento e, portan-
to, dos próprios intelectuais:

sendo o Estado a forma concreta de um mundo produtivo e sendo os intelectuais


o elemento social do qual se extrai o pessoal governativo, é próprio do intelectual
que não esteja fortemente ancorado a um grupo econômico, apresentar o Estado
como um absoluto, assim é concebida como absoluta e proeminente a própria
função dos intelectuais e racionalizada abstratamente a sua existência e sua dig-
nidade histórica. (Idem, p. 1361.)

Esse processo de racionalização que transforma o Estado em um abso-


luto torna racional aquilo que já é. O problema já estava colocado nos Princípios
da Filosofia do Direito de Hegel e o desenvolvimento dado pela direita hegeliana
a esta questão não deixou de converter a filosofia clássica alemã em uma filosofia
da restauração. Era com vistas à conformação de uma filosofia da restauração
que os intelectuais meridionais do Risorgimento, dentre os quais se destacavam
os irmãos Spaventa, estudavam o “puro” Estado. O problema político da restau-
ração manifestava-se assim sob a forma de um problema filosófico. Mas quando
esses intelectuais saiam de seus gabinetes e se dirigiam à vida política, afirmava
guerra de movimento/guerra de oposição 285

Gramsci, então ao lado da concepção do Estado em si marchava “todo o cortejo


reacionário que é sua justa companhia.” (Idem, p. 1362.)
Gramsci estava ciente da unidade entre a filosofia e a política e por
essa razão, denunciava de modo vigoroso o neoidealismo croceano. Assim como
Gioberti, Croce lutava com todas as suas forças contra a própria idéia de revo-
lução, procurando estabelecer um curso para o desenvolvimento da história na
qual a indesejada ruptura com o passado não se faria necessária. Para a dialética
da reação era necessário preservar a todo custo aquilo que era fundamental no
presente. Ora, dirá Gramsci,

na história real, a antítese tende a destruir a tese, a síntese será uma superação,
mas sem que se possa estabelecer a priori o que da tese será “conservado” na
síntese (...) Que isso ocorra de fato é questão de “política” imediata, porque na
história real o processo dialético se esmiúça em momentos parciais inumeráveis
(Q 10/I, § 6, p. 1221).

A dialética croceana era uma dialética mutilada similar àquela de Prou-


dhon, que procurava reduzir as contradições do real a um jogo de oposições
bom/mau, passíveis de serem eliminadas pela supressão de um de seus pólos (cf.
a crítica de Marx em MECW, v. 6, p. 167). A supressão (ao invés da superação
dialética) da contradição por meio do cancelamento político do lado mau per-
mitiria recriar a realidade em novas bases. O resultado dessa operação seria uma
constante reprodução do previamente existente por meio de um processo de
aperfeiçoamento e harmonização do real.
Tal concepção não só restringia a amplitude da transformação so-
cial, colocando arreios na história, como definia, de antemão, o que deveria
ser preservado da antiga forma social e política. Croce foi criticado por Gra-
msci devido a sua moderação política, “que estabelece como único método
de ação política aquele no qual o progresso, o desenvolvimento histórico é o
resultado da dialética de conservação inovação” (Q 10/I, § 12, p. 1325).114
O historicismo croceano estava voltado para a busca no passado daquilo que

114
Para a relação entre Benedetto Croce e as correntes revisionistas de sua época ver Gramsci (Q
10/I, § 2, p. 1213-1214). O tema é tratado por Dias (2000, p. 23-32).
286 alvaro bianchi

deveria constituir o presente. Gioberti havia encontrado no catolicismo o


fundamento moral e no papado a matriz político-espiritual do “classicismo
nacional” italiano que a união e a constituição de um novo Estado deveria
desenvolver e preservar. Croce, por sua vez, em sua Storia d’Europa julgou
encontrar na realização da idéia de liberdade o fio condutor que daria inteli-
gibilidade ao curso da história, ao mesmo tempo que fixaria a herança à qual
não era possível renunciar.
Mas a idéia croceana da liberdade não era senão a ideologia do libera-
lismo. Seu objetivo não era elaboração de uma “história do futuro”, como nas
filosofias da história de inspiração hegeliana, mas sim uma história “do pas-
sado que se recapitula no presente” (Croce, 1999, p. 429). A liberdade como
a idéia de nossa época e o liberalismo como seu horizonte político resumiam
o empreendimento do editor de La Critica. Em linguagem moderna, dizia
Gramsci, tal forma de historicismo se chama reformismo (Q 10/I, § 12, p.
1325). O liberalismo e o reformismo de Croce não eram, entretanto, radicais
e populares, com aqueles do colaborador do Ordine Nuovo, Piero Gobetti ou
de Carlo Rosselli, fundador do movimento antifascista Giustizia e Libertà.115
O liberalismo de Croce era profundamente antigualitário e encontrava-se
disposto “a produzir e promover não a democracia, mas a aristocracia, a qual
é verdadeiramente vigorosa a séria quando não é aristocracia fechada, mas
aberta, pronta, porém, a repelir o vulgo, mas disposta sempre a acolher quem
dele se eleva.” (Croce, 1999, p. 336).
Na olímpica serenidade croceana não há como deixar de reconhecer
o gesto delicado de uma decadente aristocracia esclarecida que para salvar sua
posição flerta com a burguesia liberal e manifesta disposição a aceitar sua hege-
monia. Assemelha-se, assim, a Fabrizio, o personagem de Il Gattopardo. Com
saudades do mundo antigo aceita o novo para evitar o que considera pior. Mas
essa imagem é, também, o retrato de sua penosa impotência.

115
A relação de Croce com o liberal-socialismo representado pelos personagens acima indicados
não deixava de ser ambígua, uma vez que estes haviam sido profundamente influenciados pelo seu
pensamento filosófico. A respeito do liberal-socialismo italiano e da relação de Croce com este, ver
o livro de Walquíria Leão Rego (2001, principalmente caps. 2 e 3).
guerra de movimento/guerra de oposição 287

Fascismo

O caráter conservador da historiografia de Benedetto Croce e seus des-


dobramentos políticos foram prontamente denunciados por Gramsci. O livro
Storia d’Europa não passava da história de um fragmento do período histórico,
“o aspecto ‘passivo’ da grande revolução que teve início na França em 1789” (Q
10/I, § 9, p. 1227). A revolução havia sido eliminada da narrativa, mas ela não
deixava de guiar o trabalho de seu autor. A apologia da restauração poderia ter,
segundo Gramsci, o propósito de criar um ambiente cultural e político adverso
à revolução e favorável à própria restauração:

Coloca-se o problema de se esta elaboração croceana, em sua tendenciosidade


não tem a finalidade de criar um movimento ideológico correspondente ao da
época tratada por Croce, de restauração-revolução, no qual as exigências que
encontraram na França uma expressão jacobino-napoleônica foram satisfeitas
em pequenas doses, legalmente, reformistamente, e se conseguiu, assim, salvar a
posição política e econômica das velhas classes feudais, evitar a reforma agrária
e, especialmente, evitar que as massas populares atravessassem um período de
experiências políticas como aquelas que ocorreram na França nos anos do jaco-
binismo, em 1831, em 1848. (Idem.)

A historiografia croceana procurava criar um ambiente cultural e


político favorável a um programa político que pudesse se assemelhar, em sua
função, àquela que o Renascimento havia tido com relação à Reforma e a
Restauração bourbônica com relação à Revolução de 1789. O filósofo napo-
litano pretendia, desse modo, “uma restauração como reação e resposta aos
eventos da revolução de [19]17, aos movimentos revolucionários no ocidente;
um movimento de construção de uma hegemonia reformada, uma revolução
passiva.” (Kanoussi e Mena, 1985, p. 45).
O mesmo questionamento poderia ser feito a respeito da Storia d’Italia
dal 1871 al 1915. Publicada originalmente em 1928, a obra de Croce (1962)
parece ter sido concebida como uma resposta ao livro do historiador fascista Gio-
acchino Volpe, L’Italia in cammino, de 1927. Assim como muitos historiadores do
início do século XX, Volpe criticava de modo áspero o sistema político vigente e o
288 alvaro bianchi

liberalismo, ambos personificados pela figura de Giovanni Giolitti, personagem de


proa da política italiana e ressaltava a distância que separava as novas forças sociais
e uma classe política que se mostrava inerte e refratária a um reposicionamento da
Itália no contexto internacional (cf. Galasso, 1990, p. 379-380).
Se Cavour era o herói da Storia d’Europa, de Croce, Giolitti foi o de sua
Storia d’Italia. Trilhando a história da Itália como caminho no qual se realizava
a idéia de liberdade, o filósofo napolitano enfatizou os elementos ético-políticos
da narrativa e apontou as realizações do pensamento e da cultura que haviam
sido possíveis nos anos de paz. O liberalismo era, assim, um fator de progresso,
responsável pela afirmação do Estado nacional italiano e pela expansão econô-
mica. O elogio da vida política italiana levava o autor de Storia d’Italia a natu-
ralizar o fenômeno do transformismo, considerado como fenômeno próprio da
vida parlamentar, bem como a valorizar positivamente a conversão do Partido
Socialista ao parlamentarismo.
O elogio do liberalismo italiano de Giolitti motivou forte oposição por
parte da historiografia fascista. Mas a obra de Croce tinha, afirmava Gramsci,
um resultado paradoxal. Pois além de uma profissão de fé liberal, Storia d’Italia
e a Storia d’Europa eram manifestos políticos favoráveis à renovação da vida
econômica, política e cultural da Itália por meio de reformas graduais, uma
revolução sem revolução. Poderia, entretanto, o liberalismo cumprir o papel
que Croce lhe atribuía? Tivesse Croce prosseguido sua narrativa histórica para
além do ano de 1915 ficaria evidente a impossibilidade histórica do liberalis-
mo italiano ser o movimento político capaz de dirigir essa nova renovação. Na
crise evidenciada pela Primeira Guerra Mundial outro era, entretanto, o ator
histórico em condições de realizar ou pretender realizar o programa croeceano:
o fascismo. Questionando Croce, Gramsci perguntava: “nas condições atuais o
movimento correspondente àquele do liberalismo moderado e conservador não
seria mais precisamente o movimento fascista?” (Q 10/I, § 9, p. 1227-1228.)
O resultado da historia ético-política era, assim, surpreendente. Tendo
desenvolvido suas duas principais obras historiográficas com o propósito de
contrarrestar a influência do fascismo e do marxismo, Croce contribuiu com o
“reforço do fascismo, fornecendo-lhe indiretamente uma justificativa mental”
(idem). Decantado o irracionalismo romântico que fundamentava o discurso
guerra de movimento/guerra de oposição 289

fascista este se revelava como um programa político afeito às aspirações do filó-


sofo napolitano. Não era sem significação, escrevia Gramsci, que tanto Croce
como o fascismo em seus primeiros anos, reivindicassem o legado e a tradição da
Destra storica de Cavour. E a essa afinidade deveria se acrescentar a admiração de
ambos pela obra de Geoges Sorel, introduzida na Itália por Croce.
Os vínculos entre Croce e Mussolini havia sido fortes nos anos de 1922
a 1924, anos nos quais o filósofo chegou a acreditar que o fascismo poderia rees-
tabelecer a autoridade e corrigir os defeitos do sistema parlamentar. Assim como
a maioria dos liberais de sua época, o senador Croce deu seu voto favorável à lei
eleitoral fascista, que modificou a constituição e permitiu a Mussolini a obtenção
de uma larga maioria parlamentar (cf. Smith, 1974, p. 49). No primeiro aniver-
sário da marcha de Roma, Croce publicamente afirmou que o fascismo não se
opunha ao liberalismo e que os liberais tinham o dever de apoiar o novo regime
(idem, p. 48). Embora o filósofo napolitano procurasse minimizar posteriormente
o impacto dos artigos e entrevistas nos quais pronunciou seu apoio ao movimento
fascista, tal apoio encontra-se bem documentado (cf. Destler, 1952). Assim como
bem documentado está seu afastamento, a partir de 1925, desse movimento e a
oposição que passou a lhe exercer (cf. Galasso, 1990, p. 342ss), muito embora a
mudança nunca tenha sido acompanhada por qualquer autocrítica.
Gramsci parece não ter dado muita atenção ao apoio explícito que Cro-
ce deu ao fascismo. Sequer à época desse apoio parece tê-lo mencionado em seus
escritos.116 Nos Quaderni não há, também referência a esses episódios. Entretan-
to, isso não lhe impediu de identificar uma profunda afinidade entre o trabalho
historiográfico de Croce e o movimento fascista. A afinidade fundamental que
o marxista sardo afirmava era de caráter programático. A revolução passiva que
a historiografia ético-política havia convertido em forma política desejável de
modernização do Estado e da sociedade poderia ser, para Gramsci, também a
forma política do fascismo:
Poderia conceber-se assim: a revolução passiva se verificaria no fato de trans-

116
Não é possível aqui afirmar com total certeza isso, uma vez que a edição crítica dos escritos
gramscianos do período só chega até o ano de 1920. Nos textos reunidos em Socialismo e fascismo:
L’Ordine Nuovo (1921-1922) e La costruzione del Partito Comunista (1923-1926) não há, entretan-
to, referências a esses episódios.
290 alvaro bianchi

formar “reformistamente” a estrutura econômica individualista em economia


segundo um plano (economia dirigida) e o advento de uma “economia média”
entre a individualista pura e a planificada no sentido integral, permitiria a pas-
sagem a formas políticas e culturais mais evoluídas sem cataclismos radicais e
destruidores de modo exterminador. (Q 8, § 236, p. 1089.)

A hipótese ideológica poderia ser apresentada nos seguintes termos: haveria uma
revolução passiva no fato de que pela intervenção legislativa do Estado e por
meio da organização corporativa, na estrutura econômica do país seriam intro-
duzidas modificações mais ou menos profundas para acentuar o elemento “plano
de produção”, seria acentuado assim a socialização e cooperação da produção
sem por isso tocar (ou limitando-se apenas a regular e controlar) a apropriação
individual e de grupo dos lucros. (Q 10/II, § 9, p. 1228.)

Evidencia-se, nessa passagem a elaboração e a generalização pela qual


havia passado o conceito de revolução passiva. Concebido originalmente por
Gramsci como uma analogia conceitual que permitira num plano historiográfi-
co compreender o processo de constituição dos Estados nacionais europeus no
século XIX, o conceito passava a adquirir novos significados e a assumir uma
nova função em um plano político. Nessa nova configuração, a categoria de re-
volução passiva era utilizada para a análise de fenômenos cujo dado dominante
era o choque de classe entre burguesia e proletariado, combinando nesta linha, a
reflexão sobre a hegemonia e suas formas (De Felice, 1978, p. 194).
O que Pasquale Voza (2004) demonstra de modo acurado em seu es-
tudo sobre o conceito de revolução passiva é a dinâmica complexa a partir da
qual o conceito foi sucessivamente alargado nos Quaderni até chegar ao ponto
de abarcar formas sociais e políticas que tem lugar no século XX. É a partir da
parcepção do ritmo de construção do conceito de revolução passiva que se pode
compreender as evidentes diferenças existentes entre a primeira e a segunda ver-
são das notas acima citadas. As diferenças nessas notas não podem ser colocadas
em uma ordem lógica de sucessão, mas podem ser lidas de modo complementar
e não antagônico, muito embora a segunda versão expresse, obviamente, uma
elaboração mais madura e cuidadosa.
guerra de movimento/guerra de oposição 291

A ação estatal sobre a economia era vista, por Gramsci, como uma
possibilidade de atualização do capitalismo e de desenvolvimento das forças
produtivas em um quadro politicamente reacionário. Como tal, a interpreta-
ção gramsciana inseria-se em uma reflexão que tinha como elemento constante
uma concepção anticatastrofista da crise contêmporânea (Di Bendetto, 2000,
p. 92). O que as ênfases postas no Quaderno 8 permitem comprender é que
Gramci concebia a revolução passiva como uma possibilidade de superação da
crise da economia liberal (“individualista pura”) diferente da economia socialista
(“planificada no sentido integral”). A nota do Quaderno 10, enfatiza o caráter
“médio” dessa alternativa econônomica e demarca seu caráter ainda capitalista.
O estudo das diferentes formas de manifestação da política em con-
textos de revolução passiva permite, desse modo, abordar, por meio desse con-
ceito a complexa realidade “moderna, pós-liberal, das relações massas-Estado,
hegemonia-produção” (Voza, 2004, p. 204. Cf. tb. Baratta, 2004, p. 177). A
revolução passiva passava desse modo a ser desenvolvida em um plano teórico-
político como uma forma de superação ou atenuação da crise do capitalismo do
pós-guerra e a obtenção de um “equilíbrio estático” entre as classes sociais. A via-
bilidade material desse programa no contexto italiano era, entretanto, bastante
débil. O plano fascista de renovação enfrentava uma situação na qual a partilha
colonial já havia sido realizada e a concorrência com a Inglaterra, a França ou
mesmo a Alemanha se fazia em condições que eram desvantajosas para a penín-
sula. Mas a inviabilidade prática desse plano pouco importava em um primeiro
momento. Sua importância política e ideológica residia em sua capacidade de

criar um período de expectativas e esperanças, especialmente em certos grupos


sociais italianos, como a grande massa dos pequenos burgueses urbanos e rurais,
e portanto, para manter o sistema hegemônico e a força da coerção militar e civil
à disposição das classes dirigentes tradicionais. (Q 10/II, § 9, p. 1228.)

Na análise gramsciana do fascismo, as formas políticas da restauração


próprias do governo das massas encontravam-se intimamente vinculadas às for-
mas sob as quais a produção era ou poderia ser organizada sob a forma de um
governo da economia (cf. De Felice, 1978, p. 232). Esse programa de governo
da economia permitiria ao fascismo realizar sua função hegemônica sobre as
292 alvaro bianchi

classes dominantes italianas na medida em que representava uma resposta capi-


talista à crise do capitalismo italiano.
Os Estados Unidos forneciam o contraponto a partir do qual Gramsci
refletia a respeito da possibilidade do fascismo ser, efetivamente, essa resposta.
Como já visto, desde os primeiros planos dos Quaderni, bem como na corres-
pondência com Tatiana, era manifestado o desejo de tratar a questão do “ame-
ricanismo e fordismo”. A abordagem desenvolvida no Primo Quaderno e depois
retomada no Quaderno 22, já indicava os dois eixos a partir dos quais a questão
seria tratada. Em primeiro lugar o americanismo e o fordismo como formas
universalizáveis que poderiam representar “uma fase intermediária da atual crise
histórica” (Q 1, § 60, p. 70). Em segundo lugar uma abordagem comparativa
Estados Unidos e da Europa/Itália que permitiria reconhecer as formas de par-
ticularização desse fenômeno.
A abordagem de Gramsci lhe possibilita construir uma análise complexa
das relações Europa-Estados Unidos e assentar sobre essa análise sua investiga-
ção sobre a crise contêmporânea. Metodologicamente, Gramsci procedia desde
o primeiro momento demarcando as diferenças existentes entre os continentes
de modo a evitar a subsunção das especificidades históricas no movimento glo-
bal do capital e uma falsa generalização. Destacava, assim, no Primo Quaderno
que ao contrário da Europa, os Estados Unidos não possuíam as sedimentações
culturais e demográficas das formas históricas passadas que retiravam o dina-
mismo do Velho Continente. Inexistiam no Novo Mundo as classes parasitárias,
“produtoras de poupança”, isto é, “uma classe numerosa de ‘usurários’ que do
trabalho primitivo de um número determinado de camponeses não apenas ex-
trai seu próprio sustento, mas ainda consegue poupar” (Q 1, § 61, p. 71).
A “racionalidade demográfica” dos Estados Unidos tornava possível uma
“formidável acumulação de capitais, apesar dos salários relativamente maiores do
que os europeus.” (Idem.) As condições históricas nas quais ocorreu o desenvolvi-
mento do capitalismo nos Estados Unidos permitia que a indústria se desenvol-
vesse em uma posição central na economia, organizando ao seu redor toda a vida
social. “Governo das massas” e “governo da economia” convergiam em um arranjo
espontâneo no qual a estrutura dominava a superestrutura, os custos eram mini-
mizados e os resultados maximizados. Nos Estados Unidos, afirmava Gramsci,
guerra de movimento/guerra de oposição 293

Esta “racionalização” preliminar das condições gerais de produção, já existentes


ou facilitadas pela história, permitiu a racionalização da produção, combinando
a força ( – destruição do sindicalismo – ) com a persuasão ( – salários e outros
benefícios – ) para colocar toda a vida do país sobre a base da indústria. A hege-
monia nasce da fábrica e não tem necessidade de tantos intermediários políticos
e ideológicos. (Idem, p. 72.)

Essa “racionalização” preliminar inexistia, entretanto, na Itália e em


boa parte da Europa. Os estratos sociais sem uma função direta no mundo
da produção consumiam as energias nacionais e a riqueza produzida, criando
um curto-circuito no processo de reprodução ampliada do capital. A relação
entre a população potencialmente ativa e a aquela que efetivamente produzia
riqueza era das mais desfavoráveis e Gramsci citava algumas das razões para tal:
a emigração, o baixo índice da ocupação das mulheres na indústria, as doenças
endêmicas, a desnutrição crônica, o desemprego e a existência de uma enorme
população parasitária. Problemas esses que se faziam presentes de modo mais
intenso no Mezzogiorno do que na região Norte.
A convergência entre o “governo das massas” e o “governo da economia”
não poderia ser, portanto, espontânea na Itália. Na península apenas a hegemonia
proletária poderia nascer da fábrica. A hegemonia burguesa teria sua gênese exclu-
siva na política. A superestrutura deveria dominar a estrutura (cf. Vianna, 1997,
p. 64-65). Kanoussi e Mena destacam de modo pertinente que não se trata de
uma simples inversão da determinação marxiana da superestrutura pela estrutura,
definida no “Prefácio de 1859”. Trata-se, na verdade de uma “relação muito mais
complexa, na qual a tendência estrutural do desenvolvimento é débil, mas não
inexistente, e onde o papel das superestruturas é mais visível, mais decisivo, desde
o início da formação do Estado.” (Kanoussi e Mena, 1985, p. 90.)
Gramsci pesquisou essas formas políticas a partir das quais o predomínio
da superestrutura poderia se verificar na Itália em uma importante nota do Primo
Quaderno na qual tomava como objeto as concepções desenvolvidas por Massimo
Fovel. Dos escritos desse teórico do corporativismo, considerou relevante a con-
cepção da corporação como um “bloco industrial-produtivo, destinado a resolver
o problema do aparato econômico em um senso absolutamente capitalista” (Q
1, § 135, p. 124). A conformação de tal bloco poderia representar a superação
294 alvaro bianchi

das forças tradicionais da sociedade italiana, do predomínio dos elementos para-


sitários e “produtores de poupança” nela presentes. A corporação poderia ser um
caminho para um aumento substancial da produção de mais-valia que permitiria
o crescimento dos salários e de uma “poupança operária”, a expansão do mercado
interno, a elevação dos lucros e uma capitalização no âmbito da própria empre-
sa capitalista. As vantagens do corporativismo residiriam em sua capacidade de
desbloquear o processo de reprodução ampliada do capital, reconduzindo a vida
econômica nacional para o âmbito do predomínio industrial.
Nos Quaderni a análise avançava de modo cauteloso e as dúvidas de seu
autor parecem aumentar ao invés de diminuir, redobrando os cuidados necessá-
rios. No Primo Quaderno perguntava-se sobre a possibilidade desse esquema de
Fovel vir a realizar-se. A questão não dependia de um ato de vontade unilateral,
mas da relação de forças. Uma vez instituídas as corporações com vistas à reno-
vação econômica os operários poderiam opor-se e lutar pela apropriação dessas
formas de organização da produção, o que já havia ocorrido na experiência do
Ordine Nuovo. A viabilidade desse projeto dependia, portanto, de sua capacida-
de de articular um consenso capaz de ampará-lo. Era isso, entretanto, possível?
“Somos levados, necessariamente, a negá-lo”, respondia o autor a essa pergunta,
recusando de modo categórico sua viabilidade histórica (idem, p. 125). “Por ora,
somos levados a duvidar”, escrevia mais reticente no Quaderno 22, respondendo
à mesma questão (Q 22, § 6, p. 2157).
A forma jurídica da corporação, ou seja, a vontade política do Esta-
do fascista materializada em um estatuto era apenas uma questão de ordem
imediata, uma condição necessária, mas não uma condição suficiente. Para a
política poder adequar a economia, a política deve estar previamente adequada
ao sentido da transformação que se quer impor. Segundo Gramsci,

A americanização exige um ambiente dado, uma dada estrutura social (ou a vonta-
de decidida de criá-la) e certo tipo de Estado. O Estado é o Estado liberal, não no
sentido do liberalismo alfandegário ou da liberdade política efetiva, mas no sentido
mais fundamental da livre iniciativa e do individualismo econômico que alcança
com meios próprios, como “sociedade civil”, pelo próprio desenvolvimento histó-
rico o regime de concentração industrial e do monopólio. (Q 22, § 6, p. 2157.)
guerra de movimento/guerra de oposição 295

Para a conformação desse ambiente na Itália era de grande importância


o desaparecimento dos estratos parasitários da sociedade e, principalmente do
tipo semifeudal de rentista que caracterizava a península e, principalmente seu
Mezzogiorno. O Estado com sua política econômico-financeira era, para Grams-
ci, o instrumento desse processo de readequação social, sob a condição de que ao
invés de estimular novas formas de acumulação parasitária, este racionalizasse a
poupança amortizando o debito público, nominando os títulos e privilegiando
os impostos diretos (idem).
A crise de 1929, na medida em que colocou sob suspeita os investimentos
em ações, poderia permitir que a poupança privada fosse canalizada para os títulos
do Estado que se tornaria sede institucional da unificação de renda e lucro (De
Felice, 1978, p. 235). Desse modo, o “Estado seria assim investido de uma função
primordial no sistema capitalista como empresa (holding estatal) que concentra
a poupança a ser posta à disposição da indústria e da atividade privada, como
investidor de médio e longo prazo” (Q 22, § 14, p. 2175-2176). O corporativis-
mo poderia ser interpretado como um efeito dessa transformação das funções do
Estado. Sua intervenção cada vez maior no universo produtivo teria por finalidade
o controle de seus próprios investimentos. Dessa forma, o Estado reconverter-se-ia
“de instrumento de controle autoritário sobre a produção a momento de difusão
universal da autonomia das forças produtivas.” (Di Benedetto, 2000, p. 91.)
Mas um “vasto projeto de racionalização integral” que permitisse a
completa renovação social e econômica parecia ficar fora do alcance do corpo-
rativismo fascista. Esse projeto exigiria uma reforma agrária que socializasse a
renda da terra, incorporando-a ao organismo produtivo como uma poupança
coletiva e uma reforma industrial que reorganizasse a economia sob a forma de
uma “economia média” na qual a orientação e o ritmo da produção não fosse
determinada unicamente por um título jurídico de propriedade (Q 22, § 14,
p. 2176-2177). Gramsci era bastante pessimista a esse respeito e, conseqüente-
mente, não avaliava de modo positivo a capacidade efetiva do corporativismo
modernizar a sociedade italiana.
A pesquisa sobre o fascismo e o corporativismo conduziu seu autor a uma
aproximação, bastante cautelosa entre os conceitos de guerra de posição e revolu-
ção passiva. O tema foi colocado de modo ainda pouco elaborado no Quaderno
296 alvaro bianchi

8, em abril de 1932 e retomado apenas um mês depois na segunda versão desse


texto, redigida no Quaderno 10. Em sua primeira versão, ponderava a respeito da
possibilidade teórica de avizinhar o caráter “passivo” do corporativismo àquela
concepção “que em política se pode chamar ‘guerra de posição’ em oposição à
guerra de movimento” (Q 8, § 236, p. 1089). Na segunda versão a dúvida parece
ceder lugar a uma fórmula assertiva e o corporativismo e a promessa de moderni-
zação conservadora que ele encerrava para as classes dominantes “seriviria como
elemento de uma ‘guerra de posição’ no campo econômico (...) internacional,
assim como a ‘revolução passiva’ o é no campo político” (Q 10/I, § 9, p. 1229).
O gradualismo que caracterizava tanto a guerra de posição e revolução
passiva permitia estabelecer essa identidade. A guerra de posição seria a forma
preponderante do conflito em uma revolução passiva, ou seja, “em todo um
período histórico” (Q 15, § 11, p. 1767). A partir da afirmação dessa identidade
Gramsci escrevia que na guerra de posição que tem lugar a partir da derrota da
revolução alemã de 1921, o fascismo é seu representante “além de prático (para
a Itália), ideológico para a Europa” (Q 10/I, § 9, p. 1229).
Como forma do conflito social a guerra de posição viabilizava a revolu-
ção passiva fascista, bloqueando a guerra de movimento das classes subalternas
e desarticulando o oponente. Um reformismo reacionário que expressava a di-
nâmica restrita das classes dominantes tinha assim lugar. Os espaços da política
eram reconfigurados, os limites do conflito condicionados e a intensidade destes
modulada, afirmando uma nova relação de forças na qual a passividade das clas-
ses subalternas era assegurada. A revolução passiva tornava-se assim “a guerra de
posição trazida ao Ocidente pelas classes dirigentes para impedir o avanço da
hegemonia dos subalternos” (Tosel, 1994, p. 44).
Gramsci certamente não poderia definir o fascismo e sua sistemática
violência contra as organizações do movimento operário como uma guerra de po-
sição se acreditasse que esta era um meio pacífico para a obtenção de um consenso
normativo. Como o nome já diz, a guerra de posição é uma forma de guerra, e,
portanto, está marcada pelo conflito e não pela tranqüila interação comunicativa
dos agentes. A identidade estabelecida entre essa guerra de posição e a revolução
passiva sublinha que essa forma do conflito é imposta pelas classes dominantes,
bloqueando às clases subalternas a intervenção “concentrada e simultânea da in-
guerra de movimento/guerra de oposição 297

surreição”. A forma do conflito torna-se, desse modo, ineludível, conduzindo as


classes subalternas a uma forma de luta “‘difusa’ e capilar” que constitui a premissa
para uma retomada da guerra de movimento (Q 15, § 11, p. 1769).
A guerra de movimento e a revolução passiva são o contratempo que
impede às classes subalternas a afirmação e seu projeto societal. Um programa de
anti-revolução passiva somente pode se realizar por meio de uma luta que desar-
ticule a guerra de posição das classes dominantes acelerando o tempo histórico. A
ação política das classes subalternas assume a dimensão de uma luta pela reapro-
priação de um tempo próprio que lhe tem sido negado. Conquistar esse tempo é
alterar a relação de forças e definir as condições nas quais a luta deve se dar.
Conclusão

Os Quaderni del carcere tiveram uma vida atribulada. Salvos das prisões
de Mussolini, foram conduzidos a uma segunda prisão. A operação de edição
dos escritos gramscianos no imediato pós-guerra e a canonização política e te-
órica de seu autor pelas lideranças do PCI tiveram um efeito duradouro. O
Gramsci de Togliatti, aquele que estava sob a “bandeira invencível de Marx-
Engels-Lênin-Stalin”, cedeu lugar ao do eurocomunismo, e este foi suplantado
pelo do pós-comunismo que, por sua vez, parece ter sido sucedido por um pós-
moderno. O preso era o mesmo, mudaram seus carcereiros.
Não há como negar: a complexidade de seu pensamento e o caráter frag-
mentário de sua obra facilitaram esse aprisionamento. Sendo uma obra provisória,
pôde ser reconstruída, rearranjada, reapresentada sob diversas formas. No que diz
respeito a uma obra de difícil compreensão torna-se fácil substituir o escrito pelo
dito. Prevalece assim um “senso comum” vulgarmente “sociológico” que procede
por meio da construção de tipos-ideais rudimentares e da afirmação de oposições
conceituais binárias: Estado versus sociedade civil, Oriente versus Ocidente, guerra
de movimento versus guerra de posição. As noções morfológicas construídas por
Gramsci para dar conta da complexidade do real cedem lugar, assim, a estreitos
conceitos. Logo com Gramsci que tanto protestou contra a “sociologia”...
O pensamento de Gramsci não se caracteriza pela construção de dico-
tomias e sim pela pesquisa da radical unidade que existe na radical diversidade.
Teria sido mais fácil se Gramsci tivesse escrito um sistema filosófico e político. Mas
ele não era como Croce, que planejou e classificou toda sua obra, antes mesmo
de escrevê-la. Talvez essa seja uma das razões pelas quais no mundo todo hoje
Gramsci é mais lido do que Croce. Toda tentativa de sistematizar, manualizar,
catalogar, tematizar e ordenar os Quaderni, produzirá uma obra diferente daquela
escrita pelo seu autor. Mas o caráter aberto dessa obra não pode fornecer o álibi
para a interpretação ligeira.
O senso comum “gramsciano” encontra seu habitat em aparelhos de he-
gemonia: centros de pesquisa, universidades, organizações não-governamentais
conclusão 299

e partidos políticos. Do “senso comum” passa-se à política e a uma leitura cada


vez mais marcada por slogans de agitação: “a sociedade civil contra o Estado”,
“ocupar espaços”, “democratizar a democracia”, “reformismo revolucionário”.
Para muitos, Gramsci forneceu a porta de saída que permitiu dar adeus ao pro-
letariado e às formas de luta e organização com ele identificadas.
Qual a relação existente entre esse senso comum e a obra que supos-
tamente lhe serviria de inspiração? Parte considerável dele se apóia em leituras
superficiais. Kate Crehan (2002) denunciou que a onipresença de Gramsci nos
estudos culturais esconde o fato de que ele não é citado a partir de seus pró-
prios textos e sim mediante comentadores. Buttigieg (1994, p. 100) chegou a
conclusão semelhante para as ciências sociais. Ao invés dos textos do autor, os
comentadores; no lugar da edição crítica, edições temáticas ou antologias. Gra-
dativamente o senso comum afastou-se da obra que lhe servia de inspiração. As
fontes que dão apoio a essas versões guardam, desse modo, remota semelhança
com o texto escrito por Gramsci na prisão. O resultado é um comentário/ins-
trumentalização de uma obra que não seria reconhecida pelo seu próprio autor.
Uma retomada crítica do texto dos Quaderni del carcere, valorizando o
ritmo de sua elaboração teórica, considerando as fontes de pesquisa mobilizadas
por seu autor e contextualizando de modo eficaz a produção do texto, pode
contribuir para um melhor esclarecimento a respeito de seu pensamento e para
a crítica desse senso comum. A leitura rigorosa e a contextualização eficaz não
resolvem, entretanto, todas as questões. Os Quaderni são uma obra incompleta
e, por essa razão, são mais abertos à interpretação do que outras obras. Uma ati-
vidade de pesquisa consciente das exigências do método genético-diacrônio não
terá como resultado a descoberta do que Gramsci “realmente disse”. A pesquisa
rigorosa não pode alimentar a esperança ingênua e, principalmente, equivocada
de encontrar o “verdadeiro Gramsci”.
Naquele emaranhado de notas ele disse muitas coisas e algumas claramente
em contradição com outras. Cancelou textos usando traços oblíquos, com capricho
de escolar, de modo a permitir que pudessem ser ainda lidos. Inseriu uma mesma
noção em constelações conceituais distantes uma da outra. Atribuiu a um único
300 alvaro bianchi

texto mais de um sentido, deslocando-o do interior de uma temática para outra.


Experimentou uma nova escrita da história, antecipando a difusão do hipertexto.
Como sair desse emaranhado com uma única interpretação? Impossível!
A análise “filológica” ou genético-diacrônica não é a única legítima. Nem
aquela da qual poderia se dizer de antemão que produzirá os melhores resultados.
Também não é o salvo-conduto para uma neutralidade axiológica que livre de
toda contaminação político-ideológica deixaria o texto de Gramsci “falar por si”.
O rigor é uma exigência da prática teórica; ele é a garantia da objetividade. Mas
se trata sempre, como Gramsci alertava. daquilo que é “humanamente objetivo”.
Afinal, na seleção do tema, no encadeamento dos argumentos, no próprio estilo
literário é Gramsci “quem fala” ou seus intérpretes escondidos atrás de fingidos
escrúpulos e do amor à “verdade”? Melhor do que “psicografar” o texto, seria então
reproduzi-lo linha a linha, parágrafo a parágrafo, página a página. Mas esse texto
já temos. Gerratana nos deu essa obra. Trata-se dos Quaderni!
Uma análise “filológica” rigorosa que procure reconstruir pacientemen-
te a intrincada rede conceitual e temática que o autor teceu de modo minucioso
na prisão respondendo aos desafios de seu tempo, nunca poderá ter como resul-
tado uma nova “verdade”, mas poderá chegar a uma interpretação mais sólida,
mais consistente em sua lógica interna e menos fragilizada perante as evidências
teóricas. Poderá percorrer caminhos que se encontram epistemologicamente
bloqueados a outras abordagens. Poderá, enfim, chegar a outro Gramsci.
Que sentido terá, entretanto, percorrer esse difícil caminho no início
do século XXI? Por que é preciso ler Gramsci mais uma vez? A difusão de
suas idéias na América Latina dá uma pista para responder a essa questão. Se
tem sentido voltar a Gramsci é por que ele ainda tem a dizer. A difusão neste
Continente de seus livros e de comentários a respeito mostra a vitalidade desse
pensamento. Pode-se questionar a qualidade ou a adequação dessa leitura, é
verdade. Podem-se colocar em dúvida seus resultados e suas conclusões. Mas o
senso comum gramsciano só prosperou porque se encontrava ancorado na re-
alidade. Não se pode negar que essas leituras refletem – de modo nem sempre
preciso, mas refletem mesmo assim – a força de um pensamento que se tornou
parte do debate teórico e político. É preciso ler Gramsci porque na América
Latina ele se tornou incontornável.
conclusão 301

Em primeiro lugar, Gramsci tornou-se incontornável para pensar este


Continente. Nos estudos culturais relevantes pesquisas foram estimuladas a par-
tir do conceito de nacional-popular formando as bases para uma investigação
renovada das culturas subalternas. E o conceito de revolução passiva por ele
desenvolvido primeiramente com vistas a interpretar os processos de formação
dos Estados nacionais europeus no século XIX frutificou na América Latina em
importantes abordagens de seu passado e do presente. A modernidade incom-
pleta deste Continente facilitou a identificação de um passado que se reconhece,
às vezes de modo exagerado, naquela análise do Risorgimento.
Em segundo lugar, a partir do final dos anos 1960, Gramsci tornou-se
uma referência incontornável do debate político e objeto desse próprio debate.
Partidos políticos e movimentos sociais de um amplo espectro político organi-
zaram seus discursos e orientaram suas práticas em torno de conceitos como
hegemonia, bloco histórico e sociedade civil. No contexto do fim das ditaduras
do Cone Sul as referências ao sardo e a sua obra se tornaram cada vez mais
freqüentes e marcaram as intensas discussões que tiveram então lugar.
No atribulado processo de difusão teórica e política das idéias de Gramsci
na América Latina, as leituras realizadas na Itália e na França a seu respeito exerceram
grande influência. Mas isso não impediu que estudos originais fossem levados a cabo.
É possível que nas particularidades do desenvolvimento capitalista deste Continente
possam ser encontradas as razões da importância atribuída ao conceito de revolução
passiva em obras como Kanoussi e Mena (1985) e Vianna (1997), enquanto na Eu-
ropa não há nenhuma obra dedicada exclusivamente a esse tema. E talvez por ainda
serem tão próximas no tempo as revoluções ativas e as revoltas políticas e sociais os
escritos do jovem Gramsci tenham despertado inesperada atenção, como em Dias
(2000), Schlesener (2002) e Del Roio (2005).
Assim como na Itália, também abaixo do Equador uma “luta de hegemo-
nias” teve e tem lugar em torno de seu legado teórico e político. As condições nas
quais essa “luta” ocorre são, entretanto, diferentes. O peso da tradição stalinista e dos
partidos comunistas foi, na maioria dos países da América Latina, muito menor do
que na Europa ocidental. O debate não sofreu, portanto, os mesmos bloqueios que
lhe foram impostos pelas camadas de chumbo da burocracia soviética e de seus re-
presententantes. Aqui o sardo pôde dialogar mais livremente com Rosa Luxemburg,
302 alvaro bianchi

Leon Trotsky e Georgy Lukács, com José Carlos Mariategui, Che Guevara e Paulo
Freire. Tornou-se possível assim reestabelecer confrontos e confluências que haviam
sido barradas pela concomitância do fascismo e do stalinismo.
Vários companheiros de prisão relataram que Gramsci tinha o hábito
de tomá-los pelo braço para passear enquanto conversavam. Um passeio ao qual
ele nunca renunciava. Durante algum tempo essas conversas na prisão foram
aguardadas com ansiedade por vários deles que viam a oportunidade de apren-
der com o “chefe dos comunistas italianos”. Não eram, entretanto, um monóto-
no monólogo. Gramsci perguntava, inquiria e estimulava seus interlocutores a
dizerem o que pensavam para depois, de modo paciente e com uma fala calma
expor seus próprios argumentos e ilustrá-los com imaginativas metáforas para
que melhor fossem compreendidos.
Quantas dessas conversas não encontraram depois uma forma literária
e teoricamente elaborada nos Quaderni? E quantos novos diálogos não poderiam
ser construídos a partir de seus parágrafos? Tomar seu autor pelo braço para um
diálogo peripatético com outros autores, em outras épocas e outras geografias é
algo que o próprio texto parece exigir. Gramsci deu um conselho que pode ainda
hoje estimular esses confrontos e confluências e orientar uma prática político-
teórica renovada: pessimismo do intelecto; otimismo da vontade. Uma vontade
programaticamente orientada floresce no solo de uma pesquisa das tendências da
realidade contêmporânea que tem como pressupostos metodológicos a cautela, se-
renidade e parcimônia. A investigação não deixa de ser apaixonada ou de orientar-
se políticamente, mas ela não deve se submeter às contingências da vontade.
Uma leitura que de modo lento e cuidadoso manifeste sua impaciência
pode contribuir para a compreensão do presente e ajudar a destravar o debate teó-
rico e a prática política da esquerda latino-americana. Tal leitura é ainda um desa-
fio que, decerto, não foi aqui transposto. Este livro não apresenta senão resultados
provisórios de uma pesquisa que parece não ter fim. É, pois, o retrato de uma
reflexão incompleta. Mas pode ser diferente a interpretação de uma obra que não
foi concluída por seu autor? E não radica nessa incompletude e provisioriedade do
conhecimento, nessa ausência de uma “verdade” defintiva, a possibilidade sempre
renovada de novas pesquisas críticas, de novos e supreendentes resultados?
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