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Esquecer Foucault VEIGA NETO e RECH
Esquecer Foucault VEIGA NETO e RECH
Resumo
A partir de uma crítica aos “usos impertinentes” do pensamen- * Universidade Federal do
to foucaultiano na pesquisa educacional, argumenta-se que, Rio Grande do Sul (UFRGS),
Porto Alegre, RS, Brasil.
muitas vezes, é melhor esquecer Foucault. Mas o conselho de alfredoveiganeto@gmail.com
“esquecer o careca” nada tem a ver com os ataques de alguns
intelectuais contra o filósofo — entre eles, Baudrillard, Merquior, ** Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS),
Mandosio e Semprun. Lembrando que, assim como acontece Porto Alegre, RS, Brasil.
com qualquer autor ou teoria, também Foucault não é “pau para tatianarech@yahoo.com.br
toda obra”: é preciso estar sempre atento à necessária pertinên-
cia entre, de um lado, aquilo que se pergunta e se quer estudar e,
de outro lado, os recursos conceituais e metodológicos coloca-
dos à nossa disposição pelos Estudos Foucaultianos. Com isso,
conservam-se e preservam-se as duas partes envolvidas: de um
lado, Michel Foucault; de outro, aqueles que se valem das suas
contribuições. Como conclusão, são enumeradas sugestões a
serem observadas por quem quiser trabalhar com Foucault ou, a
partir dele, levar adiante suas próprias investigações.
Palavras-chave
Michel Foucault, Estudos Foucaultianos, foucaultlatria, foucault-
mania, foucaultfobia.
Abstract
From a critique of the “impertinent uses” of Foucault’s thinking in
educational research, it is argued that it is often better to forget
Foucault. But the advice to “forget the bald” has nothing to do
with the attacks of some intellectuals against the philosopher
— among them, Baudrillard, Merquior, Mandosio and Semprun.
Remembering that, just as with any author or theory, Foucault
also is not “jack of all trades”; we must always be alert to the
necessary relevance pertinence between, on one hand, what we
ask and is being studied and, on the other hand, the conceptual
and methodological resources placed at our disposal by Foucault
Studies. Thereby, we conserve and preserve the two parties
involved: on one hand, Michel Foucault; on the other, those who
use their contributions. To conclude, suggestions are listed to be
observed by those who want to work with Foucault or, from him,
carry out their own investigations.
Keywords
Michel Foucault, Foucauldian Studies, foucaultlatry,
foucaultmania, foucaultphobia.
– Mas, professor... Será que entendi bem? O senhor está mesmo sugerindo que,
neste meu projeto de pesquisa, eu devo abandonar a ideia de usar Foucault?
Diante da perplexidade da candidata a mestranda que eu tinha à minha frente, fui
ainda mais enfático do que havia sido, alguns dias antes, quando ela me procurara
pela primeira vez para tratar do mesmo assunto:
– Sim, é isso mesmo: tu deves esquecer Foucault! Esquece o careca!
Com essa rápida e cortante resposta, eu supus ter colocado um ponto final nas
pretensões da minha animada interlocutora. Mas não foi bem assim. A jovem era in-
sistente e curiosa; queria saber o porquê do meu conselho e queria porque queria
“trabalhar com Foucault”. Será que o filósofo era difícil demais para ela? Será que –
ao contrário do que lhe haviam dito – eu não gostava de estudar Foucault? Será que
alguém já havia pesquisado o que ela queria pesquisar? Será que sua proposta não
tinha sido bem compreendida por mim? Será que a sua questão de pesquisa – relacio-
nada ao ensino e à aprendizagem da aritmética nas séries iniciais da Educação Básica
– era difícil ou fácil demais para uma abordagem foucaultiana?
Diante de tais perguntas, tive de levar adiante nossa conversa e justificar, de
modo mais ou menos detalhado, minha posição. O que lhe disse, em resumo, foi que
“Foucault não é pau para toda obra”. Assim como ele serve para muitas “coisas”, em
relação a outras ele nada tem a nos dizer. Expliquei-lhe que, por mais interessantes e
potentes que tenham sido – e continuem sendo... – as contribuições do filósofo para a
nossa compreensão do presente, há uma infinidade de perguntas e situações diante
das quais ele não nos oferece respostas, nem, muito menos, nos sugere soluções.
A interlocutora escutava atentamente, e, aproveitando seu interesse, fui adiante,
explicando que tudo isso não decorria de alguma suposta limitação de Foucault, pois,
afinal, nenhum autor é “pau para toda obra” e nenhuma teorização dá conta de toda
e qualquer pergunta.
Como que colocando uma pá de cal sobre alguma pretensão totalizante que a can-
didata ainda pudesse alimentar, fui mais longe: disse-lhe que, assim como não existe
uma “teoria do tudo”, também não existe uma “perspectiva das perspectivas”. No
A pertinência
Todos sabemos o quanto o “efeito Foucault” foi e continua sendo importante, na
pesquisa educacional, no Brasil e mundo afora. Há pelo menos três décadas, tem
crescido a produção bibliográfica no campo em que a Educação se vale dos Estudos
Foucaultianos para descrever, analisar e problematizar suas próprias políticas e prá-
ticas e os correlatos discursos pedagógicos1.
Mas também sabemos o quanto, por puro modismo, Foucault tem sido convocado
de modos tão canhestros e impertinentes. Bastante afeitos ao messianismo, muitos
professores, professoras e aquele que se costuma chamar de “pensamento pedagó-
gico brasileiro” têm sido pródigos em eleger alguma teoria, algum método ou autor
como salvador da educação. Parece que não faltam messias de plantão – sejam eles
pessoas e suas ideias, grupos humanos e suas lutas –, aos quais muitos atribuem a
capacidade de resolver as (assim chamadas) mazelas sociais pela via educacional.
Resulta, desse messianismo pedagógico, a profusão dos mais variados fã-clubes:
foucaultianos, deleuzianos, marxistas, piagetianos, habermasianos, freirianos, cons-
trutivistas e outros que tais.
O quanto cada um desses clubes comete impertinências em relação aos seus
ícones é algo que parece crescer proporcionalmente aos ditames da moda. E, como
não há vida acadêmica sem disputas, debates e jogos de poder, a todo o momento
se assiste a lutas entre uns e outros, veladas ou explícitas, suaves ou encarniçadas.
Quanto a isso, preferimos adotar a postura deleuziana, segundo a qual, só aceita
entrar num debate para convencer e vencer o opositor aquele que acredita estar de
posse de uma verdade acima de si mesmo. É fácil ver que, também para Foucault, isso
não faz sentido. O que faz sentido é examinar a pertinência dos usos que se fazem
das verdades que se instituíram no nosso mundo.
Neste ponto, vale fazer uma analogia musical: a pertinência funciona como um
baixo pedal ao longo deste texto, ou seja, fun-
1. Para um excelente levantamento bibliográfico sobre
ciona como um som grave que dá sustentação às essa questão, vide, especialmente, Aquino (2013). Para
referências até o ano de 2003, vide Veiga-Neto (2003).
estruturas harmônicas (consonantes ou dissonan-
Para uma ampla discussão sobre os usos de Foucault na
tes) que se desenrolam em registros mais altos. Educação, vide Peters; Besley (2008).
Uma impertinência
Tampouco é do Foucault implacavelmente torpedeado por Jean Baudrillard e José
Guilherme Merquior que trata este texto! Como se sabe, ambos colocaram o filóso-
fo num lugar que absolutamente não lhe cabe; ambos fizeram dele o que ele não
quis ser e nunca foi. E, como se isso fosse pouco, aqui também não nos interessa o
Foucault caricatural de Jean-Marc Mandosio ou de Jaime Semprun2.
Se assim nos referimos a esses seus críticos, não é porque Foucault precise de
defesa; e nem, muito menos, porque nos autorizemos a defendê-lo. E não se trata, é
claro, de ser contra a crítica tout court, mas, sim, contra a crítica gratuita, frágil, mal
fundamentada, mal desenvolvida.
A essas alturas, depois de ler e reler aqueles Quatro Cavaleiros e confrontá-los
com a obra foucaultiana, nos damos conta de suas
impertinências. Mas agora, a impertinência é dife- 2. Referimo-nos, aqui, às posições assumidas por
Baudrillard (2001), Merquior (1985) e Mandosio (2011),
rente daquela que já comentamos; ela se alimenta
bem como aos ataques que o escritor Jaime Semprun
da inveja e de ressentimentos políticos e acadê- (2001) frequentemente fez a Michel Foucault.
2. Faça uso interessado de Foucault. Como argumentou Ewald (1993), ser fou-
caultiano ou fazer um estudo foucaultiano signi-
3. Para uma discussão acerca de teoria e método em Fou-
fica tomar no todo ou simplesmente em pedaços cault, vide Veiga-Neto e Lopes (2010).
3. Não morra de amores pela moda. A moda pode servir tanto para inspirar como,
também, para normatizar. Cada um faz o uso que bem preferir. Porém, aqui, não se
trata de moda. Não se deve utilizar Foucault por achar que ele é um autor que está
na moda; mas, ao contrário, deve-se fazer uso de seus escritos somente quando eles
forem considerados potentes para os nossos estudos. Cabe lembrar que “ser foucaul-
tiano [...] implica não se prender demais ao autor” (Veiga-Neto, 2004, p. 9).
5. Tente pensar de outros modos. Como sabemos, Foucault “nunca encarou a es-
critura como um objetivo, como um fim” (Deleuze, 2005, p. 34), o que possibilitou a
riqueza da novidade, do estranhamento, da (des)construção. Desconstruir, a partir
dos Estudos Foucaultianos, longe do que muitos pensam, não é sinônimo de “jogar
tudo fora”, de “estragar”, mas pode ser visto como um exercício de exercitar o nosso
próprio pensamento, ou seja, de pensar. Para Foucault (2006, p. 180), “há sempre um
pouco de pensamento, mesmo nas instituições mais bobas, há sempre pensamento,
mesmo nos hábitos mudos”. Um dos segredos está em saber fazer escolhas, pois,
como nos mostra Johanna Oksala (2011, p. 7), “uma pedra pode ser usada com igual
eficácia tanto para bater um prego quanto para quebrar uma vidraça”.
9. Cuidado com a escolha das ferramentas. Foucault (2001, p. 1.588) afirmou que
todos os seus livros “são pequenas caixas de ferramentas”. É importante compreen-
dermos que, mesmo se tratando de ferramentas muito interessantes, não é recomen-
dável que utilizemos muitas em nossas pesquisas. A tentativa de fazer uso apenas
daquilo que convém às nossas investigações é, geralmente, o mais recomendado.
Uma dica: não devemos nos preocupar em escolher as ferramentas a priori. Outra
dica: não esqueçamos que temos pelo menos dois tipos de ferramentas – as meto-
dológicas e as conceituais; ambas são fundamentais para os exercícios de análise.
11. Exercite a suspeita. Foucault (2007, p. 12) nos diz que “a verdade é deste
mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regula-
mentados de poder”. E, se a verdade é desse mundo, falar em invenção faz mais sen-
tido do que falar em descoberta. Assim, podemos perceber que as coisas não estão
“desde sempre aí”, não possuem uma origem remota e a-histórica, mas, ao contrário,
são inventadas de acordo com as necessidades de uma época.
12. Saiba dizer não. Ao ler a obra de Michel Foucault, aprendemos que o “não” se
torna fundamental, em muitos momentos. Dizer não ao realismo, ao essencialismo e
propor um pensamento não fundacionista, por exemplo, nos ajuda a fazer uma meta-
-análise, ou seja, a olhar por fora, por outros ângulos... Como sugere Larrosa (2008),
ajuda-nos a enxergar para além das evidências, pois “talvez o poder das evidências
não seja tão absoluto, talvez seja possível ver de outro modo” (Larrosa, 2008, p. 83).
14. Foucault não é um guru. Se você precisa de um guru, procure outro; sempre
15. Sempre haverá outros autores. Se você estiver mais interessado em julgar,
achar soluções ou prescrever, procure outro autor. Você sempre encontrará outros
autores que parecerão mais acolhedores, confortáveis e interessantes, independen-
temente de sua (in)utilidade.
16. Jamais esqueça: Foucault não é nem nunca será “pau para toda obra”.
Coda
Reiteramos que, dado o amplo espectro das questões abordadas e problemati-
zadas por Foucault e dado o seu variado repertório metodológico e conceitual, não
raramente o filósofo é visto como “pau para toda obra”, como fonte de respostas
para tudo e para todos, como uma caixa de ferramentas capaz de dar conta de todo
e qualquer problema. Desse entendimento equivocado resulta que muita gente vai
buscar nos Estudos Foucaultianos os elementos para tocar adiante suas próprias in-
dagações, seus estudos e projetos, gerando uma lamentável inflação de escritos que
pretendem ser foucaultianos, mas que, muitas vezes, não passam de arremedos me-
díocres e até mesmo ridículos. Não raramente, os resultados dessa “foucaultmania”
são pífios, quando não são desastrosos e completamente sem sentido.
É para poupar os esforços que terminam em quase nada ou em desastres lamen-
táveis que vai nosso conselho: se não estiverem seguros sobre a pertinência e a ade-
quação entre, de uma parte, o pensamento e as contribuições de Michel Foucault
e, de outra parte, aquilo que pretendem estudar e problematizar em suas próprias
investigações, não pensem no filósofo, deixem-no de lado, abandonem o careca! Esse
nosso conselho não objetiva preservar um campo ou mantê-lo fora do alcance de não
iniciados. Nosso interesse é apenas evitar o trabalho inútil e os eventuais monstren-
gos que daí resultam, quando a teorização foucaultiana é mal compreendida, mal
digerida, mal utilizada.