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A força de

um desejo – a
persistência da
branquitude como
padrão
estético
audiovisual JOEL ZITO ARAÚJO
é doutor em Comunicação

A
pela ECA-USP e cineasta,
autor e diretor de A
Negação do Brasil e Filhas
do Vento.
os rebeldes, os filhos rejeita-
dos e excluídos, parecem es-
tar reservados os papéis
de enfrentar, recusar e ul-
trapassar a força dos de-
sejos dos próprios pais.
Na história das nossas mídias
audiovisuais, o desejo de bran-
queamento da nação, ideário
que já estava consolidado desde
o século XIX, acabou por tornar-
se um peso imagético, uma
meta racial que nunca provocou
rebeldias. Ao contrário, tornou-
JOEL ZITO ARAÚJO

se convenção e naturalizou-se nascente, mas que já era, de-


como estética audiovisual de pois da imprensa, o meio de co-
todas as mídias, incluindo-se aí municação mais importante do
especialmente a TV, o cinema país (Simis apud Debs, 2002, p.
e a publicidade. 25), indignava-se com a imagem
No final dos anos 20, a re- do Brasil veiculada pelos filmes
vista Cinearte, expressão da produzidos até então:
intelligentsia de um cinema
“Quando deixaremos desta
mania de mostrar índios, ca-
boclos, negros, bichos e outras
‘avis-rara’ desta infeliz terra,
aos olhos do espectador cine-
matográfico? Vamos que por
um acaso um destes filmes vá
parar no estrangeiro? Além de
não ter arte, não haver técnica
nele, deixará o estrangeiro mais
convencido do que ele pensa que
nós somos: uma terra igual ou
pior a Angola, ao Congo” (Cine-
arte apud Debs, 2002, p. 80).

A solução a seguir, proposta


pela revista, e grifada por nós,
traz uma visão explícita de su-
perioridade racial branca que
se camuflaria nas décadas se-
guintes no discurso oral, mas se
consolidaria como um discurso
imagético natural e incontestá-
vel até os dias de hoje:
“Fazer um bom cinema no Brasil deve ser que poderiam ou poderão ser inovadores na
um ato de purificação de nossa realidade, incorporação de negros, índios e mestiços
através da seleção daquilo que merece ser como ilustração positiva de nossa multirra-
projetado na tela: o nosso progresso, as obras cialidade e experiência social, e não como
de engenharia moderna, nossos brancos estereótipos de si mesmos, são vítimas da
bonitos, nossa natureza” (Cinearte apud falta de discussão sobre esse tópico, que
Debs, 2002, p. 80). tende a permanentemente alimentar os
mesmos erros e mitos.
A estética do branqueamento já foi Voltando ao início do século XX, o
analisada em nossos trabalhos anteriores discurso do ideal cinematográfico diante
(Araújo, 2000-2002), em que demonstramos das metas de uma sociedade que buscava
como ela se tornou o padrão de referência construir “o país do futuro” e delineava
para a produção da telenovela brasileira. os fundamentos de uma nova identidade
Embora não tenhamos discutido o cinema, nacional, colocando assim o cinema como
constatamos que as produções comerciais um meio de educação privilegiado a serviço
usaram praticamente os mesmos estereóti- das elites (Debs, 2002), está absolutamente
pos sobre os negros que identificamos na em consonância com o discurso da intelli-
telenovela (Rodrigues, 2001) e alimentaram gentsia acadêmica da época. Com a já
o mesmo projeto de branquitude comum conhecida declaração de Oliveira Vianna
a todas mídias (Couceiro de Lima, 1983; (apud Munanga, 1977): “Não há perigo
1996-97). de que o problema negro venha a surgir
Mesmo aquele cinema que a revista no Brasil. Antes que pudesse surgir seria
Cinearte chamaria de avis-rara, especial- logo resolvido pelo amor. A miscigenação
mente a estética inaugurada no cinema novo, roubou o elemento negro de sua importância
que recusaria os caminhos da “purificação” numérica, diluindo-o na população branca”.
e da idealização da realidade nacional, E com a afirmativa anterior de João Batista
nunca se confrontou com a ideologia do Lacerda, então diretor do Museu Nacional
branqueamento, questionando o padrão de do Rio de Janeiro, que no Primeiro Con-
apresentação dos nossos brancos ou quase gresso Internacional das Raças, realizado
brancos “bonitos”. Poucos filmes de au- em Londres, em 1911, fez o prognóstico
tor, especialmente as adaptações de Jorge célebre: “O Brasil mestiço de hoje tem, no
Amado realizadas por Nelson Pereira dos branqueamento em um século, sua pers-
Santos, fugiram da estética reinante. pectiva, saída e solução” (Lacerda apud
Filmes mais recentes, que também Schwarcz, 1993, p. 11).
poderiam ser considerados avis-rara no A mesma falta de rebeldia verificada no
passado, continuam de forma consciente cinema e nas mídias audiovisuais parece
ou inconsciente premidos pelo desejo do também ser uma constante na história da
branqueamento na construção de imagens universidade brasileira, quando observamos
sobre o país, como Cidade de Deus, com o a enorme resistência de grande parte dos rei-
seu exército de marginais negros e policiais tores e eminentes personalidades do mundo
(a força da ordem) brancos. E a primeira acadêmico em adotar cotas para negros nas
obra do rebelde de nova geração, Cláudio de universidades públicas, recusando-se a consi-
Assis, tem no título do seu filme – Amarelo derar o desempenho escolar acima da média
Manga – a consciência do poder do objeto dos cotistas que já fazem parte da realidade
de desejo de uma mulher branca em um am- de algumas universidades do país.
biente nordestino repleto de párias sociais O período compreendido entre o final
representados em sua grande maioria por da Abolição e os anos 40 do século XX,
índios, negros e mestiços. Portanto, mesmo que tem sua importância aqui por ter sido
aqueles que fazem de suas lentes um mani- uma época fundamental nas discussões
festo dos aspectos perturbadores da infeliz sobre a identidade e imagem do país, teve
terra abominada pela revista Cinearte, e da mesma geração de intelectuais que par-

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ticipavam desse debate um envolvimento A proximidade do debate racial na mídia
entusiasmado com a defesa de uma educação audiovisual com o debate na educação é,
pública gratuita. No entanto, se a educação portanto, histórica. E o debate público hoje,
pública tornou-se realidade, a universidade em ambos os campos, continua baseado
pública brasileira, com seus fundamentos em pressupostos, idéias e fundamentos
seletivos baseados na competência acumu- semelhantes.
lada por uma história escolar privilegiada Passados 95 anos do famoso prognós-
e pelo contexto educacional familiar antes tico de João Batista Lacerda, a estratégia
de entrar na universidade, beneficiou a da miscigenação não parece ter conseguido
própria elite e, portanto, o segmento racial diluir o “problema racial brasileiro”, como
que sempre esteve no poder. A melhor de- podemos ver na insistente pressão e con-
monstração dessa afirmação é o resultado testação das entidades e dos intelectuais
pouco surpreendente do vestibular da USP, negros contra o resultado do vestibular da
em 2005, que selecionou 77% de brancos USP de 2005. No entanto, a miscigenação
e 2% de negros. continua no centro do debate nacional sen-
do utilizada praticamente da mesma forma
que aparecia desde o final do século XIX.
Para a decepção de João Batista Lacerda
e Oliveira Vianna, um século não foi sufi-
ciente para eliminar o negro da sociedade
brasileira, mas a força de suas idéias con-
tinua. A miscigenação continua sendo o
pretexto para a recusa enfática do debate e
das soluções do problema, portanto como
um instrumento de negação da legitimidade
das reivindicações políticas e sociais da
população afrodescendente por acesso e
direitos iguais na mídia, na universidade e
no mercado de trabalho.

A MISCIGENAÇÃO – DISCURSO
ESTRATÉGICO DO BRANQUEAMENTO
A natureza do debate sobre a mestiçagem
no Brasil, apesar de conviver permanente-
mente com ambigüidades e contradições,
sofreu poucas mudanças no decorrer dos
últimos cem anos. Embora no período final
da escravidão o mestiço fosse visto como
uma degeneração racial, a miscigenação já
aparece no discurso dos abolicionistas como
solução para evitar a polarização de raças no
país (Santos, 2002). Mas será nos anos 30
que o conceito sofrerá uma inversão positiva
nas mãos de uma intelligentsia brasileira
que procurou criar uma imagem autóctone
do país, através da afirmação do nativo, do
caboclo e do mestiço, em reação diante dos

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processos agudos de europeização (Bosi, Nossos intelectuais “fundadores”, como
1994), que tinha no velho continente o pa- Gilberto Freyre, Mário de Andrade e outros,
radigma para a compreensão da cultura do da mesma forma que os intelectuais latino-
Novo Mundo. No entanto, mesmo estando americanos de língua espanhola, sempre
sob a batuta daqueles que marcaram pro- ressaltaram o aspecto positivo da miscige-
fundamente a vida cultural contemporânea, nação, não em sua faceta genética, mas no
como Gilberto Freyre, para os modernistas resultante das fusões culturais oriundas do
e os romancistas que surgiram do ciclo da negro, do índio e do branco, que produziram
literatura chamada regionalista, como Jorge a original cultura brasileira. No entanto,
Amado, a afirmação da miscigenação esteve apesar de sempre valorizada e celebrada nos
sempre associada à idéia de que nesta terra discursos do Estado, da intelectualidade e na
se criava uma nação com uma nova raça, literatura, a miscigenação nunca deixou de
os brasileiros, frutos de um hibridismo em ser vista como um estado de passagem das
que prevaleceria a homogeneidade racial “raças inferiores” para a raça superior branca.
e cultural, que deixaria para trás, de forma A citação de Oliveira Vianna, acima, traz de
completamente superada, a divisão racial forma demasiadamente explícita o desejo de
de nossa formação. Nasce, nesse contexto, que a miscigenação seria a melhor forma de
o conhecido mito da democracia racial diluir o negro na sociedade branca, de apagar
brasileira. a mancha de nossa origem africana.
Mas é falso crer que o Brasil é um país As marcas resultantes desse desejo no
singular, único paraíso da democracia racial, imaginário do povo brasileiro começaram
fundado na valorização do mestiço. A ideo- a ser verificadas em estudo realizado nos
logia da mestiçagem foi um traço comum anos 50 por Oracy Nogueira, no qual ele
na construção da identidade nacional da compreendeu que desenvolvemos uma for-
maior parte dos países latino-americanos. ma de preconceito distinta da dos Estados
Na América de língua espanhola, nos anos Unidos, que dá “margem a uma contro-
20, as idéias do mais importante intelectual vérsia difícil de superar” (Nogueira, 1979,
mexicano da época, José Vasconcelos, que p. 77). Nosso preconceito racial atém-se
elogiava o mestiço como o resultado de uma mais às aparências, às marcas fenotípicas
fusão original, uma quinta raça “cósmica”, – quanto mais traços físicos de negros, mais
tiveram um efeito impactante em vários problemas, diferente do preconceito racial
países latino-americanos. Um exemplo de origem, norte-americano, em que uma
disso foi Benjamin Carrión, intelectual gota de sangue negro é fator de exclusão,
equatoriano, criador da Casa de la Cultura independente de a pessoa ter mais traços
Ecuatoriana, fundador e entusiasta defensor brancos do que negros.
da idéia de que seu país era um exemplo de E hoje, os mitos da “raça cósmica”, ou
nação mestiça, que em 1928 considerava do “mulato inzoneiro” que resultaria na for-
José Vasconcelos como “el Maestro de mação de um homem novo ideal nas Amé-
América” (Cervone, 1999, p. 8). ricas, revelam-se apenas como celebrações
No entanto, tal como aconteceu no Brasil, discursivas do passado, e caem por terra
para todos esses intelectuais a miscigenação quando observamos as telenovelas brasilei-
configurou-se sempre como um mito fun- ras, mexicanas, colombianas, venezuelanas,
dador das novas nações latino-americanas ou produzidas em qualquer parte da América
que trazia na identidade nacional mestiça a Latina, que funcionam como os melhores
superação da heterogeneidade racial, étnica atestados de que sempre prevaleceu a ideo-
e cultural de sua formação. E, em todas logia da branquitude como formadora do
essas construções, a existência de negros padrão ideal de beleza e, ao mesmo tempo,
e índios foi progressivamente apagada ou, como legitimadora da idéia de superioridade
no mínimo, diluída a partir da apropriação do segmento branco. A escolha dos galãs,
das suas culturas como parte integrante de dos protagonistas, celebra modelos ideais
uma nova cultura nacional original. de beleza européia, em que quanto mais

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nórdicos os traços físicos mais destacado No entanto, o inconsciente racial coleti-
ficará o ator ou atriz na escolha do elenco. vo brasileiro não acusa nenhum incômodo
Os mesmos também receberão as melhores em ver tal representação da maioria do seu
notas nos processos de escolha e premiação próprio povo, e provavelmente de si mesmo,
dos mais bonitos do ano pelas revistas que na televisão ou no cinema. A internalização
fazem a crônica cotidiana do mundo das da ideologia do branqueamento provoca
celebridades. E, no lado contrário, os atores uma “naturalidade” na produção e recepção
de origem negra e indígena serão escalados dessas imagens, e uma aceitação passiva e a
para representar os estereótipos da feiúra, concordância de que esses atores realmente
da subalternidade e da inferioridade racial não merecem fazer parte da representação
e social, de acordo com a intensidade de do padrão ideal de beleza do país. Natural-
suas marcas físicas, seu formato de rosto, mente, para todos nós, por força da nossa
suas nuanças cromáticas de pele e textura formação cultural, o padrão superior estético
de cabelo, portanto, de acordo com o seu só pode ser representado por aqueles ou
grau de mestiçagem. aquelas que continuam com o privilégio (“ti-
No cinema e na telenovela, o melhor veram a sorte”) de nascer de famílias brancas
lugar reservado para o mestiço, celebrado com características nórdicas acentuadas,
na literatura ou nos discursos como re- a exemplo de Xuxa, Vera Fisher, Fábio
presentante do verdadeiro brasileiro, é a Assunção ou Gisele Bündchen. Somente
representação do “povão”. Os atores mar- para eles estão reservados os papéis centrais
cadamente mestiços, independente da fusão do folhetim televisivo, ou as passarelas do
racial a que pertencem, se trazem em seus mundo fashion. Assim como os cursos da
corpos e em suas faces uma maior quan- USP. Nem mesmo aquelas atrizes, que são
tidade de traços não-brancos, são sempre reconhecidas, por nossos critérios estéticos
vítimas de estereótipos negativos. Como branqueados, como a mais perfeita repre-
exemplo, Dira Paes, uma atriz de cinema sentação da beleza resultante das fusões
que, por ter traços indígenas acentuados, genéticas entre negros, índios e brancos, a
tem pouco espaço na TV além do papel exemplo de Camila Pitanga e Juliana Paes,
de uma empregadinha cômica e de pouca conseguem fugir dos papéis de empregadas
inteligência no sitcom A Diarista. Ou José domésticas das nossas telenovelas, apesar
Dumont, um ator ausente também das te- do lugar especial que já ocupam na indústria
lenovelas, por ter fortes traços do homem da publicidade.
do sertão nordestino. E Nelson Xavier, que, Mas a ideologia do branqueamento tam-
em decorrência dos seus traços de negro- bém estará norteando os comentários dos
mulato, sempre foi escolhido para fazer o programas esportivos na TV, nas páginas
papel do pequeno comerciante ressentido, de jornal, ou os xingamentos nos estádios
do delegado “frouxo”, do “típico malandro de futebol. Os nossos jogadores negros-
brasileiro”, e somente usou terno e gravata mestiços, que na última Copa do Mundo
em uma telenovela depois de mais de vinte levaram mais uma vez ao topo a imagem
anos de história na televisão. do país, e o orgulho da nossa nacionalidade,
Todos eles, portanto, são obrigados a são obrigados a suportar a permanente humi-
incorporar na televisão a humilhação social lhação pelo estigma de suas aparências, sua
que sofrem os mestiços em uma sociedade “impura” feiúra, nas inúmeras comparações
norteada pela ideologia do branqueamento, e em eleições dos homens mais bonitos
em que a acentuação de traços negros ou da última copa mundial de futebol, que,
indígenas significa a possibilidade de viver “naturalmente”, escolheram o inglês David
um eterno sentimento racial de inferiorida- Beckham e outros homens brancos.
de, e uma consciência difusa e contraditória Mesmo diante de fatos como esses, que
de ser uma casta inferior que deve aceitar podem ser encontrados diariamente nos
os lugares subalternos intermediários do jornais, grande parte de nossa intelectuali-
mundo social. dade continua acreditando que o problema

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é somente de classe, e não de raça, e assiste
passivamente*, como se fosse uma exceção
na vida social, à “expulsão” da mãe do
jogador Ronaldo de um condomínio de
luxo da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.
Possivelmente, esses mesmos intelectuais
também se divertem e comentam ser apenas
o poder do dinheiro e da fama da “fera”
Ronaldo o que seduz e conquista as “belas”
modelos brancas saídas das passarelas do
mundo fashion. E são também os mesmos
que elogiam a beleza de nossas mulatas no
carnaval, e enchem os olhos de lubricidade
diante do corpo escultural da Globeleza, mas
aceitam como natural a escolha de mulheres
nórdicas, ou quase nórdicas, como rainhas
de bateria das escolas de samba, ou como por Getúlio Vargas), o Teatro Experimen-
modelos das passarelas – supremo templo tal do Negro, de Abdias do Nascimento,
da beleza no período atual. o Movimento Negro Unificado, nos anos
Passado quase um século dos prognósti- 70, além da ação política ou artística de
cos de Oliveira Vianna, embora a miscige- intelectuais como Milton Santos e Emanoel
nação tenha se tornado uma realidade nas Araújo, entre outros.
classes populares, a elite continua branca, Esse evidente choque racial entre o
a classe média alta continua branca, e os mundo branco da universidade e o mundo
seus filhos ocupam maciçamente a univer- negro das lideranças defensoras de cotas
sidade pública brasileira e reagem de forma me faz perguntar por quanto tempo man-
indignada contra qualquer ameaça aos seus teremos uma realidade social tão cindida e
privilégios, promovendo ações jurídicas esquizofrênica. Por quanto tempo o debate
contra cotas para afrodescendentes e para negará a existência de um componente racial
índio-descendentes. na sangrenta guerra que os jovens negros e
Portanto, voltando à época dos prognós- negros-mulatos escalados pelo narcotráfico
ticos de Oliveira Vianna, o único fato que fazem com a polícia (a ordem branca) nos
parece traçar uma grande diferença entre morros do Rio de Janeiro? Por quanto tem-
uma ponta e outra do século XX é o cresci- po o insistente avanço dos fazendeiros nas
mento da capacidade de pressão do próprio regiões amazônica e centro-oeste, com a sua
segmento populacional negro, que nunca permanente destruição dos grupos étnicos
viu na miscigenação uma válvula de escape indígenas, ficará fora do debate étnico-ra-
para o problema racial e, portanto, nunca cial? Enfim, até quando a oxigenação que
concordou com as teses defendidas pela elite se anuncia no mundo da universidade com
branca. E, ao longo do século XX, sempre a entrada de negros e índios pelo sistema
reagiu aos padrões excludentes impostos, de cotas será tão severamente condenada
buscando desenvolver uma identidade de pelos editoriais dos principais jornais de
negritude. É o que podemos concluir com São Paulo e do Rio de Janeiro, assim como
os vários séculos de resistência negra que por reitores das universidades de norte a
teve como ícones os quilombos, a revolta dos sul do país?
malês em Salvador, as centenas de jornais Essa realidade inconclusa, em que
* Utilizo o termo “passividade”
negros produzidos desde o início do século professores e reitores universitários, em
por não ter visto em nenhuma passado, a criação do Partido da Frente Ne- sintonia com os editoriais e comentários
produção acadêmica, de todos
aqueles que acreditam que o gra Brasileira, em 1936, com milhares de negativos cotidianos dos principais jor-
nosso problema é de classe, e adesões em praticamente todas as grandes nais e revistas, negam que os preconceitos
não de raça, qualquer análise
sobre esse fato. cidades do país (e colocado na ilegalidade de marca sofridos por afrodescendentes

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e índio-descendentes tenham um papel grande se empenharão bondosamente
importante na nossa hierarquia social e na pela libertação dos escravos. No entanto,
distribuição de poder e recursos, atesta uma triste é saber que mais uma vez as nossas
dialética contraditória sobre o problema crianças, após voltar de uma escola que
racial brasileiro. Diante da sintomática reluta em implantar a Lei 10.639, que
recusa de discutir, mas permanentemente orienta o estudo da história da África,
discutindo e condenando de racista quem terão mais uma aula folhetinesca sobre a
defende posições contrárias, revela-se as- história do Brasil, em que os negros são
sim uma hiperconsciência inversamente invariavelmente levados para o pelouri-
proporcional àquilo que é enfaticamente nho. Mais uma vez eles assistirão a negros
negado (Vargas, 2004). apanhando no horário nobre, Zezé Motta
no papel de uma mucama e uma sinhazinha
branca repetindo o arquétipo da princesa
Isabel, tão fundamental para o mito da
DE VOLTA AO MUNDO DO DESEJO superioridade racial dos eurodescendentes
na cultura brasileira. Será que não dá para
A Rede Globo, no dia 13 de março de transferir tal espetáculo para o horário da
2006, estreou uma nova versão da teleno- meia-noite, quando nossos filhos já esta-
vela Sinhá Moça. A massiva publicidade rão em sono profundo, fase fundamental
sobre o programa demonstrou que veremos para a liberação de hormônios ligados ao
mais uma trama em que os heróis da casa- crescimento?

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