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"Questões Fundamentais da Sociologia, de Georg Simmel", porClark Mangabeira (*)

Dados do livro resenhado:


Título: Questões Fundamentais da Sociologia
Autor: Georg Simmel
Editora: Jorge Zahar Editor
Número de Páginas: 120

O lugar que Simmel ocupa entre os autores clássicos da sociologia é um ponto de controvérsia,
especialmente nos círculos acadêmicos mais tradicionais do Brasil, nos quais Weber, Marx e Durkheim
ainda são considerados os principais autores da teoria social clássica. No entanto, Simmel foi um dos
responsáveis pela consolidação da sociologia na Alemanha, mesmo não tendo encontrado lugar efetivo
nas universidades por causa dos problemas com o anti-semitismo, a rígida estrutura acadêmica e a
institucionalização das ciências sociais diante da qual seu ensaísmo não encontrava espaço permanente.
Atualmente, o crescente interesse por sua obra demonstra nova tendência das ciências sociais de buscar
inspiração na sua micro-sociologia.

Apesar da amplitude dos seus escritos, que abarcam temas como moda, filosofia da história,
epistemologia, teoria da cultura, arte e religião, a disponibilidade nas nossas prateleiras ainda é restrita.
Para os interessados, em português, encontramos A Filosofia do Amor e duas coletâneas dos seus
ensaios, uma organizada por Jessé Souza e Berthold Öelze (Simmel e a Modernidade), e outra por
Evaristo de Moraes Filho (Simmel: Sociologia). Até o momento, não há tradução das suas obras
fundamentais Philosophie des Geldes (Filosofia do Dinheiro), de 1900; e Soziologie: Untersuchungen über
Die Formen Der Vergesellschaftung (Sociologia: Investigação sobre Formas de Sociação), de 1908,
embora a primeira possa ser adquirida em inglês. Demais livros, incluindo aqueles nos quais Simmel
analisa as obras de Rembrandt, Rodin, Kant, Goethe, Schopenhauer e Nietzsche, ficam ainda mais
difíceis de serem encontrados por aqui, mesmo na língua inglesa, e, igualmente, não há tradução das
excelentes coletâneas dos seus textos já publicados em inglês e espanhol, os livros On individuality and
social forms: selected writings, organizado por Donald N. Levine, e Essays on Religion, editado por Horst
Jirgen Helle, além de outros.

É nesse universo intelectual que se destaca o livro Questões Fundamentais da Sociologia, de 1917,
chamado de “pequena sociologia”, espécie de resumo de suas principais idéias e que o autor lançou na
sua Soziologie, de 1908, a “grande sociologia”. Embora algumas partes deste livro constem na coletânea
organizada por Evaristo de Moraes Filho, ele mantém sua importância por, finalmente, apresentar de
forma sistemática e completa parte das análises teóricas de Simmel, oferecendo ao público brasileiro um
pouco da sua teoria até então, em geral, conhecida apenas pelo estudo fragmentário daqueles e de
outros artigos aqui publicados.

No primeiro capítulo (O âmbito da sociologia), Simmel apresenta sua concepção da sociologia, definindo
seu objeto e respondendo às críticas que negam seu caráter científico. Para o autor, o objeto desta
ciência não é a vida dos indivíduos, mas sim a realidade formada a partir delas, observada por meio de
síntese intelectual. Mesmo sendo um constructo, a sociedade possui diversos agrupamentos e
configurações dignas de serem pesquisadas e que não se confundem com a vida de cada indivíduo
envolvido, ressaltando Simmel que o próprio conceito de indivíduo é igualmente uma construção abstrata,
de modo que qualquer análise neste nível também se vale, necessariamente, de uma abstração de
qualidades, forças e histórias, sintetizadas naquele conceito.

A perspectiva sociológica se qualifica visto ser incorreto pensarmos que só podemos conhecer a
realidade por meio dos indivíduos. Ambos os conhecimentos construídos, seja a partir do indivíduo, seja a
partir da sociedade, podem ser traduzidos como uma formalização intelectual do real imediatamente
dado (p. 15). A decisão do nível no qual a realidade deve ser investigada, se a partir do sujeito individual
ou coletivo, é delimitada pelo propósito do conhecimento, sendo os dois pontos de vista, modos de
observação igualmente distantes da realidade.

A categoria sociedade, para Simmel, deve ser entendida, mais amplamente, como a interação psíquica
entre os indivíduos (p.15). A definição social não abrange apenas as interações duradouras já
cristalizadas, como Estado, família e igreja, organizações supra-individuais. A sociedade significa que, por
um lado, os indivíduos estão constantemente ligados uns aos outros, influenciando e recebendo
influências; e, por outro, algo funcional, que os indivíduos fazem e sofrem ao mesmo tempo: a sociação. A
sociedade constitui, portanto, não uma substância, algo concreto em si mesmo, mas um acontecer, “que
tem uma função pela qual cada um recebe de outrem ou comunica a outrem um destino e uma força” (p.
18).

O autor continua sustentando o caráter científico da sociologia ao afirmar que, tal qual todas as demais
ciências humanas, ela define seu objeto por processos de abstração, dissipando as existências
individuais em um conceito próprio. Como os seres-humanos vivem em constante interação uns com os
outros, tal fato traz um novo modo de observação para as ciências do espírito: o ponto de vista da
produção social, pelo qual entende-se que todas as formações – linguagem, religião, família, etc – se
produzem na relação entre os indivíduos. Assim, “a sociologia não é somente uma ciência com objeto
próprio, delimitado e reservado para si, o que a oporia a todas as outras ciências, mas ela também se
tornou sobretudo um método das ciências históricas e do espírito” (p.22), de maneira que as demais
ciências se aproveitam do método sociológico sem, necessariamente, perderem seu foco, mantendo suas
autonomias.

Partindo dessas considerações, Simmel apresenta três grandes conjuntos de problemas sociológicos. O
primeiro deles, o estudo sociológico da vida histórica – sociologia geral –, é a tentativa de explicação dos
diversos fenômenos da vida humana pelo viés do método sociológico, levando-se em consideração que a
vida social é apenas uma dentre várias categorias de interpretação possíveis, parcial como qualquer
outra.

O segundo grupo é o estudo das formas societárias – sociologia pura ou formal –, aqui sim se delimitando
o objeto da nova ciência, pois “se a sociedade é concebida como a interação entre os indivíduos, a
descrição das formas de interação é tarefa de uma ciência específica, em seu sentido mais estrito, assim
como a abstração geométrica investiga a simples forma espacial de corpos que existem somente
empiricamente como formas de conteúdos materiais” (p.33). Desta forma, a sociologia pura tem por objeto
os fenômenos no momento de sua sociação, livres dos seus conteúdos que ainda não são sociais para si.

Por último, o terceiro grupo de questões, que leva em consideração a sociedade como um fato, é o
estudo dos seus aspectos epistemológicos e metafísicos – a sociologia filosófica. As ciências sociais
estariam delimitadas por dois âmbitos filosóficos: de um lado, as indagações acerca das bases para a
realização da pesquisa (pressupostos e conceitos fundamentais) e, de outro, as conclusões, conexões e
problemas que não encontram lugar na experiência concreta. Neste sentido, saber se a sociedade é o
objetivo ou meio da existência humana, por exemplo, é uma pergunta que não se responde pela
averiguação dos fatos, mas tão somente pela interpretação das particularidades em busca de uma visão
global da realidade social, surgindo a sociologia como teoria do conhecimento.

Para complementar os pontos do primeiro capítulo, e do livro como um todo, sugerimos ao leitor o
ensaio O problema da sociologia (traduzido diretamente do livro Soziologie: Untersuchungen über Die
Formen Der Vergesellschaftung), presente na coletânea organizada por Evaristo de Moraes Filho, o qual
apresenta os elementos que o sociólogo alemão sugere como sendo o objeto desta nova ciência, além de
aprofundar questionamentos sobre seu caráter científico em si.

A partir do capítulo 2, Simmel coloca exemplos analíticos de questões pertencentes a cada um dos
grupos explicados, sendo o segundo capítulo (O nível social e o nível individual) um exemplo da
sociologia geral. O autor parte das diferenças entre a vida individual e a vida social, ressaltando que a
unidade do grupo precisa ser tratada como se fosse um sujeito, com leis e características próprias, sendo
fundamental para o questionamento sociológico as diferenças entre as duas experiências.

No centro desta diferença está a característica dos grupos de terem propósitos e objetivos mais definidos
que os individuais. A massa não conhece o dualismo e as indecisões visto que, de acordo com Simmel,
seus objetivos correspondem àqueles que os indivíduos apresentam como mais simples e primitivos,
exatamente por serem os mais amplamente disseminados, ao passo que na experiência individual o ser
humano é pressionado por comportamentos e impulsos contraditórios.

A causa da formação da unidade social com base nos pensamentos mais simples está na idéia de que a
semelhança e a diferença são os princípios essenciais do desenvolvimento externo e interno do ser
humano: “é como se cada individualidade sentisse seu significado tão-somente em contraposição com os
outros, a ponto de essa contraposição ser criada artificialmente onde antes não
existia” (p.46).Conseqüentemente, o trágico da sociologia é o fato de que mesmo o indivíduo possuindo
qualidades aprimoradas e cultivadas, a instância na qual será possível a comparação para formação da
unidade será reduzida a camadas inferiores e sensorialmente primitivas: a massa torna-se “um novo
fenômeno que surge não da individualidade plena de cada um de seus participantes mas daqueles
fragmentos de cada um que coincidem com os demais. Esses fragmentos, contudo, não passam dos mais
primitivos, aqueles que ocupam o lugar mais baixo do desenvolvimento” (p. 50). Assim, as ações da
massa são sempre dominadas por uma idéia, de preferência a mais simples possível, faltando-lhe a
consciência da responsabilidade, sendo experimentada por uma elevação extremada dos sentimentos.

No terceiro capítulo, Simmel retoma os questionamentos acerca do objeto da sociologia, apresentando-


nos o conceito de sociabilidade. Para ele, a sociedade parte da interação entre os indivíduos e comporta
uma distinção entre forma e conteúdo. Nesta concepção, os indivíduos tendo diversas motivações
(paixões, desejos etc), conteúdos da vida social, interagem a partir delas e se transformam em uma
unidade. Esses conteúdos isolados não são sociais: a sociação apenas começa a existir quando os
indivíduos interagem adotando formas de cooperação e colaboração, de modo que quanto mais interação
existe no mesmo grupo, ele se torna mais sociedade. A sociação é a forma pela qual os indivíduos
formam uma unidade para satisfazerem seus interesses, sendo forma e conteúdo, na experiência
concreta, elementos inseparáveis.

Paralelo a sociação, surge o conceito de sociabilidade: visto que a sociedade é a interação com outro
para realizar os conteúdos materiais (individuais), e a partir da percepção de que as sociações envolvem,
além dos conteúdos, a própria valorização da sociação pelos indivíduos. E as formas que resultam destes
processos ganham vida própria, libertas dos conteúdos e existindo por si mesmas, constituindo a
sociabilidade, que transforma a sociação em um valor apreciado em si. Em outras palavras, a
sociabilidade é a “forma lúdica da sociação” (p. 65), não importando as motivações.

Assim, por exemplo, Simmel apresenta a coqueteria como uma forma de sociabilidade: o jogo erótico
entre os gêneros, nos quais as mulheres apresentam interesse pelos homens apenas para rejeitá-los logo
em seguida, sem delimitar uma posição fixa. Trata-se de um jogo pelo próprio jogo, um faz-de-conta entre
aceitação e recusa que abandonou toda a realidade do interesse, do desejo sexual. O autor aprofunda
este exemplo no texto Psicologia do Coquetismo (1909), do livro A Filosofia do Amor, e, ao longo de sua
obra, nos dá outros exemplos de sociabilidade, como no artigoA Contribution to the Sociology of
Religion (1898), constante na coletâneaEssays on Religion. Nele o autor distingue religiosidade, o impulso
subjetivo que gera a religião, da própria religião, como a forma objetivada que aparece aos sujeitos como
externa e que se impõe a eles.

Por fim, no quarto capítulo, o autor discute acerca do indivíduo e da sociedade nas concepções de vida
dos séculos XVIII e XIX, um exemplo da sociologia filosófica. Simmel desenha a evolução do conceito de
individualidade partindo da proposição de incompatibilidade entre a igualdade e a liberdade, para chegar,
enfim, no “conceito de individualidade do século XVIII, com sua ênfase na liberdade pessoal, que não
exclui – ao contrário, inclui – a igualdade, porque a verdadeira pessoa é a mesma em qualquer ‘homem
circunstancial’, [o que] encontrou sua perfeição abstrata em Kant” (p. 103). Por outro lado, na concepção
século XIX, o autor aborda como o conceito de individualidade, inspirado pela tradição teórica do
socialismo, se separa em dois ideais, a liberdade sem igualdade e a igualdade sem liberdade, desfazendo
a síntese atingida no século XVIII.

O ponto nevrálgico de toda esta discussão é apresentado logo no início do capítulo, resumido na relação
que as forças e formas da sociedade mantêm com os indivíduos, e nos conflitos reais entre aqueles dois
pólos, já que as exigências e atitudes sociais se contrapõem à situação individual. O conflito se
estabelece por meio da inerência da sociedade no indivíduo e se mantém pela capacidade que o ser
humano tem de se dividir em partes, colocando-se em uma relação conflituosa entre as partes do seu eu
que se sentem como ser social e os impulsos não absorvidos por este caráter: “o conflito entre a
sociedade e o indivíduo prossegue no próprio indivíduo como luta entra as partes de sua essência” (p.
84). Sendo o conflito inerente à relação social, podemos aprofundar esta análise simmeliana nos textos
da coletânea de Evaristo de Moraes Filho “O conflito” e “A natureza sociológica do conflito”.
Paralelamente, o ensaio “O conceito e a tragédia da cultura”, da coletânea organizada por Jessé Souza,
pode lançar novas luzes sobre o cultivo do indivíduo e a relação que se estabelece entre os níveis social
e individual, neste caso através do conceito de cultura.

Concluindo, no livro Questões Fundamentais da Sociologia o leitor brasileiro finalmente encontrará a


proposta teórica de Simmel de forma mais completa e organizada, tendo melhor visão da sua perspectiva
micro-sociológica: é um clássico que chega no Brasil consolidando a nova tendência das ciências sociais
de retomada do sociólogo alemão, finalmente fazendo jus à importância das suas obras.

FONTE: http://www.antropologia.com.br/res/res35.htm

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