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A noção de sociabilidade: implicações nos estudos da comunicação

Dr. Michael Hanke, Professor da UFMG, Belo Horizonte


Comunicação Social
Hanke.@fafich.ufmg.br

Resumo:
Essa contribuição discute a noção de sociabilidade e suas origens, conforme
desenvolvido pelo sociólogo alemão Georg Simmel, que trata a sociabilidade como
“exemplo de sociologia pura ou formal” no contexto de “sociação”. Outro autor que
contribui para um subcampo de estudos em torno da chamada ‘sociologia do estrangeiro’ é
Alfred Schütz, ao discutir o significado social do estrangeiro. Como a condição do sujeito
pós-moderno é caracterizada pelo deslocamento e descentralização, uma perspectiva macro
discute finalmente as transições globais e o seu impacto na identidade e sociabilidade.

1. A noção de sociabilidade e suas origens


A noção de sociabilidade tem sua origem na definição de Georg Simmel. -
“Sociabilidade – um exemplo de sociologia pura ou formal.” (Simmel, 1983) Um número
da revista GERAES (1998), cujo tema é “Comunicação e intersubjetividade: o
compartilhamento do sentido”, oferece mais sobre essa noção de sociabilidade. O numero é
aberto com um artigo de Patrick Tacussel, “Comunidade e sociedade: a partilha
intersubjetiva do sentido” (1998). Nessa contribuição para uma conferência que quis
proporcionar “a retomada inventiva dos conceitos de comunidade e sociedade ..., um
subsídio fundamental para a compreensão da intersubjetividade fundadora da dimensão
simbólica-relacional da comunicação” (p.1), lemos, que a intersubjetividade e a
sociabilidade surgem no contexto dessas discussões como noções básicas e articuladoras de
conhecimento” (Tacussel 1998: 3).
Para Tacussel, o vocabulário das ciências humanas e da sociologia têm uma história
e suas palavras se inscrevem em uma tradição teórica. Básicas para ele são as duas noções
“comunidade” e “sociedade”.(3). A sociologia implica um conhecimento das instituições
que organizam a vida social, uma sociologia global, que estuda as grandes instituições; mas
além dessa dimensão ele “tenta compreender também fenômenos que sofrem imposições
não-institucionais, como a amizade, o ciúme, a vergonha, o amor etc. ..., uma sociologia
que privilegia aquilo que Georg Simmel chama de formas da vida social.” Os fenômenos
desta micro-sociologia estão ligados a aspectos culturais que não dependem de instituições.
Pois a comunidade “é precisamente o espaço das relações intersubjetivas” (4), é a
comunidade socialmente vivida, sempre se refazendo, em permanente reconstrução (6).
A distinção entre comunidade (Gemeinschaft) e sociedade (Gesellschaft), que
Tacussel denomina “importante” e usa como base da argumentação, foi estabelecida pelo
sociólogo alemão Ferdinand Tönnies. Comunidade, “literalmente ‘o humano comum’, ‘a
humanidade compartilhada’” é uma noção que “privilegia algo que faz com que os
indivíduos se reconheçam como próximos ou distantes em função de uma série de
elementos: valores, uma práxis comum, uma atividade que os reunia profundamente ...”
(1998: 4). Como exemplo ele coloca maneiras típicas e diferentes de andar; “podemos
diferenciar o andar de um funcionário de escritório”, de um policial ou um camponês, e
comenta: “A sociologia ... e as ciências humanas em geral podem tirar proveito de uma
perspectiva sócio-fenomenológica, ou seja, uma abordagem que tente compreender as

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relações sociais a partir dos sentidos que revestem as aparências socialmente partilhadas.”
(1998: 4) Neste artigo Tacussel menciona Schutz, se referindo a ele como “um grande
autor”, do qual nada poderia tirar a força teórica (1998: 11), motivo pelo qual Schutz será
tratado depois.

2. Simmel: Sociação e sociabilidade


Georg Simmel (1858-1918) é considerado junto com Weber e Tönnies um dos
fundadores da sociologia alemã. No Brasil, textos dele já foram traduzidos em 1940 por
Barreto e Willems, Leituras sociológicas, com o texto de Simmel “As formas sociais como
objeto de sociologia”, e por F.H. Cardoso, organizador (junto com Otávio Ianni) no livro
Homem e Sociedade (1961), com o texto de Simmel “O indivíduo e a díade”.
Para Simmel, a interação é um processo social básico, ou seja’, a sociedade é
constituída pelas diversas maneiras de interação (Simmel 61). O processo de interação até
mesmo está no lugar da noção de “sociedade”: segundo Simmel não existe sociedade em si,
mas só a extraordinária pluralidade e variedade das formas da interação (Simmel 65), “onde
quer que vários indivíduos entram em interação” (Simmel 59). “Sociedade” é “apenas o
nome para vários indivíduos ligados pela interação”, “como uma resultante das ações e
reações dos indivíduos entre si, isto é, por suas interações.” (Moraes Filho, 20, 28) A
sociedade é vista como algo não estático, acabado, mas pelo contrário como algo que
acontece ou está acontecendo num constante fazer, desfazer e refazer, numa incessante vida
de aproximação e de separação, de consenso e conflito, competição, dominação-
subordinação (todas formas que Simmel analisou), de permanente vir -a-ser, através das
múltiplas interações de “estar com um outro, para um outro, contra um outro”(Simmel
1983: 168). Consequentemente, a sociologia, como ciência empírica, deve ter por campo ou
objeto a multiplicidade de interações e processos sociais. Esses processos não constituem
só a sociedade como realidade inter-humana (Moraes Filho 21), mas também a
personalidade do indivíduo, a qual encontra-se entrecruzada por numerosos círculos
sociais: nós entramos nessas relações sociais só com uma parte de nossa personalidade e,
sendo assim, ficamos parcialmente dentro e parcialmente fora dessas relações, aspecto este
que dá início à teoria dos papéis.
Esse processo fundamental da interação, da relação recíproca, constitui o que
Simmel denomina “Vergesellschaftung”. Segundo Moraes Filho, tradutor e organizador da
obra de Simmel, este termo significa “ao pé da letra, socialificação, mais do que sociedade,
denotando o seu dinamismo sempre in fieri”, mas recomenda a tradução “sociação”
(tradutores espanhóis servem-se de “socialificação”, Anthony Giddens, entre outros, de
“societalização”). Em qualquer caso “sociação” não deve ser confundida com
“socialização”. “Aparecem ainda, mais erroneamente: sociabilidade, socialidade e
associação” (Moraes Filho 31)
Então, em Simmel, sociabilidade e “sociação’ são duas coisas diferentes, mais
precisamente: a sociabilidade é uma das formas específicas do processo geral da sociação.
Um dualismo que Simmel nunca abandonou foi “forma” e “matéria”, que na
sociologia levou a distinção entre as formas e os conteúdos da vida em sociedade. A
sociação é constituída pelos impulsos dos indivíduos, seus motivos, interesses e objetivos e
pelas formas que esses conteúdos assumem. (Mas, como formas e conteúdos são
inextricáveis, inseparáveis, não há formas vazias nem conteúdos sem forma; as formas
funcionam como “tipos -ideais” no sentido de Max Weber). Simmel trata sociabilidade
como “exemplo de sociologia pura ou formal”, ou seja como uma dessas formas.

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Em qualquer sociedade humana pode -se fazer a distinção entre conteúdos (ou:
matéria) e formas de vida social. Os conteúdos, ou seja, o material que preenche as formas
sociais, são os interesses que fazem alguém entrar em interação, “sejam sensuais ou ideais,
temporários ou duradouros, conscientes ou inconscientes”, os instintos eróticos, impulsos
religiosos, propósitos de defesa ou ataque, de auxílio ou instrução e incontáveis outros, que
fazem com que o homem aja com outros homens, por eles, contra eles, e assim formem a
“sociedade”. Tudo que está presente nos indivíduos – impulsos, interesses, estado psíquico,
etc. – funciona como matéria para a sociação. Enquanto fatores de sociação eles
transformam o agregado de indivíduos isolados em formas de interação; desse modo, “a
sociação é a forma” “pela qual os indivíduos se agrupam” (Simmel 1983: 166). Os
materiais são transformados em formas, e isso é o processo de sociação.
Porém, os conteúdos e as formas não são colados ou conectados para sempre;
formas, que serviram para satisfazer certas necessidades, podem ganhar autonomia. (A arte,
por exemplo, surgiu na vida prática, mas enquanto estabelecida como arte está separada
dela.) As formas podem ganhar uma vida própria, e liberadas de todos os laços com os
conteúdos, existir “por si mesmas e pelo fascínio que difundem pela própria liberação
destes laços. É isto precisamente o fenômeno a que chamamos sociabilidade.” (168) Além
dos conteúdos, todas sociações têm um sentimento entre seus membros “de estarem
sociados”; esse sentimento que a formação de uma sociedade como tal é um valor, ganha
uma forma autônoma na sociabilidade, que é uma forma autônoma de sociação.
Sociabilidade, “estar juntos”, faz parte de toda forma da interação, mas pode ganhar
autonomia como forma da vida. Como forma pura, sociabilidade não tem conteúdo e por
isso é a forma lúdica da sociação (169); é “uma interação completamente pura, que não é
desequilibrada pelo realce de nenhuma coisa material” (172). Sem propósitos objetivos nem
resultados exteriores, a sociabilidade “depende inteiramente das personalidades entre as
quais ocorre”(170). O fim da sociabilidade é nada mais que o sucesso do momento, e, em
conseqüência disso, as condições e os resultados desse processo são exclusivamente o
encontro das pessoas numa reunião social. Segundo Simmel, seu “caráter é determinado por
qualidades pessoais tais como amabilidade, refinamento, cordialidade e muitas outras
fontes de atração.” (170) Talvez exista uma semelhança entre a sociabilidade e o que
Malinowski chamou de “phatic communion”, uma forma de comunicação que Jakobson
integra no seu modelo semiótico.
A sociabilidade como interação tem regras especificas. Atributos objetivos que
circundam a personalidade, como riqueza, posição social, cultura, fama, méritos, e
capacidades excepcionais estão proibidos de participar nela; assim como traços
profundamente pessoais da vida de alguém, o caráter, a disposição e o destino devem ser
eliminados, e é o tato que regula isso. Assim, a manifestação de disposições meramente
pessoais de depressão, excitação e desespero é considerada falta de tato ou discreção.
Pensamos num exemplo, um encontro na cafeteria. “Como vai?” - “Tudo bem”-
“Tudo bem” – “Que calor!” – “Terrível” – etc. Não se fala sobre riqueza (“Você tem um
novo carro, deveria custar mais que 20.000 R$, de onde vem o dinheiro?”), posição social
(“Como emergente ...”), e a pergunta “tudo bem?” não pode ser respondido com
manifestações pessoais de depressão ou outros elementos mais pessoais.
A sociabilidade tem limiares: quando os indivíduos interagem motivados por
propósitos e conteúdos objetivos ou quando seus aspectos subjetivos e inteiramente
pessoais são tratados, a sociabilidade deixa de ser o princípio formativo e central de suas
sociações. Daí a diferença entre conversação e sociabilidade: numa conversação “as

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pessoas conversam por causa de algum conteúdo que querem comunicar ou sobre o qual
querem se entender, enquanto que numa reunião social, conversam por conversar.” (176) O
assunto é apenas um meio; assim, a sociabilidade apresenta o caso em que a conversa é o
legítimo propósito de si mesma. (177) A superficialidade desse intercurso sociável não é
um mal, mas mostra o caráter lúdico desse “jogo social”, com quem as pessoas “jogam
sociedade”. (Simmel 1983: 174)

3. Schütz e a sociabilidade do estrangeiro


Schütz é considerado atualmente um pensador clássico do século XX e sua
abordagem socio-fenomenológica é vista como um campo de estudo próprio com difusão
mundial, como demonstram os 1.400 títulos da lista bibliográfica na internet
(http://www.phenomenologycenter.org). O mesmo vale para o Brasil; embora a seleção dos
seus textos em língua portuguesa, publicada em 1979 (Schütz 1979), tenha encontrado
pouca ressonância num primeiro momento, há registro de uma série de estudos recentes
(por exemplo: Teixeira 2000), e um dos quatro congressos organizados no mundo inteiro
por ocasião do aniversário de 100 anos de Schütz aconteceu no Rio de Janeiro. Além da
referência de Tacussel já citada, há também a de Michel Maffesoli, pensador francês e
tradutor de Schütz.
Nascido em Viena em 1899, Schütz, prevendo os desenvolvimentos políticos na
Europa, emigrou para Nova Iorque em 1939, tornando-se professor de Sociologia e
Psicologia Social da New School for Social Research. Durante sua vida, apenas um de seus
livros foi publicado (Der sinnhafte Aufbau der sozialen Welt [1932] = A estruturação
significante do mundo social), onde ele pretende esclarecer a relação entre sujeito e
sociedade. Sua obra final, Strukturen der Lebenswelt, em 2 volumes [Estruturas do Mundo-
da-Vida], foi completada depois do falecimento de Schütz em 1959 por Thomas Luckmann
(o Vol. I em 1975, o Vol. II em 1984). Luckmann também escreveu um livro bem
conhecido, disponível em português, em conjunto com Peter Berger, A Construção Social
da Realidade (1998), que tem explicitamente suas raízes em Schütz.

3.1 A abordagem sócio-fenomenológica


Schütz desenvolveu uma teoria genuína, que pode ser caracterizada como sócio-
fenomenológica, juntando suas duas fontes principais: o sócio- refere-se à Sociologia e à
noção de significado subjetivo desenvolvida por Max Weber, e o fenomenológico à
filosofia de Edmund Husserl.
Central à noção de significado (“Sinn”) é a visão fundamental de Weber de que o
significado subjetivo é algo que o indivíduo, como sujeito em ação, cunha para suas ações,
levando a cabo interpretações e escolhas, que são cruciais para a construção do mundo
social. A estruturação significante do mundo social (ou: realidade) é vista como construtiva
por natureza, e progride a partir do significado subjetivo desenvolvido pelo ego e pela
consciência. Este processo de estruturação passa por um alter ego e pela comunicação e
através de signos constitui a sociedade e as estruturas do mundo social (Mundo da Vida).
O mundo no qual ocorrem nossas construções não é um mundo privado, mas, desde
o início, um mundo intersubjetivo da cultura, no qual vivemos “como humanos entre
humanos”, na medida em que o mundo do cotidiano é “um universo de significância”,
“uma textura de sentido” que temos que interpretar a fim de encontrar um caminho comum
e lidar com ele de forma bem sucedida. Essa textura de sentido (que distingue o reino da
cultura do reino da natureza) se origina e foi instituída por ações humanas e, desta forma,

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aponta de volta para o sentido subjetivo originalmente atado a ela: “Todos os objetos
culturais – ferramentas, símbolos, sistemas de linguagem, obras de arte, instituições sociais,
etc. – apontam de volta para sua origem e significado das atividades de sujeitos humanos”.
(1967:10). Assim, o sentido subjetivo cunha os fenômenos do mundo social (ou:
sociabilizado).
A transferência do ego para o alter-ego e a camada de intersubjetividade são
resultados obtidos pela “General Thesis of the Alter Ego” [A Tese Geral do Alter-Ego], que
considera as estruturas do ego e do alter-ego como iguais em seus fundamentos estruturais
mas diferentes em conteúdo. Como Tacussel escreve, a idéia de comunidade “tem um
enraizamento ontológico e espiritual – o reconhecimento do outro como tendo sentimentos,
rejeições, alegrias ou tristezas que eu posso compreender porque posso viver da mesma
maneira.” (1998: 6)
Em oposição a Husserl, Schütz considera, que a intersubjetividade é “a categoria
ontológica fundamental da existência humana no mundo” (1966:82) e um dado do mundo
da vida. Como esse caráter social e intersubjetivo é essencial para o mundo da vida
cotidiano e não é uma camada acrescentada, a comunicação é fundamental para os planos e
ações dos sujeitos individuais. É por meio dos signos que a intersubjetividade é
estabelecida; e como a linguagem é o sistema mais importante dos signos
(Schütz/Luckmann 1979:141), ela tem um papel central para a sociabilidade.

3.2 O estrangeiro
Constando a importância de Schutz para a noção de sociabilidade, temos agora que
justificar a escolha do tema especifico nesse autor. Como Carla Costa Teixeira coloca na
introdução do livro “Em Busca da Experiência Mundana e seus Significados: Georg
Simmel, Alfred Schutz e a Antropologia” (2000), na obra desses dois autores (Simmel e
Schutz) está presente um problema clássico: o significado social do estrangeiro. Também
Stuart Hall, discutindo o sujeito pós-moderno e sua característica, deslocação e
decentralização, escreve, que Simmel e Schütz haviam analisado características essenciais
da modernidade em ensaios famosos sobre o estrangeiro (1997: 36).
Para Simmel, as relações sociais são constituídas pela proximidade e afastamento,
de distância social, de vizinhança e de isolamento, e o estrangeiro é um dos exemplos mais
característicos apresentados por ele. O seu ensaio “O Estrangeiro”(“The Stranger”), de
1908 (Simmel 1983: 182-88) motivou/ iniciou “um subcampo de estudos em torno da
chamada ‘sociologia do estrangeiro’” (Teixeira 2000: 22), para o qual Schutz também
contribuiu. O estrangeiro com seu deslocamento socio-espacial numa certa forma constitui
o contrário de uma sociabilidade concluída, pois ele é definido como outsider; mesmo
assim, “ser um estrangeiro ... é uma forma específica de interação” (Simmel 1983: 183).
Ele não faz parte da comunidade, seus valores, comportamentos, pensamentos, e ele é
distante, não próximo. Mas exatamente esse contraste entre distância e proximidade traz
consigo uma vantagem, que é para Schutz a ênfase está “no processo intersubjetivo de
produção da interação de estranhamento e, como sua outra face, encontramos a
preocupação com as condições de inclusão social.” (Teixeira 2000: 25)
O termo “estrangeiro” significa para Schütz um indivíduo que tenta ser
permanentemente aceito ou ao menos tolerado pelo grupo ao qual ele se aproxima. Além do
exemplo do imigrante essa situação é também típica para um candidato à um clube fechado,
o futuro noivo que quer ser admitido para a família da garota, o filho do fazendeiro que
entra na faculdade, o morador da cidade que se muda para o ambiente rural, ou a família de

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um trabalhador simples que se muda para a metrópole – todos desafios para a sociação ou
sociabilidade.
Central para esse processo é o padrão cultural de vida do grupo, “os valores
peculiares, instituições, e sistemas de orientação e direção (tal como os estilos folclóricos,
padrões morais, leis, hábitos, costumes, etiqueta, modismos)” que caracterizam ou
constituem qualquer grupo social em um dado momento na sua história.
O conhecimento dos membros desse grupo dá a qualquer um deles uma chance
razoável de entender e ser entendido. Qualquer membro aceita os esquema s já prontos e
estandardizados do padrão cultural legado a ele pelos ancestrais, professores e autoridades
como um inquestionado e inquestionável guia que se evidencia em todas as situações que
ocorrem normalmente. Este conhecimento contem receitas confiáveis para interpretar o
mundo social, evitando indesejáveis conseqüências. Essas receitas funcionam como um
preceito para ações e como um esquema de expressão: eu sei como proceder para alcançar
um certo resultado, seguindo o indicado pela receita. Vice ve rsa, a receita serve como um
esquema de interpretação: qualquer um que procede como indicado por uma específica
receita deverá pretender o respetivo resultado. Portanto o padrão cultural elimina
indagações incômodas oferecendo direções prontas para o uso, um “pensar habitual”, que
corresponde à “concepção relativamente natural do mundo” de Max Scheler.
“Relativamente natural” significa que esse pensar tem suposições básicas, como: a vida
social como é vai continuar assim e “para sempre”, e os “mesmos problemas requerendo as
mesmas soluções serão recorrentes e que, portanto, nossas experiências passadas serão
suficientes para controlar situações futuras”; que podemos confiar nele, até mesmo se não
entendemos suas origens e seus reais significados; já saber algo sobre um evento é
suficiente para gerenciar o esquema; e que todos membros compartilham os sistemas de
receitas.
Se somente uma dessas suposições deixasse de sustentar a prova, o pensar habitual
se tornaria impraticável, e uma “crise” surgiria podendo derrubar o padrão cultural como
todo, que não mais funciona como um sistema de receitas testadas à mão; isto revela que
sua aplicabilidade está restrita a uma situação histórica específica. E isso se intensifica no
papel do estrangeiro, que per definitionem não compartilha essas suposições básicas. “Ele
torna-se essencialmente o homem que tem que colocar em questão aproximadamente quase
tudo que parece ser inquestionável para os membros do grupo ao qual ele se aproxima.”
Para o estrangeiro o padrão cultural do grupo ao qual se aproxima não tem a
autoridade de um testado sistema de receitas; por isso ele não aceita a totalidade do padrão
cultural do grupo interno como o natural e apropriado estilo de vida e como a melhor de
todas as possíveis soluções para qua lquer problema. Já por que ele não compartilha da forte
tradição histórica do grupo, claro, que a cultura do grupo aproximado tem sua história, que
pode ser até mesmo acessível a ele, mas nunca se tornou uma parte de sua biografia. “Nem
túmulos nem reminiscências podem ser transferidos ou conquistados.” O estrangeiro pode
compartilhar o presente e o futuro com o grupo aproximado, mas ele permanece excluído
do passado.
Para o estrangeiro o padrão cultural de seu grupo de origem continua a ser um
elemento de sua biografia pessoal e o inquestionável esquema de referência para sua
“concepção relativamente natural do mundo”.
A figura pronta do padrão cultural do grupo externo que o estrangeiro traz consigo
revela-se inadequado para ele pela simples razão deste não ter sido formado com o objetivo
de incitar uma resposta ou uma reação dos membros do grupo externo. O conhecimento que

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este oferece serve simplesmente como um esquema à mão para interpretar o grupo externo
e não como um guia para interação entre os dois grupos, e é necessariamente inadequada.
Conseqüentemente, para o estrangeiro o seu “pensar habitual” e seu padrão cultural e estilo
de vida, não suportam o teste da vívida experiência e interação social; não existe uma
fórmula geral de transformação entre os dois padrões culturais permitindo a ele converter
todas as coordenadas dentro de um esquema de orientação válido naquele outro.
O padrão cultural e suas receitas representam somente para os membros do grupo
interno uma unidade de coincidentes esquemas de interpretação tanto quanto de expressão;
o estrangeiro não pode supor que sua interpretação do novo padrão cultural coincida com a
corrente dos membros do grupo interno.
As dificuldades de estabelecer uma intersubjetividade comum (ou sociabilidade) do novo
padrão cultural atinge todas categorias de padrões culturais tal como padrões morais, leis,
modismos, etc., mas primeiramente a linguagem. A linguagem como um esquema de interpretação
e expressão não consiste só de símbolos lingüísticos catalogados no dicionário e de regras
sintáticas, que são traduzíveis em outras linguagens e assim constituem um obstáculo superável pela
aprendizagem. Mas existem outros fatores quase insuperáveis. As palavras são cercadas por
“bordas”, constituídas por dois aspectos: um, os elementos passados e futuros do universo do
discurso ao qual eles pertencem, e o outro com um halo de valores emocionais e implicações
irracionais as quais eles mesmos permanecem inefáveis. “As bordas são a essência da qual a poesia
é feita; elas são capazes de ser transportadas para a música, porém não são traduzíveis .”(Schütz
1964:100).
Segundo, além dessas conotações, os elementos de linguagem adquirem seu
especial significado secundário derivado do contexto ou do ambiente social dentro do qual
ele é usado e ganha um traço especial da atual ocasião na qual ele foi empregado.
Terceiro, o significado de idiomas, termos técnicos, jargões e dialetos, os quais o
uso permanece restrito a grupos sociais específicos, pode ser aprendida no processo de
sociação; mas cada grupo social, seja ele até mesmo muito pequeno, tem seu próprio código
privado, compreensível somente por aqueles que têm participado em experiências passadas
comuns nas quais ele surgiu ou na tradição ligada a ele. Finalmente, existe uma história do
grupo lingüístico (antes de mais nada formada pelas traduções da Bíblia). Todas essas
características são acessíveis somente para os membros do grupo interno; elas não são
ensináveis e não podem ser aprendidas do mesmo modo como, por exemplo, o vocabulário.
Assim, eles são no mesmo tempo constitutivos para a sociabilidade do grupo
cultural e limiares para o estrangeiro.
“A fim de dominar uma linguagem livremente como um
esquema de expressão, deve-se ter escrito cartas de amor com ela; ter
condição de rezar e xingar com ela e dizer as coisas com o tom
apropriado ao destinatário e à situação. Somente membros do grupo
interno têm o esquema de expressão genuinamente à mão e domina-o
livremente dentro do seu pensar habitual.”(Schütz 1964: 101)

Enquanto para aqueles que tenham crescido dentro do padrão cultural, não somente
as receitas e sua possível eficiência, mas também as típicas e anônimas atitudes requeridas
por elas são uma inquestionável “coisa natural” que dão a elas segurança e certeza, para o
estrangeiro esse padrão não garante uma chance objetiva para o sucesso, mas uma pura
probabilidade subjetiva: o sistema completo do padrão cultural é para ele um tanto
enigmático por sua inconsistência, incoerência e falta de clareza. Assim o estrangeiro

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carece de sensibilidade de distância, oscilando entre afastamento e intimidade, em outras
palavras, o padrão cultural do grupo aproximado não é uma coisa natural para o estrangeiro,
mas um questionável tópico de investigação e um campo de aventuras; não um instrumento
para desvendar situações problemáticas, e sim ela mesma uma situação problemática e
difícil para dominar. Assim ele faz a “experiência dos limites do “pensar habitual”, o qual
tem ensinado a ele que um homem pode perder seu status, suas regras de orientação, e até
mesmo sua história e que o estilo de vida normal é sempre muito menos garantido do que
parece.”
Em respeito ao processo de assimilação social, é importante constatar que
estranheza e familiaridade não são limitadas para o estrangeiro ou ao campo social, mas
categorias gerais de nossa interpretação do mundo, e a adaptação do recém-chegado ao
grupo interno que à primeira vista pareceu ser estranho e não familiar para ele, é um
processo contínuo de indagação do padrão cultural do grupo aproximado, é só um caso
especial deste princípio geral. Se esta adaptação tiver sucesso, este padrão e seus elementos
tornar-se-ão uma coisa natural, como é para os membros, e o processo de sociabilidade é
completado.

4. A perspectiva macro: as transições globais e o seu impacto na identidade e


sociabilidade
As perspectivas acima tratadas podem ser classificadas como perspectivas micro, de
processos face-a-face. A perspectiva macro trata a sociabilidade junto com processos de
mudança e perda de identidade, especialmente em respeito às transições globais, que têm
cada vez mais impacto nesse processo micro.
Segundo o sociólogo Ulrich Beck, todas estas questões que surgiram a partir de
processo de modernização se desdobram em duas etapas: a Primeira Modernidade e a
Segunda Modernidade. O período da Primeira Modernidade estava centrado no Estado
nacional regulador, no desenvolvimento econômico, na linearidade dos conflitos de classe e
na burocratização, com pleno emprego e trabalho regulamentar, num estado com soberania
econômico-territorial. Para o indivíduo, a identidade e sociabilidade são tecidas de acordo
com estes fatores, com influências de classes sociais, partidos e ideologias, e constituem-se
baseadas na seguridade social e por meio do trabalho regulamentar. A formulação dessa
identidade seria “Sou um trabalhador, inglês, do partido socialista, etc.”.
Já o período da Segunda Modernidade nasce sob o signo da erosão da sociedade do
trabalho e do pleno emprego. O fluxo de capital no mundo todo produz um Capitalismo
sem trabalho, emprego. Este é flexibilizado e temporário, sem seguridade social,
esvaziando-se o papel do trabalho que, anteriormente, contribuía de forma maciça para a
sociabilidade.
Na política, isso traz descentralização e o aparecimento de novos atores não-
territoriais como capital e conglomerados financeiros. O peso do trabalho e do Estado como
constituidores das identidades enfraquece, produzindo uma individualização que vai além
das classes; ocorre uma pluralização dos estilos de vida, dos afetos e papéis sexuais e,
finalmente, uma internalização de medo e angústia na presença dos riscos globais.
Primeiramente, a Primeira Modernidade era essencialmente organizada por Estados
nacionais em sociedades “containers” - trazendo a idéia de que a sociedade podia ser
organizada como recipientes do Estado, com esferas que fossem dispostas em
compartimentos estanques.
“Em segundo lugar, ela decorria da suposição de uma identidade coletiva de classes

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ou grupos étnicos a partir de uma cultura homogênea e religiosa, que possibilita uma
organização política compatível.” (Beck 1999: 4)
Na Segunda Modernidade (também chamada de globalização) rompe-se a idéia dos
containers sociais, cujos domínios agora se interpenetram.
Não havendo mais hegemonias, “a individualização do interior da sociedade torna
problemática a idéia de uma identidade coletiva em classes ou etnias que possam ser
reduzidas a um denominador comum ...” (Beck 1999: 4).
Isso produz uma enorme redução dos papéis tradicionais de gênero no cotidiano, no
campo profissional e na política. O Estado se desnacionaliza e vê-se evaporar sua soberania
econômica: a passagem de uma Primeira para uma Segunda Modernidade é aquela de um
Estado nacional para a desarticulação deste Estado e a desterritorialização de sua economia.
O novo processo de “mundialização” esvazia as identidades tradicionais e coletivas
(e nacionais) resultando na individualização, o contrário da sociabilidade.
Segundo o sociólogo Richard Münch, no livro “Dinâmica global - mundos de vida
local” (Globale Dynamik, Lokale Lebenswelten), a identidade individual constitui-se por
atitudes que formam um núcleo de pensamento e de ação, formando uma unidade
diferenciada em relação a outros indivíduos. Esta identidade pode ser atribuída pelo próprio
indivíduo e pelos outros. A definição dos dois pode convergir ou se diferenciar. A interação
pode, assim, conduzir a auto-imagem e a imagem que os outros têm dele. A identidade
pode ser mais abstrata ou concreta, e ela pode permanecer estável por um longo período,
podendo, entretanto, mudar rapidamente.
Já a identidade coletiva é o núcleo das atitudes comuns entre os membros de um
grupo interno ou grupo “nós”, a partir da qual se estabelece diferenciações entre os grupos
externos (ou grupo dos outros), usando os termos de Robert Park. Segundo este autor, um
conjunto de grupos pode ter alguma relação um com o outro (parentesco, vizinhança,
aliança, connubim e commercium) que os reúne e os diferencia dos outros. “Assim surge
uma diferenciação entre nó s mesmos, o grupo ‘nós’ (we-group), ou grupo interno (in-
group), e todo mundo mais, ou os grupos dos outros (other-groups), ou grupos externos
(out-groups). Os que estão dentro de um grupo ‘nós’ estão numa relação um com o outro de
paz, ordem, lei, Governo e indústria. Sua relação com todos os forasteiros, ou grupo de
outros, é de guerra e saque, exceto na medida em que os acordos a têm modificado.” (Park
1976: 58)
Esta identidade coletiva pode ser formulada pelo próprio grupo interno ou, ainda,
atribuída pelo grupo externo. Por exemplo: o termo “favelados” é uma atribuição do grupo
externo, versus o termo “moradores da favela” do grupo interno ou “mexicanos” (in-group)
versus “chicanos” (out-group). Estas formulações podem se convergir (Movimento dos
Sem terra) ou se diferenciar.
A identidade coletiva é desenvolvida então para estabelecer uma diferença entre os
outros coletivos (também de acordo com Simmel), assim produzindo uma sociabilidade do
grupo interno. Essa diferença pode ser, segundo Münch:
1. de dentro para fora. A respeito da identidade nacional, esta diferença resultaria
da sua relação externa com outros países (Brasil - EU, Europa, Portugal, Itália etc.).
2. de cima para baixo. Isso significa uma diferenciação do conceito da
sociabilidade “de cima para baixo”, iniciando-se hierarquicamente com um nível
abstrato (a República Brasil - “brasileiro”), indo para o nível Estadual (“Minas Gerais” -
“Mineiro” - municipal - “belorizontino”), distrital, e assim por diante.
3. de baixo para cima. Sob o Estado nacional que, nesta classificação se encontra

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em baixo, existem acima as forças supra-nacionais, as instituições globais como as
Nações Unidas (NU), FMI, a Organização Mundial de Comércio (OMC) que, por um
lado, tendem a solucionar problemas globais, ao mesmo tempo instalando novas
entidades sociais.
Entretanto, a formação da identidade coletiva não é somente parte deste processo de
diferenciação, mas também de diminuição de diferenças em termos de uma
homogeneização interna, já que ela vai englobar grupos a partir de certas categorias
comuns. Assim, a identidade nacional é fortalecida pela igualdade social (=
homogeneização) e enfraquecida pela desigualdade social. Quando as condições
econômicas (consumismo, por exemplo) se homogeneizam, isto resultará em uma paridade
entre pensamentos, objetivos de vida e valores em uma sociedade; que se ajustam,
produzindo uma unidade reforçadora da identidade nacional comum.
A individualização, considerada uma ameaça por Beck é, segundo Münch, a base de
um novo processo de identificação e não o seu fim. Cortando laços antigos cria-se a
possibilidade de formar novos laços (e novas comunidades, como a cyber comunidade).
Assim, individualização e coletivização são duas forças complementares na formação da
identidade. Desta forma, esta formação tem uma estrutura similar ao processo de
modernização: uma dialética de ganhos e perdas, que complexifica a sociabilidade no tão
dinâmico processo social.

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