Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
LIEBEL, Silvia Demonização Da Mulher PDF
LIEBEL, Silvia Demonização Da Mulher PDF
DEMONIZAÇÃO DA MULHER
A construção do discurso misógino no Malleus Maleficarum
CURITIBA
2004
“Não sabes tu que és Eva, tu também? A sentença de Deus tem ainda hoje todo o vigor sobre
este sexo, é preciso portanto que a culpa subsista também. Tu és a porta do Diabo, tu consentiste
na sua árvore, foste a primeira a desertar da lei divina.”
(Tertuliano)
ii
AGRADECIMENTOS
Este trabalho demandou esforços não apenas meus, mas também daqueles que
vivenciaram junto a mim os momentos de pesquisa intensa. Por isso, agradeço a todos que
contribuíram, direta ou indiretamente, em sua realização, com sugestões, críticas e carinho. Meus
maiores débitos ficam com a professora Ana Paula Vosne Martins, por sua dedicada orientação;
com Giana Liebel, cujo empréstimo do computador salvou-me nos últimos momentos; com
Vinícius Liebel, companheiro de todas as horas, por sua valiosa presença e incentivos constantes;
e, por último, mas não menos importante por fornecer o suporte material a este trabalho, agradeço
a Claudia Amanda Fonseca, e seu constante estímulo ao saber.
iii
SUMÁRIO
Página
I. INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 1
II. DESENVOLVIMENTO..................................................................................................... 5
iv
1
I. INTRODUÇÃO
Aquilo que se convencionou chamar ‘gênero’ é o produto de uma reelaboração cultural que a
sociedade opera sobre essa pretensa natureza: ela define, considera – ou desconsidera –,
representa-se, controla os sexos biologicamente qualificados e atribui-lhes papéis determinados.
Assim, qualquer sociedade define culturalmente o gênero e suporta em contrapartida um efeito
sexual.5
1
CERTEAU, M. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 14.
2
SCOTT, J. História das mulheres In: BURKE, P. A escrita da História: novas perspectivas.
São Paulo: UNESP, 1992. p. 63-95.
3
DUBY, G.; PERROT, M (Org.). História das Mulheres no Ocidente. Porto: Edições
Afrontamento, São Paulo: EBRADIL, 1994. v. 1: A Antiguidade.
4
PANTEL, P. A história da mulher na história da antigüidade, hoje. In: Ibid., p. 594.
5
KLAPISCH-ZUBER, C. In: DUBY, G.; PERROT, M (Org.). História das Mulheres no
Ocidente. Porto: Edições Afrontamento, São Paulo: EBRADIL, 1994. v. 2: A Idade Média. p. 12.
2
6
Ibid., p. 16.
3
7
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Educação e Realidade, [Porto Alegre], v. 20, n. 2,
jul./dez. 1995. p. 176.
5
II. DESENVOLVIMENTO
1
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
6
2
BOURDIEU, P. A dominação masculina..., 1995, p. 145.
7
3
Ibid., p. 157.
4
Ibid., p. 162.
5
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.
8
6
MOTA, C. G. (Org.). Febvre. São Paulo: Ática, 1978. p. 24. (Col. Grandes Cientistas Sociais).
7
BROWN, P. Antigüidade Tardia. In: ARIÈS, P.; DUBY, G (Org.). História da vida privada.
São Paulo: Cia. das Letras, 1989. v. 1: Do Império Romano ao ano 1000. p. 206.
8
DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo:
Cia. das Letras, 1989. p. 322.
9
A dessimetria dos gêneros mescla uma relação de medo e exaltação do “segundo sexo”,
observada mesmo em sociedades matriarcais na pré-história, que viam na capacidade de gerar vida uma
9
A legenda máxima dos discursos misóginos cristãos, Eva, origem das desgraças
da humanidade, relaciona-se àquela que, para os gregos, graças a sua curiosidade (que
será dita tão própria das mulheres pelos padres da Igreja) libertou os males no mundo.
Pandora, juntamente com Eva, simboliza o ardil feminino, tirando o homem do paraíso
que lhe era merecido.10 No resgate de autores clássicos a fim de aprimorar os textos com
intenções edificadoras, muitos teólogos do Medievo irão retomar personagens que
exemplificam o caráter da desviante, personagens cujos atos mostram-se recorrentes nas
acusações produzidas entre os séculos XV e XVII: feiticeiras que matavam crianças e
devoravam seus filhos, com um apelo violento e erótico.
A imagem feminina é construída sobre a encarnação da luxúria, a mulher é vista
como portadora de uma sexualidade insistente que impede a psique masculina de se
elevar. De “qualquer maneira, o homem jamais é o vencedor no duelo sexual. A mulher
lhe é ‘fatal’. Impede-o de ser ele mesmo, de realizar sua espiritualidade, de encontrar o
caminho de sua salvação”.11 Circe, a deusa-maga, embora tenha desviado Ulisses de seu
destino e gerado filhos com ele, é frustrada em suas tentativas de assegurar seu amor,
vendo seus poderes extraordinários não surtirem efeito.12 Já Ovídio declarara proibido
o caminho do malefício, e a inutilidade de se tentar provocar sentimentos com o uso de
artifícios mágicos.13
A fraqueza do caráter feminino de agir no universo passional por meios mágicos
mostra-se também em Canídia, que esquarteja uma criança a fim de utilizar seu sangue
em uma poção, parte do repertório da mística do universo passional grego, derivada dos
afrodisíacos, os encantos preparados de Afrodite. Também se vêem nas narrativas sobre
a feiticeira o uso de plantas maléficas (maléficas por serem empregadas nos malefícios,
interação com o sagrado. Até o Romantismo, a mulher pode ser vista exaltada: inicialmente, como deusa
da fecundidade, apresenta o caráter ambíguo da deusa-mãe, aquela que dá a vida e anuncia a morte;
enquanto Atena representa a sabedoria; e, finalmente, como a Virgem Maria, é significação de pureza e
bondade. Ibid., cap. 10.
10
Em uma versão corrente do mito, Zeus teria criado a primeira mulher para castigo dos homens.
Pandora fora moldada à imagem das deusas, recebendo de cada divindade uma dádiva e um mal, sendo
todos os males guardados em uma caixa. Como principal característica feminina, possuía a arte da
mentira e, entre seus dons, destacava-se sua curiosidade. Ao chegar na terra, ocorreu a primeira tragédia:
o casamento. Pandora uniu-se a Hipemeteu e, somadas a curiosidade dela e a inconseqüência dele,
resolveram abrir a caixa de Pandora, libertando os males no mundo.
11
Ibid., p. 313.
12
HOMERO. Odisséia. São Paulo: Ars Poetica, EDUSP, 1992.
13
OVÍDIO. Os remédios do amor: os cosméticos para o rosto da mulher. São Paulo: Nova
Alexandria, 1994.
10
não por serem venenosas), preferencialmente as plantas que nasciam em torno das
sepulturas, além de pêlos de lobos e bonecos de cera. 14
Medéia, a mais elaborada das três personagens, é o símbolo máximo da
feiticeira, em poder e sedução: perita em sortilégios, conhece a fundo as virtudes das
plantas, sendo exímia perfumista e envenenadora. Também é ela que, em seu desejo
frustrado, assassina os próprios filhos como vingança ao ser amado.
14
HORÁCIO. Sátira VIII – O deus Príapo e as feiticeiras; Épodo VIII. In: HORÁCIO; OVÍDIO.
Sátiras. Os Fastos. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W. M. Jackson, 1952.
15
SÊNECA. Obras. Rio de Janeiro: Ediouro, [198-]. p. 80.
11
seduzir pelo Demônio arrasta consigo Adão, tornando-se responsável pela queda do
homem.
O ter atribuído à serpente tentadora um rosto de mulher pode dar a medida de como o pecado era
vivido de um ponto de vista exclusivamente masculino e como era representado de acordo com
essa directriz, mesmo com o risco de uma certa incoerência. De facto, para Eva teria sido bem
mais atraente o rosto de um belo jovem do que de uma mulher.16
16
FRUGONI, C. A mulher nas imagens, a mulher imaginada. In: DUBY, G.; PERROT, M.
(Org.). História das Mulheres no Ocidente. Porto: Afrontamento, São Paulo: EBRADIL, 1994. Vol. 2:
A Idade Média. p. 473.
17
MINOIS, G. Les origines du Mal: une histoire du péché originel. Paris: Fayard, 2002. p. 113.
18
Ibid., p. 36.
19
BÍBLIA, N. T. I Coríntios. Português. Bíblia Sagrada. Versão de Frei João José Pedreira de
Castro. São Paulo: Ave-Maria, 2001. Cap. 7, vers. 1.
20
BROWM, P. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do
cristianismo. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1990. passim.
21
BÍBLIA, N. T. Efésios. Português. Bíblia Sagrada. op. cit. Cap. 5, vers. 22-24.
12
passagem do Novo Testamento que pode ser considerada o “texto bíblico preferido dos
sacerdotes”22:
Como em todas as igrejas dos santos, as mulheres estejam caladas nas assembléias: não lhes é
permitido falar, mas devem estar submissas, como também ordena a lei. Se querem aprender
alguma coisa, perguntem-na em casa a seus próprios maridos, porque é indecente para uma
mulher falar na assembléia. Porventura foi dentre vós que saiu a palavra de Deus? Ou veio ela
tão-somente para vós?23
os homens eram os fetos que haviam realizado seu potencial pleno. (...) As mulheres, em
contraste, eram homens imperfeitos. O precioso calor vital não lhes chegara em quantidades
suficientes no ventre. Sua falta de calor as tornava mais flácidas, mais líquidas, mais frias e
úmidas e, de modo geral, mais desprovidas de formas do que os homens.26
22
RANKE-HEINEMANN, U. Eunucos pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja
Católica. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1999. p. 138.
23
BÍBLIA, N. T. I Coríntios. op. cit. Cap. 14, vers. 34-36.
24
RICHARDS, J. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: J. Zahar,
1993. p. 34.
25
TERTULIANO apud DALARUN, J. Olhares de clérigos. In: DUBY, G.; PERROT, M., op.
cit., p. 35.
26
BROWM, P., op. cit., p. 19.
13
Gregório sempre tendeu a apresentar a sexualidade, juntamente com outros aspectos da vida
instintiva, não como uma anomalia privilegiada, mas como um símbolo da lenta mas infalível
sagacidade divina. A sexualidade e o casamento representavam a doce persistência de Deus em
levar a raça humana a sua destinada plenitude, ainda que fosse, a partir de então, ‘por um longo
desvio’.28
27
PLUTARCO apud BROWM, P., op. cit., p. 101.
28
BROWN, P., op. cit., p. 246.
29
AGOSTINHO, Santo. A Graça (I). São Paulo: Paulus, 1998. p. 306.
30
MINOIS, G., op. cit., p. 65.
31
BROWN, P. Antigüidade Tardia..., p. 294-5.
14
pois ele teria cedido ao pecado apenas para agradar sua companheira, tendo todos
pecado junto ao primeiro homem, representante da espécie. Desta forma justifica-se o
batismo, pois todos nasceriam com o pecado original, e livra-se da culpa um deus
infinitamente bom, caindo a culpa do mal sobre a humanidade.
Refletindo acerca das diferenças entre o masculino e o feminino, Agostinho
empreende, no século V, a conciliação entre o antifeminismo e uma suposta igualdade
entre gêneros que teria sido prescrita por Jesus, colocando o ser humano como
possuidor de um corpo sexuado, que incide sobre a mulher, e de uma alma assexuada,
que se reflete no homem. Assim, predomina neste a razão, o que o coloca como a
imagem de Deus, e, sendo inferior, a mulher deve-lhe ser submissa. São, portanto,
homem e mulher próximos na complementação de metades desiguais.
As proposições de Agostinho refletirão profundamente sobre o corpo doutrinal
da Igreja, prestando-se a alguns autores que, ao menos até o século X, viam os atos e
pensamentos das mulheres como responsabilidades de seus guardiões. O combate à
posição subordinada do feminino ocorria apenas quando este arrojava a si os
instrumentos com os quais procurava lutar contra a dominação masculina – sobretudo
encantos e poções direcionados à sexualidade, meios próprios de sua natureza impura e
pérfida. As transformações culturais operadas entre o século X e o final do século XII
colocarão a mulher como atuante nos conflitos, retirando-lhe sua característica passiva,
ponto fundamental para torná-la a serva do Diabo, condutora das mazelas no mundo.
Em cerca de 1095, Godofredo de Vandoma amplia os discursos sobre a falta
feminina que tragou o homem para a maldição.
Este sexo envenenou o nosso primeiro pai, que era também o seu marido e pai, estrangulou João
Batista, entregou o corajoso Sansão à morte. De uma certa maneira, também matou o Salvador,
porque, se a sua falta o não tivesse exigido, o nosso Salvador não teria tido necessidade de
morrer. Desgraçado sexo em que não há nem temor, nem bondade, nem amizade e que é mais de
temer quando é amado do que quando é odiado.32
32
VANDOMA apud DALARUN, J., op. cit. p. 34.
15
33
RICHARDS, J., op. cit., p. 36.
34
Ibid., id.
35
RANKE-HEINEMANN, U., op. cit. p. 141.
16
A mulher, coisa frágil, inconstante a não ser no crime, não deixa nunca espontaneamente de ser
nociva. A mulher, chama voraz, loucura extrema, inimiga íntima, aprende e ensina tudo o que
pode prejudicar. A mulher, vil forum, coisa pública, nascida para enganar, pensa ter triunfado
quando pode ser culpada. Consumindo todo no vício, é consumida por todos, predadora dos
homens torna-se ela própria a presa.36
36
Hildeberto de Lavardin apud DALARUN, J., op. cit., p. 38.
37
PELAYO apud DELUMEAU, J., op. cit., p. 325-6.
17
Alguns dos documentos produzidos no século XII que tratam do feminino são
analisados por Georges Duby em Eva e os Padres38, embora venham a revelar não a
ótica das mulheres, sujeitos silenciados, mas o universo masculino de então, suas visões
do sexo oposto e desejos. As reflexões sobre o Gênesis, tratado primário do
condicionamento da mulher ao pecado, que vincula a figura humana a três atos, criação,
tentação e punição, expressam a motivação da inferioridade da mulher frente ao homem
– a sexualidade latente, e, em decorrência, o pecado.
O Livre des manières, escrito entre 1174-8 por Étienne de Fougères, bispo de
Rennes, apresenta novamente a mulher como portadora do mal, citando os pecados
femininos. Entretanto, sua obra possui um elemento diferencial que consiste na intenção
de se atingir a corte, sendo escrito em língua vulgar. As damas são o alvo preferencial
dos sermões, compreendendo-as o autor como disseminadoras do pecado – dada sua
posição social, seus atos eram mais constantemente observados e copiados. Seus três
principais vícios consistem na luxúria; na insatisfação frente os desígnios divinos, pois
procuram alterar o destino com feitiçaria; e na insubordinação ao marido a elas
destinado. A relação que o autor acredita existir entre mulher e marido é moldada pelas
relações de vassalagem: à primeira cabe “amar, servir e aconselhar o homem a quem foi
entregue, lealmente, sem mentir”, e os deveres do senhor consistem em protegê-la,
subordinando-a dentro da estrutura social.39
A sujeição da mulher enquanto macho deficiente é perpetuada nos escritos de
Abelardo, que crê ser a mulher inferior ao homem na razão, sendo este mais “perfeito” e
“terno” na condução daquela (como Abelardo pretendia ser como guia espiritual de
Heloísa). Os perigos da presença das mulheres, nos textos de Pierre le Mangeur, Robert
de Liège e Hugues de Saint-Victor, concorrem para a redenção da culpa masculina na
fornicação.
Identificam-se com Adão a quem Eva estende a maçã. O que era o fruto proibido? O corpo dessa
mulher, suave e delicado ao olhar, deleitável. Sabem o que é ser tentado e estão cheios de
indulgência para com Adão. Sua tendência é de minorar a culpabilidade do homem e, assim, sua
própria culpabilidade. Como resistir, cercados por tantas mulheres oferecidas?40
38
DUBY, G. Eva e os padres. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
39
Ibid., p. 39.
40
Ibid., p. 64.
18
A mulher ouça a instrução em silêncio, com espírito de submissão. Não permito à mulher que
ensine nem que se arrogue autoridade sobre o homem, mas permaneça em silêncio. Pois o
primeiro a ser criado foi Adão, depois Eva. E não foi Adão que se deixou iludir, e sim a mulher
que, enganada, se tornou culpada de transgressão. Contudo, ela poderá salvar-se, cumprindo os
deveres de mãe, contanto que permaneça com modéstia na fé, na caridade e na santidade.41
41
BÍBLIA, N. T. I Timóteo. Português. Bíblia Sagrada. op. cit. Cap. 2, vers. 11-15.
42
Examinando a linguagem cinematográfica, a autora escreve acerca da protagonista de Alien:
“Ela não deixa de ser a representação da mulher poluidora, mas ao tomar consciência de que gesta o
Mal passa a ser salvadora, mesmo que o preço da salvação seja a sua morte. O martírio da tenente
Ripley, portanto, articula representações diferentes da mulher em torno do embate mítico do Bem e do
Mal, reabilitando a figura feminina que desde as primeiras narrativas cristãs esteve associada ao Mal.”
MARTINS, A. P. V. O martírio da tenente Ripley: a mulher e o Mal no cinema de ficção científica. In:
Cadernos de Pesquisa e Debate. Representações de gênero no cinema. N. 2, dez. 2003. Núcleo de
Estudos de Gênero da Universidade Federal do Paraná.
19
43
DALARUN, J., op. cit., p. 39.
44
Richards, op. cit., apresenta as várias heresias que, durante o Medievo, rebelaram-se contra a
ortodoxia, sendo, na maioria, decorrentes da crise de materialismo após o milênio. O autor mostra como
valdenses, cátaros, publicani, beguinos, amalricianos, pseudo-apóstolos, hussitas e milenaristas, entre
outros, que pregavam a castidade e a pobreza, foram satanizados pela Igreja e apresentados como
desviantes sexuais.
45
Ibid., p. 80.
20
A mulher [...] é um verdadeiro diabo, uma inimiga da paz, uma fonte de impaciência, uma
ocasião de disputas das quais o homem deve manter-se afastado se quer gozar a tranqüilidade
[...]. Que se casem, aqueles que encontram atrativo na companhia de uma esposa, nos abraços
noturnos, nos ganidos das crianças e nos tormentos da insônia [...]. Por nós, se está em nosso
poder, perpetuaremos nosso nome pelo talento e não pelo casamento, por livros e não por filhos,
com o concurso da virtude e não com o de uma mulher.46
46
PETRARCA apud DELUMEAU, J., op. cit., p. 319.
21
47
DELUMEAU, J., op. cit., p. 322.
48
Ibid., p. 322-6.
49
Ibid., p. 353.
50
Ibid., p. 320. O autor apresenta um interessante número referente à Baviera contemporânea a
Trento, quando se verificou na região que somente 3 ou 4% dos padres não possuíam concubinas.
22
1
MUCHEMBLED, R. Uma história do Diabo: séculos XII-XX. São Paulo: Bom Texto, 2001.
p. 36.
2
A esse respeito ver: GINZBURG, C. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Cia. das
Letras, 1991, e _____. Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São
Paulo: Cia. das Letras, 1989. Neste, o autor coloca os benandanti em franca oposição à Igreja, como uma
força concorrente; porém, os próprios não se pensavam assim, podiam ser colocados dentro do estereótipo
do sabbat por força de interrogatórios sugestivos, mas não se compreendiam como desagregadores da
unidade católica. Tomando um testemunho, com alguns elementos próximos aos benandanti, Ginzburg
aponta “um núcleo de crenças bastante coerente e unitário” (p. 79), mapeando semelhanças dispersas em
um amplo território, apontando uma única e ancestral origem. A partir de um caso isolado, do lobisomem
lituano, que fornece indícios sobre crenças no mundo dos mortos, afirma: “é evidente que nos
encontramos diante de um único culto agrário que, a julgar por essas sobrevivências tão distanciadas entre
si – a Lituânia, o Friul – deve ter-se difundido numa área bem mais vasta, talvez em toda a Europa
central.” (p. 52).
23
remonta elementos folclóricos dispersos numa crença única anticristã que se impunha
em todo o continente, merecem análises cuidadosas, pois tratam de populações que
foram cristianizadas e se pensavam dentro do sistema cristão, mesmo com fundos
culturais pagãos ainda não assimilados de todo, especialmente nas áreas campesinas.
3
DELUMEAU, J., op. cit., p. 373.
4
MUCHEMBLED, R., op. cit., p. 50.
5
Apud NOGUEIRA, C. R. F. Bruxaria e História: as práticas mágicas no Ocidente cristão. São
Paulo: Ática, 1991. p. 28.
24
Ao cair da noite (...) cada família se senta esperando em silêncio em cada uma de suas
sinagogas; e então desce por uma corda pendurada no centro um gato negro de proporções
assombrosas. A esta visão, apagam as luzes e não cantam ou repetem hinos de modo distinto,
mas murmuram-nos entre os dentes cerrados, e encaminham-se para perto do lugar onde viram
seu mestre, tateando para encontrá-lo, e, quando o encontram, o beijam. Quanto mais quentes
seus sentimentos mais baixos serão seus alvos; alguns preferem seus pés, mas a maioria a cauda
e as partes pudentas. Então, como se esse contato daninho libertasse seus apetites, cada um se
deita abraçado ao vizinho e se satisfaz dele ou dela com todas as suas forças. Seus anciãos sem
dúvida sustentam, e ensinam a cada novato, que o amor perfeito consiste em dar e tomar,
consoante possam o irmão ou irmã solicitar ou exigir, cada um saciando o fogo do outro.6
6
Apud RICHARDS, J., op. cit., p. 70.
7
DELUMEAU, op. cit., p. 351.
25
bula Super illius specula de 1326, equivale os malefícios à feitiçaria diabólica, sendo
esta doravante considerada heresia, legitimando a perseguição inquisitória.8
Entre 1330 e 1340, em um processo contra feiticeiros de Toulouse, aparece pela
primeira vez o termo sabbat referindo-se às reuniões de bruxas e demônios, que
permanecerá aludindo a tais encontros, juntamente com “sinagoga”, em uma associação
clara com os judeus, minoria que intentava contaminar a sociedade dentro da ótica
cristã. Sob tortura, as mulheres acusadas afirmaram adorar Satã, encarnado em um bode,
e renegar Cristo, profanar a hóstia e os cemitérios em seus encontros noturnos, quando
se entregavam a todo tipo de libertinagem.9 Mesclam-se elementos pagãos demonizados
pela Igreja e as ofensas ao sagrado cristão, destacadamente as orgias que lesavam o
prescrito resguardo dos corpos, construindo-se uma imagem que terá elementos
acrescidos, mas cuja essência permanecerá ao longo da caça às bruxas.
O crescimento das acusações de heresia passa a atingir grupos religiosos
discordantes, e os conflitos internos do papado expressos no Grande Cisma (1378-1417)
e no Concílio de Basiléia (1431-49), que subordina o papa, revelam uma Igreja em crise
com múltiplos grupos de interesses, que viam seus adversários como heréticos ou ao
menos procuravam lhes impingir tal estigma. A literatura surgida das reflexões do
Concílio, destacadamente o Formicarius de Nider, juntamente aos processos contra a
vauderie (seita constituída pelos seguidores de Pierre Valdo), assinalam a padronização
dos relatos acerca dos grupos heréticos – pacto diabólico, orgias, infanticídio,
malefícios.
Norman Cohn insere o sabbat a partir da disseminação da propaganda
eclesiástica contra as minorias heréticas ainda no início do século XI, quando a Igreja
diabolizou os participantes de uma seita em Orléans, condenando-os à morte na
fogueira. Os estereótipos do culto satânico desenvolvem-se a partir de então, unindo
tradições populares de origens pagãs até então tida como ilusórias – como a crença dos
romanos nas strigae e, especialmente na Idade Média, nas ‘damas da noite’10 –, magia,
bruxaria e culto ao Demônio.11
8
Ibid., p. 351-2.
9
Ibid., p. 352.
10
Grupos de espíritos femininos que eram vistos ora como benéficos, ora como maléficos,
comandados por uma divindade nomeada Diana, Holda, Heródias ou Abundia (dama Abonde). Os
camponeses deixavam comida e bebida na soleira de suas portas durante a noite, especialmente no dia de
Finados (2 de novembro), de maneira a não lhes despertar a fúria. Maiores informações em: GINZBURG,
C. Os andarilhos do bem..., p. 63-7; RICHARDS, J. op. cit., p. 86-7.
11
RICHARDS, J., op. cit., p. 86.
26
12
MUCHEMBLED, R., op, cit., p. 55.
13
Ibid., p. 53-6.
14
Ibid., p. 80.
27
Segundo um recenseamento feito com base em grandes catálogos de bibliotecas, a obra teve pelo
menos 15 edições até 1520, quase todas nas cidades do Reno ou em Nuremberg, salvo duas em
Paris, em 1497 e 1517, e em Lyon, em 1519. Se calcularmos a uma tiragem média de 1.000 a
1.500 exemplares por edição, isso significa que mais de 20.000 exemplares do livro puderam
circular antes da Reforma, alguns milhares dos quais na França, o resto no Santo Império. O
tratado passou abruptamente de moda entre 1520 e 1574, depois experimentou uma segunda
vida, com 19 outras edições conhecidas, das quais três em Veneza, de 1574 a 1579, e dez em
Lyon, entre 1584 e 1699.18
15
Os referidos eclesiásticos são encontrados em diversas obras nomeados como Henry Institoris
e Jacques ou Jacob Sprenger, entretanto, sigo aqui com os nomes que constam na tradução do Malleus
Maleficarum que utilizo.
16
KRAMER, H.; SPRENGER, J. O martelo das feiticeiras – Malleus maleficarum. Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991. p. 43-6.
17
SALLMANN, J-M. As bruxas: noivas de Satã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 32.
28
pelos católicos, os reformadores vêem emergir nas terras de Lutero uma influente
cultura de medo e desconfiança do Demônio, atiçada pelo pavor da iminência do Final
dos Tempos.
Como visto, a centralização dos autores na região renana não impediu a
utilização de seu tratado em um amplo território e em diferentes momentos da
perseguição às feiticeiras. Ambos dominicanos e professores de teologia, embasaram-se
em uma longa tradição que vinculava o mal à mulher, estabelecendo uma ligação direta
entre a heresia e a feitiçaria, e esta com a agente favorita do Diabo. A análise do
conteúdo do manual permite retomar diversos elementos significativos nesse processo,
que irá tornar o discurso misógino estereotipado na Idade Moderna.
Henry Kramer (?1430 – ?1505), prior do convento de Selestat, feroz inquisidor
em áreas da Alemanha do Norte, atuou nas dioceses de Mainz, Colônia, Trèves,
Salzburg e Bremen, áreas que recebiam idéias humanistas e transformações artísticas e
culturais, além dos discursos eclesiásticos. “O confronto entre as formas de expressão e
os tipos de pensamento, entre o antigo e o novo, aí se exacerbava.”19
Conseqüentemente, as heresias eram vistas mais intensamente, e Kramer perseguiu,
além das bruxas, hussitas e valdenses, jamais sendo encontrando após partir para uma
investigação (o que relembra o destino de alguns inquisidores que vieram a ser
assassinados no exercício de sua temida missão, como Conrad de Marburgo). É o
principal, senão único, elaborador da obra.
James Sprenger (1436 – 1496), nasceu nas proximidades da Basiléia e estudou
em Colônia, tornando-se prior do convento dominicano da mesma cidade. Sua atuação
como inquisidor deu-se às margens do Reno, nas dioceses de Salzburg, Bremen, Trèves
e Mayence. Jean-Michel Sallmann aponta-o como um estudioso de grande autoridade
devotado a sua ordem, desempenhando funções administrativas, mas limitado em sua
esfera de ação como inquisidor.20 Tal fato denuncia a pouca participação na redação do
Malleus junto a Kramer, sendo no certificado de aprovação da obra “especialmente
apontado como colaborador do primeiro”.21
Obra máxima produzida pela mania persecutória da Inquisição, o Malleus
Maleficarum é composto por três partes que atestam a ação demoníaca no mundo
18
MUCHEMBLED, R., op. cit., p. 61.
19
Ibid., p. 62.
20
SALLMANN, J-M., op. cit., p. 33.
21
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 518. Grifo meu. Entretanto, Robert Mandrou cita
freqüentemente Sprenger como autor do Malleus, omitindo Kramer na autoria.
29
através de seus agentes – a bruxa ou o bruxo, sendo a mulher sensivelmente mais atraída
por Satã do que o homem. A primeira parte, “Das três condições necessárias para a
bruxaria: o Diabo, a bruxa e a permissão de Deus todo-poderoso”, trata de enaltecer o
Anjo Negro e atribuir-lhe poderes imensos (permitidos por Deus), ligando a ele a prática
da bruxaria que resulta, sobretudo, da fraqueza feminina. Na segunda parte, “Dos
Métodos Pelos Quais se Infligem os Malefícios e de que Modo Podem ser Curados”, os
autores explicitam as maneiras de se firmar o pacto com o Tinhoso e diversos exemplos
de malefícios. Para estes são determinados castigos proporcionais na terceira e última
parte da obra, “Que Trata das Medidas Judiciais no Tribunal Eclesiástico e no Civil a
Serem Tomadas Contra as Bruxas e Também Contra Todos os Hereges.”
A apresentação de argumentos contrários ao pensamento dos demonólogos, que
os refutam baseando-se em diversos textos, colocando seu raciocínio como a verdade
absoluta, permeia a disposição da obra. A descrença nos postulados estabelecidos é
vivamente considerada manifestação herética, submetendo ao juízo divino, representado
pelos poderes religioso e secular, a purgação dos culpados, que infectam toda a
sociedade com suas ofensas ao Criador. Pois “qualquer homem que erra gravemente na
interpretação das Sagradas Escrituras é corretamente considerado herege. E quem quer
que pense de outra forma a respeito de assuntos pertinentes à fé que não de modo
defendido pela Santa Igreja Romana é herege. Eis a verdadeira Fé!”.22
A renúncia à fé católica ou a negação de alguns postulados, a dedicação ao mal,
a oferenda de crianças não batizadas ao Demônio, a lascívia de íncubos e súcubos:
comportamentos padrões dos acusados de bruxaria, atormentam a boa consciência cristã
que deve se dedicar ao extermínio da pior das heresias, vendo-se em toda prática mágica
e comportamento desviante o resultado da união com o Mal. Neste quadro, foram
estabelecidos como erros heréticos afirmar que feitiçaria e magia não existem; que seus
produtos são obra da imaginação; que mesmo acreditando no auxílio de Satã às bruxas,
algumas pessoas tomam suas ações como imaginárias.
Desta feita, ficaram subjugadas e passíveis de condenação por heresia quaisquer
tendências que tomassem as confissões, espontâneas ou arrancadas, como fantasiosas, o
que nesse momento, século XV, ainda de exprimia raramente. Somente a partir do
século XVII, com os escândalos que atingiram religiosas de origem nobre ou burguesa
22
Ibid., p. 53.
30
em conventos na França,23 bem como com o início do esclarecimento das elites e dos
tribunais civis, exprimiu-se mais abertamente a refutação à ortodoxia.
A rigidez da crença na realidade dos atos mágicos é consubstanciada pelos
autores com as Escrituras, nas quais apreende-se que “os demônios têm poderes sobre o
corpo e sobre a mente dos homens quando Deus lhes permite exercê-los”24; com os
Cânones, que citam mulheres que imaginavam cavalgar durante a noite com Diana ou
Heródias – na verdade o Demônio, que lhes insufla a imaginação ou toma a forma das
deusas pagãs; e com as Decretais do Direito Canônico 33, que registram a bruxaria, a
ação demoníaca mediante permissão divina e a influência do mais forte sobre o mais
fraco, sendo o Diabo mais forte que o homem.
Os males naturais podem ser diferenciados dos causados por bruxaria através da
opinião médica, quando não há cura e se a doença só faz aumentar.25 Comprovada a
existência de bruxaria, a condenação das bruxas é defendida segundo três leis essenciais
pelos autores: as leis divinas, as religiosas e as civis. De acordo com as leis divinas,
expressas por S. Tomás e S. Agostinho, e pelo Antigo Testamento, as bruxas que
firmaram o pacto negro devem receber a pena de morte caso tenham cometido
atrocidades, se não, a pena de morte da alma. Conforme se lê em Levítico: “Se alguém
se dirigir aos espíritas ou aos adivinhos para fornicar com eles, voltarei meu rosto contra
esse homem e o cortarei ao meio de seu povo”, e “Qualquer homem ou mulher que
evocar os espíritos ou fizer adivinhações, será morto. Serão apedrejados, e levarão sua
culpa.”26
As leis eclesiásticas estabelecem diversas punições, adequadas a cada crime –
perda da comunhão, penitência por 40 dias, se clérigo será rebaixado, se leigo será
excomungado –, mas diferenciam a gravidade dos crimes em termos de bruxaria e
adivinhação, feita em público ou sigilo. As leis civis devem submeter magos e
feiticeiros à pena de morte, igualando seus crimes aos de heresia e lesa-majestade.
“Porque bruxaria é alta traição contra a majestade de Deus.”27
23
A esse respeito ver MANDROU, R. Magistrados e feiticeiros na França do século XVII.
São Paulo: Perspectiva, 1979.
24
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 51.
25
Os autores citam a prática corrente de se derramar chumbo derretido em uma bacia com água
e, se formar uma imagem, é comprovada a bruxaria, o que ocorre em virtude da influência de Saturno.
Mas este meio não é considerado lícito, dada a superstição que o envolve, sendo ilícito curar bruxaria com
bruxaria.
26
BÍBLIA, V. T. Levítico. Português. Bíblia Sagrada. op. cit. Cap. 20, vers. 6 e 27.
27
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 55.
31
28
Kramer e Sprenger apresentam de maneira bastante interessante a etimologia do Diabo,
revelando os sentidos dos nomes que comumente lhes são atribuídos: Diabolus (de dia, que significa dois,
e bolus, que significa partes), é aquele que corrompe o corpo e a alma, em grego equivalendo a “confinar
na Prisão”, podendo também denotar “Queda”. Demônio manifesta busca por sangue. Belial exprime
“Sem Jugo ou Soberano”. Belzebu é o “Senhor dos iníquos”. Satã representa “Adversário”. Beemot é “a
Besta”. Asmodeus, “a Criatura do Juízo e da Punição”, é o “diabo da fornicação”. Leviatã, o diabo que
retirou o nome do monstro mitológico que representa o orgulho, significa “Condecoração”. Mammon é o
“demônio que personifica a Avareza e a Riqueza”. Ibid., p. 93.
29
Ibid., p. 277.
32
30
Os autores citam uma única classe de bruxos extremamente poderosos – os bruxos arqueiros,
que agem na Sexta Feira Santa para denegrir o catolicismo. Os arqueiros lançam três ou quatro flechas no
crucifixo, de modo a poder atingir três ou quatro homens nesse dia (o 3 é o número preferido do Diabo,
simbolizando a Trindade atingida) causando-lhes a morte, com o auxílio de Satanás, a quem
homenageiam a fim de adquirir total poder. Freqüentemente se colocam a serviço de homens poderosos
que, enquanto seus patronos, devem ser punidos como heresiarcas. Existem bruxos que, como os
arqueiros, alvejam o crucifixo, mas para sua proteção e, além de se imunizarem, conseguem encantar suas
armas. Vemos assim que mesmo na bruxaria, própria das mulheres segundo os autores, a maior força
permanece sendo masculina.
31
Ibid., p. 121.
32
Ibid., p. 116.
33
Ibid., p. 117.
33
A Eva tentadora, quem tragou o destino de sua descendência para a morte, foi a
sedutora de Adão, o modelo do filho original. Este acabou por sucumbir aos encantos de
sua companheira que, como toda fêmea, usa de sua beleza enganadora. Portanto, não se
deve admirar uma mulher pela sua beleza, pois “embora seja bela aos nossos olhos,
deprava ao nosso tato e é fatal ao nosso convívio.”34 A mulher atrai com sua fala macia,
induzindo os homens à fornicação e ao adultério; “sua voz é como o canto das Sereias,
que com sua doce melodia seduzem os que se lhe aproximam e os matam. E os matam
esvaziando as suas bolsas, consumindo as suas forças e fazendo-os renunciarem a
Deus.”35
O feminino em geral apresenta entre suas principais características a ira. “Não
há veneno pior que o das serpentes; não há cólera que vença a da mulher. É melhor
viver com um leão e um dragão, que morar com uma mulher maldosa.”36 Seu
destempero a leva a inverter as posições de mando, ousando desafiar a autoridade do
marido, e, segundo Cícero, o homem torna-se escravo da mulher que o governa. O
perigo de ceder autoridade às mulheres é exposto com os exemplos daquelas que
destruíram reinos: Helena, Jezebel, Atália e Cleópatra ( “a pior de todas as mulheres”).37
Nesta linha, relembramos o Velho Testamento:
Grandes são a cólera de uma mulher, sua audácia, sua desordem. Se a mulher tiver o mando, ela
se erguerá contra o marido. (...) Foi pela mulher que começou o pecado, e é por causa dela que
todos morreremos. Não dês à tua água a mais ligeira abertura, nem à mulher maldosa a liberdade
de sair a público. Se ela não andar sob a direção de tuas mãos, ela te cobrirá de vergonha na
presença de teus inimigos. Separa-te do seu corpo, a fim de que não abuse de ti.38
34
Ibid., p. 120.
35
Ibid., id.
36
BÍBLIA, V. T. Eclesiástico. Português. Bíblia Sagrada. op. cit. Cap. 25. vers. 22-3. “Malícia
da mulher”.
37
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 119.
38
BÍBLIA, V. T. Eclesiástico. op. cit., vers. 29-30 e 33-6. Grifo no original.
39
SÊNECA apud KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 115.
34
depois do pecado de Lúcifer, as obras das bruxas excedem todas os outros pecados, em
hediondez, já que negam Cristo crucificado, na inclinação, já que cometem a obscenidade da
carne com demônios, na cegueira do intelecto, já que no mais puro espírito da malignidade
fomentam o ódio e causam toda sorte de injúrias às almas e aos corpos dos homens e de
animais.43
Os pecados das bruxas são mais graves do que os do próprio Diabo em muitos
aspectos, pois este “pecou por orgulho, posto que não houvesse ainda castigo pelo
pecado. No entanto, as bruxas continuam a pecar mesmo depois de severos castigos
serem infligidos contra outras bruxas”. 44 Elas recorrem na perda da inocência conferida
pelo batismo deliberadamente, renegando a verdadeira fé na qual já haviam sido
40
S. JOÃO CRISÓSTOMO apud KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 114.
41
CÍCERO apud KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 115.
42
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 118.
43
Ibid., p. 170.
44
Ibid., p. 185.
35
encaminhadas, enquanto o Diabo perdeu a graça somente uma vez, e pecando contra o
Criador, ao passo que as bruxas ofendem Pai e Filho. O Diabo não obteve o perdão
divino, ao contrário dos seres humanos, que são admoestados sobre os perigos e
recebem misericórdia, mesmo recorrendo no erro.
O distanciamento de Deus aponta a infidelidade como o principal pecado das
bruxas que se entregam ao pacto demoníaco, por isso cometendo a pior das heresias, a
apostasia da Fé, chamada no caso das servas de Satã de “apostasia da perfídia”45. Piores
que os hereges, as bruxas são apóstatas, merecendo castigos maiores que os lançados
aos judeus e pagãos. Para os autores do Malleus, a bruxaria, “de todas as superstições, é
a mais vil, a mais maléfica, a mais hedionda – seu nome latino, maleficium, significa
exatamente praticar o mal e blasfemar contra a fé verdadeira.”46
O Malleus Maleficarum apresenta três tipos de feiticeiras, “as que injuriam mas
não curam; as que curam mas, através de algum estranho pacto com o diabo, não
injuriam; e as que injuriam e curam.”47 As primeiras são dotadas de grande poder para
fazer malefícios diversos: provocam tempestades48, lançam raios sobre pessoas e
animais, enlouquecem-nos, enfeitiçam homens e mulheres e são capazes de matá-los
com o olhar, percorrem grandes distâncias em espírito ou corporeamente com o auxílio
de bestas ou diabos – nas palavras de Julio Caro Baroja, “Pura imaginária gótica!”49.
Quando descobertas, as bruxas podem com o olhar afetar o discernimento dos juízes,
têm o poder de silenciarem-se nos interrogatórios e de não sentir dor ao cabo da sessão
de tortura, provocam mal-estar naqueles que as prendem.
Ainda: são capazes de ver eventos futuros com auxílio maligno, transtornam os
homens em seus afetos, impedem o ato carnal, provocam a esterilidade ou o aborto com
feitiços ou com um mero toque, oferecem crianças aos demônios e as devoram (as
bruxas batizadas somente podem fazê-lo com a permissão divina) ou afogam, oferecem
seus filhos a Satã desde o nascimento. Com a permissão de Deus são capazes de causar
45
Ibid., p. 172. Sinteticamente, hereges são aqueles que questionam a fé e apóstatas os que a
renegam.
46
Ibid., p. 77.
47
Ibid., p. 214.
48
Através do relato acerca da bruxa que vivia em uma das dioceses na qual um dos inquisidores
atuava, descrevem a maneira usada pelas servas do Diabo para provocar tempestades. Na comunidade em
questão, a bruxa não fora convidada para uma boda (ou batizado) e, como vingança pela desfeita, subiu
até o monte mais próximo, cavou um buraco e urinou dentro dele. Pôs-se a revirar o líquido e, em
seguida, formaram-se nuvens carregadas nas proximidades do local em que se realizava a comemoração,
estragando-a. Tal descrição evoca algumas versões de um conto infantil, com conteúdos similares, que
chegou aos nossos dias.
49
BAROJA, J. C. As bruxas e o seu mundo. Lisboa: Veja, 1971. p. 136.
36
todo tipo de doenças, mesmo lepra, e, para S. Tomás, possuem a mesma capacidade de
fazer o mal que os demônios.
Contudo, a culpa feminina consiste não em obter resultado nos seus
encantamentos e vociferações, mas em pactuar com o Diabo. Usando-o como
intercessor, as bruxas incorrem em falta grave à fé, pois S. Agostinho afirma ser Cristo
o único intermediador para os homens em suas súplicas, devendo-se renunciar aos elos
com o proscrito, que desviam o homem da atenção a Deus.50
Existem duas formas de juramento prestado ao Maligno, a primeira consiste em
uma cerimônia solene, que “é realizada em conclave, com data marcada. Nela o diabo
aparece às bruxas em forma de homem, reclamando-lhes a fidelidade que será firmada
em voto solene. Em troca, promete-lhes prosperidade mundana e longevidade. Depois,
as feiticeiras recomendam-lhe uma iniciante – uma noviça – para seu acolhimento e
aprovação”, a quem o Diabo faz jurar o repúdio da fé, dos sacramentos e da “Mulher
Anômala” (Virgem Maria). A neófita aceitando, exige que ela se entregue a ele “de
corpo e alma, para todo o sempre”, levando-lhe novos discípulos. Instrui-a acerca da
pomada feita dos restos mortais de crianças, sendo que o líquido resultante de seu
cozimento confere a quem bebe a liderança da seita das bruxas.51
A segunda forma de iniciação refere-se a uma cerimônia secreta que possui
registros diferenciados de ocorrência, com o Diabo geralmente aparecendo a pessoas
que se encontram em dificuldades – fatigadas, melancólicas, com dificuldades
financeiras ou se deixando seduzir –, atendendo seus desejos e dando suas ordens aos
poucos, até tomar completamente o fiel. Esta face sedutora do Demônio, quando
adquire aparências aliciantes e enganadoras, é apresentada por Jacques Le Goff
juntamente com a face aterradora, quando o Maligno persegue insistentemente aqueles
que deseja corromper. Os relatos do Medievo apresentam freqüentemente o Diabo sob o
disfarce de um lindo jovem, ou tomando a forma de um santo; quando encarna o
perseguidor, geralmente não se disfarça, apresentando-se com aspecto medonho e nu.
Com as mulheres usa mais a força do que a astúcia.52
O pacto, “de amizade na infelicidade e no engano”,53 pode ter uma duração
específica, a fim do Demônio atestar a veracidade da declaração de fidelidade das
50
AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus (contra os pagãos). Petrópolis: Vozes, São Paulo:
Fed. Agostiniana Bras., 1990. Parte I. p. 327
51
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 215-6.
52
LE GOFF, J. A civilização do Ocidente medieval. Lisboa: Estampa, 1995. v. 1.
37
iniciadas, ou porque sabe quando virá sua morte. Se sua serva a ele dedicou-se apenas
superficialmente, trata de atormentá-la com perdas materiais e fustigar seu espírito.
Diferenciam-se, ainda, as “bruxas verdadeiras”, aquelas que firmaram um pacto
explícito com Satã, daquelas que lhe foram ofertadas quando nasceram, tratando-se
neste caso de um pacto tácito. Cometem apostasia verbal as bruxas que evocam o Diabo
e apostasia pelo ato aquelas que praticam seus malfeitos “sob os auspícios do demônio”,
mas também apostasia de fato, “pois tudo o que se recebe por obra do demônio acarreta
na detratação da Fé.”54
O valor dos sinais mágicos, tratados superficialmente no Malleus Maleficarum,
exploram a relação de cumplicidade com o satânico, pois de acordo com Agostinho,
“No fundo, todos esses sinais valem o que a pretensão do espírito do homem combinou
com os demônios, ao firmarem certa linguagem comum para se entenderem. Estão todos
eles cheios de curiosidade pestilente, de solicitude angustiante e servidão mortífera”.55
Nesse sentido, os sinais são a representação do caráter daqueles que os vê, expressando
sua inclinação ao mal e suas intenções ocultas.
O padre da Igreja afirma que as bruxas “são assim denominadas por causa da
magnitude de seus atos maléficos. São as que, pela permissão de Deus, perturbam os
elementos – as forças da natureza –, são as que confundem a mente dos homens,
conduzindo-os à descrença em Deus, e que, pela força terrível de suas fórmulas
malignas, sem qualquer poção ou veneno, matam seres humanos.”56 S. Isidoro, na
mesma direção, afirma:
as bruxas são assim chamadas pela negrura de sua culpa, quer dizer, seus atos são mais malignos
que os de qualquer malfeitores. (...) elas incitam e confundem os elementos com a ajuda do
demônio, causando terríveis temporais de granizo e outras tempestades. Mais: enfeitiçam a
mente dos homens, levando-os à loucura, ao ódio insano e à lascívia desregrada. E, prossegue o
autor, pela força terrível de suas palavras mágicas, como por um gole de veneno, conseguem
destruir a vida.57
53
AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã: manual de exegese e formação cristã. São Paulo:
Paulinas, 1991. p. 128.
54
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 293.
55
AGOSTINHO, Santo, op. cit., p. 130.
56
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit, p. 67-8.
57
Ibid., p. 67.
38
58
Ibid., p. 322.
59
Ibid., p. 235-6.
60
Ibid., p. 69.
61
É interessante inserir nesta discussão a diferença entre a cidade de Deus e a cidade dos homens
apresentada por Agostinho no segundo tomo de sua obra, a primeira voltada ao cultivo do espírito, com o
“amor a Deus”, e a segunda, que vemos aqui entregue aos ímpetos demoníacos, dedicando-se ao cultivo
da carne, ao “amor a si mesmo”. AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus. Petrópolis: Vozes, São Paulo:
Fed. Agostiniana Bras., 1990. Parte II.
62
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 121.
39
sobre os homens; e nos homens a fonte da lascívia se localiza nas partes íntimas, já que
é dali que sai o sêmen, assim como nas mulheres sai do útero.”63
O Diabo, na forma de súcubo, recolheria o sêmen de um homem e o passaria
para a mulher na forma de íncubo; nesse sentido, se a mulher concebesse não seria do
Demônio, mas do homem de quem este recolheu o fluido. O corpo e a alma do
fornicador são assim corrompidos e, em se tratando de pessoas unidas pelo sacramento
do matrimônio, o Diabo consegue seu intento somente valendo-se de sua força e
violência. Os filhos gerados dessas uniões são, desde o útero, destinados à prática da
bruxaria e, mesmo se a bruxa for casada e o filho do marido, a criança pode estar
contaminada pelo sêmen que o íncubo recolheu.
Íncubos e súcubos exercem funções que, em efeito, passam por idênticas às do
ser humano (como a fala), mas são diferentes em sua origem dada a alteridade corpórea,
sendo superiores nos sentidos; com efeito, são mesmo capazes de escutar pensamentos.
Segundo S. Tomás, as bruxas que praticam tais obscenidades com demônios são mais
fortes que os homens, assim como os seres por elas concebidos. Estas relações sexuais
hediondas podem ocorrer mesmo em lugares públicos, com os passantes vendo apenas a
bruxa e um “vapor negro”. Mas não somente as maléficas concebidas pelos demônios
ou que lhes foram dedicadas são possuídas, qualquer mulher, com a intercessão de
prostitutas, pode ser atacada. Assim, jovens castas pela glória do Senhor, contra sua
vontade são angariadas para o Mal.
A prática do ato pecaminoso se dá, sobretudo, nos dias sagrados (Natal, Páscoa,
Pentecostes) e santos, para engravidar as bruxas ou dar-lhes maior prazer, “porque dessa
forma as bruxas não só se impregnam do vício da perfídia através da apostasia da Fé
mas também do vício do Sacrilégio para que maior ofensa perpetrem contra o Criador e
para que ainda mais penosa danação recaia sobre as suas almas.”64 Agindo nestes
momentos, o Diabo lhes confere mais poder para causar o mal e também encontram
várias jovens para aliciar. Não são, contudo, capazes de praticar tais abominações em
locais sagrados, guardados por anjos da guarda.
O Malleus Maleficarum retira do Formicarius de Nider cinco métodos para a
libertação dos demônios: confissão, sinal da cruz, exorcismo, mudança e excomunhão.
Quando mesmo o exorcismo não expulsa o demônio, deve haver uma vontade divina
oculta, tendo de ser suportada a carga para reparo das faltas; a confissão só faz ajudar
63
Ibid., p. 82.
64
Ibid., p. 239.
40
neste caso, pois a necessidade de ter os pecados perdoados deve mover todo cristão que
quer se ver livre das tentações.
A sexualidade desperta a curiosidade e incentiva a imaginação de clérigos que
pretendiam se resguardar com o celibato, pretensamente protegidos com a interdição de
representações de corpos nus pelo Concílio de Trento. As formas femininas, a nudez
vergonhosa, os atos sexuais diabólicos visualizados escondem a negrura da mulher
tentadora, que se oferece às investidas de Satã e seus prosélitos. O atrativo dos cabelos
femininos inquietava William de Paris, que afirma:
65
Ibid., p. 325.
66
RICHARDS, J., op. cit., p. 31.
41
67
A confissão de Ann Putnam no livro de sua igreja, de 25 de agosto de 1706, pode ser
encontrada em: <htttp://members.aol.com/MaryARoots/putnam.index.html>. Acesso em 20 de agosto de
2003.
68
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 204.
69
Ibid., p. 334.
42
70
Ibid., p. 71.
71
Ibid., p. 150.
72
AGOSTINHO, Santo. A graça..., p. 309.
44
73
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma teológica. São Paulo: Siqueira, 1934. Primeira parte da
segunda parte – questões 71-89. Dos vícios. p. 319 e 313, respectivamente.
74
BÍBLIA, V. T. Eclesiástico. op. cit., vers. 26.
75
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 108.
76
Ibid., p. 161.
45
que o pecado de um redunda sobre todos, como se todos fossem um só corpo.”78 Mesmo
as provações lançadas àqueles que levam uma vida reta são explicáveis pelo pecado de
Satã e pela Queda, que deixaram todos expostos às tentações e com uma tendência ao
pecado inerente. Conforme Agostinho, o “pecado corrompeu a natureza humana, criada
por Deus sem nenhum vício”, e o vício maior resultou do “pecado original que foi
cometido por livre vontade do homem. Por isso, a natureza sujeita ao castigo atrai com
justiça a condenação.”79
Os castigos diferenciam-se em espiritual – privação da graça para o que sofre,
embora não tenha culpa; privação da glória, quando há incidência direta de culpa
pessoal ou herança dos pecados paternos; e a pena eterna, a tortura no inferno para os
que são culpados pela escolha por pecar; e temporal – pelo pecado de outra pessoa,
mesmo sem o pecado, pela culpa pessoal. Quando não há culpa daquele que se vê
atormentado, Deus o castiga para Sua glória, para mostrar a operação de milagres, com
os autores exemplificando a ressurreição de Lázaro, ou para elevá-lo mediante a
paciência e a lealdade, como Jó. Quando há culpa, Deus atinge os pecadores “para que a
virtude possa ser preservada mediante a humilhação pelo castigo”, para uma amostra do
que se há de sofrer no inferno e para purificação.80
Tendo como objetivo capacitar os juízes provinciais ao cumprimento de suas
funções, diminuindo o encargo dos Inquisidores, os autores finalizam a obra
discorrendo sobre a instauração e condução dos processos contra os acusados de
bruxaria. Na punição deste crime, tribunais civis e eclesiásticos devem agir em
conjunto, pois ele causa danos materiais além de corromper a fé, embora os dois atuem
diferentemente quanto à pena capital – os juízes laicos somente a infligem quando a
acusada confessa seu crime, enquanto os religiosos condenam mesmo sem a confissão.
Os argumentos em torno dos processos contra as bruxas devem ser
compreendidos em um amplo contexto, com a retomada do direito romano no século
XII, passando-se então a impingir a pena de morte pelo fogo aos culpados de bruxaria,
e a empregar o sistema de inquirição e tortura, obtendo, assim, repetidas confissões.
Também as acusações tornaram-se mais freqüentes, pois aqueles que não conseguiam
prová-las deixaram de ser penalizados.81
77
Ibid., id.
78
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 176.
79
AGOSTINHO, Santo, op. cit., p. 114.
80
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 178.
81
RICHARDS, J., op. cit., p. 89.
46
82
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 390.
83
Ibid., p. 396.
84
Ibid., p. 405.
47
quarto, pois nele encontraria um talismã ou força para permanecer em silêncio durante
os interrogatórios. “a acusada há de receber, na medida do possível, o benefício da
dúvida, desde que isso não envolva um escândalo à fé, ou seja prejudicial à justiça.”86
A provável bruxa só é representada por um advogado se solicitá-lo, sendo
indicado pela acusação e não podendo ter acesso às testemunhas. O advogado destinado
à defesa pode aceitar ou recusar o caso, tomando o cuidado de não defender o crime,
pois seria proclamado herege. Aceitando o caso e sendo devidamente pago, se o
advogado perceber adiante que a ré será condenada deve avisá-la e restituir-lhe o que
recebeu, pois se não o fizer poderá ter de arcar com os custos.
Os interrogatórios devem ser especialmente procedidos nos dias santos e no
momento da missa, com o juiz protegido por sal consagrado, relíquias e palavras de
Cristo, devendo-se fazer a bruxa tomar água benta. “O juiz que instrui um processo de
feitiçaria não considera o seu interlocutor como um acusado comum: habita-o o medo
constante de ser enganado pelas mentiras satânicas, e ele desconfia de tudo o que lhe é
dito em resposta às suas perguntas”.87
Repetidas vezes as próprias bruxas pedem para passar pela tortura, pois Satã as
protegerá ou suas ervas, de modo que tal requisição acentua as evidências do pacto.
Tanto o duelo como o ordálio requeridos pelos acusados a fim de provar sua inocência
são considerados ilícitos, pois a verdade oculta é de conhecimento divino e tais
demonstrações não são aceitas pela Igreja.
Nos interrogatórios, as bruxas sempre tendem a negar as acusações, o que deve
servir como indício de sua culpa. Diante de repetidas negativas, devem ser considerados
sua reputação, os fatos e os depoimentos, sendo que estes dois últimos sozinhos
condenam. Para a condenação são observadas pragas que se realizam, provas
verdadeiras, confissão e evidências físicas – material de bruxaria. As confissões
diferenciam-se conforme cada caso, podem ser rápidas ou nulas mesmo sob tortura,
segundo a iluminação de um anjo ou o auxílio demoníaco que pode tornar as bruxas
insensíveis às dores. São necessários cuidados na condução da tortura, condicionando-a
ao estado físico das torturadas. Aquelas que, após a confissão sob tortura, buscam o
suicídio se enforcando, fazem-no por influência demoníaca para retirar-lhes o perdão
85
Ibid., p. 406.
86
Ibid., p. 419.
87
MANDROU, R., op. cit., p. 86.
48
88
Ibid., p. 88.
89
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 435.
49
90
TOMÁS DE AQUINO, São. Suma contra los gentiles. Madrid: Bib. de Autores Cristianos,
1952. p. 393.
91
AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã..., p. 137.
50
92
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 506.
51
1
Godelmann apud NOGUEIRA, C. R. F., op. cit., p. 33.
52
negativo; desta forma, a bruxaria, ao menos na intenção, não é impossível. “O que está
claro é que, na Inglaterra dos séculos XVI e XVII, nunca se considerava que a pessoa
acusada de bruxaria houvesse agido involuntariamente. Ela podia ser vítima de seus
maus pensamentos, nas nunca de qualquer peculiaridade física.”2
Malinowski, no estudo de comunidades primitivas no início do século XX,
coloca a ação mágica intimamente relacionada a sua performance utilitária, ligando o
apelo ao sobrenatural, ao não-visto, ao mundo dos mortos, às necessidades do homem.3
Através dessa ótica antropológica, podemos tomar o universo mágico nas sociedades da
Europa medieval e renascentista como, simultaneamente, ameaçador e justificador da
ordem estabelecida, pois os ataques à cristandade compeliam a Igreja a agir. Estas
sociedades, que experimentaram a coexistência magia-religião, encontraram uma
válvula de escape para os males coletivos através da busca e purgação dos culpados, o
que, por sua vez, justificava o sistema.
Enquanto a Igreja procurava atribuir às mulheres as culpas das desgraças
individuais e coletivas, acreditando assim aumentar o poder repressivo sobre seres já
subordinados, paradoxalmente muitas delas tomaram esse poder que lhes era atribuído
como um meio de salvaguarda de uma comunidade hostil ou como forma de reforçar
suas ameaças contra desafetos. Entretanto, o que parecia ampliar seu poder individual
sobre os olhos crédulos de então se tornou um instrumento punitivo, e as pretensas
bruxas que ousaram desafiar a ordem estabelecida acabaram nas chamas.
A bruxaria, como um fenômeno rural, tem na sua agente um importante ator
social visto com dúvidas pela Igreja que salientará sua participação no sabbat enquanto
concubina do Tinhoso, praticante de perversões sexuais e assassinatos. Robert
Muchembled destaca a camponesa como conservadora e transmissora da cultura
popular, dado seu papel na educação das crianças, diferentemente do que pretendiam os
juízes, que viam nela uma rival de seus ensinamentos que poderia mesmo por a perder
um intenso trabalho de evangelização.4 O paulatino cerceamento dos festejos populares
com reminiscências pagãs, a limitação da presença feminina cuja função de educadora
passará aos clérigos e a quebra da solidariedade das comunidades diante um novo
2
THOMAS, K. Religião e o declínio da magia: crenças populares na Inglaterra, séculos XVI e
XVII. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. p. 377.
3
MALINOWSKI, B. Magia, ciência e religião. Lisboa: Edições 70, 1988.
4
MUCHEMBLED, R. L’autre côte du miroir: mythes sataniques et réalites culturelles aux XVIe.
et XVIIe. siècles. Annales ESC. Paris, v. 40, n. 2, mars/avr. 1985. p. 297.
53
5
Reconstruindo a história de um moleiro friulano, julgado herege pelo Santo Ofício e queimado,
após uma existência anônima, o autor retrata a circularidade entre a cultura das classes subalternas e a
cultura das classes dominantes, e aponta a singularidade de Menochio em seu tempo. GINZBURG, C. O
queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia. das
Letras, 1998.
6
MUCHEMBLED, R., op. cit., p. 298.
7
Ibid., p. 303.
54
8
Ibid., id.
9
THOMAS, K., op. cit., p. 370.
10
Ibid., p. 371.
11
Ibid., p. 453 et seq.
55
12
Ibid., p. 455.
13
DELUMEAU, J., op. cit., p. 378.
14
THOMAS, K., op. cit., p. 421-2.
56
dos cristãos perdidos que passam a praticar o mal. Desta forma, todos eram atingidos,
não somente aqueles contra os quais rogava-se uma praga, ou se desejava fazer o leite
de suas vacas secar, mas a corrupção de um indivíduo batizado na fé que se propunha
única e verdadeira a abalava, como uma ofensa coletiva ao Criador. E daí resultam as
purgações dos indivíduos nocivos, em holocausto para aplacar a ira de um deus que
castigava os homens através de cometas, epidemias, fome.
Se a ação do Diabo no mundo é facilmente reconhecida, a crença na prática da
bruxaria deve ser igualmente um elemento essencial da fé, dogma que expressa a
formação de uma visão de mundo na qual as acusações de demonolatria eram comuns.
Mesmo para os acusados que se imaginavam inocentes em princípio, a condução do
interrogatório os levava a crer que se haviam tido um mero pensamento maléfico, se
haviam desejado o mal a alguém, eram culpados pela desgraça que se abatia sobre seus
desafetos.
Neste sentido, como apresenta Thomas, muitos dos casos de bruxaria repousam
sobre a consciência pesada dos indivíduos que haviam sofrido as investidas de uma
pretensa bruxa, pois o infortúnio recaía sobre aqueles que, de alguma forma, haviam
agido mal com uma mulher que se vingara, o que se alia à falta de uma explicação
plausível para o ocorrido. E, conforme os ensinamentos da Igreja, o que não pode ser
explicado ou justificado pela fé ou pela medicina é visto como um evento sobrenatural
maligno.
Reginald Scot definiu uma “posição cética padrão” em 1584, apresentando
quatro categorias de bruxas: “as inocentes, falsamente acusadas por malevolência ou
ignorância”; as “malévolas e semidementes” que acreditavam tolamente estarem ligadas
ao Diabo, fazendo confissões absurdas, mas que na realidade não praticavam o mal; as
“bruxas genuinamente maléficas” que atingiam seus vizinhos por meio de venenos, e
não pela ajuda do sobrenatural; e as magas e feiticeiras, na verdade impostoras e
57
trapaceiras que iludiam as pessoas com a falsa ilusão de curar doenças, ler a sorte e
encontrar objetos perdidos. Assim, Scot, dentro da mentalidade de sua época, admitia a
existência de bruxas, mas não acreditava que elas fizessem um pacto corporal com o
Demônio ou que pudessem prejudicar a outrem por meios sobrenaturais.16
As bruxas confessas, que afirmavam se encontrarem com o Diabo, vivenciavam
as aparições narradas pela própria Igreja, em uma sociedade imersa em crenças no
sobrenatural. “Acostumados pelo discurso teológico da época a personificar seus maus
pensamentos e tentações, podem muito bem ter visto a si mesmos encontrando-se com o
Diabo, símbolo de tudo o que era mal e anti-social, do mesmo modo que outras pessoas
da época acreditavam genuinamente ter visto ou ouvido Deus.”17
Os banquetes repugnantes servidos no sabbat, cuja imagem foi construída sobre
o que se julgava de mais depravado e afastado da religiosidade, opõem-se nitidamente à
consagração da missa, como se toda a imaginada liturgia demoníaca fosse o mundo às
avessas por excelência, mas não um mundo risível e subjugado. As ameaças de que
qualquer um poderia ser tragado para a podridão revelam-se exemplarmente nas
imagens da época, como as produzidas por Bosch e Brueghel, fruto de consciências
obsedadas pelo discurso religioso.
As aparições do Demônio sob a forma de um cão negro, ou como um bode – o
que reflete a condução dos deuses antigos a duas deidades opostas, o Júpiter iluminado
convertido no deus cristão universal, ao passo que o Baco associado aos divertimentos e
à sensualidade contribuiu para a formação arquetípica do Maligno – assinalam as
projeções exteriores de um mal que somente após séculos foi interiorizado.18 Conforme
apresenta Freud, “Os estados de possessão correspondem às nossas neuroses (...). A
nossos olhos, os demônios são desejos maus e repreensíveis, derivados de impulsos
instintuais que foram repudiados e reprimidos.”19
A importância do Diabo elevada a seu grau máximo nestes inícios da Idade
Moderna produziu o seu confronto direto com a face do Bem representada pela Igreja, e
negá-lo equivaleria a negar por conseguinte Deus. Mesmo as mulheres que afirmaram
espontaneamente serem bruxas colocavam o poder de Satã subjugado ao celeste,
15
Apud THOMAS, K., op. cit., p. 425.
16
Ibid., p. 462.
17
Ibid., p. 420.
18
Sobre a evolução da imagem satânica ver a fundamental obra de Muchembled, Uma história
do Diabo, op. cit.
19
FREUD, S. Uma neurose demoníaca do século XVII. In: _____. Edição standart brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XIX. p. 91-2.
58
O ajuste preciso das respostas às perguntas, a adesão quase automática da indiciada às acusações
lançadas contra ela pelos juízes e, por outro lado, sua ausência de memória quando se trata de dar
uma resposta mais pessoal, permitem apreender muito concretamente uma das fases capitais da
elaboração do mito demonológico e sabático. Por certo os aldeões ouviam falar do diabo pelo
cura, na igreja. A feiticeira declara espontaneamente que o diabo vêm visitá-la quando deixa de
persignar-se. Seu demônio tem um nome erudito: Belzebu. Mas, de resto, o essencial de suas
respostas lhe é sugerido pelos juízes.20
20
DELUMEAU, J., op. cit., p.383.
21
Ibid., p. 365.
59
universo feminino das acusadas em 1545, 37% eram viúvas, 14% celibatárias e 49%
casadas. O alto índice de viúvas retoma a questão da idade elevada e da dependência.22
A velha era a bruxa por excelência na mentalidade da época, influenciada pelo
neoplatonismo renascentista que colocou a beleza física como representação da bondade
e, sendo assim, as mulheres idosas tinham a malignidade marcada em sua aparência
decadente. A poesia da época, que se pretendia humanista, não tardou a influenciar
negativamente o público leitor acerca da “velha bruxa”. Ela encarna o vício e aparece
como a principal aliada de Satã, sendo freqüentemente associada ao inverno, à fome, à
esterilidade, à inveja. É alcoviteira e feiticeira, mestra no uso de ervas e poções. Pierre
de Lancre apresenta:
A verdade é que a velhice não é uma causa idônea para diminuir a pena de delitos tão execráveis
que elas se acostumaram a cometer. E além disso é uma ficção dizer que todas as feiticeiras são
velhas, pois entre uma infinidade que vimos durante nossa comissão na região de Labourd, havia
quase tantas jovens quanto velhas. Pois as velhas instruem as jovens.23
22
Ibid., id.
23
Ibid., p. 337.
24
THOMAS, K., op. cit., p. 427.
60
25
MICHELET, J. A feiticeira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 113.
61
Que se leiam os livros de todos aqueles que escreveram sobre feiticeiros e encontrar-se-ão
cinqüenta mulheres feiticeiras, ou então demoníacas, para um homem [...]. o que ocorre não pela
fragilidade do sexo, em minha opinião: pois vemos uma obstinação indomável na maioria [...].
Haveria mais evidência em dizer que foi a força da cupidez bestial que reduziu a mulher à
miséria por gozar desses apetites ou por vingança. E parece que por essa razão Platão colocou a
mulher entre o homem e o animal bruto. Pois vêem-se as partes viscerais maiores nas mulheres
do que nos homens, que não têm uma cupidez tão violenta; e, ao contrário, as cabeças dos
homens são muito maiores e em conseqüência, eles têm mais cérebro e prudência que as
mulheres.28
26
Bodin apud MUCHEMBLED, R. Uma história do Diabo..., p. 101.
27
Ibid., p. 104.
28
Bodin apud DELUMEAU, J., op. cit., p. 335.
29
MUCHEMBLED, R., op. cit., p. 116-7.
62
30
DELUMEAU, J., op. cit., p. 387.
31
Spee apud DELUMEAU, J., op. cit., p. 381.
32
THOMAS, K., op. cit., p. 418.
33
Ibid., id.
63
34
DELUMEAU, J., op. cit., p. 357.
35
Ibid., p. 358-9.
36
MUCHEMBLED, R., op. cit., p. 97.
64
Entre 1606 e 1650, nos prebostados alemães de Luxemburgo, 31% de homens e 69% de
mulheres foram levados à justiça por feitiçaria, mas nos prebostados valões apenas 13% de
homens e de 87% de mulheres. Porcentagens estabelecidas nas outras regiões de perseguição, no
estado atual das pesquisas e em relação ao número total dos processos, dão 5% de homens no
bispado de Basiléia, 8% no condado de Namur e em Essex, 14% no principado de Montbéliard,
18% no cantão de Soleure, no sudoeste da Alemanha e no atual departamento francês do Norte,
19% no cantão de Neuchâtel, 24% em Genebra e em Franche-Comté, 29% em Toledo, 32% em
Cuenca, 36% no cantão do Friburgo e mesmo 42% no de Vaud.39
37
Ibid., p. 355.
38
Maiores informações acerca das especificidades culturais dos diversos grupos perseguidos
podem ser encontradas em BURKE, P. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia. das Letras,
1999.
39
DELUMEAU, J., op. cit., p. 365.
65
40
Ibid., p. 418.
41
Ibid., id.
66
Bodin, dirão que essas pobres mulheres devem ser curadas e não queimadas, porque na
maioria não passavam de doentes sob o efeito de uma ilusão.
Progressivamente a mulher deixa de ser perseguida, sendo as ainda acusadas de
bruxaria tratadas com maior tolerância, a exemplo do que Molitor, jurista da Constança,
alertava: não se devia acreditar nas confissões das feiticeiras, justamente porque era o
Diabo quem falava através delas. “Quando era feiticeira, a forca ou a fogueira
manifestavam, na sua crueldade, a sua total responsabilidade penal. Vítima da sua
imaginação ou tomada de loucura, ela transforma-se num ser juridicamente diminuído,
com responsabilidade pessoal limitada”.42
A extinção das fogueiras não permitiu, portanto, a reabilitação da imagem do
feminino, que recebeu uma nova roupagem segundo as concepções filosóficas vigentes
perpetuando a imagem do “segundo sexo”, que agora passaria a um controle mais
estreito por seus senhores, pois as armadilhas diabólicas revelaram o quão perigosas as
mulheres podem ser se não forem mantidas sob vigilância.
42
DUBY, Georges; PERROT, Michelle (dir.). História das Mulheres no Ocidente. São Paulo:
EBRADIL, 1994. v. 3: Do Renascimento à Idade Moderna. p. 533.
67
1
Lembramos que diversas acusações contra seitas heréticas, especialmente a dos valdenses,
auxiliaram na composição das características da bruxaria. Alguns dos crimes imputados eram os mesmos
que os romanos haviam afirmado os cristãos praticarem: orgias, sodomia, morte de crianças.
68
Tornada uma figura clássica que acabou sendo confinada nas estórias infantis, a
bruxa expressa a especificidade que o discurso misógino adquire no período em estudo.
A mulher que teve sua imagem construída sobre o carnal e o impuro adquiriu o status de
serva de Satã dentro do cristianismo tardo-medieval, sendo imbuída de um grande
poder, ainda que maligno, afrontando a ordenada estrutura cristã. Foram perpetuados e
ampliados intensamente pela Igreja elementos clássicos na construção de discursos
misóginos específicos, voltados a denegrir a mulher, e cuja via preferencial consistiu na
sexualidade.
Tendo como justificativa primeira o Gênesis, os religiosos vincularam a tentação
inextricavelmente à mulher e, em sua maior expressão, ao corpo feminino, transformado
em objeto não de desejo, mas de repúdio pelo que ele poderia levar às almas
abençoadas. A destacada separação entre carne e espírito promoveu o distanciamento
teórico entre os gêneros, procurando-se, na prática, subordinar o “segundo sexo”
limitando-o à função reprodutora.
A literatura cristã, que percorreu caminhos tortuosos para afirmar um tom único
nas denúncias contra as artimanhas femininas, serviu-se de poderosos formadores de
opinião, como Agostinho e Tomás de Aquino, cujas idéias acerca do sexo oposto
contribuíram decisivamente para a formação de um juízo negativo ao extremo sobre a
mulher. Mesmo no que poderia salvá-la de sua culpa, a maternidade, os clérigos viam
perigos, pois era ela a responsável pela educação do rebanho católico e, sendo idólatra,
poderia deturpar os ensinamentos sagrados.
Os discursos misóginos, que cresceram substancialmente a partir do século XII,
atingindo o público leigo, encontraram um determinado contexto social que os
estimulava na medida em que a sujeição contínua favorecia um estreito controle. A
mulher, vista como faladeira, supersticiosa, adúltera, lasciva, ousava levantar-se contra
seus senhores dada sua fraqueza natural. Alia-se ao Diabo, cuja imagem transforma-se
em um poderoso instrumento de controle, pois qualquer cristão poderia tornar-se sua
vítima, devendo manter-se dentro da fé para extinguir a atração pelo pecaminoso.
O ápice da misoginia cristã do período é representado pelo Malleus
Maleficarum, que reuniu diversos discursos com o mesmo fim, a sujeição feminina e a
comprovação de sua inferioridade carnal e ética, explicitadas no pacto demoníaco. A
mulher, entregue às provações materiais e à lascívia, encontrou, para os autores, um
meio de saciedade na união com o Maligno, padronizando relatos que envolviam
práticas pagãs que se conservaram deformadas na mentalidade das populações, sem
69
masculinas pois, quando não agia de modo direto, era o culpado pela indução à prática
do mal.
Contudo, a bruxa certamente pode ter existido. Como um indivíduo isolado, que
intentava fazer o mal a seus desafetos através de encantos ou poções, ou até mesmo que,
em seu íntimo, renegava os dogmas de uma religião imposta que cerceava suas desejos.
Mas não como integrante de uma seita organizada, não como uma mulher que poderia
voar com o auxílio de demônios ou de pomadas feitas a partir das vísceras de suas
vítimas. Afirmar a existência dos sabbats, assimilando-os a divertimentos pagãos anti-
cristãos é uma inverdade histórica, desmentida pela própria infiltração do cristianismo
no seio das comunidades e pelo fato de que foi a demonologia que levou até elas o
imaginário em torno dos encontros satânicos.
A visão das mulheres como portadoras de uma sexualidade desenfreada, de uma
luxúria insaciável, sendo, portanto, mais ativas que os homens, integra o quadro mental
do período de apogeu da perseguição às bruxas. A partir do século XVIII essa opinião
foi transformada pela literatura, que passou a colocar a mulher como passiva e
desprovida de libido. A transformação coincidiu com o desaparecimento das crenças
acerca das relações sexuais entre mulheres e demônios e de que as bruxas satisfaziam os
desejos sexuais de Satã, o que atendia aos interesses da Igreja em reprimir a discussão
aberta da sexualidade.
Paulatinamente as crenças em torno da realidade da bruxaria cederam ao avanço
do racionalismo, introjetando-se o Mal nos indivíduos e retirando do feminino os
poderes extraordinários que lhes haviam sido atribuídos. A diminuição da ênfase na
presença de Satã no mundo possibilitou a negação dos feitos das bruxas, transformados
em delírios de uma mentalidade obsoleta.
71
_____. A doutrina cristã: manual de exegese e formação cristã. São Paulo: Paulinas,
1991.
ARIÈS, P.; DUBY, G (Org.). História da vida privada. São Paulo: Cia. das Letras,
1989. v. 1. Do Império Romano ao ano 1000.
Bíblia Sagrada. Versão de Frei João José Pedreira de Castro. São Paulo: Ave-Maria,
2001.
BURKE, P. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.
FREUD, S. Uma neurose demoníaca do século XVII. In: _____. Edição standart
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1976. v. XIX. p. 91-2.
GINZBURG, C. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.
_____. Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São
Paulo: Cia. das Letras, 1989.
HORÁCIO; OVÍDIO. Sátiras. Os Fastos. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W.
M. Jackson, 1952.
MINOIS, G. Les origines du Mal: une histoire du péché originel. Paris: Fayard, 2002.
MOTA, C. G. (Org). Febvre. São Paulo: Ática, 1978. (Col. Grandes Cientistas Sociais).
_____. Uma história do Diabo: séculos XII-XX. São Paulo: Bom Texto, 2001.
TOMÁS DE AQUINO, São. Suma contra los entiles. Madrid: Bib. de Autores
Cristianos, 1952.