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SILVIA LIEBEL

DEMONIZAÇÃO DA MULHER
A construção do discurso misógino no Malleus Maleficarum

Monografia de final de curso apresentada à disciplina


Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica, do curso
de História, setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da
UFPR.

Orientadora: Profa. Dra. Ana Paula Vosne Martins.

CURITIBA
2004
“Não sabes tu que és Eva, tu também? A sentença de Deus tem ainda hoje todo o vigor sobre
este sexo, é preciso portanto que a culpa subsista também. Tu és a porta do Diabo, tu consentiste
na sua árvore, foste a primeira a desertar da lei divina.”
(Tertuliano)

ii
AGRADECIMENTOS

Este trabalho demandou esforços não apenas meus, mas também daqueles que
vivenciaram junto a mim os momentos de pesquisa intensa. Por isso, agradeço a todos que
contribuíram, direta ou indiretamente, em sua realização, com sugestões, críticas e carinho. Meus
maiores débitos ficam com a professora Ana Paula Vosne Martins, por sua dedicada orientação;
com Giana Liebel, cujo empréstimo do computador salvou-me nos últimos momentos; com
Vinícius Liebel, companheiro de todas as horas, por sua valiosa presença e incentivos constantes;
e, por último, mas não menos importante por fornecer o suporte material a este trabalho, agradeço
a Claudia Amanda Fonseca, e seu constante estímulo ao saber.

iii
SUMÁRIO
Página

I. INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 1

II. DESENVOLVIMENTO..................................................................................................... 5

Capítulo I. A construção da malignidade feminina na sociedade européia medieval......... 5


Capítulo II. A demonologia e o mais divulgado manual da Inquisição:
o Malleus Maleficarum............................................................................................................ 22
Capítulo III. A bruxaria como uma ameaça à sociedade cristã e sua perseguição............... 51

III. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................. 67

IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................. 71

iv
1

I. INTRODUÇÃO

“O outro é o fantasma da historiografia”.1 Relacionando a sentença de Michel de


Certeau ao “dilema da diferença” tratado por Joan Scott2, que traz a definição da
moderna historiografia ocidental do sujeito enquanto homem branco, estabelecer um
caráter de importância para as mulheres e dotá-las de significado histórico manifesta o
rompimento com as definições tradicionais da história e, consequentemente, com uma
ideologia masculinista.
O desenvolvimento de um estudo dentro da “história das mulheres” conta com
diversas reflexões que forneceram o suporte à disciplina: o destaque à família e suas
relações no cerne das sociedades e, por extensão, o papel do feminino dentro dela,
promovido pela antropologia histórica do século XIX; os trabalhos a respeito do
cotidiano e das mentalidades produzidos pela Escola dos Annales; as análises sobre os
marginalizados pelo poder, as minorias e os oprimidos demandados com o movimento
de Maio de 68; e o movimento feminista, impulsionador das investigações acerca do
feminino nas universidades, que acabaram se voltando às discussões sobre gênero.3
Pauline Pantel apresenta três conceitos fundamentais para o desenvolvimento de
uma perspectiva das relações de gênero: assimetria sexual, que “acentua a disparidade
que existe entre o poder e o valor atribuídos a cada um dos sexos”; relações sociais de
sexo, que atenta para a construção das relações sociais; e, por fim, o conceito de gênero,
termo freqüentemente empregado de forma vaga, referindo-se à existência de homens e
mulheres e à “divisão do mundo entre masculino e feminino, a uma divisão sexual ou
sexuada”.4 Para Klapisch-Zuber,

Aquilo que se convencionou chamar ‘gênero’ é o produto de uma reelaboração cultural que a
sociedade opera sobre essa pretensa natureza: ela define, considera – ou desconsidera –,
representa-se, controla os sexos biologicamente qualificados e atribui-lhes papéis determinados.
Assim, qualquer sociedade define culturalmente o gênero e suporta em contrapartida um efeito
sexual.5

1
CERTEAU, M. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 14.
2
SCOTT, J. História das mulheres In: BURKE, P. A escrita da História: novas perspectivas.
São Paulo: UNESP, 1992. p. 63-95.
3
DUBY, G.; PERROT, M (Org.). História das Mulheres no Ocidente. Porto: Edições
Afrontamento, São Paulo: EBRADIL, 1994. v. 1: A Antiguidade.
4
PANTEL, P. A história da mulher na história da antigüidade, hoje. In: Ibid., p. 594.
5
KLAPISCH-ZUBER, C. In: DUBY, G.; PERROT, M (Org.). História das Mulheres no
Ocidente. Porto: Edições Afrontamento, São Paulo: EBRADIL, 1994. v. 2: A Idade Média. p. 12.
2

As ciências humanas se encontram atualmente em conformação diante da


longevidade da relação dominação masculina/sujeição feminina. Embora tal relação não
denote a total destituição de poder das mulheres, aponta para o papel a elas reservado
pelo universo masculino, e sua análise acaba significando não o agir e o pensar daquele
que por muito tempo foi considerado o “segundo sexo”, mas as visões a seu respeito. E,
sendo a representação do feminino anterior a sua descrição ou narração, antes mesmo de
o próprio sujeito o fazer, é essencial analisar o filtro masculino6 na constituição da
mulher.
O olhar sobre o outro, aqui o sujeito feminino demonizado pela Igreja através de
um processo contínuo de reafirmação estrutural pelas instituições e agentes envolvidos,
requer uma atenta análise dos contextos social e cultural. A especificidade que o
discurso misógino adquire no contexto da Inquisição repousa sobre uma imagem da
mulher construída por uma visão masculina extremamente pessimista, herdeira de
tradições clássicas que foram acentuadas nos claustros medievais. A elaboração de
discursos altamente misóginos apoiou-se sobre um fundo intelectual impregnado de
aristotelismo, o que se alia ao pavor do sexo vivenciado por homens a quem se pregava
os valores da castidade e do celibato.
Desta forma a mulher, além de ser um ente negativo, representa uma tentação
constante, devendo os homens dela se afastar se quiserem permanecer com seu espírito
intocado. O conhecimento sobre o feminino é embasado em tradições clássicas e
voltado a sua diminuição moral, com um respaldo pretensamente biológico, e dele a
Igreja se utilizará para relacionar a mulher, responsável pela expiação das misérias dos
homens, ao Demônio, figura indispensável no universo retratado.
O Malleus Maleficarum, mais importante manual inquisitório sobre a bruxaria,
apresenta a imagem da feiticeira que se entrega ao Demônio para perverter a
humanidade como um reflexo das mulheres de seu tempo, vistas em uma torpeza moral
irrefreável. Circunscrevendo historicamente a figura da bruxa demoníaca, necessária em
um tempo de calamidades inexplicáveis e de íntima vivência do sobrenatural,
observamos o papel fundamental dos autores na construção da imaginada liturgia
satânica, procurando encontrar justificativas para os castigos divinos.
A identificação dos elementos constituintes da visão masculina de mundo,
herdados da Antigüidade e amplificados pelo cristianismo, que explicaram a

6
Ibid., p. 16.
3

inferioridade feminina e forneceram os dispositivos intelectuais para a construção da


imagem da serva de Satã serão apresentados no primeiro capítulo deste trabalho. A estes
elementos somam-se as discussões sobre a culpa humana e, principalmente da mulher,
pela introdução do mal no mundo, juntamente com as heresias que ameaçavam a
unidade cristã e os manuais dedicados à elaboração de imagens femininas negativas.
Desta maneira poder-se-á compreender a especificidade que o discurso misógino
adquire no período em estudo e as referências teóricas para o recrudescimento misógino
observado a partir do século XII e que culminará na caça às bruxas.
Na seqüência, a apresentação do contexto religioso no qual surge a demonologia
garante o necessário entendimento dos meios através dos quais o Malleus Maleficarum
se afirmou como um referencial, indiscutível durante muito tempo, para a coerção das
populações pela Igreja, procurando legitimar e conservar a ordem estabelecida. A
análise das fontes, destacando a base teórica do Malleus e a elaboração do estereótipo
da bruxa neste manual, permite compreender de que modo as acusadas terminam sendo
invariavelmente condenadas, com confissões induzidas pela tortura e por interrogadores
preparados segundo as disposições da fé.
A bruxaria é tratada como um fenômeno essencialmente feminino, decorrente
das falhas próprias deste sexo que são apresentadas pelos autores fundamentando-se nas
Escrituras, e, dentre os autores cristãos, principalmente em Agostinho, Tomás de
Aquino e Johannes Nider, autor do Formicarius, outro manual inquisitório de
repercussão. Sendo considerada herética a descrença na bruxaria, quaisquer
manifestações de dúvida acerca dos malefícios ou do pacto diabólico poderiam redundar
em processo. Estes tempos nefastos viam a ação do Demônio no mundo, permitida por
Deus, em função dos pecados humanos, destacadamente o abismo do sexo.
O capítulo final apresenta o fenômeno da bruxaria nas sociedades européias de
inícios da Idade Moderna, refletindo sobre sua estreita vinculação ao universo feminino
através da inculpação de indivíduos isolados socialmente, renegados por suas
comunidades e que, para a ortodoxia, obtiveram meios de revidar na seita anticristã. A
redução das práticas mágicas ao fenômeno da bruxaria, dotando-as de um caráter
evasivo e destrutivo, formou o imaginário acerca das bruxas: mulheres geralmente
velhas e pobres que cediam às tentações da demonolatria para alívio material ou
espiritual, ou ainda para se vingarem de desafetos.
A mentalidade da época, obsedada pelo discurso eclesiástico, vivenciava um
clima de insegurança religiosa gerado pelas heresias medievais e pela Reforma,
4

procurando reforçar o controle sobre as populações. Para tal confluíram os poderes


religioso e civil, com o Estado empregando os dispositivos inquisitórios na perseguição
daqueles que eram considerados culpados pelas desgraças coletivas, impondo um
modelo de autoridade.
O cerceamento da figura feminina através de sua diminuição pelos discursos
médicos, políticos e religiosos – estes, objeto central das análises aqui desenvolvidas –,
garantiu sua subordinação inconteste, excetuando-se as mulheres consideradas
demoníacas. Tais apresentações sobre o feminino foram remodeladas segundo o mental
de cada período vivido, perpetuando-se um controle que repousa sobre um complexo
fundo cultural no qual o temor do “segundo sexo” é latente.
Conforme apresenta Pierre Bourdieu, “A dominação masculina constitui o
paradigma (e freqüentemente o modelo e o parâmetro) de toda dominação.”7 Decorre
desta afirmativa a importância dos estudos voltados à historicização da sujeição
feminina em suas diferentes formas, o que permite compreender as especificidades das
redes de dependência entre dominado e dominante, e a arbitrariedade das construções
sociais misóginas.

7
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Educação e Realidade, [Porto Alegre], v. 20, n. 2,
jul./dez. 1995. p. 176.
5

II. DESENVOLVIMENTO

CAPÍTULO I. A construção da malignidade feminina na sociedade européia


medieval.

As reflexões sobre a mácula da mulher não surgiram nos claustros da Idade


Média, fruto de um antifeminismo virulento de religiosos que se viam paulatinamente
limitados ao celibato, mas foram por estes herdadas e ampliadas, indo de encontro à
visão do feminino introjetada nas estruturas sociais do período. A elaboração da
imagem da bruxa pela produção intelectual do Medievo, aqui representada pelo Malleus
Maleficarum, é marcada por um intenso processo de inculcação da ortodoxia religiosa –
através de ampla produção erudita, sermões, simbolismo das Escrituras – para gravar no
inconsciente coletivo a imagem da serva de Satã. A fixação do modelo garantiu o
suplício das mulheres que freqüentemente eram outsiders em suas comunidades, a quem
imputavam as características de bruxa, a agente do Demônio para castigar a humanidade
por seus pecados.
Contudo, conforme as indicativas de Pierre Bourdieu1, em um estudo dentro da
chamada “história das mulheres” é fundamental ir além das análises da condição
feminina e das formas de opressão, adentrando nos mecanismos de des-historização que
promovem continuamente a exclusão. Nesse sentido, pautar a relação entre os sexos
pelo processo histórico significa compreender o processo de eternização empreendido
pelo masculino e corroborado pelo feminino, que assume uma identidade construída
socialmente e assimilada como sina, destino, natureza.
Tomando a sujeição feminina enquanto um produto ideológico, a “cosmologia
falonarcísica” de que fala Bourdieu é orientadora de um princípio de divisão arbitrária
que organiza uma visão de mundo construída e naturalizada. Este princípio é reforçado
pelas estruturas objetivas na sociedade e pelas expressões coletivas incorporadas no
habitus, universalizando uma visão masculina que, enraizada, não precisa de
justificativa; a confirmação do ser e as formas de reconhecimento legitimam a
construção que, tida como natural, torna-se evidente. Tendo o dominado em comum
com o dominante os mesmos instrumentos de conhecimento, que são a forma
incorporada das relações de dominação, sofre a violência simbólica através da

1
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
6

inculcação e familiarização com a simbologia estruturada, que produz as disposições


permanentes sobre as quais se apóia.
A institucionalização do preconceito confirma-se com o feminino dominado
projetando sobre si a imagem que lhe é atribuída pela visão masculina, naturalizando
uma identidade socialmente imposta, o que traduz uma validação mútua dos papéis
sociais masculino e feminino. A submissão feminina gera o reconhecimento do poder
dominante, justificando sua razão de existir; desse modo, a virilidade contemplada só
existe com a cumplicidade e a sujeição feminina, e o reconhecimento dos limites
impostos exclui a possibilidade de transgressão.
O mundo social imprime no corpo dos sujeitos esquemas de percepção e ação
que funcionam como uma segunda natureza, instituindo a diferença biológica entre os
sexos em termos desiguais e discriminatórios, produto de uma relação arbitrária de
dominação, fundamentada na manutenção da ordem social. A mulher constitui-se em
entidade negativa pelo defeito da ausência das propriedades masculinas, assim, o
sexismo “visa imputar diferenças sociais historicamente instituídas a uma natureza
biológica funcionando como uma essência de onde se deduzem implacavelmente todos
os atos da existência”.2
A oposição entre masculino e feminino constrói um sistema mítico-ritual
confirmado e legitimado pelas próprias práticas que institui, caracterizando os sexos
como sujeito/objeto, agente/instrumento. Esta oposição remete aos preceitos
aristotélicos que situam o homem e a mulher em uma hierarquia em função de
superioridade e inferioridade, atribuindo as características de seco, quente, alto e reto ao
masculino, e frio, úmido, baixo e curvo ao feminino, extrapolando os limites de uma
suposta inferioridade física para uma inferioridade moral. Os espaços e funções são
desta forma divididos a partir de inclinações físicas “naturais”, de modo a situar o
homem na esfera pública e a mulher na esfera privada.
Os aristotélicos, liderados por Tomás de Aquino, forneceram, no período
medieval, a justificação teórica para a limitação da mulher e sua sujeição ao sexo forte.
Uma identidade negativa, acrescida do signo diabólico no final deste período, condenou
a mulher a carregar continuamente a prova de sua malignidade, justificando as
atribuições que o sistema simbólico dominante lhes imputou como integrantes de sua
“natureza” – ela é a tentadora, cuja lubricidade afasta os homens da salvação de sua

2
BOURDIEU, P. A dominação masculina..., 1995, p. 145.
7

alma. No jogo de dominação, a mulher, sujeito dominado, representa um perigo para a


masculinidade. Encarnando a “vulnerabilidade da honra, (...) o sagrado desviante”, e
guardando em si a “astúcia diabólica”, utiliza-se da desonra de que é revestida, “da
falsidade e da magia”, 3 para tentar reverter o processo a que está submetida.
As estratégias simbólicas empregadas contra os homens como a magia,
mostram-se inócuas na medida em que revelam uma maleficidade natural ao feminino,
envolto numa identidade negativa permeada por proibições. Permanecem, pois, estas
estratégias dominadas, visto se originarem de uma visão androcêntrica: seus alvos são
os próprios homens, de quem se busca o amor ou a desgraça. Opõe-se à violência física
e simbólica perpetuada pelos machos uma violência sutil, não manifesta.
Dentro dessa estruturação o dominante, enquanto poder legítimo, só pode ter
uma imagem elevada de si mesmo e do que a sociedade lhe atribui. O ser homem liga-se
à virilidade, ao senso de honra, à retidão, que freqüentemente são postos à prova,
colocando o dominante também como dominado no jogo que institui, mas por sua
dominação, o que obviamente o mantém acima do objeto de jugo. “É porque ele é
treinado para reconhecer os jogos e os embates sociais onde se dá a dominação que o
homem tem deles o monopólio”.4
Concorrendo para a legitimação do arbitrário, o discurso eclesiástico, que
possibilita e perpetua a inferioridade do feminino, cumpre uma função externa de
legitimação da ordem estabelecida na medida em que a manutenção da ordem simbólica
contribui diretamente para a manutenção da ordem política. Inculcar a ideologia
religiosa e a liturgia, impor as observâncias rituais vividas como a condição de
salvaguarda da ordem cósmica e da subsistência do grupo, significa reproduzir as
relações fundamentais da ordem social.5
Com a função de estabelecer um consenso acerca da disposição das estruturas e
posições no mundo, o campo religioso utiliza a autoridade para combater as tentativas
proféticas ou heréticas de subversão da ordem simbólica. Redigindo instrumentos de
forte apelo moral aos fiéis e aos que devem ser convertidos, a Igreja fornece tipologias
dos desviantes e de seus pecados, ameaçadores da ordem, como encontramos no
Malleus Maleficarum, alicerçado em uma longa tradição de escritores atormentados
com os problemas da carne e sua interferência na relação com o sagrado.

3
Ibid., p. 157.
4
Ibid., p. 162.
5
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.
8

A inserção do indivíduo em sua época e meio social e as continuidades nas


estruturas mentais no período retratado apontam para a relação entre indivíduo, aqui o
sujeito feminino, e a esfera do sagrado. Lucien Febvre indica que a religião não só
interfere na dinâmica individual como também afeta a dinâmica social, pois “o
indivíduo é sempre o que lhe permitem que ele seja, tanto a sua época, quanto o seu
meio social”.6
Ao longo do período em estudo, a mulher viveu sob o estigma da inferioridade
física e intelectual, sendo encarada como um ser maléfico em que se refletem a matéria,
o instinto e a culpa pelas desgraças do homem. Entretanto, a mácula feminina não é um
elemento recente utilizado pelos teólogos e pregadores, visto desde a Antigüidade a
mulher ser a portadora do mal, estreitamente relacionada ao oculto, ao mágico e ao
maligno. Mas um novo elemento será acrescentado ao caráter feminino neste momento
pela Igreja, conspurcando o destino de milhares que seriam conduzidas ao ordálio: à
responsável pelas desgraças da humanidade (reduzida ao universo significativo, o
masculino) soma-se o conluio com o Maligno.
O cristianismo incorporou e ampliou crenças sobre a mulher há muito
difundidas, disseminando um antifeminismo agressivo, especialmente a partir do século
XV. Como a cultura se encontrava nas mãos de clérigos celibatários, que procuravam
então continuamente afirmar sua precedência na relação com o sagrado através de
práticas de controle do corpo, mostra-se evidente a exaltação da virgindade e da
castidade e o combate à tentação, afirmando-se a renúncia sexual como o “fundamento
da dominação masculina na Igreja cristã”7. Os eclesiásticos, que erigiram o sexo
feminino como o maior dos atrativos luxuriosos, “para não sucumbir aos seus encantos,
incansavelmente o declararam perigoso e diabólico”.8
Desde a Grécia Clássica observamos a mulher enquanto símbolo maior da carne
e da matéria, representando a putrefação e o fim, ao passo que o homem relaciona-se à
espiritualidade, sendo considerado o portador de um caráter superior perturbado pela
natureza feminina. A mulher é, em sua essência, instintiva, dionisíaca, e o homem,
racional, apolíneo.9

6
MOTA, C. G. (Org.). Febvre. São Paulo: Ática, 1978. p. 24. (Col. Grandes Cientistas Sociais).
7
BROWN, P. Antigüidade Tardia. In: ARIÈS, P.; DUBY, G (Org.). História da vida privada.
São Paulo: Cia. das Letras, 1989. v. 1: Do Império Romano ao ano 1000. p. 206.
8
DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo:
Cia. das Letras, 1989. p. 322.
9
A dessimetria dos gêneros mescla uma relação de medo e exaltação do “segundo sexo”,
observada mesmo em sociedades matriarcais na pré-história, que viam na capacidade de gerar vida uma
9

A legenda máxima dos discursos misóginos cristãos, Eva, origem das desgraças
da humanidade, relaciona-se àquela que, para os gregos, graças a sua curiosidade (que
será dita tão própria das mulheres pelos padres da Igreja) libertou os males no mundo.
Pandora, juntamente com Eva, simboliza o ardil feminino, tirando o homem do paraíso
que lhe era merecido.10 No resgate de autores clássicos a fim de aprimorar os textos com
intenções edificadoras, muitos teólogos do Medievo irão retomar personagens que
exemplificam o caráter da desviante, personagens cujos atos mostram-se recorrentes nas
acusações produzidas entre os séculos XV e XVII: feiticeiras que matavam crianças e
devoravam seus filhos, com um apelo violento e erótico.
A imagem feminina é construída sobre a encarnação da luxúria, a mulher é vista
como portadora de uma sexualidade insistente que impede a psique masculina de se
elevar. De “qualquer maneira, o homem jamais é o vencedor no duelo sexual. A mulher
lhe é ‘fatal’. Impede-o de ser ele mesmo, de realizar sua espiritualidade, de encontrar o
caminho de sua salvação”.11 Circe, a deusa-maga, embora tenha desviado Ulisses de seu
destino e gerado filhos com ele, é frustrada em suas tentativas de assegurar seu amor,
vendo seus poderes extraordinários não surtirem efeito.12 Já Ovídio declarara proibido
o caminho do malefício, e a inutilidade de se tentar provocar sentimentos com o uso de
artifícios mágicos.13
A fraqueza do caráter feminino de agir no universo passional por meios mágicos
mostra-se também em Canídia, que esquarteja uma criança a fim de utilizar seu sangue
em uma poção, parte do repertório da mística do universo passional grego, derivada dos
afrodisíacos, os encantos preparados de Afrodite. Também se vêem nas narrativas sobre
a feiticeira o uso de plantas maléficas (maléficas por serem empregadas nos malefícios,

interação com o sagrado. Até o Romantismo, a mulher pode ser vista exaltada: inicialmente, como deusa
da fecundidade, apresenta o caráter ambíguo da deusa-mãe, aquela que dá a vida e anuncia a morte;
enquanto Atena representa a sabedoria; e, finalmente, como a Virgem Maria, é significação de pureza e
bondade. Ibid., cap. 10.
10
Em uma versão corrente do mito, Zeus teria criado a primeira mulher para castigo dos homens.
Pandora fora moldada à imagem das deusas, recebendo de cada divindade uma dádiva e um mal, sendo
todos os males guardados em uma caixa. Como principal característica feminina, possuía a arte da
mentira e, entre seus dons, destacava-se sua curiosidade. Ao chegar na terra, ocorreu a primeira tragédia:
o casamento. Pandora uniu-se a Hipemeteu e, somadas a curiosidade dela e a inconseqüência dele,
resolveram abrir a caixa de Pandora, libertando os males no mundo.
11
Ibid., p. 313.
12
HOMERO. Odisséia. São Paulo: Ars Poetica, EDUSP, 1992.
13
OVÍDIO. Os remédios do amor: os cosméticos para o rosto da mulher. São Paulo: Nova
Alexandria, 1994.
10

não por serem venenosas), preferencialmente as plantas que nasciam em torno das
sepulturas, além de pêlos de lobos e bonecos de cera. 14
Medéia, a mais elaborada das três personagens, é o símbolo máximo da
feiticeira, em poder e sedução: perita em sortilégios, conhece a fundo as virtudes das
plantas, sendo exímia perfumista e envenenadora. Também é ela que, em seu desejo
frustrado, assassina os próprios filhos como vingança ao ser amado.

Agora, agora deveis assistir-me, ó deusas, vingadoras do crime: os cabelos desarrumados,


entrelaçados de serpentes, firme nas mãos sanguinolentas um lúgubre archote, assisti-me, ó
deusas, tão horríveis como quando ficastes perto do meu leito nupcial. Matai a nova esposa,
matai o sogro e toda a família real. E a mim, dai um outro mal, mais terrível que a morte, para
que eu possa oferecê-lo ao meu esposo: que ele viva, errando pobre por cidades desconhecidas,
desterrado, espantado, abominado, sem lar; que ele me deseje como esposa e encontre a porta
fechada, hóspede já muito conhecido. E – não é possível pensar nada mais horrível – possa ele
gerar filhos semelhantes ao pai, semelhantes à mãe. Quando eu dava à luz os meus filhos, dava à
luz a minha vingança.15

Observamos, assim, que as figuras da mãe ogra, Moiras, Erínias, Amazonas,


marcam a continuação no inconsciente coletivo de representações pagãs terrificantes
que eram assimiladas à índole da mulher contemporânea, construindo-se um sistema de
representações do feminino que reforçava sua alienação dos instrumentos de controle
social. A cultura dirigente passa então a transformar um medo espontâneo em um medo
refletido, colocando a mulher como um agente de Satã, tanto para os homens de Deus
quanto para os leigos.
A inferioridade da mulher no cristianismo foi justificada principalmente pelas
Epístolas de São Paulo e pelo relato do Gênesis, com a criação de Eva e a expulsão do
Paraíso. George Minois apresenta a Queda como uma criação dos teólogos que
exploraram o mito sistematicamente a partir do século II, impondo-se a ampliação do
relato com a afirmação de que Jesus seria o redentor das faltas imputadas a todos os
homens pelo primeiro pecado – a grandiosidade de seu papel redunda igualmente no
crescimento da imagem daquele que tornou necessária a morte do filho de Deus.
O Gênesis mostra que Deus teria criado Eva a partir de Adão, o que justifica
para os clérigos a submissão da mulher ao homem, e, tendo sido criada a partir da
costela de Adão, um osso curvo, o espírito da mulher reflete esse desvio e é perverso
desde sua origem. Eva, com sua sede de conhecimento do Bem e do Mal, ao se permitir

14
HORÁCIO. Sátira VIII – O deus Príapo e as feiticeiras; Épodo VIII. In: HORÁCIO; OVÍDIO.
Sátiras. Os Fastos. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W. M. Jackson, 1952.
15
SÊNECA. Obras. Rio de Janeiro: Ediouro, [198-]. p. 80.
11

seduzir pelo Demônio arrasta consigo Adão, tornando-se responsável pela queda do
homem.

O ter atribuído à serpente tentadora um rosto de mulher pode dar a medida de como o pecado era
vivido de um ponto de vista exclusivamente masculino e como era representado de acordo com
essa directriz, mesmo com o risco de uma certa incoerência. De facto, para Eva teria sido bem
mais atraente o rosto de um belo jovem do que de uma mulher.16

Contudo Eva, com sua curiosidade e desejo de poder, garantiu ao homem a


tomada do conhecimento, que a partir de então é por ele controlado, pois sendo a
responsável principal pela queda a mulher permanece sendo-lhe sujeita, desaparecendo
de cena após parir. Mesmo os primeiros filhos de Eva podem ter uma paternidade
duvidosa para alguns pensadores cristãos do Medievo, que acreditam no Diabo como
pai de Cain e Abel, de maneira que caberia ao Mal a tutela de parte da humanidade.17 É
realizado um paralelo entre Adão e José, como instrumentos de poderes maiores: Eva
carrega a semente do Diabo, e Maria a de Deus.18
As ambigüidades acerca da figura da mulher no cristianismo originam-se com
Paulo, que afirmava possuir o dom da castidade, não compartilhado pela maioria. Para o
apóstolo, “seria bom ao homem não tocar mulher alguma”,19 entretanto, não ousava
propor o estabelecimento do celibato, pois significaria acabar com a instituição da
família, a quem procurava atingir com seus discursos.20 Paulo coloca a mulher
subordinada ao marido no casamento, sendo o homem quem comanda o casal: “As
mulheres sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor, pois o marido é o chefe da
mulher, como Cristo é o chefe da Igreja, seu corpo, da qual ele é o Salvador. Ora, assim
como a Igreja é submissa a Cristo, assim também o sejam em tudo as mulheres a seus
maridos.”21
Da mesma forma, para Paulo a mulher também é subordinada perante a Igreja,
sendo vedada-lhe a transmissão do conhecimento, o que é demonstrado em uma

16
FRUGONI, C. A mulher nas imagens, a mulher imaginada. In: DUBY, G.; PERROT, M.
(Org.). História das Mulheres no Ocidente. Porto: Afrontamento, São Paulo: EBRADIL, 1994. Vol. 2:
A Idade Média. p. 473.
17
MINOIS, G. Les origines du Mal: une histoire du péché originel. Paris: Fayard, 2002. p. 113.
18
Ibid., p. 36.
19
BÍBLIA, N. T. I Coríntios. Português. Bíblia Sagrada. Versão de Frei João José Pedreira de
Castro. São Paulo: Ave-Maria, 2001. Cap. 7, vers. 1.
20
BROWM, P. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do
cristianismo. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1990. passim.
21
BÍBLIA, N. T. Efésios. Português. Bíblia Sagrada. op. cit. Cap. 5, vers. 22-24.
12

passagem do Novo Testamento que pode ser considerada o “texto bíblico preferido dos
sacerdotes”22:

Como em todas as igrejas dos santos, as mulheres estejam caladas nas assembléias: não lhes é
permitido falar, mas devem estar submissas, como também ordena a lei. Se querem aprender
alguma coisa, perguntem-na em casa a seus próprios maridos, porque é indecente para uma
mulher falar na assembléia. Porventura foi dentre vós que saiu a palavra de Deus? Ou veio ela
tão-somente para vós?23

No século II da era cristã, o pecado original é pela primeira vez revestido de


conotação sexual por Clemente de Alexandria.24 Tertuliano, que escrevera sobre as
fraquezas sexuais inerentes às mulheres, estendia a elas o pecado da Eva tentadora:
“Não sabes tu que és Eva, tu também? A sentença de Deus tem ainda hoje todo o vigor
sobre este sexo, é preciso portanto que a sua culpa subsista também. Tu és a porta do
Diabo, tu consentiste na sua árvore, foste a primeira a desertar da lei divina.”25
Neste período, observa-se no Império Romano a tentativa de se explicar
biologicamente o domínio masculino sobre mulheres e escravos, garantindo, assim, a
perpetuação do sistema intelectual que os colocava em um lugar determinado pelos
censores sociais e a diminuição do risco de insubordinações.

os homens eram os fetos que haviam realizado seu potencial pleno. (...) As mulheres, em
contraste, eram homens imperfeitos. O precioso calor vital não lhes chegara em quantidades
suficientes no ventre. Sua falta de calor as tornava mais flácidas, mais líquidas, mais frias e
úmidas e, de modo geral, mais desprovidas de formas do que os homens.26

A necessidade masculina de diferenciação explícita das mulheres, ante o medo


de uma ‘efeminização’, faz-se presente, bem como a proposição por parte de alguns
filósofos, como Plutarco, de que o marido deveria se tornar “mentor filosófico” de sua
esposa. Esta deve ser vigiada, sendo seu espírito inculcado de bons ensinamentos a fim
de que ele não se atrofiasse, moldando-a, dessa forma, conforme a um homem. As
mulheres ‘quando não recebem a semente das boas doutrinas e compartilham com seus

22
RANKE-HEINEMANN, U. Eunucos pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja
Católica. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1999. p. 138.
23
BÍBLIA, N. T. I Coríntios. op. cit. Cap. 14, vers. 34-36.
24
RICHARDS, J. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: J. Zahar,
1993. p. 34.
25
TERTULIANO apud DALARUN, J. Olhares de clérigos. In: DUBY, G.; PERROT, M., op.
cit., p. 35.
26
BROWM, P., op. cit., p. 19.
13

maridos o avanço intelectual, elas concebem, entregues a si mesmas, muitas idéias


impróprias e estratagemas e emoções vis.’27
As intensas discussões em torno da sexualidade, campo privilegiado para a ação
feminina, resultaram em tendências conflitantes dentro do cristianismo que incidirão
sobre o acirramento das formulações misóginas na Igreja medieval. Gregório de Nissa
apresentou a distinção sexual como permissiva à sexualidade que, por sua vez,
possibilita o cumprimento da perpetuação, um desígnio divino, procurando-se barrar a
morte, decretada com a Queda.

Gregório sempre tendeu a apresentar a sexualidade, juntamente com outros aspectos da vida
instintiva, não como uma anomalia privilegiada, mas como um símbolo da lenta mas infalível
sagacidade divina. A sexualidade e o casamento representavam a doce persistência de Deus em
levar a raça humana a sua destinada plenitude, ainda que fosse, a partir de então, ‘por um longo
desvio’.28

Em oposição a Gregório de Nissa, Ambrósio e Jerônimo, que colocavam a


sexualidade e o casamento como resultantes da Queda, Agostinho encarava a
dominação masculina e parental como integrantes das disposições formuladas por Deus
a princípio, considerando que o “matrimônio existia antes do pecado sem as
conseqüências da sensualidade”29. Sendo esta derivada da falta cometida por Adão e
Eva, o pecado original, expressão cunhada pelo próprio bispo de Hipona30, relaciona-se
não propriamente ao ato sexual, mas à concupiscência que garantiu não somente às
mulheres, mas também aos homens, uma natureza decaída. Faz-se doravante necessário
empreender uma formalização da permissão ou proibição das práticas sexuais dos
casais. “Para Agostinho, (...) a sexualidade tal como se observa atualmente constitui um
sintoma tão íntimo da queda de Adão e Eva quanto a mortalidade: sua natureza atual
incontrolável resulta da queda de Adão e Eva tão imediata e seguramente como o
contato glacial da morte.”31
Mas cabe à mulher pagar duplamente pelo orgulho que a levou a se rebelar
contra as determinações de seu criador: sofrendo ao gerar a vida, pois foi ela quem
introduziu a morte no mundo, e sendo submissa ao homem a fim de atenuar sua falta,
pois ela o induziu a pecar. Adão permanece vitimizado no pensamento de Agostinho,

27
PLUTARCO apud BROWM, P., op. cit., p. 101.
28
BROWN, P., op. cit., p. 246.
29
AGOSTINHO, Santo. A Graça (I). São Paulo: Paulus, 1998. p. 306.
30
MINOIS, G., op. cit., p. 65.
31
BROWN, P. Antigüidade Tardia..., p. 294-5.
14

pois ele teria cedido ao pecado apenas para agradar sua companheira, tendo todos
pecado junto ao primeiro homem, representante da espécie. Desta forma justifica-se o
batismo, pois todos nasceriam com o pecado original, e livra-se da culpa um deus
infinitamente bom, caindo a culpa do mal sobre a humanidade.
Refletindo acerca das diferenças entre o masculino e o feminino, Agostinho
empreende, no século V, a conciliação entre o antifeminismo e uma suposta igualdade
entre gêneros que teria sido prescrita por Jesus, colocando o ser humano como
possuidor de um corpo sexuado, que incide sobre a mulher, e de uma alma assexuada,
que se reflete no homem. Assim, predomina neste a razão, o que o coloca como a
imagem de Deus, e, sendo inferior, a mulher deve-lhe ser submissa. São, portanto,
homem e mulher próximos na complementação de metades desiguais.
As proposições de Agostinho refletirão profundamente sobre o corpo doutrinal
da Igreja, prestando-se a alguns autores que, ao menos até o século X, viam os atos e
pensamentos das mulheres como responsabilidades de seus guardiões. O combate à
posição subordinada do feminino ocorria apenas quando este arrojava a si os
instrumentos com os quais procurava lutar contra a dominação masculina – sobretudo
encantos e poções direcionados à sexualidade, meios próprios de sua natureza impura e
pérfida. As transformações culturais operadas entre o século X e o final do século XII
colocarão a mulher como atuante nos conflitos, retirando-lhe sua característica passiva,
ponto fundamental para torná-la a serva do Diabo, condutora das mazelas no mundo.
Em cerca de 1095, Godofredo de Vandoma amplia os discursos sobre a falta
feminina que tragou o homem para a maldição.

Este sexo envenenou o nosso primeiro pai, que era também o seu marido e pai, estrangulou João
Batista, entregou o corajoso Sansão à morte. De uma certa maneira, também matou o Salvador,
porque, se a sua falta o não tivesse exigido, o nosso Salvador não teria tido necessidade de
morrer. Desgraçado sexo em que não há nem temor, nem bondade, nem amizade e que é mais de
temer quando é amado do que quando é odiado.32

Já no século XII, observamos o início da expansão da literatura de aversão ao


sexo feminino, que deixa o domínio exclusivo dos monastérios e atinge canonistas,
moralistas e, no século XIV, os demonólogos. Jeffrey Richards mostra que neste
momento o espancamento das esposas era facultado pelas leis civis, que também
determinavam a exclusão feminina dos cargos públicos devido serem “por natureza

32
VANDOMA apud DALARUN, J., op. cit. p. 34.
15

frívolas, ardilosas, avarentas e de inteligência limitada”, enquanto as leis eclesiásticas


embasavam a exclusão no pecado original.33
É também no século XII que escreve um dos principais, senão o principal
inspirador dos conceitos (re)lançados no Malleus Maleficarum, e na misoginia cristã de
modo geral. Tomás de Aquino, servindo-se dos referenciais aristotélicos, coloca a
existência de um único sexo, o masculino, que reflete razão e virtude, sendo a mulher
um macho imperfeito que necessita de um companheiro para procriação, sua função
natural, e para governá-la, pois o homem é mais perfeito por sua razão e mais forte na
virtude, com esta afirmativa permeando os discursos médicos.
Dentre vários autores que acompanham o raciocínio acerca da necessidade da
esposa obedecer a seu marido destaca-se São Bernardino de Siena, que no século XV
concederá às mulheres a igualdade de espírito frente aos homens, embora permanecendo
estes superiores na carne. Entretanto, a inferioridade da mulher levará Tomás de Aquino
a conceder ao homem a primazia na reprodução, de modo que cabe a ele a transmissão
do pecado original desde Adão.
Graciano, em compasso com as idéias de Aquino, apresenta a mulher
duplamente subordinada ao marido: por ter sido criada a partir do homem, a mulher lhe
é inferior; e por ter cedido à tentação do Diabo em forma de serpente e apreciado os
prazeres da carne, é diabólica.34 Vincula-se o sexo a Satã, surgindo os elementos que
comporão o cenário privilegiado para os processos contra bruxaria, as nefastas uniões
de homens e mulheres com demônios súcubos e íncubos.
Ranke-Heinemann, teóloga detratada pela Igreja que analisa a misoginia cristã
desde suas bases clássicas, apresenta que, na “raiz da difamação das mulheres na Igreja,
encontra-se a noção de que são impuras e como tais opõem-se ao que é santo. Na
avaliação dos clérigos, as mulheres são seres humanos de segunda classe. Clemente de
Alexandria escreve: com relação às mulheres, ‘a exata consciência de sua própria
natureza deve evocar sentimentos de vergonha’.”35 Esta proposição, reafirmada
continuamente ao longo da Idade Média e que encontrou meios práticos de observação
nos processos inquisitoriais dos séculos XV ao XVII, é demonstrada por Hildeberto de
Lavardin, que escreve no século XII, momento máximo de reafirmação estrutural da
Igreja contra elementos sociais subordinados, mas, ao mesmo tempo, ameaçadores.

33
RICHARDS, J., op. cit., p. 36.
34
Ibid., id.
35
RANKE-HEINEMANN, U., op. cit. p. 141.
16

A mulher, coisa frágil, inconstante a não ser no crime, não deixa nunca espontaneamente de ser
nociva. A mulher, chama voraz, loucura extrema, inimiga íntima, aprende e ensina tudo o que
pode prejudicar. A mulher, vil forum, coisa pública, nascida para enganar, pensa ter triunfado
quando pode ser culpada. Consumindo todo no vício, é consumida por todos, predadora dos
homens torna-se ela própria a presa.36

Em De contemptu feminae, obra elaborada por Bernard de Morlas, monge de


Cluny no século XII, encontramos diversos elementos que serão intensamente repetidos
pelos demonólogos, tendo alcançado grande difusão com a radicalização do
antifeminismo clerical, paralelamente à expansão do culto mariano.

A mulher ignóbil, a mulher pérfida, a mulher vil


Macula o que é puro, rumina coisas ímpias, estraga as ações [...].
A mulher é fera, seus pecados são como a areia.
Não vou entretanto caluniar as boas a quem devo abençoar [...].
Que a má mulher seja agora meu escrito, que seja meu discurso [...]
Toda mulher se regozija de pensar no pecado e de vivê-lo.
Nenhuma, por certo, é boa, se acontece no entanto que alguma seja boa.
A mulher boa é coisa má, e quase não há nenhuma boa.
A mulher é coisa má, coisa malmente carnal, carne toda inteira.
Dedicada a perder, e nascida para enganar, perita em enganar,
Abismo maldito, a pior das víboras, bela podridão,
Atalho escorregadio [...], coruja horrível, porta pública, doce veneno [...],
Ela se mostra inimiga daqueles que a amam, e se mostra amiga de seus inimigos [...].
Ela não exclui nada, concebe de seu pai e de seu neto.
Turbilhão de sexualidade, instrumento do abismo, boca dos vícios [...].
Enquanto as colheitas forem dadas aos cultivadores e confiadas aos campos,
Essa leoa rugirá, essa fera maltratará, oposta à lei.
Ela é o delírio supremo, e o inimigo íntimo, o flagelo íntimo [...].
Por suas astúcias uma só é mais hábil que todos [...].
Uma loba não é mais má, pois sua violência é menor,
Nem uma serpente, nem um leão [...].
A mulher é uma feroz serpente por seu coração, por seu rosto ou por seus atos.
Uma chama muito poderosa rasteja em seu seio como um veneno.
A mulher má se pinta e se enfeita com seus pecados,
Ela se disfarça, ela se falsifica, ela se transforma, se modifica e se tinge [...].
Enganadora por seu brilho, ardente no crime, crime ela própria [...].
O quanto pode, ela se compraz em ser nociva [...].
Destruição primeira, pior das partes, ladra do pudor.
Ela arranca seus próprios rebentos do ventre [...].
Ela trucida sua progenitura, abandona-a, mata-a, num encadeamento funesto.
Mulher víbora, não ser humano, mas fera selvagem e infiel a si mesma.
Ela é assassina da criança e, bem mais, da sua em primeiro lugar,
Mais feroz que a áspide e mais furiosa que as furiosas [...].
Mulher pérfida, mulher fétida, mulher infecta.
Ela é o trono de Satã; o pudor está a seu cargo; foge dela, leitor. 37

36
Hildeberto de Lavardin apud DALARUN, J., op. cit., p. 38.
37
PELAYO apud DELUMEAU, J., op. cit., p. 325-6.
17

Alguns dos documentos produzidos no século XII que tratam do feminino são
analisados por Georges Duby em Eva e os Padres38, embora venham a revelar não a
ótica das mulheres, sujeitos silenciados, mas o universo masculino de então, suas visões
do sexo oposto e desejos. As reflexões sobre o Gênesis, tratado primário do
condicionamento da mulher ao pecado, que vincula a figura humana a três atos, criação,
tentação e punição, expressam a motivação da inferioridade da mulher frente ao homem
– a sexualidade latente, e, em decorrência, o pecado.
O Livre des manières, escrito entre 1174-8 por Étienne de Fougères, bispo de
Rennes, apresenta novamente a mulher como portadora do mal, citando os pecados
femininos. Entretanto, sua obra possui um elemento diferencial que consiste na intenção
de se atingir a corte, sendo escrito em língua vulgar. As damas são o alvo preferencial
dos sermões, compreendendo-as o autor como disseminadoras do pecado – dada sua
posição social, seus atos eram mais constantemente observados e copiados. Seus três
principais vícios consistem na luxúria; na insatisfação frente os desígnios divinos, pois
procuram alterar o destino com feitiçaria; e na insubordinação ao marido a elas
destinado. A relação que o autor acredita existir entre mulher e marido é moldada pelas
relações de vassalagem: à primeira cabe “amar, servir e aconselhar o homem a quem foi
entregue, lealmente, sem mentir”, e os deveres do senhor consistem em protegê-la,
subordinando-a dentro da estrutura social.39
A sujeição da mulher enquanto macho deficiente é perpetuada nos escritos de
Abelardo, que crê ser a mulher inferior ao homem na razão, sendo este mais “perfeito” e
“terno” na condução daquela (como Abelardo pretendia ser como guia espiritual de
Heloísa). Os perigos da presença das mulheres, nos textos de Pierre le Mangeur, Robert
de Liège e Hugues de Saint-Victor, concorrem para a redenção da culpa masculina na
fornicação.

Identificam-se com Adão a quem Eva estende a maçã. O que era o fruto proibido? O corpo dessa
mulher, suave e delicado ao olhar, deleitável. Sabem o que é ser tentado e estão cheios de
indulgência para com Adão. Sua tendência é de minorar a culpabilidade do homem e, assim, sua
própria culpabilidade. Como resistir, cercados por tantas mulheres oferecidas?40

A construção de uma moral condicionada ao combate dos vícios e à manutenção


do controle das filhas de Eva, ultrajadas por seu sexo, propõe meios de controle dos

38
DUBY, G. Eva e os padres. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
39
Ibid., p. 39.
40
Ibid., p. 64.
18

vícios femininos, dentre os quais se destacam a vaidade, a luxúria, a insubordinação e a


prática de magia, a fim de moldarem-se as damas segundo as orientações de seus
senhores. A mulher poderia subtrair suas culpas com a castidade ou, para aquelas
casadas, com a moderação da conduta sexual, destinada exclusivamente à reprodução.
As mulheres deveriam superar sua condição inferior, elevando seu espírito ao Altíssimo,
pois este era também seu marido, e o mais importante.
Neste momento, o casamento é afirmado pela Igreja como o sétimo sacramento,
paralelamente às transformações nas condutas dos homens, frente às uniões consensuais
desenfreadas e repúdio de esposas, servindo também às motivações da nobreza de
afirmar suas linhagens e a transmissão hereditária do poder. Ressalta-se então o
principal elemento de resgate das pecadoras contido nas Escrituras:

A mulher ouça a instrução em silêncio, com espírito de submissão. Não permito à mulher que
ensine nem que se arrogue autoridade sobre o homem, mas permaneça em silêncio. Pois o
primeiro a ser criado foi Adão, depois Eva. E não foi Adão que se deixou iludir, e sim a mulher
que, enganada, se tornou culpada de transgressão. Contudo, ela poderá salvar-se, cumprindo os
deveres de mãe, contanto que permaneça com modéstia na fé, na caridade e na santidade.41

A salvação da mulher através da maternidade aponta para sua principal função:


a procriação, condicionadora do casamento e de sua relação com o sagrado. Mas a
fêmea, ambivalente, não é somente portadora da vida, também carrega a morte.
Martins analisa a maternidade associada às representações da malignidade feminina,
discutindo a junção dos elementos de repúdio e de louvor em uma mulher que, tal
qual uma feiticeira que tentava os homens e poderia desviá-los do caminho da glória,
ou que se aproxima do modelo ideal da masculinização, gera um rebento maligno,
mas não é condenada por trazê-lo ao mundo, pois o mata em redenção.42
No Medievo, observamos o relevo acentuado da imagem da mãe sofredora com
seu filho aos pés da cruz; nas palavras de Jacques Dalarun, a “uma Eva inonimada opõe-
se uma Maria inacessível”.43 Salva-se uma imagem positiva de determinado tipo de
mulher, compensando Eva por Maria (Ave, a inversão da primeira), na oposição entre

41
BÍBLIA, N. T. I Timóteo. Português. Bíblia Sagrada. op. cit. Cap. 2, vers. 11-15.
42
Examinando a linguagem cinematográfica, a autora escreve acerca da protagonista de Alien:
“Ela não deixa de ser a representação da mulher poluidora, mas ao tomar consciência de que gesta o
Mal passa a ser salvadora, mesmo que o preço da salvação seja a sua morte. O martírio da tenente
Ripley, portanto, articula representações diferentes da mulher em torno do embate mítico do Bem e do
Mal, reabilitando a figura feminina que desde as primeiras narrativas cristãs esteve associada ao Mal.”
MARTINS, A. P. V. O martírio da tenente Ripley: a mulher e o Mal no cinema de ficção científica. In:
Cadernos de Pesquisa e Debate. Representações de gênero no cinema. N. 2, dez. 2003. Núcleo de
Estudos de Gênero da Universidade Federal do Paraná.
19

carne e espírito. O século XIII com os mendicantes, sobretudo franciscanos, apresenta o


triunfo da mulher como mãe e realça a imagem da Virgem da dor, de modo que a
purificação de Maria torna-se santificação.
As mulheres destacam-se no plano religioso. Insurgem em movimentos
heréticos, ordens ou mesmo fora da instituição, em conjunto com seu papel na
sociedade intermediado pelo pai ou marido, figuras do protetor e decisor. Ocorre no
período um apelo por determinados setores da Igreja ao cristianismo primitivo, que
tendia a refletir uma igualdade entre homens e mulheres. Jesus cercou-se de mulheres,
destacando-se a meretriz, encarnação do pecado, sendo elas as primeiras a
testemunharem a ressurreição. Contudo, a elevação da mulher encontrou dificuldades de
ser posta em prática nas sociedades patriarcais e no contexto cultural onde foi difundida.
Sua figuração poderia ser indispensável, mas permanecia subjugada.
As heresias, cujo alcance era acompanhado da perseguição, forneceram os
elementos que construíram o estereótipo do sabbat e da bruxa e, ainda no século XII, é
relatada a ligação entre o Diabo, hereges e desvios sexuais.44 Jeffrey Richards apresenta
a grande participação de mulheres nos movimentos heréticos em virtude de uma série de
fatores que intervieram conjuntamente ao chamamento para o ascetismo: maior
porcentagem de mulheres nas populações, as poucas vocações que lhes eram destinadas
e a não-ordenação. Assim, seitas como a cátara e a valdense, que propunham igualdade
e ampla participação, poderiam representar um meio de promoção social.45
Esses elementos apontam para uma certa valorização da mulher, com a exaltação
da Virgem Maria e também com o amor cortês. Entretanto, a adoração da primeira
levou à reprimenda da sexualidade; e o amor cortês, embora tenha promovido uma
adoração do feminino, exaltou uma imagem da perfeição, a idealização de um modelo
de mulher irreal, não do conjunto feminino, permanecendo inalterada a estrutura social.
A passagem do amor cortês ao amor platônico marca uma acentuação das
características negativas da mulher real, apontando para sua demonização, como se vê
na produção de Petrarca:

43
DALARUN, J., op. cit., p. 39.
44
Richards, op. cit., apresenta as várias heresias que, durante o Medievo, rebelaram-se contra a
ortodoxia, sendo, na maioria, decorrentes da crise de materialismo após o milênio. O autor mostra como
valdenses, cátaros, publicani, beguinos, amalricianos, pseudo-apóstolos, hussitas e milenaristas, entre
outros, que pregavam a castidade e a pobreza, foram satanizados pela Igreja e apresentados como
desviantes sexuais.
45
Ibid., p. 80.
20

A mulher [...] é um verdadeiro diabo, uma inimiga da paz, uma fonte de impaciência, uma
ocasião de disputas das quais o homem deve manter-se afastado se quer gozar a tranqüilidade
[...]. Que se casem, aqueles que encontram atrativo na companhia de uma esposa, nos abraços
noturnos, nos ganidos das crianças e nos tormentos da insônia [...]. Por nós, se está em nosso
poder, perpetuaremos nosso nome pelo talento e não pelo casamento, por livros e não por filhos,
com o concurso da virtude e não com o de uma mulher.46

A mulher da Renascença, herdeira da misoginia medieval e do medo


disseminado pelos pregadores, é encarada como um “mal necessário” cuja lascívia
representa uma “tentação natural” ao homem, possuidor de uma natureza menos carnal.
Paradoxalmente objeto de devoção e medo, nela se conjugam passividade e luxúria,
idealização e marginalização, permanecendo à sombra da figura masculina como um
“segundo sexo”.
A abundante literatura hostil à mulher, assim como a influência crescente da
imprensa, acarretou no aumento do impacto das pregações após as reformas religiosas,
tendo grande alcance popular. Os sermões, que procuravam tipologizar a mulher,
colocam-na como um “diabo doméstico” e propagam o medo do feminino na
mentalidade coletiva, de modo que “toda a Igreja discente foi convidada a confundir a
vida dos clérigos e a vida dos leigos, sexualidade e pecado, Eva e Satã”.47
Diversos manuais foram redigidos com o propósito moral de ensinar sobre a
verdadeira natureza maléfica das mulheres. Um dos maiores instrumentos de combate
ao feminino, empregado a partir do século XIV, foi o De planctu ecclesiae, redigido
pelo franciscano Alvaro Pelayo a pedido de João XXII, em torno de 1330, sendo
reeditado por várias vezes. Dirigido a todos os fiéis, foi utilizado principalmente pelo
corpo sacerdotal, encarregado de guiar a consciência de seu rebanho. De acordo com
seus argumentos principais, Eva é a pecadora que provocou a perda do paraíso, desse
modo a mulher é a perdição, é a ‘arma do diabo’ que atrai o homem com seus ardis a
fim de arrastá-lo para a luxúria.
Pelayo apresenta as mulheres como um conjunto de advinhas, que produzem
poções mágicas, usam ervas, lançam mau-olhado, são capazes de matar seus filhos, e
auxiliam em adultérios. É a mulher a culpada por um homem cometer apostasia, já que
é idólatra. A mulher é ‘insensata’, ‘lamurienta’, ‘inconstante’, ‘ignorante’, ‘tagarela’,
‘briguenta’, ‘colérica’, ‘invejosa’, ‘quer tudo ao mesmo tempo’. ‘Ela despreza o
homem, então é preciso não lhe dar autoridade’, devendo-se sempre desconfiar de seres
tão vis, que com suas conversações e sua imbecilitas perturbam a harmonia das missas e

46
PETRARCA apud DELUMEAU, J., op. cit., p. 319.
21

sermões. A repetição de argumentos há muito difundidos tem, neste escritor


franciscano, um caráter inovador pela preocupação em cuidadosamente fundamentar a
obra nas Escrituras e pela dedicação à disseminação das verdades religiosas a um
público amplo.48
A malignidade inerente à mulher a colocará como principal agente do Diabo no
mundo, buscando o aniquilamento da humanidade através da bruxaria. Jean Delumeau
relata que treze tratados sobre o tema foram escritos entre 1320 e 1420, e vinte e oito
entre 1435 e 148649, ficando patente o crescimento das preocupações em torno da
temática. Dentre estes tratados, o que obteve maior influência, juntamente com a obra
de Kramer e Sprenger, consiste no Formicarius (1435-7), de Johannes Nider, prior dos
dominicanos da Basiléia, a primeira obra a enfatizar as mulheres como feiticeiras,
colocando-as como especialistas em filtros de amor, raptos de crianças e antropofagia.
Mostra-se evidente que em um período no qual confluíram pestes, cismas,
guerras e o pânico da eminência do final dos tempos, quando a Igreja lutava para
consolidar e apregoar valores como a castidade dentro do corpo sacerdotal, que a
reprimenda da libido resultaria em agressividade, e a direção mais óbvia que esta
poderia tomar seria a da mulher, já inferiorizada e ameaçadora. “Seres sexualmente
frustrados que não podiam deixar de conhecer tentações projetam em outrem o que não
queriam identificar em si mesmos.”50
As mulheres como uma ameaça e uma negação da continência são apresentadas
como armadilhas demoníacas, e a visão do feminino que foi insistentemente construída
pelo cristianismo, e introjetada nas estruturas sociais do Medievo, servirá da mesma
forma à construção da imagem da bruxa. Os “homens de Deus” lançaram as
perseguições contra a herege que teve sua natureza, motivações, práticas e modo de ser
combatida minuciosamente relatados no Malleus Maleficarum.

47
DELUMEAU, J., op. cit., p. 322.
48
Ibid., p. 322-6.
49
Ibid., p. 353.
50
Ibid., p. 320. O autor apresenta um interessante número referente à Baviera contemporânea a
Trento, quando se verificou na região que somente 3 ou 4% dos padres não possuíam concubinas.
22

CAPÍTULO II. A demonologia e o mais divulgado manual da Inquisição: o


Malleus Maleficarum.

A junção da misoginia cristã ao pânico desencadeado pela presença constante do


Diabo levou à culpabilização da mulher, agente do Mal, enquanto responsável pelas
agruras que afligiam os homens de fins do Medievo e inícios da Idade Moderna. O
período conhecido como “outono da Idade Média”, séculos XIV e XV, assinala intensas
crises que assolaram a sociedade européia, paralelamente ao extravasamento da imagem
obsedante de Satã dos universos eclesiásticos para os universos laicos e à afirmação da
crença na bruxaria.
A singularidade que o Demônio e o Inferno adquirem neste momento,
impregnada no imaginário coletivo e nos valores de uma sociedade em constante
transformação, produzirá, para Robert Muchembled, uma nova identidade coletiva do
Ocidente, em torno do cristianismo unificador que se impunha sobre múltiplos poderes
locais conflitantes. O crescimento do medo corresponde ao crescimento do poder
simbólico da Igreja, que constrói a imagem do Maligno e da feiticeira num combate
acirrado aos resquícios do paganismo demonizado. “Arma para reafirmar em
profundidade a sociedade cristã, a ameaça do inferno e do diabo aterrador serve como
instrumento de controle social e de vigilância das consciências, incitando à
transformação das condutas individuais.”1
As crenças populares, tomadas como “superstições” pela religião inconteste,
eram incapazes de fornecer todos os elementos que foram agrupados num universo
demoníaco estruturado. Assim, teses como de Margaret Murray, que tomou o
sincretismo religioso ainda presente como um elemento de distinção ao cristianismo e,
mais recentemente, de Carlo Ginzburg2 que, seguindo os rastros da antropóloga,

1
MUCHEMBLED, R. Uma história do Diabo: séculos XII-XX. São Paulo: Bom Texto, 2001.
p. 36.
2
A esse respeito ver: GINZBURG, C. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Cia. das
Letras, 1991, e _____. Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São
Paulo: Cia. das Letras, 1989. Neste, o autor coloca os benandanti em franca oposição à Igreja, como uma
força concorrente; porém, os próprios não se pensavam assim, podiam ser colocados dentro do estereótipo
do sabbat por força de interrogatórios sugestivos, mas não se compreendiam como desagregadores da
unidade católica. Tomando um testemunho, com alguns elementos próximos aos benandanti, Ginzburg
aponta “um núcleo de crenças bastante coerente e unitário” (p. 79), mapeando semelhanças dispersas em
um amplo território, apontando uma única e ancestral origem. A partir de um caso isolado, do lobisomem
lituano, que fornece indícios sobre crenças no mundo dos mortos, afirma: “é evidente que nos
encontramos diante de um único culto agrário que, a julgar por essas sobrevivências tão distanciadas entre
si – a Lituânia, o Friul – deve ter-se difundido numa área bem mais vasta, talvez em toda a Europa
central.” (p. 52).
23

remonta elementos folclóricos dispersos numa crença única anticristã que se impunha
em todo o continente, merecem análises cuidadosas, pois tratam de populações que
foram cristianizadas e se pensavam dentro do sistema cristão, mesmo com fundos
culturais pagãos ainda não assimilados de todo, especialmente nas áreas campesinas.

as populações se consideravam cristãs e não tinham o sentimento de aderir a uma religião


condenada pela Igreja. E devem ter sido muito surpreendidas pela aculturação intensiva
conduzida na Europa pelos missionários das duas Reformas que, eles sim, viram paganismo por
toda parte. Este era há muito tempo um espelho partido, um universo rompido. Certamente
subsistiu em nomes deformados de divindades e sob a forma de mentalidades e de
comportamentos mágicos, mas sem panteão um pouco organizado que fosse, nem sacerdotes (ou
sacerdotisas), nem corpos de doutrina. Era talvez vivido, mas não era pensado nem desejado.3

A junção do pensamento eclesiástico e da imaginação popular formou um


“corpo de doutrina angustiante”,4 que culmina no século XV com a demonologia,
conjunto das obras elaboradas pela Igreja que procuravam provar a presença do Diabo
na Terra e sua ação por intermédio das bruxas, relacionando diretamente o Mal à
mulher, fundamentando-se, sobretudo, em Tomás de Aquino. A malignidade de todos
os demônios já havia sido estabelecida, de maneira que antigas tradições estruturadas
dentro de um sistema mental que comportava o elemento mágico – como a crença nos
daimones, espíritos de proteção familiar – viram-se transplantadas para a esfera do Mal
no sistema cristão. E tal aculturação certamente surpreendeu inúmeros indivíduos
convocados a testemunhar diante de juízes que não compartilhavam do mesmo fundo
cultural.
As práticas mágicas, durante a Alta Idade Média, foram vistas com indulgência
pela Igreja, que se colocou contra as perseguições de mulheres e afirmava serem
ilusórias as antigas crenças em cavalgadas noturnas ordenadas por Diana ou pelo
próprio Satã. Burchardo de Worms cita em suas instruções aos clérigos como punir os
recorrentes às superstições: ‘Acreditastes ou participastes nesta impiedade, que uma
mulher por malefícios e encantamentos pode transformar a mente dos homens,
transformando ódio em amor e amor em ódio, e através de feitiços possa roubar ou
destruir os bens humanos? Se acreditastes ou participastes um ano de penitência nas
festas legítimas.’5

3
DELUMEAU, J., op. cit., p. 373.
4
MUCHEMBLED, R., op. cit., p. 50.
5
Apud NOGUEIRA, C. R. F. Bruxaria e História: as práticas mágicas no Ocidente cristão. São
Paulo: Ática, 1991. p. 28.
24

Contudo, havia uma tradição eclesiástica, expressa fundamentalmente por


Agostinho, que observava vividamente as práticas mágicas, reunindo-as em um mesmo
grupo maligno, desconsiderando suas diferenças (como a magia propriamente, a goecia
e a teurgia) e colocando-as como produtoras de sortilégios e encantamentos
demoníacos. Em fins do século XII, com a afirmação de heresias que arrebanhavam os
fiéis do clero católico, a Igreja adota uma nova posição quanto à complacência,
procurando reprimir os vínculos com um universo não ortodoxo que rivalizava com seus
ensinamentos. A diabolização dos hereges é verificada na primeira descrição do beijo
satânico por Walter Map, perseguidor dos publicani que atingiram a Inglaterra, em De
Nugis Curialium, escrito entre 1181-1192.

Ao cair da noite (...) cada família se senta esperando em silêncio em cada uma de suas
sinagogas; e então desce por uma corda pendurada no centro um gato negro de proporções
assombrosas. A esta visão, apagam as luzes e não cantam ou repetem hinos de modo distinto,
mas murmuram-nos entre os dentes cerrados, e encaminham-se para perto do lugar onde viram
seu mestre, tateando para encontrá-lo, e, quando o encontram, o beijam. Quanto mais quentes
seus sentimentos mais baixos serão seus alvos; alguns preferem seus pés, mas a maioria a cauda
e as partes pudentas. Então, como se esse contato daninho libertasse seus apetites, cada um se
deita abraçado ao vizinho e se satisfaz dele ou dela com todas as suas forças. Seus anciãos sem
dúvida sustentam, e ensinam a cada novato, que o amor perfeito consiste em dar e tomar,
consoante possam o irmão ou irmã solicitar ou exigir, cada um saciando o fogo do outro.6

Em 1231, Gregório IX nomeia o primeiro inquisidor oficial da Alemanha,


Conrad de Marburgo, que lutava contra uma seita satânica secreta próxima do
estereótipo do sabbat: os iniciados beijavam o traseiro de um sapo ou de um gato preto,
homenageavam “um homem pálido, magro e frio como gelo”, adoravam a Lúcifer e se
entregavam a orgias, e na Páscoa, em especial, recebiam o corpo de Cristo para cuspi-lo
nas “imundícies”.7
A vinculação da acusação de heresia a grupos ou indivíduos rivais da ordem
estabelecida é observada já nos primeiros processos contra aqueles que se acreditava
serem aliados do Diabo: os templários, processados entre 1307 e 1314, foram torturados
até que a Igreja obtivesse a confissão de que renegavam Cristo; um bispo de Troyes
recebeu a acusação de ter usado magia para matar a rainha da França; Enguerrand de
Marigny, guarda do tesouro de Felipe, o Belo, foi enforcado em 1315 sob a acusação de
ter tentado provocar a morte do rei utilizando-se de mágicos e bonecos de cera. Diante
de tais acontecimentos que escandalizavam a ortodoxia cristã, o papa João XXII, na

6
Apud RICHARDS, J., op. cit., p. 70.
7
DELUMEAU, op. cit., p. 351.
25

bula Super illius specula de 1326, equivale os malefícios à feitiçaria diabólica, sendo
esta doravante considerada heresia, legitimando a perseguição inquisitória.8
Entre 1330 e 1340, em um processo contra feiticeiros de Toulouse, aparece pela
primeira vez o termo sabbat referindo-se às reuniões de bruxas e demônios, que
permanecerá aludindo a tais encontros, juntamente com “sinagoga”, em uma associação
clara com os judeus, minoria que intentava contaminar a sociedade dentro da ótica
cristã. Sob tortura, as mulheres acusadas afirmaram adorar Satã, encarnado em um bode,
e renegar Cristo, profanar a hóstia e os cemitérios em seus encontros noturnos, quando
se entregavam a todo tipo de libertinagem.9 Mesclam-se elementos pagãos demonizados
pela Igreja e as ofensas ao sagrado cristão, destacadamente as orgias que lesavam o
prescrito resguardo dos corpos, construindo-se uma imagem que terá elementos
acrescidos, mas cuja essência permanecerá ao longo da caça às bruxas.
O crescimento das acusações de heresia passa a atingir grupos religiosos
discordantes, e os conflitos internos do papado expressos no Grande Cisma (1378-1417)
e no Concílio de Basiléia (1431-49), que subordina o papa, revelam uma Igreja em crise
com múltiplos grupos de interesses, que viam seus adversários como heréticos ou ao
menos procuravam lhes impingir tal estigma. A literatura surgida das reflexões do
Concílio, destacadamente o Formicarius de Nider, juntamente aos processos contra a
vauderie (seita constituída pelos seguidores de Pierre Valdo), assinalam a padronização
dos relatos acerca dos grupos heréticos – pacto diabólico, orgias, infanticídio,
malefícios.
Norman Cohn insere o sabbat a partir da disseminação da propaganda
eclesiástica contra as minorias heréticas ainda no início do século XI, quando a Igreja
diabolizou os participantes de uma seita em Orléans, condenando-os à morte na
fogueira. Os estereótipos do culto satânico desenvolvem-se a partir de então, unindo
tradições populares de origens pagãs até então tida como ilusórias – como a crença dos
romanos nas strigae e, especialmente na Idade Média, nas ‘damas da noite’10 –, magia,
bruxaria e culto ao Demônio.11

8
Ibid., p. 351-2.
9
Ibid., p. 352.
10
Grupos de espíritos femininos que eram vistos ora como benéficos, ora como maléficos,
comandados por uma divindade nomeada Diana, Holda, Heródias ou Abundia (dama Abonde). Os
camponeses deixavam comida e bebida na soleira de suas portas durante a noite, especialmente no dia de
Finados (2 de novembro), de maneira a não lhes despertar a fúria. Maiores informações em: GINZBURG,
C. Os andarilhos do bem..., p. 63-7; RICHARDS, J. op. cit., p. 86-7.
11
RICHARDS, J., op. cit., p. 86.
26

Para Muchembled, o termo vauderie, que designava heresia de modo geral,


passa a evocar diretamente o sabbat entre 1428-30 justamente nas terras do duque de
Savóia-Piemonte, que viria a ser eleito o antipapa Félix V em 1439, fato devidamente
inserido pelo autor nas querelas entre papas e antipapas que dividiam a cúpula cristã. O
impulso da identificação dos inimigos e sua elevação ao nível da traição maior, a
renúncia a Deus e a Cristo, adquire então uma nova luz, revelando um “excesso de
tensões, característico de uma Igreja em crise até 1449. A concentração em um inimigo
simbólico talvez tenha servido, ao mesmo tempo, para relaxar a pressão interna geral e
para expressar a legitimidade e a ortodoxia dos grupos de influência envolvidos,
particularmente eclesiásticos, que cercavam o antipapa Félix V.”12
A literatura acerca da feitiçaria começa a se infiltrar nos meios laicos
coincidentemente com Martin Le Franc, secretário do duque de Savóia, que escreve a
primeira obra em francês sobre a temática, com um teor altamente misógino,
dissimulado sob o título Defensor da Causa das Mulheres.13 As idéias que
caracterizavam as heresias expandem-se, e os processos contra feitiçaria alastram-se nas
áreas que foram atingidas pelos valdenses, mostrando que “era a repressão que
alimentava a demonologia teórica e esta se estiolava rapidamente se os casos concretos
não se multiplicavam.”14
A proliferação dos tratados acerca das heresias e da feitiçaria impulsionou as
perseguições. Entretanto, os tribunais e a divulgação dos delitos ao invés de reprimirem
a bruxaria contribuíram para a propagação das crenças. Os inquisidores, mediante
muitos testemunhos fantasiosos, encontravam nos culpados as causas das mazelas
sociais, e a captura e punição das bruxas comprovavam a existência das práticas
mágicas e a realidade da bruxaria, justificando a repressão.
Diante da incredulidade de clérigos e leigos quanto aos malefícios e do assalto
das forças demoníacas em algumas regiões da Alemanha, o papa Inocêncio VIII, na
bula Summis desiderantes affectibus divulgada em 09 de dezembro de 1484, delega
plenos poderes aos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger15 para agirem de
acordo com suas atribuições, sem quaisquer impedimentos. Os dois inquisidores, que
vinham encontrando resistências locais, afirmavam terem se deparado com toda sorte de

12
MUCHEMBLED, R., op, cit., p. 55.
13
Ibid., p. 53-6.
14
Ibid., p. 80.
27

maquinações diabólicas – ação de íncubos e súcubos, abortos, destruição de plantios,


perseguição de homens, mulheres e animais, quebra da força reprodutora e das relações
sexuais entre esposos. E, sobretudo, a renúncia à fé católica. Kramer e Sprenger passam
a contar diretamente com o apoio papal, que determina a recorrência aos juízes
seculares em caso de necessidade e o estabelecimento da pena de acordo com a ofensa
cometida.16
O pronunciamento papal, “carta constitutiva da caça às bruxas”17, abre a maioria
das edições do Malleus Maleficarum, obra apresentada às autoridades teológicas e
lavrada em 1486, vindo a se constituir no guia dos inquisidores até o final de sua
atuação na caça às bruxas. Sua audiência alcançou toda a Europa ocidental, sendo
utilizado não somente nos países católicos, mas também nos que passaram pela
Reforma e adotaram o protestantismo, e tanto por juízes eclesiásticos como por
seculares.
Em um período em que a Igreja e o Estado caminhavam juntos, este se utilizou
tanto do poder temporal como do religioso, empregando a linguagem da Igreja. Os
eclesiásticos forneceram a ideologia e o poder civil estabeleceu as armas de repressão,
dessa forma, o Malleus tornou-se o principal instrumento para a condenação de
mulheres acusadas de bruxaria. A ampla difusão da obra é registrada nos seguintes
números por Robert Muchembled:

Segundo um recenseamento feito com base em grandes catálogos de bibliotecas, a obra teve pelo
menos 15 edições até 1520, quase todas nas cidades do Reno ou em Nuremberg, salvo duas em
Paris, em 1497 e 1517, e em Lyon, em 1519. Se calcularmos a uma tiragem média de 1.000 a
1.500 exemplares por edição, isso significa que mais de 20.000 exemplares do livro puderam
circular antes da Reforma, alguns milhares dos quais na França, o resto no Santo Império. O
tratado passou abruptamente de moda entre 1520 e 1574, depois experimentou uma segunda
vida, com 19 outras edições conhecidas, das quais três em Veneza, de 1574 a 1579, e dez em
Lyon, entre 1584 e 1699.18

O início do século XVI vê o medo do Diabo se intensificar, o que resulta numa


implacável perseguição que só é interrompida diante de um mal maior: a Reforma.
Diminui então o número de processos contra a feitiçaria e de edições do Malleus
Maleficarum, identificando-se a quebra nas vendagens. Apoderando-se do mito criado

15
Os referidos eclesiásticos são encontrados em diversas obras nomeados como Henry Institoris
e Jacques ou Jacob Sprenger, entretanto, sigo aqui com os nomes que constam na tradução do Malleus
Maleficarum que utilizo.
16
KRAMER, H.; SPRENGER, J. O martelo das feiticeiras – Malleus maleficarum. Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991. p. 43-6.
17
SALLMANN, J-M. As bruxas: noivas de Satã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 32.
28

pelos católicos, os reformadores vêem emergir nas terras de Lutero uma influente
cultura de medo e desconfiança do Demônio, atiçada pelo pavor da iminência do Final
dos Tempos.
Como visto, a centralização dos autores na região renana não impediu a
utilização de seu tratado em um amplo território e em diferentes momentos da
perseguição às feiticeiras. Ambos dominicanos e professores de teologia, embasaram-se
em uma longa tradição que vinculava o mal à mulher, estabelecendo uma ligação direta
entre a heresia e a feitiçaria, e esta com a agente favorita do Diabo. A análise do
conteúdo do manual permite retomar diversos elementos significativos nesse processo,
que irá tornar o discurso misógino estereotipado na Idade Moderna.
Henry Kramer (?1430 – ?1505), prior do convento de Selestat, feroz inquisidor
em áreas da Alemanha do Norte, atuou nas dioceses de Mainz, Colônia, Trèves,
Salzburg e Bremen, áreas que recebiam idéias humanistas e transformações artísticas e
culturais, além dos discursos eclesiásticos. “O confronto entre as formas de expressão e
os tipos de pensamento, entre o antigo e o novo, aí se exacerbava.”19
Conseqüentemente, as heresias eram vistas mais intensamente, e Kramer perseguiu,
além das bruxas, hussitas e valdenses, jamais sendo encontrando após partir para uma
investigação (o que relembra o destino de alguns inquisidores que vieram a ser
assassinados no exercício de sua temida missão, como Conrad de Marburgo). É o
principal, senão único, elaborador da obra.
James Sprenger (1436 – 1496), nasceu nas proximidades da Basiléia e estudou
em Colônia, tornando-se prior do convento dominicano da mesma cidade. Sua atuação
como inquisidor deu-se às margens do Reno, nas dioceses de Salzburg, Bremen, Trèves
e Mayence. Jean-Michel Sallmann aponta-o como um estudioso de grande autoridade
devotado a sua ordem, desempenhando funções administrativas, mas limitado em sua
esfera de ação como inquisidor.20 Tal fato denuncia a pouca participação na redação do
Malleus junto a Kramer, sendo no certificado de aprovação da obra “especialmente
apontado como colaborador do primeiro”.21
Obra máxima produzida pela mania persecutória da Inquisição, o Malleus
Maleficarum é composto por três partes que atestam a ação demoníaca no mundo

18
MUCHEMBLED, R., op. cit., p. 61.
19
Ibid., p. 62.
20
SALLMANN, J-M., op. cit., p. 33.
21
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 518. Grifo meu. Entretanto, Robert Mandrou cita
freqüentemente Sprenger como autor do Malleus, omitindo Kramer na autoria.
29

através de seus agentes – a bruxa ou o bruxo, sendo a mulher sensivelmente mais atraída
por Satã do que o homem. A primeira parte, “Das três condições necessárias para a
bruxaria: o Diabo, a bruxa e a permissão de Deus todo-poderoso”, trata de enaltecer o
Anjo Negro e atribuir-lhe poderes imensos (permitidos por Deus), ligando a ele a prática
da bruxaria que resulta, sobretudo, da fraqueza feminina. Na segunda parte, “Dos
Métodos Pelos Quais se Infligem os Malefícios e de que Modo Podem ser Curados”, os
autores explicitam as maneiras de se firmar o pacto com o Tinhoso e diversos exemplos
de malefícios. Para estes são determinados castigos proporcionais na terceira e última
parte da obra, “Que Trata das Medidas Judiciais no Tribunal Eclesiástico e no Civil a
Serem Tomadas Contra as Bruxas e Também Contra Todos os Hereges.”
A apresentação de argumentos contrários ao pensamento dos demonólogos, que
os refutam baseando-se em diversos textos, colocando seu raciocínio como a verdade
absoluta, permeia a disposição da obra. A descrença nos postulados estabelecidos é
vivamente considerada manifestação herética, submetendo ao juízo divino, representado
pelos poderes religioso e secular, a purgação dos culpados, que infectam toda a
sociedade com suas ofensas ao Criador. Pois “qualquer homem que erra gravemente na
interpretação das Sagradas Escrituras é corretamente considerado herege. E quem quer
que pense de outra forma a respeito de assuntos pertinentes à fé que não de modo
defendido pela Santa Igreja Romana é herege. Eis a verdadeira Fé!”.22
A renúncia à fé católica ou a negação de alguns postulados, a dedicação ao mal,
a oferenda de crianças não batizadas ao Demônio, a lascívia de íncubos e súcubos:
comportamentos padrões dos acusados de bruxaria, atormentam a boa consciência cristã
que deve se dedicar ao extermínio da pior das heresias, vendo-se em toda prática mágica
e comportamento desviante o resultado da união com o Mal. Neste quadro, foram
estabelecidos como erros heréticos afirmar que feitiçaria e magia não existem; que seus
produtos são obra da imaginação; que mesmo acreditando no auxílio de Satã às bruxas,
algumas pessoas tomam suas ações como imaginárias.
Desta feita, ficaram subjugadas e passíveis de condenação por heresia quaisquer
tendências que tomassem as confissões, espontâneas ou arrancadas, como fantasiosas, o
que nesse momento, século XV, ainda de exprimia raramente. Somente a partir do
século XVII, com os escândalos que atingiram religiosas de origem nobre ou burguesa

22
Ibid., p. 53.
30

em conventos na França,23 bem como com o início do esclarecimento das elites e dos
tribunais civis, exprimiu-se mais abertamente a refutação à ortodoxia.
A rigidez da crença na realidade dos atos mágicos é consubstanciada pelos
autores com as Escrituras, nas quais apreende-se que “os demônios têm poderes sobre o
corpo e sobre a mente dos homens quando Deus lhes permite exercê-los”24; com os
Cânones, que citam mulheres que imaginavam cavalgar durante a noite com Diana ou
Heródias – na verdade o Demônio, que lhes insufla a imaginação ou toma a forma das
deusas pagãs; e com as Decretais do Direito Canônico 33, que registram a bruxaria, a
ação demoníaca mediante permissão divina e a influência do mais forte sobre o mais
fraco, sendo o Diabo mais forte que o homem.
Os males naturais podem ser diferenciados dos causados por bruxaria através da
opinião médica, quando não há cura e se a doença só faz aumentar.25 Comprovada a
existência de bruxaria, a condenação das bruxas é defendida segundo três leis essenciais
pelos autores: as leis divinas, as religiosas e as civis. De acordo com as leis divinas,
expressas por S. Tomás e S. Agostinho, e pelo Antigo Testamento, as bruxas que
firmaram o pacto negro devem receber a pena de morte caso tenham cometido
atrocidades, se não, a pena de morte da alma. Conforme se lê em Levítico: “Se alguém
se dirigir aos espíritas ou aos adivinhos para fornicar com eles, voltarei meu rosto contra
esse homem e o cortarei ao meio de seu povo”, e “Qualquer homem ou mulher que
evocar os espíritos ou fizer adivinhações, será morto. Serão apedrejados, e levarão sua
culpa.”26
As leis eclesiásticas estabelecem diversas punições, adequadas a cada crime –
perda da comunhão, penitência por 40 dias, se clérigo será rebaixado, se leigo será
excomungado –, mas diferenciam a gravidade dos crimes em termos de bruxaria e
adivinhação, feita em público ou sigilo. As leis civis devem submeter magos e
feiticeiros à pena de morte, igualando seus crimes aos de heresia e lesa-majestade.
“Porque bruxaria é alta traição contra a majestade de Deus.”27

23
A esse respeito ver MANDROU, R. Magistrados e feiticeiros na França do século XVII.
São Paulo: Perspectiva, 1979.
24
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 51.
25
Os autores citam a prática corrente de se derramar chumbo derretido em uma bacia com água
e, se formar uma imagem, é comprovada a bruxaria, o que ocorre em virtude da influência de Saturno.
Mas este meio não é considerado lícito, dada a superstição que o envolve, sendo ilícito curar bruxaria com
bruxaria.
26
BÍBLIA, V. T. Levítico. Português. Bíblia Sagrada. op. cit. Cap. 20, vers. 6 e 27.
27
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 55.
31

Os autores prescrevem a tortura indiscriminadamente, sem diferenciar “classe,


posição ou condição social” – porém, expressam a existência de uma distinção na
honestidade de ricos e pobres, pois estes, convivendo com o crime e a maldade, tendem
a ser menos probos –, punindo com o exílio e o confisco de bens aqueles que
procurarem as bruxas. Dentre as provas de heresia são determinantes a exposição
pública de erros de entendimento, testemunhos e confissão. Diferenciam-se os que
pecaram voluntariamente dos que não têm consciência de seus erros, estes pecando mais
pela ignorância premeditada.
Para os representantes da fé, a busca pelas recompensas demoníacas atrai
especialmente a mulher, empenhando-se em identificá-la ao Diabo28, o grande
responsável pelo caos estabelecido no período. Pois a bruxaria contamina esta época de
pecado, sendo o pior dos castigos infligidos por Deus, multiplicando-se ferozmente as
bruxas que, de acordo com os autores do Malleus, existem desde cerca de 1400 a.C. A
leitura da obra direciona-se, desta forma, no sentido de resgatar o processo de
construção da imagem da agente do Maligno, através da reafirmação do jugo masculino
e da elaboração de novos estereótipos justificadores das calamidades que se abatiam
então sobre os homens.
Com as representações extraídas da cultura clássica, seja nas formas da
feminilidade aterradora, que estavam inscritas no inconsciente coletivo, seja com a
tradição aristotélica, central nas universidades, os autores buscaram classificações e
modelos que contribuíram para a estruturação do sabbat e da serva do Diabo.
Acrescentam-se as fontes teológicas empregadas, principalmente Agostinho e Tomás de
Aquino, e estão abalizadas as justificativas do combate aos desviantes da fé.
Kramer e Sprenger acenam a questão referente à possibilidade das mulheres
acusadas de bruxaria estarem, na verdade, sendo difamadas pelo Diabo. Mas “embora
os demônios possam denegrir a reputação de uma pessoa por causa de vários vícios aos
quais seja dada, não parece possível difamá-la por crimes que não poderiam ter sido
praticados sem a sua cooperação.”29 Ficam então eliminadas as dúvidas sobre a

28
Kramer e Sprenger apresentam de maneira bastante interessante a etimologia do Diabo,
revelando os sentidos dos nomes que comumente lhes são atribuídos: Diabolus (de dia, que significa dois,
e bolus, que significa partes), é aquele que corrompe o corpo e a alma, em grego equivalendo a “confinar
na Prisão”, podendo também denotar “Queda”. Demônio manifesta busca por sangue. Belial exprime
“Sem Jugo ou Soberano”. Belzebu é o “Senhor dos iníquos”. Satã representa “Adversário”. Beemot é “a
Besta”. Asmodeus, “a Criatura do Juízo e da Punição”, é o “diabo da fornicação”. Leviatã, o diabo que
retirou o nome do monstro mitológico que representa o orgulho, significa “Condecoração”. Mammon é o
“demônio que personifica a Avareza e a Riqueza”. Ibid., p. 93.
29
Ibid., p. 277.
32

inocência e a inculpação indevida das acusadas contra as quais se tenha obtido


quaisquer provas, ao que se acrescenta a argumentação de que Deus não admitiria a
punição de um inocente.
A exploração da figura feminina para a explicação dos fenômenos sobrenaturais
que pareciam atingir os homens de então se exprime sobremaneira com a grande
maioria de mulheres acusadas de bruxaria30, vistas em íntima associação com o oculto,
sendo consideradas mais crédulas e supersticiosas, assim, mais expostas às tentações
demoníacas. E, sobretudo, como é revelado pelos autores, “abençoado seja o Altíssimo,
Que até agora tem preservado o sexo masculino de crime tão hediondo: como Ele veio
ao mundo e sofreu por nós, deu-nos, a nós homens, esse privilégio.”31
As boas mulheres são, na obra, rapidamente comentadas, como as virgens e
santas, citando-se ainda os exemplos de Judite, Débora e Éster, e aquelas que ajudaram
na conversão, como Gisela, a Cristã devota, que converteu os húngaros, e Clotilde, que
converteu Clóvis e os francos. Estas devem ser louvadas, e seus atos ligam-se, para os
autores, à transformação do Velho Testamento para o Novo, de Eva para Ave. À parte
as poucas exemplares devotas e fiéis encontradas entre o “sexo frágil”, nele se observa o
maior número de praticantes de bruxaria, e de entregues à lascívia. Tal fenômeno é
explicado como resultante da débil disposição dos humores e do caráter da mulher.
A mulher é fraca por natureza: assim aprendemos com a leitura do Gênese. Pois
sendo Eva criada a partir da costela de Adão, “a mulher é contrária à retidão do
homem”, e, “em virtude dessa falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e
mente”.32 O diálogo com a serpente mostra sua tagarelice e, principalmente, sua pouca
fé no Criador, originando-se o termo femina de fe e minus – “por ser a mulher sempre
mais fraca em manter e em preservar sua fé. E isso decorre de sua própria natureza.”33 A
exceção encontrada é a personificação da pureza absoluta, a Virgem Maria.

30
Os autores citam uma única classe de bruxos extremamente poderosos – os bruxos arqueiros,
que agem na Sexta Feira Santa para denegrir o catolicismo. Os arqueiros lançam três ou quatro flechas no
crucifixo, de modo a poder atingir três ou quatro homens nesse dia (o 3 é o número preferido do Diabo,
simbolizando a Trindade atingida) causando-lhes a morte, com o auxílio de Satanás, a quem
homenageiam a fim de adquirir total poder. Freqüentemente se colocam a serviço de homens poderosos
que, enquanto seus patronos, devem ser punidos como heresiarcas. Existem bruxos que, como os
arqueiros, alvejam o crucifixo, mas para sua proteção e, além de se imunizarem, conseguem encantar suas
armas. Vemos assim que mesmo na bruxaria, própria das mulheres segundo os autores, a maior força
permanece sendo masculina.
31
Ibid., p. 121.
32
Ibid., p. 116.
33
Ibid., p. 117.
33

A Eva tentadora, quem tragou o destino de sua descendência para a morte, foi a
sedutora de Adão, o modelo do filho original. Este acabou por sucumbir aos encantos de
sua companheira que, como toda fêmea, usa de sua beleza enganadora. Portanto, não se
deve admirar uma mulher pela sua beleza, pois “embora seja bela aos nossos olhos,
deprava ao nosso tato e é fatal ao nosso convívio.”34 A mulher atrai com sua fala macia,
induzindo os homens à fornicação e ao adultério; “sua voz é como o canto das Sereias,
que com sua doce melodia seduzem os que se lhe aproximam e os matam. E os matam
esvaziando as suas bolsas, consumindo as suas forças e fazendo-os renunciarem a
Deus.”35
O feminino em geral apresenta entre suas principais características a ira. “Não
há veneno pior que o das serpentes; não há cólera que vença a da mulher. É melhor
viver com um leão e um dragão, que morar com uma mulher maldosa.”36 Seu
destempero a leva a inverter as posições de mando, ousando desafiar a autoridade do
marido, e, segundo Cícero, o homem torna-se escravo da mulher que o governa. O
perigo de ceder autoridade às mulheres é exposto com os exemplos daquelas que
destruíram reinos: Helena, Jezebel, Atália e Cleópatra ( “a pior de todas as mulheres”).37
Nesta linha, relembramos o Velho Testamento:

Grandes são a cólera de uma mulher, sua audácia, sua desordem. Se a mulher tiver o mando, ela
se erguerá contra o marido. (...) Foi pela mulher que começou o pecado, e é por causa dela que
todos morreremos. Não dês à tua água a mais ligeira abertura, nem à mulher maldosa a liberdade
de sair a público. Se ela não andar sob a direção de tuas mãos, ela te cobrirá de vergonha na
presença de teus inimigos. Separa-te do seu corpo, a fim de que não abuse de ti.38

Os sentimentos exacerbados da fêmea de pouco juízo a tornam um fardo para o


marido, que deve sempre estar atento para que ela não incorra em falta, atentando para
os ardis próprios de seu sexo. ‘A mulher ou ama ou odeia. Não há meio-termo. E as suas
lágrimas são falazes, porque ou brotam de verdadeiro pesar, ou não passam de
verdadeiro embuste. A mulher que solitária medita medita no mal.’39
A mulher deve permanecer, portanto, sob a tutela masculina, sendo ao mesmo
tempo subjugada e temida, procurando-se ocultar o medo de que se levantasse contra as

34
Ibid., p. 120.
35
Ibid., id.
36
BÍBLIA, V. T. Eclesiástico. Português. Bíblia Sagrada. op. cit. Cap. 25. vers. 22-3. “Malícia
da mulher”.
37
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 119.
38
BÍBLIA, V. T. Eclesiástico. op. cit., vers. 29-30 e 33-6. Grifo no original.
39
SÊNECA apud KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 115.
34

formas de opressão através de uma inferiorização contínua, que assegurava o controle


dos homens. Para estes, cabe à mulher cumprir as funções que lhe foram destinadas pela
“natureza”: servir-lhes e dar-lhes herdeiros. ‘Que há de ser a mulher senão uma
adversária da amizade, um castigo inevitável, um mal necessário, uma tentação natural,
uma calamidade desejável, um perigo doméstico, um deleito nocivo, um mal da
natureza, pintado de lindas cores.’40
A vaidade, a memória fraca, a indisciplina e a impulsividade tornam o espírito
feminino suscetível às tentações demoníacas, devendo o homem ser seu guia e conduzi-
la no caminho do bem, ‘pois que a raiz de todos os vícios da mulher é a cobiça.’41
Cobiça pelas riquezas materiais, pela satisfação dos desejos carnais, pelo poder. Mas
sua cobiça não se limita ao desejo, ela inveja e busca vingança, motivos comuns para a
prática da bruxaria. “E, com efeito, assim como, em virtude da deficiência original em
sua inteligência, são mais propensas a abjurarem a fé, por causa da falha secundária em
seus afetos e paixões desordenados também almejam, fomentam e infligem vinganças
várias, seja por bruxaria, seja por outros meios. Pelo que não surpreende que tantas
bruxas sejam desse sexo.”42
A culpabilidade do sexo feminino, herança da Eva ancestral, marca todas as
mulheres, inclinando-as mais do que os homens para os pecados das bruxas, que
excedem todos os outros por sua malevolência natural, mesmo o que resultou na queda
dos anjos e de Adão e Eva.

depois do pecado de Lúcifer, as obras das bruxas excedem todas os outros pecados, em
hediondez, já que negam Cristo crucificado, na inclinação, já que cometem a obscenidade da
carne com demônios, na cegueira do intelecto, já que no mais puro espírito da malignidade
fomentam o ódio e causam toda sorte de injúrias às almas e aos corpos dos homens e de
animais.43

Os pecados das bruxas são mais graves do que os do próprio Diabo em muitos
aspectos, pois este “pecou por orgulho, posto que não houvesse ainda castigo pelo
pecado. No entanto, as bruxas continuam a pecar mesmo depois de severos castigos
serem infligidos contra outras bruxas”. 44 Elas recorrem na perda da inocência conferida
pelo batismo deliberadamente, renegando a verdadeira fé na qual já haviam sido

40
S. JOÃO CRISÓSTOMO apud KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 114.
41
CÍCERO apud KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 115.
42
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 118.
43
Ibid., p. 170.
44
Ibid., p. 185.
35

encaminhadas, enquanto o Diabo perdeu a graça somente uma vez, e pecando contra o
Criador, ao passo que as bruxas ofendem Pai e Filho. O Diabo não obteve o perdão
divino, ao contrário dos seres humanos, que são admoestados sobre os perigos e
recebem misericórdia, mesmo recorrendo no erro.
O distanciamento de Deus aponta a infidelidade como o principal pecado das
bruxas que se entregam ao pacto demoníaco, por isso cometendo a pior das heresias, a
apostasia da Fé, chamada no caso das servas de Satã de “apostasia da perfídia”45. Piores
que os hereges, as bruxas são apóstatas, merecendo castigos maiores que os lançados
aos judeus e pagãos. Para os autores do Malleus, a bruxaria, “de todas as superstições, é
a mais vil, a mais maléfica, a mais hedionda – seu nome latino, maleficium, significa
exatamente praticar o mal e blasfemar contra a fé verdadeira.”46
O Malleus Maleficarum apresenta três tipos de feiticeiras, “as que injuriam mas
não curam; as que curam mas, através de algum estranho pacto com o diabo, não
injuriam; e as que injuriam e curam.”47 As primeiras são dotadas de grande poder para
fazer malefícios diversos: provocam tempestades48, lançam raios sobre pessoas e
animais, enlouquecem-nos, enfeitiçam homens e mulheres e são capazes de matá-los
com o olhar, percorrem grandes distâncias em espírito ou corporeamente com o auxílio
de bestas ou diabos – nas palavras de Julio Caro Baroja, “Pura imaginária gótica!”49.
Quando descobertas, as bruxas podem com o olhar afetar o discernimento dos juízes,
têm o poder de silenciarem-se nos interrogatórios e de não sentir dor ao cabo da sessão
de tortura, provocam mal-estar naqueles que as prendem.
Ainda: são capazes de ver eventos futuros com auxílio maligno, transtornam os
homens em seus afetos, impedem o ato carnal, provocam a esterilidade ou o aborto com
feitiços ou com um mero toque, oferecem crianças aos demônios e as devoram (as
bruxas batizadas somente podem fazê-lo com a permissão divina) ou afogam, oferecem
seus filhos a Satã desde o nascimento. Com a permissão de Deus são capazes de causar

45
Ibid., p. 172. Sinteticamente, hereges são aqueles que questionam a fé e apóstatas os que a
renegam.
46
Ibid., p. 77.
47
Ibid., p. 214.
48
Através do relato acerca da bruxa que vivia em uma das dioceses na qual um dos inquisidores
atuava, descrevem a maneira usada pelas servas do Diabo para provocar tempestades. Na comunidade em
questão, a bruxa não fora convidada para uma boda (ou batizado) e, como vingança pela desfeita, subiu
até o monte mais próximo, cavou um buraco e urinou dentro dele. Pôs-se a revirar o líquido e, em
seguida, formaram-se nuvens carregadas nas proximidades do local em que se realizava a comemoração,
estragando-a. Tal descrição evoca algumas versões de um conto infantil, com conteúdos similares, que
chegou aos nossos dias.
49
BAROJA, J. C. As bruxas e o seu mundo. Lisboa: Veja, 1971. p. 136.
36

todo tipo de doenças, mesmo lepra, e, para S. Tomás, possuem a mesma capacidade de
fazer o mal que os demônios.
Contudo, a culpa feminina consiste não em obter resultado nos seus
encantamentos e vociferações, mas em pactuar com o Diabo. Usando-o como
intercessor, as bruxas incorrem em falta grave à fé, pois S. Agostinho afirma ser Cristo
o único intermediador para os homens em suas súplicas, devendo-se renunciar aos elos
com o proscrito, que desviam o homem da atenção a Deus.50
Existem duas formas de juramento prestado ao Maligno, a primeira consiste em
uma cerimônia solene, que “é realizada em conclave, com data marcada. Nela o diabo
aparece às bruxas em forma de homem, reclamando-lhes a fidelidade que será firmada
em voto solene. Em troca, promete-lhes prosperidade mundana e longevidade. Depois,
as feiticeiras recomendam-lhe uma iniciante – uma noviça – para seu acolhimento e
aprovação”, a quem o Diabo faz jurar o repúdio da fé, dos sacramentos e da “Mulher
Anômala” (Virgem Maria). A neófita aceitando, exige que ela se entregue a ele “de
corpo e alma, para todo o sempre”, levando-lhe novos discípulos. Instrui-a acerca da
pomada feita dos restos mortais de crianças, sendo que o líquido resultante de seu
cozimento confere a quem bebe a liderança da seita das bruxas.51
A segunda forma de iniciação refere-se a uma cerimônia secreta que possui
registros diferenciados de ocorrência, com o Diabo geralmente aparecendo a pessoas
que se encontram em dificuldades – fatigadas, melancólicas, com dificuldades
financeiras ou se deixando seduzir –, atendendo seus desejos e dando suas ordens aos
poucos, até tomar completamente o fiel. Esta face sedutora do Demônio, quando
adquire aparências aliciantes e enganadoras, é apresentada por Jacques Le Goff
juntamente com a face aterradora, quando o Maligno persegue insistentemente aqueles
que deseja corromper. Os relatos do Medievo apresentam freqüentemente o Diabo sob o
disfarce de um lindo jovem, ou tomando a forma de um santo; quando encarna o
perseguidor, geralmente não se disfarça, apresentando-se com aspecto medonho e nu.
Com as mulheres usa mais a força do que a astúcia.52
O pacto, “de amizade na infelicidade e no engano”,53 pode ter uma duração
específica, a fim do Demônio atestar a veracidade da declaração de fidelidade das

50
AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus (contra os pagãos). Petrópolis: Vozes, São Paulo:
Fed. Agostiniana Bras., 1990. Parte I. p. 327
51
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 215-6.
52
LE GOFF, J. A civilização do Ocidente medieval. Lisboa: Estampa, 1995. v. 1.
37

iniciadas, ou porque sabe quando virá sua morte. Se sua serva a ele dedicou-se apenas
superficialmente, trata de atormentá-la com perdas materiais e fustigar seu espírito.
Diferenciam-se, ainda, as “bruxas verdadeiras”, aquelas que firmaram um pacto
explícito com Satã, daquelas que lhe foram ofertadas quando nasceram, tratando-se
neste caso de um pacto tácito. Cometem apostasia verbal as bruxas que evocam o Diabo
e apostasia pelo ato aquelas que praticam seus malfeitos “sob os auspícios do demônio”,
mas também apostasia de fato, “pois tudo o que se recebe por obra do demônio acarreta
na detratação da Fé.”54
O valor dos sinais mágicos, tratados superficialmente no Malleus Maleficarum,
exploram a relação de cumplicidade com o satânico, pois de acordo com Agostinho,
“No fundo, todos esses sinais valem o que a pretensão do espírito do homem combinou
com os demônios, ao firmarem certa linguagem comum para se entenderem. Estão todos
eles cheios de curiosidade pestilente, de solicitude angustiante e servidão mortífera”.55
Nesse sentido, os sinais são a representação do caráter daqueles que os vê, expressando
sua inclinação ao mal e suas intenções ocultas.
O padre da Igreja afirma que as bruxas “são assim denominadas por causa da
magnitude de seus atos maléficos. São as que, pela permissão de Deus, perturbam os
elementos – as forças da natureza –, são as que confundem a mente dos homens,
conduzindo-os à descrença em Deus, e que, pela força terrível de suas fórmulas
malignas, sem qualquer poção ou veneno, matam seres humanos.”56 S. Isidoro, na
mesma direção, afirma:

as bruxas são assim chamadas pela negrura de sua culpa, quer dizer, seus atos são mais malignos
que os de qualquer malfeitores. (...) elas incitam e confundem os elementos com a ajuda do
demônio, causando terríveis temporais de granizo e outras tempestades. Mais: enfeitiçam a
mente dos homens, levando-os à loucura, ao ódio insano e à lascívia desregrada. E, prossegue o
autor, pela força terrível de suas palavras mágicas, como por um gole de veneno, conseguem
destruir a vida.57

Sendo verdade católica a associação entre o Diabo e as bruxas para a


perpetração do mal, os autores buscam suas origens nas relações sexuais entre humanos,
destacadamente mulheres, e demônios, das quais resultou uma raça decaída e ofensiva

53
AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã: manual de exegese e formação cristã. São Paulo:
Paulinas, 1991. p. 128.
54
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 293.
55
AGOSTINHO, Santo, op. cit., p. 130.
56
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit, p. 67-8.
57
Ibid., p. 67.
38

às leis divinas, conforme apresenta S. Agostinho. As mulheres sofrem as maiores


investidas sexuais, mas isso pode se dar com os homens, atacados pelos súcubos,
“embora não pareça que os homens forniquem assim diabolicamente com o mesmo grau
de culpabilidade; porque sendo intelectualmente mais fortes que as mulheres, são mais
capazes de abominar tais atos”.58 Mesmo entre as pessoas que apenas imaginam
copularem com demônios é encontrado maior número de mulheres, mais fantasiosas e
desejosas.
Segundo Nider e Tomás de Brabante, “nos tempos mais remotos, os Íncubos
costumavam molestar as mulheres contra a sua vontade”, mas na época em que
escreviam, elas se davam a esses atos por vontade própria, “revelando a servidão mais
abjeta e miserável.”59 S. Gregório afirma que “a sabedoria dos Santos crescia e, na
mesma proporção, cresciam as artes malignas do demônio.”60 Seus sequazes, conforme
apresenta S. Agostinho em A cidade de Deus61, são intensamente assolados pelas
paixões da alma, desejando o ódio ou o amor e atiçando as paixões humanas.
Como o primeiro pecado foi justamente o da carne, o Diabo tem maior
permissão divina para agir sobre o ato carnal, originando-se a bruxaria do desejo
lascivo. Citando os Provérbios, os autores apresentam que ‘Há três coisas insaciáveis,
quatro mesmo que nunca dizem: Basta!’.62 A quarta é a “boca do útero”, o apelo sexual
latente das mulheres e dos íncubos que provocam a “morte da alma”, degradando a Fé.
Inserida dentro de uma cultura obsedada pelas partes “vergonhosas” do corpo, portão
principal de entrada do Diabo, a bruxa será encontrada naturalmente entre adúlteras,
fornicadoras e prostitutas, que costumam lançar feitiços por ciúmes.
As relações sexuais com íncubos e súcubos, presentes nos relatos fantásticos dos
sabbats, preocupavam sobremaneira a mentalidade eclesiástica, pois abominações
poderiam resultar deste tipo de união carnal, freqüente dada a sensualidade em que vivia
a humanidade. “É através da lascívia da carne que [os demônios] exercem seu poder

58
Ibid., p. 322.
59
Ibid., p. 235-6.
60
Ibid., p. 69.
61
É interessante inserir nesta discussão a diferença entre a cidade de Deus e a cidade dos homens
apresentada por Agostinho no segundo tomo de sua obra, a primeira voltada ao cultivo do espírito, com o
“amor a Deus”, e a segunda, que vemos aqui entregue aos ímpetos demoníacos, dedicando-se ao cultivo
da carne, ao “amor a si mesmo”. AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus. Petrópolis: Vozes, São Paulo:
Fed. Agostiniana Bras., 1990. Parte II.
62
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 121.
39

sobre os homens; e nos homens a fonte da lascívia se localiza nas partes íntimas, já que
é dali que sai o sêmen, assim como nas mulheres sai do útero.”63
O Diabo, na forma de súcubo, recolheria o sêmen de um homem e o passaria
para a mulher na forma de íncubo; nesse sentido, se a mulher concebesse não seria do
Demônio, mas do homem de quem este recolheu o fluido. O corpo e a alma do
fornicador são assim corrompidos e, em se tratando de pessoas unidas pelo sacramento
do matrimônio, o Diabo consegue seu intento somente valendo-se de sua força e
violência. Os filhos gerados dessas uniões são, desde o útero, destinados à prática da
bruxaria e, mesmo se a bruxa for casada e o filho do marido, a criança pode estar
contaminada pelo sêmen que o íncubo recolheu.
Íncubos e súcubos exercem funções que, em efeito, passam por idênticas às do
ser humano (como a fala), mas são diferentes em sua origem dada a alteridade corpórea,
sendo superiores nos sentidos; com efeito, são mesmo capazes de escutar pensamentos.
Segundo S. Tomás, as bruxas que praticam tais obscenidades com demônios são mais
fortes que os homens, assim como os seres por elas concebidos. Estas relações sexuais
hediondas podem ocorrer mesmo em lugares públicos, com os passantes vendo apenas a
bruxa e um “vapor negro”. Mas não somente as maléficas concebidas pelos demônios
ou que lhes foram dedicadas são possuídas, qualquer mulher, com a intercessão de
prostitutas, pode ser atacada. Assim, jovens castas pela glória do Senhor, contra sua
vontade são angariadas para o Mal.
A prática do ato pecaminoso se dá, sobretudo, nos dias sagrados (Natal, Páscoa,
Pentecostes) e santos, para engravidar as bruxas ou dar-lhes maior prazer, “porque dessa
forma as bruxas não só se impregnam do vício da perfídia através da apostasia da Fé
mas também do vício do Sacrilégio para que maior ofensa perpetrem contra o Criador e
para que ainda mais penosa danação recaia sobre as suas almas.”64 Agindo nestes
momentos, o Diabo lhes confere mais poder para causar o mal e também encontram
várias jovens para aliciar. Não são, contudo, capazes de praticar tais abominações em
locais sagrados, guardados por anjos da guarda.
O Malleus Maleficarum retira do Formicarius de Nider cinco métodos para a
libertação dos demônios: confissão, sinal da cruz, exorcismo, mudança e excomunhão.
Quando mesmo o exorcismo não expulsa o demônio, deve haver uma vontade divina
oculta, tendo de ser suportada a carga para reparo das faltas; a confissão só faz ajudar

63
Ibid., p. 82.
64
Ibid., p. 239.
40

neste caso, pois a necessidade de ter os pecados perdoados deve mover todo cristão que
quer se ver livre das tentações.
A sexualidade desperta a curiosidade e incentiva a imaginação de clérigos que
pretendiam se resguardar com o celibato, pretensamente protegidos com a interdição de
representações de corpos nus pelo Concílio de Trento. As formas femininas, a nudez
vergonhosa, os atos sexuais diabólicos visualizados escondem a negrura da mulher
tentadora, que se oferece às investidas de Satã e seus prosélitos. O atrativo dos cabelos
femininos inquietava William de Paris, que afirma:

os Íncubos parecem molestar sobretudo as mulheres e meninas de lindos cabelos; ou porque


muito se dedicam ao cuidado dos cabelos, ou porque assim pretendem excitar e instigar os
homens, ou ainda porque gostam de se vangloriar futilmente a respeito, ou mesmo porque Deus
na Sua bondade permite que assim seja para que as mulheres passem a ter medo de instigar os
homens exatamente pelos meios que os demônios gostariam que elas os instigassem.65

Paralelamente ao interesse pelos pecados da carne cometidos pelas bruxas,


demonstrado por Kramer e Sprenger, ocorre neste período o crescimento das execuções
por desvios sexuais, sendo exemplarmente castigados aqueles que cometem sodomia e
bestialidade, sobretudo. Acreditamos, desta forma, estarmos diante de um intenso
movimento de moralização, passando-se a igualar uma boa moral com a moral cristã –
determinada rigidamente pela Igreja Católica –, o que decisivamente influenciou nos
clamores por perseguições que partiram das comunidades, responsáveis por rápidos,
embora com grande número de vítimas, surtos de caça às bruxas no continente europeu.
Preocupadas com a contaminação de seus bons integrantes e com os males que
poderiam recair sobre todos graças aos desviantes, as populações fechavam-se contra os
recém-chegados e passavam a suspeitar dos indivíduos que não seguiam um padrão
comum de comportamento ou ainda que constituíam uma minoria – os manuais de
Inquisição alertam para o perigo judeu de maneira ampla e, no caso da bruxaria, para as
prostitutas, mulheres sozinhas e viúvas, entregues a devaneios soturnos. Jeffrey
Richards corrobora a idéia, afirmando que “Havia uma ameaça moral e física de
contágio vinda das minorias perigosas.”66
A culpabilização de determinados indivíduos era reforçada pelo sentimento de
insegurança de comunidades em processo de mudanças – crises econômicas, aumento
do cerceamento pela justiça do Estado, crescente individualização, disseminação de

65
Ibid., p. 325.
66
RICHARDS, J., op. cit., p. 31.
41

idéias sobre o sagrado conflitantes com a religião estabelecida – e pela necessidade de


expiação dos pecados coletivos, o que garantia a vibração diante dos espetáculos
públicos de queima das bruxas. Mais do que isso, a consciência tranqüila de uma
coletividade às voltas de sua redenção, para o que encontramos uma exceção que parece
confirmar a regra: nos retumbantes processos em Salém, Nova Inglaterra, uma das
garotas que indicava os bruxos locais, Ann Putnam, confessou ao final de sua vida seu
pesar pela execução de inocentes.67
A curiosidade mórbida dos inquisidores em relação aos aspectos sexuais das
bruxas em potencial sobressai-se, revelando como o sexo constituía uma das principais
formas de contágio e de angústia. São tidos como freqüentes os feitiços lançados contra
os homens, como a ilusão promovida com auxílio diabólico de que o pênis fora extraído
e os encantos para a perda da ereção, esfriamento do desejo e esterilidade. “Deus
confere maiores poderes às bruxas sobre essas funções, não tanto por causa de sua
obscenidade e sujeira, mas por ter sido este o ato que corrompeu nossos primeiros
ancestrais e, pelo seu contágio, ligou-nos à herança do pecado original, que atinge toda
a raça humana.”68
Como lembram os autores, “Vivemos numa era dominada pelas mulheres”,69 de
forma que são os homens os mais atingidos pela bruxaria. Como reparação, a própria
bruxa que lançou o encantamento deve removê-lo, mas este se torna permanente se ela
morreu ou partiu; a penitência consegue melhores resultados. No caso de extirpação do
membro viril, sendo obra do Diabo, mas sem a intermediação de uma bruxa, sua
extração causa dor, e o Tinhoso age desta forma movido por um anjo bom, para que não
atice o pecado da luxúria, e ele é reincorporado no momento oportuno. Quando uma
bruxa opera, normalmente o membro não é extraído do corpo, apenas ocultado pelas
artimanhas diabólicas.
O impedimento do ato carnal e da procriação são obtidos provocando-se ódio,
ciúme ou obsessão, e lançando-se feitiços para provocar doenças, loucura ou morte; as
bruxas atuam intrinsecamente, anulando a ereção e a ejaculação, ou a infertilizando, e
extrinsecamente, com auxílio de imagens, ervas e materiais nefastos como testículos de
galo.

67
A confissão de Ann Putnam no livro de sua igreja, de 25 de agosto de 1706, pode ser
encontrada em: <htttp://members.aol.com/MaryARoots/putnam.index.html>. Acesso em 20 de agosto de
2003.
68
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 204.
69
Ibid., p. 334.
42

Contudo, mesmo com a determinação do Tinhoso sobre quem a feiticeira deve


lançar seus feitiços, Deus resguarda alguns de seus servos – caso dos juízes
responsáveis pelo julgamento daquelas que são descobertas e dos exorcistas que, de
acordo com o Malleus, são abençoados pelos anjos divinos. Os demais podem conseguir
proteção com a limitação de Deus, como Jó, com uma inibição causada por força
externa desconhecida, com um milagre ou pela “providência divina”, através de
peregrinações e ainda usando palavras sagradas e o sinal da cruz.
Apesar de todos os males provocados pelas bruxas em geral, são as parteiras as
maiores destruidoras de sua espécie, devendo aquelas que desejam licitamente trazer
crianças ao mundo, antes de qualquer coisa, jurar proceder segundo as leis católicas. Tal
fixação pelas parteiras é explicada por diversos autores como resultante da necessidade
de se encontrar uma explicação apaziguadora para crianças que nasciam mortas ou
então morriam pouco tempo depois do parto (por inanição ou sufocamento). Para a
mentalidade eclesiástica, além de impedir a prática do ato carnal, a concepção ou causar
o aborto, essas mulheres aniquilavam as crianças que traziam ao mundo sempre que
podiam, privando-as do batismo. Se a criança nasce e não é prontamente batizada,
devoram-na e/ou a oferecem aos demônios, fazendo ungüentos de seus ossos e vísceras,
que lhes permitem permanecer caladas nos interrogatórios e sem sofrer na tortura,
transpor grandes distâncias em seus vôos noturnos e praticar toda sorte de malefícios.
Os demônios exigem esses sacrifícios, segundo os autores, para seu orgulho,
para iludir os homens e para que aumente a quantidade de bruxas. As que lhe são
oferecidas desde o nascimento são amaldiçoadas a uma vida de pecado, longe da fé
cristã, sendo nos filhos de bruxas também injetadas idéias malignas desde a infância,
predispondo-os à bruxaria por toda a vida. Mas as crianças que são oferecidas pelas
parteiras, não por suas mães (sendo elas honestas), têm a chance de se manterem na
graça.
Contudo, mesmo com tantos poderes obtidos com auxílio diabólico, os quais
possibilitam seus assassinatos, mutilações, alterações climáticas e mais crimes hórridos,
as bruxas permanecem na miséria, odiadas por seus vizinhos e temidas por seus
inimigos. Tal fato só pode ser explicado para Kramer e Sprenger porque os demônios as
tomam por pouco. São incapazes de aniquilar os inimigos dos príncipes a que servem,
procurando angariar apoio dos poderosos, porque aqueles se encontram protegidos por
um anjo bom, e também restam impedidas de atingir seus perseguidores porque estes
são responsáveis pela justiça pública e, como tal, protegidos pela benção divina.
43

Os encantamentos feitos pelas bruxas operam-se diferenciadamente, pela “ilusão


dos sentidos”, através da “fascinação pelo encanto e pela sedução”, ou por meio do
“feitiço lançado pelo olhar sobre outra pessoa, que pode ser prejudicial e maligno.”70
Este poder revela a presença íntima de Satã no corpo do herege, capaz de incendiar
colheitas, secar o leite das vacas e matar desafetos com um olhar. A ilusão dos sentidos
(transmutações) pelo Diabo é a razão dos homens se verem tornados bestas, como
encontramos na narrativa de Circe que, segundo S. Agostinho, operou transformações
no plano da ilusão, não no real. Para S. Tomás, a bestificação é operada nas “percepções
interiores que, pela força da imaginação, vêem-na como se fosse um objeto exterior”71,
sendo compreendida como um prodígio, não como milagre.
A possessão diabólica é assunto inquietante, pois se acreditava ser impossível a
ocupação de um só corpo por duas entidades. Mas se tratando da alma e do demônio, os
autores demonstram a possibilidade da possessão, pois pensam que a alma encontra-se
no coração, ligando-se a todo o corpo, sendo diferentes os procedimentos da alma e do
Diabo no corpo. A alma não pode ser possuída, pois pertence somente a Deus, já o
corpo dos homens em pecado, dos homens na graça e dos loucos (como castigo), pode
ser tomado pelo Maligno. Segundo S. Tomás, a possessão é certa pelo pecado mortal.
A possessão demoníaca extrai a razão dos homens, bestificando-os, além de lhes
infligir perdas materiais, e Deus assim o permite para Sua glória, para punir os pecados
do possuído ou de outrem. O Demônio influi de tal maneira no julgamento dos seres
humanos diretamente, quando o homem peca por escolha própria; indiretamente,
mediante a herança do pecado original pela humanidade, assim exposta pelo Tinhoso e
contaminada pela culpa; e por persuasão, quando se apresenta de forma visível ou
invisível, fornecendo estímulos à imaginação através da tentação interior. Sendo o bem
parte da natureza dos diabos por sua criação, diferentemente em cada um, possuem
distintas atribuições, e aqueles com maior poder, assim causando mais danos, sofrem os
piores castigos.
O homem sugestionável pela influência diabólica pode ceder à bruxaria,
entretanto, a malícia humana é determinante. Da mesma forma encontramos em
Agostinho: “o autor do pecado é a astúcia do diabo e também a vontade do homem que
consente”,72 e Tomás de Aquino: “O diabo, por virtude própria e se não fôr refreado por

70
Ibid., p. 71.
71
Ibid., p. 150.
72
AGOSTINHO, Santo. A graça..., p. 309.
44

Deus, pode nos induzir necessariamente a praticar actos genèricamente pecaminosos;


mas não pode nos impor a necessidade de pecar.” O Diabo tenta, persuade, mas “o
princípio próprio do acto pecaminoso é a vontade, pois todo pecado é voluntário”, e se
for cometido propositadamente faz do homem escravo do Maligno.73
A malícia, quando é habitual, resulta da fraqueza humana – e como exprime a
Bíblia, “Toda a malícia é leve, comparada com a malícia de uma mulher”74; já quando
real, exprimi-se pelo indivíduo que escolhe o Mal, para detratação do Bem. Agostinho
afirma que ‘O diabo dá a sugestão interior, e persuade o homem, tanto interna quanto
externamente, por estimulação mais ativa. Mas instrui os que se acham inteiramente sob
seu poder como é o caso das bruxas, para quem é desnecessário tentar pelo interior, mas
tão-só pelo exterior’.75
Sendo os atos humanos relacionados à vontade comandados por Deus, ao
intelecto pelos Anjos, e ao corpo pelos corpos celestes e por Deus agindo através deles,
parece contraditória a afirmação de que Deus guia a vontade de um ser para a prática do
mal. Entretanto, os autores esclarecem a questão afirmando que são incompatíveis o
livre-arbítrio e a incapacidade de pecar em um mesmo ser, salvo naquele em estado de
graça, que pode ser tão somente tentado. Se os seres humanos possuíssem naturalmente
a incapacidade de pecar se igualariam a Deus.
Os homens podem ser atingidos por quatro espécies de castigos: os benignos, os
malignos, os naturais e os flagelos, sendo estes forjados por bruxaria, a ação do Diabo
intermediada por bruxas e adivinhos. À extensão da ofensa ao Criador corresponde o
poder demoníaco, e este acaba aumentando a glória divina. Como o fim do mundo está
próximo, Deus “permite a prevalescência do mal, a do pecado e do sofrimento”.76 Estes
acabam por atingir inocentes, mas Deus extrai o bem de todo e qualquer mal, “pois que
através da perseguição dos tiranos surgiu a paciência dos mártires, e através das obras
das bruxas surgem a purgação e a provação da fé dos justos”.77
As dores impingidas pelas bruxas justificam-se, assim, como vingança divina
pelos pecados humanos e servem a um propósito maior. Esta mortificação garante a
eterna vigilância, “a fim de que o homem cuide de seu próximo para que esse se
abstenha do pecado; e também a fim de que o pecado pareça ainda mais detestável, pois

73
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma teológica. São Paulo: Siqueira, 1934. Primeira parte da
segunda parte – questões 71-89. Dos vícios. p. 319 e 313, respectivamente.
74
BÍBLIA, V. T. Eclesiástico. op. cit., vers. 26.
75
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 108.
76
Ibid., p. 161.
45

que o pecado de um redunda sobre todos, como se todos fossem um só corpo.”78 Mesmo
as provações lançadas àqueles que levam uma vida reta são explicáveis pelo pecado de
Satã e pela Queda, que deixaram todos expostos às tentações e com uma tendência ao
pecado inerente. Conforme Agostinho, o “pecado corrompeu a natureza humana, criada
por Deus sem nenhum vício”, e o vício maior resultou do “pecado original que foi
cometido por livre vontade do homem. Por isso, a natureza sujeita ao castigo atrai com
justiça a condenação.”79
Os castigos diferenciam-se em espiritual – privação da graça para o que sofre,
embora não tenha culpa; privação da glória, quando há incidência direta de culpa
pessoal ou herança dos pecados paternos; e a pena eterna, a tortura no inferno para os
que são culpados pela escolha por pecar; e temporal – pelo pecado de outra pessoa,
mesmo sem o pecado, pela culpa pessoal. Quando não há culpa daquele que se vê
atormentado, Deus o castiga para Sua glória, para mostrar a operação de milagres, com
os autores exemplificando a ressurreição de Lázaro, ou para elevá-lo mediante a
paciência e a lealdade, como Jó. Quando há culpa, Deus atinge os pecadores “para que a
virtude possa ser preservada mediante a humilhação pelo castigo”, para uma amostra do
que se há de sofrer no inferno e para purificação.80
Tendo como objetivo capacitar os juízes provinciais ao cumprimento de suas
funções, diminuindo o encargo dos Inquisidores, os autores finalizam a obra
discorrendo sobre a instauração e condução dos processos contra os acusados de
bruxaria. Na punição deste crime, tribunais civis e eclesiásticos devem agir em
conjunto, pois ele causa danos materiais além de corromper a fé, embora os dois atuem
diferentemente quanto à pena capital – os juízes laicos somente a infligem quando a
acusada confessa seu crime, enquanto os religiosos condenam mesmo sem a confissão.
Os argumentos em torno dos processos contra as bruxas devem ser
compreendidos em um amplo contexto, com a retomada do direito romano no século
XII, passando-se então a impingir a pena de morte pelo fogo aos culpados de bruxaria,
e a empregar o sistema de inquirição e tortura, obtendo, assim, repetidas confissões.
Também as acusações tornaram-se mais freqüentes, pois aqueles que não conseguiam
prová-las deixaram de ser penalizados.81

77
Ibid., id.
78
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 176.
79
AGOSTINHO, Santo, op. cit., p. 114.
80
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 178.
81
RICHARDS, J., op. cit., p. 89.
46

O passo inicial de um processo consiste, para os autores, na verificação se o


acusado é verdadeiramente herege ou apóstata, consistindo em erros heréticos os que
vão contra a Bíblia, os artigos da fé ou as leis eclesiásticas, considerando-se que “o
esclarecimento das dúvidas a respeito da fé pertence sobretudo à Igreja, e especialmente
ao Sumo Pontífice (...). Pois que a Igreja nunca cometeu erros em questões de fé.”82
Mesmo se tratando de crimes que ofendam o Criador e a Igreja, se não houver
sido cometido erro no entendimento das questões relativas à fé, as acusadas devem ser
classificadas como meramente feiticeiras, e não hereges. Tal classificação explica-se em
função das feiticeiras que compactuaram com o Maligno somente para obter bens ou se
vingar, não para adorá-lo; isso consiste em grande pecado, mas não heresia. Entretanto,
se reverenciaram o Maligno, tomaram-no tal qual Deus, são hereges. Caso a bruxa
confessa queira louvar a fé novamente, é acolhida em penitência; do contrário, é levada
a julgamento pelo tribunal civil.
O processo pode ser iniciado através da acusação a um juiz, com o acusador se
dispondo a apresentar provas ou submeter-se à lei de talião caso não consiga provar o
crime, o que não é recomendável. Uma segunda forma implica na denúncia sem
envolvimento direto na acusação nem a apresentação de provas, de forma que cabe ao
acusador participar unicamente como informante. Por fim, existe a ação da Inquisição
mediante o rumor público.83
A acusada não pode ter conhecimento das testemunhas, para estas se verem
protegidas de sua vingança. Não são necessárias em grande número pelo crime em
questão e, além de suas declarações, é considerada a reputação da ré. Os testemunhos de
outra bruxa ou de parentes somente devem ser aceitos na falta de outros mais
verossímeis, e apenas pela acusação. Podem ser aceitos mesmo perjuros arrependidos.
Não são aceitos inimigos mortais como depoentes apenas nesta situação, e normalmente
em se tratando de inimizades em geral, “porque são as mulheres facilmente compelidas
ao ódio.”84
O julgamento deve ser rápido, “desautorizando quaisquer exceções, apelos ou
obstruções (...). Mas sem que com isso venha a negligenciar das provas necessárias.”85
Deve-se proceder a uma busca na residência da acusada a fim de procurar evidências, o
material utilizado nos sortilégios, silenciar suas criadas e impedir a bruxa de ir ao seu

82
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 390.
83
Ibid., p. 396.
84
Ibid., p. 405.
47

quarto, pois nele encontraria um talismã ou força para permanecer em silêncio durante
os interrogatórios. “a acusada há de receber, na medida do possível, o benefício da
dúvida, desde que isso não envolva um escândalo à fé, ou seja prejudicial à justiça.”86
A provável bruxa só é representada por um advogado se solicitá-lo, sendo
indicado pela acusação e não podendo ter acesso às testemunhas. O advogado destinado
à defesa pode aceitar ou recusar o caso, tomando o cuidado de não defender o crime,
pois seria proclamado herege. Aceitando o caso e sendo devidamente pago, se o
advogado perceber adiante que a ré será condenada deve avisá-la e restituir-lhe o que
recebeu, pois se não o fizer poderá ter de arcar com os custos.
Os interrogatórios devem ser especialmente procedidos nos dias santos e no
momento da missa, com o juiz protegido por sal consagrado, relíquias e palavras de
Cristo, devendo-se fazer a bruxa tomar água benta. “O juiz que instrui um processo de
feitiçaria não considera o seu interlocutor como um acusado comum: habita-o o medo
constante de ser enganado pelas mentiras satânicas, e ele desconfia de tudo o que lhe é
dito em resposta às suas perguntas”.87
Repetidas vezes as próprias bruxas pedem para passar pela tortura, pois Satã as
protegerá ou suas ervas, de modo que tal requisição acentua as evidências do pacto.
Tanto o duelo como o ordálio requeridos pelos acusados a fim de provar sua inocência
são considerados ilícitos, pois a verdade oculta é de conhecimento divino e tais
demonstrações não são aceitas pela Igreja.
Nos interrogatórios, as bruxas sempre tendem a negar as acusações, o que deve
servir como indício de sua culpa. Diante de repetidas negativas, devem ser considerados
sua reputação, os fatos e os depoimentos, sendo que estes dois últimos sozinhos
condenam. Para a condenação são observadas pragas que se realizam, provas
verdadeiras, confissão e evidências físicas – material de bruxaria. As confissões
diferenciam-se conforme cada caso, podem ser rápidas ou nulas mesmo sob tortura,
segundo a iluminação de um anjo ou o auxílio demoníaco que pode tornar as bruxas
insensíveis às dores. São necessários cuidados na condução da tortura, condicionando-a
ao estado físico das torturadas. Aquelas que, após a confissão sob tortura, buscam o
suicídio se enforcando, fazem-no por influência demoníaca para retirar-lhes o perdão

85
Ibid., p. 406.
86
Ibid., p. 419.
87
MANDROU, R., op. cit., p. 86.
48

divino, o qual obtêm se forem sinceras e se foram de alguma forma coagidas a se


entregarem ao Mal.
As confissões são marcadas por questões relativas ao plano físico, com os juízes
e inquisidores ressaltando o envolvimento sexual entre os diabos e as acusadas. A
sexualidade reprimida dos eclesiásticos revela-se na licenciosidade com que se dirigiam
às acusadas. Em relação a estas, os juízes “têm o sentimento de salvá-las contra si
mesmas”,88 exortando-as continuamente a confessarem seus pecados para que voltem à
graça divina. A mentalização do medo colocada pela Igreja fazia com que a confissão
representasse a absolvição das culpas, os magistrados garantiam assim a salvação eterna
para as encarceradas, que se fossem inocentes seriam guiadas por Deus até o fim da
tortura sem pronunciar falsas confissões, pois o perjuro significaria a perdição da alma.
Mas por outro lado, conforme já foi explicitado, a persistência em alegar
inocência acentuava a evidência de ligação com o Diabo, pois apenas dessa forma a
acusada toleraria a tortura, permanecendo os juízes reticentes e embasados em um
modelo de julgamento que cercava o réu de condenações por todos os lados, tornando-
se a melhor defesa a confissão espontânea.
De acordo com os procedimentos estabelecidos por Kramer e Sprenger, um juiz
pode verificar a veracidade da acusação de bruxaria mesmo sem testemunhos, pois as
verdadeiras bruxas são incapazes de chorar, apenas o conseguem longe da autoridade,
atentando-se para o fato de que “o luto, as tramas e os engodos chorosos são
notoriamente próprios das mulheres.”89 O toque, o olhar ou a voz de uma bruxa podem
enfeitiçar o juiz; deve-se proceder a uma raspagem de cabelos e pêlos pubianos, pois as
servas de Satã costumam ali manterem escondidos talismãs e sinais demoníacos, mas
mesmo sem qualquer instrumento podem se manter caladas pela inspiração do Diabo.
Quando a acusada é apenas difamada, sem que se venha a obter provas contra
ela, deve ser purgada para abafar o rumor público; falhando na purgação, será
condenada como herege, negando-se a ela, será excomungada. Entretanto, não deve ser
pronunciada inocente nos autos, pois, dessa maneira, se reincidir será condenada.
Quando sob forte suspeita de heresia, se a acusada reincidir no crime após a abjuração
de heresias sofrerá a pena capital e, tratando-se de um religioso, primeiro será
rebaixado. Estando sob grave suspeita, se a bruxa abjurar, mesmo julgada herege não
será excomungada, sendo condenada à prisão perpétua; se recusar a abjuração ou insistir

88
Ibid., p. 88.
89
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 435.
49

em negar as acusações será entregue ao tribunal civil. É lhe impingido o uso de


indumentária cinza e azul com cruzes amarelas, por um tempo determinado, colocando-
a assim vestida na porta de uma igreja.
A bruxa que confessa ou é condenada por fatos ou testemunhas, mas foge, é
considerada herege impenitente. Qualquer pessoa que interfira no encaminhamento do
processo, ou que auxilie a acusada, deve ser excomungada. Descobrindo-se falsas
testemunhas, estas devem ser encarceradas perpetuamente.
Para a determinação das sentenças pronunciadas às bruxas que revertem
malefícios é analisado o teor de seus métodos de cura, e Tomás de Aquino afirma, neste
sentido, que a substância intelectual que move as práticas que envolvem magia não é
nem moralmente boa nem louvável.90 “Quando se acha oculta a causa da eficácia, o
interesse é verificar-se a intenção com que cada um os emprega. Se é, de fato, somente
para tratar da saúde e do bem estado do corpo, seguindo a medicina ou os primórdios da
agricultura.”91 Os remédios lícitos são louvados; os ilícitos, que invariavelmente são
ministrados com a influência diabólica, punidos; e os que são mesmo em parte ilícitos,
contando apenas “com a invocação tácita, e não expressa, de demônios, devem ser
considerados mais como vãos ou fúteis do que como ilícitos”, por isso sendo
tolerados.92
São considerados culpados aqueles que praticarem adivinhação, o que é obtido
somente com auxílio diabólico; que podem curar apenas determinadas pessoas; se
empregam meios supersticiosos e a enfermidade finda não porque foram capazes de
curá-la, mas porque deixaram de empreendê-la. Fica assim patente que não possuem
uma benção divina para curar.
Aos juízes é concedido o poder determinante de alterar a sentença segundo seu
próprio julgamento ou novas evidências, aumentando-a ou diminuindo-a, mesmo
anulando-a. A sentença somente tem sua execução adiada se a condenada estiver
grávida ou se desdisser sua confissão, devendo ser, neste caso como no das bruxas que
se recusam a confessar, trancafiada na prisão por um longo tempo, a fim de refletir
sobre seus pecados e ser exortada a se confessar após muito sofrimento.
As confissões obtidas, espontâneas ou induzidas – sendo esta a forma
substancial dada a tortura generalizada –, revelam estereótipos correntes, criados pela

90
TOMÁS DE AQUINO, São. Suma contra los gentiles. Madrid: Bib. de Autores Cristianos,
1952. p. 393.
91
AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã..., p. 137.
50

Igreja e introduzidos entre as populações. A padronização das perguntas endereçadas às


acusadas não poderia resultar em confissões diferentes, visto o cerceamento e a
limitação imposta pelos inquisidores, que mesmo nas negativas das rés enxergavam o
Demônio atuando no engodo dos servos de Deus.
A imposição de valores e o esforço para promover sua inculcação, tornando-os
paulatinamente naturalizados, implica na reprodução dos modelos de pensamento que
foram erigidos sobre uma crença criada em função da ordem de mundo que se impunha.
As alternativas pensadas para tornar esta ordem coerente refugiaram-se em descrições
que uniam não somente a Igreja e os Estados, dada a atuação conjunta, mas as
comunidades atingidas pelos males de maneira geral. Pois o combate aos desviantes no
plano físico, que exacerbou o simbolismo das elaborações clericais acerca do sabbat e
das bruxas, garante a condenação dos indivíduos nocivos para a purificação do meio em
que vivem, restaurando a comunhão com o sagrado e a sã moralidade. Esta, ditada por
um universo masculino que reforçou os laços de controle sobre o feminino e sua
inferiorização histórica.

92
KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 506.
51

CAPÍTULO III. A bruxaria como uma ameaça à sociedade cristã e sua


perseguição.

A Renascença, momento de renovação intelectual, viu serem acessas milhares de


fogueiras destinadas a queimar mulheres ligadas a uma herança medieval, paralelamente
à releitura de autores antigos que retratavam um universo mágico e à exploração dos
estudos sobre magia, alquimia, hermetismo, tidos como práticas elevadas nos círculos
intelectuais. O que veio a declarar o ódio coletivo às feiticeiras foi a sua afirmada
ligação com o Demônio pela Igreja, que circunscreveu as práticas populares – muitas
com elementos acentuadamente pagãos – na bruxaria, a pior das heresias cujos adeptos
renegam Deus para adorar seu adversário, causador de todos os males que atingiam a
sociedade de então. A relação com o sobrenatural, não controlada pelos poderes
constituídos, foi assim dotada de um caráter nefasto.
A redução dos fenômenos mágicos à esfera do mal promoveu uma separação
entre as práticas conhecidas como magia, feitiçaria e bruxaria. A magia, freqüentemente
encarada como uma arte ou “ciência” de entendimento complexo, tem no mago um
intermediário junto às forças do universo, visíveis e invisíveis, subjugando-as. Já a
distinção entre magia ou feitiçaria e bruxaria pode ser encontrada em uma obra de
Godelmann, contemporâneo da caça às bruxas:

Magos e feiticeiras aprendem a arte diabólica de livros, ou através do Demônio ou de outros


magos, com seus encantamentos, ritos, cerimônias, caracteres etc., mas as bruxas não conhecem
qualquer arte, não têm livros nem mestres, nem os necessitam, mas é o Demônio que se insinua
naqueles que ele suspeita ou sabe serem crédulos, ou imbecilizados pela idade, ou por natureza
melancólicos ou desesperados pela pobreza, e portanto instrumentos obedientes de seus enganos
e ilusões e que ele pode assim controlar as suas fantasias com vários fantasmas.1

O instrumental utilizado na feitiçaria – encantos, poções, rituais – é importante


para sua definição antropológica que, de maneira geral, apresenta a bruxaria como uma
característica intrínseca a determinados indivíduos, que lhes confere poderes mentais
extraordinários; já a feitiçaria trata das práticas que envolvem meios materiais. Assim,
são observáveis feiticeiros e feiticeiras em numerosas sociedades, ao contrário das
bruxas, com uma existência difícil de ser comprovada. Mas Keith Thomas mostra como
essas caracterizações podem ser inexatas para o historiador: algumas mulheres de fato
acreditavam serem bruxas, pois viam suas intenções malévolas anteciparem um evento

1
Godelmann apud NOGUEIRA, C. R. F., op. cit., p. 33.
52

negativo; desta forma, a bruxaria, ao menos na intenção, não é impossível. “O que está
claro é que, na Inglaterra dos séculos XVI e XVII, nunca se considerava que a pessoa
acusada de bruxaria houvesse agido involuntariamente. Ela podia ser vítima de seus
maus pensamentos, nas nunca de qualquer peculiaridade física.”2
Malinowski, no estudo de comunidades primitivas no início do século XX,
coloca a ação mágica intimamente relacionada a sua performance utilitária, ligando o
apelo ao sobrenatural, ao não-visto, ao mundo dos mortos, às necessidades do homem.3
Através dessa ótica antropológica, podemos tomar o universo mágico nas sociedades da
Europa medieval e renascentista como, simultaneamente, ameaçador e justificador da
ordem estabelecida, pois os ataques à cristandade compeliam a Igreja a agir. Estas
sociedades, que experimentaram a coexistência magia-religião, encontraram uma
válvula de escape para os males coletivos através da busca e purgação dos culpados, o
que, por sua vez, justificava o sistema.
Enquanto a Igreja procurava atribuir às mulheres as culpas das desgraças
individuais e coletivas, acreditando assim aumentar o poder repressivo sobre seres já
subordinados, paradoxalmente muitas delas tomaram esse poder que lhes era atribuído
como um meio de salvaguarda de uma comunidade hostil ou como forma de reforçar
suas ameaças contra desafetos. Entretanto, o que parecia ampliar seu poder individual
sobre os olhos crédulos de então se tornou um instrumento punitivo, e as pretensas
bruxas que ousaram desafiar a ordem estabelecida acabaram nas chamas.
A bruxaria, como um fenômeno rural, tem na sua agente um importante ator
social visto com dúvidas pela Igreja que salientará sua participação no sabbat enquanto
concubina do Tinhoso, praticante de perversões sexuais e assassinatos. Robert
Muchembled destaca a camponesa como conservadora e transmissora da cultura
popular, dado seu papel na educação das crianças, diferentemente do que pretendiam os
juízes, que viam nela uma rival de seus ensinamentos que poderia mesmo por a perder
um intenso trabalho de evangelização.4 O paulatino cerceamento dos festejos populares
com reminiscências pagãs, a limitação da presença feminina cuja função de educadora
passará aos clérigos e a quebra da solidariedade das comunidades diante um novo

2
THOMAS, K. Religião e o declínio da magia: crenças populares na Inglaterra, séculos XVI e
XVII. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. p. 377.
3
MALINOWSKI, B. Magia, ciência e religião. Lisboa: Edições 70, 1988.
4
MUCHEMBLED, R. L’autre côte du miroir: mythes sataniques et réalites culturelles aux XVIe.
et XVIIe. siècles. Annales ESC. Paris, v. 40, n. 2, mars/avr. 1985. p. 297.
53

panorama político-econômico produzirão os elementos constituintes do imaginário


acerca das bruxas.
A documentação disponível referente à bruxaria propicia pesquisas elaboradas
em cima da ótica da cultura erudita da época, atentando muito mais para a visão coletiva
das crenças estudadas do que para a percepção dos agentes envolvidos. Como pudemos
observar, a padronização das perguntas dirigidas pelos juízes às acusadas e a filtragem
das respostas provocavam, invariavelmente, a confirmação da culpa das interrogadas.
Contudo, há casos excepcionais que podem revelar as motivações individuais dos
desviantes, como o do moleiro Menochio retratado por Carlo Ginzburg5.
A tese do satanismo decorrente da demonologia e da prática judiciária é
apresentada por Robert Muchembled, que a confirma com as perseguições na Inglaterra
e na Dinamarca, onde a busca de ligações demoníacas não é comum nas acusações de
bruxaria, limitadas aos malefícios. O sabbat, estranho às mentalidades populares,
acabou por redundar no estabelecimento da delação como meio de vingança e de
libertação do medo, excedendo a caça às bruxas a esfera religiosa e abraçando os
campos social e político. Impôs-se um modelo de autoridade contra a vingança privada
e se ampliaram o enquadramento e a vigilância das populações pelos nascentes Estados
absolutistas. Assim, a “caça às bruxas é um efeito da aculturação dos camponeses pelas
elites religiosas e políticas.”6
O afrouxamento dos laços de união das comunidades culmina no distanciamento
do “povo comum”, caracterizado pela superstição e pela vingança privada, e de uma
elite nascente, que terá o apoio da Lei contra uma cultura considerada ultrapassada e
que centrava sua força na mulher, agente de transmissão oral. Resta então garantida a
perpetuação do controle sobre a comunidade por um pequeno número de indivíduos.7 A
variação de atitude das populações enfocadas, em sua relação com as autoridades e com
os elementos mágicos constituintes de sua visão de mundo, explica a diferença de
intensidade da perseguição entre Estados e em momentos distintos, pois os camponeses
não formavam um grupo homogêneo em todas as regiões européias.

5
Reconstruindo a história de um moleiro friulano, julgado herege pelo Santo Ofício e queimado,
após uma existência anônima, o autor retrata a circularidade entre a cultura das classes subalternas e a
cultura das classes dominantes, e aponta a singularidade de Menochio em seu tempo. GINZBURG, C. O
queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia. das
Letras, 1998.
6
MUCHEMBLED, R., op. cit., p. 298.
7
Ibid., p. 303.
54

Muchembled coloca a caça às bruxas como marco da crise do mundo medieval e


do cristianismo e, na medida em que estes cederam aos avanços do Absolutismo e das
novas formações sociais, a necessidade das perseguições diminuiu progressivamente.
Permaneceram circunscritos os camponeses, a bruxa teve sua função de curandeira
espiritual ocupada pelo padre e a vingança privada foi tolhida pela legislação, incidindo
diretamente as ordenações mesmo sobre as menores comunidades.8
Keith Thomas, na mesma direção, vincula o satanismo às construções
demonológicas do continente, pois a análise da realidade inglesa dos séculos XVI e
XVII revela que na ilha a perseguição às bruxas partia geralmente das massas,
temerosas dos malefícios já que não mais contavam com a proteção do ritual
eclesiástico banido com a Reforma. A bruxaria permaneceu assim sendo vista como um
meio de fazer mal aos inimigos, e não como uma seita de adoradores do Demônio,
sendo esta uma construção imposta de cima para baixo, sem um fundo social
verdadeiro, conforme a exposição clássica de Rossel Hope Robbins.9 Confluíram assim
dois conceitos de bruxaria na Inglaterra, o popular e o teológico, este vinculado ao pacto
diabólico, resultando em dois níveis diferentes de acusação.
A Inglaterra contou com uma recepção tardia do Malleus Maleficarum, dado o
distanciamento de sua igreja; o manual encontrou leitores entre os intelectuais que
buscavam publicações estrangeiras, possuindo apenas uma edição inglesa nos inícios da
Idade Moderna. Thomas também mostra que na Europa continental, diferentemente da
Inglaterra, existiam motivos materiais bastante interessantes para se promoverem
perseguições massivas: os bens dos condenados eram destinados ao senhor, à Inquisição
ou aos executores.10
Segundo o autor, a maior parte “das acusações de bruxaria (...) refletia um
conflito mal resolvido entre a conduta de boas relações entre vizinhos exigida pelo
código ético da velha comunidade aldeã, e as práticas cada vez mais individualistas de
comportamento que acompanhavam as mudanças econômicas dos séculos XVI e XVII.”
A antiga tradição de ajuda mútua acabou sendo minada por alterações econômicas,
como a carência de terras, a elevação de preços, a especialização agrícola, o crescimento
das cidades e dos valores comerciais.11

8
Ibid., id.
9
THOMAS, K., op. cit., p. 370.
10
Ibid., p. 371.
11
Ibid., p. 453 et seq.
55

Remetendo a Durkheim, que apresenta a afirmação da unidade coletiva da


sociedade pelo ritual religioso, tem-se o desaparecimento dessa unidade enquanto
reflexo do declínio do ritual religioso. A desintegração dos valores compartilhados, com
o crescimento urbano e industrial diluiu ainda mais a unidade moral da sociedade
inglesa. Foi somente nas aldeias rurais, onde se manteve uma determinada unidade
moral, que a religião conseguiu conservar um significado social; nas cidades, acentuou-
se a indiferença religiosa.
Os pobres passaram a ser vistos com ódio pela comunidade, representando uma
ameaça a ordem pública, mas ainda se reconhecia o dever cristão da caridade, entrando
então em choque o rancor e o sentimento de obrigação. “As tensões produzidas em nível
popular pelos processos contra bruxas (...) eram as tensões de uma sociedade que já não
tinha mais uma visão clara de como sustentar os seus membros dependentes e de quem
deveria fazê-lo.”12 Jean Delumeau, referindo-se à realidade inglesa estudada por Keith
Thomas e Alan Macfarlane, afirma que um “mecanismo psicológico profundo” motivou
as perseguições entre as massas camponesas, atingidas por “um complexo de
culpabilidade que se transformava em ressentimento contra aqueles que pediam
esmolas”.13
Entre os membros mais dependentes das comunidades encontramos uma maioria
de mulheres, muitas das quais viúvas, que passaram a ser consideradas como mais
acessíveis às armadilhas do Diabo pela privação material e solidão. A pobreza, bem
como a “fragilidade” a qual as mulheres foram expostas, revelam-se nas confissões, que
apresentam um mundo de misérias e fantasias não realizadas, promessas de dinheiro,
jóias, pagamento de dívidas, carne. O Diabo aparecia a suas vítimas quando estas se
encontravam abaladas, conforme apresentam os autores do Malleus Maleficarum:
vítimas do abandono social, as futuras bruxas cediam às tentações da demonolatria por
desespero, quando não por devassidão. “Para as pessoas em tal estado de desespero, a
ligação ao Diabo simbolizava a alienação de uma sociedade à qual tinham poucos
motivos para estarem gratas. Nesse sentido, a idéia da demonolatria não era uma total
fantasia.”14
Entretanto, os aliados de Satã a ele se sujeitam, e nisso reside seu maior pecado:
o Diabo não é mais humilhado e tido como servo, mas corrompe a humanidade através

12
Ibid., p. 455.
13
DELUMEAU, J., op. cit., p. 378.
14
THOMAS, K., op. cit., p. 421-2.
56

dos cristãos perdidos que passam a praticar o mal. Desta forma, todos eram atingidos,
não somente aqueles contra os quais rogava-se uma praga, ou se desejava fazer o leite
de suas vacas secar, mas a corrupção de um indivíduo batizado na fé que se propunha
única e verdadeira a abalava, como uma ofensa coletiva ao Criador. E daí resultam as
purgações dos indivíduos nocivos, em holocausto para aplacar a ira de um deus que
castigava os homens através de cometas, epidemias, fome.
Se a ação do Diabo no mundo é facilmente reconhecida, a crença na prática da
bruxaria deve ser igualmente um elemento essencial da fé, dogma que expressa a
formação de uma visão de mundo na qual as acusações de demonolatria eram comuns.
Mesmo para os acusados que se imaginavam inocentes em princípio, a condução do
interrogatório os levava a crer que se haviam tido um mero pensamento maléfico, se
haviam desejado o mal a alguém, eram culpados pela desgraça que se abatia sobre seus
desafetos.

Alguns chamam-me bruxa,


E sem saber de mim, metem-se
A ensinar-me a ser uma; insistem
Que a minha língua ruim (assim feita pelas más línguas deles)
Enfeitiça seu rebanho, e de fato embruxa suas colheitas,
Eles mesmos, seus criados, e seus bebês de peito.
Isso é o que me impõe; e em parte
Fazem-me acreditar nisso.15

Neste sentido, como apresenta Thomas, muitos dos casos de bruxaria repousam
sobre a consciência pesada dos indivíduos que haviam sofrido as investidas de uma
pretensa bruxa, pois o infortúnio recaía sobre aqueles que, de alguma forma, haviam
agido mal com uma mulher que se vingara, o que se alia à falta de uma explicação
plausível para o ocorrido. E, conforme os ensinamentos da Igreja, o que não pode ser
explicado ou justificado pela fé ou pela medicina é visto como um evento sobrenatural
maligno.
Reginald Scot definiu uma “posição cética padrão” em 1584, apresentando
quatro categorias de bruxas: “as inocentes, falsamente acusadas por malevolência ou
ignorância”; as “malévolas e semidementes” que acreditavam tolamente estarem ligadas
ao Diabo, fazendo confissões absurdas, mas que na realidade não praticavam o mal; as
“bruxas genuinamente maléficas” que atingiam seus vizinhos por meio de venenos, e
não pela ajuda do sobrenatural; e as magas e feiticeiras, na verdade impostoras e
57

trapaceiras que iludiam as pessoas com a falsa ilusão de curar doenças, ler a sorte e
encontrar objetos perdidos. Assim, Scot, dentro da mentalidade de sua época, admitia a
existência de bruxas, mas não acreditava que elas fizessem um pacto corporal com o
Demônio ou que pudessem prejudicar a outrem por meios sobrenaturais.16
As bruxas confessas, que afirmavam se encontrarem com o Diabo, vivenciavam
as aparições narradas pela própria Igreja, em uma sociedade imersa em crenças no
sobrenatural. “Acostumados pelo discurso teológico da época a personificar seus maus
pensamentos e tentações, podem muito bem ter visto a si mesmos encontrando-se com o
Diabo, símbolo de tudo o que era mal e anti-social, do mesmo modo que outras pessoas
da época acreditavam genuinamente ter visto ou ouvido Deus.”17
Os banquetes repugnantes servidos no sabbat, cuja imagem foi construída sobre
o que se julgava de mais depravado e afastado da religiosidade, opõem-se nitidamente à
consagração da missa, como se toda a imaginada liturgia demoníaca fosse o mundo às
avessas por excelência, mas não um mundo risível e subjugado. As ameaças de que
qualquer um poderia ser tragado para a podridão revelam-se exemplarmente nas
imagens da época, como as produzidas por Bosch e Brueghel, fruto de consciências
obsedadas pelo discurso religioso.
As aparições do Demônio sob a forma de um cão negro, ou como um bode – o
que reflete a condução dos deuses antigos a duas deidades opostas, o Júpiter iluminado
convertido no deus cristão universal, ao passo que o Baco associado aos divertimentos e
à sensualidade contribuiu para a formação arquetípica do Maligno – assinalam as
projeções exteriores de um mal que somente após séculos foi interiorizado.18 Conforme
apresenta Freud, “Os estados de possessão correspondem às nossas neuroses (...). A
nossos olhos, os demônios são desejos maus e repreensíveis, derivados de impulsos
instintuais que foram repudiados e reprimidos.”19
A importância do Diabo elevada a seu grau máximo nestes inícios da Idade
Moderna produziu o seu confronto direto com a face do Bem representada pela Igreja, e
negá-lo equivaleria a negar por conseguinte Deus. Mesmo as mulheres que afirmaram
espontaneamente serem bruxas colocavam o poder de Satã subjugado ao celeste,

15
Apud THOMAS, K., op. cit., p. 425.
16
Ibid., p. 462.
17
Ibid., p. 420.
18
Sobre a evolução da imagem satânica ver a fundamental obra de Muchembled, Uma história
do Diabo, op. cit.
19
FREUD, S. Uma neurose demoníaca do século XVII. In: _____. Edição standart brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XIX. p. 91-2.
58

confirmando a hierarquia ensinada e tranqüilizando as angústias dos juízes que


visualizavam o fim do mundo. A repetição dos estereótipos afirmados pelos
interrogadores – a adoração do Diabo, os sabbats, as orgias, os malefícios ensinados
pelo Maligno – transparece nas confissões, revelando que eram sugeridos às acusadas
ao longo da sessão de tortura ou com a imposição de respostas limitadoras.

O ajuste preciso das respostas às perguntas, a adesão quase automática da indiciada às acusações
lançadas contra ela pelos juízes e, por outro lado, sua ausência de memória quando se trata de dar
uma resposta mais pessoal, permitem apreender muito concretamente uma das fases capitais da
elaboração do mito demonológico e sabático. Por certo os aldeões ouviam falar do diabo pelo
cura, na igreja. A feiticeira declara espontaneamente que o diabo vêm visitá-la quando deixa de
persignar-se. Seu demônio tem um nome erudito: Belzebu. Mas, de resto, o essencial de suas
respostas lhe é sugerido pelos juízes.20

A malignidade dos desviantes que se afastavam da sagrada ortodoxia cristã,


mesmo não intencionalmente – seja por um catecismo deficitário ou por uma arraigada
tradição oral, pois, como Febvre apresentou, não se pode considerar a descrença como
constituinte do mundo de então –, expressa-se nas pragas e maldições lançadas contra os
inimigos. Os conflitos sociais acabavam por determinar a necessidade do emprego da
bruxaria, destinando o papel da temida bruxa àquela que melhor correspondia ao
estereótipo: velha, viúva ou celibatária, pobre, de má reputação.
Não há uma relação aparente entre acusações de feitiçaria e desvios sexuais,
como o incesto, repetidamente exposta pelos manuais da inquisição que tratam da
temática, afirmando nos sabbats ocorrerem uniões entre mães e filhos e entre irmãos.
“No Luxemburgo dos anos 1590-1630 estudado pela sra. Dupont-Bouchat, a feiticeira,
na mentalidade coletiva, é no mais das vezes uma ‘puta’ e uma ‘debochada’, ou ainda
uma ‘ladra’ e uma ‘mentirosa’, em todo caso uma pessoa de ‘má reputação e fama’.”21
O negativo papel da bruxa diante de sua comunidade confirma as afirmações dos
autores do Malleus Maleficarum, contudo, a acusação popular centrava-se
especialmente nos poderes extraordinários das bruxas e não em suas perversões sexuais.
O estereótipo de velha feiticeira é confirmado em uma pesquisa de E. W.
Monter, que reuniu os processos de 195 pessoas (sendo 155 mulheres) na Suíça,
Inglaterra e França, apontando uma média de idade de 60 anos. Outro índice estatístico,
baseado em 582 casos na Suíça, em Montbéliard, em Toul e em Essex, coloca que, do

20
DELUMEAU, J., op. cit., p.383.
21
Ibid., p. 365.
59

universo feminino das acusadas em 1545, 37% eram viúvas, 14% celibatárias e 49%
casadas. O alto índice de viúvas retoma a questão da idade elevada e da dependência.22
A velha era a bruxa por excelência na mentalidade da época, influenciada pelo
neoplatonismo renascentista que colocou a beleza física como representação da bondade
e, sendo assim, as mulheres idosas tinham a malignidade marcada em sua aparência
decadente. A poesia da época, que se pretendia humanista, não tardou a influenciar
negativamente o público leitor acerca da “velha bruxa”. Ela encarna o vício e aparece
como a principal aliada de Satã, sendo freqüentemente associada ao inverno, à fome, à
esterilidade, à inveja. É alcoviteira e feiticeira, mestra no uso de ervas e poções. Pierre
de Lancre apresenta:

A verdade é que a velhice não é uma causa idônea para diminuir a pena de delitos tão execráveis
que elas se acostumaram a cometer. E além disso é uma ficção dizer que todas as feiticeiras são
velhas, pois entre uma infinidade que vimos durante nossa comissão na região de Labourd, havia
quase tantas jovens quanto velhas. Pois as velhas instruem as jovens.23

Na Inglaterra, desde o século XIII era utilizado como instrumento de punição o


cucking-stool, uma cadeira para a imersão, sobretudo, de qualquer velha rabugenta,
“uma mulher encrenqueira e colérica que, pelas suas rixas e brigas entre os vizinhos, de
fato perturba a paz pública, e gera, alimenta e aumenta a discórdia pública. Para
controlar tais megeras, algumas comunidades empregavam o cucking-stool, outras
punham a infratora em uma jaula ou a levavam pelas ruas presa por uma coleira de
metal”.24
Havia na época um consenso geral de que o Diabo interferia ao ouvir uma
mulher rogando uma praga ou lançando uma maldição sobre alguém. A velha que
recorria a esses expedientes poderia ser punida como rabugenta, amaldiçoadora ou
bruxa. Além do processo formal de bruxaria, a acusada era freqüentemente colocada no
ostracismo pelos vizinhos, se já não havia se afastado da comunidade, e sofria atos
informais de violência – acreditava-se que ao arranhar uma bruxa, fazendo-a sangrar,
seus malefícios seriam anulados. Mas assim como a fama de bruxa poderia fazê-la ser
proscrita pela comunidade, poderia também servir como garantia para que as velhas
fossem bem tratadas pelos vizinhos, já que sendo temidas e odiadas ninguém ousava
ofendê-las ou lhes negar auxílio.

22
Ibid., id.
23
Ibid., p. 337.
24
THOMAS, K., op. cit., p. 427.
60

Michelet, em sua obra A feiticeira, publicada em 1862, embora sendo anacrônico


e partilhando do mesmo fundo de crenças do clericalismo que criticava, nas suas
observações aponta validamente Satã como uma peça fundamental na estrutura religiosa
e o imaginário como uma fuga ante a miséria circundante. A feitiçaria é apresentada
como uma revolta social, um instrumento de sublevação da ordem estabelecida pelo
clero e pelo Estado opressivo. Todavia, os processos mostram que a Inquisição não
atuou somente por entre as massas rurais pobres, também atingiu o meio urbano e as
classes elevadas, e a cultura demonológica resultou de ampla produção erudita.
Para o autor romântico, o Diabo que serve à mulher jovem torna-se seu senhor
quando esta envelhece e é rejeitada. Tudo o que a transformada noiva de Satã deseja é
praticar o mal, atingir aqueles que a desgraçaram, e ele lhe revela todos seus segredos.
Em sua homenagem ao príncipe das trevas, Baco nos cornos e na forma de bode, e
Príapo nos atributos viris, a feiticeira recebe os sacramentos às avessas: batismo, ordem
e matrimônio. É na missa negra que ocorre a redenção da filha de Eva, onde é hóstia e
altar, e se dá em alimento à multidão.
Foi a feiticeira, fruto do desespero gerado pelo mundo da Igreja, quem deu voz e
ação à mulher, quem a fez viver. “Como é grande a força da bem-amada de Satã, que
cura, prevê, advinha, evoca as almas dos mortos, faz sortilégios, nos transforma em
lebre, em lobo, nos guia até um tesouro e, muito mais, nos faz amar! (...) Tudo o que
outrora diziam ao confessor, dizem a ela. Não somente os pecados que fizeram, mas o
que pretendiam fazer.”25
A entrega ao Mal não vem de uma natureza maligna do indivíduo, mas resulta
do sofrimento para Michelet que, dentro do espírito romântico, tomava o sabbat como
uma realidade. Quando as privações materiais, as doenças, a exploração dos servos
pelos senhores, fazem-se mais agudas, o povo reclama aos céus um alívio para suas
dores. E, na ausência de um milagre, da piedade divina alimentar um povo entregue ao
Deus único e todo-poderoso, é a Satã e seus acólitos que se vai recorrer. Os servos viam
no Diabo o espírito salvador que os livraria da opressão e, conforme explicitam Kramer
e Sprenger, Deus permite que o Diabo aja no mundo.
O controle a que estava sujeito o feminino, expresso por Michelet, é manifesto
na ciência médica renascentista. Levinus Lemmius (1505-68) se utilizou da teoria dos
humores para escrever sobre a mulher como um ser fraco por natureza, o que resulta em

25
MICHELET, J. A feiticeira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 113.
61

uma propensão ao adultério. O médico desenvolveu uma “teoria do contágio”, vendo no


corpo feminino uma fonte de impurezas: ‘A mulher abunda em excrementos, e por
causa de suas flores [regras] ela exala um cheiro mau, e também ela piora todas as
coisas e destrói suas forças e faculdades naturais.’26
Seguindo uma linha mais indulgente, Rabelais apresenta no Tiers livre,
publicado em 1546, que a mulher deve ser protegida por um marido zeloso, pois foi
criada para o “social deleite do homem” e para a administração do lar; mas deve ser
tratada com indulgência, jamais com devoção, pois é próprio de seu sexo cometer
adultério. O médico francês Jean Wier em seu livro Histoires, disputes et discours des
ilusions et impostures des diables, pede indulgência para as feiticeiras, pois devido ao
caráter fraco e à natureza enferma das mulheres elas são mais facilmente atraídas por
Satã.
Bodin, em sua Demonomania, refere-se às mulheres afirmando que ‘sua feiúra é
a causa de elas serem bruxas e se entregarem aos diabos, pois se elas pudessem
encontrar algo melhor, não aceitariam tais namorados’.27 Em oposição a Jean Wier,
Bodin escreve:

Que se leiam os livros de todos aqueles que escreveram sobre feiticeiros e encontrar-se-ão
cinqüenta mulheres feiticeiras, ou então demoníacas, para um homem [...]. o que ocorre não pela
fragilidade do sexo, em minha opinião: pois vemos uma obstinação indomável na maioria [...].
Haveria mais evidência em dizer que foi a força da cupidez bestial que reduziu a mulher à
miséria por gozar desses apetites ou por vingança. E parece que por essa razão Platão colocou a
mulher entre o homem e o animal bruto. Pois vêem-se as partes viscerais maiores nas mulheres
do que nos homens, que não têm uma cupidez tão violenta; e, ao contrário, as cabeças dos
homens são muito maiores e em conseqüência, eles têm mais cérebro e prudência que as
mulheres.28

O controle da sexualidade feminina por um amplo discurso misógino


fundamentado na tradição aristotélica repousava no interior dos lares, receptores dos
discursos produzidos nas camadas mais elevadas da sociedade. Seguindo a análise de
Robert Muchembled, “o rei e seus juízes davam curso a uma metáfora patriarcal. O
reforço da autoridade do Estado passava pelo dos maridos sobre as mulheres e dos pais
sobre os filhos. O contrato social da época tinha por finalidade reforçar o poder
masculino, da intimidade da família às engrenagens do Estado.”29

26
Bodin apud MUCHEMBLED, R. Uma história do Diabo..., p. 101.
27
Ibid., p. 104.
28
Bodin apud DELUMEAU, J., op. cit., p. 335.
29
MUCHEMBLED, R., op. cit., p. 116-7.
62

A união entre Igreja e Estado no combate à feitiçaria promoveu o reforço do


Absolutismo, tendendo os governos a controlar os processos religiosos. A incorporação
pela Lei, que já situava a mulher em um nível inferior, das formulações produzidas pela
demonologia, promoveu durante o surto da caça às bruxas uma proporção feminina
dentro dos acusados muito maior que a masculina. Assim, tanto juízes eclesiásticos
como laicos foram os responsáveis pela caça às feiticeiras, “como defensores de um
mesmo poder, como detentores de um mesmo saber, com usuários de uma mesma
linguagem”.30
A tortura passou a ser utilizada amplamente nos interrogatórios dos acusados de
bruxaria e a serem realizados julgamentos privados, formalizando-os segundo as
instruções dos juízes religiosos, que viram os ímpetos de seus congêneres civis
extrapolarem suas próprias perseguições em diversas regiões, como na França. Alguns
juízes chegaram mesmo a iniciar as perseguições, incentivando as populações locais a
denunciarem bruxas em potencial.
Geralmente a tortura ou sua ameaça multiplicava o número de pretensos
culpados. A esse respeito escreveu o jesuíta Spee, em 1631: ‘A tortura enche nossa terra
da Alemanha de feiticeiros e ali faz surgir uma maldade inaudita, e não apenas na
Alemanha, mas em toda nação que a use. Se nem todos nós confessamos ser feiticeiros,
é que não fomos torturados.’31
Na Inglaterra dos séculos XVI e XVII a tortura foi menos empregada do que no
continente, contudo, impunha-se uma forma de tortura menos evidente do que os
castigos corporais: a fome e a privação do sono, além da defasagem cultural entre juiz e
acusado – “as bruxas, muito torturadas com vigília e jejum e beliscadas quando prontas
a cochilar, contentam-se sem motivo em acusar-se, para serem alienadas da dor
presente”.32 Mas na Inglaterra houve casos em que pessoas foram deliberadamente aos
juízes se acusarem, e algumas, apesar de evidências contrárias, persistentemente
confessavam crimes que não haviam cometido, o que expressa casos particulares que
envolvem um estado de depressão aguda (“melancolia”, na linguagem da época), busca
por má publicidade, provocações contra desafetos. Mas as confissões espontâneas só
eram aceitas pelos juízes traduzidas na linguagem demonológica.33

30
DELUMEAU, J., op. cit., p. 387.
31
Spee apud DELUMEAU, J., op. cit., p. 381.
32
THOMAS, K., op. cit., p. 418.
33
Ibid., id.
63

No transcorrer do século XVI ao XVII o Estado endureceu sua legislação acerca


da feitiçaria, como mostra a Nemesis Carolina, publicada em 1532 por Carlos V: ‘Se
alguém (...) causou algum dano a outrem por sortilégio ou malefício, será punido com a
morte, e mesmo condenado à fogueira. Se alguém praticou a feitiçaria sem prejudicar a
outrem, não será preciso puni-lo senão na medida em que pecou, e essa punição será
deixada à apreciação do juiz’.34
Na Inglaterra, o primeiro estatuto condenando a feitiçaria é registrado em 1542,
sendo agravado em 1563 por um Act que declarava ser crime a invocação de espíritos,
punindo com a pena capital os que provocassem a morte de outrem através de bruxaria;
caso a vítima recebesse ferimentos ou saísse ilesa, ou ocorresse a morte de um animal, o
causador recebia pena de um ano de prisão e quatro exposições no pelourinho, com a
reincidência estimulando a pena de morte. Em 1563 a Escócia firmou ‘a primeira lei
contra a feitiçaria, inaugurando um século de terror’, sendo mais feroz nas perseguições
que os ingleses. Em 1572, as Constitutiones saxonicae decretaram morte na fogueira a
todas as feiticeiras que firmaram pacto com o Demônio, mesmo as que não praticaram
maleficium. Os condenados, diferentemente do continente, eram enforcados ao invés de
queimados.35
As perseguições nas áreas em que o protestantismo foi vitorioso equiparam-se às
em regiões católicas, com ambas acusando os adversários de conluio com o Demônio, e
representando o papa ou Calvino e Lutero, conforme cada caso, com o anticristo. “No
mundo protestante, o poder dos homens sobre as mulheres foi igualmente afirmado de
forma determinante, a ponto de a caça às feiticeiras e a prática de exorcismos na
Alemanha terem sido consideradas meios de tornar explícita uma visão de mundo muito
contrastante do corpo masculino e do feminino, tornados instrumentos de poder e de
saber.”36 A sujeição feminina nas terras de Lutero encontrava um reforço paradoxal no
exemplo das rainhas francesas católicas cujo poder excedera o dos regentes.
A perseguição foi mais intensa nas regiões montanhosas, limitando-se na
primeira metade do século XVI às regiões dos Alpes e dos Pirineus. Entre 1550 e 1650
a violência alcançou a Suíça, o sul da Alemanha, o Franco-Condado, o Luxemburgo e
os Países Baixos, a Inglaterra do reinado de Elisabeth, a Escócia após o triunfo da
Reforma (1560), o sul da França no reinado de Henrique de Bourbon, o País Basco, a

34
DELUMEAU, J., op. cit., p. 357.
35
Ibid., p. 358-9.
36
MUCHEMBLED, R., op. cit., p. 97.
64

Dinamarca, a Transilvânia e a Suécia. Na segunda metade do século XVII e no século


XVIII os casos de maior repercussão consistem nas crises dos conventos franceses de
Aix, Loudun e Louviers, e em Salém, na Nova Inglaterra, em 1692. Salvo poucas
exceções, “os processos de Salém foram os últimos a propósito dos quais toda uma
comunidade acreditou que sua existência estivesse ameaçada pelos malefícios da
feitiçaria.”37
A caça variou em sua intensidade conforme a região e o período, tendo como
vítimas principalmente os camponeses e grupos isolados de pastores, mineradores e
montanheses, que possuíam uma cultura própria, distintiva e isolada das práticas aldeãs
e, sobretudo, citadinas. O atraso cultural em relação às elites acarretou uma maior
perseguição, principalmente em regiões alheias ao controle do Estado que necessitava
dominá-las.38
A violência da perseguição é observável em boa parte da Europa ocidental e,
sem dúvida, as mulheres formaram o maior contingente de vítimas da mania
persecutória. No plano geral, a maior parte das pesquisas coloca os homens como
representantes de 5 a 10% do total de acusados, tendo uma proporção maior de homens
condenados na cidade do que no campo. Entretanto, Delumeau aponta um índice de 18 a
20% de homens condenados; mesmo se ampliando o número de vítimas masculinas, é
reforçada a vinculação da heresia da bruxaria às mulheres que, muitas vezes, eram
consideradas culpadas pelos delitos dos homens, por os terem levado ao Mal – afinal, a
herança do pecado original se faz presentes em todos os cristãos, e a imagem da Eva
provocadora apela ao discernimento dos homens contra as tentações que sua
companheira pode oferecer.

Entre 1606 e 1650, nos prebostados alemães de Luxemburgo, 31% de homens e 69% de
mulheres foram levados à justiça por feitiçaria, mas nos prebostados valões apenas 13% de
homens e de 87% de mulheres. Porcentagens estabelecidas nas outras regiões de perseguição, no
estado atual das pesquisas e em relação ao número total dos processos, dão 5% de homens no
bispado de Basiléia, 8% no condado de Namur e em Essex, 14% no principado de Montbéliard,
18% no cantão de Soleure, no sudoeste da Alemanha e no atual departamento francês do Norte,
19% no cantão de Neuchâtel, 24% em Genebra e em Franche-Comté, 29% em Toledo, 32% em
Cuenca, 36% no cantão do Friburgo e mesmo 42% no de Vaud.39

37
Ibid., p. 355.
38
Maiores informações acerca das especificidades culturais dos diversos grupos perseguidos
podem ser encontradas em BURKE, P. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia. das Letras,
1999.
39
DELUMEAU, J., op. cit., p. 365.
65

Alterações significativas no cotidiano das populações e na mentalidade dos


intelectuais conduziram ao declínio da caça às bruxas e da crença na eficácia de seus
atos. A Guerra dos Trinta Anos levou às regiões da Basiléia e do Luxemburgo soldados
e vadios que atemorizavam as populações com impostos e roubos; as revoltas rurais dos
séculos XVI e XVII direcionaram a agressividade camponesa que antes atingia os
feiticeiros; as classes populares ainda tiveram uma diminuição das provações materiais
com a queda dos preços e a estagnação demográfica do século XVII. A autoridade civil
e o poder eclesiástico apelaram para o estabelecimento de uma “ordem moral”,
exercendo um controle mais estreito da vida cotidiana. O Estado encontrava-se melhor
armado e as religiões estabelecidas mais presentes após superarem as ameaças da
Reforma e da Contra-Reforma, o que contribuiu para diminuir o medo dos malefícios. A
partir de meados do século XVII, “O homem de Deus, em país católico como em terra
protestante, era mais do que outrora o conselheiro da população. Feiticeiros e adivinhos
foram marginalizados.”40
A Igreja paulatinamente deixou de se sentir ameaçada por um paganismo que
jamais havia se levantado contra ela, com o auxílio das forças demoníacas. O catecismo,
os colégios e as missões de evangelização garantiam o monopólio da fé e a docilidade
das massas camponesas que superaram os períodos de insegurança religiosa. A cultura
“já não precisava temer o assalto das forças incontroladas. Satã não era negado, mas era
progressivamente dominado.”41
As elites eram tomadas pelo avanço do racionalismo, manifestando dúvidas
quanto às proezas do Diabo e das bruxas. Ainda que algumas regiões venham a sofrer
com uma grande quantidade de processos tardios – como a Polônia que no século XVIII
levantou fogueiras –, a subjetivação da crença no Demônio integra o processo de
“desencantamento do universo” que finalmente faz recuar, mesmo que timidamente, um
mundo de crenças no sobrenatural.
Contudo, mesmo com o abandono das acusações de feitiçaria em fins do século
XVII, o status cultural da mulher não foi reabilitado. A feiticeira, que destacara a
mulher na sociedade ao causar temor, passa do campo da heresia para a doença, tendo o
pacto com Satã cedido lugar à alucinação, à histeria. Agripa, Lavatier e Wier, médicos
reconhecidos cujas opiniões em longo prazo sobressairiam o juízo maledicente de

40
Ibid., p. 418.
41
Ibid., id.
66

Bodin, dirão que essas pobres mulheres devem ser curadas e não queimadas, porque na
maioria não passavam de doentes sob o efeito de uma ilusão.
Progressivamente a mulher deixa de ser perseguida, sendo as ainda acusadas de
bruxaria tratadas com maior tolerância, a exemplo do que Molitor, jurista da Constança,
alertava: não se devia acreditar nas confissões das feiticeiras, justamente porque era o
Diabo quem falava através delas. “Quando era feiticeira, a forca ou a fogueira
manifestavam, na sua crueldade, a sua total responsabilidade penal. Vítima da sua
imaginação ou tomada de loucura, ela transforma-se num ser juridicamente diminuído,
com responsabilidade pessoal limitada”.42
A extinção das fogueiras não permitiu, portanto, a reabilitação da imagem do
feminino, que recebeu uma nova roupagem segundo as concepções filosóficas vigentes
perpetuando a imagem do “segundo sexo”, que agora passaria a um controle mais
estreito por seus senhores, pois as armadilhas diabólicas revelaram o quão perigosas as
mulheres podem ser se não forem mantidas sob vigilância.

42
DUBY, Georges; PERROT, Michelle (dir.). História das Mulheres no Ocidente. São Paulo:
EBRADIL, 1994. v. 3: Do Renascimento à Idade Moderna. p. 533.
67

III. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Algumas célebres imagens de Francisco de Goya, produzidas em um momento


em que o racionalismo já se infiltrara por entre as elites artísticas e intelectuais,
apresentam velhas bruxas com aparência decadente e desejos aflitos, em parceria com
diabos sob um clima funesto e orgiástico. Reportam-nos o horror ante um mundo regido
por comportamentos persecutórios e crenças no sobrenatural, no qual as pessoas se viam
cercadas pelas ações demoníacas, expressas no íntimo da cristandade através das
agentes do Demônio.
O imaginário ocidental em torno da figura da bruxa foi construído sobre um
repertório vivenciado com pavor pelas massas de fins da Idade Média e inícios da
Modernidade, que acorriam aos impressionantes espetáculos públicos de queima das
feiticeiras. As velhas desregradas, os vôos noturnos em vassouras ou sobre bestas, a
cópula com demônios, o preparo de encantamentos e poções com ingredientes fétidos e
repugnantes, e o assassinato e a ingestão de criancinhas obsedavam as populações da
época, que se empenhavam em promover o ordálio daquelas que se pensava corromper
a sociedade.
A bruxaria se tornou, desta forma, uma justificativa para as mazelas sociais,
através da qual ganhavam significado eventos inexplicáveis naturalmente ou pela Igreja,
mas que não recebiam a característica miraculosa – como enfermidades cuja causa ou
fim eram desconhecidos, a morte súbita de recém-nascidos, a incidência da peste em
determinada localidade, e mesmo a aparição de cometas e alterações climáticas. Como
apresentam os autores do Malleus Maleficarum, é longa a lista dos feitos das bruxas,
cujo poder assolaria a todos se a providência divina não agisse em favor de
determinadas pessoas, caso dos juízes e demais envolvidos nos processos.
Mas a bruxa não consistiu no único bode expiatório do período aqui enfocado,
tal ocorreu com minorias segregadas, caso exemplar dos judeus, mas também de grupos
hereges1, prostitutas e leprosos. Entretanto, o caso aqui analisado possui um caráter
específico pela afirmada predisposição biológica da mulher à prática do mal, afirmação
reforçada pelo aristotelismo adaptado às necessidades monásticas e que encontrava eco
nas estruturas sociais que diminuíam a mulher, limitando sua esfera de ação.

1
Lembramos que diversas acusações contra seitas heréticas, especialmente a dos valdenses,
auxiliaram na composição das características da bruxaria. Alguns dos crimes imputados eram os mesmos
que os romanos haviam afirmado os cristãos praticarem: orgias, sodomia, morte de crianças.
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Tornada uma figura clássica que acabou sendo confinada nas estórias infantis, a
bruxa expressa a especificidade que o discurso misógino adquire no período em estudo.
A mulher que teve sua imagem construída sobre o carnal e o impuro adquiriu o status de
serva de Satã dentro do cristianismo tardo-medieval, sendo imbuída de um grande
poder, ainda que maligno, afrontando a ordenada estrutura cristã. Foram perpetuados e
ampliados intensamente pela Igreja elementos clássicos na construção de discursos
misóginos específicos, voltados a denegrir a mulher, e cuja via preferencial consistiu na
sexualidade.
Tendo como justificativa primeira o Gênesis, os religiosos vincularam a tentação
inextricavelmente à mulher e, em sua maior expressão, ao corpo feminino, transformado
em objeto não de desejo, mas de repúdio pelo que ele poderia levar às almas
abençoadas. A destacada separação entre carne e espírito promoveu o distanciamento
teórico entre os gêneros, procurando-se, na prática, subordinar o “segundo sexo”
limitando-o à função reprodutora.
A literatura cristã, que percorreu caminhos tortuosos para afirmar um tom único
nas denúncias contra as artimanhas femininas, serviu-se de poderosos formadores de
opinião, como Agostinho e Tomás de Aquino, cujas idéias acerca do sexo oposto
contribuíram decisivamente para a formação de um juízo negativo ao extremo sobre a
mulher. Mesmo no que poderia salvá-la de sua culpa, a maternidade, os clérigos viam
perigos, pois era ela a responsável pela educação do rebanho católico e, sendo idólatra,
poderia deturpar os ensinamentos sagrados.
Os discursos misóginos, que cresceram substancialmente a partir do século XII,
atingindo o público leigo, encontraram um determinado contexto social que os
estimulava na medida em que a sujeição contínua favorecia um estreito controle. A
mulher, vista como faladeira, supersticiosa, adúltera, lasciva, ousava levantar-se contra
seus senhores dada sua fraqueza natural. Alia-se ao Diabo, cuja imagem transforma-se
em um poderoso instrumento de controle, pois qualquer cristão poderia tornar-se sua
vítima, devendo manter-se dentro da fé para extinguir a atração pelo pecaminoso.
O ápice da misoginia cristã do período é representado pelo Malleus
Maleficarum, que reuniu diversos discursos com o mesmo fim, a sujeição feminina e a
comprovação de sua inferioridade carnal e ética, explicitadas no pacto demoníaco. A
mulher, entregue às provações materiais e à lascívia, encontrou, para os autores, um
meio de saciedade na união com o Maligno, padronizando relatos que envolviam
práticas pagãs que se conservaram deformadas na mentalidade das populações, sem
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qualquer vinculação com o Demônio, e a abjeção moral a práticas ilícitas, reais ou


imaginárias.
Os parâmetros estabelecidos no manual, seguidos pelos juízes, resultaram em
declarações fantásticas de mulheres que confessavam, sob tortura, a prática da bruxaria
demoníaca, bem como na confluência com as repostas esperadas pelos interrogadores –
a formalização do pacto negro, as cópulas com íncubos, a ida ao sabbat em
determinadas noites, os malefícios operados, a indicação de outras bruxas. Assim, as
mulheres implicadas dificilmente escapavam das provas, materiais ou sobrenaturais, que
lhes eram apresentadas, reforçando aos olhos da comunidade a existência do crime.
A bruxa como um ente maligno, adoradora do Diabo, praticante de perversidade
morais nos sabbats resultou, portanto, de um modelo construído sistematicamente pela
Igreja, que teve seu discurso reforçado pelos juízes civis e utilizado também pelos
protestantes. Contudo, mais do que praticante de um crime anti-social – como a
destruição de plantios, a provocação de tempestades ou secas, a ruína de indivíduos que
lhe ameaçavam –, a bruxa foi erigida como culpada maior pelos castigos divinos. Os
pecados dos cristãos entregues ao Inimigo recaíam sobre a coletividade, desta forma,
eximiu-se Deus da culpa pela ação nefasta dentro do rebanho cristão, cujas súplicas
pareciam não ser ouvidas.
Apesar da bruxaria ter punições expressas em diversos códigos legais do
Medievo, a caça às bruxas se intensificou somente a partir de fins do século XV quando
se aloja na mentalidade coletiva o modelo imposto pela Igreja católica. A bruxaria deixa
de ser encarada como um artifício para fazer mal aos inimigos e passa a ser uma ampla
perversão religiosa, moral e sexual, que quebrava os maiores tabus da sociedade. A
ampliação da imagem do sabbat, na qual reuniram-se todos os elementos maléficos,
acabou por reunir imposição da autoridade estatal, reforço da autoridade religiosa e
desejado banimento das superstições não-cristãs, pânico popular dos malefícios e ódio
contra indivíduos isolados, na purgação das mulheres que, ao que julgam os clérigos,
ousavam perturbar a ordem estabelecida, voltando-se contra a o Criador para adoração
do Diabo.
As elaborações de Kramer e Sprenger sobre a bruxaria permitem reforçar a idéia
de uma sexualidade intensamente reprimida, trazida à tona na visualização dos
imaginados sabbats. Desejos contidos, projetados no sexo que tentava padres
celibatários mas que se satisfazia com o Maligno, promotor único das desgraças
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masculinas pois, quando não agia de modo direto, era o culpado pela indução à prática
do mal.
Contudo, a bruxa certamente pode ter existido. Como um indivíduo isolado, que
intentava fazer o mal a seus desafetos através de encantos ou poções, ou até mesmo que,
em seu íntimo, renegava os dogmas de uma religião imposta que cerceava suas desejos.
Mas não como integrante de uma seita organizada, não como uma mulher que poderia
voar com o auxílio de demônios ou de pomadas feitas a partir das vísceras de suas
vítimas. Afirmar a existência dos sabbats, assimilando-os a divertimentos pagãos anti-
cristãos é uma inverdade histórica, desmentida pela própria infiltração do cristianismo
no seio das comunidades e pelo fato de que foi a demonologia que levou até elas o
imaginário em torno dos encontros satânicos.
A visão das mulheres como portadoras de uma sexualidade desenfreada, de uma
luxúria insaciável, sendo, portanto, mais ativas que os homens, integra o quadro mental
do período de apogeu da perseguição às bruxas. A partir do século XVIII essa opinião
foi transformada pela literatura, que passou a colocar a mulher como passiva e
desprovida de libido. A transformação coincidiu com o desaparecimento das crenças
acerca das relações sexuais entre mulheres e demônios e de que as bruxas satisfaziam os
desejos sexuais de Satã, o que atendia aos interesses da Igreja em reprimir a discussão
aberta da sexualidade.
Paulatinamente as crenças em torno da realidade da bruxaria cederam ao avanço
do racionalismo, introjetando-se o Mal nos indivíduos e retirando do feminino os
poderes extraordinários que lhes haviam sido atribuídos. A diminuição da ênfase na
presença de Satã no mundo possibilitou a negação dos feitos das bruxas, transformados
em delírios de uma mentalidade obsoleta.
71

IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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