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Elisa Goldman
Rio de Janeiro
2014
1
Elisa Goldman
Rio de Janeiro
2014
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CCSA
CDU 323.13
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que citada a
fonte.
___________________________ _________________________
Assinatura Data
2
Elisa Goldman
__________________________________________
Prof. Dr. Oswaldo Munteal Filho (Orientador)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UERJ
__________________________________________
Profa. Dra. Lená Medeiros de Menezes
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UERJ
__________________________________________
Prof. Dr. André Valente
Instituto de Letras – UERJ
__________________________________________
Prof. Dr. Carlos Henrique Aguiar Serra
Universidade Federal Fluminense
__________________________________________
Profa. Dra. Norma Côrtes Gouveia de Melo
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2014
3
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
Meus agradecimentos à FAPERJ pelo apoio recebido sob a forma de uma bolsa de
doutorado (2012).
Ao meu orientador Oswaldo Munteal Filho, pelo estímulo, pelo acolhimento no
programa, pelo apoio intelectual e, mais do que isso, pelo encantamento e valorização do tema
que configurou uma grande motivação para a realização da tese.
Agradeço aos meus pais, Isack, Helena e minha irmã Priscila, pelo apoio carinhoso e
pelo estímulo otimista de que as coisas acabam dando certo.
Ao Gabriel, apoio fundamental nesse percurso, ao carinho e cumplicidade nos difíceis
momentos de realização da tese.
Aos amigos, pessoas queridas, sempre presentes, ainda que na fase reclusa da escrita
da tese, um estímulo intelectual e afetivo: Mariana Muaze, Sigrid Hoppe, Rosana de Freitas,
Daniela Spielman, Mônica do Rego Monteiro, Daniela Hungria, Marisa Hegdorne, Marta
Romeiro, Luciana Pinheiro, Dudi Baratz, e Washington Dener.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ, pela
acolhida generosa, pelas disciplinas enriquecedoras e pelo convívio estimulante nos quatro
anos do doutorado.
Aos funcionários do PPGH, Daniela e Marco Antonio pela ajuda constante e pelo
clima receptivo na Secretaria de Pós-Graduação.
5
RESUMO
ABSTRACT
The aim of the present work is to understand the intellectual production of the
Palestinian author Edward W. Said. His heterogeneous history represented in a larger extent a
theoretical metaphor of his major political and conceptual dilemmas, some of them consisting
this thesis subject. We understand Said defines culture as a preferential locus in order to
comprehend the colonial domination, later on embodying a political speech for the
composition of the national Palestinian identity. We have attempted to delimit the main
paradox of his work which refers to the theoretical interaction of the post-colonial approach
with the historicity of the national Palestinian ethos. We understand that the paradox of
Nationalism – its close connection to the post-colonial aproach and theoretical courses arising
from progressive engagement – with the Palestinian national cause subsidizes other
reflections interrelated, such as: the intellectual representation in contemporary society; the
relation between text and historical reality – understood through the concept of worldliness;
the category of exile as an ontological condition and epistemological metaphor; and the
problem of the culture-imperialism relation. These courses of analyzes have guidance in a
broader objective which is the analysis of centrality and the respective present status of
Edward Said’s work in Post-Colonial Historiography.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................8
1 EDWARD W. SAID: BIOGRAFIA E TRAJETÓRIA TEÓRICA........................24
1.1. Fora do lugar: uma trajetória em contraponto........................................................24
1.2. Historiografia literária e a escrita da história..........................................................42
1.2.1. Joseph Conrad e a ficção da autobiografia....................................................................42
1.2.2. Proximidades entre Said e Auerbach: interioridade e exterioridade.............................53
1.2.3. Said e o Vico de Auerbach: aproximações teóricas......................................................65
1.2.4. O mundo, o texto e o crítico: a crítica literária.............................................................82
1.3. O orientalismo e a teoria pós-colonial......................................................................99
1.4. A questão da Palestina: o problema da identidade nacional.................................131
1.5. Representações do intelectual: as conferências Reith de 1993..............................147
1.6. Cultura e imperialismo: nacionalismo e libertação nacional................................158
1.7. Reflexões sobre o exílio: a diáspora como metáfora epistemológica....................178
2. O JOGO DE ESPELHO DAS COLONIZAÇÕES: PERSPECTIVAS SOBRE O
PÓS-COLONIAL......................................................................................................185
2.1. A historiografia pós-colonial....................................................................................185
2.2. O problema da historicidade nas narrativas nacionais.........................................202
2.3. Histórias entrelaçadas e territórios sobrepostos: Edward W. Said e Frantz
Fanon..........................................................................................................................241
CONCLUSÃO...........................................................................................................272
REFERÊNCIAS........................................................................................................280
8
INTRODUÇÃO
1
Ao demarcar as obras que constituíram nosso objeto de análise resolvemos não privilegiar a produção
historiográfica sobre a questão árabe-isralense, ou mesmo os seus escritos jornalísticos reunidos posteriomente
em coletâneas temáticas. Estas abordavam a questão nacional palestina. As leituras sobre essa parcela da
produção foram realizadas com o propósito de entender a interpretação sobre a questão árabe-isralense que possa
fundamentar o paradoxo que buscamos no conjunto da sua obra, embora sem um detalhamento analítico.
9
2
Para um rico panorama teórico sobre a trajetória da História das ideias, ver, BEVIR, Mark, A Lógica da
História das ideias, Bauru: EDUSC, 2008. e FALCON, F. “História das Ideias”, In: CARDOSO, C. F., e
VAINFAS, R. (Org.), Domínios da História. Ensaios de teoria e Metodologia. RJ: Editora Campus/Elsevier,
1997.
3
FALCON, Francisco, “História das Ideias”, In: CARDOSO, C. F., ; VAINFAS, R. (Org.), Domínios da
História. Ensaios de teoria e Metodologia. RJ: Editora Campus/Elsevier, 1997
10
marxismo, a escola dos Annales e a história das ideias no contexto estadunidense; da New
History de J. H. Robinson a History of Ideas de A. Lovejoy.
Além disso, o autor traça um mapeamento das variadas tendências produzidas nos
anos 1970, que tiveram importância para a história das ideias: o marxismo estrutural de
Althusser, as ideias de Michel Foucault e a redescoberta dos trabalhos de M. Bakhtin. Em
síntese, o autor conclui que a existência de uma variedade de concepções e tendências que se
inserem sob o rotulo da nova história intelectual, desempenham papéis diferentes e possuem
uma importância teórica específica.
Com base na prévia demonstração da complexidade da adesão ao campo metodológico
da história das ideias, recorremos a uma modalidade dessa produção, remetida ao contexto
inglês, voltado para a uma história das ideias políticas explicitadas no artigo de Falcon (1997).
Quentin Skinner (1989) 4, historiador das ideias políticas desenvolveu sua análise
procurando pensar as ideias ou conceitos do ponto de vista de quem os conduzia, com
referência aos vocabulários políticos e sociais predominantes na época, situando os textos no
seu campo de atividade.
O texto Meaning and understanding in the History of Ideas (SKINNER, 1989)5 expõe
o problema da compreensão dos atos de fala no contexto teórico da filosofia da linguagem. O
artigo em destaque aparece como um manifesto do movimento contextualista que enfoca a
fragilidade da abordagem textualista e da noção de texto autônomo.
Skinner contestava a ideia do texto como um conjunto coerente e finito de
significações, à disposição dos leitores competentes que pudessem captar seu sentido. Além
disso, o autor relativizava as abordagens mais influentes da história do pensamento político
que projetavam expectativas do presente sobre o estudo dos autores do passado, além da
projeção errônea de tendências ou doutrinas políticas que nem sequer existiam.
Sua proposta é motivada por uma alternativa metodológica que reconhece como
problemática uma abordagem equivocada do texto clássico, o que suscita um conjunto de
mitologias. A mitologia da doutrina aparece quando os enunciados dos autores são
enquadrados em doutrinas, tipologias criadas pelo próprio historiador. A mitologia da
coerência pode ser presumida quando o historiador elabora sistemas intelectuais fechados,
4
Quentin Skinner, historiador das ideias políticas é um representante do contextualismo linguístico inglês,
institucionalizado originalmente na Universidade de Cambridge. Esta abordagem teórica nasceu com a
publicação dos primeiros ensaios metodológicos nos anos 50 e 60, de autores como Peter Laslett, Jonh Pocock,
Jonh Dunn e Quentin Skinner. Entendemos que o último autor encontra lugar de destaque no conjunto desse
debate.
5
Um texto importante para se entender uma primeira abordagem da chamada perspectiva Collingwoodiana,
originalmente conhecida como “Escola de Cambridge”, foi escrito por Skinner em 1969.
11
6
SILVA, Ricardo, “O contextualismo linguístico na História do pensamento político: Quentin Skinner e o debate
metodológico Contemporâneo”, Revista Dados, Rio de Janeiro, v.53, número 2, 2010. p.7.
7
O conceito de “força ilocucionária intencional” originou-se na obra de J. L. Austin, Quando dizer é fazer:
palavras e ação (1990), de onde Skinner extrai o fundamento filosófico para definir a compreensão de uma
afirmação e a não correspondência imediata do seu significado, ou seja, por meio do ato da fala depreendemos a
intenção do autor que passível de contextualização, pode nos levar a interpretação de um determinado
pensamento político.
8
Skinner entende desta maneira que os “atos de fala” devem ser tomados como atos sociais intersubjetivos e não
intertextuais e que ocorrem em situações históricas concretas, onde a linguagem é manipulada conscientemente
com vistas à realização de determinadas ações e interesses sociais e políticos. Nesse sentido o nosso autor se
opõe a morte ou ausência do autor buscando atestar a historicidade da linguagem.
12
político, defendida por Skinner, pensa o historiador capaz de rastrear as intenções do autor
ilustradas no texto por meio de um contexto discursivo.
O conceito de significado sofreu transformações no decorrer da obra de Skinner, na
medida em que as críticas9 dirigidas à sua teoria apontavam o reducionismo desse conceito.
Os significados podem ser atrelados ao estudo da semântica e sintaxe do texto; o sentido do
texto atrelado à recepção, ou seja, aos efeitos produzidos nos leitores, e por fim, o último
significado que é a marca característica das suas teses, a intenção autoral. Evitar o risco do
subjetivismo exacerbado ou do psiquismo, no caso do rastreamento das intenções autorais,
possibilita uma compreensão mais fidedigna do texto.
A significação de um texto excede a intencionalidade consciente do autor. Essa
perspectiva demonstra resistência ao textualismo, onde o texto aparece como entidade
autônoma. O texto não é coerente em si mesmo. Há uma permeabilidade entre texto e
contexto, sem que o primeiro seja tratado como resultado necessário do segundo, evitando
assim certas tentações reducionistas. Não é possível isolar o texto de suas condições de
produção e recepção.
No caso da teoria política, rejeitada por Skinner, os textos eram vistos no interior dos
conjuntos homogêneos, universais, sem especificidades contextuais e por isso mesmo
facilmente identificáveis. A busca de unidades nos textos e a sua acepção de obra clássica
produziam mitologias antihistoricizantes que esvaziavam leituras mais apropriadas segundo a
perspectiva de Skinner. Sua atenção dirigiu-se para o mundo mental do escritor, suas crenças
empíricas, suas percepções, seus sentimentos, seus valores morais e políticos – ideologias
compartilhadas, trocadas intersubjetivamente com seus pares e sua audiência.
Explicitar a metodologia da história das ideias políticas de Skinner, nos ajudar a traçar
os rumos da análise que pretendemos empreender na tese. O contextualismo saidiano, assim
como a sua autodefinição nos oferece pistas dos mecanismos analíticos que devemos
empregar para nos aproximar das suas produções. Procuramos reunir as reflexões mais
epistemológicas e relacionadas à teoria literária assim como as suas obras voltadas para o
debate sobre representação e identidade para traçar alguns dos paradoxos enriquecem a sua
produção.
9
As críticas ao método de Skinner incidem na elaboração de rótulos contraditórios. O autor é simultaneamente
acusado de incorrer no excessivo positivismo, por outro lado suas colocações ou definições são relegadas às
categorias “subjetivistas”, ou “idealistas”. A visão de alguns críticos apresenta a fragilidade de uma análise da
linguagem e o seu caráter auto-referenciado, que tende a esvaziar o valor atribuído aos fatores causais externos.
13
Devemos delinear a genealogia do seu pensamento, que parte de uma matriz chamada
pós-colonial para a progressiva valorização da nacionalidade palestina, com todas as nuances
ambivalentes e “desconfiadas” do processo de defesa de ethos nacional. A visão que Said
desenvolve do imperialismo, atrelado ao seu componente cultural deve ser visto como um
discurso inerente às práticas e representações culturais do período.
A sombra do imperialismo aparece nas entrelinhas dos romances e obras de R.
Kipling, J. Conrad, A. Gide, J. Austen e A. Camus, assim como nas obras musicais de
Wagner e Verdi, na filosofia de Hegel e Marx, assim como na sociologia de Comte, Weber e
Durkheim. Sem pensar nas obras como reflexos mecânicos das ideologias, Said desenvolve
uma analise da indissociação da história do império e das colônias, vistas aqui como
“histórias entrelaçadas”.
O imperialismo é inseparável de certas estruturas mentais e concepções de mundo que
chamam atenção sobre a relação e a atitude em relação ao outro, processo no qual se percebe
a sua própria identidade. O pós-colonial e o pós-imperial não significam o fim da hegemonia
política e econômica dos países ocidentais. Said ressalta as premissas do Orientalismo que
possuem relação com a formação da própria identidade moderna ocidental, em contato com as
construções culturais do outro.
O autor insiste na esfera externa à textualidade, no que tange a dominação colonial. A
violência imperialista não se restringe a uma hierarquia epistêmica. A sua denúncia crítica se
dirige ao vazio do “formalismo técnico exasperado”, e para o aspecto circular da teoria
literária, voltada hemerneuticamente para o texto.
No conteúdo dessa crítica, Said dedica-se à análise da representação intelectual, no
sentido do letrado engajado, comprometido com uma causa política, avesso a especialização e
ao isolamento em relação aos assuntos políticos. Seu compromisso deve se ampliar para fora
do mundo acadêmico.
Esse dilema tem relação com as críticas ao pensamernto pós-colonial, muito atreladas
ao debate da literatura e à escassa articulação com posições políticas mais marcadas.10Existem
várias leituras sobre essa lacuna do político no pensamento pós-colonial. Uma das hipóteses
levantadas por Miguel Mellino (2008)11 justifica-se através da precária associação com a
historiografia marxista.
10
O debate sobre a historiografia pós-colonial será realizado na terceira parte da tese, onde nos propomos a
situar o lugar da obra de Edward W. Said nessa produção historiográfica. Devemos debater as especificidades
dessa vertente e as particularidades e genealogias teóricas dos autores integrados a essa corrente.
14
11
MELLINO, Miguel, La Crítica Pós-Colonial, Descolonización, capitalismo y cosmpolitismo em los estúdios
poscoloniales, Buenos Aires: Editora Paidós, 2008.
12
Ibid, p.40. “Uma das principais causas deste déficit político reside, no meu entender, na dificuldade de
instaurar um diálogo mais aberto com o marxismo e com aqueles setores da crítica cultural, das ciências políticas
da antropologia e da sociologia majoritariamente ocupados com a análise dos processos e dos conflitos
sócioeconômicos contmeporâneos como a pesquisa de campo ou da etnografia.” (tradução nossa)
13
CHAKRABARTY, D, “Pós-colonialismo y e o artifício da história: quien habla por lo pasados “índios”?, In:
MIGNOLO, W. (comp.) Capitalismo y geopolítica del conocimento. El eurocentrismo y la filosofia de lal
iberácion en el debate contemporâneo . Buenos Aires: Ediciones del signo, 2001.
15
14
BRENNAN, Timothy, Edward W. Said as a Lukacsian critic: modernism and empire, College Literature, 40.4
(Fall 2013).
15
O conceito de arquivo nos remete ao pensamento de Foucault. O alinhamento de Said ao pensamento de
Foucault não é integral. Em vários artigos ele atribui sua adesão a alguns conceitos de forma comedida,
assinalando o seu desconforto com a totalidade da sociedade disciplinar. Devemos discutir mais amplamente
essa proximidade, especificamente no contexto de análise sobre o Orientalismo, no qual a apropriação parcial da
obra de Foucault é mais recorrente.
17
O arquivo é de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento
dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que
faz com todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa
amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não
desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em
figuras distintas, se contrapunham umas com as outras, segundo relações múltiplas,
se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas; ele é o que faz
com que não recuem no mesmo ritmo que o tempo, mas que as que brilham muito
forte como estrelas próximas venham até nós, na verdade de muito longe, quando
outras contemporâneas já estão extremamente pálidas (FOUCAULT, 1987, p.
149).16
Segundo Foucault (1987), o método arqueológico que se revela por meio do discurso,
aparece como sistemático, impessoal, e regulado por formações enunciadoras que governam a
produção da cultura. O arquivo tem relação com a coletividade regularizadora que governa o
discurso através de uma delimitação externa. Said empreende uma apropriação parcial da obra
de Foucault uma vez que a sua crítica incide na relação entre sujeito individual e força
coletiva. A dialética se movimenta entre a intenção voluntária e o movimento determinado, o
que promove um dilema na obra do filósofo francês.
Para Said a contribuição intelectual mais importante de Foucault se deve a
comprensão de como a vontade de exercer o controle dominante na sociedade e na história
descobriu também um modo de “vestir”, disfarçar e se envolver na linguagem. Said se mostra
incomodado com a rigidez do sistema de dominação foucaultiano, isso incide no problema da
evolução histórica.
Na concepção do autor Palestino, Foucault adota um ponto de vista curiosamente
passivo e estéril na forma de conservação de poder e isso acaba sendo perigoso para se pensar
a descontinuidade histórica. A leitura saidiana interpreta essa fragilidade através de um
“perigoso” desacordo com o marxismo, no caso específico da teoria foucaultiana.
As relações entre o Orientalismo enquanto conhecimento e a práxis imperialista
começou a ser explorada no livro Orientalismo (SAID, 2007) e continou a ser abordada na
obra, Cultura e imperialismo (SAID, 1993). O Orientalismo longe de ser uma característica
intelectual tendeu fatalmente para a extensão européia sobre outros continentes e para o
acúmulo de territórios.
Por um lado o orientalismo adquiriu o Oriente tão literal e tão amplamente quanto
possível; por outro lado, domesticou o conhecimento para o Ocidente, filtrando-o
através de códigos reguladores, classificações, exemplos de espécime, revistas
periódicas, dicionários, gramáticas, comentários, edições, traduções, todos os quais
juntos formavam um simulacro do Oriente e reproduziam-no materialmente no
Ocidente, para o Ocidente, para o ocidente. O Oriente, em suma, seria transformado,
passando do testemunho pessoal e às vezes deturpado de intrépidos viajantes e
16
FOUCAULT, M. A Arquelogia do saber, RJ: Editora Forense Universitária, 1987. p.149
18
17
Said, E. Orientalismo, Oriente como invenção do Ocidente, SP: Editora Companhia das Letras.2007. p. 232
18
Após a conclusão do seu doutorado em Harvard em 1963, Said ingressou na Universade de Columbia como
professor da graduação de estudos literários. Nesse contexto ele começou a tomar contato o pensamento da
esquerda britânica do pós-guerra que alterou a paisagem da pesquisa históricaa que mais tarde seria conhecida
pela denominação de estudos culturais. Ele montou um seminário com leituras de obras de Raymond Williams,
especialmente, Marxismo e literatura, as referências de E. P. Tohmpson e suas polêmicas teóricas contra o
19
marxismo althusseriano e Eric Hobsbawm e sua invençao da tradição, livro utilizado no, Cultura e
Imperialismo. Said chegaria a dizer que O Orientalismo teria se inspirado na obra O campo e a cidade de
Raymond Williams.
19
Crítico literário de origem belga, radicou-se nos EUA, no pós-guerra onde se tornou professor de teoria
literária da Universidade de Yale. Ao lado de J. Derrida se notabilizou por um alinhamento teórico
desconstrucionista, que defendia a critica literária com objetivos epistemológicos, exclusivamente voltados para
a análise internalista dos textos. Foi orientador da teórica indiana, identificada com pós-colonialismo, Gayatri
Spivak.
20
Mas Orientalismo tem sido lido e comentado por escrito no mundo árabe como uma
defesa sistemática do islã e dos árabes, embora eu diga com clareza que não tenho
nenhum interesse em mostrar a real constituição do verdadeiro Oriente ou islã, nem
possuo qualificações para tanto. Na verdade, vou muito além quando, bem no início
do livro, digo que palavras como “Oriente”, e “Ocidente”, não correspondem a
nenhuma realidade estável que exista como fato natural. Além disso, todas essas
designações geográficas são uma combinação estranha do empírico, do imaginativo
(SAID, 2007. P 440).20
20
SAID, E. Orientalismo, Oriente como invenção do Ocidente, SP: Editora Companhia das Letras.2007. p.440
21
SAID, E., “O Orientalismo Reconsiderado”, In: Reflexões sobre o exílio, e outros ensaios, SP: Editora
Companhia das Letras, 2003.
21
Said responde que a leitura equivocada do livro Orientalismo tem induzido a inserção
de Said como a resposta e mediação da voz do “subalterno”, ou das minorias, um tipo de
manifesto em nome dos colonizados e que essa questão remete a tão combatida dualidade das
identidades binárias e estáveis que o pensamento pós-colonial questiona.
No capítulo sobre o livro A Questão da Palestina (SAID, 2012), iniciamos o nosso
inventário do debate sobre o nacionalismo na obra do autor palestino. A questão da Palestina
traz a tona o Said nacionalista, e promove indiretamente um paradoxo central no conjunto da
sua produção. Embora Said, se mantenha resistente ao nativismo ingênuo, a adesão a qualquer
forma de nacionalismo arrogante, o livro A Questão da Palestina coloca em suspenso alguns
dos presuspostos pós-coloniais em termos de definição essencialista da identidade, em nome
do rastreamento do ethos nacional palestino.
Dedicamos um capítulo ao debate central sobre a representação do intelectual na
sociedade contemporânea, Said aborda essa temática em várias conferências que foram
reunidas no livro Representações do intelectual: as Conferências Reith de 1993 (SAID,
2005).
O debate em torno do papel do intelectual está vinculado à centralidade da categoria
de exílio, que desempenha não só uma experiência ontológica, como uma metáfora
epistemológica. A coletânea Reflexões sobre o exílio (SAID, 2003) aparece na tese como uma
síntese de experiência formativa no perfil do intelectual, tal como idealizado pelo autor
palestino. Said procurava manter acesa a tensão entre a parte e o todo como central para a sua
fenomenologia política do exílio inspirada em Adorno.
O livro Cultura e imperialismo (SAID, 1993) ocupa um lugar central na nossa tese,
uma vez que boa parte do debate teórico sobre o nacionalismo, pode ser ilustrado em trechos
contitutivos da obra em questão. Podemos afirmar que esse livro traz a tona, diversos marcos
de inspiração da formulação da historicidade das narrativas nacionais. Essa genealogia do
pensamento saidiano, quando aborda a relação entre a cultura e o imperialismo e as narrativas
nacionais diante da descontinuidade histórica, o que configura o nosso principal tema de
análise.
Queremos sinalizar que o nosso interesse pelo paradoxo nacionalista em Said, inclui o
delineamento dos traços teóricos que teriam colaborado para definir o seu pensamento.
Podemos levantar algumas hipóteses em torno da presença de algumas categorias
gramscianas, ao lado da forte presença do pensamento de Fanon, Os Condenados da terra
22
22
LUKACS, G. História e consciência de classe, estudos sobre a dialética marxista, SP: Editora Martins Fontes,
2012.
23
De 1979 a 1983, Said ofereceu seminários dedicados as obras de Lukács e Gramsci. Os textos centrais eram:
História e Consciência de Classe (1923) e A Questão Meridional (1926). Essa última obra, apropriada para uma
reflexão de como os intelectuais domesticam as atitudes colonialistas e estetizam a resistência a serviço do
domínio imperialista. Para além desses textos, Said propunha leituras sobre a Escola de Frankfurt, concentrando
especialmente na obra de Theodor Adorno (Prismas, Mínima Moralia e Filosofia da Nova Música).
24
No livro Cultura e imperialismo, Said se volta para a metáfora literária do espaço e se move para um tipo de
critica amplamente respaldado nos estudos pós-coloniais. Said pensava no confronto de culturas em diferentes
momentos de desenvolvimento.
25
O Orientalismo suscitou inúmeras críticas especialmente em sua abordagem foucaultiana e suas outras
combinações teóricas. A relativização dessas críticas passa pela argumentação de Timothy Brennan (2013) que
desenvolve uma espécie de genealogia do pensamento de Said, e aponta que sua apropriação da categoria de
discurso teria sido incorporada da teoria marxista, juntamente ao conceito de ideologia. Brennan defende a tese
de que a repercussão dos livros de Said, dos mitos de leitura, e dos impactos preconceituosos ou resistentes tem
relação com alguns fatores: sua relutância em desenvolver ou recorrer às teorias do capitalismo, mesmo
trabalhando com o imperialismo como objeto, suas confrontações com governos neoliberais, sua relutância em
discutir a tradição hegeliana de esquerda na qual Lukács e outros pensadores integravam, embora compartilhasse
de signficativas apropriações dessa tradição. Para Brennan, as leituras prévias à elaboração do livro Cultura e
imperialismo, Gramsci e Benjamin, vinculavam as leituras marxistas com estudos sobre filologia.
23
26
A importância de Lukács na obra de Fanon é inegável. Reconhecemos a centralidade de algumas categorias
tais como: reificação e consciência para a compreensão da relação entre o colonizado e o colonizador. No
contexto do livro Condenados da terra, a abordagem da violência no processo de resistência colonial já indica a
importância da reificação. A violência e a contraviolência do colonizado se equilibram e respondem a uma
homogeneidade recíproca.
24
Às vezes me sinto como um feixe de correntes que fluem. Prefiro isso à ideia de um
eu sólido, à identidade a que tanta gente dá tanta importância. Essas correntes, como
os temas da vida de uma pessoa, fluem ao longo das horas de vigília e, em seu
melhor estado, não requerem nenhuma reconciliação, nenhuma harmonização. Elas
escapam e podem estar fora do lugar, mas pelo menos estão sempre em movimento,
no tempo, no espaço, em toda espécie de estranhas combinações que se movem, não
necessariamente para frente, às vezes umas em choque com as outras, fazendo
contrapontos, ainda que sem um tema central. Uma forma de liberdade, eu gostaria
de acreditar, embora esteja longe de ter certeza disso. Esse ceticismo também é um
dos temas aos quais particularmente gostaria de me agarrar. Com tantas dissonâncias
em minha vida, de fato aprendi a preferir estar fora do lugar e não absolutamente
certo (SAID, 2004, p.429).27
27
SAID, Edward W., Fora do lugar, Memórias, SP: Companhia das Letras, 2004. p. 429.
28
Edward W. Said começou a escrever a sua biografia em 1994, após o diagnóstico médico que constatava
leucemia. A escrita da biografia durou cinco anos. No prefácio da autobiografia, Said registrou a necessidade de
elaborar um retrato subjetivo dos anos de formação, especialmente os primeiros anos de sua vida vividos no
mundo árabe.
25
permanente de esvaziamento de laços com o lugar de origem, por outro lado, essa experiência
favorece a “consciência de si mesmo” e promove a construção de uma História Nacional
(como no caso dos judeus e Palestinos) e a consolidação de um determinado ethos nacional.
Said aponta na sua autobiografia e em artigos, apesar dos seus escritos mais tardios
abordarem a Questão Palestina, que a sua atuação intelectual acadêmica, envolveu
predominantemente estudos sobre Teoria Literária e Literatura comparada.
Boa parte da sua escrita biográfica ocupa-se do período da infância e da adolescência
vivido em cidades árabes, em Jerusalém (anterior à criação do Estado Nacional Judaico),
Cairo, Beirute e na cidade de Dhour, no Líbano.
O autor reconhece que, embora o problema da Palestina tenha ocupado lugar central
na sua vida e na de seus familiares, o mesmo constituía um tema sublimado nas conversas
com seus pais, omitido das discussões e dos comentários familiares. O estranhamento em
relação a essa ausência, inerente às relações familiares mais próximas é verbalizado na
biografia como parte da despolitização dos seus pais, que resistiram ao envolvimento de Said
na política, insistindo que ele se limitasse à profissão de professor de literatura.
Na condição de estrangeiros abastados no Egito, os pais viviam apartados da política
e desconfiados das mudanças que ocorriam na década de 1950. Said descreve o desconforto
progressivo da família a partir da revolução dos oficiais livres em 1952.
O autor prioriza impressões subjetivas dos anos escolares marcados por uma formação
ocidental no mundo árabe e representações subjetivas das suas relações familiares. As
descrições de Jerusalém são sempre pontuadas por uma nostalgia e pelo detalhamento da
trajetória de familiares, cujo deslocamento geográfico teria se desdobrado em uma
experiência de decadência econômica.
Nas últimas páginas da sua biografia, Said reconheceu a importância dessa escrita no
que tange ao seu aspecto de desvendamento de um segundo “eu”, sublimado pelas
convenções sociais ou recalcado em função de uma formação ocidental no mundo árabe. Esse
movimento de redescoberta da identidade árabe-palestina acompanharia a sua trajetória.
O autor escreve no Ocidente, em uma perspectiva de familiaridade íntima com a
cultura ocidental, considerando-se um árabe, cuja identidade histórica teria sido delimitada às
margens do Império Britânico (Palestina e Egito). Ele escreveu sobre o Oriente Médio como
alguém que viveu no exterior por anos, ou seja, seu posicionamento transitou por uma linha
dialética quase invisível entre o interno e o externo.
Mantive por toda a vida essa vaga sensação de muitas identidades – em geral em
conflito umas com as outras -, junto com uma aguda lembrança do sentimento de
26
Contudo minha sensação predominante era a de sempre estar fora do lugar. Por
conta disso, levei quase cinqüenta anos para me acostumar, ou, mais exatamente,
para me sentir menos desconfortável com “Edward”, um nome ridiculamente inglês
atrelado à força ao sobrenome inequivocadamente árabe Said (SAID, 2004, p. 19).31
29
SAID, Edward W. Fora do lugar, Memórias, SP: Companhia das Letras, 2004. p.22
30
Seu pai cristão, Palestino, emigrou para os EUA em 1911, com dezesseis anos, para não ser alistado pelos
otomanos para lutar na Bulgária. Tornou-se cidadão norte-americano e serviu nas forças armadas norte-
americanas durante a primeira guerra mundial. Após o nascimento de Edward W. Said, em 1935, casualmente
em Jerusalém, sua família mudou-se para o Cairo, onde seu pai Wadie Said abriu uma papelaria tornando-se um
comerciante bem sucedido.
31
Ibid, p.19.
27
Meus pais tentavam reproduzir nosso casulo do Cairo nas montanhas libanesas:
quem poderia condená-los por isso, dada nossa condição peculiarmente fraturada de
cacos Palestino-árabe-cristão-americanos que a história espalhou e que só se
mantinham parcialmente unidos pelos êxitos comerciais de meu pai, que nos
permitiam uma semifantástica, confortável, mas vulnerável marginalidade? E
quando as turbulências do Egito pós-monárquico levaram o país a se despedaçar em
torno de nós, carregamos os efeitos disso para onde quer que fossemos, incluindo
Dhour (SAID, 2004, p. 319).32
Said passava períodos em Jerusalém ao visitar seus familiares. Durante esses períodos
Said percebia a progressiva saída dos Palestinos de Jerusalém e a substituição por imigrantes
judeus europeus.
Ainda é difícil aceitar o fato de que os bairros da cidade onde nasci, vivi e me senti
em casa foram tomados por imigrantes poloneses, alemães e americanos que
conquistaram a cidade e a transformaram em símbolo supremo de sua soberania,
sem lugar para a vida palestina, confinada, ao que parece, à parte leste da metrópole,
que mal conheci. Jerusalém Oeste tornou-se agora inteiramente judaica; seus
moradores anteriores foram banidos de uma vez por todas em meados de 1948
(SAID, 2004, p. 169).33
A partir de 1951, Said migrou para os EUA, para estudar em um internato, Mount
Hermon no estado de Massachusetts. A ida de Said para os EUA, e o afastamento da família,
produziram sensações subjetivas de desterramento. Said descreveu os dias na América,
marcados por uma sensação de impermanência e pela associação de estabilidade as férias
passadas no Cairo junto à família.
Na época em que deixei o Cairo, em 1951, para o que eu sentia como meu desterro
americano, todo o relacionamento entre os ramos do Cairo e de Jerusalém de nossa
família estava, do ponto de vista dos negócios, irreparavelmente avariado. Eu sentia
que o desaparecimento da Palestina estava na base daquilo, mas nem eu, nem outro
32
Ibid, p. 391.
33
Ibid, p. 169.
28
membro de minha família, éramos capazes de dizer exatamente como ou por quê.
Havia uma dissonância fundamental que todos experimentávamos, como
estrangeiros no Egito, sem refúgio em nosso verdadeiro ponto de origem (SAID,
2004, p. 193).34
34
Ibid, p. 193.
35
“Passei a ler metodicamente o que vinham escrevendo sobre o Oriente Médio. Não correspondia à minha
experiência. No início dos anos 70, comecei a perceber que as distorções e ideias erradas eram sistemáticas,
faziam parte de um sistema de pensamento bem maior, endêmico em toda iniciativa do Ocidente de lidar com o
mundo árabe. Isso confirmou minha sensação do que o estudo da literatura era em essência, uma tarefa histórica,
não apenas estética.” Trecho de uma conversa de Edward Said com Tariq Ali na ocasião da gravação de um
programa A Conversation with Edward W. Said, produção da Bandung Films.
29
consciente, ainda que não participasse diretamente das principais tendências do movimento
nacional palestino.
Após 1967, seu posicionamento frente ao movimento nacional Palestino se definiu
através da relação com a Associação de Graduados Universitários Árabes-estadunidensenses
(AAUG), comprometidos com a conscientização da Questão Palestina.
E 1967, trouxe mais deslocamentos, enquanto para mim aquilo parecia encarnar o
deslocamento que englobava todas as outras perdas, os mundos desaparecidos da
minha infância e juventude, os anos apolíticos da minha educação, a pretensão de
um magistério desengajado na Columbia e assim por diante. Não fui mais a mesma
pessoa depois de 1967; o choque daquela guerra me levou de volta para onde tudo
começou; a luta pela Palestina. Entrei em seguida na paisagem recentemente
transformada do Oriente Médio como parte do movimento Palestino que emergiu
em Amã e depois em Beirute no final dos anos 60 e ao longo dos anos 70 (SAID,
2004, p. 426). 36
Em 1968, escreveu seu primeiro ensaio político denominado “The Arab portrayed”
(SAID, 1970),37 uma resposta intelectual à fala da primeira ministra israelense, Golda Meir
que ressaltava a inexistência do povo palestino. Diante dessa fala, Said incorpora o desafio de
articular uma história de perdas e desapropriações que deveria dotar a causa Palestina de
visibilidade política.
Em 1972, passou um ano em Beirute no seu ano sabático, onde estudou filologia e
literatura árabe. Said descreveu esse contexto como produto de um desconforto produzido por
um sentimento de inadequação de uma identidade adquirida e uma cultura original
secundarizada na conjuntura estadunidense onde se radicou.
Said demarca os anos 70, como um período em que lecionou em Columbia, cursos de
literatura européia e americana, mas que gradualmente entrava em contato com os mundos
políticos e narrativos da política do Oriente Médio. Embora tivesse a pretensão de oferecer
cursos sobre a literatura árabe moderna, jamais ministrou disciplinas afinadas com esse tema.
Chegou a planejar um seminário sobre Vico e Ibn Khaldun (filólogo e historiador do século
XIV), que se limitou ao projeto.
Em 197738, Said ingressou no CNP, Conselho Nacional Palestino, considerado o
parlamento da Palestina no exílio. A sua inserção no CNP significou um envolvimento direto
36
SAID, Edward W. , Fora do lugar, Memórias, SP: Companhia das Letras, 2004. P. 426.
37
SAID, Edward W., “The Arab portrayed” In: Abu Lughod, Ibrahim (ed.), The Arab Israeli Confrontation of
June 1967: An Arab Perspective. Evanston: Northwestern University Press, 1970.
38
Embora Said tenha sido eleito para o CNP (Conselho Nacional Palestino), jamais concretizou a filiação a
partidos políticos explicitamente vinculados à causa Palestina. Freqüentou uma reunião do CNP no Cairo em
1977, após essa reunião, não participou de nenhuma outra, até sua ida para a Jordânia em 1984. Em suas
30
Da mesma forma que eles tinham o sionismo, teríamos também o nosso sionismo,
com a diferença que ele seria Palestino – mas não era isso que queríamos. Em vez
disso, falávamos de uma alternativa em que a discriminação baseada na raça, na
religião e na origem nacional seria transcendida por algo que chamamos de
libertação. Isso se reflete no nome da Organização para a libertação da Palestina e
me parece ser a essência da resistência. Não significa colocar o pé na porta com
teimosia, e sim abrir a janela. Creio que uma das coisas mais tristes que ocorreram
na história dos movimentos da libertação do século XX foi a traição da libertação
pelo bem de objetivos de curto prazo, como a independência e o estabelecimento de
um Estado(SAID, 2013, p. 150).40
A posição oficial de Said, como membro do CNP foi evocada no contexto intelectual
norte-americano para desacreditar sua luta e deslegitimá-lo como um acadêmico desprovido
de objetividade. O seu engajamento na luta por um estado Palestino foi recebido
negativamente e lido pela intelectualidade norte-americana liberal, esquerdista como
incompatível com uma postura honesta desejável.41
Em 1982, logo após a invasão Israelense no Líbano, Said juntou-se ao fotógrafo Jean
Mohr para elaborar o livro After the last Sky: Palestinian lives (SAID, 1985).42 Sua intenção
era dar visibilidade histórica ao povo palestino. A ideia era resgatar os Palestinos do lugar
subalterno, configurado a partir de uma representação desdenhosa. O sentido desse livro tem
entrevistas afirmava que seu papel era mais simbólico do que propriamente político no período de permanência
no CNP.
39
Dez anos após a guerra dos seis dias, seu engajamento se traduziu numa reflexão teórica que se desdobrou na
trilogia, Orientalismo. (1978), A Questão da Palestina (1980) e Cobrindo o Islã (1981); os três livros
estabeleciam a Palestina como objeto privilegiado que se relacionava com o problema da identidade, pela relação
entre o conhecimento e o poder e a questão da Palestina imersa na História do imperialismo, problemáticas
estreitamente vinculadas ao tema da mundanidade.
40
SAID, Edward W. A Pena e a Espada, Diálogos com Edward W. Said por David Barsamian, SP: Editora da
UNESP, 2013. P. 150.
41
Na década de 80, foi acusado pela liga de defesa judaica de ser antisemita, teve seu escritório na Universidade
incendiado criminosamente, além de ter recebido inúmeras ameaças de morte. Na década de 80, Anwar Sadat e
Yasser Arafat indicaram Said para ser o representante Palestino nas conversações de paz. Said descreve essa
situação com profundo desconforto, uma vez que essa escolha não contou com sua prévia aceitação e o assédio
da imprensa tornou-se bastante intenso a partir desse episódio.
42
SAID, Edward W, After the last Sky: Palestinian lives. Nova York, Pantheon, 1985. O título do livro se
originou do poema do poeta palestino Mahmoud Darwish, inspirado no que aconteceu com os Palestinos no
Líbano em 1982. Para Said, 1982 representou um marco cronológico da conscientização política em decorrência
da expulsão dos palestinos do Líbano. O primeiro marco, está representado por 1948, e o segundo, pelos eventos
de 1982. Em 1983, Said era consultor da ONU em uma conferência internacional sobre a Questão Palestina e
havia uma discussão sobre as condições limitadoras encontradas pelos fotógrafos para retratar os Palestinos e
suas condições de vida. A partir desse contexto, surgiu a ideia da edição do livro com o fotógrafo Jean Mohr.
31
Identity – Who we are, where we come from, what we are – is difficult to maintain
in exile. Most other people take their identity for granted. Not the Palestinian, who is
43
O livro em questão aborda um retrato da vida regular na Palestina, além de elaborar os direitos políticos e
éticos que devem ser restaurados aos povos para habilitá-los a contar, narrar suas histórias. A narrativa ganha um
papel central para a representação dos palestinos. A narrativa confere visibilidade a um grupo ofuscado pela
poltica israelense.
32
required to show proofs of identity more or less constantly. It is not only that we are
regarded as terrorists, but that our existence as native Arab inhabitants of Palestine,
with primordial rights there (and not elsewhere), is either denied or challenged
(SAID, 1985, p. 16).44
44
Ibid p.16. “A identidade – quem somos, de onde viemos, o que somos – é difícil manter no exílio. A maioria
dá por certa sua identidade. Não os palestinos, que são forçados a apresentar provas de identificação com certa
frequência. Não se trata apenas de sermos considerados terroristas, mas nossa existência como habitantes árabes
da Palestina, com direitos adquiridos lá (e em nenhum outro lugar), é ora negada ou questionada." (tradução
nossa).
33
45
Após a posse de Yitzhak Rabin e Shimon Peres no governo israelense em 1992, houve um histórico
reconhecimento da OLP como manifestação legítima do movimento nacional Palestino, para além desse avanço
uma série de concessões territoriais foram realizadas entre 1994 e 1996. Apesar de avanços parciais, Rabin se
negava a defeder verbalmente um Estado Palestino, e Peres, como ministro das relações exteriores e como
sucessor após o assassinato de Rabin, não ofereceu uma solução clara quanto à criação de um estado Palestino.
34
em relação à consolidação das promessas definidas nos anos 1990. Jerusalém continuava
sendo inegociável e os assentamentos judaicos cresciam exponencialmente nesse contexto.
A soberania, as fronteiras, o acesso à agua, a segurança global, os direitos aéreos e a
administração das estradas permaneciam sendo centralizados por Israel. O problema dos
assentamentos, para além de um retrocesso na política de desocupação, acabaria criando
“ilhas” de descontinuidade da presença Palestina, o que impedia a longo prazo, a autonomia
Palestina demarcada territorialmente.
Israel estabeleceu 62 bases militares na Cisjordânia, retirou as tropas das principais
cidades da Cisjordânia e ainda controlava os acessos às mesmas. Said criticava o vazio de
liderança, a ausência de visão política do futuro e o imobilismo da vida Palestina.
No livro The end of the peace process (SAID, 2000), Said estabelece suas críticas ao
movimento nacionalista de curto alcance, alegando que, no caso de Oslo, o abandono do perfil
de um movimento social de amplo alcance teria como objetivo a despolitização da sociedade
Palestina. Oslo representou uma decepção em termos de extinção da ocupação militar
isrealense. Estes acordos representaram um recrudescimento da sua ampliação. Se no período
anterior à década de 1990 havia uma fachada na ocupação militar, Oslo acabou ampliando a
ontensiva presença da FDI (Força de defesa Israelense) nos territórios supostamente
soberanos.
46
Said, Edward W., Artigo do jornal Al- Hayat , 1 de outobro de 1995. Compilado no livro: El fin del processo
de paz , Nuevas Crônicas Palestinas (1995-2002), Barcelona: Editora Mondadori, 2002. P.42. “O que resulta
sintomático da mentalidade da autoridade palestina é a sua total incapacidade para responder às críticas, ou para
levar em conta seus críticos, cujo número aumenta à medida que a situação se deteriora. Não estou falando do
Hamas ou da Jihad islâmica, que na minha opinião não constituem, uma alternativa à autoridade, ainda que
obviamente, sejam uma expressão da resistência a ocupação israelense. Arafat e seus assessores se fecharam a
seu próprio povo e carecem do conceito de responsabilidade frente ao dito povo, assim como a noção do debate
livre e democrático. O pior de tudo é que nesse desastrosa política capitular antes os isralenses, chegou a formar
todos os tipos de limitações devastadoras para seu povo, no marco dos acordos com seus ocupantes. Arafat
hipotecou o futuro do seu povo, colocando-o nas mãos dos seus opressores”. (tradução nossa)
35
passiva. Os israelenses que deveriam desocupar Gaza e Cisjordânia, concederam apenas 18%
dos territórios que eles posteriormente reocuparam e com isso as taxas de desemprego em
Gaza cresceram de forma alarmante.
Os isralenses não aplicaram os acordos de Oslo. Após o assassinato de Rabin, a
ascensão de Netanyahu representaria um retrocesso para os supostos acordos. Com o sistema
das zonas A, B e C, a autoridade nacional Palestina só possuía um controle real sobre 18% da
Cisjordânia. Com Oslo, o centro de gravidade do movimento de liberacão Palestina passou da
OLP à Autoridade Nacional Palestina. A autoridade negociava com Israel. Desde 1994,
percebemos a decadência do Al Fatah e dos grupos de extrema esquerda como o FPLP e o
fenômeno do crescimento do Hamas, especialmente em Gaza.
Os acordos representam uma desistência das resoluções impostas pela ONU
denominadas; 194, 242 e 33851 e desconsideradas pela política israelense. Said se posiciona
frente à proposta de um estado de coexistência mediante à realidade da existência de 20% de
palestinos no estado nacional judaico, em processo de convivência. O argumento da
insegurança militar para aquisição de novos territórios e o adiamento da devolução de terras
não são suficientemente persuasivos.
Os limites de Oslo passam pelo escopo reduzido da abrangência da atuação da OLP
que se limitou a negociar a autonomia interna dos residentes de Gaza e Cisjordânia, pensando
no movimento Palestino como restrito aos habitantes dos territórios ocupados. Said se
perguntava por que não havia menção aos refugiados, e aos Palestinos exilados? A
inteligibilidade do papel da OLP passava pela representação desta como uma entidade que
nascera como movimento de libertação e que se transfomaria em um passivo colaborador da
ocupação colonial.
Não se esqueça de que, durante o período das negociações secretas – que não
começaram em Oslo e sim no outono de 1992, entre alguns altos oficiais da OLP,
consultores palestinos e especialistas em segurança em israel, negociando na
American Academy [ of arts and sciences] em Boston -, eles estavam negociando
futuros planos de segurança para a Cisjordânia e Gaza, principalmente para a
segurança de cidadãos israelenses. Ninguém nunca disse nada sobre a segurança dos
Palestinos. Então foi aí que tudo começou. Durante esse período, de outubro até
setembro daquele ano, tivemos o pior período de opressão na Cisjordânia. Mais
pessoas foram mortas no início do ano, vinte ou trinta pessoas em Gaza, muitas
51
A resolução 194 defendia o direito dos refugiados Palestinos, a geração que havia saído em 1948, do retorno
com compensação. A resolução 242, aprovada pela ONU, com o fim da guerra dos seis dias e a vitória do estado
judaico, determinava a devolução de todas as terras ocupadas desde 1967 e o previsto retorno dos refugiados
Palestinos que emigraram desde 1948. Deste modo, abriu-se o caminho para a criação de um Estado palestino
independente. A resolução 338 do conselho de segurança da ONU definida após a guerra do Yom Kipur (1973)
exigia o cessar fogo de ambas as partes e a aplicação imediata da resolução 242.
37
delas crianças com menos de quinze anos. Essa foi a época das deportações (SAID,
2013, p. 107).52
E é importante para os árabes entender, também, que estes não são um epifênomeno
como os cruzados ou imperialistas que podem ser mandados de volta para algum
lugar. Também é muito importante que a gente insista, como faço frequentemente,
que os israelenses são os israelenses. Eles são cidadãos de uma sociedade chamada
de Israel. Eles não são “judeus”, tão simplesmente, que podem ser vistos novamente
como errantes, que podem voltar para a Europa. Este vocabulário de existência
provisória e transitória tem que ser completamente recusado. 53 (SAID, 2006, p.36)
Em 1999, Said fundou com o seu amigo músico Daniel Barenboim a West-Eastern
Divan Orchestra, cujo objectivo era reunir na mesma orquestra jovens músicos de Israel e dos
países árabes. Os diálogos entre Said e Barenboim concernentes à questão árabe-israelense e
às diversas reflexões sobre música podem ser acompanhados pelo livro, Paralelos e
Paradoxos, reflexões sobre música e sociedade(2003).54 No contexto desse livro,
reconhecemos uma preocupação permanente em discutir possíveis analogias estéticas
concernentes a música com o mundo da política contemporânea.
52
SAID, Edward W., A Pena e a Espada, Diálogos com Edward W. Said por David Barsamian, SP: Editora da
UNESP, 2013. Página 107.
53
SAID, Edward W. Cultura e Resistência, entrevistas do intelectual Palestino a David Barsamian, RJ:
Ediouro, 2006. P. 36.
54
SAID, Edward W e BARENBOIM, Daniel, Paralelos e paradoxos, reflexões sobre música e sociedade, SP:
Companhia das Letras, 2003. (1ª. Edição- 2002).
38
55
Said era um excelente pianista e era crítico musical da publicação norte-americana The Nation. Para Said, a
música como objeto de admiração seria quase exclusivamente a música clássica ocidental. Nas diversas
entrevistas ao abordar o tema da música, Said afirmava não se identificar esteticamente com música clássica
árabe além de estabelecer uma distância que incluía o jazz moderno.
56
SAID, Edward W., e BARENBOIM, Daniel, Paralelos e paradoxos, reflexões sobre música e sociedade, SP:
Companhia das Letras, 2003. pp.. 132/133.
39
político, não haverá resistência; acho que, às vezes, é bom ver o estético como uma denúncia
do político, como uma poderosa oposição à desumanidade, à injustiça.”57
No ano de 2001, Said realizou uma conferência58 no Museu Freud, em Londres
intitulada “Freud e os Não-Europeus”(2003), que deu origem ao livro ensaístico publicado
originalmente em 2003. Said propôs uma releitura do ensaio clássico de Freud, “Moisés e o
monoteísmo”59 com uma pespectiva que permite uma atualização da problemática judaica e
dos conflitos árabes-israelenses.
O que estava em questão naquela conferência era o desenvolvimento de uma das
hipóteses centrais do ensaio “Moisés e o monoteísmo”, a de que Moisés não era judeu, mas
egípcio. Muitos autores e comentadores da obra do psicanalista sustentam que a tese de Freud
era resultado da sua relação problemática com o judaísmo.
Segundo Freud, o advento do monoteísmo deslocou a experiência humana do registro
da sensorialidade para o da espiritualidade e do pensamento. A valorização racional do
pensamento em oposição à sensibilidade estaria no fundamento da judeidade. Apesar da
diáspora essencialmente européia, as origens se configurariam numa conjuntura não-européia.
A riqueza da identidade judaica estaria exatamente na interseção Ocidente-Oriente. A cultura
judaica teria sido marcada pela experiência constitutiva do exílio.
O que interessa a Said, é mostrar como a diluição dessa fronteira com o Oriente, mais
tênue do que a imaginada, poderia constituir obstáculos para resgatar as origens não–
européias do estado de Israel. A elaboração do Estado Nacional Judaico na Palestina dissolve
as marcas heterogêneas formadoras da tradição judaica constituindo uma antinomia ao Moisés
egípcio de Freud.
Said compara Freud e Fanon no que tange à visão sobre a diversidade cultural. Fanon
(1979) rejeita o modelo europeu e solicita que todos os homens colaborem na criação do novo
homem, e estabelece uma acusação de que a Europa havia hierarquizado os homens em raças,
além dos princípios pseudocientíficos que teriam colaborado para a manutenção do sistema
57
Ibid, p.170.
58
Em 2000, Said foi convidado pela Sociedade Freudiana em Viena para dar uma palestra, após o autor ter
enviado o título da palestra, este recebeu uma carta em fevereiro de 2001 cancelando a conferência. A alegação
do cancelamento aparecia na justificativa dos organizadores que explicavam com motivos ligados abstratamente
à situação política no Oriente Médio. Said descobriu que o motivo do cancelamento tem relação com o fato deles
terem recebido verba israelense para uma exposição sobre os ensaios de Freud que se realizaria em Tel Aviv e
que esta estava condicionada ao cancelamento da palestra de Said.
59
O ensaio “Moisés e o monoteísmo” foi escrito por Freud entre 1934 e 1938, em várias etapas, no contexto
histórico da ascensão e consolidação do nazismo, na Alemanha. O livo foi concluído no exílio de Freud, em
Londres, no ano de 1938.
40
60
SAID, Edward W. , Freud e os não-Europeus, SP: Boitempo Editorial, 2004. PP.72/73
61
ROSE, Jaqueline, Resposta a Edward W. Said, In: SAID, Edward W. , Freud e os não-Europeus, SP:
Boitempo editorial, 2004. P. 100.
41
Como toda atividade humana, a atividade discursiva ocorreu num contexto que
simultaneamente a restringe e capacita. Porém, como definir o contexto relevante a
ser reconstituído para a compreensão de determinado ato linguístico? Uma vez que
62
A ideia de que palavras são atos retrata uma identificação teórica com a filosofia da linguagem inspirada na
obra de Wittgenstein, o que também permite que o historiador elabore o conceito central de significado
(meaning).
43
A citação acima pode ser respondida não só pelas definições de Skinner como também
pelo conjunto de pensadores ligados ao grupo “ideas in context”. O que delimita o contexto
para subsidiar uma interpretação é a intenção e, mais amplamente, as experiências do
pensador. O ato da fala como ação estimula o historiador a especular sobre o que o autor
estava fazendo quando escreveu. Essa definição teórica filia-se à filosofia da história de R. G.
Collingwood (1989) que orienta o contextualismo linguístico.
63
SILVA, Ricardo, “O contextualismo linguístico na história do pensamento político: Quentin Skinner e o
debate metodológico Contemporâneo”, Revista Dados, Rio de Janeiro, vol.53, número 2, 2010. p. 3.
64
Ibid, p. 4.
44
65
SKINNER, Quentin. As Fundações do pensamento político Moderno, SP: Editora Companhia das Letras,
1996. p 11.
66
SILVA, 2010, OP. CIT. p.8.
45
68
Said analisa as cartas pessoais de Conrad com o objetivo de analisar a sua ficção com base nas vinculações da
realidade vivida pelo autor e o seu trabalho. A narrativa da vida de Conrad subsidia a compreensão da sua ficção,
Said usa a dinâmica entre as cartas e a ficção conradiana para investigar as condições que expressam, o
estranhamento do exilado numa realidade que não é originalmente sua, o que compõe uma sensação de
estranhamento permanente.
47
Arrebatado pela África de Conrad, o seu horror sufocante é o que nos leva até o final
e para além dela, na medida em que a própria história transforma a estagnação mais
rigorosa em um processo e uma busca por maior clareza, contraste, precisão ou
negação. E, é claro, em Conrad, assim como em todas as mentes igualmente
extraordinárias, a tensão percebida entre o que está insuportavelmente presente e
uma compulsão simétrica a escapar dele, é o que está mais profundamente colocado
em questão – disso se trata a leitura e a interpretação de um trabalho como O
coração das trevas. Os textos inertes permanecem em suas épocas; aqueles que se
contrapõem vigorosamente às barreiras históricas são os que permanecem conosco,
geração após geração.69 (SAID, 2004, p.56-57)
Por tanto, de um modo bastante literal, Conrad cosiguió contenplar sus narraciones
como el lugar en el que lo motivado, lo ocasional, lo metódico y lo racional se
encuentran con lo aleatório, lo impredecible, lo inexplicable. Por una parte, se nos
presentan las condiciones mediante las cuales la narración de una historia se vuelve
necesaria; por outra la esencia de la historia misma parece contraria a las
condiciones de su narracion. La interación de una cosa con la outra – y la atención
que presta Conrad al escenario verosímilmente realista de la presentación del relato
69
SAID, Edward W. , Freud e os não europeus, SP: Boitempo Editorial, 2004. P.56/57.
48
exige que prestemos atención a esto – hace de la narración ese objeto único que
es.70( SAID, 2004, p.130)
Para Conrad o significado produzido pela escrita era uma espécie de esboço visual, ao
qual a linguagem escrita era colocaca em questão todo o tempo, como se uma estrutura
enganosa estivesse operante. Havia uma dúvida radical sobre o poder representacional da
linguagem escrita. Said se refere à perda de fé generalizada nos poderes miméticos da
linguagem. A escrita pode se distanciar irremediavelmente do visível, embora possa desejar se
aproximar deste, sem alcançar a inequívoca franqueza de um objeto contemplado, com seus
próprios olhos.
Foucault (1981) analisou esta aparente contradição na obra As palavras e as coisas
(1981) tratando-a como uma etapa histórica específica presente nas obras de Sade, Mallarmé e
Nietzsche. Said resgata uma possível analogia com a obra de Conrad, cuja narrativa
demonstra uma permanente necessidade de fundamentar epistemologicamente a narrativa na
expressão direta ou indireta das situações descritas na ficcçao.
Nas suas obras percebemos a disparidade entre intenção e realidade, entre o querer
falar e o escutar e compreeender. Conrad nega a sua própria escrita, quase se desculpando
pelo desvio de identidade. A sua escrita é uma negação, em função do uso do inglês que não é
sua língua nativa. Recorrer as suas experiências do passado pode significar uma busca por
uma origem autêntica que se perdeu, ou se deformou no apelo ficcional.
Para os heróis de Conrad, a matéria se converte no sistema de intercâmbio subjacente
à linguagem. Se a linguagem não consegue em ultima instância representar a intenção,
analogicamente a função mimética da linguagem aparece como um meio inadequado para
conseguir que vejamos utilizando a substância. O heroi conradiano é o próprio autor que se
propõe a reinvidicar e articular a sua imaginação.
Para Said (2008), Conrad é um autor que encarna a contradição da própria linguagem
e o seu poder mimético. Pararece que seus personagens estão sempre em conflitos ou
deslocados do seu próprio self. Isso em alguma medida reflete seus conflitos existenciais e
suas dúvidas sobre o poder da escrita em resolver as questões de definição da identidade.
70
SAID, Edward W, El mundo, el texto, y el crítico, Buenos Aires: Editora Debate, 2004.p.130. “Portanto, de
um modo bastante literal, Conrad conseguiu contemplar suas narracões como o lugar no qual a motivação, o
ocasional, o metódico y o racional se encontram con o aleatório, o imprecindível, o inexplicável. Por uma parte,
nos apresentam as condicições mediante as quais a narracão de una historia se volta necessária; por outra a
essência da história mesma parece contrária as condicições da sua narracão. A interacão de uma coisa com a
outra – e a atencão exige que prestemos atencão a isto – faz da narração esse objeto único que é.” (tradução
nossa).
49
Foi Conrad que compreendeu, com mais força do que qualquer um de seus leitores
poderia ter imaginado, no final do século XIX, que as distinções entre a Londres
civilizada e o “coração das trevas” rapidamente desapareciam em situações
extremas, e que as alturas da civilização européia poderiam instantanemamente cair
nas práticas mais bárbaras sem preparação ou transição. E foi Conrad também, em
the Secret agent (1907), que descreveu a afinidade do terrorismo com abstrações
como “pura ciência” (e por extensão pelo Islã e o “ocidente”) assim como a
degradação moral dos últimos terroristas.71 (SAID, 2003, p.46)
71
SAID, Edward W., Cultura e Política, SP: Boitempo Editorial. 2003. p.46.
72
Precisamos reconhecer que, no interior dos limites deste trabalho, não nos cabe discutir a filosofia de
Nietzsche, ou seja, só nos interessa essa aproximação, na medida em que, nos permite analisar a perspectiva de
Said sobre a obra de Joseph Conrad. Seu objeto de doutorado é uma referencia literária recorrente no conjunto da
sua obra. A analogia entre o escritor polonês e o filósofo está presente na coletânea, Reflexões sobre o exílio, e
outros ensaios, precisamente o artigo “Conrad e Nietzsche” (2003).
50
processo e visa surpreender o leitor com a diminuição de relevância dos personagens. Said
detecta o emprego dos discursos secundários ou repetidos na narrativa ficcional para
empreender um esforço do imprevisto no estilo de escrita do autor polonês.
A expectativa pelo exótico, pelo atípico se dilui no corriqueiro que se constitui
humano, demasiado humano. A convivência entre o habitual, o ordinário e o “intratável”
aparece na linguagem, na ação e nos personagens.
Said define Conrad como um escritor simultaneamente antimperialista e imperialista,
progressista e reacionário. Essa oscilação de posturas é ilustrada na representação da
corrupção autolegitimadora do colonialismo ocidental.
A projeção minimizadora da América Latina em Nostromo (1991), obra de Conrad,
confirma a visão que o autor tem do colonialismo. Conrad critica e reproduz a ideologia
imperial de seu tempo. Said associa a escrita de Nostromo a um contexto de entusiasmo
europeu pela experiência colonizatória.
Inserir Conrad num modelo de sociabilidade cosmopolita e deslocado das suas origens
possibilita entender o que Said teria marcado como central e passível de identificação na obra
desse escritor polonês. Devemos utilizar como guia interpretativo dessa aproximação, entre o
pensamento de Said e a obra de Conrad, o artigo do antropólogo James Clifford(2008),74 cujas
propostas versam sobre a aproximação entre dois autores poloneses que possuem perspectivas
muito semelhantes. São eles: Joseph Conrad no registro ficcional, e não muito distante,
embora com outra proposta original, Bronislaw Malinowsky, um antropólogo que estudou os
nativos das ilhas Trobriand na Nova Guiné.
Ambos são deslocados da sua origem e compuseram suas versões de identidades
moldadas pelas novas inserções culturais, em confronto com os seus pontos de origem.
Conrad se tornou um grande escritor na sua terceira língua de apreensão, aos 20 anos.
73
SAID, E. Cultura e Imperialismo, SP: Editora Companhia das Letras.1993. pp. 19/20.
74
CLIFFORD, James, Sobre à auto modelagem etnográfica: Conrad e Malinowsky In: A experiência
etnográfica, antropologia e literatura no século XX, RJ: Editora UFRJ, 2008.
51
75
Ibid, p. 97.
52
76
Erich Auerbach nasceu em Berlim em 1892, foi professor da Universidade de Marburg desde 1929. Com a
decretação das leis de Nuremberg em 1935, foi proibido de lecionar por ser de origem judaica. Um ano depois,
foi afastado definitivamente da sua inserção na universidade e exilou-se na Turquia, onde substituiu Leo Spitzer
na universidade de Istambul, quando lecionou até 1947. Sua especialização em filologia românica marca uma
influência teórica relacionada à erudição alemã do século XIX. Relaciona-se com o historicismo romântico
preconizando uma reflexão com base na pluralidade da individualidade dos povos. Auerbach distingue o
universalismo dialético da ideia de humanidade do Iluminismo e particulariza a primeira de forma a valorizar a
romanística alemã e sua concepção de história.
77
Erich Auerbach é conhecido por seu livro Mímesis, a representação da realidade na literatura ocidental,
escrito durante o seu exílio em Istambul no período da Segunda Guerra Mundial. Foi publicado em Berna, em
1946. Para a maior parte dos comentadores da sua obra esse livro seria central para a compreensão das suas
reflexões teóricas. Said dedica vários artigos à análise da obra de Auerbach. Entre os artigos consultados,
destacamos um capítulo dedicado ao livro Mímesis, presente no livro Humanismo e crítica democrática.;
Introdução a Mímesis de Erich Auerbach.
78
R. G. Collingwood defende em seu livro, A ideia de história, que Vico falava sobre a necessidade de distinguir
aquilo que deveria ser conhecido daquilo que não estava nos limites da compreensão humana. A doutrina dos
limites necessários do conhecimento humano forneceu recursos para uma crítica do cartesianismo e para uma
aproximação de Locke e seu empirismo crítico.
54
Não é um círculo mas uma espiral, pois a história nunca se repete, atingindo cada
nova fase, numa forma diferenciada em relação ao que a antecedeu. Deste modo, o
barbarismo cristão da idade média diferencia-se do barbarismo pagão da idade
homérica, por tudo o que o torna caracteristicamente uma expressão do espírito
cristão. Por esta razão, porque a história está sempre a criar novidades, a lei cíclica
não nos permite prever o futuro – o que distingue o seu emprego, por Vico, da velha
ideia Greco-romana de um movimento estritamente circular na história (encontrada
por exemplo em Platão, Políbio, e em historiadores do renascimento, como
Maquiavel e Campanella), tomando em consideração o princípio – cuja importância
fundamental já salientei – de que – de que o verdadeiro historiador nunca
profetiza.80 (COLLINGWOOD, 1989, p.92)
Todas as tradições são verdadeiras mas, nenhuma delas significa aquilo que diz. Para
se descobrir o seu significado, temos de saber a sua origem de criação e o que tal espécie
pretendia com tal coisa. Vico (1999) demonstrou como o pensamento histórico pode ser
construtivo e crítico e em segundo lugar, Vico (1999) desenvolveu os princípios filosóficos
implícitos na obra histórica em contraposição ao cartesianismo ampliando a base para a teoria
do conhecimento.
Para Said, o Vico resgatado por Auerbach significa a confirmação da possibilidade de
um conhecimento pautado pelo humanismo crítico. Said desperta um interesse pela obra de
Auerbach naquilo que ela traz em termos de síntese, de essência e culminância da análise
histórica literária do cânone ocidental.
Auerbach responde à perda da sua origem nacional e ao colapso do mundo ocidental
moderno através da recriação da cultura européia resgatando os textos da tradição humanista
européia. Said se interessa pelo fortalecimento da identidade numa conjuntura de iminência da
perda. Essa situação se aproxima da sua motivação intelectual, os traços “privilegiados” do
intectual diaspórico e a necessidade de traçar um inventário daquilo que está por se perder.
Resgatamos a associação entre a ideia de totalidade e a individualidade das narrativas
literárias, o que promove a chave de compreensão das afinidades entre Said e Auerbach. O
desejo pela manutencção da totalidade da tradição literária européia e as individualidades
79
Vico havia sustentado que certos períodos históricos tinham um caráter geral que gerava pormenores que
apareciam em outros momentos, de forma que dois períodos distintos possuíam criterios analogicamente
comparativos.
80
COLLINGWOOD, R. G., A ideia de História, Lisboa: Editorial Presença, 1989. P.92
55
A Ciência Nova de Vico era a arte de ler, digamos, os poemas de Homero, não como
se fossem escritos por um filósofo do século XVIII, mas como produtos de sua
época primitiva, textos que encarnam a juventude da humanidade, a era heróica em
que, para compreender e, se necessário, construir a realidade, se utilizava a metáfora
e a poesia, não a ciência racional e a lógica dedutiva, que ocorrem muito depois. A
filologia historicista – que é muito mais do que estudar a derivação das palavras – é
a disciplina que descobre sob a superfície das palavras a vida de uma sociedade que
ali está encerrada pela arte do grande escritor. Não se pode fazer isso sem, de
alguma forma, intuir, com o uso da imaginação histórica, como a vida poderia ter
sido, e assim, como sugerem Dilthey e Nietzsche, a interpretação envolve uma
projeção quase artística do eu naquele mundo anterior.81 (SAID, 2003, p.211)
81
SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP: Editora Companhia das Letras, 2003. P. 211.
56
mas como autor, já que este se insere na condição de um homem do seu tempo. O realismo
também deve ser visto como a concretização do homem inserido na sua trajetória histórica.
O romance ou a novela assume elementos particulares do ser humano, inserido no
mundo e com singularidades destacadas e levadas à sua máxima expressão. O movimento é de
dupla direção, com o enfoque comparativo da filologia, o texto literário pode ser remetido ao
devir histórico e o indício da transformação histórica aparece através da análise da produção
literária.
Para Auerbach, a obra de arte é determinada pela época da sua origem, pelo lugar e
pela singularidade do autor. A mundanidade aparece através da cultura. Luiz Costa Lima
(1995)82 diferencia a sutileza da obra inscrita socialmente dos fundamentos sociológicos das
obras em Auerbach. O sentido dessa distinção na particularidade analítica da obra de
Auerbach é inferir sobre a ausência de um determinismo sociológico nesse contexto.
O debate sobre a representação, presente no subtítulo de Mímesis, indica a genealogia
desse percurso iniciado em Vico. Costa Lima (1986) aponta para a inauguração da história
humana como experiência cognitiva na Ciência Nova de Vico. A sua leitura de Auerbach e
Vico aponta para a categoria de mímesis e para uma simplificação indesejada na relação entre
realidade e texto.
Auerbach concebe a mímesis como uma rua de mão única, que só tivesse por
direção o fluxo que viesse da realidade para o texto. Hoje, ao invés, percebemos que
o texto não é simplesmente um efeito da realidade ou uma depuração através da qual
apreenderíamos o que, sem que fosse notado, já estava na realidade. Tal concepção,
modernamente tributária da influência hegeliana, ainda era demasiado “espiritual”
para que não compreendesse que o próprio meio material em que a mímesis se
realiza é passível de ter um efeito sobre a visão então constituída da realidade.83
(SAID, 2003, pp.233/234)
82
LIMA, Luiz Costa, “Mímesis e História em Auerbach” In: LIMA, Luiz Costa, Vida e Mímesis, SP: Editora 34,
1995.
83
Ibid, pp. 233/234.
57
transição do real externo para o real interno na obra. O autor opera com uma múltipla
perspectivação no interior da obra que envolve; o momento da produção do texto, o contexto
da recepção e a condição de sujeito do autor.
Said se refere à Auerbach como um refugiado judeu da Europa nazista que havia
produzido sua obra central durante o exílio na Turquia. A representação do exílio de
Auerbach para Said interfere no perfil da escrita de sua obra. Para Said, Auerbach se
encontrava fora do alcance dos fundamentos literários, culturais e políticos da tradição
européia. Para além das condições adversas e precárias, Auerbach estaria exercitando um ato
de resgate e salvaguarda de uma tradição em plena decadência desse cânone ocidental.
Mímesis comporta um esforço de resgatar uma espécie de síntese da cultura ocidental.
Na visão de Said, Auerbach estaria enfrentando as condições históricas do
distanciamento que significam a perda dos textos das tradições e das regularidades que
constituíam uma cultura. O distanciamento material das bibliotecas, dos institutos de
investigação esvaziaria de sentido nacional o ethos o próprio autor. Auerbach, distante da
Europa, produz uma obra absolutamente arraigada ao cânone europeu. Para Said, Auerbach
representa o exemplo clássico de filiação com a sua cultura de origem.
Devemos trabalhar com a perspectiva que relativiza a idealização das condições de
exílio de Auerbach na Turquia.84 Na visão de Konuk (2010), o itinerário do exílio representa
um conjunto de forças históricas que produziu a emigração forçada de intelectuais judeus de
origem alemã, o que acabou produzindo uma renovação cultural na Turquia.
A idealização de Said (2003) indica uma Turquia hermeticamente fechada à influência
da cultura européia, o que resulta no estereótipo do contexto árido e problemático de produção
do livro. Essa ideia fortalece o pressuposto de que a realidade diaspórica de Auerbach teria
condicionado a sua obra. Konuk (2010) se contrapõe a essa visão, segundo ele idealizada,
sobre o contexto intelectual de inserção do autor alemão.
O argumento central da tese de Konuk (2010) é mostrar em que medida, nos anos 30,
os contextos da Turquia e da Europa Ocidental eram mais próximos e imbricados do que se
imaginava. No que tange à visão saidiana sobre o exílio de Auerbach, podemos defender que
essa representação foi suscitada pela descrição do próprio autor alemão. No prefácio ao livro
84
Encontramos fundamentos que nos permitem uma relativização da representação produzida por Said acerca do
exílio de Auerbach na Turquia na interessante análise do autor, KONUK, Kader, East West Mímesis Auerbach in
Turkey, Stanford: Stanford University Press, 2010.
58
Introdução aos estudos literários85, escrito durante o seu exílio turco, Auerbach (1972)
afirma:
Este livro foi escrito em Istambul, em 1943, com a finalidade de oferecer aos meus
estudantes turcos um quadro geral que lhes permitisse compreender melhor a origem
e a significação de seus estudos. Isso aconteceu durante a guerra: eu estava longe das
bibliotecas européias e norte-americanas; não tinha quase nenhum contato com meus
colegas no estrangeiro, e fazia muito tempo que não lia nem livros nem revistas
recém-publicados.86 (KONUK, 2010, p.9)
O epílogo do livro Mímesis, de certa forma, contribui para a visão idealizada acerca da
produção intelectual auerbachiana no exílio, para além de realçar as virtudes do livro em
função das condições adversas da escrita do mesmo. Said se baseia fortemente nesse material
para compor a representação do perfil do escritor, da identidade do intelectual exilado e de um
desempenho singular em função dessa experiência.
Mas as dificuldades eram demasiado grandes; mesmo assim, tratei de textos de três
milênios e muito frequentemente tive de abandonar o âmbito que me é próprio, as
literaturas românicas. Junta-se a isto, ainda, o fato de a pesquisa ter sido escrita
durante a guerra, em Istambul. Aqui não há nenhuma biblioteca bem provida para
estudos europeus; as comunicações internacionais estavam paralisadas; de tal forma
que tive de renunciar a quase todas as publicações periódicas, à maioria das
pesquisas mais recentes, e por vezes a edições críticas dos meus textos dignos de
confiança. Portanto, é possível e até provável que muita coisa me tenha passado
despercebida, muita coisa que deveria ter considerado, e que, por vezes, afirme
alguma coisa que tenha sido refutada ou modificada por pesquisas mais recentes.
Espero que entre esses prováveis erros não haja nenhum que afete o cerne do sentido
das ideias expostas. Também é resultado da escassez de literatura especializada e de
periódicos o fato de este livro não conter notas; afora os textos, cito relativamente
pouca coisa, e este pouco deixou-se introduzir facilmente no texto.87 (AUERBACH,
1994,p.502)
85
AUERBACH, Erich, Introdução aos estudos literários, SP: Editora Cultrix, 1972.
86
Ibid, Prefácio, p. 9.
87
AUERBACH, Erich, Mímesis, a representação da realidade na literatura ocidental SP: Editora Perspectiva,
1994. P. 502.
59
partida, no caso de Auerbach, e o conceito de começo para Said apontam para a compreensão
do fragmento remetido à totalidade. A parte tem uma qualidade que permite conhecer o todo.
A dupla perspectivação dos autores em questão envolve as condições objetivas da produção e
a tradução ou interpretação que não se esgota no elemento objetivo.
No livro A novela no início do renascimento,(2013) a metodologia comparativa é mais
explícita e os indícios das transformações históricas dependem do reconhecimento da
associação entre filologia e sociologia. Auerbach distancia-se das definições essencializadoras
e tipológicas e procura demonstrar as descontinuidades da novela ao longo do tempo
histórico.
Said reconhece Mímesis como um livro de um alemão exilado, afastado do seu
ambiente de origem. Embora o seu lugar de pertencimento esteja claro, o deslocamento para a
Turquia88 oferece uma nova perspectiva sobre a cultura européia. Os últimos capítulos de
Mímesis são um retrato do período contemporâneo de Auerbach, por meio de observações
agudas dos fatos e agentes sociais do contexto contemporâneo.
Na leitura de Said (2007), o Mímesis aparece como “uma tentativa de resgatar o
sentido e os significados dos fragmentos de modernidade com que, a partir do seu exílio
turco, Auerbach via a queda da Europa e da Alemanha em particular.”89
Para muitos autores, o exílio representa um estado de deslocamento crítico e
inspiração superior para elaboração de uma visão mais legítima da realidade. A metáfora do
desarraigamento inferia no retrato distorcido da solidão intelectual e da aridez de recursos,
tais como disponibilidade de fontes, presença dos clássicos literários ou existência de boas
bibliotecas disponíveis ao pesquisador. A equação exílio igual a isolamento subsidiou a visão
idealizada da permanência de Auerbach e da produção do seu clássico Mímesis.
No livro O mundo, o texto e o crítico, Said (2004) configura a insuficiência da
ambiência turca como um desafio habilitador da escrita do livro. Said entendia a Istambul dos
anos 30 como um lugar oriental, não ocidental. O argumento de Konuk pretende mostrar
como a Turquia não pode ser vista como a antítese do humanismo europeu. O autor se
distancia da visão de Said na medida em que tenta comprovar que a permanência de Auerbach
88
Auerbach chegou a Istambul em 1936, após o afastamento compulsório da Universidade de Marburg definido
pelo contexto das leis de Nuremberg que criara uma categoria de “judeu pleno” e interditava a ocupação de uma
função pública universitária aos judeus. Traçar o contexto do exílio de Auerbach na Turquia nos interessa na
medida em que isso confirma uma representação que Edward W. Said havia feito dessa produção intelectual no
contexto de deslocamento da Europa. Para Said, o modelo de produção do Mímesis obedece às condições de
distanciamento do universo intelectual europeu.
89
SAID, Edward W. Humanismo e crítica democrática, SP: Editora Companhia das Letras, 2007. P.143.
60
The executive value of exile, to use Said`s term, lies not simply in Auerbach`s
alienation from his habitual cultural environment but in the particular cultural,
historical, and intellectual environment of modern Turkey, an environment that
offered a new home for the humanist tradition. In other words, Auerbach `s work
was not only “steeped in the reality of Europe”, as Said argues; it was also rooted in
the reality of Istambul. As if to anticipate Said`s charge, Auerbach wrote that this
work was quite consciously a book that a particular person in a particular situation
wrote at the beginning of the 1940`s.90
90
KONUK, Kader, East West Mímesis Auerbach in Turkey, Stanford: Stanford University Press, 2010.p.15. “O
valor estrito do exílio, para usar os termos de Said, se baseia não somente na alienação do habitual ambiente
cultural de Auerbach, mas no particular ambiente cultural, político e intelectual da Turquia moderna, um
ambiente que ofereceu nova morada à tradição humanista. Em outras palavras, a obra de Auerbach não somente
‘mergulhou na realidade da Europa’, como argumenta Said; também enraizou-se na realidade de Istambul. Como
que se antecipando à investida de Said, Auerbach escreveu que este trabalho foi conscientemente um livro que
alguém em particular, em uma situação em particular, escreveu no início dos anos 1940.” (tradução nossa)
61
Edward Said, for one, took Auerbach to mean that there were “no western research
librairies” at all. Such a library, Said suggested, turning the lack into a gain, might
have otherwise “swamped” Auerbach with material. In reconstructing Auerbach`s
modus operandi, Said assumed that Auerbach had his own limited library of primary
sources but that he “relied mainly on memory and what seems like an infallible
interpretive skill for elucitading relationships between books and the world they
belong to. 91
91
Ibid,. p.137. “Edward Said, por exemplo, usou Auerbach para demonstrar que ‘não há bibliotecas de pesquisa
ocidental’. Tal biblioteca, Said sugere, revertendo a perda em ganho, deve, ao contrário, ter ‘afogado’ Auerbach
com material. Ao reconstituir o modus operandi de Auerbach, Said presumiu que Auerbach teve sua própria
limitada biblioteca como fonte, mas que baseou-se principalmente na memória e no que pareceu ser um infalível
habilidade de interpretação para elucidar relações entre os livros e o mundo ao qual eles pertencem.” (tradução
nossa)
62
mesmos: a nossa vida, com passado, presente, futuro; o meio que nos rodeia; o mundo em que
vivemos.”92 (AUERBACH, 1994, p.494)
Para Said, o autor é o ponto de partida para análise e interpretação, o que amplia o
estoque de possibilidades de compreensão do texto. Como filólogo, Auerbach deve rastrear os
momentos de origem da cultura ocidental que estão se esgarçando em meio a uma crise da
cultura. O filólogo deve priorizar a ordenação do material que aparece como herança ou
vestígio, deixado em meio à degeneração de uma cultura.
A rejeição a qualquer esquema rígido ou apreensão linear dos fragmentos textuais, o
aproxima dos romancistas modernos que recriam o mundo com base nos momentos pequenos
ou aleatórios. Em Mímesis, há a prática de se trabalhar com a análise de fragmentos
desconectados. Cada um dos capítulos do livro, é marcado não somente por um novo autor,
como um período histórico e ficcional distinto. Auerbach sempre volta para o texto, para o
estilo usado pelo autor para representar a realidade.
O princípio da empatia aparece como método de compreensão da obra, o que indica
proximidades com o Historicismo. Devemos dedicar uma parte subseqüente para uma
cuidadosa análise da relação entre o pensamento de Vico e a obra do filólogo alemão. Essa
aproximação ilustra mais uma afinidade do nosso autor Palestino com Auerbach. Este autor
procurou valorizar o método comparativo, no esforço teórico de uma existência associada à
História.
A chave para se compreender a concepção de História em Auerbach é definir os vários
realismos que perpassam as interpretações sobre a realidade inserida na literatura ocidental.
Alguns críticos da obra de Auerbach apontam o problema da mímesis unilateral, ou seja, uma
relação simplificada entre realidade e texto.
Novamente se coloca o problema do reducionismo ou hierarquia na relação entre texto
e realidade. Reconhecemos como inegável a centralidade da história para compreensão do
texto no autor alemão. Nesse sentido devemos vincular o cenário de formação intelectual do
autor de Mímesis na Alemanha Historicista que procurava ler as manifestações culturais
inseridas em singulares contornos. Mímesis representa um importante paradigma na busca por
modelos de História quando realiza as operações teóricas da história clássica alemã, inspirada
na concepção compreensiva de Dilthey.
O problema do ponto de partida em Auerbach nos conduz para a autodefinição do
autor quanto ao seu trabalho que se assemelha a uma topologia histórica. O concreto ou
92
AUERBACH, Erich, Mímesis, a representação da realidade na literatura ocidental SP: Editora Perspectiva,
1994. P. 494.
63
singular não se limita a uma obra autoral e o limite interpretativo tem conexão com uma
“irradiação” que promove filiações intelectuais e que se desdobra na relação entre o singular e
o geral, o característico.
A apreensão do todo se dá pelas partes, pela singularidade dos estilos literários, pelo
lugar de origem dos autores, embora a visibilidade compreensiva deva culminar com a
totalidade. Em Auerbach, o “instante qualquer” ou o evento aleatório, cotidiano pode ser o
ponto de partida para a compreensão da totalidade ou para uma interpretação sintética. O todo
está contido nas partes, mesmo a parte aparentemente menos importante.
Resgatamos o realce ao problema da tensão entre o particular e o universal. Auerbach
revela a indissociação entre a ontologia dos problemas humanos, entre uma essência que
permeia as diferentes temporalidades e as demandas contextuais. Em cada texto ou autor
particular, Auerbach encontra uma prefiguração de outras etapas da conjuntura mais ampla da
tradição de uma literatura ocidental.
Por meio de uma semântica histórica o autor alemão tenta rastrear o porcesso social, a
formação de um público e a definição de tipos sociais. A semântica histórica resignifica a
dimensão social dos textos.
A aproximação entre Said e Auerbach se encontra exatamente nessa tensão entre o
contingente, o fato histórico e o elemento universal que encaminha o sentido mais geral para
uma teleologia; a dupla movimentação que oscila entre o retrospectivo e o prospectivo; a
culminância de um gênero por meio do efeito geral na realidade histórica.
Devemos limitar o escopo da nossa abordagem acerca da obra de Auerbach,94 uma vez
que sua obra não constitui nosso objeto de análise mais direto. A aproximação ainda que
93
HANSEN, João Adolfo, Mímesis: Figura, Retórica e Imagem, In: RIEDEL, Dirce C., ROCHA, João C. de
Castro, KRETSCHMER, Johannes, (Coords.), 5º. Colóquio UERJ, Erich Auerbach, RJ: Editora Imago, 1994. P.
46.
94
Procuramos adotar algumas perspectivas interpretativas que nos possibilitam a percepção das afinidades entre
os autores. Reconhecemos a importância de um extenso e complexo debate sobre a produção de Auerbach,
realizado no Colóquio sobre a sua obra. Este possibilitou algumas entradas que nos ajudam a circunscrever uma
parcela de identificação da obra.
64
indireta da sua obra possibilita uma identificação dos traços definidores da produção
intelectual de Edward W. Said.
A realidade não pode ser entendida como um referente, esta deve ser vista por meio
de resquícios de um referencial discursivo. Para abordar o realismo em Auerbach, é
necessário circundar a temática do conceito de Figura (1997)95. Este pode ser entendido como
um mecanismo hermenêutico de interpretação bíblica, na relação entre o Antigo e o Novo
testamento. A hermenêutica da figura permite reconhecer o real na história. A representação
literária desta verdade se chama “realismo”. A história seria possibilitadora da relação entre o
fato existente e a planificação racional.
Aproximamos os dois autores pela perspectiva viquiana de imaginar uma biografia por
trás de uma obra e de, no momento posterior, fazer das afinidades de quem produz e quem lê
quase um método empático em que, pela aproximação podem organizar a compreensão. Com
Vico, Auerbach assimilou que a compreensão histórica permite o resgate de uma perspectiva
particular a cada época. Para alguns autores, Vico está presente na leitura que Auerbach
produz da sua própria época, a ideia de que a cultura européia vive um período de decadência.
A interação entre o autor e a sua obra é um ponto de reflexão que produz um
perspectivismo muito semelhante nos autores em questão. A iminência do desaparecimento de
uma visão universal ou um denominador comum do caráter humano, a ideia de totalidade na
abordagem da cultura ocidental faz de Auerbach um autor afinado com a produção
historiográfica de Edward W. Said.
95
O conceito de Figura foi desenvolvido originalmente sob a forma de um esboço teórico no livro sobre Dante
(1929) e posteriormente retomado no ensaio intitulado Figura, SP: editora Ática, 1997. (1ª. Edição -1938)
65
interpretativo de Vico sobre a unidade das épocas. Cada texto representa um indício de um
contexto mais amplo e encaminha para uma espécie de síntese.
Auerbach não define com precisão a sua fundamentação conceitual e metodológica. A
descrença na rigidez conceitual inibe pressupostos explícitos filosóficos que podem
condicionar a sua síntese histórica. A realidade não aparece como retrato histórico de uma
época, mas como matéria bruta que deve ser depreendida do método interpretativo da
representação figural.
De cada obra de arte podemos dizer que é determinada essencialmente por três
fatores: a época de sua origem, o lugar, a singularidade de seu criador. No caso da
novela, essa relação se estabelece de modo particularmente intenso, pois, enquanto
na tragédia ou na grande épica é um povo inteiro que fala, ocupado com deus e o
destino – de maneira que , para além de tempo e espaço, as profundezas da alma
sejam tocadas – na novela o sujeito é sempre a sociedade, e o objeto é, por essa
razão, a forma da mundanidade que denominamos cultura. 96(AUERBACH, 2013,
p.17)
96
AUERBACH, Erich, Introdução, IN: A novela no início do Renascimento, Itália e França, SP; Editora
CosacNaify, 2013. P.17
97
MEINECKE, F., El Historicismo y su genesis, Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1982.
98
Giambattista Vico nasceu em Napoles em 1668. Dedicou-se ao estudo da história, do direito romano e da
filosofia grega. Em 1699 Vico foi nomeado para a cadeira de retórica na Universidade de Nápoles. Nesse
contexto dedicou-se aos estudos de Platão, Tácito, Bacon e Grotius. A Ciência Nova, obra mais importante do
66
filósofo teve três versões, a primeira edição em 1725, a segunda edição em 1730 e a mais lida e comentada, a
última em 1744 que contou com acréscimos, correções e aprimoramentos incorporados ao texto. Quando foi
originalmente publicada, seu impacto foi limitado. O resgate da importância dessa obra vai ocorrer em 1836 por
meio da leitura de Michelet. Não só o conteúdo como a forma com que foi redigida, aparesentava uma
originalidade e uma inovação pouco assimilada no seu contexto de origem.
67
99
WAIZBORT, Leopoldo, Pósfácio, A estréia de Erich Auerbach nos estudos literários, In: A novela no início
do Renascimento, Itália e França, SP; Editora Cosac Naify, 2013.
100
Ibid, p. 137.
101
Auerbach produziu uma tradução alemã condensada da obra de Giambatista Vico, publicada em 1925. Além
dessa tradução, Auerbach escreveu nove estudos e três resenhas sobre o filósofo napolitano.
69
crítico Luiz Costa Lima (1986), “Auerbach; História e Meta história” que integra o livro
Sociedade e discurso Ficcional.102
Nessa perspectiva, seguimos a interpretação de Costa Lima (1986) que, para além de
refletir sobre as afinidades, tenta entender os caminhos diversos escolhidos pelos autores e
ainda assim as aproximações inevitáveis nos percursos teóricos. O esforço viquiano em se
contrapor ao dedutivismo cartesiano o induz ao realce das particularidades em meio à
totalidade histórica.
Para Costa Lima (1986), as divergências entre os autores estão centradas na maneira
como cada um pensa os contextos e possibilidades distintas, a relação entre intuição,
linguagem e paixão. As sutilezas nessa aproximação de ambas as obras podem ser definidas
no contexto de compreensão do artigo em questão como refrações, uma proximidade
enviezada, ou menos necessária de ambas as obras. A sutileza de se pensar em refração indica
um cuidado com a especificidade de cada contexto intelectual que produziu diferentes obras.
Auerbach se impressionava com a concepção de linguagem em Vico e o papel
atribuído à poesia. Vico oferecia ao filólogo berlinense uma teoria da História, distante das
ciências naturais e uma teoria da linguagem que particularizava o poético. Costa Lima (1986)
traça uma distinção entre o verum e o certum para distinguir os dois campos de fenômenos
atrelados à filologia e à filosofia.
À medida que Vico fundava a filologia no certum, à medida que seu exercício
emprestava dignidade à matéria histórica e antropológica e à medida que ela era
separada da base necessária para a filosofia (e desde a filosofia da Vertehen, para as
ciências exatas) justificavam-se a não exclusividade concedida à razão e o íntimo
entrelaçamento da História com a poesia. Assim Vico legitimara para Auerbach o
fato de a preocupação com a poesia não poder ser separada da preocupação com a
História.103 (LIMA, 1986, p.383)
102
LIMA, Luiz Costa, Auerbach; História e Meta história, Sociedade e Discurso Ficcional, RJ: Editora
Guanabara, 1986.
103
Ibid, p. 383.
104
Ibid, p. 384.
70
Recorremos à parte do artigo em que Costa Lima discute a meta história em Vico e as
reflexões suscitadas pelo aparente relativismo problemático na obra de seu fiel leitor,
Auerbach. Costa Lima define um círculo do relativismo, em que cada época ou cultura está
circunscrita em si mesma.
A Ciência Nova apresenta um duplo movimento, um vínculo entre o divino e o
humano, por isso o plano do particularizado não se desprende do plano do eterno. O homem é
portador de livre arbítrio e simultaneamente submetido ao plano da providência.
O escopo da história é alargado na Ciência Nova, na medida em que predomina o
princípio da identidade entre o fazer e o conhecer. Se Vico defende a equivalência entre o
saber e o fazer, a culminância da história humana dispensa a justificativa teológica. O fato
histórico preenchido de sentido deve ser relativo à sua posição temporal.
Para alguns comentadores de Vico como Benedetto Croce (2001)106, a História nada
tinha a ver com a história concreta que se organizava no tempo, era antes uma história ideal,
uma filosofia do espírito de tratava das mudanças da mente humana. Vico era elogiado por ter
descoberto essa dedução e criticado por tê-la utilizado de maneira equivocada. A rejeição de
Croce pela sociologia e pela filosofia da História produz essa leitura sobre a obra de Vico e
demonstra uma resistência inicial.
O problema da dedução conceitual e do afastamento da História concreta da filosofia
do espírito produz uma impossibilidade epistemológica denominada filosofia da história, além
de apontar as fragilidades teóricas do sociologismo em função das leis universais
depreendidas dos fatos concretos. Se pensada corretamente, a autonomia do mundo estético e
a descoberta da apreensão cognitiva funcionariam como antídotos para a filosofia da História
e para o sociologismo.
Para Croce, o problema se definia pela ameaça das causalidades necessárias. Embora
houvesse uma resistência crociana do esforço de Vico por uma filosofia universal da história,
105
WHITE, Hayden, Trópicos do discurso, ensaios sobre a crítica da cultura, SP: EDUSP, 2001. P.231.
106
Para uma análise apurada da leitura de Vico realizada por Benedetto Croce ver: “O que está vivo e o que está
morto na crítica de Croce a Vico”, IN: WHITE, Hayden, Trópicos do discurso, ensaios sobre a crítica da
cultura, SP: EDUSP, 2001.
71
podemos inferir que sua definição sintética da obra de Vico nos fornece pistas muito boas
sobre o lugar da sua obra na filosofia da história. Para Croce, Vico representava o século XIX
em estado embrionário.
Ao buscar a superação do cartesianismo, Vico definia a essência humana por meio da
história, ou seja, na interação diacrônica entre o homem e o mundo. A filologia seria o meio
pelo qual se pode apreender o particular. A experiência do passado é inserida como
constitutiva da memória que sofre descontinuidades ao acrescentar conteúdos novos.
Conhecer o passado não significa a descrição dos fatos e sim o resgate das ideias por meio da
filologia, o que seria um indício do uso sistemático da razão humana.
Vico desenvolve a ideia de que existe algo subliminar e fora do sentido lógico que
precisa ser enfrentado através da compreensão. Vico recorre a Aristóteles para afirmar que
“nada está no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos”. 107
Os eventos não se repetem, existe um grau de constância no devir histórico sem
comportar repetição. O tempo histórico não se define pelo aspecto cíclico e sim pela forma
espiral. A nova etapa nunca começa com a conclusão da anterior, ela se repete em espirais.
Os tempos bárbaros na concepção viquiana integram dialeticamente o progresso,
porque garantem a retomada posterior da civilização. O progresso também inclui momentos
de barbárie. Aqui percebemos uma concepção de progresso distinta do contexto iluminista.
A temporalidade não é linear tal como no contexto das luzes, embora vista como
progresso, não pressupõe. Há uma essência dos fatos e coisas humanas, mas não a repetição
dos mesmos eventos, ou seja, a barbárie se repete, mas nunca é a mesma.
A concepção de história viquiana segue um desenvolvimento histórico com a sucessão
das diferentes fases. O entrelaçamento entre o relativismo e a história contínua, despertou o
interesse em Auerbach, assim como a relação intrínseca entre o particular e o constante. O
dilema do relativismo apareceu como um problema colocado pelo historicismo.
Se o postulado de que o fato históricamente verificado se converte, no interior da
mente, no evento verdadeiro, seu ponto de partida acaba sendo uma associação do realismo
com a empatia subjetiva no campo do cognitivo.
O verdadeiro está ao alcance da compreensão humana, mas está sujeito à variação
diacrônica, embora conserve algo de universal em termos de natureza humana. Na Ciência
Nova, Vico recorre à poesia e todas as expressãoes da fantasia e do sentimento como
atividades do espírito humano. Vico recupera a poesia como o registro do verdadeiro.
107
Vico Apud SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio, e outros ensaios, SP: Editora Companhia das Letras,
2003.p. 37
72
Para José Antonio Paula,108 Vico invocava a providência divina não no sentido
teológico, agostiniano, e sim como uma espécie de “astúcia da razão”, tipicamente hegeliana.
Essa literatura parte da interpretação clássica de Benedetto Croce no seu clássico A filosofia
de Giambattista Vico (1911). Lopes segue o Vico de Croce para falar da oscilação entre o
predomínio do sujeito na história ou da providência, ainda que compreendida como um
sentido transcendente não teológico.
A leitura do historicismo em Auerbach é tributária da construção analítica de Friedrich
Meinecke, El historicismo y su génesis.109 Nesse autor o historicismo é visto, como um
fenômeno europeu cujas origens de desenvolvimento, podem ser atribuídas aos pensadores
ingleses e franceses, embora tenham alcançado a sua plenitude na Alemanha.
Meinecke pensa a particularidade de Vico, a partir do contraponto com o
cartesianismo e por meio do mecanicismo que refutava os preconceitos originados no direito
natural. Vico teria associado à ideia de providência divina com uma filosofia imanentista.
Meinecke (1982) afirma que nos dois primeiros livros da Ciência Nova surgiria uma
tendência crescente a acentuar o princípio da imanência em contraposição a transcendência da
ação divina. Embora Vico reconheça a religião como a força mais valiosa na história, este
108
PAULA, José Antonio de, Vico, In: Ideias de História, tradição e inovação de Maquiavel a Herder,
Londrina: EDUEL, 2007.
109
Meinecke, F. El historicismo y su Genesis, Mexico: Editora Fondo de Cultura Econômica, 1982.
110
MEINECKE, Friedrich El historicismo y su genesis, Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1982.p. 58.
“Vico avança no profundo, vendo a totalidade da vida histórica como um processo natural de paixões
humanamente limitadas, as quais conduzem, a resultados plenos de valor e sentido, porque impera uma razão
mais alta. Vico afasta um pouco sem fragilizá-la a mão de Deus e dá a esta sua natural liberdade de movimentos.
Isto constitui um ato decisivo para a incipiente secularização na história, na qual descansou a história moderna, a
qual empreendeu Vico como crente, não como cético, como no caso dos escritores da ilustração. Mas o que fez,
senão iniciar esta secularização, ainda ocnsiderada a história, sub spécie eterni, a mantém vinculada a imediata
vontade de Deus. Não obstante, na sua nova forma de consideração incide , oculta para ele mesmo , uma força
impulsiva que empura a vida histórica como um efeito de forças e leis imanentes. (tradução nossa)
73
111
Para aprofundamento das polêmicas acerca da relação entre o pensamento Viquiano e o historicismo ver;
LACERDA, Sonia, “O vero e o certo: a providência na história segundo Giambattista Vico”, In: LOPES, Marco
74
Quando usava a expressão “história ideal eterna”, Vico estava afirmando que certas
tendências históricas capitais se repetem, dando assim a origem a uma sequência de
formas genericamente semelhantes de organização política, direito, mentalidade,
literatura, etc. Não pretendia que tudo o que acontece seja determinado. Pelo
contrário, ele era veementemente contra essa ideia do “fado”, como a chamava, em
nome do livre arbítrio. Não parece que ele tenha acreditado nem mesmo na
inevitabilidade da sequencia básica das formas, pois observa em certo momento que
Cartago, Cápua e Numancia “fracassaram em completar esse curso das coisas civis
humanas, em razão de vários obstáculos”. Como uma sequencia pudesse ser
necessária, mas não inevitável,Vico não explica. Embora não fosse inevitável, a
sequência podia de qualquer modo, ser encontrada em diferentes partes do mundo.
Era normal, natural e até providencial. 113 (BURKE, 1995, pp.93/94)
A.(org.) Grandes Nomes da História Intelectual, BERLIN, Isaiah Vico e Herder, Brasilia : Editora da UnB,
1982.
112
BURKE, Peter, Vico, SP: Editora UNESP, 1995.
113
Ibid, p. 93/94.
75
114
LIMA, Luiz Costa, Auerbach; História e Meta história, Sociedade e Discurso Ficcional, RJ: Editora
Guanabara, 1986. p. 399.
76
Podemos rastrear um percurso teórico que se origina em Vico, a leitura que Auerbach
produziu da obra do filósofo italiano, em especial A Ciência Nova. A legitimidade da História
em Vico em oposição às ideias cartesianas ajudou a definir o que ele denominava por “mundo
das nações”.
Vico compartilhou os pressupostos da coerência histórica, onde cada período possuía a
sua língua, arte, metafísica, lógica, ciência; características comuns e inerentes a um
determinado contexto. Para Vico e Auerbach, a condição de proximidade ou empatia com o
próprio objeto possibilita a sua compreensão no sentido mais amplo.
Essa é a principal ideia metodológica para Vico, bem como para Auerbach. Para
sermos capazes de compreender um texto humanista, devemos tentar entendê-lo
como se fôssemos o autor do texto, vivendo a realidade do autor, passando pelo tipo
de experiências intrínsecas a vida do autor, e assim por diante, tudo pela combinação
de erudição e simpatia, que é a marca da hermenêutica filológica.115 (SAID, 2007,
p.117)
115
SAID, Edward W. Humanismo e crítica democrática, SP: Editora Companhia das Letras, 2007. P.117.
77
Outro aspecto importante assinalado como parte do projeto de escrita da obra Mímesis
tem relação com a contraposição a uma filologia nacional, em voga nos anos 30 e 40
especialmente no contexto de consolidação do nacional socialismo alemão, uma escrita supra-
nacional ou o rastreamento do humanismo universal como definiria Edward W. Said.
Se Auerbach espera até o final para revelar a sua autoconsciência, Said faz do lugar de
fala um ponto de partida e sua abordagem central. Podemos reconhecer algumas
aproximações entre Said e Auerbach, nas seguintes obras: O mundo o texto e o crítico (2004),
especificamente no ensaio “crítica secular” e no livro Cultura e Imperialismo (1993). Neste
há um esforço em repensar o Mímesis do ponto de vista do crítico exilado que estava
escrevendo meio século depois de Auerbach.
Said entende o perspectivismo de Auerbach como um símbolo do humanismo secular.
O significado do ensaio de Auerbach para Said se coloca não só pela afirmação do
humanismo, sobretudo, pela contribuição metodológica central do conceito de ponto de
partida. A concepção de natureza humana pode ser a chave de compreensão da aproximação
do humanismo de Said com a construção do conhecimento em Vico.
A relação entre o universal e as particularidades do “mundo das nações”, diferente do
“mundo da natureza”, aponta para as variáveis históricas em meio ao conjunto de leis
universais, aqui lidas como Providência. Reconhecemos as sutilezas das distinções entre o
historicismo de Herder117, que tem como base o pressuposto da individualidade dos povos e a
preparação filosófica inaugurada por Vico, para o caminho posteriormente percorrido pelo
historicismo alemão.
Auerbach lê Vico na perspectiva de uma futura gestação do relativismo estético que
tanto o interessa para pensar a filologia. A filologia é o espaço privilegiado de análise das
116
WAIZBORT, L, Erich Auerbach e a Condição Humana, In: ALMEIDA, Jorge de, BADER, Wolfgang, O
Pensamento Alemão no século XX , Volume 2, SP: editora Cosac Naify, 2013. P. 207
117
A reflexão sobre os vínculos entre o historicismo alemão e a obra de Vico, entendido como seu antecessor
necessário, é bastante complexa. Há uma revisão sobre as conexões estreitas entre os dois percursos de reflexão.
Essa associação parece estar presente na obra de Auerbach. Para um maior detalhamento desse debate; ver;
BERLIN, Isaiah, Vico e Herder, Brasília: Editora da UNB, 1982.
78
118
LESSA, Beatriz Cepelowicz, A Construção de um Mundo: Raízes Germânicas e Judaicas na História
Literária de Erich Auerbach, TESE DE DOUTORADO, Departamento de História, PUC-RIO, 2004.
119
Ibid, p. 387.
79
120
AUERBACH, Erich, “Vico e o Historicismo estético” In: Ensaios de literatura ocidental, Filologia e Crítica,
SP; Editora 34, 2007.
80
contexto de produção da Scienza Nuova por Vico em 1725. Para Auerbach é inegável as
aproximações teóricas entre as ideias de Vico e as de Herder.
Tanto o irracionalismo poético quanto a imaginação dos homens primitivos visto
como poetas possuem relevância na obra de Vico. No sistema viquiano a imaginação
primitiva gera indiretamente o estabelecimento de limites coletivos que mobiliza a criação das
instituições. A idade poética em Vico potencializa as instituições políticas. Vico, antes de
Herder, vai gestar o conceito tão caro ao historicismo, como o de “espírito do povo”.
Para Auerbach, Vico antecipara a ideia de que poesia primitiva não seria produto
criativo individual e sim criação coletiva de uma sociedade. Para além do reconhecimento
último e tácito da existência do “espírito do povo”, Vico se interessaria pelas leis da divina
providência que governam a História. A análise dos diferentes períodos realça os estágios
particulares como etapas de uma determinada evolução.
Vico desempenhou uma importância no que tange à teoria do conhecimento e à noção
de perspectiva histórica. Inferimos que se o desenvolvimento da história humana é inerente a
mente humana, a análise e a síntese buscam compreender cada etapa histórica como um todo
integral. Vico teria criado uma base de compreensão histórica.
Os objetos da História envolvem não só passado, como também o progresso dos
acontecimentos em geral. A própria categoria de repetição, epistemologicamente incerta,
promove o pressuposto de que a História e a realidade tratam da persistência humana e não da
originalidade divina.
No plano do significado a experiência organiza o sentido, à medida que o passado
retoma experiências similares, além do fato da repetição dotar de um sentido definidor a
natureza humana. A repetição em Vico é um princípio do devir que proporciona aos fatos a
sua realidade e a sua facticidade histórica. O motivo básico se repete no ciclo com ritmos
diferentes. A repetição em Vico é filiativa e genealógica. Essa filiação em Vico é
problematizante, o que evita a tentação teórica reducionista.
siendo este último uma recapitulácion del primero. Según Vico, la historia es aquel
lugar en el que nunca se pierde nada. 121 (SAID, 2004, p.161)
A citação em destaque justifica a visão de história em Vico. Esta aparece para Said,
como uma pista da oscilação entre o universal e o contingente no devir histórico. A
genealogia do conhecimento tem relação com o predomínio da regularidade sobre o irregular,
sem que isso incorra no rastreamento de causalidades necessárias ou leis.
Said se interessa por Auerbach em função do seu método de aproximação entre a
literatura e a história. Embora Auerbach não assuma uma metodologia explícita em Mímesis,
a busca pela representação da realidade passa por um modo de compreesnsão que percebe a
história e a literatura como dinâmicas apropriadas pela consciência crítica do leitor.
Said persegue o problema das origens em Vico, uma vez que os padrões repetitivos
que compõem a existência humana ganham credibilidade, na medida em que há um
afastamento da perspectiva da origem. É Interessante perceber a resolução viquiana para o
paradoxo identificado nas divergências entre a metáfora genealógica e o descobrimento
fáctico.
Para Auerbach, é como se herdássemos por meio de Vico e através do historicismo,
seu possível sucessor, uma mentalidade histórico-perspectivista que não permite recuos.
121
SAID, Edward W. , El Mundo, El texto y El crítico, Buenos Aires: Debate, 2004. p. 161. “Vico emprega um
conceito assombrosamente similar. A história, diz ele, emana da mente; e o que é a mente senão memória
histórica, capaz de articulacão, modulação e mudança infinitas? A memória fundamentalmente refreia a mente: a
memória é quase uma realidade, tanto para os homens primitivos como para os filósofos modernos mais
estranhos, segue sendo essencialmente uma realidade humana. Por mais que possa parecer que muda, nunca
pode ser nada mais e nada menos que o humano. Princípios da Ciência Nova analisava as estruturas desta
realidade sem memória tal como se transferiu do homem primitivo para o homem moderno o, segundo o
entendia Vico em uma daquelas extraordiárias observacões que estabelecem a obra, tal como o homem primitivo
engendra literalmente ao homem moderno, sendo este último uma recapitulácion do primeiro. Segundo Vico, a
historia é aquele lugar em que nunca se perde nada. (tradução nossa)
82
122
Beginnings: intention and method (1975) que defendia a necessidade prática e teórica de
dispor de um ponto de partida para qualquer trabalho intelectual dado que a nossa existência
se desenvolve no mundo secular, no domínio humano.
Said define o livro Beginnings: intention and method, (1985) como uma produção
centrada na análise de como a mente humana localiza retrospectivamente um ponto de
origem. Na história e no estudo da cultura, a memória e a retrospecção nos remetem ao
nascimento. O princípio pode ser permanentemente revisto.123
O autor defendia a necessidade prática e teórica de dispor de um ponto de partida
racional para o trabalho intelectual dado que a existência se desenvolve na história secular, no
domínio de um esforço continuado. A gênese de uma obra não é uma demarcação da sua data
de nascimento, mas uma prova conceitual de interpretação crítica.
Reconhecemos a premissa de que nas Ciências Humanas deve-se procurar o ponto de
partida, o princípio inaugural da teoria. O início de cada projeto tem que ser depreendido de
maneira a permitir o que se segue. O ponto de partida é a delimitação, o recorte inaugural que
define o escopo do trabalho.
Podemos perceber uma linha de continuidade entre o livro ensaístico, teórico voltado
para a epistéme da produção de conhecimento e a preocupação mais direta sobre a escrita e o
caráter mundano dos textos. Nesse contexto, dada a proximidade teórica de ambos os livros,
decidimos analisar as obras124 em conjunto possibilitando algumas reflexões próximas e
referenciais teóricos em comum.
A importância da coletânea “O mundo, o texto e o crítico”(2004) justifica-se porque
percebemos que alguns dos principais dilemas teóricos de Said, já estão originalmente
presentes na reflexão sistemática sobre a mundanidade do texto, o papel do intelectual, a
aversão à especialização conformadora do esvaziamento do papel do crítico e a relação entre
poder e conhecimento.
Na introdução da coletânea percebemos uma diretriz contestadora direcionada à
hegemonia da crítica literária pós-moderna nos EUA, em fins da década de 70. O contraponto
122
Beginnings: intention and method foi o primeiro livro escrito após 1967, data que estabelece um marco
divisório nas suas preocupações teóricas, quando o autor tentava reformular sua missão intelectual. A partir
dessa obra, Said identifica um dinamismo tanto intelectual como político. Este livro começou a ser escrito
durante o inverno de 1967-68, e esse processo durou até 1972-1973. O livro só foi publicado em 1975.
123
Numa entrevista ao jornalista israelense Ari Shavit que perguntava a Said por que o interesse por um estado
binacional na Palestina? O autor respondeu; “porque quero um tecido tão rico que ninguém pode abarcar
completamente e ninguém pode posssuir completamente. Nunca pude entender a noção de “este é meu lugar e
você fica fora deste lugar”. Não gosto do regresso a origem, ao puro”. Said, Edward W. “My right to return,
entrevista com Ari Shavit, In; SAID, E.,Power, Politics, and Culture, p 457. (Tradução nossa)
124
Estamos nos referindo aos seguintes livros; Beginnings: intention and method (1975) e O mundo, o texto o
crítico (1983).
83
125
SAID, Edward W., El Mundo, El texto y El crítico, Buenos Aires: Debate, 2004. Pp. 53 e54. “Eu sustento que
essa mundaneidade não aparece e desaparece, nem está aqui ou ali no viscoso modo, mediante o que
normalmente designamos a história, que nesses casos é um eufemismo da noção vaga de que todas as coisas têm
lugar no tempo. Os críticos não são mer mente os alquímicos tradutores de textos na realidade circunstancial ou
na mundanidade; porque eles são objetos e também produtores de circunstâncias, as quais se fazem sentir com
independência de qualquer que seja a objetividade que os métodos do crítico posuem.”(tradução nossa)
126
Teoria viajante ou teoria ambulante é o título traduzido de um capítulo da coletânea; O mundo, o texto, o
crítico.
85
127
A ideia de totalidade, não original em Lukács podia ser localizada no pensamento de Baruch Spinoza e
Giambattista Vico, embora o resgate da categoria de totalidade, nesse contexto originava-se na dialética
marxista.
128
Podemos rastrear a presença da teoria lukácsiana em algumas obras de Edward W. Said. No livro Joseph
Conrad e a autobiografia, aparecem alguns dilemas centrais relacionados a obra do romancista, que equivalem
ao problema da alienação e do exílio, a vivência de uma autodivisão e um distanciamento em relação a sua
essência. No livro Beginnings: intention and method, o historicismo espiralado de Vico se une a mundanidade de
Lukács. Nesse livro aparece uma proximidade com a teoria do romance e com o clássico, História e consciência
de classe. Said parece utilizar o insight sobre o romance para consolidar sua ideia sobre a crítica secular.
129
Nascido em uma família da alta burguesia judaica assimilada de Budapeste, G. Lukács sempre se identificou
com a alta cultura alemã. Em seu primeiro trabalho importante, A alma e as formas (1910). Lukács admitia uma
profunda nostalgia das culturas pré-capitalistas que o autor opõe à destruição da cultura pelo capitalismo.
86
130
Para José Paulo Netto (2013), as periodizações da obra de Lukács são complicadas em função da
artificialidade da linha evolutiva que demarca um campo de continuidades e que tendem a “hipostasia de
rupturas”. A dogmática do “jovem Lukács” em contraposição ao Lukács da maturidade aparece nesse contexto
como uma deformação vulgarizada no senso comum que subestima algumas mudanças que não se encaixam
nessa divisão grosseira, a saber: primeiro período: pré-,marxista , segundo período: a partir da História e
Consciência de classe; marxista revolucionário e o terceiro período estalinista, iniciado em 1938. José Paulo
Netto explicita as diversas periodizações divergentes da leitura de Lucien Goldmann. Alguns marcos são levados
em conta, e redefinidos por Netto; como o encontro com Marx sob o viés de Simmel, a imensa crise intelectual
gerada pela primeira guerra mundial, a transição do neokantismo pelo viés hegeliano e o terceiro encontro com
Marx que estabelecia o caráter totalizante da dialética materialista.
87
131
Lukács reproduz no prefácio da usa obra, A teoria do romance que uma parte considerável da nata da
inteligência alemã, cita nominalmente Adorno, “alojou- se no grande hotel abismo – como escrevi por ocasião de
uam crítica a Schopenhauer -, um “belo hotel, provido de todo conforto, à beira do abismo, do nada, do absurdo.
“E o espetáculo diário do abismo, entre refeições, ou espetáculos comodamente fluídos, só fazem elevar o prazer
desse requintado conforto.” LUKÁCS, Georg, A destruição da razão apud prefácio, A teoria do romance, Um
ensaio histórico filosófico sobre as formas da grande épica, SP: editora 34, 2012. P.18.
88
Said cita A alma e as formas de Lukács, sua primeira obra em que a impressão de que
a oposição pode ser polarizada demais para se resolver na temporalidade. Said se interessa
especialmente pela primeira fase de produção do filósofo húngaro. Os trabalhos desse
contexto versam sobre a dissonância entre sonho e realidade e a possibilidade de reconciliação
dessa disjunção.
O ponto de partida da obra Lukácsiana é a dissonância, o senso de desacordo
ontológico entre o eu e o outro, entre o sujeito e o objeto. A modernidade aparece como o
tempo da culminância da dissonância e da superação da mesma. O cerne da existência na
modernidade está representado pela distância entre sujeito e objeto.
Na análise Lukácsiana sobre o romance, este seria visto um mecanismo artístico, de
criação estética, de resolução das dificuldades da modernidade. Sendo assim o romance é uma
forma de reconciliação das discrepâncias internas da vida moderna e um representante da sua
época Histórica.
A leitura Saidiana da História e Consciência de classe promove um elo de
continuidade entre a sua reflexão sobre o romance moderno e o problema central da
reificação, que na nossa concepção é o que mais desperta a atenção do nosso autor.
História e Consciência de classe é entendida como uma obra de transição na trajetória
teórica e intelectual de Lukács, além de um encontro com o marxismo no sentido mais
explícito. A noção de uma dialética entre opostos é vista como força lógica em Hegel e
elemento sociopolítico em Marx. O marxismo reintroduz a ideia de totalidade e a superação
da reificação como meta a ser cumprida através da consciência do proletariado.
Said (1985) resgata a frase definidora de Lukács132 em relação à História. “A História
é a derrubada incessante das formas objetivas que moldam a vida do homem.”133 A
temporalidade é vista como forma, como processo e como reconciliação, momento histórico
onde é possível conseguir alguma satisfação entre o sujeito que conhece e o objeto que resiste
por meio da categoria de totalidade.
O que Said (1985) destaca em Lukács é a culminância metafísica da proposta
Hegeliana aplicada à estética e a política. O autor palestino resgata o otimismo redentor e
temporal que aparece na superação da dissonância que representa uma ameaça a identidade. A
132
No livro Beginnings, Said se refere a um radical deslocamento do pensamento tradicional que requer uma
nova fusão entre o homem e sua atividade. O contexto da dissociação entre consciência e ação nos remete ao
debate originado em Marx, que Lukács resgata mesmo sem conhecer os manuscritos de 1844. Lukács tentava
demonstrar a extensão no qual o gesto revolucionário deveria operar uma metamorfose de um tipo de
consciência para outra. Os interesses passam pela noção de mundanidade e pela crítica engajada.
133
Lukács apud Said, Reflexões sobre o exílio, página 217.
89
Of the arguments I was trying to articulate in Beginnings is that each critic needs in
some way to fashion for himself a point of departure that allows him to proceed
concretely along a given course of work. According to that notion then, such forms
as the novel, such objects as “the text”, such practices as criticism, are constitutive
methods for creating work and “covering” their own begininnings with inevitability
and a posteriori logic. I was also interested not only in the transformations of which
the idea of beginning is capable, but also in demonstrating (at a very theoretical
level) how concrete circunstances and highly abstract appetites (and even fictions)
can combine to provide one with an intencional method of formulating projects for
oneself. 136 (SAID, 2002, p.22)
134
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de, à sombra do vulcão, Comentário à “Pathos da travessia terrena, o cotidiano
de Erich Auerbach”, de Hans Ulrich Gumbrecht In: RIEDEL, Dirce C., ROCHA, João Cesar de Castro, e
KRETSCHMER, Johannes, (coords.), V Colóquio da UERJ, Erich Auerbach, RJ; Editora da UERJ, Imago,
1994.
135
Ricardo Benzaquen ressalta a mudança de rumo tomada por Lukács apos o suicídio da sua ex-companheira
que acaba por buscar no cotidiano uma reconciliação com a perspectiva utópica que o aproxima da política,
opção que se mostra bastante duradoura no conjunto da sua obra.
136
SAID, Edward W., Power, Politics and Culture, Interviews with Edward W. Said. P.22. “Um dos argumentos
que busquei articular em Beginnings, foi que cada crítica precisa, de certa forma, moldar para si um ponto de
partida que lhe permita proceder de forma concreta em uma linha de trabalho. De acordo com essa noção, então,
tais formas como, o romance, objetos como o ‘texto’, práticas como a crítica, são métodos constitutivos para
criar trabalho e ‘cobrir’ seus próprios começos com inevitabilidade e uma lógica a posteriori. Fiquei interessado
não somente nas transformações pelas quais, a ideia de começo é possível, mas também em demonstrar (em um
nível muito teórico), como circunstâncias concretas e inclinações altamente abstratas (até mesmo ficcionais)
podem combinar para fornecer um método intencional para formular projetos para si mesmo.”
90
Retomamos o s vínculos entre Said e Lukács através das leituras da obra de Lucien
Goldmann,137 discípulo do pensador húngaro, no seu período de formação. Essa leitura teria
constituído uma forma de pensar a dialética através de uma análise das chamadas; teorias
ambulantes ou viajantes, que tratam concretamente da domesticação do pensamento, quando
os textos são apropriados em outras cinscunstâncias sociais.
Retomamos propositalmente o contraponto entre a perspectiva de Lukács e Adorno,
referências importantes para Said, porque representam um desencantamento com a
modernidade irreconciliável. Adorno segue um percurso antinômico à Lukács que concebera
meios de escapar da culminância da modernidade e seus efeitos reificados.
Para Said, Adorno (1990) encarna os traços de um intelectual tardio. O estilo tardio
que se faz presente e ausente do contexto contemporâneo. Ser uma figura tardia significa
militar contra a corrente do seu tempo. Contra a especialização, ser ecumênico; contra o
profissionalismo. Said defende a ideia de um intelectual como um ser diletante que não realiza
concessões aos leitores e ao contexto hegemônico.
137
Para um maior aprofundamento da aproximação de Said do pensamento lukácsiano por meio de Lucien
Goldmann ver: BRENNAN, Timothy, Resolución, In: BHABHA, H. , MITCHELL, W. J. T. (comps.) Edward
Said, Continuando la conversación, Buenos Aires: Editora Paidós, 2006.
138
SAID, Edward W., Estilo Tardio, SP: Companhia das Letras, 2009.p.38.
139
Para Said o critico está comprometido com uma forma ensaística, cuja metafísica foi esboçada por Lukács na
obra, A alma e as formas, nessa concepção havia a afirmação de que os ensaios deveriam se ocupar das relações
entre as coisas, os valores e os conceitos. A forma deve ser condicionada pela experiência vivida. Os críticos
criam os valores que utilizam para julgar uma obra estética e encarnam na escrita os processos das condições
reais do presente, da sua situação contemporânea.
91
140
ASHCROFT, Bill e AHLUWALIA, Pal, Edward Said, La paradoja de la identidad, Barcelona: Ediciones
Bellaterra, 2000. p. 59. “Isto significa que o texto é crucial no modo de “ter” um mundo , mas o mundo tem
existência real e essa mundanidade se constrói dentro do texto. O texto tem uma situacão específica que põe
limitacões ao intérprete, “não porque a situacão se ache oculta no texto como um mistério, senão porque a
situación existe no mesmo nível de especificidade superficial que o próprio objeto textual.” (tradução nossa)
92
141
Gramsci possuía uma postura claramente antipositivista e trazia uma influencia do idealismo originário em
Benedetto Croce e Giovanni gentile. Essa origem teórica produz um marxismo que se caracteriza por uma nítida
repulsa a todo e qualquer deteminismo presente no pensamento de Marx. A autor italiano procura se distanciar
de qualquer vestígio de um determinismo econômico, de história preestabeleceida. A dimensão da necessidade
recua diante da possibilidade do fim do socialismo. Nos escritos reunidos nos cadernos do cárcere, o ponto de
partida da elaboração crítica é a consciência como produto dos processos históricos nos quais é depositada uma
infinidade de traços que forma um inventário. Seu pressuposto metodológico se baseia na concepção de um
marxismo como uma filosofia da práxis, marcado por uma antieconomicismo radical.
142
Gramsci parece ter se inspirado na concepção de hegemonia leninista num primeiro momento, para depois
formular um conceito que pressupõe uma direção cultural; esse conceito se vincula ao de sociedade civil, ‘que
para Gramsci significa a história do domínio de alguns grupos sociais sobre os outros, sendo a trama da
hegemonia feita sempre por subordinação, corrupção e exclusão do poder, isto é uma história de classes.
143
Devemos reconhecer que a direção política em Gramsci possui um siginifcado mais amplo, de direção
cultural. Gramsci se afasta do leninismo para aderir a uma ascendência cultural que formula uma concepção de
poder que leva em conta a noção de consenso, para além do elemento de coerção. Na sociedade civil as classes
buscam exercer sua hegemonia, ganhar aliados para suas posições através da direção político-intelectual e do
consenso.
93
Para Said, toda manifestação, seja ela, um fenômeno intelectual ou artístico, é obra de
um autor individual e expressa seu pensamento e modo de sentir. Estas formas de pensar não
são entidades independentes da conduta e das ações humanas. Cada produção artística é
expressão voluntária ou involuntária de uma coletividade. O conceito de materialismo
cultural145se aplica nesse contexto.
144
SAID, Edward W., El Mundo, El texto y El crítico, Buenos Aires: Editora Debate, 2004. P. 201. “Orfã da
crítica radical freudiana, saussureana e nietzcheana das orígens, as tradições e o próprio conhecimento, a crítica
contemporânea alcançou sua independência metodológica perdendo os direitos de adotar uma posicão ativa no
mundo. Não existe nenhuma fé nas continuidades tradicionais (nacão, família, biografia, período); se improvisa a
ordem em atos inspirados na bricolage e partindo da descontinuidade extrema. Sua cultura é uma cultura
negativa da ausência, a antirepresentacão da ignorância.”(tradução nossa)
145
O conceito de materialismo cultural, nos remete diretamente ao pensamento do teórico marxista, Raymonds
Williams. Este autor contribuiu significativamente para os estudos culturais a partir de um viés marxista,
95
definindo o papel da cultura para entender a relação entre a análise literária e a investigação social. Dedicamos
uma análise das vinculações entre os dois autores, Said e Williams, em outro momento da tese.
146
SAID, Edward W., Estilo Tardio, SP: Companhia das Letras, 2009. (1ª. Edição 2006). Estilo tardio foi
publicado como obra póstuma, Said morreu antes de terminar esse livro.
147
Adorno é intrinsecamente crítico à ideia de uma sociedade plena com associação livre entre os homens,
dotados de uma autonomia. Adorno pensa a modernidade como um mundo em ruínas, em decadência. Na era das
catástrofes, arte representou uma espécie de arquivo histórico vinculado a memeoria, a escrita inconsciente, ao
que restou em salvaguarda. A antiestética nasce da porpria dissolução da estética. A vida cultural agrega as vidas
danificadas, esmagadas pelo real da história. A sua dialética negativa problematiza a arte extraída do sofrimento.
Toda cultura é um estado latente da “barbárie”.
96
autor deslocado do presente, inconformado com o contemporâneo que produz uma obra
repleta de aforismos autobiográficos se configura um crítico contumaz da ideia de totalidade.
Sua forma de escrita reflete o subtítulo da obra Mínima Moralia, “reflexões a partir da vida
danificada”.148
A escolha pela forma de escrita baseada nos ensaios e fragmentos já denota a aversão
ao percurso explicativo, causal e linear, o que explica a escolha por campos de tensão, onde a
verdade é pensada em seu caráter transitório. A crítica radical deve ser aporética e deve
repensar o papel da arte após a catástrofe do holocausto.
Selligmann (2009) desenvolve a análise da centralidade de Auschwitz para o
pensamento estético de Adorno, na medida em que insere a dimensão deste genocício, e sua
forma única para pensar a dialética da cutura e barbárie numa Europa esclarecida, iluminada.
Escrever um poema após Auschwitz representa o próprio ato de barbárie e incorfomismo.
Esse debate está fortemente presente na Dialética do esclarecimento (1991)149, obra escrita no
exílio norte americano em co-autoria com Max Horkheimer.
Em Mínima Moralia ele afirma que o pensador deve aceitar o desafio de estar ao
mesmo tempo dentro e fora da coisa, num gesto comparável ao de Münchhausen,
que se arranca da poça de lama puxando seus próprios cabelos. A própria obra de
arte, de resto, está submetida a esta aporia: ela deve ser autônoma e contrapor-se à
sociedade, ainda que, ao afirmar-se como autônoma, se apresente como ideologia. O
caráter ambíguo da arte consiste em ela ser ao mesmo tempo autônoma e fato social.
Ela critica a sociedade pela sua simples existência.150 (SELLIGMAN-SILVA, 2009,
p.105)
Há, portanto, uma tensão inerente ao estilo tardio que o distancia do mero
envelhecimento burguês e que sublinha a crescente consciência de distanciamento,
exílio e anacronismo – uma consciência de que o estilo tardio expressa e, o que é
mais importante, utiliza para se sustentar formalmente. Quando se lê Adorno dos
ensaios aforísticos sobre temas como pontuação ou capas de livros de Notas de
literatura às grandes obras teóricas como Dialética Negativa e Teoria estética, tem-
se a impressão de que ele procurava em termos estilísticos aquela mesma evidência,
148
O livro Minima moralia, reflexões a partir da vida danificada, nasceu no exílio de Adorno nos EUA
Podemos reconhecer o livro, Mínima Moralia, como a referência mais próxima de Said, no que tange o debate
sobre a identidade na modernidade, o conceito de totalidade e a experiência do exílio. Procuramos retornar a essa
tmeática com mais vagar no trecho em que discutimos a problemática do exílio em Said. Identificamos que o
cocneito de estilo tardio é central para o debate estético que Said empreeende, especialmente nos seus últimos
escritos organizados postumamente.
149
ADORNO, F. e HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento, Fragmentos filosóficos, RJ: Jorge Zahar
Editor, 1991.
150
SELIGMANN-SILVA, Marcio, A atualidade de Walter Benjamin e Theodor W. Adorno, RJ: Editora
Civilização Brasileira, 2009.p.105
97
151
Ibid, P. 37.
98
A obra de Edward W. Said (2007) alcançou uma extensão significativa a partir dos
anos 70 com a publicação do livro Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente,152
consensualmente pensado como marco inicial dos chamados Estudos Pós-Coloniais. Podemos
afirmar que a elaboração desse livro estabelece uma estreita relação com o início da militância
de Said no movimento palestino.
Said define os antecedentes da escrita do livro Orientalismo153 como vinculados ao
sentido da sua história identitária como um árabe, palestino que cresceu em uma geração à
sombra do colonialismo direto. O livro constitui-se no esteio da problemática da
152
SAID, Edward W. Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente, SP: Companhia das Letras, 2007.
Primeira edição-1978. O Orientalismo é uma das obras mais lidas de Edward W. Said e consequentemente uma
das mais criticadas. A despeito do reconhecimento do livro Orientalismo como marco inaugural dos chamados
Estudos Pós-Coloniais em 1978 e tomando por base as variadas críticas que atribuem uma suposta superação das
suas interpretações acerca das relações entre poder colonial e cultura, reconhecemos que os debates originados
da sua leitura ainda produzem efeitos nos círculos teóricos que discutem o colonialismo, o Nacionalismo Pós-
Colonial e/ou constituem as chamadas “teorias do terceiro mundo”.
153
Estamos trabalhando com a edição de 2007, que inclui o prefácio à edição de 2003 e o pósfacio da edição de
1995.
99
154
MARX, Karl, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, SP: Boitempo Editorial, 2011.
100
155
SAID, Edward W. Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente, SP: Companhia das Letras, 2007.
Página 19.
156
Uma das primeiras abordagens críticas sobre o Orientalismo pode ser encontrada no trabalho do filosófo
egípcio Anouar Abdel-Malek que produziu um artigo chamado, “Orientalismo em crise” publicado, na revista
Diógenes 44 (1963). Abdel-Malek começa a estabelecer o fato de que a emergência dos movimentos de
libertação colonial na Ásia, após a Segunda Guerra Mundial e as consequentes descolonizações mergulharam a
profissão e o pensamento orientalista numa crise profunda. Essa crise teria sido gerada pela íntima relação entre
os eruditos orientalistas e os poderes coloniais. Dois anos depois, em 1965, o historiador palestino A. L. Tibawi,
da Universidade de Londres publicou o artigo “English Speaking Orientalists”, no qual criticava explicitamente a
maneira como esses estudiosos retrataram o Islã e o mundo árabe. O ponto de partida de Tibawi está na ênfase da
quase eterna e profunda hostilidade entre o mundo islâmico e o mundo cristão como um fato histórico
permanente que atravessa os diferentes contextos históricos. Tibawi enfatiza a maneira como os orientalistas
facilitaram uma incompreensão da natureza do Islã em si.
157
Ibid, p. 29.
101
Para Said, a Europa é identificável pelo seu outro espelhado, o Oriente. Said se
pergunta se o que define o Orientalismo é o conjunto de traços impregnados da ideia de
superioridade européia, com conteúdo racista, imperialista e visões dogmáticas, abstratas e
essencialistas do que vem a ser o “Oriental” ou uma variação de individualidades autorais que
abordam o Oriente. A perspectiva particular e geral são duas abordagens do mesmo material.
O lugar político e histórico de onde se fala é uma premissa importante. Nesse sentido,
o lugar europeu ou norte americano de onde se enuncia vicia e condiciona um olhar enviesado
sobre o Oriente. Said denomina o orientalismo de uma “distribuição” de consciência
geopolítica em textos estéticos, eruditos, econômicos, sociológicos e históricos.
Para além de uma denominação geográfica, o Orientalismo representa um conjunto de
interesses vinculados com vários tipos de poder em intercâmbio, como poder intelectual, com
a hegemonia moral. Se o orientalismo representa uma moderna cultura político intelectual tem
menos relação com o Oriente propriamente dito do que com o Ocidente. O Orientalismo é o
estudo que na perspectiva de um intercâmbio dinâmico entre autores individuais e interesses
políticos é modelado pelos impérios britânico, francês e americano.
Said rejeita as regras fixas para se depreender os resultados entre o conhecimento e a
política. O alvo do seu estudo é o imperialismo político ilustrativo na produção intelectual,
158
Said recorre a alguns conceitos originários da terminologia gramsciana, assim como desenvolve a importância
deese pensador por territorializar a realidade histórico-social. A territorialidade deve ser entendida do mesmo
modo que a dos países submetidos à dominação imperialista, onde é claro que o imperialismo é um modo de ser
do funcionamento do sistema capitalista. Devemos retornar a análise dessa aproximação no momento em que
debatemos a cultura e o imperialismo.
159
Ibid, P. 34.
102
especialmente francesa e britânica. Said explicita a sua metodologia no que ele denomina
perceber a posição do autor num texto em relação ao material oriental por ele abordado e
posteriormente a análise das relações entre os textos e a referência dessa produção em relação
à cultura mais geral. A análise deve compreender as conexões com outras obras, outros
públicos e a respectiva recepção e aspectos particulares das instituições assim como ao
próprio Oriente.
O Oriente aparece na exterioridade, na superioridade do texto, a fala, a descrição do
Oriente aparece como causa primeira do que se diz. A representação do oriente equivale a
algo familiar à tradição de onde se enuncia o estudo. Os dados a serem observados
metodologicamente são as figuras de retórica, o cenário, os esquemas narrativos e as
circunstâncias históricas e sociais.
O Oriente que aparece no seu objeto de análise é uma representação. O valor, a
eficácia e a veracidade baseiam-se muito pouco no próprio Oriente como existência
ontológica e real. O sentido interpretativo é dado pelo ocidente, que transforma o oriente em
amorfo, distante e caricatural.
O Orientalismo reagia mais à cultura que o produzia do que a seu suposto objeto,
também produzido pelo ocidente. A história do orientalismo, portanto, tem uma
coerência interna e um conjunto altamente articulado de relações para com a cultura
dominante que o circunda. Consequentemente, minhas análises tentam mostrar a
forma e a organização interna do campo, seus pioneiros, as autoridades patriarcais,
os textos canônicos, as ideias doxológicas, as figuras exemplares, seus seguidores,
elaboradores e novas autoridades; tento também explicar como o orientalismo se
apropriou de ideias “fortes”, doutrinas e tendências que regem a cultura. Tendo sido
frequentemente informado por elas. 160 (SAID, 2007, p.53)
Said afirma que sua perspectiva é histórica e antropológica, uma vez que os textos são
mundanos e cincunstanciais. O orientalismo é visto como um sistema de interrelações entre os
textos, o que não inibe a marca individual dos autores. A ideia é revelar a relação dialética
entre autor, contexto e formação coletiva para a qual a sua obra contribui.
Said justifica permanentemente a limitação da abrangência dos autores que formam
essa sistemática. Existe uma totalidade maior de autores que são excluídos por um recorte
geográfico e temático. O autor considera uma tarefa pretensiosa a abrangência das relações
entre conhecimento e poder. Said se refere ao seu público alvo e menciona os intelectuais que
estudam o oriente que deveriam pensar a sua genealogia intelectual e a crítica de pressupostos
não questionados.
160
Ibid, p. 53.
103
Na introdução ao Orientalismo, Said atesta a partir de uma frase de Gramsci que o seu
ponto de partida ou começo teórico é a sua autorreferência. Assim como em Gramsci, o ponto
de partida da elaboração crítica é a motivação do autoconhecimento como um produto do
processo histórico que teria depositado uma série de traços históricos, sem deixar um
inventário.
Said menciona a parte fundamental desse comentário quando Gramsci complementa
afirmando que seria imperativo compilar esse inventário. O esforço da aproximação para com
o Oriente tem relação com um inventário por meio de um rastreamento dos traços da cultura
oriental no seu self. A educação ocidental teria produzido uma falsa identidade que deveria ser
desvelada.
No final da introdução, Said cita Raymond Williams quando se refere ao esforço de
eliminação dos binarismos, e o progressivo desaprender do modo dominador inerente. O
primeiro capítulo “o alcance do orientalismo” pretende explorar as relações entre
conhecimento e poder na literatura do século XIX. Said extrapola o fato de o orientalismo ser
visto como uma mera racionalização do regime colonial, já que o regime colonial teria sido
justificado previamente pelo Orientalismo.
A tradição do Orientalismo é previamente articulada através de um vocabulário, um
imaginário, ou retórica que alimentariam a experiência desse discurso contemporâneo, que
oferece subisídios para o domínio colonial. Said vincula as experiências históricas do
neocolonialismo com o Orientalismo, sistematicamente engendrado como força cultural.
O progresso nas instituições e no conteúdo orientalista coincidiria com a expansão
européia de 1815 a 1914. O Orientalismo era compartilhado como um arquivo de forma
unânime. Sendo assim, havia um formato de experiência empírica e de uma forma de
pensamento.
O Orientalismo é um termo genérico que representa a abordagem ocidental do oriente;
o Orientalismo é a disciplina pela qual o Oriente era abordado de maneira sistemática, como
um tópico de erudição, descoberta e prática. Alguns eventos ou fatos históricos são vistos
como a encarnação do projeto Orientalista, como por exemplo; a ideia e a realização do canal
de Suez.
Said descreve o movimento linear da apropriação do Oriente pelo Ocidente, em um
movimento intelectual e por meio de um projeto político. Se a Ásia representava para o
Ocidente a distância silenciosa e a alienação, o Islã era a hostilidade militante ao cristianismo
europeu. O Oriente precisava ser conhecido, depois invadido e possuído, e recriado por
eruditos que desenterravam o Oriente permanentemente clássico que se sobrepunha ao
104
Oriente moderno. Este seria produzido, elaborado miticamente pelo contato que promovera a
modernização que vinha do Ocidente para o Oriente161.
Se o Orientalismo se inicia antes dos séculos XIX e XX, esse conteúdo deixa de ser
uma “geografia imaginativa” porque a distância entre a Europa e o Oriente se encurta em
função do expansionismo imperialista. A transição do discurso erudito para a realização
histórica imperial é percebida de forma evidente nos séculos XIX e XX.
Essa tradição criada a partir da reunião do conhecimento e da realidade devem ser
entendidas no sentido foucaultiano como a síntese da categoria “discurso”. Foucault adverte
para o fato de que todo discurso parte de uma produção controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por procedimentos que têm por função conjugar seus poderes, perigos e dominar
um acontecimento qualquer.
Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o
atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. Nisto
não há nada de espantoso, visto que o discurso – como a psicanálise nos mostrou –
não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo, é, também, aquilo que
é o objeto do desejo; e visto que - isto a história não cessa de nos ensinar – o
discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação,
mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. 162
(FOUCAULT, 2003, p.10)
Para Foucault (2003),163 o discurso deve ser imaginado como prática descontínua que
se cruza, pode se ignorar ou se excluir. O discurso não pode ser visto como um jogo de
significações prévias. O mundo não apresenta algo externo que possui um elemento
subliminar que deva ser decifrado.
O discurso é uma prática que nos impomos e nessa prática nós depreendemos alguma
regularidade. A compreensão fixa as fronteiras dessa sequência de acontecimentos na forma
de discurso. As noções servem de princípio regulador para a análise e pressupõem uma certa
regularidade.
Genealogicamente, Foucault trabalha o esfacelamento do homem mediante uma
estrutura maior que obscurece os mecanismos de poder. Seguimos a reflexão de François
161
Said se refere ao Oriente como uma “escola de interpretação”, como um mecanismo téorico, heurístico cujo
objeto aparece em função dos pressupostos teóricos. As ideias orientalistas podem aliar-se a teorias filosóficas
gerais e difundir hipóteses de mundo. Said distingue entre um orientalismo latente e um orientalismo manifesto.
O posicionamento quase inconsciente, intangível pode ser relacionado à versão latente, e as diversas visões
declaradas sobre sociedades, línguas, literaturas, história, sociologia orientais e outros tópicos são denominados
de orientalismo manifesto.
162
FOUCAULT, Michel, A ordem do discurso, SP; edições Loyola, 2003. P. 10.
163
Remetemos o pensamento de Foucault e termos genealógicos para utilizar uma categoria perntecente ao seu
escopo teórico ao pensamento Nietzchiano quando parte do pressuposto de que o homem se oculta mediante a
sociedade disciplinar. A figura do homem se dissolve mediante a passagem entre os modos de linguagem.
105
164
Dosse (2012) que entende o pensamento de Foucault (2003) como uma crítica radical da
temporalidade continuísta165e da absolutização dos valores. Dosse percebe a reflexão de
Foucault como uma crítica radical ao humanismo.
Foucault fala dos diferentes ritmos de mudança nas distintas ordens do saber. A
rapidez e o alcance da mudança histórica é representativa das regras de formação dos
enunciados. Foucault se interessa primordiamente por esse tipo de mudança166. Os regimes de
poder formam um objeto privilegiado nos livros, As Palavras e as Coisas e na História da
Loucura.
O homem, sujeito e dono da sua ação, desaparece, mediante os condicionamentos que
a totalidade da sociedade disciplinar promove. Essa sociedade aparece e é explicada através
do panoptismo, definido por Foucault como uma forma de poder que é exercida através da
vigilância individual e contínua, ilustrada nas formas de punição e controle. O panoptismo
possui uma dimensão que se desdobra numa tríade: vigilância, controle e correção. Estas
constituuem uma dimensão do poder.
As práticas discursivas a que alude Foucault para definir certas regularidades que se
concretizam em instituições, esquemas de comportamento, tipos de transmissão e difusão
devem ser inventariadas por meio de um método arqueológico que analisa a sua linguagem
em seus aspectos de descontinuidade.
Deleuze (2011)167 trabalha a análise do método arqueológico como uma metodologia
que se opõe à formalização e à interpretação. Nenhum enunciado pode ter existência latente,
já que está relacionado ao efetivamente dito. O enunciado é uma inscrição simples do que foi
dito. As palavras, frases e proposições são escolhidas como fragmentos aleatórios de indícios
de poder acionados por um determinado problema.
Said cita as seguintes obras de Foucault; A História da loucura, As palavras e as
Coisas (1981), A Arqueologia do saber (1987), Vigiar e Punir (1977), como bases históricas
164
DOSSE, François, A História, SP: Editora UNESP, 2012.
165
Foucault em entrevistas, respondendo ao problema da contunuidade histórica se explica dizendo que seus
argumentos foram iensuficientes no livro As palavras e as coisas. Ele afirma que em determinados contextos de
saber, as mudanças aparecem de forma menos continuístas, ele exemplifica com a biologia, a economia política,
a medicina, especialmente a psiquiatria. Estamos nos referindo a entrevista temática realizada com M. Fontana
publicado no livro; MOREY, Miguel (org.). Un diálogo sobre el poder y otras conversaciones , Madrid: Alianza
Editorial, 2008.
166
O problema em relação à descontinuidade histórica diz respeito a novidade de se pensar o recorte e o limite,
alheios ao fundamento que se perpetua. A nova forma de história fala de conceitos que simbolizam o limiar, a
ruptura, o corte, a mutação e a transfomação. A noção de descontinuidade exerce uma função importante na
história, porque representa o impensável, o que pode ser visto sob a natureza de acontecimentos dispersos;
decisões, acidentes, iniciativas, descobertas. Se antes a descontinuidade era o estigma da dispersão temporal que
o historiador tentava diluir na história, ela se tornou um elemento fundamental para análise histórica.
167
DELEUZE, Gilles, Foucault, SP: Editora Brasiliense, 2011.
106
A adesão as ideias de Foucault se limitam a algumas categorias teóricas uma vez que o
autor se incomoda com o que ele chama de determinismo, resultado de uma desesperança
política onde mediante uma sociedade dominadora não haveria possibilidade de resistência
individual. Para Said a visão de história de Foucault se define numa concepção “privada,
excêntrica e insular.”170
O oriente admitido pelo orientalista no limite extremo está alienado da sua essência, é
não ativo, não autônomo, diferente de si mesmo ou em relação a si mesmo. No campo da
temática, os Orientalistas adotam uma abordagem essencialista das nações e dos povos do
Oriente. Na análise de Said essa essencialidade tem uma demarcação histórica e
simultaneamente a-histórica. Nesta predomina a especificidade inalienável que transpõe todas
as etapas históricas e que conforma uma identidade fixa e imutável.
168
Ibid, p.58.
169
SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP; Editora Companhia das Letras, 2003. p. 269.
170
Ibid, p. 270.
107
171
Ibid, p. 145.
108
172
SAID, Edward W, O Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente, SP: Editora Companhia das Letras.
2007.p.332.
109
diferenciada do intelectual, premido pela condição de um pensador crítico que deve prezar
pelo esforço de um posicionamento polticamente mais ativo.
O Orientalismo é um produto de um pensamento desumanizado. Em um certo sentido
as limitações do Orientalismo surgem após a essencialização e o desvelamento de uma outra
cultura. O Ocidente seria um ator e o Oriente um coadjuvante passivo. O estudioso do Oriente
se considerava um herói resgatando o Oriente da obscuridade.
O Orientalismo (1978) integra uma trilogia, onde a questão da representação do
Oriente aparece como central. A trilogia da qual o Orientalismo faz parte, abrange os livros:
Covering Islam: How the media and the experts determine how we see the rest of the world
(1981) e A Questão da Palestina (1979).
O livro Covering Islam retrata a maneira como o Ocidente percebe o mundo islâmico
em conexão com a maneira como os sionistas retrataram a Palestina, vista como um lugar
vazio. A representação do Islã é revista na medida em que Said critica essa essencialidade
vista como o reduto do terrorismo e do irracionalismo. Percebemos uma estreita conexão com
as reflexões presentes no Orientalismo.
Said afirma que parte do seu trabalho no Orientalismo deriva da experiência de ter
sido colonizado pelos ingleses ou israelenses. A questão política e a abordagem teórica são
indissociáveis. O autor afirmava que seria difícil definir hierarquicamente o que viria
primeiro.
And I think to a certain extent that has been true of my overtly political stuff, but the
theoretical work, I feel less so, it´s hard to know what that derives from. Orientalism
was really the first book I wrote which tried to bring together the two aspects of my
life. But that was in the mid-seventies, when I had already written Beginnings and
many other things. 173( ASHCROFT, 2004, p.162)
173
ASHCROFT, Bill, Conversation with Edward W. Said, In: SINGH, Amritjit, JOHNSON, Bruce, G. (eds.),
Interviews with Edward W. Said, University Press of Mississipi, 2004. P. 162. “E eu penso que, até certo ponto,
tem sido verdadeira a minha matéria evidentemente política, mas que o trabalho teórico, isso eu sinto menos, é
difícil saber de onde vem. O Orientalismo foi realmente o primeiro livro que escrevi onde tentei reunir estes dois
aspectos da minha vida. Mas isso foi em meados dos anos 1970, quando eu já havia escrito Beginnings e muitas
outras obras.” (tradução nossa).
174
COSTA, Sérgio, Dois Atlânticos, Teoria Social, anti-racismo, cosmopolitismo, BH: Editora da UFMG, 2006.
110
vanguardismo. Nesse contexto, uma visão menos ingênua parte de uma alternativa para a
desconstrução da antinomia Ocidente/Oriente que não se resume à inversão do lugar de
enunciação colonial. Costa ressalta a busca de um reposicionamento intermediário, cujo lugar
de enunciação extrapole os riscos essencialistas na transgressão das fronteiras culturais.
O paradoxo teórico aparece na medida em que Said reafirma a materialidade das
identidades e, ao mesmo tempo, reconhece o grau de construção teórica das mesmas. O
dilema em torno da representação do colonizado no processo colonial implica reflexão em
torno de uma oscilação entre o reconhecimento da fala da alteridade e a elaboração do arquivo
colonial como uma suposta “comunidade de interpretação”.
175
O conceito de hibridismo tal como desenvolvido na obra de Homi Bhabha tem sua origem na análise do
linguista Mikhail Bakhtin que distingue a mescla de duas linguagens sociais no interior de uma mesma
afirmação e ressalta o dialogismo de duas linguagens a partir de um “hibridismo intencional”.
176
SAID, Edward W., Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP: Editora Companhia das Letras, 2003. P.127.
177
SAID, Edward W, O Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente, SP: Editora Companhia das
Letras,2007. p.300.
111
posteriormente apresenta uma narrativa sua que define aquilo que os outros textos invisíveis
teriam reprimido, sublimando uma outra possibilidade de fala.
O método arqueológico supostamente revela como o discurso impessoal, sistemático,
regulado por formações eniunciativas que anulam a sociedade e governa a produção da
cultura. A tese que Foucault defende parte do pressuposto que as afirmações individuais, ou
as oportunidades de que os autores individuais possam formular afirmações individuais não
são realidades prováveis.
O discurso faz parte de uma ordem com estabilidade baseada na autoridade e no poder
regulador do conhecimento178. Said ressalta a visão espacial que Foucault tinha das coisas.
Por isso, a predileção pela análise dos espaços, territórios, esferas e sítios descontínuos e
reais. Os discursos são extensões das instituições.179
178
Said se refere ao Orientalismo latente, que pode ser entendido como um repertório munido de uma
capacidade enunciativa que podia ser usada ou mobilizada num discurso sensato para a ocasião concreta do
momento.
179
Foucault se refere a diversos períodos, épocas, epistémes, totalidades que constituem a cultura dominante no
interior das insituições que a controlam
180
Ibid, pp..94/95.
112
Quanto a mim, não consegui viver uma vida sem compromisso ou suspensa: não
hesitei em declarar minha filiação a uma causa extremamente impopular. Por outro
lado, sempre me reservei o direito de ser crítico, até mesmo quando isso entrava em
conflito com a solidariedade ou com o que os outros esperavam em nome da
lealdade nacional. Há um desconforto claro, quase palpável, nessa posição,
especialmente tendo em vista a irreconciliabilidade dos dois públicos e das duas
vidas que eles exigiram.181 (SAID, 2003, p.312)
181
SAID, Edward W. , Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP: Companhia das Letras, 2003. Página 312.
113
182
HALL, Stuart, “Quando foi o pós-colonial? Pensando no limite”, In: SOVIK, Liv, (org.), Da Diáspora ,
Identidades, e mediações culturais, BH: Editora da UFMG, 2006, p. 102.
183
O artigo On Orientalism do antropólogo James Clifford sintetiza um debate extremamente rico sobre os
paradoxos teóricos e os respectivos limites epistemológicos inerentes à proposta de desconstrução crítica da
representação ocidental acerca do Oriente. O artigo constituiu-se como referência para muitos leitores de Said e
fonte de debate para o próprio autor que fez menção a esse artigo em muitos dos seus escritos posteriores que
reconsideram a proposta construída no Orientalismo. Clifford publicou esse artigo na revista History and Theory
114
19[2], fev. em 1980 e o mesmo artigo pode ser encontrado na sua obra The Predicament of Culture, Twentieth-
Century Etnography, Literature, and Art, Massachusetts: Harvard University Press, 1988. Estamos trabalhando
com a última versão.
184
Com base na leitura das entrevistas com Edward W. Said, percebemos uma preocupação do autor em ressaltar
diferenças na maneira com que Foucault se posiciona em relação aos movimentos sociais. Apesar do interesse
nas primeiras obras do autor francês, Said afirma que a política os distanciava na medida em que a militância
palestina reivindicava o apelo à possibilidade da agência humana.
115
185
O que desperta a atenção de Said é a peculiar estrutura epistemológica pela qual o Oriente era visto, a partir
do qual as potências agiam. apesar das diferenças britânicas e francesas, o Oriente era visto como uma entidade
geográfica – e cultural, política, demográfica, sociológica e histórica - sobre cujo domínio eles acreditavam
possuir um direito tradicional. A relação entre o Oriente e os Orientalistas era hermenêutica, afirmava Said. O
objeto de difícil alcance, quase ininteligível segundo os padrões europeus, deveria ser desvendado, quase como
um texto cifrado.
116
Foucault elabora uma crítica ao projeto de uma História totalizante, afinada com um
projeto de uma história geral construída a partir das descontinuidades, das rupturas e do
entrecruzamento de séries organizadas pelo historiador. Nessa perspectiva, o autor repensa a
presença do sujeito na História, minimizando a importância do seu papel como protagonista
das ações racionais e conscientes.
Nesse contexto, somos constituídos por relações de poder, somos mais produtos do
que produtores e estamos envolvidos em formas de agenciamento alimentadas pelo poder e
pela formação dos saberes que nos instituem, codificando e classificando o discurso. Este não
pode ser compreendido como reflexo do real. A realidade não antecipa o seu produto
histórico: o discurso.
Para Foucault, as práticas discursivas devem ser concebidas como formas de ação no
mundo, práticas que, quando exercidas provocam efeitos como qualquer outra ação. Este
autor adotou o termo para expressar as condições de uso dos discursos, conjuntos de
enunciados ou formações discursivas que possibilitam o exercício dos saberes, operando e
instituindo acontecimentos em campos estratégicos.
Sendo assim, não há verdades ou discursos que não estejam ligados às inúmeras
condições históricas: (enunciados, posicionamentos, instituições que os fazem funcionar).
Aquilo que chamamos cultura não possui nenhuma unidade de estilo, é antes uma confusão de
práticas discursivas rigorosamente interpretáveis, discursos que constituem as condições de
possibilidade de toda ação.
As práticas discursivas instituem identidades sociais e objetivam o fato histórico
dando-lhes visibilidade. A audácia epistemológica de Foucault aparece na evidência do papel
dos discursos, suas estreitas conexões com os saberes e os poderes, e suas respectivas relações
recíprocas. O discurso é tomado como um conjunto de estratégias que forma parte das práticas
sociais.
Foucault irá postular a centralidade do acontecimento ao considerar que um enunciado
é sempre um acontecimento, na medida em que sua análise não pode ser reduzida ao sentido e
186
FOUCAULT, Michel, A ordem do discurso, SP: Edições Loyola, 1996. P. 54.
117
ao referente. Este autor acreditava que a prática discursiva de uma época encontra o motivo de
sua escolha em suas formas intensificadas e nos seus textos canônicos.
Há um forte pressuposto de que a produção do discurso é, ao mesmo tempo,
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um conjunto de procedimentos que
tem por função delimitar o acontecimento aleatório e dotá-lo de materialidade. O autor é um
princípio de agrupamento do discurso, ele é o foco da sua coerência. O acontecimento atualiza
o elemento descontínuo, possibilitando inúmeras leituras historiográficas. Por isso, Foucault
estabelece limites sem os quais a unidade do discurso não faria sentido.
Ao rever a história tradicional das ideias, Foucault fala das quatro noções que servem
como princípio regulador para a análise do discurso: a noção de acontecimento, a de série, a
de regularidade e a de condição de possibilidade. Estas formariam um contraponto a uma
procura limitada pelo ponto da criação, pela unidade da obra ou pela marca da originalidade
individual.
A materialidade histórica dos discursos nos remete ao conceito de “práticas
discursivas”, entendidas na descontinuidade temporal. Estas se materializam nas instituições,
nos esquemas de comportamento, nos tipos de transmissão, difusão e em formas pedagógicas.
A própria noção de discurso como uma prática é resultante de determinações reguladas
num momento dado por um grupo completo das relações entre as práticas discursivas e as
práticas não discursivas. Esta definição faz uma permanente alusão à História e uma
diminuição do peso do linguístico ou do significante.
A correlação com os acontecimentos exteriores suscita uma mobilidade dos discursos
ao sabor do ritmo temporal dos eventos. Definir as condições de propensão da aparição dos
enunciados deve prescindir da causalidade mecanicista.
Há por exemplo, enunciados que se paresentam – e isso a partir de uam data que se
pode determinar facilmente – como referentes á economia política, ou a biologia, ou
a psicopatologia; há também, os que se apresentam como pertencentes a essas
continuidades milenárias – quase sem origem - que chamamos gramática ou
medicina. Mas o que são essas unidades?187 (FOUCAULT, 1987, p.35)
187
FOUCAULT, Michel, Arqueologia do saber, RJ: editora Forense universitária, 1987. P.35.
118
questão é saber se a unidade de discurso é feita pelo espaço onde diversos objetos se perfilam
e se transformaram, uma situação distinta da permanência e singularidade de um objeto.
A segunda hipótese versa sobre definir um grupo de relações entre enunciados; sua
forma e seu tipo de encadeamento. A terceira hipótese origina-se do critério de agrupamento
que pode advir dos conceitos permanentes e coerentes. Foucault propõe e desconstroi
afirmando as dificuldades da reconstituição da arquitetura conceitual da gramática. A
genealogia dos conceitos pode complexificar esse agrupamento em função do surgimento de
novas categorias e suas interelaçoes.
A quarta hipótese defende que para reagrupar os enunciados, descrever suas
vinculações é preciso uma relação com a identidade e persistência dos temas. Essas quatro
hipóteses acabam conduzindo a lógica de explicação da formação dos enunciados e seus
agregados, para além da sua organziação formal ou para além da situação do sujeito falante,
seu psiquismo ou contexto de origem.
Foucault188define a pratica discursiva “como um conjunto de regras anônimas,
históricas,sempre deteminadas no tempo e no espaço, que definiram, em uam dada época e
para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de
exercício da funçã enunciativa.”189
Além do conceito de discurso, a categoria de poder possui uma importância central
para o autor analisado em nossa tese. O poder em Foucault, primeira inspiração para se refletir
sobre essa categoria na produção de Edward W. Said, é menos visto como uma propriedade
do que uma estratégia relacionada com uma conduta. Seus efeitos são relacionáveis com
“disposições, manobras, táticas e técnicas, modos de funcionamento.”190
O poder significa uma relação de forças, que não se configura jamais no singular, pois
seu aspecto primordial é sempre relacional. O poder se configura como exercício e o saber é
um regulamento.191
188
Na conclusão do livro A arqueologia do saber, Foucault parece refutar o método estruturalista, onde ele
mesmo afirma que está recusando a transcendência do discurso, ou a sua relação com o campo da subjetividade.
Foucault afirma que não quis excluir o sujeito, embora estivesse centrado em mostrar diferentes práticas
discusivas distintas umas das outras, definindo as posições e funções que o sujeito podia ocupar na diversidade
dos discursos.
189
Ibid, p.136.
190
Tomamos como ponto de partida o livro sobre Foucaut do filósofo, Gilles Deleuze (2011). Destacamos a
parte em que ele debate o conceito de poder no contexto do livro Vigiar e Punir. O título do capitulo em
destaque: “Um novo Cartógrafo, Vigiar e Punir”,
191
As instituições não são essências estáveis, não têm interioridade. É como se não existisse estado apenas uma
estatização. As relações de poder que ela integra são relações estabelecidas com outras instituições, com
repartições que mudam de um estrato a outro.
119
Segundo Foucault o objeto na sua materialidade não pode ser dissociado dos registros
formais denominados nesse contexto como discursos. O filósofo parte do detalhe fáctico para
a denominação teórica, que culmina no discurso. Este é o elemento que será heuristicamente
analisado. O mecanismo analítico se origina no que se fazia e se dizia para com o esforço
intelectual chegar ao discurso. Este demonstra ilustrativamente a singularidade histórica, a
inexistência das verdades gerais ou trans-históricas.
A metodologia é arqueológica é leva à análise do discurso, à explicitação das
diferenças entre formações históricas e o fim das derradeiras ideias gerais. Seu recurso
analítico será a prática cotidiana, a hermenêutica, e a elucidação do sentido. Seu método
incide na compreensão do que o autor do texto queria dizer no seu tempo.
O problema foucaltiano tem relação com a ausência da consciência subjetiva, ou a
ausência do sujeito que permanece invisível. O discurso provoca a variedade da história
distante da totalidade. Era preciso explicitar a particularidade de cada época histórica, sem
levar em conta metonimicamente a parte pelo todo.
É certo que um discurso, com o seu dispositivo insitucional e social, é um status quo
que só se impõe enquanto a conjuntura histórica e a liberdade humana não o substituem por
outro. Saímos da nossa “redoma” provisória sob a pressão dos novos acontecimentos do
momento ou ainda porque um homem inventou um discurso e teve sucesso. Configuramos o
discurso como uma redoma. Esta definição pode ser entendida como um a priori histórico.
Paul Veyne195 refuta a categoria de discurso em Foucault como a acepção de uma
ideologia ou uma condição super estrutural. Ele foi uma condição de formação e
desenvolvimento do capitalismo. A problemática da relação unívoca entre causa e efeito no
que tange a relação entre discurso e realidade afasta a primeira categoria da sua acepção
ideológica.
195
VEYNE, Paul, Foucault , O Pensamento, a Pessoa, Lisboa: Edições texto e grafia, 2009.
196
Ibid, p. 33 e 34.
121
As relações entre saber, poder e verdade são centrais no contexto da obra de Foucault
e com muita freqüência são lidas de forma reducionista. Essa tríade parece ter atraído o autor
que é o nosso objeto de análise. Em princípio o saber pode ser desinteressado, mas de maneira
geral é frequentemente utilizado pelo poder. A questão central não é um problema de
significante, ou a relação entre os vocábulos e os objetos representados, o que configura uma
leitura enganosa.
Veyne compara o discurso tal como pensado em Foucault, com a concepção de ideal-
tipo em Max Weber de tal forma que a esquematização de uma formação histórica alcança sua
especificidade. As singularidades são realçadas até fazer surgir à especificidade do todo.
No livro Arqueologia do saber, Foucault reitera que nós não somos coisa alguma,
além do que foi dito. As palavras, os escritos nascem do dispositivo e não da natureza
humana, logo os signos falam em nome dos homens. O real não está reduzido ao discurso197.
Desde que um real evento está enunciado passa a se estruturar no campo do discurso.
O conceito de genealogia é um pedido por empréstimo da obra de Niestzsche. A
causalidade própria não tem um primeiro motor, uma primazia de um fator sobre o outro.
Tudo age sobre tudo, tudo reage sobre tudo. O modo de objetivação difere conforme o tipo de
questão que nos colocávamos para o problema.
Muitas vezes, a conceitualização de discurso tem mais essencialidade no seu âmbito
negativo, tem mais relação com as interdições, limitações, restrições do que suas
potencialidades. Por isso Veyne define o dispositivo, menos por um deteminismo que nos
produz, do que por um obstáculo contra o qual reagem ou não, ao nosso pensamento e a nossa
liberdade. O discuroso comanda, reprime, persuade, organiza e é o ponto de contato, de
associação e eventualmente de conflito.
O problema da resistência, na obra de Foucault parece ter incomodado Said. Diferente
da leitura de Paul Veyne, que entende, no contexto foucaultiano, que o indivíduo e a liberdade
podem ser aniquilados, mas sobrevivem em alguma instância, ou seja, até na obediência, há
resistência. Said define que Foucault não previu no seu esquema, possibilidades de agência
histórica nos meandros da resistência.
197
A tese histórica e filosófica interessante diz que o discurso , assim como o texto se voltaram invisiveis, que o
discurso começou a dissimular e a aparentar ser meramente escrita ou textos, que o discurso ocultou as regras
sistemáticas da sua formação e suas afiliações concretas com o poder. Said reconhece marcos na obra de
Foucault que produzem mudanças em relação ao problema da linguagem. O livro, As palavras e as coisas são
típicos do primeiro Foucault. Reaparece a problemática do desaparecimento ou invisibilidade do discurso. Cada
discurso, cada linguagem é em certa medida uma linguagem de controle, um conjunto de instituições no seio da
cultura. Reconsidera-se o problema da linguagem do ponto de vista político ou ético.
122
198
PRAKASH, Gyan, “Orientalism Now”, History and Theory, vol. 34, Número 3, Wesleyan University Press,
October, 1995.
123
199
AHMAD, Aijaz, “Orientalismo e depois: Ambivalência e posição metropolitana na obra de Edward Said” in:
Linhagens do presente, ensaios, SP: Boitempo Editorial, 2002.
124
Para Ahmad (2002), Said persegue o sentido de uma missão intelectual inspirada nos
inventários de traços definidores de uma identidade em formação, como na visão de Gramsci
nos Cadernos do Cárcere. Para uma elaboração crítica, é preciso inventariar o que se é
realmente.
Como um produto do processo histórico, que teria depositado um conjunto de traços
sem deixar um inventário, a compilação é um pressuposto perseguido por Said no livro
Orientalismo. O questionamento de Ahmad se encaminha para o fato do inventário se tornar
quase uma missão de auto referência que culmina “para uma contraleitura das textualidades
canônicas européias”201
200
Ibid, pp. 232/233.
201
Ibid, p. 112.
202
Ibid, p.121.
126
A crítica de Ahmad incide sobre o fato de que Said examina a história das
textualidades ocidentais sobre o não-Ocidente de forma isolada, sem levar em conta como as
representações poderiam ter sido recebidas, aceitas e modificadas pela intelectualidade dos
países colonizados.
Se o autor palestino insiste criticamente no binarismo Oriente-Ocidente, sendo o
primeiro silenciado e sublimado pelo segundo, por que não dar espaço para os efeitos dessa
representação no Oriente? Ahmad enfatiza que a voz silenciada na visão de Said não ganha
espaço no Orientalismo. A leitura crítica chega ao ponto de questionar quem está silenciando
quem? O Orientalismo silencia o Oriente colonizado? Ou Said silencia esse Oriente? Ahmad
questiona a ausência da historicização entre os encontros alegando a unilateralidade da
canonicidade ocidental.
Ahmad (2002) fala de uma “contaminação historicista” que transfoma arbitrariamente
as críticas do imperialismo em práticas reais do imperialismo e das contradições dos discursos
empreendidos no livro. O incômodo com a história ininterrupta do Orientalismo começa com
os registros da antiguidade e chegam ao século XX com a historiografia de Bernard Lewis e
sua visão preconceituosa e generalista do Oriente Médio. Ahmad transforma a leitura saidiana
em um registro transhistórico e quase anacrônico na medida em que o imperialismo é
construído genealogicamente.
O espelhamento da identidade européia é realçado na interpretação de Ahmad. Este
autor se incomoda com a necessária construção de um Oriente como um outro mundo hostil
que deveria gestar necessariamente o neo-colonialismo. O Orientalismo surge naturalmente
das práticas necessárias do discurso. A questão da diferença aponta para a preemência da
representação sobre as outras atividades humanas.
Mas por que a representação deve também inferiorizar o outro? Said novamente
oferece ideias muito variadas, de modo que em alguns lugares essa inferiorização é
mostrada como sendo resultado do imperialismo e do colonialismo, no sentido em
que a maioria de nós entenderia essas palavras. Mas num outro conjunto de
formulações, que empresta seu vocabulário da psicanálise, o Ocidente parece ter
sofrido algo parecido com a ansiedade do ego, pela qual o ego consegue constituir
sua própria coerência apenas por meio da objetivação do Outro, de modo que o que
Said chama de orientalismo parece ser um impulso compulsivo inerente à psique
unitária da Europa. 204 (AHMAD, 2002, p.131)
203
Ibid, p. 114.
204
Ibid, p. 131.
127
Reconhecemos limites a essa crítica de Ahmad; uma vez que nos parece que a procura
incide sobre as ausências ou o que o autor Palestino não se propôs a fazer. Assim como nos
parece que Ahmad se ressente da ausência de uma perspectiva marxista quando Said aborda
temas muito caros a produção teórica marxista, como o imperialismo ou as relações de
dominação colonial. O marxismo foi lido como um filho do historicismo e inserido no
discurso orientalista.
Robert Irwin205 em seu livro Pelo amor ao saber, ao traçar a identidade das diversas
correntes “orientalistas” denomina criticamente a leitura de Said e a qualifica de insuficiente e
limitada à produção francesa e inglesa. Com base no mapeamento interpretativo acerca da
produção historiográfica sobre o Oriente Médio, Irwin parece se limitar à polêmica temática
entre Bernard Lewis e nosso autor palestino. Irwin atenua as críticas realizadas à produção de
Lewis alegando que a produção criticada faz parte de um conjunto de obra tardia,
generalizante porque voltada para popularização das ideias.
Irwin ressalta as semelhanças entre Said e Lewis, o que nos parece equivocado e
pouco persuasivo, além de atestar com escassos argumentos que as críticas dirigidas a Lewis
se deviam em grande parte, ao incômodo sionismo do autor. Não nos parece que o
orientalismo de Lewis se limite à produção tardia, assim como as semelhanças encontradas
entre os autores são pouco convincentes.
Nesse contexto, as críticas a Said apontam a imprecisão factual do Orientalismo e a
ausência de outras modalidades de produção literária, tais como a alemã e a russa enquanto
objetos de análise, além do desconhecimento da tradição literária árabe. Irwin associa o
contexto histórico de 1973206, a Guerra do Yom Kipur e à crise do petróleo como motivadores
da escrita do livro Orientalismo.
O comentador da obra de Said chama atenção para a ausência de respostas e
retificações de erros factuais nas edições posteriores a primeira. Irwin associa o contexto
histórico da época e pensa de forma simplista que o livro teria sido motivado por uma causa
política e que, portanto, seu conteúdo deveria ter se dirigido aos políticos sionistas israelenses,
e estadunidenses no lugar dos teóricos orientalistas.
205
IRWIN, Robert, Pelo Amor ao saber, os orientalistas e seus inimigos, RJ: Editora Record, 2008.
206
O contexto Histórico de 1973, tal como descrito por Irwin, inclui o atentado terrorista da embaixada saudita
em Cartum que terminou com a morte de três americanos, o esforço pela retomada do Sinai pelo Egito, e as
consequências de uma representação negativa dos árabes na mídia estado-unidense após a guerra do Yom kipur e
suas consequências mais imediatas, como a redução da produção de petróleo e o respectivo aumento promovido
pela OPEP, gerando a crise econômica em 1973.
129
Foucault e Gramsci tinham ideias bastante diferentes acerca da relação entre o poder
e o conhecimento. O primeiro acreditava que “o poder está por toda parte”, ao passo
que o segundo pensava em termos de hegemonia. “Hegemonia” era o termo usado
por Gramsci para descrever a imposição de um sistema de crenças entre os
governados. Apesar de sua fidelidade ao comunismo, Gramsci, como Said
posteriormente, tinha uma tendência a acreditar na primazia da ideologia na História
(em vez de uma primazia dos fatores econômicos). Os intelectuais têm um papel
crucial tanto em manter um status quo como em solapá-lo. Eles são peritos na
legitimação do poder; figuras cruciais na sociedade.208 (IRWIN, 2008, p.337)
207
Said afirma que em virtude da lição de Foucault podemos entender a cultura como um corpo de disciplinas
que se vincularam com o poder de forma sisitemática. Onde há conhecimento deve haver crítica com o intuito de
revelar os lugares, os deslocamentos do texto,este compreendido como um processo fruto de uma vontade
histórica
208
Ibid, Página.337.
130
uma conveniência ciscunstancial no uso das referências teóricas de Foucault que não seria
conciliável com a autonomia dos autores individuais.
Irwin descreve uma série de polêmicas intelectuais envolvendo Said, Bernard Lewis e
o sociólogo Ernest Gellner209 com as suas respectivas críticas aos livros: Orientalismo e
Cultura e Imperialismo. Gellner era considerado por Said um orientalista contemporâneo que
tecia generalizações sobre o mundo muçulmano, enquanto o sociólogo considerava um
equívoco as interpretaçoes saidianas de Gide, Fanon e Camus, para além do incômodo com o
uso da crítica literária para denunciar as relações entre cultura e poder.
Irwin associa o Orientalismo com a temática do Cobrindo o Islã que pretende elaborar
uma crítica à representação midiática acerca do mundo árabe. A questão da deturpação
ocidental sobre o Islã como a verdadeira essência do confronto entre Ocidente e Oriente.
As críticas de Irwin aos outros livros de Said são subsidiárias às criticas direcionadas
ao Orientalismo e versam sobre a imprecisão factual, as contradições teóricas e as
generalizações reducionistas. Ao abordar Cultura e Imperialismo, Irwin retoma a crítica de
Gellner e o seu incômodo com o fato da crítica literária constituir o meio privilegiado para
uma abordagem destitutiva das obras em questão.
O livro A Questão da Palestina foi escrito entre 1977 e 1978 e publicado em uma
primeira edição em 1979. Algumas questões presentes nos argumentos do Orientalismo
podem ser encontradas nessa obra. Reconhecemos que ambas foram pensadas quase
simultaneamente, embora com propostas distintas. No livro de 1979, Said volta a identificar o
discurso orientalista, marcado por representações negativas do árabe, do Islã e do Oriente e a
sublimação da voz do palestino.
O interessante é notar as transformações na trajetória intelectual do autor palestino e
sua postura diante da questão Nacional palestina. A crença na representatividade da OLP
permanece até a edição de 1992. Após os acordos de Oslo, Said se reposiciona em relação ao
papel central da OLP na contínua resistência do movimento palestino.
Reconhecemos que o livro A Questão da Palestina representa a virada do Said
cosmopolita para o Said nacionalista. Ao rastrear a identidade palestina, o autor busca
defender a autodeterminação desse povo. Muitos parágrafos são dedicados a referências
209
Robert Irwin comenta em seu livro que Ernest Gellner estava trabalhando em um livro especificamente crítico
ao Orientalismo quando faleceu em 1995.
131
Históricas da Palestina desde o século XVIII até os dias de hoje: estatísticas populacionais,
áreas de assentamentos e detalhes da vida profissional e intelectual dos Palestinos.
A narrativa diacrônica detalhista ilustra por meio da contingência histórica o
mecanismo palestino de pertencimento, possuidor de um sentido relativamente coerente e
unificado de ação. Said aparece motivado por um desafio gramsciano a partir do ímpeto de
estabelecer um inventário das forças históricas que moldaram o povo Palestino.
Na luta pela autodeterminação, Said se despe momentaneamente da sua filiação
teórica-metodológica “cosmopolita” a favor de uma identidade relativamente estável em
resposta aos constrangimentos impostos por uma sociedade internacional, cujos membros são
os Estados que se recusam a respeitar o direito de autodeterminação dos palestinos.
No livro, encontramos afirmações quase assertivas da existência plena e irredutível da
experiência palestina, ou seja, o autor ressalta a identidade de um grupo que tenta se contrapor
às várias tentativas de dissolução da identidade a partir da experiência sionista.
Percebemos alguns dilemas teóricos em torno da obra quando o autor afirma sua
pretensão de circunscrever a chamada questão Palestina e afirma no início do livro se tratar de
um ato de afirmação política.
Para Said, A Questão Palestina é a última grande causa do século XX. A questão
palestina teria sido marcada pela experiência da expropriação, do exílio, da dispersão e da
privação dos direitos civis. Said refaz o histórico do movimento Nacional Palestino ao
estabelecer 1967 como um marco para se pensar a relação entre a política da questão palestina
e a respectiva relação com as nações árabes. Para o autor, a centralidade da questão palestina
no discurso árabe oficial é confrontada com a práxis da relação entre os palestinos e os
estados árabes.
Said denomina de conjuntura paradoxal as relações entre a causa Palestina e o
contexto mais amplo do mundo árabe. O pefil Pan-árabe Nasserista da OLP no período da
liderança de Yasser Arafat é inegável, o que não elimina a impossibilidade de trocar uma
linearidade na relação entre a causa palestina e a conjuntura geopolítica árabe.
Said estabelece três elementos definidores da trajetória dessa relação. O primeiro deles
está representado pela relação com o golfo Pérsico que, desde 1948, estabelece um apoio
econômico para a questão Palestina. O segundo elemento está representado pela revolução
Iraniana de 1979 e os respectivos vínculos entre a OLP e Khomeini. O terceiro elemento,
representado pelos movimentos progressistas do mundo árabe, grupos marxistas egípcios,
nasseristas e muçulmanos.
132
210
SAID, Edward, W. A Questão da Palestina, SP: Editora UNESP, 2011. Prefácio à edição de 1992. p. 33
133
Said afirma que a realidade Palestina será construída a partir de um ato de resistência
contra essa nova forma de colonialismo estrangeiro. A questão Palestina se define pelo
confronto entre uma afirmação e uma negação, entre uma presença e uma interpretação. O
sentido da elaboração do livro atende a uma necessidade de denúncia contra a distorção de
leituras que gera um processo de dominação histórica.
A escrita do livro recompõe historicamente a chamada presença Palestina que foi lida
de forma evolucionista ou, na leitura de Said, Orientalista. A Palestina, segundo a visão
sionista, seria retrógrada, incivilizada, portanto, deveria ser reconstruída segundo o slogan
sionista: “uma terra sem povo para um povo sem terra”.
Said trabalha a Palestina como uma dissonância de interpretação. Este exemplifica a
questão do nome, chamar o lugar de Palestina e não de Israel ou Sião já representa um ato de
vontade política. O livro busca aproximar a questão Palestina da luta pela descolonização das
outras nações pertencentes ao Oriente Médio. O que o autor ressalta é que, no caso palestino,
o legado otomano, o colonialismo sionista e a autoridade britânica tiveram de ser combatidos
simultaneamente.
Os argumentos em torno da noção de pertencimento ou especificidade de uma
comunidade indicam a ideia de uma Palestina anterior que, a partir da desapropriação,
necessita reafirmar uma realidade negada pelo sionismo e a consequente criação do Estado
judaico. Said rebate o princípio da existência rarefeita dos palestinos e refuta a tese do êxodo
espontâneo em 1948. O autor aponta as controvérsias numéricas acerca da evasão dos
palestinos no âmbito da criação do estado judaico.
Said aponta permanentemente o problema da representação dos palestinos, que não
falam por si, são sempre representados. O problema do sionismo que aparece invariavelmente
211
Ibid, P.5.
134
envolvido na realidade nativa do Oriente Médio e, ao mesmo tempo coloca-se num status de
superioridade. Assim como os orientalistas que agem de forma paternalista, os sionistas falam
ao mundo em nome dos palestinos. O contraponto a esse “silêncio” da voz Palestina perante o
mundo ocidental deve vir por meio de um inventário histórico.
Para o palestino contemporâneo que escreve de maneira crítica para saber o que sua
história significou e que tenta – como eu tento agora – saber o que o sionismo
representa para os palestinos, é relevante a observação de Antonio Gramsci de que
“a consciência daquilo que alguém realmente é (...) é conhecer a si mesmo como
produto do processo histórico que até o momento depositou nele uma infinidade de
vestígios, sem deixar um inventário”. A tarefa de produzir um inventário é uma
necessidade básica, prossegue Gramsci, e deve ser satisfeita agora, quando o
“inventário” daquilo que as vítimas do sionismo (e não seus beneficiários)
suportaram é raramente exposto à visão pública. 212 (SAID, 2011, p.82)
Para Said, a identidade é algo que impomos a nós mesmos ao longo das nossas vidas
de seres sociais, históricos, políticos e espirituais. No caso da Palestina, a identidade é
concebida às avessas como a antinomia do ocidente, da cultura política européia. O propósito
do livro pode ser ilustrado por um esforço de demarcar a singularidade Palestina, recuperar
uma história nacional combalida por uma hegemonia essencialmente européia.
A identidade palestina deveria ser rastreada na dispersão e fragmentação geográfica. A
ideia palestina nasce da expropriação ou da experiência de opressão imperialista. No esforço
da diluição do ethos nacional Palestino mediante o conflito com a dominação israelense, Said
busca definir os pormenores factuais que vão fundamentar a história Palestina.
Said retoma os argumentos presentes no livro Orientalismo quando inicia o seu
primeiro capítulo com uma reflexão sobre a categoria de Oriente. Essa categoria representa
uma espécie de generalização abrangente conceitual criada de forma estereotipada pela
historiografia européia. No centro das representações sobre o Oriente Médio está a questão
Palestina. Essa questão emerge como um contraponto da ausência, diluição ou negação de
uma definição de identidade nacional.
O livro representa um ato de afirmação política, um manifesto demarcado pelo
contraponto de uma memória política que se esforça por construir miticamente a inexistência
histórica dos Palestinos. O manifesto pretende não só rastrear os traços de historicidade dos
Palestinos como também desconstruir visões estigmatizantes e generalizantes sobre esse povo.
Se Said fala de uma essência Palestina e de uma experiência irredutível no que tange ao devir
histórico desse grupo, podemos depreender uma contradição teórica com o Said cosmopolita
ou pós-colonial e seu esforço perene na desconstrução das identidades imutáveis e essenciais.
212
Ibid, P. 82.
135
213
Ibid, P. 33.
136
vistos no contexto desse livro como colonialistas marcam uma presença que denota a ausência
dos palestinos.
Said desenvolve um debate sobre a trajetória do sionismo e a representação dos
palestinos sobre o sionismo como uma modalidade de colonialismo. Seu interesse é registrar
os efeitos do sionismo na questão palestina estudar esse processo genealogicamente, no
interior do processo histórico imperialista do século XIX. A representação do sionismo como
uma forma de colonialismo encontra um contraponto na análise da autora Ella Shohat214 sobre
a obra de Said.
Para a autora, o sionismo não pode ser visto ou equacionado com o imperalismo.
Distinto do colonialismo, o sionismo contitui uma resposta à opressão diferente do paradigma
dual clássico da metrópole contra colônia, estariam localizados no mesmo lugar. Para
Shohat215 Israel representa um paradoxo porque, por um lado, conclui o período da diáspora,
caracteriza uma nostalgia judaica para o Oriente, fundou um estado cuja orientação ideológica
e geopolítica tem sido ditada pelo Ocidente. A terra mater israelense recupera seu lugar de
origem no Oriente, embora com a perspectiva civilizatória do “Ocidente”.
Said analisa a ironia histórica, na qual os significados culturais e simbólicos do
judaísmo, (exílio, diáspora, dispersão e expropriação) foram aplicados aos palestinos. A
rejeição a Said pela esquerda liberal estadunidense diz respeito à distância do estereótipo
clássico do intelectual Palestino que não se aplica a Said.
O problema do palestino que fala do lugar de enunciação do ocidente, descontrói e
desenquadra um lugar comum no imaginário. Shohat fala de um temor do esvaziamento da
autorepresentação israelense no ocidente. O discurso sionista se encaminha para consolidar
historicamente um marca de unidade étnica nacional. Palestinos e Judeus israelenses
compartilham um esforço pela recuperação do ethos da terra mãe nos seus respectivos
imaginários nacionais.
Para Shohat, Said historiciza consistentemente a disputa palestina/israelense de
maneira antiessencialista, na medida em que pensa a posição dialética ou de espelhamento
entre esses dois grupos.
214
SHOHAT, Ella, Antinomies of exile: Said at the frontier of National narrations In: Edward Said, a critical
Reader, SPRINKER, Michael (ed.), Massachusetts: BlackWell Publishers, 1992.
215
Estudiosa do Multiculturalismo nos EUA, Professora de cinema e Estudos Culturais da Universidade de Nova
York, Ella Shohat é autora de diversos livros, onde discute a questão da representação do Oriente Médio no
cinema, além da recepção das ideias de Edward W. Said e Frantz Fanon na produção intelectual israelense.
Autora do artigo Antinomies of exile: Said at the frontier of National narrations In: Edward Said, a critical
Reader, SPRINKER, Michael (ed.), Massachusetts: BlackWell Publishers, 1992.
137
216
Podemos associar a necessidade de um inventário de identidade Palestina com a proposta do livro After the
last Sky, palestinian lives (1983). Se a Palestina representa o exílio, a desapropriação e as memórias de um outro
lugar sendo sobrepostas ao espaço de deslocamento.,É mais necessário, imperativo que esses traços de
identidade sejam recuperados. Os questionamentos que permeiam esse projeto de inventário se iniciam com as
seguintes questões: “Quando nos tornamos um povo?” Quando deixamos de ser? Estamos em processo de nos
tornar um povo? A identidade palestina se dilui no ethos árabe? O esforço secular para reter uma identidade é um
esforço por se colocar no mapa novamente. As considerações religiosas são secundárias, são conseqüências, não
causas dos conflitos.
138
Imperialismo e com a luta por uma unidade árabe, bandeiras tributárias à experiência
Palestina.
A proposta central do livro se refere às políticas sionistas e à forma como a questão
palestina era tratada no contexto após a criação de Israel. A questão do retorno dos refugiados
era muito importante na medida em que ela significaria uma libertação palestina. Said
distingue a posição e a perspectiva de dois grupos diferentes; a saber, a comunidade Palestina
que vive em Israel, cuja ação seria orientada para garantir a permanência em Israel, uma
coesão de comunidade, e uma simetria nos direitos que excluiria a chamada cidadania de
segunda categoria.
Já os exilados, munidos de um idealismo do expatriado, imaginavam a Palestina
integral, não fragmentada, portanto o ideal de libertação nacional vinculava-se às críticas
contundentes ao sionismo como projeto político e como sociedade. O terceiro segmento ainda
contava com os palestinos que viveram a ocupação militar israelense no pós-67.
Os cidadãos integrados à Jordânia, no caso da Cisjordânia, ou ao Egito, no caso de
Gaza, viviam a presença do estado israelense como uma ocupação militar opressora. Said
estabelece uma analogia do sionismo como experiência de dominação e o colonialismo
contemporâneo. Dada a fragmentação da comunidade palestina, a necessidade de adesão
promovida por meio de uma liderança legítima capaz de articular as múltiplas condições
coube à OLP.
Said refaz a trajetória da progressiva politização dos palestinos exilados217 e dos que
permaneceram em Israel, demarcando, no caso dos expatriados, a conscientização política que
se misturava com a política árabe mais ampla. Na década de 50, os exilados se engajaram na
chamada política de rejeição e críticas contundentes às políticas árabes fraternas em relação à
libertação da Palestina.
A temática do desenvolvimento de uma consciência Palestina que ocupa parte do livro
deve ser associado ao contexto das transformações históricas do mundo árabe. Essa temática
deve ser vinculada ao contexto da história das minorias no mundo árabe, da revolução
sociopolítica e de todo o trágico legado do colonialismo e do imperialismo ocidental no
Oriente Próximo.
217
A desapropriação e a expulsão têm significado uma discrepância fundamental entre a situação real palestina e
ideal do que devria ocorrer com os refugiados. Para Said os vestígios do passado são vistos sempre na
perspectiva da lacuna, entre uma situação possível e o preenchimento naiconal almejado pelos Palestinos. Para
além da/situação de Gaza e Cisjordânia o chamado exílio interno dos cidadãos israelenses árabes. O passado
pode ser reescrito no presente. Said cita no livro After the last Sky, Palestinian lives, o poeta palestino Mahmoud
Darwish e defende que a mecânica da perda pode se transformar na metafísica do retorno.
139
Mas, enquanto isso, surgiu o que viria a ser, como dito antes, a constante oscilação
Palestina – ou melhor, da OLP – entre uma direção revolucionária (libertação) e
outra que parecia transformar as estruturas do poder palestino em estruturas de um
estado árabe (independência nacional). Ambas eram resultados necessários da
paradoxal “situação” palestina que descrevo neste livro. Em teoria, essas duas
possibilidades não precisavam opor-se; entretanto, no contexto do problema da
identidade palestina, elas eram conflitantes. Mesmo quando houve uma escolha
clara, o problema dessas duas alternativas não terminou. Como os novos militantes
palestinos adquiriram uma grande quantidade de armas e organizaram-se
rapidamente em grupos militares e políticos, e é claro, como isso ocorria não na
Palestina, mas em um estado árabe fraterno, eles pareciam ser um desafio à
autoridade central do estado. 218 (SAID, 2011, p.181)
218
Ibid, P. 181.
140
debate significativos no mundo árabe foram dominados pela questão palestina. As diversas
organizações que foram criadas com o objetivo consensual de lutar pela libertação e
independência palestinas constituíram um perfil heterogêneo e fragmentador dos grupos. As
mais proeminentes são: o Fatah, a Frente popular de libertação Palestina (FPLP), Frente
popular democrática pela libertação da Palestina (uma ramificação da FPLP) e Saiqa (grupo
patrocinado pela Síria).
O Fatah seria o movimento mais representativo no que tange á liderança expressiva de
Yasser Arafat. O movimento é caracterizado por um perfil Nasserista em função da adoção da
importância da liderança que sintetiza o movimento e defende uma filosofia nacional
centralizadora. Said estabelece um perfil mais pragmático e menos ideológico do Fatah,
enquanto outros movimentos exigiam uma revolução árabe como mecanismo de reconquista
da Palestina e se recusavam a dialogar com Israel.
O Fatah, em outro contexto histórico, o Fatah acabou aderindo às várias possibilidades
de diálogo com o estado nacional judaico. No momento em que Said escreve A questão da
palestina, nos anos 70, a sua visão sobre o Fatah e a liderança de Yasser Arafat aparece como
mais otimista e crédula da legitimidade do seu grau de representatividade.
É necessário afirmar que Said escreve essa obra após a conferência de Rabat, em 1974,
quando a OLP foi designada como a única representante legítima do povo palestino, o que
acaba suscitando conflitos internos à presença Palestina na Jordânia e no Líbano.
O perfil heterogêneo do movimento palestino acaba ilustrando as opções alternativas à
luta armada em algumas tendências do movimento. A ideia palestina como elemento de
coesão motiva a persistência em determinados valores que transcendem as divergências entre
os árabes. A OLP defendia um estado democrático secular e essa ideia teria motivado os
avanços na direção contrária à pura revanche histórica.
Said insiste no problema da representação quando analisa o discurso das autoridades
egípcias, norte-americanas e israelenses que falam pelo palestino. A convivência com o outro,
o judeu israelense se insere no quadro de visibilidade que o palestino enfrenta melhor que o
israelense, na concepção do nosso autor palestino.
A representação etapista da autodeterminação palestina219 se orienta por uma
idealização de um nacionalismo restritivo para um campo de libertação nacional que deve
219
Para Said, quanto mais recente uma formação nacional, mais exclusiva e mais vigorosa é a sua reclamação.
Cada reivindicação nacional inventa tradições, suas próprias filiações. Said se define como um pensador cético
em relação as reclamações étnicas, nacionais , ou tribais, mas é preciso reformar a identidade Palestina que é
colocada em dúvida permentemente. O autor se diz desejoso de uma congruência entre memória, atualidade e
linguagem.
141
Minha crença pessoal – que discutirei mais amplamente no último capítulo deste
livro - é que um estado Palestino independente e soberano é necessário neste estágio
para consumar nossa história como povo no decorrer do século XIX. O inventário
daquilo que somos, daquilo que fazemos e daquilo que fizeram contra nós jamais
poderá ser justificado inteiramente, ou mesmo incorporado, em um Estado. A visão
oposta, isto é, a de que um Estado pode retificar, defender e encarnar a memória de
uma história de sofrimento, parece explicar para os palestinos a teorização israelense
e a prática sionista de criar um Estado distinto para os judeus. Tanto em Israel
quanto na Diáspora, os judeus perdem muito quando se eximem dos problemas
palestinos, que em grande parte foram eles que causaram. Certamente perderam a
oportunidade de se engajar ao lado de outro povo em uma busca comum, em um
território agora comum, em um futuro comum (em oposição a um futuro
excludente). Não sou o único a trabalhar por uma patrie palestina, porque acredito
que esse sentido positivo da nossa história no século XX. Contudo, também tenho
muitos parceiros na crença de que essa patrie seria o primeiro passo, e talvez o mais
importante, rumo à paz entre árabes-palestinos e judeus árabes. Pois a paz entre
Estados vizinhos implicará fronteiras comuns, intercâmbio constante e compreensão
mútua. Com o tempo, quem não conceberá que as próprias fronteiras significarão
bem menos do que o contato humano entre pessoas para quem as diferenças
inspiram mais intercâmbio do que hostilidade? 220 (SAID, 2011, pp.200/201)
220
Ibid, pp. 200/201.
142
Para aqueles palestinos que perderam efetivamente a Palestina – a geração dos meus
pais, em termos de líderes políticos -, esta era uma Palestina árabe, Filastin
Arabyah. Essa geração não aceita o fato de que a Palestina se tornou Israel ou que
nesta vida ela não voltará a ser um país predominantemente árabe. Muito da vida
política e cultural do mundo árabe no período de 1948 a 1967 refletiu visões
semelhantes a essa. Israel, causa impronunciável de todos nossos males e, ao mesmo
tempo, a menos conhecida de nossas realidades, absorveu a energia árabe nacional
em grau absurdo. Israel definiu os limites do arabismo, designou nossos inimigos (o
imperialismo, o Ocidente etc.) e legitimou mais ou menos tudo que certos regimes
fizeram em nome da luta do “sionismo”. 221 (SAID, 2011, p.248)
221
Ibid, p. 248.
222
Said re refere no orientalismo que a geografia era o material que sustentava o conhecimento sobre o oriente.
Todas as carcterisitaicas latentes e imutáveis do oriente repousavam sobre a sua geografia, estavam nela
enraizadas. O oriente geográfico solicitava a atenção do ocidente.
143
mostra os sentidos, os processos pelos quais o sionismo manejou a reificação dos palestinos e
da Palestina. Resgatar o processo histórico é atribuir ao crítico a função de trazer de volta
elementos possibilitadores da consciência Palestina.
“O sionismo do ponto de vista das vítimas” não representa apenas um inventário
histórico gramsciano, mas simboliza a afirmação de uma crítica contundente ao sionismo e a
tomada de consciência de um processo histórico contraditório. A narrativa palestina jamais
admitida pelo sionismo, promove a necessidade de transfomação revolucionária por meio da
“permissão para narrar” que se coloca abruptamente como uma tomada de consciência. Ao
recompor o trabalho de Said por meio do pensamento de Lukács, notamos que ele está
dizendo que a consciência crítica palestina se organizou por meio das contradições da história.
A Questão da Palestina faz parte de uma trilogia que abrange o Orientalismo e o livro
Cobrindo o Islã (1981), este último reeditado com nova introdução em 1997. Esta trilogia
aborda a representação que o Ocidente produziu sobre o Oriente. Cobrindo o Islã trata
especificamente de como a mídia ocultava a temática do Islã ou abordava o tema223 como uma
construção ou entidade monolítica.
Desde a crise do petróleo nos anos 70, o Islã224 se converteu no elemento negativo
constituindo uma postura de repugnância que se estendia por todo um espectro político. Said
denomina que para a direita, o Islã representava a barbárie, para a esquerda, uma teocracia
medieval e para o centro, um ícone do exotismo oriental. É preciso fazer a distinção entre o
Islã representado por uma doutrina religiosa baseado no Corão, e o discurso que se apropria
do Islã politicamente.
A representação do Islã demonstrava uma série de generalizaçãoes que apontavam
para uma representação clássica da modernização que excluía o mundo muçulmano. O Islã é
visto como a causa de todos os problemas do Oriente Próximo, e associado necessariamente
ao terrorismo no Ocidente. Após o fim da guerra fria, o novo inimigo não era mais o
comunismo, este se convertia no Islã.
223
A revolução iraniana ampliou o estigma negativo em torno do islã, o que gerou uma imagem ampliada no
ocidente que vivia-se o ressurgimento do nacionalismo radical no mundo islâmico e que isso representava uma
guerra contra a modernidade.
224
O Islã era visto como uma entidade coerente, única e homogênea, além da indissociação equivocada e
conveniente entre o Islã político e a referência religiosa, dando a entender sobre um possível retorno da
“teocracia irracional” no Oriente. Para Said essa era uma generalização irresponsável, distante de um estudo
sério, com teorias complexas que tentavam comprovar o atavismo, o primitivismo e a violência como qualidades
ameaçadoras às sociedades ocidentais.
144
225
Na conclusão do livro Cobrindo o Islã, intitulado “Conhecimento e interpretação”, Said discute a relação
entre conhecimento e interpretação. Cada leitura ou interpretação avessa a qualquer modalidade de neutralidade
comporta algum tipo de afiliação política, moral, cultural. Said se refere a uma interpretação humanista onde o
leitor de uma cultura está consciente dos seus preconceitos e d sentido de alienação em relação ao texto que ele
se pretende interpretar.
226
O Islã tem sido uma discussão central na política dos estados assim como nos círculos midiáticos. A maioria
desses discursos, enconde o fato, que a maioria dos grupos islâmicos são verdeiros aliados dos EUA, quase
clientes, que estão na órbita dos interesses e negociós com este país.
227
Al Ahram é um jornal de periodicidade diária, Foi fundado no Egito em 1875, passou por variadas vertentes
polticas e editoriais, durante o período Nasserista foi nacionalizado, um dos jornais mais importantes editados no
Egito, possui versão em inglês e em francês. Al Hayat é um jornal da diáspora árabe no Ocidente, de origem
ibanesa, possui filiais na Europa e em alguns países árabes. Sua linha editorial é marcadamente liberal. Said
costumava contribuir para a versão inglesa, impressa em Londres. O jornal era muito popular no Líbano.
145
228
A estratégia de Oslo era redividir e subdividir um territpório palestino em subzonas A, B, C controladas por
Israel. Said fala da pouca familiaridade com a geografia da região, do nível de arbirtrariedades inerentes aos
acordos de Oslo. As divisões davam conta de territórios descontínuos, Gaza e Jericó distantes uma da outra
estavam na mesma zona A, zona autônoma. Gaza predominava em termos de territorios autonomas porque eram
zonas conflagradas e de difícil acesso em termos de dominação política para Israel, além de uma aridez e
subsedenvolvimento econômico notáveis. A zona B seria dividida entre a conservação da polícia Palestina e
Israelense, mas na concretude tratava- se de um domínio israelense. A zona C seria marcada pela presença de
inúmeros assentamentos judaicos o que acabava por impedir a soberania Palestina na prática.
146
Pois há uma equivalência social e intelectual entre essa massa de interesses coletivos
esmagadores e o discurso usado para justificar, escamotear e mistificar seu
funcionamento enquanto, simultaneamente, previne contra objeções e desafios que
possam surgir contra ele. Hoje em dia, quase universalmente, expressões como
“livre comércio”, “privatização”, “menos governo” e outras semelhantes tornaram-
se ortodoxia da globalização, são seus falsificados valores universais. São a base do
discurso dominante, idealizado para criar um consenso e uma aprovação tácitos.229
(SAID, 2003, p.35)
229
SAID, Edward W. , Cultura e Política, SP: Boitempo Editorial, 2003. p. 35.
147
230
OWEN, Roger, Conversación com Edward Said In: BHABHA, Homi e MITCHELL, W. J.T. (Comps.),
Edward Said, Continuando la conversación, Buenos Aires: Editora Paidós, 2006. Pp. 203/204. Como resultado,
me pareceu, com a publicação de Orientalismo, em 1978, eu me vi forçado a enfrentar a sua mesma pergunta
sobre a sobreposição entre academia e política. Foi uma instância dolorosa, como tentei demostrar no meu
pósfacio a edição de 1994. Ali dizia que era de se esperar um pouco de hostilidade. Eu tive a desagradável
surpresa de me encontrar com o que parecia a intencional tergiversação do meu argumento sobre não ser anti-
ocidental nem pró-árabe, pro-islámico. Parte disto, não sei quanto, surgiu da suposicição de que, eu estando
identificado como palestino/árabe, deveria estar escrevendo desde esse ponto de vista. (tradução nossa)
148
dos gupos minoritários, tendo em vista que a crítica ao colonialismo é ponto de partida,
contudo esse alinhamento não é suficiente. O anticolonialismo é a origem de uma mudança
que deve ir além, em direção a uma transformação de consciência.
Segundo Fanon, o intelectual militante da causa nacional anticolonial não pode se
limitar a substituir o policial branco pelo seu equivalente nativo, o pensador deve ser capaz de
“inventar novas almas”. Fanon cita Aimé Césaire, o pensador da libertação martinicana, e
resignifica o papel do intelectual no sentido de garantir que a lealdade nacional à luta pela
libertação do grupo não reduza o seu senso crítico ou anestesie o seu espírito questionador.
Said fala em universalizar o sofrimento e esvaziar o caráter exclusivo ou provinciano
de um grupo sem que se possa perder o seu caráter singular da experiência histórica. A
transcendência das lealdades primordiais, étnicas, nacionais ou chauvinistas deve obdecer a
um universalismo de valores que faz do pensador um intelectual secular e antidogmático, um
questionador da autoridade ou dos consensos pré-estabelecidos.
O grande dilema contemporâneo aparece no desafio de como reconciliar nossa própria
identidade e as realidades da nossa cultura, sociedade e história com outras identidades,
culturas e povos. Said se refere ao exílio como um modelo para o intelctual que se sente
seduzido pelas propostas de acomodação, de conformismo ou de adaptação. O deslocamento
em direção às margens oferece uma lucidez crítica que comporta um privilégio de
perspectiva.
Said aborda a problemática da autonomia de pensamento no mundo árabe, quando se
refere aos riscos da secularização no universo progressivamente islamizado. Após o declínio
do nacionalismo nasserista nos anos 70, começou a se desenvolver um conjunto de crenças
locais e regionais administradas por regimes impopulares. A resistência cultural secular,
embora numericamente minoritária, tem sido sublimada e censurada.
231
SAID, Edward W., Representações do intelectual, As Conferências Reith de 1993, SP: Editora Companhia das
Letras, 2005. P. 120.
149
232 Julien Benda iniciou a escrita do seu livro mais famoso em 1924, concluído-a em 1927. O título A traição dos
intelectuais, no original La trahison dês clercs, representa um esforço em definir que a função dos intelectuais
seria pregar valores universais sem recair no realismo mundano. Seria vedado aos intelectuais a subjugação do
espiritual ao temporal, com a negação dos valores universais abstratos, tais como: justiça, verdade e razão. São
valores universais aqueles considerados consubstanciais à consciência humana, ideais desinteressados e racionais
que transcendem a realidade histórica. A categoria “clerc” significa no original em francês “clérigo” ou mais
amplamente uma pessoa instruída, um homem de letras. A menção a clérigo já denuncia a idealização do
intelectual como aquele que encarna valores universais sagrados, acima dos ideais do seu tempo.
233
A centralidade da luta pela hegemonia na nova estratégia revoluciuonária proposta por Gramsci explica a
razão por que o estudo da função dos intelectuais é tão marcante nos cadernos. Os intelectuais são atores
fundamentais das batalhas hegemônicas. Se todos os homens são filósofos, possuem uma concepção de mundo,
expressa no senso comum, todos exercem o papel de intelectual, embora nem todos exerçam integralmente esse
papel.
234
Desde Gramsci, o papel dos intelectuais ocupou um lugar central nos estudos do estado moderno. Ele
distingue entre o grande intelectual, aquele que elabora novas concepções do mundo, e a massa dos demais
intelectuais que difundem tais concepções.
235
Nos cadernos do cárcere existe um destaque para a questão intelectual, especialmente o cadeno número 12,
iniciado e concluído em 1932. Uma nota destaca a questão dos intelectuais e a outra o princípio educativo
152
todos os intelectuais são na realidade até certo ponto intelectuais orgânicos até quando estão
desvinculados de uma causa política.
A colocação intermediária de Said diz respeito a um debate sobre o intelectual, figura
pública ou pensador privado. Se a crítica a Benda como pensador conservador é óbvia, a
filiação ao pensamento gramsciano requer cuidados teóricos. Como Said percebe uma mistura
inevitável entre o público e o privado, este último entendido aqui como experiência subjetiva,
para o autor é dado como certo a inexistência da figura do intelectual privado.
Não existe algo como o intelectual privado, pois, a partir do momento em que as
palavras são escritas e publicadas, ingressamos no mundo público. Tampouco existe
somente um intelectual público, alguém que atua apenas como uma figura de proa,
porta-voz ou símbolo de uma causa, movimento ou posição. Há sempre a inflexão
pessoal e a sensibilidade de cada indivíduo, que dão sentido ao que está sendo dito
ou escrito.237 (SAID, 2005, p.26)
236
A represerntação sobre o intelecutal tem relação direta com o poder de persuasão ou convencimento, o pdoer
que um homeme exrce osbre outro. Essa forma uma práxis interativa. Essa práxis se torna objeto de Gramsci em
suas obras associadas a sua maturidade. Os conceitos de catarse, de relações de força, de vontade coletiva, de
hegemonia, de estado integral que referem-se ao ser social que se situa numa esfera de interação. O ser social é
formado pela intima articulação dialética netre objetividade, subjetividade, entre causalidade e teleologia.
238 SAID, Edward W., Humanismo e crítica democrática,SP: Editora Companhia das Letras, 2007. (1a. edição-
2004).
239
SHOHAT, Ella, Antinomies of exile: Said at the frontier of National narrations In: Edward Said, a critical
Reader, SPRINKER, Michael (ed.), Massachusetts: BlackWell Publishers, 1992. P.. ( tradução nossa)
154
Sua reflexão inicia-se a partir dos seguintes questionamentos: vários palestinos partem
das mesmas posições políticas e teóricas de Said, por que houve uma projeção enfaticamente
negativa das suas ideias? Por que o incômodo da comunidade acadêmica norte americana com
a sua produção teórica?
A hipótese de Shohat é construída através do diferencial da trajetória intelectual de
Said. Este não parece estar confinado aos estudos sobre Oriente Médio, além de ter se
identificado como uma autoridade dos Estudos da Cultura ocidental. Seu trabalho partilha
certos traços da obra de vários intelectuais judeus/ não judeus de Nova York que contribuíram
para as mesmas revistas (Commentary, Partisan Review).
Para Ella Shohat, a figura de Said se tornara ameaçadora ao establishment norte-
americano em função da sua ambiguidade de definição, ou seja, o seu ethos intermediário,
difícil de ser enquadrado. Porta vozes da causa palestina, como Ibrahim Abu- Lughod, Rashid
Khalidi e James Zagby que, em certa medida, incorporavam estereótipos árabes,
especificamente palestinos, sem transitar por uma inserção dúbia, foram recebidos
positivamente e tiveram suas ideias mais facilmente assimiladas em função do seu lugar
identitário fixo.
Ainda na perspectiva da nossa autora, Said é visto como aquele que desorienta o
binarismo tão necessário ao contraponto Ocidente/Oriente, construído por boa parte da
intelectualidade norte-americana, marcada por uma postura explicitamente sionista. O
conhecimento sobre o Ocidente, o domínio da língua inglesa, a erudição clássica que a nossa
autora chama de “política de estilo”, envolvida em nuances de representação, impedem o
paradigma do conflito (Israel /Palestina) explorado pela mídia ocidental.
A leitura crítica de Ella Shohat sobre a recepção de Said nos EUA nos remete a uma
questão primordial para a nossa reflexão: a centralidade do conceito de exílio na produção
saidiana. O discurso nacional palestino ameaça o lugar central do judeu nas margens
privilegiadas da Europa/ Euro-América. O exílio, experiência essencialmente judaica, tornou-
se mecanismo identitário do povo palestino. Estamos refletindo sobre alterações no
monopólio dos conceitos de exílio e retorno.
240
Ibid, p. 135. (Tradução Nossa)
155
Recorremos à obra de Shohat241 para uma análise da recepção da obra de Said nos
EUA, e em Israel, pela Historiografia Pós-Sionista. Said se tornara um interlocutor da
produção intelectual liberal/esquerdista israelense nos anos 90. Shohat refaz o trajeto da obra
de Said marcando as principais obras, as marcas teóricas e busca explicar o sentido da demora
da tradução dos seus livros no contexto israelense.
As mudanças nos discursos da academia anglo-americana, fortalecidas pelo
multiculturalismo e pelos diversos “pós”; (pós-modernismo, pós-colonialismo, pós-
nacionalismo e o pós-estruturalismo) facilitaram a “viagem” das obras de Said para Israel e
possibilitaram a conciliação do “pós” com a Historiografia revisionista do sionismo,
produzindo o Pós- Sionismo. Shohat procura ilustrar esse percurso apontando algumas
incongruências. A autora afirma que os vínculos entre sionismo e colonialismo são
sublimados no pós-sionismo, ou seja, há um aproveitamento parcial da obra de Said.
O argumento final da autora, no artigo citado, destaca que a teoria pós-colonial foi
introduzida em Israel com um vácuo político e intelectual em relação à falta de leitura prévia
das produções anticoloniais (C.L.R. James, Cabral, Retamar, Aimé Césaire, Frantz Fanon).
Os intelectuais israelenses vivenciaram uma espécie de “queima de etapas”. O intelectual
israelense, leitor de Homi Bhabha ou Edward Said, jamais leu os antecedentes desse
pensamento, “pulando” para o “pós” sem ter tido contato com o anticolonialismo.
A representação do intelectual tal como pensado no contexto da obra de Said, se
vincula não só ao seu papel publíco, o seu progressivo engajamento nas causas políticas,
como também um portador da chamada crítca secular. Este é um propagador de conhecimento
e valores úteis, ele opera uma espécie de consciência atenta a esse universo. Como a teoria
eve se vincular à resistência e à contra hegemonia, o intelectual munido desse cabedal, deve
lutar contra o enquadramento alienante.
241
Para um aprofundamento do debate; SHOHAT, Ella, The “PostColonial” in Translation: Reading Edward
Said between English and Hebrew, In: Taboo Memories, Diasporic Voices, Durham: Duke University Press,
2006.
242
O livro em questão teve origem no conjunto de conferências que Said ministrou nas universidades dos EUA,
Canadá e Inglaterra entre 1985 e 1986. O conteúdo das confências versava sobre a análise dos textos europeus
157
livro Orientalismo. Said afirma que parte do trabalho sobre o imperialismo pode ser
decorrente da sua experiência de ser colonizado, por britânicos ou israelenses
No livro Cultura e Imperalismo, a cultura aparece como o espaço privilegiado para se
detectar as artimanhas do poder colonial. Ao extrapolar os aspectos meramente estéticos, a
cultura se torna um lócus privilegiado do reconhecimento de uma identidade nacional em
movimento. As diferenças e linhas divisórias entre os registros culturais formam estruturas de
autoridade e participação.
Nos registros culturais nacionais, existem aspirações e ímpetos em direção à
soberania. Quanto maior o esforço por estabelecer marcos de delimitação das fronteiras
culturais, paradoxalmente se mostra o hibridismo das experiências culturais e históricas.
Said utiliza a palavra cultura para sugerir um contexto externo, um processo ou
hegemonia nas quais os indivíduos e suas obras estão inscritas numa superestrutra. A sua
contradição aparece na relação intrínseca com a cultura hegemônica ocidental243. Embora
afirme utilizar o método do contraponto para apreender a cultura européia, não pode se
despreender de uma identificação com a cultura canônica ocidental.
Said cita os autores; Eric Hobsbawn e Terence Ranger (2006)244, quando analisa as
preocupações e a obcessão contemporânea pelas imagens puras sobre um passado privilegiado
e genealogicamente importante. A fundamentação historicista é resgatada em nome de uma
tradição necessária para a projeção de poder sobre o passado. A construção do passado
nacional também pode ser encontrada nas experiências pós-coloniais que mimetizam as
experiências da colonização.245
O termo “tradição inventada” é utilizado no sentido abrangente, porém definidor o que
envolve tanto as tradições construídas e institucionalizadas quanto as que são difíceis De
localizar no contexto de origem.
sobre África, Índia, partes do Extremo Oriente, Austrália e o Caribe. Said analisa as figuras retóricas que
simbolizam os estereótipos que fundamentam as concepções evolucionistas inerentes à produção cultural.
243
A cultura no contexto de explicação inerente a obra de Said deve ser relacionada ao ocnceito de hegemonia
que pressupõe consenso e controle. Não se trata de um regime de conformidade diretamente imposto na
correspondência entre discurso e política. Trata-se de um sistema de coerções e pressões por meio do qual a
cultura preserva a sua identidade imperial. Said procura identificar na cultura novos modelos de dominância.
244
HOBSBAWN, Eric, RANGER, Terence (orgs.), A invenção das tradições, SP: Editora Paz e Terra, 2006.
245
Esse debate deve ser aprofundado na análise das aproximações teóricas e possível filiação do pensamento
saidiano à obra de Frantz Fanon. Dedicamos uma parte da tese a análise da intersecção dessas duas obras.
158
246
HOBSBAWN, Eric, RANGER, Terence (orgs.), A invenção das tradições, SP: Editora Paz e Terra, 2006. P.9.
159
formular uma alternativa para a política da culpa e também para a política mais
destrutiva do confronto e da hostilidade. Talvez isto dê origem a um tipo de
interpretação secular mais interessante, muito mais profícua do que as denúncias do
passado, os lamentos pelo fim dessa época ou- ainda mais prejudicial por ser
violenta e muito mais fácil e atraente- a hostilidade entre as culturas ocidentais e não
ocidentais que leva à eclosão de crises. O mundo é pequeno e interdependente
demais para deixarmos passivamente que elas ocorram. 247 (SAID, 1999, p.50)
247
SAID, Edward W, Cultura e Imperialismo, SP: Companhia das Letras, 1999, P. 50.
248
Para Said, a transmissão e a perpetuação de uma cultura podem pressupor processos contínuos de
reafirmação, mediante a qual, a cultura hegemônica se impõe às prerrogativas outorgadas por um sentido de
identidade nacional, pelo seu poder de instrumento, aliado ao poder instituído, o que nos conduz ao conceito de
hegemonia.
249
EAGLETON,T. A ideia de cultura, SP: Editora UNESP, 2000.
160
a identidade como hibridismo, o que pressupõe pureza. Eagleton recorre a Said para atestar o
mútuo envolvimento, a interdependência das culturas que são híbridas e heterogêneas.
A cultura entra na agenda do século XX com a busca da emancipação política. A
dívida dessa noção moderna as experiências históricas do imperialismo e do nacionalismo, da
antropologia a serviço do colonialismo, é inegável.
Eagleton estabelece como tese que sobre a cultura está em crise na soeicdade
contemporânea porque estamos presos à noção de cultura frágil, porque muito ampla e por
outro lado o contraponto infere numa noção de cultura extremente rígida.
Escolhemos privilegiar a síntese desse debate como contraponto ao conceito de cultura
tal como apropriado por Said. O primeiro elemento aparece com a ênfase no percurso251 dessa
categoria sem privilegiar um dabete localizado epistemologicamente na história ou na
antropologia.
A trajetória de Raymond Williams252 e o paradigma de cultura que vigorava no
ambiente intelectual que o formou, pode explicar o seu posicionamento teórico que vai marcar
os seus leitores, entre eles Edward W. Said. A elitização da formação intelectual promove
uma idealização dos estudos culturais e suas ramificações; de que as obras culturais, como a
literatura, por exemplo. O equívoco de que a cultura paira acima de todos os conflitos sociais,
250
Ibid, P. 42.
251
Ao identificar a historicização realizada em torno do conceito de cultura, devemos nos remeter à história e ao
uso desse conceito em fins do século XVIII, na Alemanha, um nome que denominava a configuração ou
generalização do “espírito” que informava o modo de vida global de um determinado grupo. Em nossa época
esse conceito convive muitas vezes de forma abrangente, com os usos antropológicos e sociológicos, o que
denota um “modo de vida global” de um grupo social.
252
Raymond Williams, estudante em Cambridge no pós-guerra, tornou-se um destacado teórico socialista dos
estudos culturais que buscou desenvolver um trabalho focado nas diversas questões teórico-práticas que
envolvem o conceito de cultura. Sua obra abordou o papel da cultura no marxismo, formativo do chamado
materialismo cultural. Além de autor de romances, escreveu estudos sobre a mídia, a cultura de massa, o clássico
O campo e a cidade, que se pretende analisar a construção social do campo e da cidade na literatura, que
reproduz os sentidos criados no universo social da área rural e das cidades contemporâneas.
161
e deve ser vista como um fim em si mesmo, é refutada pelo teórico marxista. A
antinaturalização dos estudos culturais caminha na direção de que a cultura é a organização
simbólica dos significados e valores de uma determinada sociedade.
Identificamos a ideia de que a produção cultural é fundamental na constituição social,
e que a sociedade está profundamente enrededada em seus conflitos e lutas, cujas feições
marcam a própria forma de dar sentido á vida. Perceber o conteúdo social dos registros
culturais vai além do rastreamento dos mecanismos internos dos registros literários. A crítica
funciona exatamente como o leitor que aciona a percepção do externo, do social, no elemento
interno da obra.
Williams denuncia o formalismo exacerbado, originário de uma filtragem
norteamericana, influenciada pela teoria francesa do pós-estruturalismo. Suas críticas se
dirigem a permanente “contemporaneidade” dos objetos de estudos, e a secundarização da
história no seu movimento de descontinuidade. As conexões entre arte e sociedade o vinculam
à obra de Said.
Said resgata Williams no debate osbre afiliação, um temro que tem relação com o
mapemanmto das conexões no mundo netre praticas, indivíduos, classes, formações e
estruturas que o autor inglês utilizou nos seus livros: A Longa Revolução e O Campo e a
Cidade. Se a afiliação é um conceito dinâmico, que se faça explícita todo tipo de conexão que
nos tendemos a esquecer e que precisa estar a mostra para uma mudança política. Quando
questionado sobre o caráter intencional da afiliação, Said responde que afiliação diria respeito
mais ao alinhamento no sentido do conceito de Williams253 do que de compromisso, ou
engajamento.
253
R. Williams estabelece uma oposição entre alinhamento e compromisso, sendo o ultimo mais intencional que
o primeiro.
162
dogmáticas de um ou outro tipo que desfilam como a última palavra da alta teoria,
em tinta freca na imprensa. 254 (WILLIAMS, 2007, pp.217/218)
Creio que uma outra forma, por meio da qual um método de análise é submetido a
uma prova empírica bastante dura é a seguinte: se estamos dizendo que a análise da
representação não é um assunto separado da história, e penso que tanto Edward
quanto eu estamos dizendo isso, mas que as representações são parte da história,
contribuem para a história e são elementos ativos na maneira como a história
caminha; na maneira como as forças são distibuidas; na maneira como as pessoas
percebem as situações, tanto de dentro de sua realidade urgente quanto de fora dela;
se estamos dizendo que esse é um método real, então o teste empírico a ser realizado
aqui é verificarmos se os métodos comparáveis de análise estão sendo aplicados a
situaçãoes que estão muito distantes no espaço, possuem tessituras muitos diversas e
desencadeiam consequências bastante diversas no mundo contemporâneo.255
(WILLIAMS, 2007, p.213)
254
WILLIAMS, R. “Mídia, margens e Modernidade, Raymond Wiliams e Edward W. Said”. In: Políticas do
modernismo, contra os novos conformistas, SP: Editora UNESP, 2007. pp.217/218
255
WILLIAMS, Raymond, “Mídia, margens e Modernidade, Raymond Wiliams e Edward W. Said”.In: Política
do Modernismo, contra os novos conformistas, SP:Editora da UNESP, 2007.p.213
163
256
Devemos desenvolver o conceito de cultura no contexto de produção do teórico Raymond Williams,
referência bastante citada na obra de Edward W. Said. Procuramos utilizar as seguintes referências; WILLIAMS,
Raymond. Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp; 2011. Cultura, SP: editora Paz e Terra, 1992.
Marxismo e Literatura, RJ: Zahar Editores, 1979. Política do Modernismo: contra os novos conformistas. São
Paulo: Editora Unesp; 2007, Política e as letras: entrevistas da New Left Review. São Paulo: Editora Unesp;
2013. A produção Social da Escrita, SP: Editora UNESP, 2013 e por fim a obra; Palavras chave|: um
vocabulário de cultura e sociedade, SP: Editora Boitempo editorial, 2007. No livro, Política do Modernismo,
contra os novos conformistas, encontramos um apêndice, denominado, “Mídia, margens e Modernidade,
Raymond Wiliams e Edward W. Said”. Este trecho reproduzia uma conversa entre os autores, precedida da
exibição dos filmes, baseados nos seus respectivos livros; O campo e a cidade, de Mike Dibb, baseado no livro
homônimo de R.Williams e “A sombra do Ocidente”, de Geoff Dunlop, bseado no livo Orientalismo, de Edward
W. Said.
164
Said ilustra o caso classico da Inglaterra que é vista como uma potência reguladora e
normativa, e o mundo colonizado como subordinado e dominado. Os traços literários emanam
das relações de poder nas atitudes, nas referências e nos hábitos vivenciados nesse universo
que serve de cenário nos romances.
O empreendimento imperial deve ser percebido pelo leitor nas entrelinhas ficcionais
dos romances. Said enumera quatro conseqüências interpretativas da estruturação de atitudes
desveladoras do imperialismo, a saber: a primeira delas diz respeito a uma continuidade
orgânica insólita entre as primeiras narrativas e as produções subseqüentes. O segundo ponto
faz referência as atitudes sociais denotam as relações de poder.
O terceiro ponto quando os romancistas articulavam a posse de poder, os privilégios
no estrangeiro com as atividades análogas no país natal. E por fim o quarto ponto diz respeito
aos traços individuais de cada autor que devem ser levados em conta na análise do processo
imperialista. Os traços especificos do romance devem ser vistos nos seus aspectos autorais e
particulares sem perder a consciência da totalidade das relações de autoridade colonial que
aparecem nas narrativas. Said ressalta que a narrativa é sempre um ato social, portanto as
análises não podem ser internalistas.
257
SAID, Edward W, Cultura e Imperialismo, SP: Companhia das Letras, 1999. P. 117.
258
O debate historiográfico sobre o imperialismo é muito amplo e envolve uma série de nuances temáticas
relacionáveis, tais como: o nacionalismo, a incompletude do desenvolvimento econômico e industrial, o sistema
dos estados nacionais, entre outros. Desenvolver essa temática mereceria um amplo espaço que não se insere no
conjunto de objetivos da realização desse trabalho. Reconhecemos que Said não realizou a opção da leitura
econômica sobre o imperialismo e que seu viés de entedimento desse processo se deu por meio da análise da
cultura.
166
259
A análise da função constitutiva do tempo na antropologia anglo-americana e francesa e seus respectivos
desdobramentos conceituais acerca dos sistemas temporais estãos presentes no livro O tempo e o outro, como a
antropologia estabelece seu objeto. O argumento principal do antropólogo Johannes Fabian está relacionado
com uma analise da contradição inerente ao conhecimento antropológico produzido no trabalho de campo.
Fabian define o conceito de coetaneidade com o objetivo de consolidar uma categoria fenomenológica que
significa a contemporaneidade como a sincronicidade/simultaneidade.
167
260
FABIAN, Johannes, O tempo e o outro, como a antropologia estabelece seu objeto, Petropólis: Editora Vozes
, 2003. Página 62.
261
Ibid, p. 179.
168
A literatura de Kipling oferece uma antítese: seu mundo, por estar situado numa
Índia dominada pela Inglaterra, não oculta nada ao europeu expatriado. Kim mostra
como um sahib branco pode gozar a vida nessa opulenta complexidade; e diria eu, a
falta de resistência á intervenção européia nesse mundo – simbolizada pela
facilidade com que Kim se move pela Índia comrelativa segurança --- deve-se a essa
visão imperialista. Pois aquilo que a pessoa não pode fazer em seu meio ocidental –
onde tenta concretizar o grande sonho de sucesso significa erguer-se contra a própria
mediocridade e a corrupção e a degradação do mundo – ela pode fazer no
estrangeiro. Na ìndia, não é possível fazer tudo? Ser qualquer coisa? Ir a qualquer
lugar impunemente? 262 (SAID, 1999, p.209)
Os personagens de Kipling transitam a vontade por uma Índia colonial, que não lhes
exige nenhuma contrapartida, se sentem a vontade, sem nenhum contrangimento ou
desconforto. Said associa Kipling com Camus e sua relação com a Argélia, em função das
identidades assimiladas confortavelmente. Se a Índia é posse segura da Inglaterra, a condução
geográfica e espacial se colocam no lugar da orientação temporal da literatura européia
metropolitana.
Said afirma que ler essas obras do mundo descolonizado em contraponto ou em
confronto coletivo com outras obras não significa redúzi-las a uma propaganda imperialista
nem minimizar seus dotes estéticos e artísticos, embora o crítico jamais deva perder de vista
as ligações intrínsecas com os fatos políticos que lhes deram espaço e forma.
262
SAID, Edward W, Cultura e Imperialismo, SP: Companhia das Letras, 1999. P. 209.
169
Quand Said caracteriza o imperialismo ele faz questão de afirmar que nenhum sistema
social pode ser hegemônico na sua totalidade, existe um campo de resistência. Said perceb o
imperialismo como a doutrina dos interesses que se estabelece como norma vigente nas ideias
polítcias acerca do destino mundial da Europa, e tem como contrapartida a resistência das
classes subjugadas.
Said define o ideário imperialista e simultaneamente caracteriza o romance realista
moderno, como uma forma estética, cujos parâmetros de estilo acompanham dilemas políticos
e ideológicos caracterísitcos do imperialismo. O enredo conta sempre com personagens que
vivenciam dilemas em torno da discrepância entre as expectativas ilusórias e as realidades
sociais que os cercam. A ambivalência entre a aceitação naturalista da dominação colonial e
uma sensação de inconformismo com essa situação política, acompanhava os romances
realistas, tais como os de Joseph Conrad.
263
Ibid, p. 243.
170
264
Said estabelece um amplo diálogo com a corrente dos Estudos Subalternos que inicia os estudos teóricos do
ponto de vista dos “grupos subalternos”, em especial estudos sobre o domínio colonial a partir da perspectiva dos
colonizados. Uma parte dessa corrente entende que o domínio da disciplina histórica estabelece uma hierarquia
para o entendimento da história da Ásia e África, atribuindo centralidade à Europa como ícone da modernidade.
Alguns autores partidários dessa abordagem defendem o deslocamento dos locais hegemônicos e subalternos do
saber disciplinar. Originalmente os estudos subalternos falavam de uma divisão da esfera da política entre um
campo estruturado da elite e um campo subalterno não estruturado. Esta divisão queria expressar as diferenças
perceptíveis nas políticas nacionalistas nas três décadas anteriores à independência, durante as quais as massas
indianas, especialmente o campesinato, viram-se atraídas para os movimentos políticos organizados sem
compartilhar as formas mais evoluídas da imaginação do estado pós-colonial.
265
SAID, Edward W, Cultura e Imperialismo, SP: Companhia das Letras, 1999, P.. 327.
266
Ibid, pp.. 25 e 26.
171
267
A dialética da relação colonizador/colonizado encontra eco no pensamento de Frantz Fanon. A referência ao
livro Os condenados da terra promove uma identificação de Said com algumas ideias que movimentam a
reflexão sobre a descolonização no livro Cultura e Imperialismo. Fanon dirige as suas críticas a um nacionalismo
protagonizado por uma “burguesia nacionalista” que governava os novos países por meio de uma tirania
espoliadora muito próxima ao modo de governo dos colonizadores.
268
SAID, Edward W, Cultura e Imperialismo, SP: Companhia das Letras, 1999. P. 65.
269
Ibid, Página 88.
172
A cultura não pode ser encarada como um fato imediato, e deve ser vista (como iria
dizer nos Cadernos) sub specie aeternitatis. Passa-se muito tempo antes que surjam
novas formações culturais, e os intelectuais, que dependem de longos anos de
preparo, ação e tradição, são indispensáveis a esse processo. Gramsci também
entende que, no longo intervalo durante o qual ocorre a gradual formação de uma
cultura, é preciso que haja “rupturas de tipo orgânico”. 273 (SAID, 1999, p.85)
270
Ibid, P. 40.
271
A teoria gramsciana que subsidia essa geografização da história social estaria sendo rastreada na questão
meridional, onde se observa um esforço analítico para perceber a divisão entre o norte e o sul da Itália para o
direcionamento das diretrizes do movimento operário nacional no contexto de impasse político.
272
Said realizou vários seminários sobre a obra de Gramsci. Podemos identificar alguns conceitos gramscianos
na sua obra, o debate sobre a representação do intelectual incorpora alguams definições gramscianas além do
conceito de hegemonia. Ao estudar a história e o papel dos intelctuais e ao consolidar oconceito de hegmeonia
Gramsci chegou a um novo cocnwito de estado. Os aparelhos hegemônicos dizem repsieto a dialética da ofrça e
do consenso, da direção e do dompinio. O poder hegemônico cosporificado na clase deve se tornar estado,
273
Ibid, p. 85.
174
As metáforas musicais são utilizadas para falar de um arquivo cultural que mistura as
supostas identidades, o contraponto entre a história metropolitana e da história do colonizado
que só operam em polifonia. A atuação em contraponto promove a consolidação da
identidade, porque nenhuma identidade atua por si só sem a existência de opostos e
referências negativas.
Said pretende realizar um inventário da leitura que a cultura vai proporcionar do
império. A visibilidade das relações de poder e a hegemonia274 serão possibilitadas pela
análise da cultura, dos meios de comunicação de massa e da micropolítica.
274
O conceito de hegemonia é central na obra de Gramsci e pode ser definido quando um grupo social obtém o
consenso de outros grupos para suas propostas e, portanto, quando a ação teleológica do primeiro grupo incide
com êxito naquela do segundo. Para que isso ocorra é preciso que ambos os grupos compartilhem concepções e
valores em comum. Sem a a criação da intersubjetividade, propostas políticas conservam-se no nível subjetivo
das intenções sem adquirir condições de consolidar uma objetividade social.
275
Ibid, p. 98.
175
O autor palestino justifica o peso dessa temática nos autores para os quais o passado
colonial interferiu na sua formação identitária. Considerar a temática imperial como
privilegiada no campo literário é levar em conta tanto os mecanismos de resistência como a
apologia ao império no interior da temática imperialista.
O grande paradoxo do recorte da análise canônica ocidental em Said aparece ilustrada
na problemática da representação do silenciado, do subalterno oculto nas entrelinhas da
produção ficcional européia. O arquivo das culturas européia e americana, deve servir para
um mecanismo de definição do colonizado que aparece no subliminar do romance.
A leitura em contraponto significa ler o processo imperialista e as vozes de resistência
à dominação nas entrelinhas da produção em questão. As experiências “sobrepostas e
entrelaçadas” entre o colonizador e o colonizado devem estar em destaque ainda que o
escritor tenha uma predileção pela dominação colonial. Said cita o exemplo iliustrativo, O
estrangeiro de Albert Camus, o contexto de todo colonialismo francês, a destruição do estado
argelino, e o surgimento posterior de uma Argélia independente a qual Camus se opunha.
Said reflete sobre as limitações de um realismo reducionista mostrando como um texto
pode dar voz a uma realidade, sem ser um retrato fidedigno e reflexivo de um contexto
histórico. Por outro lado, a literatura está implicada na realidade imperial. E para os leitores
europeus a aproximação em relação à realidade do império se dava justamente pela leitura de
um deteminado romance. A realidade imperialista era tão abrangente e global que nada lhe
escapava.
A precedência da cultura sobre o político e o econômico ajuda a definir a
especificidade da resistência colonial sem atrelar elementos da cultura colonial aos
mecanismos de inspiração na ideias ocidentais de liberdade. A cultura pode preparar uma
sociedade para a dominação e pode gestar a renúncia à dominação colonial.
Deve-se admitir a importância da cultura na consolidação do sentimento imperial,
assim como a escrita da história está intimamente associada à expansão do império. A
situação contemporânea refaz o mapa político com a situação dos refugiados, imigrantes,
deslocados, exilados, conseqüência dos grandes conflitos pós-coloniais e imperiais.
entre as coisas; nos termos de Eliot, a realidade não pode ser privada dos outros ecos
[que] habitam o jardim. É mais compensador - e mais difícil – pensar sobre os outros
em termos concretos, empáticos, contrapuntísticos, do que pensar apenas sobre
“nós”. 276 (SAID, 1993, p.411)
Se a luta pela independência gerou novos estados e novas fronteiras, da mesma forma
ela gerou andarilhos sem lar, nômades, errantes que não se inserem nas estruturas do poder
institucional. Pessoas que representam um intermediário entre o velho e o novo e que
expressam tensões, contradições e o que Said denomina de territórios sobrepostos explícitos
no mapa cultural do imperialismo.
276
Said, E. Cultura e Imperialismo, SP: Companhia das Letras, 1993. (1ª. Edição),p.411.
277
SAID, Edward, Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP: Companhia das Letras, 2003. (1ª. Edição -
2001).
177
Não se quer sugerir aqui que, numa formação sincrética, os elementos diferentes
estabelecem uma relação de igualdade uns com os outros. Estes são sempre inscritos
diferentemente pelas relações de poder – sobretudo as relações de dependência e
subordinação sustentadas pelo próprio colonialismo. Os momentos de independência
e pós-colonial, nos quais essas histórias imperiais continuam a ser vivamente
retrabalhadas, são necessariamente, portanto, momentos de luta cultural, de revisão e
de reapropriação.279 (HALL, 2006, p.34)
O exílio, categoria central na obra do autor palestino, desempenha uma dupla função:
não só no seu aspecto ontológico, na condição de um autor diaspórico, como também através
de uma metáfora epistemológica. Isso nos remete a uma reflexão importante: o constante
compromisso entre o texto, a produção intelectual e o respectivo contexto histórico.
A diáspora habilita Said a se distanciar do partidarismo político e, na busca do
desarraigamento, coloca o intelectual na condição de alguém que fala “da margem”. O seu
lugar de enunciação precisa ser revigorado, rastreado no interior da sua identificação como
autor palestino, o que, de alguma forma, problematiza o entre-lugar processual de um teórico
avesso a binarismos, ou definições homogeneizantes no interior de uma postura pós-colonial.
Apesar de Said se identificar como uma pessoa desmembrada da sua “pátria” e valorizar o
passado como base para uma realidade cultural fixa, homogênea, o autor insiste no aspecto
processual da cultura e da identidade.
278
HALL, Stuart, Pensando a diáspora , reflexões sobre a terra no exterior, In;.SOVIK, Liv (org.) Da diáspora ,
identidades mediações culturais, BH: editora da UFMG, 2006.
279
Ibid, p.34.
178
280
Said, E. Cultura e Imperialismo, SP: Companhia das Letras, 1993. P.390. (1ª. Edição)
281
SAID, Edward W., Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP; Editora Companhia das Letras, 2003. P.57.
282
Said percebe Adorno como um autor essencialemente hegeliano, o que pressupõe uma inevitável teleologia
histórica que incorpora os eventos em uma progressão contínua. Esse pressuposto nos remete ao problema da
totalidade e das individualidades históricas na obra de Edward W. Said. O livro, Mínima moralia parece um
manifesto na forma de aforismos que são individualidades teoricascontra a modernidade enquanto totalidade
artificial.
283
ADORNO, Theodor W. Minima Moralia, Reflexões a partir da vida danificada, Editora Ática, 1990.
179
Para o intelectual, a solidão inviolável é a única forma em que ele é capaz de dar
provas de solidariedade. Toda colaboração, todo humanitarismo por trato e
envolvimento é mera máscara para a aceitação tácita do que é desumano. É com o
sofrimento dos homens que se deve ser solidário, o menor passo no sentido de
diverti-los é um passo para enrijecer o sofrimento.284 (SAID, 2003, p.20)
Said faz referência a Adorno (1990) no livro, Cultura e imperialismo quando define
que o modelo que o inspira, entende a nossa sociedade como um mundo administrado ou
como a cultura predominante definida como “industria da consciência”. O benefício da
contestação, concede através da linguagem indícios da inadequação. Essa é um privilegio, ou
uma possibilidade de libertação. Numa hierarquia intelectual, em que colocam todos no
mesmo patamar de um mundo homogeneizante, a inadequação lembra o desvio da vida que
representa uma linha oscilante e desviante se comparada com as premissas lógicas que
orientam a nossa conduta.
O exílio é afirmado a partir da existência da terra natal, do amor por ela e de uma
ligação real com ela; a verdade universal do exílio não é que se tenha perdido esse
lar ou esse amor, mas que, inerente a cada um, existe uma perda inesperada e
indesejada. Assim devemos encarar as experiências como se elas estivessem a ponto
de desaparecer. O que há nelas que as firma ou enraíza na realidade? O que
resgataríamos delas a que renunciaríamos nelas o que recuperaríamos? Para
responder a essas perguntas, é necessário ter a independência e odespreendimento de
alguém cuja terra natal é “doce”, mas cuja condição atual impossibilita recapturar
essa doçura, e ainda mais satisfazer com sucedâneos fornecidos pela ilusão ou
dogma quer derivem do orgulho pela própria herança ou da certeza daquilo que
“nós” somos.285 (SAID, 1993, p.411)
284
Ibid, p.20.
285
Said, E. Cultura e Imperialismo, SP: Companhia das Letras, 1993. (1ª. Edição ) p.411
286
SAID, Edward W. Elaborações Musicais, RJ: Editora Imago, 1992.
180
Aqui aparece o problema das generalizações teóricas e dos modelos teóricos que culminam
com diagnósticos totalizantes.
O profundo vínculo entre a cultura original e o lugar coloca o exilado dentro da
inquieta provisoriedade da cultura da diáspora. O padrão de incompletude promove o
descentramento que supõe o método do “contraponto”. Todas as culturas e todas as
sociedades constroem a identidade de acordo com a dialética oscilante entre o “eu” e o
“outro”.
A própria condição de exilado situa o intelectual em uma relação paradoxal com a
cultura. O ideal do intelectual é nunca estar plenamente adaptado. O exílio no sentido
metafísico é a inquietude ou o movimento de constante desassossego. O exílio nunca implica
uma total separação do lugar de origem, é uma situação em que o exilado nunca chega a
abandonar o antigo, nem aceita completamente o novo.
Para Said, o exílio, apesar de ser uma referência ontológica dolorosa, é
reconhecidamente um tema vigoroso e característico da moderna cultura ocidental. Esta é, em
larga escala, obra de exilados, emigrantes e refugiados. Apesar de ser visto como uma “fratura
incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e o seu verdadeiro lar”,287 o exílio
promove uma série de reflexões que pode suscitar posicionamentos vigorosos no campo
epistemológico.
Se a modernidade pressupõe uma propensão à vivência do exílio porque nos aproxima
da experiência permanente dos deslocamentos, esta aparece para o nosso autor como um
mecanismo de identidade ou formadora de um estilo de literatura, que pode ser reconhecida
por meio de um rastreamento de um determinado ethos.
A busca de um ethos nacional parece esbarrar na antinomia da reflexão pós-colonial
que parece promover um esforço no sentido da suspensão dos binarismos ou das categorias
homogeneizantes, no que tange à delimitação de uma identidade nacional. Said reconhece
uma associação essencial e paradoxal entre o nacionalismo e o exílio.
O exílio, ao contrário do nacionalismo, é fundamentalmente um estado descontínuo,
revivido pela permanente sensação de afastamento da terra natal. A necessidade do exilado de
reconstruir uma identidade a partir de refrações e descontinuidades promove um pathos que se
organiza pela perda do contato com a solidez da terra.
O risco da reconstrução artificial da identidade nos remete à aproximação com a obra
de Adorno, no que diz respeito à vivência de uma subjetividade rigorosa. Como opositor
287
SAID, Edward W. , Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP: Companhia das Letras, 2003. P. 46.
181
288
ADORNO Apud, SAID, Edward W, Representações do intelectual, As Conferências Reith de 1993, SP:
Editora Companhia das Letras, 2005. (!ª edição –1994). P..65.
289
SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP: Editora Companhia das Letras, 2003. (1a.
edição -2001).P. 58.
182
como um plano de análise estética para pensar a relação entre o que é representado e o que
não é representado, ou seja, entre o articulado e o silenciado. Estilo tardio foi um termo
utilizado por Adorno para demonstrar como as obras podem ser refratárias ao seu tempo.
O Estilo tardio não é resultado direto da morte de um estilo denominando o aspecto
mortal da obra de arte. A noção de pertencimento e afastamento de um contexto de inserção
apresenta tensões que não se reconciliam e podem remeter a experiência do exílio. O aspecto
episódico e o desdém pela continuidade remetem à ideia de obra tardia.
A recusa pelas totalidades falsas não se limita a percebê-las como inautênticas, mas
consiste em uma produção que se origina pelo caminho do exílio e da subjetividade. O
pensamento individual é parte de uma cultura em geral de uma época, ao mesmo tempo em
que diverge desse mesmo contexto.
Ser tardio é, portanto, uma espécie de exílio autoimposto diante de tudo o que
costuma ser aceito, um exílio posterior e sobrevivente a isso. Daí a visão adorniana
do Beethoven tardio, daí a sua própria lição para o leitor. Assim, para Adorno, a
catástrofe representada pelo estilo tardio se manifesta, no caso de Beethoven, no
caráter episódico e fragmentário da música, eivado de ausências e silêncios que nem
podem ser preenchidos por recurso a um esquema geral, nem podem ser ignorados
ou mitigados por frases como “o pobre Beethoven estava surdo e à beira da morte,
vamos deixar de lado esses lapsos”. 290 (SAID, 2009, p.36)
290
SAID, Edward W. , Estilo Tardio, SP; Companhia das Letras, 2009, P. 36.
291
Para uma aproximação entre a obra de Derrida e Adorno; LIMA, Luiz Costa, Introdução Geral In: LIMA,
Luiz Costa (Org.), Mímesis e a Reflexão Contemporânea, RJ: Editora da UERJ, 2010.
183
A inserção de Edward W. Said no conjunto dos estudos pós-coloniais nos exige uma
definição do que seja o pós-colonial292 enquanto um debate teórico, um tipo de discurso ou
uma opção metodológica na apreensão de determinadas realidades. Sabemos da amplitude do
debate e da problematização dessa definição, portanto devemos demarcar alguns pressupostos
que aproximam o nosso debate desse campo.
Podemos definir os autores pós-coloniais como pensadores e ativistas que abordam
criticamente as condições de subalternidade da produção de conhecimento e entendem as
experiências do colonialismo como condicionadoras de um tipo de subjetividade que enfatiza
as diferenças em relação ao poder imperial, uma possível superação do posicionamento
eurocêntrico das ciências sociais e a desconstrução de determinadas abordagens de certas
categorias modernas tais como: classe, cidadania ou nação. A interpretação do objeto do pós-
colonialismo se dá por meio da análise do discurso e das estratégias coloniais.
O sociólogo Sérgio Costa293 define os escritos pós-coloniais como um conjunto de
contribuições de intelectuais qualificados como “diáspóricos” que se caracterizam por
defender um método de desconstrução dos essencialismos e uma crítica estrutural à
concepção dominante de modernidade.
O que está em questão é o confronto pela narrativa histórica, ou os esforços do
colonizador de silenciar ou sublimar a visão do oprimido ou subalterno e as estratégias desse
para resistir a versão dominante que aparece como a verdadeira. Várias correntes desse
pensamento se filiam a uma matriz teórica pós-moderna, na qual o que está em foco é uma
abordagem epistemológica crítica a modernidade ocidental.
Recorremos à reflexão do sociólogo Sérgio Costa em função das afinidades
apresentadas entre o pensamento pós-colonial e o nacionalismo. A ideia de nação e o
292
Para uma ampla discussão sobre o tema ver; SHOHAT, ELLA, Notes on “Post-Colonial”, Social Text,
Números 31/32, Third World and Post-Colonial Issues, Duke Universitiy Press,1992. E COSTA, Sérgio,
Desprovincializando a Sociologia: a contribuição pós-colonial, Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.21,
número 60, SP: fevereiro de 2006.
293
COSTA, Sérgio, Desprovincializando a Sociologia: a contribuição pós-colonial, Revista Brasileira de
Ciências Sociais, v.21, número 60, suplemento 60, SP, fevereiro de 2006.
185
pensamento nacional são centrais para este debate, na medida em que revelam um ponto de
origem cultural, que se manifesta por meio do discursivo. O nacional pode ser a origem de
uma fronteira identitária que condiciona as hierarquias entre os colonizados e os
colonizadores. Se a nação aprofunda a assimetria e os arranjos hierárquicos definidores das
essências delimitadas, o hibridismo294 funciona com uma categoria mais inclusiva e generosa.
294
O hibridismo nesse contexto embora encontrado em vários autores e linhagens teóricas, acaba sendo remetido
ao debate originário na produção do teórico pós-colonial Homi Bhabha, que pensa o hibridismo como uma
interseção cultural que revela um momento ativo de resistência a dominação colonial. Bhabha afasta qualquer
pretensão artificial de homogeneidade que parece fragilmente hierarquizadora.
295
COSTA, Sérgio, Teoria social, Cosmopolitismo e a Constelação Nacional, Novos Estudos Cebrap, número
59, março de 2001. P.19.
296
Ibid, P. 12.
186
diferença no contexto de Bhabha (2001) não opera em nome de uma autenticação do outro,
nem nas diferenças universais. Costa tece inúmeras críticas a essa perspectiva teórica,
ressaltando a “circularidade” inócua das categorias analíticas oriundas de Bhabha para a
construção do conhecimento.
A obra de Bhabha (2001) nos interessa na medida em que é possível estabelecer uma
análise da crítica literária de Said sem um enquadramento automático na perspectiva de uma
compreensão sociológica e reflexiva da literatura. Reconhecemos aqui uma perspectiva pós-
colonial, que apesar da abordagem relacional entre poder e conhecimento não pode reduzir ou
condicionar a obra literária a um mero produto conjuntural. Na prática o enunciativo
conforma a identidade como um traço lingüístico que suspende os binarismos.
Bhabha refaz a leitura teórica e o circuito analítico das obras de Fanon e Said,
traçando as seguintes diferenças: em Said a circulação do poder como conhecimento se
estabelece através do fetiche, fixação do conhecimento estereotipado como poder, e em
Fanon, a circulação de poder e conhecimento ocorrem numa combinação entre desejo e
prazer.
A proximidade entre o poder colonial e o conhecimento não constitui fórmulas
unitárias e necessárias. A oscilação entre o aprisionamento dessa relação necessária (poder-
conhecimento/cultura- imperialismo) produz dialeticamente uma leitura mais sofisticada que
tenta escapar da unidade prévia de sentido.
Enquanto Bhabha nega o sentido coeso do texto e se desobriga a aprisionar os sentidos
prévios e teleológicos da narrativa, Said busca os vazios, os silêncios, as penumbras ou mais
contemporaneamente o estilo tardio da literatura. A vinculação autoral da teoria do discurso
colonial a Bhabha e Spivak não exclui as críticas erigidas por Said ao chamado pós-
estruturalismo e a hegemonia das construções discursivas. A premência do texto distancia a
perspectiva desses autores de um partidário da materialidade do texto.
Devemos apontar o trabalho de Gayatri C. Spivak (2010)299, Pode o subalterno
falar?300, como ilustrativo da proximidade com o desconstrutivismo de Jacques Derrida. Seu
299
Gayatri C. Spivak, indiana nascida em Calcutá, professora do departamento de inglês e literatura da
Universidade de Columbia, e autora entre outros, do livro Pode o subalterno falar? BH: Editora da UFMG,
2010. A autora foi tradutora da obra de Jacques Derrida para o inglês, especialmente sua obra; Gramatologia.
Sua tese de doutorado em literatura comparada defendida na Universidade de Cornell foi orientada pelo crítico
literário Paul de Man, um dos representantes da linha teórica desconstrucionista de Yale. Spivak, representante
do chamado pós-colonialismo, marcado por uma base teórica de base marxista, pós-estruturalista e
desconstrucionista se sobressai nos estudos sobre o feminismo contemporâneo, os fenômenos da globalização e o
chamado multiculturalismo.
300
O ensaio original publicado em um periódico, Wedge, com o subtítulo especulações sobre o sacrifício das
viuvas em 1985, obteve uma grande repercussão após ter sido republicado na coletânea, Marxism and the
188
artigo questiona o intelectual pós-colonial ao esvaziar o seu papel e a sua produção como um
ato de resistência em nome do subalterno, sem que este ato esteja envolto no discurso
hegemônico. Os intelectuais pós-coloniais assimilam que o seu privilégio é a sua perda. Nesse
sentido else represrntam o paradigma de intelctual.
Se projeto se relaciona com o ímpeto teórico de diluição desse duplo lugar da fala
subalterna. Spivak estabelece um vínculo e uma simultânea crítica ao grupo dos estudos
subalternos na medida em que percebe a limitação da fala subaltenra. Sua crítica parte da
ênfase a autonomia od sujeito que não deve representar um papel monolítico e subalterno,
dado o grau de heterogeneidade do sujeito.
Se a condição de subalternidade se vincula com um estado de silêncio, é necessário
discutir a dupla acepção do conceito de representação; a Vetreten e a Darstellen. No primeiro
conceito a representação é mediada por terceiros enquanto o segundo conceito diz respeito a
uma visão estética que prefigura o ato de performance ou encenação. A autora aposta na
ausência de um dialogismo verdadeiro.
Para Spivak o problema da representação aparece de forma simplista em Foucault e
Deleuze. Estes ignoram a distinção entre o retrato e a procuração. A autora fala de uma cena
pós-marxista relacionada ao poder que resgata uma reflexão antiga entre a representação
como tropologia ou persuasão. Darstellen pertence a primeira denominação, vertreten sugere
conotações mais fortes de substituição.301
O processo de fala se caracteriza por uam posição discursiva, uma interação
verdadeiramente inexistente para o sujeito subalterno desinvestido de um agenciamento. O
problema está no enfrentamento do legítimo espaço de fala no âmbito do dialogo entre o
representante e o representado.
O subalterno demanda um representante diante da sua subalternidade silenciada. A
302
heterogeneidade dos subalternos reafirma, segundo Costa, os espaços delimitados para as
chamadas “subjetividades precárias”, construídos na violência epistêmica colonial. O
intelectual pós-colonial busca entender a lógica da relação de dominação.
interpretation of culture, ponto de partida para uma crítica aos intelectuais ocidentais, especificamente Deluze e
Foucault, no que tange, a prática discursiva do intelectual Pós-Colonial. Devemos acrescentar uma autocrítica ao
grupo dos estudos subalterrnos a qual se considera atrelada.
301
Spivak aprofunda o deabte sobre a etimologia e o significado filosófico da categoria de representação em
contraste com as reflexões acerca desse conceito em Deleuze e Foucault, utilizando o âmbito do debate em Marx
e o problema da representação e cosnciência de classe. Devemos reconhecer que no interior dessa temática não
podemos ampliar o espaço dessa reflexão teórica no nosso trabalho tendo em vista o nosso objeto.
302
Sérgio, Dois Atlânticos, Teoria Social, anti-racismo, cosmopolitismo, BH: Editora da UFMG, 2006.
189
303
Ibid, p. 89.
304
SPIVAK, G. C ,Pode o subalterno falar? BH: Editora da UFMG, 2010. P.45
190
305
Ibid, P.59.
306
SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP: Editora Companhia das Letras, 2003. (1a.
edição -2001.
191
Said fala dos desafios da etnografia que encaminham os antropólogos para o primado
da textualidade mediante os dilemas do trabalho de campo no mundo pós-colonial. Parece-nos
que os desafios não são limitados à realização do trabalho de campo e aos dilemas políticos da
antropologia, mas o central nos desafios de campo perpassa o debate inerente as ciências
sociais como um todo, ou seja, aqui se estabelece a questão da viabilidade da representação,
que nós identificamos como a grande armadilha da reflexão pós-colonial.
Para além do interlocutor inserido no conflito colonial, o ambiente acadêmico também
convoca a existência do interlocutor dominado com Said denomina, cujos correlativos
teóricos encontram-se no dialogismo de Bakthin, na situação de fala ideal de Habermas ou na
filosofia de Richard Rorty.
Said fala de uma incorporação ou cooptação desnaturalizante e não autorizada a tratar
do subalterno, na medida em que a representação não autoriza a legitimação das vozes
anteriormente silenciadas. Quando as vozes subalternas são ouvidas elas adquirem um perfil
de alteridade, ou seja, contitutivamente diferente e sem equivalência, o que aprofunda o
paradoxo.
Se o Orientalismo é um tipo de erudição comprometida com uma ideologia militante,
sua forma de apresentação conforma um perfil estético. Said retoma um debate caro a
antropologia contemporânea que procura se desviar de um dilema em torno da legítima fala
pelo outro.
Os desvios excessivamente estéticos filosóficos ou pragmáticos não deram conta de
um conjunto de respostas factíveis ao debate meta antropológico que a etnologia
contemporânea enfrentaria. Said se quastiona sobre o lugar e a reflexão acerca do observador,
de onde ele fala, para quem ele escreve e com que fim ou sentido ele teoriza sobre um
determinado objeto. Said cita James Clifford e sua reflexão sobre a autoridade etnográfica.
A reflexão antropológica deve realizar o trabalho investigativo e acadêmico de pensar
um estado de influência e poder em que há uma assimetria entre os grupos ou nações. As
reflexões do campo antropológico refletem sintomaticamente os desafios da problemática
relação sujeito-objeto.
As obras recentes abordam a distância entre uma realidade política baseada na força e
um ímpeto acadêmico científico de compreender o outro. Apreender a outra cultura significa
estender a própria disputa imperial. A história do pensamento antropológico sempre caminhou
em paralelo com a dominação colonial.
192
O ponto de vista nativo-apesar do modo como foi amiúde retratado - não é apenas
um fato etnográfico, nem um constructo primário ou principalmente hermenêutico:
ele é, em ampla medida, uma resistência de oposição contínua e sustentada à
disciplina e á práxis da própria antropologia (como representante do poder
“externo”), antropologia não como textualidade, mas como um agente direto da
dominação política.307 (SAID, 2003, p.130)
307
Ibid, p. 130
308
PRATT, Mary Louise, Os olhos do império, relatos de viagem e transculturação, Bauru: EDUSC, 1999. A
autora pretende realizar um estudo sobre a literatura de viagem e exploração queeela considera uma crítica de
ideologia. Os relatos de viagens são entendidos como um tropos que pode levar a compreensão da dinâmica
interativa e das relações de poder na assimetria das relaçeos coloniais. A literatura de viagem codifica a fronteira
imperial nas duas linguagens eternamente conflitantes e complementares.
193
A antropologia crítica tem reconhecido a extensão com que essas práticas descritivas
têm atuado para normalizar uma outra sociedade, para codificar seus traços
distintivos aos da sociedade do outro, o narrador, para fixar seus membros num
presente atemporal em que todas as suas ações e reações reproduzem “seus” hábitos
normais. Como o sistema da natureza, elas trazem uma ordem onde, para o
observador externo, existe o caos. A produção textual da outra sociedade não é
explicitamente fundamentada nem na observação do indivíduo nem na situação de
contato na qual a observação está tendo lugar. “Ele” é uma entidade sui generis,
frequentemente apenas uma lista de características, situada numa ordem temporal
diferente daquela do sujeito perceptual e narrador.309 (PRATT, 1999, p.119)
309
PRATT, Mary Louise, Os olhos do império, relatos de viagem e transculturação, Bauru: EDUSC, 1999.
P.119
310
Fanon Apud SAID,, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP: Editora Companhia das Letras,
2003. (1a. edição -2001). p 134.
194
311
Ibid, p. 181/182.
312
SHOHAT, E., Notes on “Post-Colonial”, Social Text, No.31/32, Third World and Post-Colonial Issues, Duke
University Press, 1992.
195
313
DIRLIK, A. “The post colonial aura: third world criticism in the age of global capitalism”, Critical inquiry,
Winter, 1994.
196
O que o conceito pode nos ajudar a fazer é descrever ou caracterizar a mudança nas
relações globais, que marca a transição (necessariamente irregular) da era dos
Impérios para o momento da pós-independência ou da pós-descolonização. Pode ser
útil também (embora aqui o seu valor seja mais simbólico) a identificação do que as
novas relações e disposições do poder que emergem nessa nova conjuntura.315
(DIRLIK, 1994 ,p.101)
314
HALL, Stuart, “Quando foi o pós-colonial? Pensando no limite” In: SOVIK, liv (org.) Da diáspora,
identidades e mediações culturais,
315
Ibid, p.101.
197
outro, enquanto recurso para se repensar o próprio eu ocidental. Nesse contexto aparece o
incômodo que se curva sobre a aproximação do pós-colonialismo com o pós-estruturalismo.
Os estudos pós-coloniais pressupõem a negação dos chamados arquivos disciplinares
ou demarcações teóricas que formam narrativas pelas quais os povos colonizados são
objetivados ou essencializados. O conhecimento produzido deve ser inventariado através dos
vestígios das heranças coloniais ou pós-coloniais. Esse inventário deve se orientar pela análise
dos traços textuais que aparecem por meio dos registros literários, antropológicos, sociais,
históricos ou filosóficos.
Uma possibilidade heurística do olhar pós-colonial é inverter o ponto de partida e
deslocar o centro da enunciação para os colonizados, o que suscita um debate sobre a possível
representação ou sobre a possibilidade de produção do conhecimento.
O problema da representação desempenhou um papel central na reflexão do
pensamento pós-colonial. O dilema constante das classes oprimidas é se imaginar
representada por mediadores. Com um mediador, o oprimido não se subjetiva plenamente. Se
a teoria pós-colonial representa um contra discurso, ao repensar a hegemonia do pensamento
ocidental, é necessário questionar a tradição e os cânones.
Outra possível perspectiva dessa reflexão define como meta a reformulação dos
princípios do conhecimento através de uma abordagem interna. Isso significa desconstruir a
história da modernidade desviando a sua centralidade e demonstrando as vinculações
simbólicas entre o Ocidente e a alteridade.
O historiador indiano Dipesh Chakrabarty316(2008), defende o projeto de
provincialização da Europa ao tentar transpor historicamente o universalismo liberal. O
esvaziamento do monopólio ocidental foi construído com o imperialismo europeu. Como
consequência desse processo, as histórias nacionais dos países colonizados foram lidas como
experiências derivativas dos nacionalismos europeus.
316
CHAKRABARTY, Dipesh, Al margen de Europa, estamos ante el final del predomínio cultural europeo?
Barcelona: Tusquets editores, 2008.
317
COSTA, Sérgio, (Re) Encontrando-se nas redes? As Ciências humanas e a nova geopolítica do conhecimento,
In: ALMEIDA, Júlia. MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adelia. GOMES, Heloisa Toller. Crítica pós-colonial:
panorama de leituras contemporâneas. Rio de janeiro: Editora 7 Letras; 2013.P. 268.
198
318
CHAKRABARTY, Dipesh, Al margen de Europa, estamos ante el final del predomínio cultural europeo?
Barcelona: Tusquets Editores, 2008. p. 45. “O pensamento europeu resultou indispensável e inadequado para
ajudar-nos a refletir sobre as experiências da modernidade política nas nações não ocidentais e provincializar a
Europa se converte na tarefa de explorar como este pensamento – que na atualidade é a herança de todos nós e
nos afeta a todos – poderia ser renovado desde as margens.” (tradução nossa)
199
319
A teoria do choque das civilizações realçada nos EUA, após o 11 de setembro nasceu de um artigo do
orientalista Bernard Lewis publicado na revista Atlantic Monthly em setembro de 1990, denominado As raízes da
ira muçulmana. Nesse artigo foi usado pela primeira vez a expressão “choque de civilizações”, expressão que foi
incorporada por Samuel Huntington e utilizada como título do seu polêmico livro. Said discute criticamente o
seu conteúdo no artigo “O choque de ignorâncias” inserido na coletânea Cultura e política.
201
320
TAGORE, R, Nationalism, 1917.
321
SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo, SP: Companhia das Letras, 1993. (1ª. Edição) p. 273
202
322
Ibid, p..274.
203
Os estados árabes pós-coloniais portanto, têm duas escolhas: muitos, como a Síria e
o Iraque, conservam o seu viés pan–árabe, usando-o para justificar um estado
monopartidário de segurança nacional que engoliu quase por completo a sociedade
civil; outros, como a Arábia saudita, o Egito, Marrrocos, embora retendo alguns
aspectos da primeira alterantiva, retrocederam para um nacionalismo regional ou
323
Ibid, p.311.
205
local cuja cultura política, a meu ver, não foi além da dependência em relação ao
ocidente metropolitano. 324 (SAID, 1993, p.314)
324
Ibid, p. 314.
325
Said descreve a proibição da língua árabe na Argélia, como língua formal de ensino e administração, durante
a colonização francesa. Após 1962, a FLN o transformou na língua oficial e implantou um novo sistema de
educação árabe islâmica. A FLN promoveu uma política que absorveria toda a sociedade civil Argelina. Em três
décadas, houve um alinhamento da autoridade estatal e partidária a uma identidade recuperada que levou não só
a concentração da maioria das atividades políticas nas mãos de um único partido, como a destruição da vida
democrática. Por consequência formou-se uma direita favorecendo uma identidade Argelina muçulmana baseada
em princípios corânicos, a lei da Sharia. A década de 90 representou o ápice de uma crise política com a
anulação das eleições e uma divisão na sociedade que inviabilizava a consolidação do estado de direito.
206
326
O secular para Said é quase uma forma de materialismo histórico, pois a crítica deve ser entendida como uma
forma de minimizar os rótulos de identidade e remeter à produção do conhecimento ao contexto no qual ela se
insere.
207
remete ao problema da História na obra de Said, que chamou a atenção dos críticos mais
contundentes da sua obra.
O conflito em torno da conceitualização da História327, especificamente o problema da
história contínua ou da história contingente como um processo dinâmico constitui um dos
pontos polêmicos da obra do autor em questão. As referências a Vico nos oferecem pistas do
que Said entende por história. O princípio do verum ipsum factum ou a capacidade de
conhecer a partir do que já foi realizado pelo homem indica a concepção de história em Vico.
O autor italiano fala de um resgate da expressão sapienza poética, inserida na capacidade do
ser humano para criar conhecimento, em oposição à absorção de forma passiva, reativa e
embotada.
A crença de Vico no conhecimento e na origem deste pela mente humana, significa
que o homem é a medida da percepção das coisas. O conhecimento humanista origina-se do
pensamento primitivo, denominado de poético, se desenvolve e torna-se filosófico. O
paradoxo do seu pensamento ocorre quase como uma entropia, aquilo que o constitui, dada a
sua ilimitada dimensão, pode solapar em função da “indefinida natureza da mente humana”.
Percorrendo esses três lugares lógicos; intuição, percepção e reflexão, foi possível
ao pesquisador das coisas humanas redescobrir os tempos humanos, priemeiro o
fabuloso, deposi o obscuro e, finalmente, o histórico. Este desenvolvimento dialético
do pensamento, experimentado pelo filósofo, aparece em um dos axiomas da
Ciência nova: os homens primeiro sentem sem perceber, depois percebem com
ânimo perturbado e comovido, finalmente refletem com a mente pura.328 (GUIDO,
2004, p.95)
327
O próprio conceito de História ao ganhar um novo sentido no contexto do século XVIII permite com que haja
uma percepção da dupla direção entre linguagem e mundo. O século XVIII é um marco para a inauguração de
um duplo significado do conceito de história que representa simultaneamente uma sequência unificada de
eventos, constitutiva da marcha da humanidade, assim como seu relato. O caráter plural da história se converte
numa acepção particular e perde a sua identidade de exemplo moral para os homens. O conceito de História
articula muitos sentidos: a soma de todas as histórias possíveis, o seu campo empírico, o relato e o pensamento.
Na língua alemã, a categoria de Geschichte (História) teve uma trajetória teórica diferenciada que visa articular
muitos sentidos entre si, numa convergência entre objeto e sujeito. A partir desse duplo sentido, a escola
histórica alemã, entendendo a História como ciência, cujo objeto seria o passado, elevou a História como uma
ciência da reflexão.A partir do século XVIII, quando a História torna-se um conceito reflexivo, amplia-se a
incomensurabilidade entre a intenção e o resultado, isto confere um sentido enigmático à expressão “fazer a
História” e, consequentemente amplia as possibilidades de um futuro aberto. O alcance filosófico das dimensões
temporais (passado, presente e futuro) foi deslocado por uma temporalização que vincula essas três categorias de
forma menos linear e restrita.
328
GUIDO, Humberto, Giambattista Vico, a filosofia e a educação da humanidade, Petrópolis: Editora Vozes ,
2004.p.95.
208
329
Alguns teóricos que analisam a obra de Vico ressaltam a atualidade do seu realismo. O humanismo de Vico
leva em conta os desígnios divinos, embora reconheça que a criação humana é passível de ser analisada e
conhecida, o que constitui elementos formadores das ciências humanas. Vico e sua metafísica atestam a
existência de Deus, justificada em si mesma, de tão evidente, não precisa ser comprovada embora predomine nos
seus interesses a força providente da mente humana.
330
HOBSBAWM, Eric, Nações e nacionalismos desde 1780, programa, mito e realidade SP: Editora Paz e
Terra, 1990.
331
Para o autor de Nações e Nacionalismos, a nação se corporifica tendo como principal referência o passado. O
que justifica uma nação em relação à outra é o passado, e os historiadores são as pessoas que elaboram a
fundamentação e o rastreamento dos traços que preenchem essa existência. Funciona como uma mitologia
retrospectiva. Os movimentos nacionais do terceitro mundo se baseam nas tradições liberais e revolucionárias
democráticas do século XIX.
332
Ibid, p. 18.
209
333
A trajetória do movimento nacionalista obedece à lógica compreensiva do professor da Universidade Carlos
em Praga, Miroslav Hroch. Este teria publicado, um estudo comparativo pioneiro sobre os movimentos
nacionalistas dos países das Europas Central e Oriental. O autor definia as nações como conformações
antropológicas com nexos fracos entre a ascensão do nacionalismo e a moderna sociedade industrial. O autor em
questão trabaalha com uma tipologia de fases do nacionalismo. A fase A, corresponde ao período do século XIX
e foi cultural, literário e folclórico sem implicações políticas diretas. Na fase B, já existe uma militância
sistemática da ideia nacional e o inicio das campanhas políticas a favor dessa ideia. Hosbsbawm se declara
instigado por estudar a chamada fase C, que representa o momento em que os programas adquirem sustentação
de massa.
210
A diferença do caráter nacional é um fato empírico, que só pode ser negado por uma
ideia doutrinária que vê apenas aquilo que quer ver e não enxerga o que todos os
outros veem. Apesar disso, porém, fizeram-se esforços reiterados para negar a
diferença do caráter nacional e afirmar que o que distingue as nações é apenas sua
língua. Essa opinião é compartilhada por muitos teóricos que se baseiam na doutrina
católica. Foi extraída da filosofia humanista do iluminismo burguês e apropriada por
muitos socialistas, que procuraram usá-la para defender um cosmopolitismo
prolétário que, como veremos, representa a posição inicial e primitiva da classe
334
BAUER, Otto, A Nação, In: BALAKRISHNAN, Gopal, Um mapa da questão nacional, RJ; Editora
Contraponto, 2000.
211
335
Ibid , p. 63.
212
personalização é que as pessoas encaram sua nação – ou seja, elas mesmas – como
um corpo único, num sentido mais do que metafórico. Se algum infortúnio atinge
uma pequena parte da nação, ele se faz sentir por toda ela, e, se algum ramo do
grupo étnico – mesmo que viva muito longe da “nação mãe” – é ameaçado de
assimilação, os membros da nação personalizada podem vivenciar isso como uma
amputação no corpo nacional.336 (HROCH, 2000, p.98)
336
HROCH, Miroslav, “Do movimento nacional à nação plenamente formada: o processo de construção nacional
na Europa, In: BALAKRISHNAN, Gopal (org.), Um mapa da questão nacional, SP: Editora Contraponto, 2000.
P.98.
213
centralizadas e de elementos políticos morais. Para Gellner a humanidade viveu três etapas no
devir histórico, uma pré-agrária, uma agrária e a industrial. A última etapa prepara as
condições históricas para o desenvolvimento do nacionalismo.
338
GELLNER, E., O advento do nacionalismo e sua interpretação: os mitos da nação e da classe, In:
BALAKRISHNAN, Gopal (org.), Um mapa da questão nacional, SP: Editora Contraponto, 2000. pp. 152/153.
339
BREUILLY, Jonh, Abordagens do nacionalismo, IN: BALAKRISHNAN, Gopal (org.), Um mapa da questão
nacional, SP: Editora Contraponto, 2000.
215
do nacionalismo como função abrange uma abordagem mecanicista que, nas diversas
conjunturas históricas parece inviável.
O nacionalismo como um tipo de narrativa pressupõe a existência de um começo,
meio e fim cuja linearidade encaminha o movimento por meio do progresso em que a
culminância é projetada no futuro. A narrativa é a forma mais adequada dos tipos de relatos
históricos em que o elemento nacional fornece as fronteiras, enquanto a principal trama
histórica narra o surgimento, a expansão e o sucesso dos movimentos nacionais.
Breuilly parece se posicionar ao definir o nacionalismo como um fenômeno moderno.
Sua definição precisa levar em conta as doutrinas, as políticas de estado e os sentimentos de
pertencimento. Quanto mais a modernização política se torna solidamente desenvolvida mais
intensamente são constituídas as oposições nacionalistas.
340
Ibid, p. 180.
341
SMITH, Anthony D., The Nation in History, Historiographical debates about Ethnicity and Nacionalism,
University Press of New England, 2000.
342
HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence, A Invenção das tradições, SP: Paz e Terra, 1984.
216
343
Benedict Anderson é um especialista em política e história da Indonésia e do sudoeste asiático, estudou na
universidade de Cambridge e se tornou professor emérito da Universidade de Cornell. Autor do clássico;
Comunidades Imaginadas, reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. Nessa obra desenvolve o
conceito de comunidades imaginadas onde fundamenta a análise sobre os nacionalismos contemporâneos. Sua
afirmação de que a condição de nação é o valor de maior legitimidade universal na história contemporânea. A
nação é uma comunidade imaginada que pode ser limitada e soberana e tem a sua essência marcada por uma
conjuntura cultural. Inspirado na obra de Walter Benjamin intenciona demonstrar como os discursos da
nacionalidade são caracterizados pela noção de simultaneidade, que inaugura uma noção de tempo vazio e
homogêneo.
344
Said faz referências freqüentes à obra de Anderson e apresenta criticas a sua periodização linear e
eurocêntrica, embora faça referências a ideia de comunidade imaginária para definir o sentido de identidade a
partir de determinados traços que se enquadram nessa denominação. Em síntese, Said adere aos mecanimos
formativos da comunidade imaginária, mas rejeita com veemência o tipo de periodização linear que Anderson
desenvolve. As criticas a teoria de Anderson são equivalentes as refutações aos teóricos do nacionalismo já
citados, tais como Eric Hobsbawm e Ernest Gellner.
217
345
ANDERSON, Benedict, Comunidades Imaginadas, Reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo, SP;
Editora Companhia das Letras, 2008. p. 69.
218
346
Benedict Anderson escreve uma jusitificativa no início do capítulo: “Censo, mapa , museu”, retificando a sua
colocação na edição em questão do livro . ANDERSON, Benedict, Comunidades Imaginadas, Reflexões sobre a
origem e difusão do nacionalismo, SP; Editora Companhia das Letras, 2008. P. 226 .
347
Devemos recorrer ao pósfacio do livro Comunidades imaginadas, para situar Benedict Anderson no conjunto
de debates sobre os nacionalimos. Ele mesmo fornece indicações do sentido da escrita do seu livro. O autor
afirma que um dos objetivos da escrita do livro se situa no reforço às teses de Tom Nairn, um marxista
revisionista que procurava criticar as interpretações marxistas clássicas sobre o nacionalismo, por meio de um
estudo sobre o Reino Unido, aqui visto por meio de um diagnósitco do seu processo de decadência enquanto
império. Anderson afirmava que seu objetivo era reforçar, ainda que de forma crítica, as teses de Nairn. Outro
objetivo presente na escrita é apresentado de forma explícita no pósfácio, teria como princípio a deseuropeização
do estudo teórico sobre o nacionalismo. Apesar da excelência dos trabalhos interlocutores, a obra de Gellner,
Hobsbawn e Smith, pareciam demasiadamente eurocêntricas para estabelecer uma interlocução. A proposta de
Anderson tinha como propósito estabelecer uma anáise sobre as sociedades, culturas e línguas da Indonésia,
Tailândia/ Sião. Anderson apresenta o dilema da oscilação, em forma de armadilha, entre a localização afinada
com o romantismo do século XIX, e a condenação de Partha Chatterjee quanto aos nacionalismos anticoloniais
serem vistos como derivativos.
220
348
BHABHA, Homi, DissemiNation: Time and narrative, and tha margins of the modern nation In: Nation and
narration, NY: Routledge, 2001.
349
BHABHA, Homi, DissemiNation: Time and narrative, and tha margins of the modern nation In: Nation and
narration, NY: Routledge, 2001. P.192. “Estou buscando escrever a nação ocidental, como uma obscura e
ubíqua forma de viver o local da cultura. Esse local é mais aproximadamente temporário, do que
aproximadamente historicista; uma forma de viver que é mais complexa do que uma ‘comunidade’, mais
simbólica do que ‘sociedade’, mais conotativa do que ‘país’, menos patriótica do que pátria; mais retórica do que
razão de Estado, mais mitológica do que ideologia; menos homogênea do que hegemonia; menos centrada do
que cidadania, mais coletiva do que ‘o sujeito’; mais física do que civilidade; mais híbrida na articulação de
diferenças culturais e identificações – gênero, raça ou classe – do que pode ser representada em qualquer
estrutura de antagonismo social hierárquica ou binária.”(tradução nossa)
350
CHATERJEE, Partha, Their own words? An Essay for Edward W. Said, In: SPRINKER, Michael,
Edward W. Said, a critical Reader, Massachusetts: Blackwell Publishers, 1992.
351
Partha Chatterjee nasceu em 1947, na província de Bengala Ocidental, próximo à cidade de Calcutá. Estudou
na Universidade de Calcutá obtendo a licenciatura em Ciências Políticas em 1967. Esse período se constituiu
221
essencial na História Intelectual Indiana. A geração intelectual contemporânea à formação de Chatterjee havia
sido formada na ambiência do movimento nacionalista, e antibritânico dos anos 30 e 40. Conviviam duas
tendências do movimento nacionalista: o nacionalismo liberal, ligado ao partido do Congresso que estava no
poder desde 1947, e a de um marxismo vinculado à URSS, que entraria em crise nos anos 60. O movimento
camponês indiano amadureceu um projeto de resistência em função da decepção com a ausência de
redestribuição de terras após a independência da Índia. Essse movimento deu origem ao movimento Naxalita,
com conteúdo fortemente maoísta, que procurava juntar estudantes e camponeses numa perspectiva
revolucionária. A Universidade de Calcutá onde Chatterjee terminou sua licenciatura configurou-se um dos
principais cenários universitários desse movimento. Chaterjee doutorou-se nos EUA na Universidade de
Rochester e retornou à Índia para lecionar na Universidade de Amritsar, e posteriormente no centro de estudos
de Ciências Sociais de Calcutá. Esse centro abrangia duas tendências intelectuais, uma de fundamentação
marxista e outra marcada pela tendência seguida pelo movimento Naxalita. No interior do segundo grupo
emergiu a figura chave dos estudos subalternos, Ranajit Guha que formou um grupo nos anos 70, integrado por
estudiosos que procuravam revisar a historiografia Indiana da época, entre eles; Dipesh Chakrabarthy, Shahid
Amin, Gautma Badra e Partha Chatterjee, com formação mais avançada em teoria e filosofia política. Chatterjee
ganhou destaque na historiografia indiana com dois artigos na coletânea Subaltern Studies. Esse grupo teve
grande repercussão na historiografia do nacionalismo com a publicação do livro Nationalist Thought and the
colonial world, livro que desempenhou papel central nos debates sobre o nacionalismo.
352
O debate sobre o nacionalismo como um fenômeno derivativo leva em conta a relação entre Imperialismo e
dominação colonial. Para Ernest Gellner a mesma modernidade “esclarecida” que criava o nacionalismo, serviu
como base da dominação europeia. Partha Chaterjee discorda que a origem esteja na Europa, e que os
movimentos nacionalistas pós-coloniais sejam experiências miméticas e, portanto, menos autênticas. Seu
trabalho alerta para os perigos de transpor os resultados de um desenvolvimento histórico específico, da Europa
ocidental, a situações de outros países que não necessariamente compartilham as mesmas pré-condições
históricas.
222
Certamente vimos muitas tentativas desse tipo nos campos da literatura e das artes,
de construir uma modernidade que seja diferente. De fato, poderíamos dizer que esse
é precisamente o projeto cultural do nacionalismo: produzir uma modernidade
distintivamente nacional. Obviamente, não há uma regra geral que determine quais
seriam os elementos da modernidade e quais os emblemas da diferença. Houve
muitos experimentos em muitos campos; eles continuam ainda hoje. Meu argumento
era o de que esses esforços não se restringiram apenas aos domínios supostamente
culturais da religião, literatura e artes. A tentativa de encontrar uma modernidade
diferente ocorreu mesmo no campo presumivelmente universal da ciência. 353
(CHATERJEE, 2004, pp.61/62)
353
CHATTERJEE, Partha, Colonialismo, Modernidade e Política, Salvador: EDUFBA, 2004. pp. 61 e 62.
223
354
Procuramos identificar em nota de pé de página a origem desse grupo intelectual indissociado do intectual
Partha Chaterjee. Procuramos definir suas características teóricas. Os estudos subalternos se apropriam da teoria
marxista, especialmente da obra do filósofo A. Gramsci e sua reflexão sobre as formas de dominação que
buscavam pensar as relações entre o neocolonialismo e a contemporaneidade. As primeiras obras, representativas
dessa corrente, fundada formalmente em 1982, apareceram no ano de 1983, são elas; Aspectos elementares da
insurreição camponesa na Índia, de Ranajit Guha e quatro livros em forma de coletâneas que sintetizavam o
debate dessa perspectiva denominado Subaltern studies publicados pela Oxford University Press. Guha localiza
a origem dessa perspectiva na decepção dos caminhos políticos vividos pela Índia após a descolonização.
Quando este autor critica a historiografia nacionalista ou colonialista é no sentido de apontar as fragilidades de
uma interpretação que insiste no sentido linear da história, buscando suprimir a historicidade da resistência
subalterna.
224
355
APPIAH, Kwame Anthony, Na casa de meu pai, A África na filosofia da cultura, RJ: Editora Contraponto,
2010.
356
O filósofo Kwame A. Appiah, nascido em Gana, professor da universidade de Harvard produziu várias
reflexões que versavam sobre o esforço de revisitar criticamente a pespectiva essencialista de um contraponto ao
racismo. A armadilha de se enveredar por uma afimação mítica e primordialista da África, fez o autor pensar as
possibilidades e riscos da elaboração de uma única identidade africana no fim do século XX.
225
Penso que quando virmos o contexto mais amplo com maior clareza, ficaremos
menos propensos às angustias do nativismo, menos inclinados a ser seduzidos pela
retórica da pureza ancestral. Há mais de um quarto de século, Frantz Fanon expôs o
artificialismo dos intelectuais nativistas, cujo populismo falacioso só faz afastá-los
do Volk [povo] que eles veneram. 357 (APPIAH, 2010, p.95)
357
APPIAH, Kwame Anthony, Na casa de meu pai, A África na filosofia da cultura, RJ: Editora Contraponto,
2010. Página 95.
358
APPIAH, K A., Será o pós em pós- modernismo, o pós em pós- colonial? pp.. 17/18.
359
CHATERJEE, P. La Nación en Tiempo Heterogéneo y otros estudios subalternos, Buenos Aires: Siglo XXI
Editores, 2008.
226
360
Para Benedict Anderson, a formação das nações tem origem no desenvolvimento da imprensa como um
dispositivo-chave para a elaboração das comunidades imaginadas. A imprensa e os romances promoveram o
compartilhamento de um espaço e um tempo em comum e esta teria sido a condição básica para o processo de
formação das nações. As comunidades imaginadas estariam conformadas no chamado tempo homogêneo.
227
Es decir, la comunidad surge a razón de todo aquello que fue excluido de los
paradigmas de los Estados nacionales contemporáneos. Los excluídos forman
comunidades, o se involucran com ellas, a partir de la constatación de un poder que
los margina. Sólo hay comunidad en la medida em que hay otro que posee um poder
que la excluye. Dicho de outra manera: la formación de los Estados nacionales
contemporáneos ha causado una fragmentación em la sociedad, y todos los grupos
excluidos ( a veces llamados “minorias”, aunque en muchos casos son mayorías) y
todas las maneras distintas de “imaginar la nación” son los fragmentos que resultan
de la formación del Estado-nación moderno.361 (CHATTERJEE, 2008, p.15)
Chatterjee associa sua reflexão sobre o nacionalismo a uma análise crítica sobre a
democracia contemporânea que ele considera como uma “política dos governados”. O autor
estabelece uma oposição entre a ideia de nacionalidade cívica, baseada nas liberdades
individuais e na igualdade dos direitos a demandas particulares, fundamentadas na identidade
cultural.
O autor recupera criticamente o ideal de nacionalismo cívico tal como caracterizado
em Anderson362, e renomea, seguindo o viés marxista, o “tempo vazio e homogêneo” como
um tempo do capitalismo. A dissonância em relação a esse “tempo do capitalismo” é vista
como um resquício de um tempo primitivo que pode ser denominado de tempo pré-moderno.
A culminância do capitalismo como telos necessário e previsto na modernidade
enquadra todos os registros de resistência no campo do arcaico e atrasado. O interlocutor
privilegiado de Chatterje363, é o autor Benedict Anderson, não só no livro Comunidades
Imaginadas, como na reflexão presente na obra The spectre of comparisons, onde
reconhecemos uma distinção entre nacionalismo e políticas de etnicidade. São solidariedades
361
CHATTERJEE, Partha, La Nación en Tiempo Heterogéneo y otros estudios subalternos, Buenos Aires:
Siglo XXI Editores, 2008. P. 15 “É preciso dizer que a comunidade surge a partir do que foi excluído dos
paradigmas originados nos estados nacionais contemporâneos. Os excluídos formam comunidades, ou se
misturam com elas, a partir da constatação que os marginaliza. Somente existe uma comunidade na medida em
que, há outro que possui um poder que os exclua. Dito de outra maneira: a formação dos estados nacionais
contemporâneos causou uma fragmentação na sociedade e em todos os grupos excluídos (as vezes chamaos de
minorias) ainda que em muitos casos seja maioria) e todas as maneiras distintas de imaginar a nação são os
fragmentos que resultam na formação do estado-nação moderno.” (tradução nossa)
362
Benedict Anderson se basea na formulação teórica de Walter Benjamin e a utiliza para demonstrar as
possibilidades materiais das formas anônimas de sociabilidade, condicionadas pela sociabilidade do capital
cultural por meio do advento da imprensa, pela elaboração ficcional dos romances. As nações teriam sido
imaginadas na sua existência. Estas comunidades imaginadas adquiriram uma forma concreta que poderiam ser
ilustradas através do chamado “capitalismo impresso”.
363
Chatterjee dedica vários capítulos do seu livro La nacion em tempo heterogêneo y otros estúdios subalternos,
ao debate sobre a tese do nacionalismo tal como desenvolvida por Benedict Anderson. O capítulo 4,
denominado, “La utopia de Anderson” retoma o debate sobre as distinções entre o nacionalismo e as políticas de
etnicidade.
228
mais ou menos extensas que conformam atos de solidariedade política. Anderson atribui um
caráter positivo aos nacionalismos e um aspecto negativo e conflitivo às políticas de
etnicidade.
O problema de Anderson para Chatterjee é que ele incorpora o universalismo político
típico da modernidade, o que indica a ideia de um mundo único em essência, cuja atividade
comum denominada política pode ser levada a várias partes. A modernidade encarna um
espaço-tempo homogêneo e vazio. A experiência histórica do nacionalismo na Europa
Ocidental, na América e Rússia proporcionou aos posteriores nacionalismos um conjunto de
formatos ou matrizes a partir dos quais as elites nacionalistas na Ásia e África escolheriam
suas respectivas trajetórias.
Chatterjee refuta essa concepção resignificando essa homogeneidade como o tempo
utópico do capitalismo, que vincula o passado, o presente e o futuro e se transforma em
condição possibilitadora para uma idealização historicista da identidade, da nacionalidade e
do progresso. A hegemonia do utópico na dimensão desse tempo vazio é questionada pelo
autor indiano na medida em que a vivência e recepção das experiências pelos diversos grupos
pode ser vivenciada de diferentes formas.
A rejeição ao presuposto da universalidade da comunidade imaginada se encaminha
para o argumento que o mundo pós-colonial não deve ocupar o lugar de um mero consumidor
perpétuo da modernidade. Chegamos ao extemeo de imaginar uma espécie de roteiro para a
resistência anticolonial. As imaginações são incluisive colonizadas.
Los más poderosos, así como los más creativos resultados de la imaginación
nacionalista en Ásia y África, radican non solamente em una identidad diferente,
sino más bien em uma diferencia respecto a los formatos modulares conformadores
de sociedades nacionales propagados por el Ocidente moderno. Cómo podemos
ignorar esto, sin reducir la experiência del nacionalismo anticolonial a una caricatura
de si misma?364 (CHATERJEE, 2008, p.92)
364
Ibid, p. 92. “Os mais poderosos, assim como os mais criativos resultados da imaginação nacionalista na Ásia
e na África, radicam não só uma identidade diferente, como também em uma diferença a respeito dos formatos
modulares conformadores das sociedades nacionais propagadas pelo Ocidente Moderno. Como podemos ignorar
isto, sem reduzir a experiência do nacionalismo anticolonial a uma caricatura de si mesmo?” (tradução nossa).
229
Chaterjee trabalha com exemplos para mostrar que a imaginação nacional se encontra,
no caso da Índia, no que se denomina “campo espiritual”. Se a nação é uma comunidade
imaginada, no campo do espiritual, ela adquire sua razão de ser. Na sua essência, a nação
pode ser soberana, ainda quando o estado está em mãos do poder colonial. A dinâmica deste
projeto está ocultada nas histórias convencionais, nas quais o nacionalismo começa com a luta
pelo poder político.
Percebemos nas teses de Chaterjee sobre a Índia e o seu nacionalismo pós-colonial, o
uso permanente de categorias e mecanismos epistemológicos de compreensão apropriados da
tese de Benedict Anderson. Embora esta seja refutada em sua essência, o autor indiano
procura utilizar algumas categorias equivalentes para analisar o nacionalismo pós-colonial
asiático.
A equivalência do capitalismo impresso na Índia pode ser vista através da análise da
aparição de uma crescente rede de escolas de ensino médio e da conversão da universidade de
Calcutá em uma instituição marcadamente nacional.
O fator de atração pela teoria de Anderson caminha para uma possibilidade explicativa
que extrapole as instâncias oficiais do estado. No contexto indiano, uma história do
nacionalismo como movimento político que extrapole e não se limite à luta pelo poder
colonial, pelo domínio exterior, ou seja, pelo domínio material do estado, parece ser bem
conveniente. O mecanismo de resistência ao modelo de nacionalismo europeu ou americano
passa por se considerar que os princípios de soberania e cultura nacional podem se constituir
em outras esferas para além do estado.
O projeto hegemônico de nacionalismo não podia ser indiferente às distinções de
língua, religião, casta ou classe. O projeto era uma normalização cultural, um projeto
hegemônico burguês com diferenças. No caso da Índia, haveria que se transfomar o espaço de
autonomia em um lócus de subordinação colonial associado aos mecanismos universais
européias.
O problema da atrofia da libertação nacional guarda uma dívida à submissão do
nacionalismo às velhas fórmulas do estado moderno europeu. Chaterjee insiste que o seu
ponto central não se limita a demarcar os espaços diferenciados que podem romper com os
mecanismos totalizadores da historiografia nacionalista.
Sua tarefa consiste em privilegiar as historicidades “mutuamente condicionadas, as
formas específicas que surgiram por um lado, no espaço definido pelo projeto hegemônico da
230
modernidade nacionalista e, por outro lado nas inumeráveis resistências fragmentadas até o
projeto normalizador.” 365
Longe de um simples contraponto à tese da universalidade européia, pela
demonstração do excepcionalismo indiano, Chatterjee descreve sua tarefa como algo mais
complexo, que busca a identificação das condições discursivas que tornaram possíveis as
teorias sobre o particularismo indiano. O autor pretende, em linhas gerais, reclamar um
espaço autônomo de liberdade de imaginação, em resposta a um determinado campo de poder.
Chatterjee afirma que a descolonização foi seguida por uma crise do estado do terceiro
mundo e pelas guerras culturais que se identificaram com o chauvinismo com o preconceito
étnico e por regimes frágeis politicamente com problemas de corrupção.
As aspirações nacionalistas vieram contaminadas por políticas de etnicidade com
efeitos perversos. A refutação à tese de Anderson aparece nesse diagnóstico na medida em
que, para o teórico europeu, os movimentos nacionalistas e as políticas de etnicidade
aparecem em lugares distintos.
Reconhecemos o problema de abordar o enfoque do capitalismo e da modernidade de
uma só perspectiva, a partir de uma dimensão de espaço-tempo da vida moderna. Homi
Bhabha é citado pela descrição da inserção da nação no marco da temporalidade e por definir
a narrativa da nação no inteior de uma ambivalência com planos temporais que interagem. A
pedagogia nacional está em processo de construção e a unidade do povo e sua respectiva
identificação com a nação deve ser sempre resignificada, repetida e encenada.
Chatterjee ilustra com exemplos do mundo pós-colonial o chamado tempo denso e
heterogêneo. O afastamento da hipótese da convivência das muitas temporalidades representa
a negação da ratificação do utopismo da modernidade ocidental. Avançando na inversão dessa
utopia da modernidade ocidental como paradigma central, o autor citado chegaria a afirmar
que o mundo pós-colonial representava a “maioria” do mundo moderno.
Em síntese, o argumento central em questão se encaminha para o contraponto
exemplificado historicamente da tensão entre a dimensão utópica do tempo homogêneo do
capitalismo e o contexto real, verossímel, do tempo heterogêneo da governabilidade, assim
como os efeitos produzidos por uma tensão entre os esforços por narrar à nação.
Chatterje utiliza o debate sobre o nacionalismo na Índia, durante a colonização, e no
período de formação da Índia descolonizada, para reafirmar que a nação existe em meio a um
tempo heterogêneo.366
365
Ibid, p. 104. ( tradução nossa)
231
366
Em termos de limites e demarcação do nosso debate, não caberia entrar na historicização do nacionalismo
indiano que o autor realiza, além da análise das múltiplas reflexões em torno da problemática da formação
nacional.
367
Ibid, pp. 83/84.“A política democrática da nação oferece possibilidades substantivas de obter maior
igualdade, mas só através de uma representação adequada dos grupos não privilegiados no aparato político.
Desta maneira, uma política estratégica de grupos, classes, comunidades, etnias e séries fechadas de todo tipo é
inevitável. Mas a homogeneidade não é, apesar disto abandonada. Ao contrário, em contextos específicos pode
oferecer uma chave que permita encontrar soluções estratégicas para problemas de heterogeneidade
inconciliável, como no caso da divisão da Índia. A diferença das reivindicações utópicas do nacionalismo
universalista, a política da heterogeneidade nunca pode aspirar ao prêmio de encontrar uma fórmula única que
sirva a todos os povos em todos os tempos: suas soluções são sempre estratégicas, contextuais, historicamente
específicas, e inevitavelmente, provisórias.” (tradução nossa)
232
Bhabha define o tempo da nação como indisciplinado. Supomos que para deslocar a
ideia de uma temporalidade progressiva e linear, a ideologia aparece como vacilante, o que
nos transmite a impressão de uma indefinição crítica e crônica da cultura nacional. Essa
ambivalência é renomeada em vários autores; em Gellner são os trapos e retalhos da vida
cotidiana, em Said “a energia não contínua da memória histórica vivida e da subjetividade”.
O grande problema nessa definição da liminaridade do nacionalismo, é que parte-se de
um extremo a outro, da superação da demarcação historicista para um sintoma de uma
etnografia do contemporâneo. A dicotomia trabalhada por Bhabha vai do que ele denomina
por pedagógico fundado na tradição contínua de um povo até o performativo da narrativa do
entre lugar.
Bhabha recorre novamente a Said para fortalecer a sua ideia de cultura nacional como
performativa. Said menciona a hermenêutica da mundanidade realizada a partir das fronteiras
liminares e ambivalentes que articulam os signos da cultura nacional, “como zonas de
controle ou de renúncia de recordação e de esquecimento, de força ou de dependência, de
exclusão ou de participação.372
Bhabha utiliza trechos do livro Os Condenados da Terra de Frantz Fanon para
exemplificar, ou melhor, ilustrar a incomensurabilidade da cultura nacional essencialista.
Fanon é reivindicado para contestar a apropriação intelectual da “cultura do povo” como um
discurso de representação fixado ou reificado. Fanon é o canal de defesa teórica do chamado
tempo incerto da cultura nacional. O eterno confronto de um conhecimento pedagógico de
uma narrativa nacional continuísta e a chamada “zona de instabilidade oculta” do ethos
popular aparece na narrativa de Bhabha.
371
Ibid, p. 207.
372
Said apud BHABHA, Homi K., DissemiNação, o tempo e a narrativa e as margens da nação moderna In: O
local da Cultura, BH: Editora da UFMG, 2001 p. 210.
234
373
O artigo nasceu de uma conferência realizada na Sorbonne em 1882. Este artigo se constituiu um texto de
referência para os debates sobre a nação e o nacionalismo. Renan contestava a incorporação da Alsácia e Lorena
pela Alemanha. O evento histórico em questão, levou-o a formular argumentos contrários a política de
predominância racial particular da Alemanha da época. Sua constestação passava pela questão ideológica que
orientava o nacionalismo alemão.
235
374
RAO, Rahul, Postcolonial Cosmopolitanism, Between home and the World, Tese de doutorado, [Dphil in
Internacional Relations in the department of Politics and Internacional relation], University of Oxford, 2007.
375
Ibid, p. 163.
376
RAO, Rahul, “Born Sneerers or ironic nacionalists?” In: Third world protest, between home and the world, N.
York: Oxford University Press, 2010.
237
377
Rahul Rao entende cosmopolitismo como uma doutrina sobre cultura que sugere que a identidade não requer
pertencimento a um detemrinado grupo cultural cujas fronteiras são claras e cuja estabilidade e coesão são
asseguradas. Culturas são entendidas não como entidades discretas mas como sistemas de ideias , crenças e
práticas que são cosntantemente em fluxo, modificando e sendo modificado na sua interação com outras culturas.
238
378
Ibid, Pp. 134 e135. “Said condena divisões como ‘o esforço desesperado e de última hora de uma ideologia
decadente de separação, a qual tem atingido o sionismo e o nacionalismo palestino, ambos os quais não
superaram o problema filosófico do “outro”, de aprender como conviver, como oposição ao desprezar, o “outro”,
239
podemos ver na defesa de Said para um Estado único, a tentativa final de reconciliação de seus compromissos
cosmopolita e nacionalista. Ainda assim é essencial reconhecer que mesmo a solução de Estado único não
dispensa a necessidade de consciência nacionalista. Apesar da presente demanda não ser um Estado separado,
ainda será necessária uma luta nacionalista para obter reconhecimento e igual proteção antes da lei para uma
identidade por muito tempo negada e suprimida dentro do molde de um Estado único.” (Tradução nossa)
Para um maior detalhamento do debate sobre o Said nacionalista e o Said Cosmopolita ver dois trabalhos:
379
MUFTI, Aamir R., Comparatismo Global, In: BHABHA, Homi e MITCHELL, W. J.T. (Comps.), Edward Said,
Continuando la conversación, Buenos Aires: Editora Paidos, 2006. RAO, Rahul, Postcolonial Cosmopolitanism,
Between home and the World, Tese de doutorado, [Dphil in Internacional Relations in the department of Politics
and Internacional relation], University of Oxford, 2007.
380
Frantz Fanon, psiquiatra, escritor de origem antilhana, nasceu na Martinica em 1925, aluno e discípulo de
Aimé Cesáire. Aos 19 anos, deixou a Martinica para servir a forças armadas francesas. Decepcionado com o
racismo nas forças armadas, e desencantado com o suposto universalismo francês, resolveu voltar para a
Martinica. Em 1947 ingressou na Universidade de Lyon, onde escreveu Pele negra, máscaras brancas, como um
estudo sobre as patologias do racismo colonial. Em 1953 optando pela especialidade médica da psiquiatria
aceitou um emprego na Argélia, ocupada pela França. Abandonou o seu posto de médico e integrou a FLN, Foi
expulso pelas forças francesas da Argélia, e integrou o grupo ligado à frente pela libertação da Argélia no exílio
em Túnis. Em 1959 escreveu a Dying colonialism, uma coleção de longos ensaios marcando o quinto ano de luta
pela libertação da Argélia. Em dezembro de 1960, numa viagem a Mali, Fanon foi diagnosticado com leucemia.
Este escritor faleceu precocemente em 1961, com 36 anos, nos EUA, para onde foi em busca de tratamento para
sua doença. Existem quatro livros impressos sob sua autoria. Os condenados da terra (1961), Pele negra,
Máscaras brancas (1952), L` àn V de la révolution algérienne (1959), subsequentemente lançado como
Sociologie d`une révolution, L` àn V de la révolution algérienne e a coletânea publicada postumamente pela sua
esposa, Josie Fanon, Pour la revolution africaine (1964), uma antologia de vários escritos. Estamos trabalhando
com a edição em espanhol desse livro, FANON, Frantz, por La revolución africana, escritos políticos, Mexico:
240
Fondo de cultura econômica, 1975. O livro L` àn V de la révolution algérienne possui uma edição em inglês com
o título A Dying colonialism, N. York: Grove Press, 1965. Estamos trabalhando com esta edição.
381
Os Condenados da terra, livro originalmente publicado em françês, postumamente, em 1961 constitui a
principal referência de Fanon na obra de Said. O prefácio de Jean Paul Sartre (1961) se tornou consagrado pelo
caráter panfletário favorável à luta anticolonial e pela análise valorizadora da obra de Fanon. Sartre se referia a
imposição da cultura ocidental e do falso humanismo desmascarado com processo de dominação colonial da
Europa, na África e Ásia. Sartre fala das consciências infelizes que “se emaranham nas contradições” e
menciona a fala de Fanon sobre uma Europa que cavava sua própria ruína. O filósofo francês abordava a
decadência, uma Europa que na metáfora orgânica agonizava no seu humanismo paradoxal. Fanon denunciava as
artimanhas e estratégias coloniais, além de analisar os elementos de complacência dos agentes coloniais com a
elite colonial. A violência colonial é denunciada como um mecanismo desumanizante. Sartre analisa a violência
que emana da resistência, como a possibilidade de recomposisão existencial do homem colonizado. Trata-se de
um reencontro com a própria identidade. O reconhecimento do caráter relevante do prefácio uma vez que o livro
não havia sido escrito para os europeus promove a perspectiva dialética na sua escrita. Este autor faz um apelo
para que os europeus se descolonizem e que extirpem os colonos do seu interior. O manifesto sobre o
desvelamento do humanismo europeu é o tema central do autor. Sartre menciona o falso postulado do
universalismo que encobriria práticas reais. A França precisa ser renomeada para o nome de uma neurose,
diagnosticada na contingência história da descolonização.
382
A obra de F. Fanon é considerada um marco na trajetória do pensamento pós-colonial. Reconhecemos a
importância da revisão em torno de uma suposta modenrnidade universal, marco eurocêntrico. Fanon mostra em
contraponto a lógica pós-colonial, uma explicação em torno da visão sobre a expropriação.
383
FANON, Frantz, Os Condenados da terra, RJ; editora Civilização brasileira, 1979. P. 26.
241
Então o colonizado descobre que sua vida, sua respiração, as pulsações de seu
coração são as mesmas do colono. Descobre que uma pele de colono não vale mais
do que uma pele de indígena. Essa descoberta introduz um abalo essencial no
mundo. Dela decorre toda na ova e revolucionária segurança do colonizado. Se, com
efeito, minha vida tem o mesmo peso que a do colono, seu olhar não me fulmina,
não me imobiliza mais, sua voz já não me petrifica. Não me perturbo mais em sua
presença. Na verdade eu o contrario. Não somente sua presença deixa de me
intimidar como também já estou pronto para lhe preparar tais emboscadas que
dentro de pouco tempo não lhe restará outra saída senão a fuga. 385 (FANON, 1979,
p.34)
384
O primeiro capítulo do livro Os condenados da terra intitulado Da violência foi originalmente publicado, na
revista Tempos modernos, editada e dirigida por Jean Paul Sartre.
385
Ibid, p.34.
242
O nacionalismo é uma etapa a ser garantida, mas constitui-se ponto de partida e não
fase conclusiva. Para quem tem a identidade negada e adiada, é necessário assumir um lugar
entre algumas identidades. Said enquadra o nacionalismo como uma filosofia de identidade,
transformada em uma paixão coletivamente organizada.
A crítica ao separatismo e a falsa autonomia adquirida por meio de uma política de
identidade aproxima Said de Fanon no que tange à discrepância entre a realidade heterogênea
e o conceito de identidade nacional. O problema central em fanon se relaciona com a ideia de
temporalidade e com as distintas subalternidades representadas pelo outro.
O pertencimento a vários mundos, ser um árabe palestino e ao mesmo tempo um
norteamericano, portar uma dupla perspectiva, oferece um privilégio intelectual e
epistemológico ao nosso autor Palestino.
386
SAID, Edward W. , Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP: Companhia das Letras, 2003. P. 182.
243
Como se vê, não erramos ao pensar que um estudo da linguagem dos antilhanos
poderia nos revelar alguns traços do seu mundo. Dissemos no início, há uma relação
de sustentação entre a língua e a coletividade. Falar uma língua é assumir um
mundo, uma cultura. O antilhano que quer ser branco o será tanto mais na medida
em que tiver assumido o instrumento cultural que é a linguagem. 387 (FANON, 2008,
pp. 49/50)
387
FANON, Frantz, Pele Negra, Máscaras Brancas, Salvador: EDUFBA, 2008. pp. 49/50.
388
A missão colonial da França na Argélia produziu uma incompatibilidade entre a atuação de Fanon no hospital
de Blida-Joinville na Argélia colonial e sua consciência da necessidade de resistência. Fanon renuncia a sua
prática psiquiátrica nesse hospital e pronuncia que a missão colonial deveria ser incompatível com a prática ética
psiquiátrica. Se a psiquiatria é a técnica médica que objetiva habilitar o homem a não ser mais um estranho ao
seu meio e se o argelino permanece um alienado /estrangeiro em seu próprio país, o que provoca um absoluto
estado de despersonalização, existe algo de errado com a prática profissional do psiquiatra no contexto colonial.
245
reservada a meu irmão. Depois compreendi que ele quis simplesmente dizer: um
antisemita é seguramente um negrófobo. 389 (FANON, 2008, p.112)
A ontologia de Fanon fala de uma imanência negra, o que parece formar um paradoxo
com o seu humanismo universal. A dialética que comporta um ponto de apoio para liberdade
do outro, expulsa este dele mesmo. A consciência negra é imanente a ela mesma. O negro não
é uma parcial potencialidade de alguém. A consciência negra não pode ser tratada como a
falta de algo, equivocadamente tratada como lacuna, ou parte inconclusa. Fanon usa o
afirmativo manifesto do verbo ser, a consciência negra é, ela é aderente a si própria.390
O problema da mediação se coloca e se relaciona com a questão da representação. Eu
restituo ao outro a sua realidade humana, diferente da realidade natural. O reconhecimento
deve ser recíproco. Para obter a certeza de si, é preciso o conceito de reconhecimento.
Na conclusão do Pele negra, Máscaras brancas, Fanon estabelece a distinção entre os
dois tipos de alienação, a primeira de natureza intelectual, que concebe a cultura européia
como um meio de se desligar de sua raça, e o segundo uma alienação baseada na exploração
de uma raça pela outra, no desprezo de uma parte da humanidade por uma cultura que se
entende como superior. A forma em que se cria a alienação intelectual é produto clássico da
sociedade burguesa. Resistir à alienação como uma degeneração é empreender a revolução.
Percebemos a influência do autor martinicano na crítica das retóricas multiculturais e
antirracistas justamente por elas permanecerem enredadas em um contínuo discurso de
essencialização da diferença. A luta contra o racismo não é contra o outro, o que pode ser
definido por uma inserção dialética na relação entre as distintas alteridades.
Fanon desenvolve a perspectiva da dialética da alteridade e da similitude com o objeto
imperial, com a afirmação fenomenológica do eu e do outro e a ambivalência psicanalítica do
inconsciente. A identidade nunca é um fenômeno concluído, ela é sempre um processo que
problematiza a totalidade de um ser.
O processo colonizador ocorre no intervalo contingencial entre a recusa da dominação
e a designação. Esse pressuposto aproxima Fanon do pensamento pós-colonial e dos esforços
de superação dos binarismos essencialistas.
O lugar do outro não deve ser representado, como às vezes sugere Fanon, como um
ponto fenomenológico fixo oposto ao eu, que representa uma consciência
culturalmente estrangeira. O outro deve ser visto como negação necessária de uma
identidade primordial – cultural ou psíquica – que introduz o sistema de
389
Ibid, p.112.
390
Ibid, p.122.
246
Fanon fala de uma sociogenia, diferente de uma filogenia e da ontogenia. Quando cita
Freud e a possibilidade de um diagnóstico por meio da análise do fator individual, Fanon
391
BHABHA, Homi K. , O local da Cultura, BH: Editora da UFMG, 2001. P. 86.
392
FANON, Frantz, Pele Negra, Máscaras Brancas, Salvador: EDUFBA, 2008. Esse livro é considerado uma
espécie de obra precursora do pós-estruturalismo, porque valoriza os insights das formações psíquicas do
racismo, representativo da primeira fase de produção do autor. Aos 25 anos, Fanon escreveu esta obra que
destinava-se a ser sua tese de doutorado em psiquiatria. Esta foi recusada pela comissão julgadora, uma vez que
na época o paradigma predominante nos estudos da psiquiatria era positivista, o que exigia a realização de
pesquisas físicas para os fenômenos psicológicos. A recepção não foi inicialmente entusiasta. Havia uma
predominância do pensamento francófono e o racismo era considerado um fenômeno predominantemente
anglófono, em especial nos EUA, Grã Bretanha, Austrália e África do Sul.
393
FANON, Frantz, Pele Negra, Máscaras Brancas, Salvador: EDUFBA, 2008. P.27.
247
394
BHABHA, Homi K., “Interrogando a identidade, Frantz Fanon e a prerrogativa pós-colonial”, O local da
Cultura, BH: Editora da UFMG, 2001.
395
Ibid, p. 85.
248
obra de Said passa pela expériência identitária do Palestino no âmbito do encontro com a
experiência sionista.
Voltando a Fanon e sua crítica a negritude, esta é lida como uma experiência
essencialista, cujo risco de ativar uma identidade imutável deve fazer parte da relativização
teórica. O problema da negritude tem relação com o pressuposto de que a recuperação do
negro essencial inverte o maniqueísmo estruturante que concede ao racismo a sua lógica
básica.
Lo que se intenta, al englobar todos los negros bajo el término “pueblo negro” es
arrebatarles toda posibilidad de expresión individual. Lo que se intenta así es
someterlos a la obligación de responder a la idea que se ha elaborado acerca de ellos.
? que será el “pueblo blanco”? No se dice que sólo existe una raza blanca? Es
ncessario pues que explique la diferencia que existe entre nacíon, pueblo, patria,
comunidad? Cuando se dice “pueblo negro” se supone sistematicamente que todos
los negros estan de acuerdo respecto de ciertas cosas: que existe entre ellos um
principio de comunión. La verdad es que no hay nada a priori que permita suponer
la existência de um pueblo negro. 396 (FANON, 1975, p.26)
396
FANON, Frantz, Por La revolución Africana, escritos políticos, Mexico: Fonde Cultura económica, 1975.p.
26. “A intenção ao englobar todos os negros sob o termo “povo negro” é arrebatar toda possibilidade de
expressão individual. O que se intenciona é submete-los a obrigação de responder a ideia que se elaborou sobre
eles. O que será o povo branco? Não se diz que só existe uma raça branca? É necessário então que se explique a
diferença que existe entre nação, povo, pátria, comunidade? Quando se diz “povo negro” se supõe
sistematicamente que todos os negros estão de acordo a respeito de certas coisas: que existe entre eles um
princípio e comunhão. A verdade é que não existe nada a priori que permita supor a existência de um povo
negro.” (tradução nossa)
397
OTO, Alejandro de, “Teorias fuertes. Frantz Fanon y la descolonización como política”, In: MIGNOLO,
Walter, (org.) La teoria política en la encrucijada descolonial: Buenos Aires: Ediciones del signo, 2009.
249
398
Ibid, p.27. “A alienação neste contexto não é com respeito a um núcleo de identidade estável, claro em sua
formulação e definido em termos históricos, que tem sido obturado pelo colonialismo, como de alguma maneira
é o espírito que rodeia os postulados da negritude. Não ao contrário, a alienação é com respeito a uma
potencialidade em jogo nos corpos dos colonizados, é com respeito às tramas que forçam esses corpos a
representar-se de uma só forma e não de outras. É com respeito à ausência da alternativa, no terreno da cultura,
como no da explicação histórica. Nesse sentido a alienação do colonizado, é menos com respeito ao
conhecimento de um processo global que foi escamoteado pelo poder colonial, do que com respeito à potência
da sua constituição, como sujeito se enfrenta a esse poder onde poderia se constituir outro tipo de genealogia
cultural e política.” (tradução nossa).
250
Fanoniano é o tempo do agora, do presente, sem projeções para o futuro ou resgates míticos
do passado.
A historicidade se constroi no relato e não nas marcas factuais do processo histórico
tal como captado pela historiografia. A historicidade é adquirida em termos do sujeito que
habita o espaço colonial. A desalienação é a única possibilidade de sobrevivência do
subalterno e o prognóstico desse processo não garante que este possa acontecer na íntegra. O
risco da mímesis na etapa da libertação é uma possibilidade com que se deve contar, talvez
por isso, a questão do reencontro com o nacional não seja uma garantia para consolidar a
emancipação colonial.
Ambivalências e incertezas são necessárias para a legitimação do processo de
libertação colonial. Libertar no sentido fanoniano é muito mais do que se libertar do jugo
colonial e desenvolver uma nação. É preciso ampliar o horizonte de expectativas para a
criação de novos signos políticos, novas experiências históricas processadas na dialética da
libertação.
399
Ibid, p. 41. A dimensão fanoniana da nacão oferece um inesperado campo de reflexão. Para Fanon a cultura
nacional era o lugar da afirmacão identitária de um sujeito em expansão. Esse sujeito, por lógica da sua própria
producão histórica é uma impugnação, tanto do colonizador, como do colonizado.” (Tradução nossa)
251
sua existência a partir da sua negação, assim como Said insiste para o fato de que um não
existe sem ou outro.
A questão central que se coloca é de que forma o oprimido, o colonizado pode romper
com o círculo de opressão e substancializar o humanismo universal? A afirmação do
humanismo universal e a relativização de uma essencialidade aparecem com força, tanto no
Pele negra, máscara branca, como no livro Os Condenados da terra. Albert Memmi,
Thomas Cassirer e Michael Twomey (1973) 400 desenvolvem essa perspectiva no artigo “The
impossible life of Frantz Fanon”.
Memmi se refere a uma “ilusão branca” em relação ao conflito de identidade na
infância e juventude de Fanon. A sua identificação enviesada com a Martinica, e o seu
posterior alinhamento com o movimento de independência da Argélia são pensados por
Memmi.
Memmi (1973) se pergunta, por que a Argélia? Quando Fanon descobre a fraude da
equivalência francesa com os Martinicanos, no seu lugar de origem, ele rompe com a França e
que por fim desvela o falso humanismo europeu.
A hipótese de Memmi, é que a identificação com a Argélia substituiu a identidade
martinicana, supostamente inacessível, porque eivada de um conflito ambivalente do “se
sentir inclusivamente Francês”. Memmi chama atenção para a breve influência de Aimé
Cesáire no pensamento de Fanon. A defesa da negritude foi recusada por Fanon que não via
nessa afirmação uma solução para o problema do racismo. Resistir ao erro branco não
significava contrapor uma visão negra.
Memmi formula sua própria hipótese, em torno da preferência de Fanon pela Argélia,
em detrimento da Martinica, como mecanismo fortalelecedor de uma identidade colonizada
que rejeita “a mãe terra” com o amadurecimento de uma consciência reconstituída. Quando o
colonizado finalmente redescobre a sua identidade, ele precisa encontrar fontes psicológicas e
materiais para levar adiante a luta contra o opressor.
Além das necessidades em torno da reconstrução da identidade, era preciso resgatar
seu passado e ter uma clara perspectiva futura. A Martinica não subsidiaria esse movimento
na concepção Fanoniana.
For the time being, at least, Martinique could help Fanon in neither of these
endeavors, neither in the negative nor positive effort to free himself. As a
department of France, Martinique still believed too much in its integration into the
French community to view it as an outsider. Martinique did not even dare imagine
400
MEMMI, Albert, CASSIRER, Thomas e TWOMEY, G. Michael, The impossible life of Frantz Fanon.,The
Massachussetts review, v. 14, No.1, winter 1973.
252
saparation from France. Revolt and armed struggle seemed scandalously matricidal,
even though the mother was suspected of not being a very good mother. Was Fanon
then going to fight alone? 401 (MEMMI, 1976, p.21)
convertirse en Francia, en el seno de la izquierda, en una enfermedad del sistema francés tal
como la inestabilidad ministerial: las guerras coloniales son um tic de Francia, una parte del
panorama nacional, un detalle costumbrista.” 403
O democrata francês tem um compromisso com a negação da colonização francesa na
Argélia no que tange uma forte opressão militar e policial. Fanon contesta a incorporação
naturalizante da Argélia vista como prolongamento da França. Em tom de manifesto afirma
que depois da França ter domesticado durante mais de um século o povo Argelino, a França se
encontrava prisioneira da sua própria conquista e incapaz de desfazer essas relações ou essas
novas orientações.
Es necesario que los demócratas franceses vayan más allá de las contradicciones que
esterelizan sus posiciones si quieren efectuar una auténtica democratización con los
colonialistas. Á medida que la opinión democrática francesa tenga menos reticencias
su acción podrá ser eficaz y decisiva. Devido a que la izquierda obedece
inconscientemente el mito de una Argélia francesa, su acción se contenta con aspirar
a una Argelia donde reinará más la justicia y la libertad o, a lo máximo, una Argélia
gobernada menos directamente por Francia. El chovinismo pasional de la opinión
francesa respecto de la cuestión argelina hace presión sobre esta izquierda, le inspira
una prudencia excesiva, sacude sus princípios y la coloca en una situación
paradójica y rápidamente estéril.404 (MEMMI, 1976,P.96)
403
FANON, Frantz, Por La revolución africana, escritos políticos, Mexico: Fondo de Cultura económica, 1975.
P. 86. “É necessário que os democratas franceses possam ir além das contradições que esterelizam suas posições,
se querem efetuar uma autêntica democratização com os colonialistas. À medida que a opinião democrática
francesa tenha menos reticências, sua ação poderá ser eficaz e decisiva. Como a esquerda obedece
inconscientemente o mito de uma Argélia francesa, sua ação se contenta com aspirar a uma Argèlia, onde reinará
mais a justiça e a liberdade, ou no máximo uma Argélia governada menos diretamente pela França. O
chauvinismo passional da opinião francesa relacionada à questão faz pressão sobre esta esquerda, lhe inspira
prudência excessiva, sacode seus princípios e a coloca em uma situação paradoxal e rapidamente estéril.”
(Tradução nossa).
404
Ibid, P. 96.
254
divisão dual ou uma imagem duplicadora, dissimuladora do ser a partir de dois lugares
simultâneos. Aqui reconhecemos o problema liminar da identidade colonial e suas
vicissitudes.
O homem negro deseja o confronto objetificador com o outro. Este é visto como a
negação de uma identidade primordial. Se o sujeito desejado nunca é o eu essencial, o outro
projetado também não é ou outro verdadeiro, embora o outro projetado se sujeite a uma
medida de objetividade. Essa projeção sempre sugere uma falta ou uma desmedida. A
“estratégia de duplicidade”405 é elaborada como um indicio da falta dentro do qual a relação
do sujeito com outro se conforma.
Não é o eu colonialista, nem o outro colonizado, mas a perturbadora distância entre os
dois que constitui a alteridade colonial, o artifício do homem branco no corpo do homem
negro. É somente pela compreensão da ambivalência e do antagonismo do desejo do outro
que podemos evitar a adoção cada vez mais tentadora da noção da alteridade
homogeneizadora.
405
As referências à psicanálise na produção fanoniana, especialmente o pensamento lacaniano, são muito
presentes na sua obra. Por uma questão de limites do nosso trbalho e respectivos objetivos da tese não devemos
desenvolver e rastrear a genealogia dessa apropriação.
406
FANON, Frantz, Os Condenados da Terra, RJ: Editora Civilização Brasileira, 1979. P. 39.
255
histórico nos ajuda a compreender alguns dilemas dos autores estudados e da sua respectiva
inserção no campo da produção pós-colonial.
A originalidade da obra de Fanon, para Said vai muito além de uma reação defensiva
do colonizado, cujo principal problema consiste em aceitar implicitamente e não superar as
oposições básicas entre o europeu e o não europeu. Condicionado por uma dominação sem
remorsos, sua oposição dialética emerge, como se o nativo insurrecional, se mostrasse
cansado da lógica que o reduz, da geografia que o segrega, da ontologia que o desumaniza e
da epistemologia que o limita a uma essência. Fanon retrata a força do colonialismo
sustentada pela contraforça da resistência.
Fanon resgata a teoria de Lukàcs e a transfere para a ambiência do espaço colonial,
onde territórios, culturas, saberes e mesmo ontologias são reificadas. Para Fanon o
movimento totalizante é a violência insurrecional. A violência reúne mundos separados do
colonizado e do colonizador. A escrita de Fanon argumenta Said, oferece uma profunda
radicalização da teoria européia no desenvolvimento do confronto colonial.
Para Fanon, a consciência nacionalista pode levar com facilidade à rigidez estática,
que visa substituir as autoridades e os burocratas brancos por equivalentes colonizados. Não
há nenhuma garantia de que os funcionários nacionalistas não repetirão os velhos arranjos
coloniais. Fanon alerta para os riscos do nativismo e da xenofobia no processo de
descolonização. O tempo da libertação é reconhecido como um processo de ambivalência
identitária, de uma indecisão de papéis representacionais.
No livro Os condenados da terra, Fanon traça uma demografia da cidade colonial que
reflete sua visão da estrutura psíquica da relação entre colonizador e colonizado. O autor
alerta para a ameaça dos perigos da fixidez e do fetichismo das identidades, no interior da
consolidação das culturas coloniais. A demografia da cidade colonial reflete a sua visão da
dualidade psíquica da relação colonial. A estratégia da subversão possui um duplo registro, o
psíquico e o político.
407
Ibid, P. 26.
256
408
O contexto de produção desse livro representa a culminância da mudança de perspectivas. É por meio desse
livro que podemos compreender duas categorias centrais na dialética de Lukács, os conceitos de mediação e
totalidade. A consolidação do marxismo em Lukács provocava o enquadramento da totalidade na realidade
concreta.
409
MÉSZÁROS, István, O conceito de dialética em Lukács, SP: Boitempo Editorial, 2013.
257
410
Ibid, pp. 58/59.
258
411
LUKÁCS, Georg, História e Consciência de classe, estudos sobre a dialética Marxista, SP: Editora Martins
Fontes, 2012. Pp.173/174.
412
NOBRE, Marcos, Lukács e os limites da reificação, um estudo sobre História e Consciência de classe, SP;
Editora 34, 2001.
259
O autor citado procura ler a História e conciência de classe, levantando o debate sobre
o advento da filosofia da história. Se o historicismo mostra-se incapaz de explicar o
acontecimento histórico, transformando a realidade em coisa em si, Nobre mostra que
somente com a conceitualização do fenômeno da reificação, por meio da categoria de
totalidade, e da estrutura da forma mercadoria que a história se converte em ciência histórica.
O autor interpreta a crise posterior que Lukács vivencia com os escritos em torno da História
e consciência de classe em função do caráter historicista, weberiano, do livro no contexto de
adesão sólida aos princípios da relação entre economia e dialética no ideário marxiano.
O problema da identidade especulativa da consciência da classe operária e da teoria da
sociedade nos interessa e aproxima a teoria Lukácsiana da obra de Frantz Fanon.
413
Ibid, p. 110.
260
414
ALESSANDRINI, Anthony, “The Humanism effect: Fanon, Foucault, and ethics without subjects”, Foucault
Studies, No.7, N. York: City University of New York, Setembro, 2009.
261
415
BHABHA, Homi K. , O local da Cultura, BH: Editora da UFMG, 2001, pp. 99/100.
262
O subalterno ou metonímico não são nem vazios nem cheios, nem parte nem todo.
Seus processos compensatórios e vicários de significação são uma instigação à
tradução social, a produção de algo mais além, que não é apenas o corte ou lacuna
do sujeito, mas também a interseção de lugares e disciplinas sociais. Este hibridismo
inaugura o projeto de pensamento político defrontando-o continuamente com o
estratégico e o contingente, com o pensamento que contrabalança seu próprio “não
pensamento”. Ele tem de negociar suas metas através de um reconhecimento de
objetos diferenciais e níveis discursivos articulados não simplesmente como
conteúdos, mas em sua interpelação como formas de sujeições textuais ou narrativas
– sejam estas governamentais, judiciais ou artísticas. 416 (BHABHA, 2001, p.103)
Para Bhabha (2001), a relação entre poder e saber coloca os sujeitos em uma relação
de poder e reconhecimento que não se insere em uma simetria. A crítica do autor indiano
indica o sentido de uma relativa simplificação histórica e teórica em que o discurso e o poder
colonial são de propriedade exclusiva do colonizador, sendo que a plenitude do estereótipo
está sempre ameaçada pela falta.
Para Said, o problema da essencialização é visto como um progressivo abandono da
História. Há um imperativo em transcender as formulações direcionadas à questão racial ou
nacional. Para Said, todas as culturas e todas as sociedades constroem a identidade segundo
uma relação dialética entre o eu e o outro.
Se venho citando Fanon com tanta freqüência, é porque, a meu ver, é ele quem
expressa da forma mais intensa e decisiva a imensa guinada cultural do terreno da
independência nacionalista para o domínio teórico da libertação. Essa guinada
ocorre, sobretudo, nos países onde o imperialismo subsiste, depois que a maioria dos
outros estados coloniais já conquistou a independência: por exemplo, Argélia e
Guiné-Bissau. Em todo caso, só é possível entender Fanon se compreendermos que
sua obra é uma resposta a elaborações teóricas produzidas pela cultura do
capitlaismo ocidental tardio, recebida pelo intelectual nativo do terceiro mundo
como uma cultura de opressão e escravização colonial. Toda a oeuvre de Fanon
consiste na tentativa de vencer a rigidez dessas mesmas elaobraçãoes teóricas como
um ato de vontade política, de voltá-las contra seus próprios autores de modo a
conseguirem, nos termos que ele toma de empréstimo a Césaire, inventar novas
almas. 417 (SAID, 1993, p.332)
Para Fanon, é imperativo criar uma consciência social simultânea à liberação colonial.
A consciência social é tão importante que, sem ela a descolonização se converte meramente
em uma substituição de uma forma de dominação por outra. Na visão desses autores, o
nacionalismo ortodoxo seguiu o mesmo caminho trilhado pelo Imperalismo, ampliando a
hegemonia burguesa. A transição de uma consciência para outra, produz o reencontro com o
verdadeiro humanismo.
416
Ibid, p. 103.
417
SAID, Edward, W., Cultura e imperialismo, SP: Editora Companhia das Letras, 1993. p.332.
263
418
Albert Memmi nasceu na Tunísia em 1921. Durante a segunda guerra foi preso e levado para um campo de
trabalho forçado na Tunísia. Após a independência do seu país migrou para a França adotando a nacionalidade
Francesa em 1973.
264
Para Memmi, o colonialismo engendra um paradoxo na sua existência uma vez que
fabrica simultaneamente o colonizador e o colonizado e traz no seu interior elementos que o
fariam com que esse sistema se esgote. Nesse contexto, a mais grave carência do colonizado é
ser excluído do processo histórico. A condição de colonizado é contingencial e ocorre em
função do processo colonizatório. Memmi não acredita na assimilação, embora com aspectos
universalistas, esta se torne seja impossível por definição.
A assimilação e a colonização, vistas em sua antinomia tendem a confundir
colonizadores e colonizados e a suprimir a relação colonial. A colonização é um processo
falseador das relações humanas, que destrói as intituições e corrompe os homens. Percebemos
nesse contexto de representação sobre a colonização, afinidades com o pensamento de Fanon
no diagnóstico sobre as identidades indissociadas no processo de dominação colonial. A
liquidação da colonização é vista como condição para “a reconquista de si.”419
Para que o colonizador seja inteiramente senhor, não basta que o seja objetivamente,
é preciso ainda que acredite na sua legitimidade; e, para que essa legitimidade seja
completa, não basta que o colonizado seja objetivamente escravo, é necessário que
se aceite como tal. Em suma o colonizador deve ser reconhecido pelo colonizado. O
laço entre o colonizador e o colonizado é assim, destruidor e criador. Destrói e recria
os dois parceiros da colonização em colonizador e colonizado: um é desfigurado em
opressor, em ser parcial, mau cidadão, trapaceiro, preocupado unicamente com seus
privilégios, com sua defesa a todo preço; o outro em oprimido, partido no seu
desenvolvimento, conformando–se com o próprio esmagamento. Assim como o
colonizador é tentado a aceitar-se como colonizador, o colonizado é obrigado, para
viver, a aceitar-se como colonizado. 420 (SAID, 1993, p.84)
Quanto à questão Palestina, Memmi421 produz uma reflexão divergente de Said no que
tange a curiosa percepção de que Israel não representa uma dominação colonial. A dominação
dos Palestinos é inaceitável, embora Israel seja visto tal como a questão Palestina, um fato
nacional, que responde a uma condição difícil de ser vivida, representado no contexto de uma
aspiração coletiva alimentada de forma imaginária por uma relação primordialista com a terra.
419
MEMMI, A., Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, RJ: Editora Paz e Terra, 1977. p.
126
420
Ibid. p.84.
421
Essa reflexão pode ser localizada no livro Retrato do descolonizado árabe-muçulmano e de alguns outros,
diferente da reflexão do seu retrato do colonizado porduzido em 1950, esse livro versa sobre um debate
contemporãneo sobre o descolonizado e seus dilemas no período pós-colonial. A visão de que a descolonização
não se limitava a uma reivindicação econômica permanece. Memmi traça um panorama da situação dos estados
que se tornaram independentes e suas situações políticas e sociais. Ele apresenta na introdução do livro a
proposta do livro em questão como uma sequência do Retrato do colonizado, embora centrado numa realidade
nova. Sua escolha de objeto recai sobre o homem Magrebino, realidade próxima a sua vivência biográfica.
Memmi traça uma tipologia do ex-colonizado que define três situações; a do ex-colonizado que permaneceu no
seu país, portanto um novo cidadão de um estado independente, a do imigrante, que escolheu emigrar pra a ex-
metrópole e o filho do emigrado, nascido no país que recebeu seus pais.
265
A sua proposta se encaminha para uma solução negociada, com vistas à instauração de
dois estados, o que seria benéfico para palestinos e israelenses. O autor retifica o isolamento
dos palestinos, afirmando o envolvimento dos países árabes com a causa Palestina, e
identifica o apoio financeiro e político das várias nações árabes, que lhes forneceram armas,
dinheiro e sugestões táticas.
O mito do panarabismo que reforça o projeto da unidade árabe é questionado nesse
contexto. Memmi analisa desde o nasserismo até o projeto político de Sadam Hussein. O
esfacelamento dos mitos que permeia o mundo árabe contemporâneo, inclui a visão idealizada
do incômodo que o estado de Israel representa no Oriente Médio. Associado a esse mito
equivocado, unem-se os dois ideais, o da unidade árabe e o da extinção do estado de Israel
como pré-condição para a existência do pan-arabismo.
No âmbita da reflexão crítica sobre um ideal de sionismo concretizado no estado de
Israel, Memmi introduz sua reflexão sobre as nações erigidas no processo de descolonização.
Nesse sentido, o teor crítico dirigido as novas nações e seus desvios encontram-se de forma
conciliatória com o pensamento de Fanon e Said. Memmi fala de um projeto que já nasceu
caduco e que se esgotou antes de ter começado.
Ora, no interior das jovens nações, o tirano bloqueia tudo, reduz tudo a si e aos seus.
As nações descolonizadas são como filhos de idosos, que nascem débeis e doentios,
frutos ressecados antes de terem amadurecido. O projeto nacional do descolonizado
parece esgotado antes de ter verdadeiramente começado. Pois sua nação sofre de
uma deficiência histórica; nasceu tarde demais. As causas disso são múltiplas: o
adormecimento provocado pela colonização, que se prolonga como após a ingestão
de um sonífero, a letargia persistente do povo, a imprecisão da noção de território
nacional, que só recentemente se fixou, a aspiração sempre tentadora a um mesmo
conjunto supranacional. 422 (MEMMI, 2007, p.78)
422
MEMMI, A. Retrato do descolonizado árabe-muçulmano e de alguns outros, RJ: Editora Civilização
brasileira, 2007.p.78.
266
Fanon analisa a fraqueza política dos partidos nacionalistas que exibem uma distância
em relação às massas e que se articulam em função de uma politização dos intelectuais
colonizados que estudaram nas metrópoles. O nascimento dos partidos nacionalistas nos
países colonizados é contemporâneo à constituição de uma elite intelectual e mercantil. A
423
FANON, Frantz, Os Condenados da terra, RJ: Editora Civilização brasileira, 1979. P. 74.
267
fração burguesa da sociedade colonial ocupa o lugar das principais lideranças dos partidos
nacionalistas.
Fanon traça uma analogia orgânica com a ideia de uma nação que possui um corpo
imenso, débil e uma cabeça racional, progressista, ambas as partes encontraram-se dissociadas
e sem vínculo orgânico. Os camponeses não se identificam com os partidos nacionalistas.
Estes fazem acordos com os colonialistas. Para Fanon os partidos nacionalistas desejam
derrubar o colonialismo, por outro lado entendem-se amigavelmente com os colonialistas.
A perspectiva nacionalista em Fanon é particular e constitui um grande guia de
orientação para a obra de Said, no que tange a reflexão crítica sobre a etapa nacionalista na
luta pela libertção colonial. Algumas das reivindicações concretas como; a supressão de
desvios humanos, trabalho forçado, limitação de direitos políticos, desigualdade salarial,
sanções corporais, vão se fundir e culminar com uma luta abrangente e menos definidora que
se limita à reivindicação nacional.
A consciência nacional é vista nesse contexto como uma mobilização parcial,
limitadora e frágil. A explicação para os desvios tem relação com o perfil das lideranças e as
dificuldades para superar a distância da burguesia nacional em relação à práxis popular.
A formação profundamente cosmopolita da burguesia nacional colonizada é vista
como uma limitação de perspectiva que compromete o caráter libertador dos movimentos
nacionais. Em seu ímpeto de projeção do desejo de tomar o lugar da burguesia metropolitana
burguesia colonial. Esta serve de intermediária para a transição para um capitalismo servil e
que sustenta um status parcialmente livre das amarras coloniais.
Para Fanon, a burguesia nacional comporta um comportamento mesquinho424, uma
imprecisão doutrinária que não representa a totalidade do povo, incapaz de dilatar sua visão
de mundo, o que gera a propensão para o fenômeno do chauvinismo ou outro extremo. A
apologia a uma unidade africana imprecisa, abstrata que retarda o processo de libertação. A
unidade pode se fragmentar em regionalismos, que se sustentados pela burguesia nacional
revelam-se incapazes de erigir uma solidez alternativa ao colonialismo.
Fanon descreve um movimento de diluição do ímpeto revolucionário das massas em
função do movimento oscilante entre a unidade africana e o retorno de um chauvinismo
424
Said cita a parte na qual Fanon caracterizava a burguesia nacional Argelina com teor de críticas a sua atuação
paritária com a metrópole. Said ressalta a divisão entre a burguesia nacional argelina e as tendências libertárias
da FLN. Após a eclosão da insurreição, as elites nacionalistas tentaram estabelecer paridade com a França. O
perfil assimilacionsita da colonização francesa fez com que os partidos nacionais oficiais se vissem forçados a
uma cooptação das autoridades dirigentes.
268
425
Ibid, p. 167.
269
Fanon fala do homem novo para uma nova totalidade que necessita de uma condição
inaugural para se contrapor à Europa e ao modelo que a dominação colonial impôs.
Reconhecemos que o dilema inerente à démarche explicativa de Said e Fanon não se limita ao
escopo das suas obras, esta se amplia como um grande problema epistemológico no campo
das Ciências Humanas.
426
Ibid, p. 198.
270
CONCLUSÃO
427
SAID, E. Power , politics and culture Power, Politics, and Culture: interviews with Edward W. Said , N.
York: Vintage Books, 2002.p.215
428
SAID, Edward W., Humanismo e crítica democrática, SP: Editora Companhia das Letras, 2004.
429
Ibid, PP.48/49.
271
430
A adesão ao ideário foucaultiano encontra algumas limitações. Desenvolvemos esse debate na parte referente
à análise do Orientalismo e sua linhagem teórica. Said observa limitações no método de Foucault porque
enquadra esse método como determinista, onde utod é aculturado, assoimilado, especilamente no livro Vigiar e
Punir. A leitura desse livro inicia as refutações de uma adesão mais automática ao método de Foucault.
272
431
Immanuel Wallerstein se sobressaiu como um arguto crítico da globalização capitalista e da política
internacional dos EUA. Especialista em macroeconomia se debruçou sobre o continente africano e desenvolveu
questionamentos acerca da existência da realidade denominada “terceiro mundo”. O sistema capitalista mundial
tem sua origem na Europa e na América. O princípio da economia mundial como um todo, como uma realidade
viva, poderosa pode dar origem a um sistema internacional como o socialismo
432
WALLERSTEIN, Immanuel, O universalismo europeu, a retórica do poder, SP: Boitempo Editorial, 2007.
433
Algumas análises sobre a obra de Wallerstein vinculam sua teoria do sistema-mundo moderno, como produto
da teoria de dependência e do pensamento de Fanon. Wallerstein concebeu o sistema-mundo moderno em termos
de centro-semi-periferia e periferia, três unidades hierarquicamente ordenadas que se estruturavam no interior de
uma economia capitalista. A influência da obra de Fanon e da teoria da dependência teria mostrado que na
periferia também se produziam teorias que questionavam o valor universal da conceitualização gerada no centro.
434
Seu artigo denomina-se “Orientalismo em crise”, onde o autor analisa as premissas históricas dos
orientalistas. O Oriente seria uma entidade abstrata passível de uma abordagem essencialista. Suas críticas
constavam do livro Social Dialetics, Civilization and Social Theory. Wallerstein alega que o impacto da
273
meio acadêmico a partir das lutas anticoloniais. Seus argumentos abrangiam as críticas ao
Oriente como entidade abstrata e essencialista.
Wallerstein situa a tese de Said sobre o Orientalismo e a problemática sobre os riscos
de uma visão ocidentalista com base nas mudanças históricas que possibilitaram a emergência
das críticas pós-coloniais ao orientalismo como “estilo de pensamento”.
Wallerstein compara os llimites do debate suscitado por ambos os autores, Said e
Malek. O impacto das teses de Malek se deu mais diretamente no campo acadêmico, ilustrado
pelo abandono da categoria de orientalista nos estudiosos que privilegiavam os estudos
asiáticos e norte-africanos.
publicação das ideias de Malek foi pequeno, se comparado ao livro Orientalismo, a invenção do oridente pelo
ocidente de Edward W. Said, publicado 15 anos depois.
435
Ibid, Página 76.
274
mesmo com o risco de perdermos suas miríades de detalhes. Procederei supondo que
uma totalidade cultural não é coesa, mas que muitos setores importantes dela podem
ser apreendidos operando juntos em contraponto.436 (SAID, 1993, p.249)
A ideia de Palestina acaba sendo inseparável do amplo projeto humanista em que Said
se envolvia, o resgate do humanismo em detrimento do projeto imperialista europeu. Said
seria tributário ao projeto humanista de Fanon, que via no terceiro mundo um espaço que
suscitaria uma nova história. O humanismo referencial de Said define que a compreensão
reflexiva emana da própria mente. O humanismo implicava o desenvolvimento de uma lógica
compreensiva realista e dialética, distante de um idealismo “desencarnado”.
O caráter secular do humanismo saidiano encontra ecos na teoria viquiana, na
associação da valorização das realizações humanas e do esvaziamento da religião, vista no
contexto dessa obra, como uma expressão da alienação das capacidades da imaginação
humana, um sistema de impostura ideológica e autoridade coercitiva.
436
SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo, SP: Editora Companhia das Letras, 1993.p. 249.
437
OWEN, Roger, Conversación com Edward W. Said, In:BHABHA, Homi e MITCHELL, W. J. T. (comps.)
Edward Said, Continuando la Conversación, Buenos Aires: Paidós, 2006. P. 205. “Mais adiante á medida que se
intensificou minha participação na política palestina, segui considerando que minha contribuição surgia, antese
de tudo do meu sentido da história, a firmeza e o sentido da possibilidade humana que estudo e que me havia
chegado pelo extenso estudo de Vico.” (tradução nossa)
275
levar em conta todos os tipos de práticas espaciais, geográficas, retóricas, inflexões, limites,
inclusões e proibições. Todas tendem a elucidar uma topografia complexa e irregular.
Podemos inferir que a questão central para Said está circunscrita na vinculação entre a
história e a representação cultural. O problema do dilema inerente a associação entre agência
histórica e pensamento pós-colonial representa uma trajetória em contraponto no seu percurso
biográfico. Said fala desse dilema em várias entrevistas, quando se refere ao período de início
da sua inserção em Columbia, e das posteriores demandas de um envolvimento com a questão
palestina.
Contudo, como frisei em minha apresentação, uma grande parte do que considero
ser uma experiência autobiográfica interessante e de valor teve de se manter distante
da minha atividade profisisional. Esse foi certamente o caso quando comecei a
ensinar em Columbia – eu podia ser considerado duas pessoas: havia o professor de
literatura, havia também outra pessoa que, como Dorian Gray, fazia coisas que não
podiam ser faladas ou comentadas de maneira alguma. Só mais tarde começei a
perceber o quão interessado eu estava no fato de que podíamos nos
compartimententar de formas diversas, e o problema não é exatamente integrar os
fragmentos; não estou certo que possamos integrar coisas díspares, tendemos a
perder alguns de seus pedaços e procuramos por fórmulas que possam fazer isso. 438
(WILLIAMS, 2007 pp.225/226)
Said fala da metáfora da travessia, e cita Raymond Wiliams439 como alguém que
aborda a questão dos limites e das fronteiras, além da experiência da migração. O autor
resgata os livros Orientalismo e Beginnings para refletir sobre a necessidade de se postular os
pontos iniciais do processo de produção do conhecimento. A vida acadêmica não exclui as
afiliações políticas, que podem significar um reencontro com a própria identidade, velada pela
inserção teórica. Said critica o desinteresse de Williams pela relação entre a cultura e o
imperialismo e justifica que isso tem relação com a sua escassa vivência pessoal nesse campo.
A assertiva de que Williams se exime de uma análise sobre o papel do colonialismo na
literatura inglesa, confirma a ideia para Said, de que seria inviável abordar a cultura
metropolitana, sem levar em conta a experiência imperialista como constitutiva da sua
identidade. Said fala do desenraizamento e da insularidade do trabalho de Williams, o que
para alguém que define seu lugar de enunciação, parece um pecado imperdoável.
Para Said, a cultura tem sido usada mais como um termo de exclusão, do que um
termo cooperativo, isso é redimensionado em termos de um sistema de normalização e
438
WILLIAMS,R., Entrevista de Edward Said in: Políticas do modernismo, contra os novos conformistas, SP:
Editora da UNESP, 2007. pp.225/ 226
439
Para uma análise da aproximação entre as obras de Said e Williams ver: PARRY, Benita, “Overlapping
Territories and Interwined Histories: Edward Said`s Post Colonial Cosmopolitanism”, In; SPRINKER, M.,
Edward Said, a critical Reader, Cambridge: Blackwell Publishers, 1992.
276
legitimação. Para Williams a cultura é um processo mutável, mais do que um sistema estável,
uma arena de confrontos, na qual os conflitos entre os interesses de classe e os sentidos
sociais dos grupos contestados convivem.
Said percebe então a cultura como um forte elemento que marca a experiência da
exclusão ou como um elemento exportado. Nesse sentido, Said resgata o problema da
travessia, a problemática do exílio e a árdua noção de pertencimento.
Podemos situar Said, no lugar de um pensador que promoveu a desconstrução de
representações consagradas no meio acadêmico sobre o Oriente. Sua expectitva passava pela
necessidade de dar visibilidade à questão palestina, embora idealizasse a desmistificação da
voz dos subalternos, como a única legítima ou autorizada a falar das minorias.
Como uma crítica que declara sua localização histórica, e seus interesses políticos, o
método saidiano, procura sintetizar uma tensão entre o reconhecimento do objeto como uma
cultura descentrada, híbrida, e as exigências políticas no processo de liberação, na construção
e afirmação da identidade coletiva. O nacionalismo em Said é necessário, ameaçador,
positivo, afirmativo e problemático.
440
Ibid, p.30. “Tal equívoco sobre a necessidade de inscrever a identidade cultural, antes que possa ser
transcendido ao trabalho sobre definições de forma, a ir além delas, sugere o quanto o trabalho de Said dialoga
entre uma posição conservando o indivíduo como dividido, solto e disseminado e sua implacável hostilidade ao
que é percebido como reivindicação essencialista para perpetuar tradições culturais hostis e uma identidade
nativa transcendente.”(tradução nossa).
277
um projeto político de solidariedade. Nesse sentido, Said resgata uma agenda de defesa da
agência histórica, do papel do intelectual como indivíduo público, não enquadradado, porém
comprometido. Said pode justificar uma ambivalência no interior da sua “coerência
conciliatória”, anteriormente polarizada entre o reconhecimento cognitivo da alteridade e a
necessidade política pela solidariedade.
Reconhecemos que a obra de Said abre uma amplitude de questões que devido ao
escopo do trabalho não puderam ser abordadas satisfatoriamente. Procuramos enfatizar
algumas linhagens afiliativas de Said, que pudessem fornecer pistas para a compreensão de
uma parcela da sua obra. Toda produção teórica complexa aparece através dos seus
paradoxos, procuramos rastrear esses pontos. Deixamos para um futuro trabalho sobre a sua
obra, a explicação de questões que não foram esgotadas. Esperamos que o trabalho tenha
cumprido a missão de analisar a questão do nacionalismo, a identidade e representação no
pensamento pós-colonial o que em certa medida, nos parecem reflexões centrais para a sua
historiografia.
278
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