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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Elisa Goldman

O jogo de espelho das colonizações:


nacionalismo e pós-colonialismo na obra de Edward W. Said

Rio de Janeiro
2014
1

Elisa Goldman

O jogo de espelho das colonizações:


nacionalismo e pós-colonialismo na obra Edward W. Said

Tese apresentada, como requisito parcial para


obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-Graduação em História, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração:
História Política.

Orientador: Prof. Dr. Oswaldo Munteal Filho

Rio de Janeiro
2014
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CCSA

S132j Goldman, Elisa.


O jogo de espelho das colonizações: nacionalismo e pós-
colonialismo na obra de Edward W. Said /Elisa Goldman. –
2014.
293 f.

Orientador: Oswaldo Munteal Filho.


Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Said, Edward W., 1935-2003. 2. Identidade social –


Teses. 3. Intelectuais e cultura - Teses. 4. Política e cultura -
Teses. I. Munteal Filho, Oswaldo, 1964-. II. Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. III. Título.

CDU 323.13

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que citada a
fonte.

___________________________ _________________________
Assinatura Data
2

Elisa Goldman

O jogo de espelho das colonizações:


nacionalismo e pós-colonialismo na obra Edward W. Said

Tese apresentada, como requisito parcial para


obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-Graduação em História, da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: História Política.

Aprovada em 31 de julho de 2014.


Banca Examinadora:

__________________________________________
Prof. Dr. Oswaldo Munteal Filho (Orientador)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UERJ
__________________________________________
Profa. Dra. Lená Medeiros de Menezes
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UERJ
__________________________________________
Prof. Dr. André Valente
Instituto de Letras – UERJ
__________________________________________
Prof. Dr. Carlos Henrique Aguiar Serra
Universidade Federal Fluminense
__________________________________________
Profa. Dra. Norma Côrtes Gouveia de Melo
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro
2014
3

DEDICATÓRIA

Dedico esta tese ao Tomás, a promessa de um novo mundo...


4

AGRADECIMENTOS

Meus agradecimentos à FAPERJ pelo apoio recebido sob a forma de uma bolsa de
doutorado (2012).
Ao meu orientador Oswaldo Munteal Filho, pelo estímulo, pelo acolhimento no
programa, pelo apoio intelectual e, mais do que isso, pelo encantamento e valorização do tema
que configurou uma grande motivação para a realização da tese.
Agradeço aos meus pais, Isack, Helena e minha irmã Priscila, pelo apoio carinhoso e
pelo estímulo otimista de que as coisas acabam dando certo.
Ao Gabriel, apoio fundamental nesse percurso, ao carinho e cumplicidade nos difíceis
momentos de realização da tese.
Aos amigos, pessoas queridas, sempre presentes, ainda que na fase reclusa da escrita
da tese, um estímulo intelectual e afetivo: Mariana Muaze, Sigrid Hoppe, Rosana de Freitas,
Daniela Spielman, Mônica do Rego Monteiro, Daniela Hungria, Marisa Hegdorne, Marta
Romeiro, Luciana Pinheiro, Dudi Baratz, e Washington Dener.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ, pela
acolhida generosa, pelas disciplinas enriquecedoras e pelo convívio estimulante nos quatro
anos do doutorado.
Aos funcionários do PPGH, Daniela e Marco Antonio pela ajuda constante e pelo
clima receptivo na Secretaria de Pós-Graduação.
5

RESUMO

GOLDMAN, Elisa. O jogo de espelho das colonizações: nacionalismo e pós-colonialismo na


obra de Edward W. Said. 2014. 293 f. Tese ( Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

O objetivo desse trabalho é compreender a produção intelectual do autor palestino,


Edward W. Said, cuja trajetória heterogênea representou em larga medida uma metáfora
teórica dos seus maiores dilemas políticos e conceituais, alguns deles constitutivos do objeto
dessa tese. Entendemos que Said define a Cultura como lócus privilegiado para compreender
a dominação colonial e, posteriormente, incorpora um discurso político para a formação da
chamada identidade nacional Palestina. Procuramos demarcar o paradoxo central da sua obra
que diz respeito ao convívio teórico da abordagem pós-colonial com a busca da historicidade
do ethos nacional palestino. Entendemos que o paradoxo do Nacionalismo, sua estreita
vinculação com o debate pós-colonial e os percursos teóricos decorrentes do engajamento
progressivo com a causa nacional Palestina subsidiam outras reflexões que possuem
interrelação. São essas; a representação do intelectual na sociedade contemporânea, a relação
entre texto e realidade histórica, entendida por meio do conceito de mundanidade, a categoria
de exílio como condição ontológica e metáfora epistemológica e o problema da relação entre
cultura e imperialismo. Esses percursos de análise orientam-se por um objetivo mais geral que
é a análise da centralidade e respectiva atualidade da obra de Edward W. Said na
Historiografia Pós-Colonial.

Palavras-chave: Edward W. Said. Pós-colonialismo. Nacionalismo. Exílio. Intelectuais.


6

ABSTRACT

GOLDMAN, Elisa. The mirror game of colonizations: nationalism and post-colonialism in


Edward W. Said’s work. 2014. 293 f. Tese (Doutorado História) - Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

The aim of the present work is to understand the intellectual production of the
Palestinian author Edward W. Said. His heterogeneous history represented in a larger extent a
theoretical metaphor of his major political and conceptual dilemmas, some of them consisting
this thesis subject. We understand Said defines culture as a preferential locus in order to
comprehend the colonial domination, later on embodying a political speech for the
composition of the national Palestinian identity. We have attempted to delimit the main
paradox of his work which refers to the theoretical interaction of the post-colonial approach
with the historicity of the national Palestinian ethos. We understand that the paradox of
Nationalism – its close connection to the post-colonial aproach and theoretical courses arising
from progressive engagement – with the Palestinian national cause subsidizes other
reflections interrelated, such as: the intellectual representation in contemporary society; the
relation between text and historical reality – understood through the concept of worldliness;
the category of exile as an ontological condition and epistemological metaphor; and the
problem of the culture-imperialism relation. These courses of analyzes have guidance in a
broader objective which is the analysis of centrality and the respective present status of
Edward Said’s work in Post-Colonial Historiography.

Key words: Edward W. Said. Post-colonialism. Nationalism. Exile. Intellectuals.


7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................8
1 EDWARD W. SAID: BIOGRAFIA E TRAJETÓRIA TEÓRICA........................24
1.1. Fora do lugar: uma trajetória em contraponto........................................................24
1.2. Historiografia literária e a escrita da história..........................................................42
1.2.1. Joseph Conrad e a ficção da autobiografia....................................................................42
1.2.2. Proximidades entre Said e Auerbach: interioridade e exterioridade.............................53
1.2.3. Said e o Vico de Auerbach: aproximações teóricas......................................................65
1.2.4. O mundo, o texto e o crítico: a crítica literária.............................................................82
1.3. O orientalismo e a teoria pós-colonial......................................................................99
1.4. A questão da Palestina: o problema da identidade nacional.................................131
1.5. Representações do intelectual: as conferências Reith de 1993..............................147
1.6. Cultura e imperialismo: nacionalismo e libertação nacional................................158
1.7. Reflexões sobre o exílio: a diáspora como metáfora epistemológica....................178
2. O JOGO DE ESPELHO DAS COLONIZAÇÕES: PERSPECTIVAS SOBRE O
PÓS-COLONIAL......................................................................................................185
2.1. A historiografia pós-colonial....................................................................................185
2.2. O problema da historicidade nas narrativas nacionais.........................................202
2.3. Histórias entrelaçadas e territórios sobrepostos: Edward W. Said e Frantz
Fanon..........................................................................................................................241
CONCLUSÃO...........................................................................................................272
REFERÊNCIAS........................................................................................................280
8

INTRODUÇÃO

Este trabalho desenvolveu-se a partir da análise da produção intelectual do autor


palestino Edward W. Said, cuja trajetória heterogênea representou em larga medida uma
metáfora teórica dos seus maiores dilemas políticos e conceituais, alguns deles constitutivos
do objeto dessa tese.
Entendemos que Said define a Cultura como lócus privilegiado para compreender a
dominação colonial e, posteriormente incorpora um discurso político para a formação da
chamada identidade nacional Palestina.
Procuramos demarcar o paradoxo central da sua obra, que diz respeito ao convívio
teórico da abordagem pós-colonial com a busca da historicidade do ethos nacional palestino.
Entendemos que o paradoxo do nacionalismo, sua estreita vinculação com o debate pós-
colonial, e os percursos teóricos decorrentes do engajamento progressivo com a causa
nacional Palestina, subsidiam outras reflexões que possuem interrelação. São essas: a
representação do intelectual na sociedade contemporânea, a relação entre texto e realidade
histórica, entendida por meio do conceito de mundanidade, a categoria de exílio como
condição ontológica e metáfora epistemológica e o problema da relação entre cultura e
imperialismo.
A amplitude e a diversidade dos seus escritos tornam árduo o desafio do recorte
temático e metodológico e, numa outra perspectiva, enriquece o esforço pela realização de um
inventário genealógico dos seus principais dilemas. Esses percursos de análise orientam-se
por um objetivo mais geral que é a análise da centralidade e respectiva atualidade da obra de
Edward W. Said na historiografia Pós-Colonial.
Devemos delimitar o nosso objeto para que ele não se expanda para além das
pretensões do nosso trabalho. Ilustramos a dimensão do nosso objeto refutando a inserção de
uma análise empírica e factual sobre o Oriente Médio. Devemos demarcar os limites do nosso
trabalho a partir de uma proposta que circunscreva a produção teórica de Edward W. Said aos
nossos objetivos.1

1
Ao demarcar as obras que constituíram nosso objeto de análise resolvemos não privilegiar a produção
historiográfica sobre a questão árabe-isralense, ou mesmo os seus escritos jornalísticos reunidos posteriomente
em coletâneas temáticas. Estas abordavam a questão nacional palestina. As leituras sobre essa parcela da
produção foram realizadas com o propósito de entender a interpretação sobre a questão árabe-isralense que possa
fundamentar o paradoxo que buscamos no conjunto da sua obra, embora sem um detalhamento analítico.
9

Podemos situar o presente trabalho no campo da história das ideias.2 Ao pensarmos na


complexidade e nas várias ramificações dessa definição, nos parece um pouco ingênuo
afirmar na introdução do trabalho o nosso posicionamento em relação a sua linhagem teórica.
Reconhecendo a amplitude das diversas vertentes situadas na definição da história das
ideias, procuramos adotar a delimitação da abordagem presente no debate em torno da
pluralidade disciplinar e conceitual inerente à história das ideias e história intelectual
(FALCON, 1997).3
Falcon (1997) problematiza as fronteiras da história das ideias, em função das críticas
empreendidas pela historiografia francesa dos Annales e pela produção teórica marxista. A
citação de Lucien Febvre, afirmando que trata-se de uma história desencarnada, além do
incômodo com a ambivalência do próprio objeto, e as fronteiras amplas, acaba por aproximar
essa modalidade teórica da história da filosofia.
O autor procura entender duas chaves importantes de definição da história das ideias,
a saber: como proposição ontológica que prevê a existência real das ideias na História e como
mecanismo epistemológico que recupera a validade do conhecimento histórico onde as ideias
conformam o seu objeto.
Falcon (1997) desenvolve a transição e atualização de uma história das ideias que
ganha nova denominação, história intelectual, em que o objeto privilegiado passa ser o
conjunto das formas de pensamento. A distinção entre história das ideias e história intelectual
pode ser vista a partir dos seguintes critérios; a primeira remete a textos onde os conceitos
incorporados representam os principais agentes históricos, para no segundo plano ser
realizada a análise dos autores dos textos, nesse sentido as ideias são prementes aos contextos.
A história intelectual remete a contextos mais amplos, uma vez que ele incopora um
universo que abrange; crenças não articuladas, opiniões, suposições, ideias formalizadas, a
recepção e a articulação com outros ambientes intelectuais. Essa abordagem procura articular
os temas às condições externas.
O autor em questão procura contextualizar o percurso da história das idéias, suas
distinções e a reformulação para a transição de uma nova denominação; a história intelectual.
Falcon (1997) desenvolve desde o historicismo remetido ao século XIX, passando pelo

2
Para um rico panorama teórico sobre a trajetória da História das ideias, ver, BEVIR, Mark, A Lógica da
História das ideias, Bauru: EDUSC, 2008. e FALCON, F. “História das Ideias”, In: CARDOSO, C. F., e
VAINFAS, R. (Org.), Domínios da História. Ensaios de teoria e Metodologia. RJ: Editora Campus/Elsevier,
1997.
3
FALCON, Francisco, “História das Ideias”, In: CARDOSO, C. F., ; VAINFAS, R. (Org.), Domínios da
História. Ensaios de teoria e Metodologia. RJ: Editora Campus/Elsevier, 1997
10

marxismo, a escola dos Annales e a história das ideias no contexto estadunidense; da New
History de J. H. Robinson a History of Ideas de A. Lovejoy.
Além disso, o autor traça um mapeamento das variadas tendências produzidas nos
anos 1970, que tiveram importância para a história das ideias: o marxismo estrutural de
Althusser, as ideias de Michel Foucault e a redescoberta dos trabalhos de M. Bakhtin. Em
síntese, o autor conclui que a existência de uma variedade de concepções e tendências que se
inserem sob o rotulo da nova história intelectual, desempenham papéis diferentes e possuem
uma importância teórica específica.
Com base na prévia demonstração da complexidade da adesão ao campo metodológico
da história das ideias, recorremos a uma modalidade dessa produção, remetida ao contexto
inglês, voltado para a uma história das ideias políticas explicitadas no artigo de Falcon (1997).
Quentin Skinner (1989) 4, historiador das ideias políticas desenvolveu sua análise
procurando pensar as ideias ou conceitos do ponto de vista de quem os conduzia, com
referência aos vocabulários políticos e sociais predominantes na época, situando os textos no
seu campo de atividade.
O texto Meaning and understanding in the History of Ideas (SKINNER, 1989)5 expõe
o problema da compreensão dos atos de fala no contexto teórico da filosofia da linguagem. O
artigo em destaque aparece como um manifesto do movimento contextualista que enfoca a
fragilidade da abordagem textualista e da noção de texto autônomo.
Skinner contestava a ideia do texto como um conjunto coerente e finito de
significações, à disposição dos leitores competentes que pudessem captar seu sentido. Além
disso, o autor relativizava as abordagens mais influentes da história do pensamento político
que projetavam expectativas do presente sobre o estudo dos autores do passado, além da
projeção errônea de tendências ou doutrinas políticas que nem sequer existiam.
Sua proposta é motivada por uma alternativa metodológica que reconhece como
problemática uma abordagem equivocada do texto clássico, o que suscita um conjunto de
mitologias. A mitologia da doutrina aparece quando os enunciados dos autores são
enquadrados em doutrinas, tipologias criadas pelo próprio historiador. A mitologia da
coerência pode ser presumida quando o historiador elabora sistemas intelectuais fechados,
4
Quentin Skinner, historiador das ideias políticas é um representante do contextualismo linguístico inglês,
institucionalizado originalmente na Universidade de Cambridge. Esta abordagem teórica nasceu com a
publicação dos primeiros ensaios metodológicos nos anos 50 e 60, de autores como Peter Laslett, Jonh Pocock,
Jonh Dunn e Quentin Skinner. Entendemos que o último autor encontra lugar de destaque no conjunto desse
debate.
5
Um texto importante para se entender uma primeira abordagem da chamada perspectiva Collingwoodiana,
originalmente conhecida como “Escola de Cambridge”, foi escrito por Skinner em 1969.
11

inibindo as contradições, incoerências ou mudanças de concepção no tempo. A mitologia da


prolepse em que o significado dos enunciados para o historiador confunde-se com o
significado produzido pelo autor.
E por fim há a mitologia do paroquialismo, na qual o historiador constrói uma falsa
identidade entre o autor e o seu próprio universo, promovendo uma identificação artificial
entre as culturas. Essas mitologias convergem para uma ameaçadora produção de
anacronismos.

Skinner argumenta que a suposição da existência de “fatos puros” à disposição do


escrutínio dos cientistas sociais e historiadores, consiste em um grave erro
epistemológico. Não há acesso privilegiado a “fatos indisputáveis”, pois as
percepções que temos das coisas são, em última análise, interpretações. Em suma,
nosso acesso aos “fatos” e nossa ideia do que é racional são aspectos
irremediavelmente condicionados pelas crenças que sustentamos. Quando
selecionamos determinados eventos do passado e os elevamos à categoria dos fatos,
estamos, ao mesmo tempo, ignorando uma infinidade de outros eventos, muitas
vezes por sequer estarmos capacitados para perceber sua própria existência. Os fatos
não falam por si, e nosso acesso á realidade é irremediavelmente theory –Laden
(SILVA, 2010, p. 7).6

Skinner sustentava que entender historicamente o texto significava abordá-lo como um


ato de fala portador de uma força ilocucionária7 ou performativa que viria a ser chamada de
intencionalidade. O texto aqui não é pensado de forma imanente, este só pode ser apreendido
na rede de relações nas quais seus atores o introduziam.
A particularidade contingencial dos atos de fala8 e o reconhecimento da autoridade do
autor possibilitam um conjunto de críticas que apontam para um historicismo radical que se
confunde com um relativismo alimentado pela atribuição de importância ao autor.
O historicismo pode ser ilustrado na defesa da necessidade de se entender um dado
texto a partir do seu próprio sentido. A compreensão da intenção autoral origina-se na
percepção de convenções linguísticas que historicizam o texto. A história do pensamento

6
SILVA, Ricardo, “O contextualismo linguístico na História do pensamento político: Quentin Skinner e o debate
metodológico Contemporâneo”, Revista Dados, Rio de Janeiro, v.53, número 2, 2010. p.7.
7
O conceito de “força ilocucionária intencional” originou-se na obra de J. L. Austin, Quando dizer é fazer:
palavras e ação (1990), de onde Skinner extrai o fundamento filosófico para definir a compreensão de uma
afirmação e a não correspondência imediata do seu significado, ou seja, por meio do ato da fala depreendemos a
intenção do autor que passível de contextualização, pode nos levar a interpretação de um determinado
pensamento político.

8
Skinner entende desta maneira que os “atos de fala” devem ser tomados como atos sociais intersubjetivos e não
intertextuais e que ocorrem em situações históricas concretas, onde a linguagem é manipulada conscientemente
com vistas à realização de determinadas ações e interesses sociais e políticos. Nesse sentido o nosso autor se
opõe a morte ou ausência do autor buscando atestar a historicidade da linguagem.
12

político, defendida por Skinner, pensa o historiador capaz de rastrear as intenções do autor
ilustradas no texto por meio de um contexto discursivo.
O conceito de significado sofreu transformações no decorrer da obra de Skinner, na
medida em que as críticas9 dirigidas à sua teoria apontavam o reducionismo desse conceito.
Os significados podem ser atrelados ao estudo da semântica e sintaxe do texto; o sentido do
texto atrelado à recepção, ou seja, aos efeitos produzidos nos leitores, e por fim, o último
significado que é a marca característica das suas teses, a intenção autoral. Evitar o risco do
subjetivismo exacerbado ou do psiquismo, no caso do rastreamento das intenções autorais,
possibilita uma compreensão mais fidedigna do texto.
A significação de um texto excede a intencionalidade consciente do autor. Essa
perspectiva demonstra resistência ao textualismo, onde o texto aparece como entidade
autônoma. O texto não é coerente em si mesmo. Há uma permeabilidade entre texto e
contexto, sem que o primeiro seja tratado como resultado necessário do segundo, evitando
assim certas tentações reducionistas. Não é possível isolar o texto de suas condições de
produção e recepção.
No caso da teoria política, rejeitada por Skinner, os textos eram vistos no interior dos
conjuntos homogêneos, universais, sem especificidades contextuais e por isso mesmo
facilmente identificáveis. A busca de unidades nos textos e a sua acepção de obra clássica
produziam mitologias antihistoricizantes que esvaziavam leituras mais apropriadas segundo a
perspectiva de Skinner. Sua atenção dirigiu-se para o mundo mental do escritor, suas crenças
empíricas, suas percepções, seus sentimentos, seus valores morais e políticos – ideologias
compartilhadas, trocadas intersubjetivamente com seus pares e sua audiência.
Explicitar a metodologia da história das ideias políticas de Skinner, nos ajudar a traçar
os rumos da análise que pretendemos empreender na tese. O contextualismo saidiano, assim
como a sua autodefinição nos oferece pistas dos mecanismos analíticos que devemos
empregar para nos aproximar das suas produções. Procuramos reunir as reflexões mais
epistemológicas e relacionadas à teoria literária assim como as suas obras voltadas para o
debate sobre representação e identidade para traçar alguns dos paradoxos enriquecem a sua
produção.

9
As críticas ao método de Skinner incidem na elaboração de rótulos contraditórios. O autor é simultaneamente
acusado de incorrer no excessivo positivismo, por outro lado suas colocações ou definições são relegadas às
categorias “subjetivistas”, ou “idealistas”. A visão de alguns críticos apresenta a fragilidade de uma análise da
linguagem e o seu caráter auto-referenciado, que tende a esvaziar o valor atribuído aos fatores causais externos.
13

Devemos delinear a genealogia do seu pensamento, que parte de uma matriz chamada
pós-colonial para a progressiva valorização da nacionalidade palestina, com todas as nuances
ambivalentes e “desconfiadas” do processo de defesa de ethos nacional. A visão que Said
desenvolve do imperialismo, atrelado ao seu componente cultural deve ser visto como um
discurso inerente às práticas e representações culturais do período.
A sombra do imperialismo aparece nas entrelinhas dos romances e obras de R.
Kipling, J. Conrad, A. Gide, J. Austen e A. Camus, assim como nas obras musicais de
Wagner e Verdi, na filosofia de Hegel e Marx, assim como na sociologia de Comte, Weber e
Durkheim. Sem pensar nas obras como reflexos mecânicos das ideologias, Said desenvolve
uma analise da indissociação da história do império e das colônias, vistas aqui como
“histórias entrelaçadas”.
O imperialismo é inseparável de certas estruturas mentais e concepções de mundo que
chamam atenção sobre a relação e a atitude em relação ao outro, processo no qual se percebe
a sua própria identidade. O pós-colonial e o pós-imperial não significam o fim da hegemonia
política e econômica dos países ocidentais. Said ressalta as premissas do Orientalismo que
possuem relação com a formação da própria identidade moderna ocidental, em contato com as
construções culturais do outro.
O autor insiste na esfera externa à textualidade, no que tange a dominação colonial. A
violência imperialista não se restringe a uma hierarquia epistêmica. A sua denúncia crítica se
dirige ao vazio do “formalismo técnico exasperado”, e para o aspecto circular da teoria
literária, voltada hemerneuticamente para o texto.
No conteúdo dessa crítica, Said dedica-se à análise da representação intelectual, no
sentido do letrado engajado, comprometido com uma causa política, avesso a especialização e
ao isolamento em relação aos assuntos políticos. Seu compromisso deve se ampliar para fora
do mundo acadêmico.
Esse dilema tem relação com as críticas ao pensamernto pós-colonial, muito atreladas
ao debate da literatura e à escassa articulação com posições políticas mais marcadas.10Existem
várias leituras sobre essa lacuna do político no pensamento pós-colonial. Uma das hipóteses
levantadas por Miguel Mellino (2008)11 justifica-se através da precária associação com a
historiografia marxista.

10
O debate sobre a historiografia pós-colonial será realizado na terceira parte da tese, onde nos propomos a
situar o lugar da obra de Edward W. Said nessa produção historiográfica. Devemos debater as especificidades
dessa vertente e as particularidades e genealogias teóricas dos autores integrados a essa corrente.
14

Una de las principales causas de este déficit político reside, a mi entender, en la


dificultad de instaurar un dialogo más abierto com el marxismo y com aquellos
sectores de la crítica cultural, de las ciências políticas, de la antropologia y de la
sociologia mayormente ocupados tanto en el análisis de los processos y de los
conflictos socioeconômicos contemporâneos como la investigacion de campo o la
entnografia (MELLINO, 2008, p. 40).12

Podemos perceber inovações na historiografia pós-colonial desenvolvida por Said. As


conexões entre produção de conhecimento e exercício de poder, à luz da teoria foucaultiana e
o seu respectivo conceito de discurso. Reconhecemos uma análise da produção literária
voltada para o debate dos processos históricos e epistemológicos, vinculados à dominação
colonial. A cultura é pensada como um recurso privilegiado de percepção das relações de
poder.
O paradigma pós-colonial representa um tipo de revisionismo crítico cuja temática
emerge do contraponto epistemológico entre o colonial e o pós-colonial. O pensamento de
Said foi largamente inspirado na teoria do nacionalismo de Frantz Fanon, especialmente o
livro póstumo Os Condenados da terra (FANON, 1979).
Fanon assim como Said, atribuíam grande importância à questão da dominação
cultural nas dinâmicas do colonialismo. Para Fanon (1979), a estrutura racista do colonialismo
ridicularizava práticas culturais locais e incutia nos negros um desejo projetado psiquicamente
de se inserir no universo do colonizador.
A temática da representação se insere no campo das questões inerentes ao pensamento
pós-colonial e o problema da impossibilidade de rever os posicionamentos, forçosamente
hirárquicos da estrutura eurocêntrica. Isto implica em descontruir a história hegemônica da
modernidade, centrada na Europa, o que evidencia as relações materiais e simbólicas entre o
“Ocidente” e o “resto do mundo”.
Introduzimos a pesrpectiva do projeto do historiador indiano, Dipesh Chakrabarty
(2001)13 de “provincializar a Europa”. O projeto de transcender o universalismo liberal e a
atribuição de uma cientificidade e racionalismo à amplitude de toda e qualquer estrutura

11
MELLINO, Miguel, La Crítica Pós-Colonial, Descolonización, capitalismo y cosmpolitismo em los estúdios
poscoloniales, Buenos Aires: Editora Paidós, 2008.
12
Ibid, p.40. “Uma das principais causas deste déficit político reside, no meu entender, na dificuldade de
instaurar um diálogo mais aberto com o marxismo e com aqueles setores da crítica cultural, das ciências políticas
da antropologia e da sociologia majoritariamente ocupados com a análise dos processos e dos conflitos
sócioeconômicos contmeporâneos como a pesquisa de campo ou da etnografia.” (tradução nossa)
13
CHAKRABARTY, D, “Pós-colonialismo y e o artifício da história: quien habla por lo pasados “índios”?, In:
MIGNOLO, W. (comp.) Capitalismo y geopolítica del conocimento. El eurocentrismo y la filosofia de lal
iberácion en el debate contemporâneo . Buenos Aires: Ediciones del signo, 2001.
15

geográfica, desconstrói a visão eurocêntrica definida pelo imperialismo europeu. O lugar de


enunciação representa um lugar heterogêneo, dado que a pretensão de homogeneidade é
sempre hierarquizante.
O problema da subalternidade da historiografia indiana fala de uma contraproposta e
inverte o lugar da produção de conhecimento hierarquicamente centrada na produção
Ocidental. O dilema de Chakrabrarty (2001) está centrado e formulado na diferença colonial,
e na crítica ao caminho da produção de conhecimento que percebe que todas as histórias
tendem a se converter em variações de uma única narrativa universal. A historiografia indiana
se encontra em uma posição subordinada, na qual pode articular as posições dos sujeitos em
nome desta história.
Chakrabarty (2001) fala de uma Europa hiperreal, construída por mitos nacionais que
tanto o imperialismo como o nacionalismo narram em nome do colonizado. O indiano critica
a representação mimética. A história indiana é uma mímesis de um sujeito moderno da
história europeia, e está fadada a representar a triste figura da incompletude e do fracasso. O
colonizado só pode se expressar sobre, e em nome, da narrativa de transição que sempre
privilegiará o moderno encarnado na Europa.
O autor indiano fala da valorização da história na sociedade moderna, como suporte
do imperialismo europeu, atrelado ao nacionalismo de terceiro mundo. A universalização do
estado nacional é imposta no processo de descolonização do terceiro mundo. O projeto de
“provincializar a Europa” se refere a uma história que ainda não existe, por isso autor fala de
uma forma programática, como um projeto a se realizar.
Para Chakrabarty não se pode rejeitar a modernidade, os valores liberais, a ciência, a
razão, e as grandes narrativas. O projeto de “provincializar a Europa” não pode ser um projeto
de “relativismo cultural”. A demonstração da Europa como uma entidade imaginária não
esvazia o seu interesse, nem seu poder. O pressuposto que alimenta essse projeto passa pela
atribuição do caráter moderno à Europa, vista como um fragmento da história global, na qual
a história do império europeu é uma parte integral.
O problema das histórias européias como autosuficientes é apontado nesse contexto e
constitui um problema epistêmico na medida em que ignora o cenário colonial (externo e
interno). O projeto de “provincializar a Europa” esbarra nos obstáculos institucionais
universitários e acadêmicos, na medida em que, os princípios hegemônicos do conhecimento
produzido, nas instituições européias, e formadoras da intelectualidade das ex-colônias,
sempre voltam aos contornos da Europa hiperreal. A generalização produzida nos meios
acadêmicos não é independente das abstrações suscitadas pela modernidade européia.
16

O problema da hierarquia da produção de conhecimento e da universalização das


perspectivas européias, como encarnações da modernidade, nos encaminha para o pensamento
pós-colonial e para a desconstrução dos binarismos, assim como o problema central da
representação. Para Said, a teoria pós-colonial não pode transformar a mística cultural numa
nova pureza, que concretiza erroneamente uma inversão de papéis, e que pode esvaziar
conflitos políticos sublinhando filiações raciais, étnicas ou nacionais.
Para Timothy Brennan (2013)14 Said demonstra uma relutância em relação à filiação a
um marxismo e a abordagem econômica do imperialismo. Said estaria imerso numa relação
problemática com o marxismo, embora não esconda as vinculações com a tradição do
pensamento gramsciano e possíveis conexões com o pensamento de Walter Benjamin, que se
vincula à idealizada complexidade filológica. Said produz uma leitura associativa do passado,
baseado no idioma tradicional da historia intectual e no conceito de arquivo.15
Numa preocupação metodologicamente foucaultiana, Said assume a preocupação com
a questão da afiliação, na busca das ramificações teóricas e conceituais que migram de uma
circunstância social para outra. A afiliação é um termo que associa as escolhas conscientes
envolvidas numa constelaçao de conhecimentos. No Beginnings (SAID, 1985), Said recusa o
rastreamento das origens, no sentido da história linear, substituída no sentido viquiano pela
ideia de um passado elaborado pelo homem e pela ênfase na agência humana.
A relação entre o conhecimento e as relações de poder tem relativa vinculação com a
teoria foucaultiana. O texto compôe uma rede de poder, cuja forma é uma força obscura que
se encontra sob o conhecimento. O texto possui uma contramemória, o que para Foucault
aparece na forma de uma luta pela dominação que pode ser oculta, quieta e sistemática.
Para Said, o Orientalismo possui um foco de interesse que representa uma parceria
entre uma textualidade “arquivística”, discursiva e o poder cosmopolita. O Orientalismo é um
conhecimento operante que gera uma práxis imperialista.
Para se reitegrar com a atualidade mundana, o crítico dos textos deve investigar o
sistema do discurso pelo qual o mundo é administrado. A teoria do arquivo que adquire uma
dimensão material tem relação com o recorte que a Europa faz do Oriente.

14
BRENNAN, Timothy, Edward W. Said as a Lukacsian critic: modernism and empire, College Literature, 40.4
(Fall 2013).
15
O conceito de arquivo nos remete ao pensamento de Foucault. O alinhamento de Said ao pensamento de
Foucault não é integral. Em vários artigos ele atribui sua adesão a alguns conceitos de forma comedida,
assinalando o seu desconforto com a totalidade da sociedade disciplinar. Devemos discutir mais amplamente
essa proximidade, especificamente no contexto de análise sobre o Orientalismo, no qual a apropriação parcial da
obra de Foucault é mais recorrente.
17

O arquivo é de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento
dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que
faz com todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa
amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não
desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em
figuras distintas, se contrapunham umas com as outras, segundo relações múltiplas,
se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas; ele é o que faz
com que não recuem no mesmo ritmo que o tempo, mas que as que brilham muito
forte como estrelas próximas venham até nós, na verdade de muito longe, quando
outras contemporâneas já estão extremamente pálidas (FOUCAULT, 1987, p.
149).16

Segundo Foucault (1987), o método arqueológico que se revela por meio do discurso,
aparece como sistemático, impessoal, e regulado por formações enunciadoras que governam a
produção da cultura. O arquivo tem relação com a coletividade regularizadora que governa o
discurso através de uma delimitação externa. Said empreende uma apropriação parcial da obra
de Foucault uma vez que a sua crítica incide na relação entre sujeito individual e força
coletiva. A dialética se movimenta entre a intenção voluntária e o movimento determinado, o
que promove um dilema na obra do filósofo francês.
Para Said a contribuição intelectual mais importante de Foucault se deve a
comprensão de como a vontade de exercer o controle dominante na sociedade e na história
descobriu também um modo de “vestir”, disfarçar e se envolver na linguagem. Said se mostra
incomodado com a rigidez do sistema de dominação foucaultiano, isso incide no problema da
evolução histórica.
Na concepção do autor Palestino, Foucault adota um ponto de vista curiosamente
passivo e estéril na forma de conservação de poder e isso acaba sendo perigoso para se pensar
a descontinuidade histórica. A leitura saidiana interpreta essa fragilidade através de um
“perigoso” desacordo com o marxismo, no caso específico da teoria foucaultiana.
As relações entre o Orientalismo enquanto conhecimento e a práxis imperialista
começou a ser explorada no livro Orientalismo (SAID, 2007) e continou a ser abordada na
obra, Cultura e imperialismo (SAID, 1993). O Orientalismo longe de ser uma característica
intelectual tendeu fatalmente para a extensão européia sobre outros continentes e para o
acúmulo de territórios.

Por um lado o orientalismo adquiriu o Oriente tão literal e tão amplamente quanto
possível; por outro lado, domesticou o conhecimento para o Ocidente, filtrando-o
através de códigos reguladores, classificações, exemplos de espécime, revistas
periódicas, dicionários, gramáticas, comentários, edições, traduções, todos os quais
juntos formavam um simulacro do Oriente e reproduziam-no materialmente no
Ocidente, para o Ocidente, para o ocidente. O Oriente, em suma, seria transformado,
passando do testemunho pessoal e às vezes deturpado de intrépidos viajantes e

16
FOUCAULT, M. A Arquelogia do saber, RJ: Editora Forense Universitária, 1987. p.149
18

residentes para a definição impessoal de todo um grupo de trabalhadores científicos.


Seria transformado, passando da experiência consecutiva da pesquisa individual para
uma espécie de museu imaginário sem paredes, onde tudo o que fosse colhido nas
imensas distâncias e variedades da cultura oriental tornava-se categoricamente
oriental. Seria reconvertido, reestruturado, deixando de ser o amontoado de
fragmentos colhidos aos poucos por exploradores, expedições, comissões, exércitos
e mercadores, para incorporar o sentido orientalista lexicográfico, bibliográfico,
departamentalizado e textualizado (SAID, 2007, p. 232). 17

Nossa hipótese está circuscrita na relação entre os posicionamentos teóricos marcados


pelo pensamento pós-colonial e um engajamento progressivo na causa nacional palestina. Este
impõe um dilema central, que atravessa sua obra, que pode ser sintetizado na árdua
conciliação entre o ativismo político e o humanismo crítico.
Nossa tese se divide em duas grandes partes, que se orientam por uma lógica
explicativa, relacionada às nossas hipóteses sobre uma parcela da produção do autor em
questão.
Nós dedicamos à primeira parte; Edward Said: biografia e trajetória teórica, a uma
caracterização analítica das obras que constituem o nosso objeto de estudo. Dedicamos um
capítulo para cada obra, e procuramos mapear as principais reflexões inerentes à essa
produção e mais do que isso, visamos rastrear uma certa genealogia de conceitos e debates
teóricos que alimentam o perfil genealógico do pensamento de Edward Said.
No início da primeira parte intitulada; Fora do lugar; uma trajetória em contraponto,
procuramos refazer o percurso de vida de Edward W. Said a partir dos marcos que nos
informam sobre mudanças teóricas na sua trajetória intelectual. Acreditamos que esses são
processos indisssociáveis. Com base nas entrevistas, na autobiografia, nas próprias obras e
nos comentadores da sua produção, definimos marcos de compreensão dos seus principais
dilemas teóricos.
A segunda subparte, nomeada Historiografia literária e escrita da história, destaca a
produção mais voltada para o debate acerca da crítica literária e dos seus dilemas políticos e
epistemológicos. Nesse contexto, identificamos a necessidade de acompanhar parte da
reflexão que Said desenvolveu desde a sua tese de doutorado sobre a obra do literato Joseph
Conrad18, temática recorrente em toda a sua obra, inclusive na reflexão sobre o exílio, e nos
debates mais metodológicos sobre crítica literária até a aproximação com a obra de Auerbach.

17
Said, E. Orientalismo, Oriente como invenção do Ocidente, SP: Editora Companhia das Letras.2007. p. 232
18
Após a conclusão do seu doutorado em Harvard em 1963, Said ingressou na Universade de Columbia como
professor da graduação de estudos literários. Nesse contexto ele começou a tomar contato o pensamento da
esquerda britânica do pós-guerra que alterou a paisagem da pesquisa históricaa que mais tarde seria conhecida
pela denominação de estudos culturais. Ele montou um seminário com leituras de obras de Raymond Williams,
especialmente, Marxismo e literatura, as referências de E. P. Tohmpson e suas polêmicas teóricas contra o
19

Além de identificar seus conceitos centrais, tais como; mundanidade, afiliação,


filiação, procuramos delimitar no debate sobre o lugar contemporâneo da crítica literária, as
suas fundamentações teóricas, as apropriações parciais e problemáticas de alguns autores
citados, porém efetivamente contraditórios com seu projeto intelectual.
A aproximação com o realismo auerbachiano e a respectiva mediação da leitura de
Vico, sustenta não só o conceito de história, como também a critica secular defendida por
Said. Vico é incorporado no seu vocabulário conceitual, a partir do livro teórico Beginnings
(SAID, 1985), embora ele retorne com várias referências, desde os ricos debates sobre o
exílio, até suas reflexões mais diretas sobre a crítica literária, e as relações entre narrativa e
mundanidade.
Ao introduzir o termo “começos” no lugar de “origens”, Said reforça o sentido
histórico avesso a temporalidade modernista. Os começos são apropriados no sentido
viquiano de elaboração do seu prórpio passado, sua ênfase não é na ruptura, mas na agência.
A teoria da História viquiana oferece sustentação para explorar as origens em combinação
com a crítica do modernismo em Lukács. Teoria para ele, era o que a consciência produziu,
não com uma realidade evitada, mas como um desejo revolucionário comprometido com a
mundanidade e a mudança.
Said relativiza a ideia de derivação intelectual de uma realidade. Não se trata de uma
relação mecanicista entre texto e realidade. Toda manifestação intelectual e artística é obra de
um autor individual e expressa um pensamento afiliado a um contexto. Uma forma de
imaginar o aspecto crítico da gênese estética é considerar o texto como um campo dinâmico
no lugar de um objeto estático.
Said se situa no âmbito de uma crítica literaria avessa a crítica contemporânea
identificada com uma matriz desconstrucionista, que se sobressai na figura do teórico Paul de
Man19 que procura definir o chamado “mundo abatido da nossa facticidade”, e defende a
impossibilidade da responsabilidade política e social na critica literária. Said combate os
paradigmas textualistas ou internalistas, o que acabou por produzir manifestos em torno do
papel político do intelectual, especificamente na figura do crítico literário.

marxismo althusseriano e Eric Hobsbawm e sua invençao da tradição, livro utilizado no, Cultura e
Imperialismo. Said chegaria a dizer que O Orientalismo teria se inspirado na obra O campo e a cidade de
Raymond Williams.
19
Crítico literário de origem belga, radicou-se nos EUA, no pós-guerra onde se tornou professor de teoria
literária da Universidade de Yale. Ao lado de J. Derrida se notabilizou por um alinhamento teórico
desconstrucionista, que defendia a critica literária com objetivos epistemológicos, exclusivamente voltados para
a análise internalista dos textos. Foi orientador da teórica indiana, identificada com pós-colonialismo, Gayatri
Spivak.
20

Após o debate sobre a historiografia literária, nos dedicamos a discutir a obra


considerada o marco fundador do pensamento pós-colonial; O Orientalismo, o Oriente como
invenção do Ocidente (SAID, 1978). Podemos reconhecer nessa obra, alguns dos
fundamentos que permanecerão na sua trajetória teórica, assim como devemos identificar
nesse debate, alguns pontos frágeis e polêmicos que motivaram inúmeras críticas e análises
calcadas nos paradoxos das suas filiações teóricas.

Mas Orientalismo tem sido lido e comentado por escrito no mundo árabe como uma
defesa sistemática do islã e dos árabes, embora eu diga com clareza que não tenho
nenhum interesse em mostrar a real constituição do verdadeiro Oriente ou islã, nem
possuo qualificações para tanto. Na verdade, vou muito além quando, bem no início
do livro, digo que palavras como “Oriente”, e “Ocidente”, não correspondem a
nenhuma realidade estável que exista como fato natural. Além disso, todas essas
designações geográficas são uma combinação estranha do empírico, do imaginativo
(SAID, 2007. P 440).20

As críticas à obra promoveram a necessidade de uma revisão de alguns prefácios às


várias edições, e um artigo denominado “O Orientalismo reconsiderado”(2003)21. Estamos
contemplando as inúmeras críticas à tese sobre o Orientalismo, assim como as filiações
teóricas inerentes à obra, e os paradoxos suscitados de associações aparentemnte pouco
ortodoxas.
Said defende que no livro em questão não existe um Oriente real ou verdadeiro, nem
sua pretensão incide na proposta de representar o Oriente de maneira mais fidedigna, mais
próxima da realidade. O Oriente é uma entidade constituída, sendo discutível a noção da
existência de espaços geográficos com habitantes nativos, diferentes que podem ser definidos
com base em alguma religião, cultura ou essência racial.
A proximidade identitária não significa mais autenticidade no discurso ou
representação. Said afirma que não acredita que só muçulmanos possam falar de muçulmanos,
ou só negros podem falar com mais autoridade sobre os negros.
Said reconhece no pósfacio, a repercussão do livro, as variadas apropriações, as
interpretaçãos negativas, os comentários hostis ou a apropriação do mecanismo interpretativo
aplicado. O autor refuta o alegado antiocidentalismo atribuído de uma forma equivocada. O
Orientalismo não é uma sinédoque, um símbolo em miniatura de todo o Ocidente, sintetizado
como a representação do Ocidente de forma geral. A crítica ao Orientalismo não representa
uma defesa proselitista do Islã ou do fundamentalismo muçulmano.

20
SAID, E. Orientalismo, Oriente como invenção do Ocidente, SP: Editora Companhia das Letras.2007. p.440
21
SAID, E., “O Orientalismo Reconsiderado”, In: Reflexões sobre o exílio, e outros ensaios, SP: Editora
Companhia das Letras, 2003.
21

Said responde que a leitura equivocada do livro Orientalismo tem induzido a inserção
de Said como a resposta e mediação da voz do “subalterno”, ou das minorias, um tipo de
manifesto em nome dos colonizados e que essa questão remete a tão combatida dualidade das
identidades binárias e estáveis que o pensamento pós-colonial questiona.
No capítulo sobre o livro A Questão da Palestina (SAID, 2012), iniciamos o nosso
inventário do debate sobre o nacionalismo na obra do autor palestino. A questão da Palestina
traz a tona o Said nacionalista, e promove indiretamente um paradoxo central no conjunto da
sua produção. Embora Said, se mantenha resistente ao nativismo ingênuo, a adesão a qualquer
forma de nacionalismo arrogante, o livro A Questão da Palestina coloca em suspenso alguns
dos presuspostos pós-coloniais em termos de definição essencialista da identidade, em nome
do rastreamento do ethos nacional palestino.
Dedicamos um capítulo ao debate central sobre a representação do intelectual na
sociedade contemporânea, Said aborda essa temática em várias conferências que foram
reunidas no livro Representações do intelectual: as Conferências Reith de 1993 (SAID,
2005).
O debate em torno do papel do intelectual está vinculado à centralidade da categoria
de exílio, que desempenha não só uma experiência ontológica, como uma metáfora
epistemológica. A coletânea Reflexões sobre o exílio (SAID, 2003) aparece na tese como uma
síntese de experiência formativa no perfil do intelectual, tal como idealizado pelo autor
palestino. Said procurava manter acesa a tensão entre a parte e o todo como central para a sua
fenomenologia política do exílio inspirada em Adorno.
O livro Cultura e imperialismo (SAID, 1993) ocupa um lugar central na nossa tese,
uma vez que boa parte do debate teórico sobre o nacionalismo, pode ser ilustrado em trechos
contitutivos da obra em questão. Podemos afirmar que esse livro traz a tona, diversos marcos
de inspiração da formulação da historicidade das narrativas nacionais. Essa genealogia do
pensamento saidiano, quando aborda a relação entre a cultura e o imperialismo e as narrativas
nacionais diante da descontinuidade histórica, o que configura o nosso principal tema de
análise.
Queremos sinalizar que o nosso interesse pelo paradoxo nacionalista em Said, inclui o
delineamento dos traços teóricos que teriam colaborado para definir o seu pensamento.
Podemos levantar algumas hipóteses em torno da presença de algumas categorias
gramscianas, ao lado da forte presença do pensamento de Fanon, Os Condenados da terra
22

(FANON, 1979) e por meio dessa aproximação, o acesso ao pensamento de G. Lukács


(2012)22, ainda que com outra forma de apropriação.
A inspiração na obra de Fanon, em torno do debate sobre o nacionalismo é visível no
livro citado. Por meio da aproximação entre o percurso de Said e as teses sobre o
nacionalismo em Fanon, chegamos a uma base teórica enraizada na concepção de reificação
presente em Lukács (2012).23
Consideramos o livro Cultura e Imperialismo (SAID, 1993)24 como uma sequência do
debate iniciado no Orientalismo (SAID, 2007). Em resposta as críticas originadas na leitura
do Orientalismo (SAID, 2007)25, Said resoveu se ocupar da produção literária do ocidente
sobre o Oriente, suas vinculações com a práxis imperialista e a ilustração de um ocidente
calcado em sua produção cultural variada. Essa escrita estaria voltada para responder aos
críticos que viam em Said uma abordagem teórica “ocidentalista”, com base numa elaboração
monolítica do ocidente.
Na segunda parte denominada, “O jogo de espelho das colonizações: perspectivas
sobre o pós-colonial”, buscamos localizar a obra de Edward W. Said na historiografia pós-
colonial. Com base numa perspectiva comparativa, procuramos debater conceitualmente as
feições dessa denominaçao teórica e particularizar as vertentes clássicas do pensamento pós-
colonial com o destaque na análise da produção de Said.

22
LUKACS, G. História e consciência de classe, estudos sobre a dialética marxista, SP: Editora Martins Fontes,
2012.
23
De 1979 a 1983, Said ofereceu seminários dedicados as obras de Lukács e Gramsci. Os textos centrais eram:
História e Consciência de Classe (1923) e A Questão Meridional (1926). Essa última obra, apropriada para uma
reflexão de como os intelectuais domesticam as atitudes colonialistas e estetizam a resistência a serviço do
domínio imperialista. Para além desses textos, Said propunha leituras sobre a Escola de Frankfurt, concentrando
especialmente na obra de Theodor Adorno (Prismas, Mínima Moralia e Filosofia da Nova Música).

24
No livro Cultura e imperialismo, Said se volta para a metáfora literária do espaço e se move para um tipo de
critica amplamente respaldado nos estudos pós-coloniais. Said pensava no confronto de culturas em diferentes
momentos de desenvolvimento.
25
O Orientalismo suscitou inúmeras críticas especialmente em sua abordagem foucaultiana e suas outras
combinações teóricas. A relativização dessas críticas passa pela argumentação de Timothy Brennan (2013) que
desenvolve uma espécie de genealogia do pensamento de Said, e aponta que sua apropriação da categoria de
discurso teria sido incorporada da teoria marxista, juntamente ao conceito de ideologia. Brennan defende a tese
de que a repercussão dos livros de Said, dos mitos de leitura, e dos impactos preconceituosos ou resistentes tem
relação com alguns fatores: sua relutância em desenvolver ou recorrer às teorias do capitalismo, mesmo
trabalhando com o imperialismo como objeto, suas confrontações com governos neoliberais, sua relutância em
discutir a tradição hegeliana de esquerda na qual Lukács e outros pensadores integravam, embora compartilhasse
de signficativas apropriações dessa tradição. Para Brennan, as leituras prévias à elaboração do livro Cultura e
imperialismo, Gramsci e Benjamin, vinculavam as leituras marxistas com estudos sobre filologia.
23

O problema da representação propõe uma “semiótica” do poder e do discurso


Orientalista, que ao remeter a questão do poder, a narrativa introduz um novo tópico no
território colonial. As fragilidades das representações binárias não significam uma mera
inversão de papéis.
Se o o binômio poder/saber coloca os sujeitos numa relaçao de poder e
reconhecimento que não è parte de um posicionamento simétrico ou dialético , “eu” e “outro”,
“senhor” e “escravo”, essa dualidade pode sugerir a inversão. O discurso é propriedade do
colonizador, o que acaba incidindo numa simplificação histórica propensa à inversão. O
problema da representação ou construção da alteridade, desestabiliza o seu reconhecimento a
e sua simultânea negação.
Aproximamo-nos do nosso objeto com a culminância do debate em torno do dilema
acerca do nacionalismo na obra de Said. Procuramos debater o problema da historicidade nas
narrativas nacionais. Recorremos ao debate historiográfico contemporâneo sobre o
nacionalismo, e restauramos uma discussão central para essa produção, a saber: a temática do
nacionalismo derivativo, a universalização da modernidade atribuída a Europa o que
encaminha as experiências nacionais dos países descolonizados para uma sujeição
hierarquizante e que atribui uma condição mimética às ex-colônias.
A aproximação entre Said e Fanon nos ajuda a compreender o dilema em torno da
teoria nacionalista. Said resgata a contranarrativa de Fanon para elaborar um contradiscurso
sobre a Palestina. Assim como a colônia impõe a metrópole uma contranarrativa de um
movimento de lbertação nacional, o que força com que a metrópole seja obrigada a pensar a
sua história junto aos colonizados, a visibilidade de ambas as partes26 aparece através do
encontro colonial. As histórias são entrelaçadas e os territórios sobrepostos, na Argélia e na
França, assim como na Palestina e em Israel.
Na conclusão da tese procuramos desenvolver a culminância do dilema central da obra
de Said, a compatibilidade entre o humanismo crítico e o ativismo político. Colocada a
organização temática dos capítulos, devemos retomar a delimitação do nosso objeto que não
contempla uma reflexão empírica sobre a questão árabe-israelense, além de pressupor um
recorte temático e historiográfico da obra do palestino Edward W. Said.

26
A importância de Lukács na obra de Fanon é inegável. Reconhecemos a centralidade de algumas categorias
tais como: reificação e consciência para a compreensão da relação entre o colonizado e o colonizador. No
contexto do livro Condenados da terra, a abordagem da violência no processo de resistência colonial já indica a
importância da reificação. A violência e a contraviolência do colonizado se equilibram e respondem a uma
homogeneidade recíproca.
24

1 EDWARD W. SAID: BIOGRAFIA E TRAJETÓRIA TEÓRICA

1.1 Fora do lugar: uma trajetória em contraponto

Às vezes me sinto como um feixe de correntes que fluem. Prefiro isso à ideia de um
eu sólido, à identidade a que tanta gente dá tanta importância. Essas correntes, como
os temas da vida de uma pessoa, fluem ao longo das horas de vigília e, em seu
melhor estado, não requerem nenhuma reconciliação, nenhuma harmonização. Elas
escapam e podem estar fora do lugar, mas pelo menos estão sempre em movimento,
no tempo, no espaço, em toda espécie de estranhas combinações que se movem, não
necessariamente para frente, às vezes umas em choque com as outras, fazendo
contrapontos, ainda que sem um tema central. Uma forma de liberdade, eu gostaria
de acreditar, embora esteja longe de ter certeza disso. Esse ceticismo também é um
dos temas aos quais particularmente gostaria de me agarrar. Com tantas dissonâncias
em minha vida, de fato aprendi a preferir estar fora do lugar e não absolutamente
certo (SAID, 2004, p.429).27

Refazer a trajetória pessoal de Edward W. Said significa associar traços biográficos ao


seu percurso como teórico. Seguimos os passos do nosso autor, ao imaginar que revisitar a
sua trajetória pessoal pode nos ajudar a compreender determinados contornos das suas
reflexões e das suas opções políticas. Identificamos alguns elementos contínuos na sua
trajetória teórica, que podem ser localizados em determinados marcos da sua vida.
Alguns posicionamentos se fundamentam em contextos históricos marcantes no que
tange à questão árabe-israelense. Devemos pontuar a forma como determinados contextos
históricos determinam as reflexões do nosso autor. O problema da identidade nacional
atravessa boa parte da sua primeira produção acadêmica e pode ser identificada na sua
reflexão mais existencial característica da sua autobiografia.
A autobiografia, intitulada Fora do lugar, Memórias (SAID, 2004)28, buscava
estimular a sua identidade a partir da negação. Escrever no exílio não é meramente uma
metáfora para a condição pós-moderna de descentramento, mas se configura também como
uma experiência da impossibilidade de retornar a um lócus milenar de comunidade.
O “fora do lugar” e o extraterritorial configuram dialeticamente uma identidade
nacional. Se, por um lado, o exílio corrompe a identidade nacional, em um movimento

27
SAID, Edward W., Fora do lugar, Memórias, SP: Companhia das Letras, 2004. p. 429.
28
Edward W. Said começou a escrever a sua biografia em 1994, após o diagnóstico médico que constatava
leucemia. A escrita da biografia durou cinco anos. No prefácio da autobiografia, Said registrou a necessidade de
elaborar um retrato subjetivo dos anos de formação, especialmente os primeiros anos de sua vida vividos no
mundo árabe.
25

permanente de esvaziamento de laços com o lugar de origem, por outro lado, essa experiência
favorece a “consciência de si mesmo” e promove a construção de uma História Nacional
(como no caso dos judeus e Palestinos) e a consolidação de um determinado ethos nacional.
Said aponta na sua autobiografia e em artigos, apesar dos seus escritos mais tardios
abordarem a Questão Palestina, que a sua atuação intelectual acadêmica, envolveu
predominantemente estudos sobre Teoria Literária e Literatura comparada.
Boa parte da sua escrita biográfica ocupa-se do período da infância e da adolescência
vivido em cidades árabes, em Jerusalém (anterior à criação do Estado Nacional Judaico),
Cairo, Beirute e na cidade de Dhour, no Líbano.
O autor reconhece que, embora o problema da Palestina tenha ocupado lugar central
na sua vida e na de seus familiares, o mesmo constituía um tema sublimado nas conversas
com seus pais, omitido das discussões e dos comentários familiares. O estranhamento em
relação a essa ausência, inerente às relações familiares mais próximas é verbalizado na
biografia como parte da despolitização dos seus pais, que resistiram ao envolvimento de Said
na política, insistindo que ele se limitasse à profissão de professor de literatura.
Na condição de estrangeiros abastados no Egito, os pais viviam apartados da política
e desconfiados das mudanças que ocorriam na década de 1950. Said descreve o desconforto
progressivo da família a partir da revolução dos oficiais livres em 1952.
O autor prioriza impressões subjetivas dos anos escolares marcados por uma formação
ocidental no mundo árabe e representações subjetivas das suas relações familiares. As
descrições de Jerusalém são sempre pontuadas por uma nostalgia e pelo detalhamento da
trajetória de familiares, cujo deslocamento geográfico teria se desdobrado em uma
experiência de decadência econômica.
Nas últimas páginas da sua biografia, Said reconheceu a importância dessa escrita no
que tange ao seu aspecto de desvendamento de um segundo “eu”, sublimado pelas
convenções sociais ou recalcado em função de uma formação ocidental no mundo árabe. Esse
movimento de redescoberta da identidade árabe-palestina acompanharia a sua trajetória.
O autor escreve no Ocidente, em uma perspectiva de familiaridade íntima com a
cultura ocidental, considerando-se um árabe, cuja identidade histórica teria sido delimitada às
margens do Império Britânico (Palestina e Egito). Ele escreveu sobre o Oriente Médio como
alguém que viveu no exterior por anos, ou seja, seu posicionamento transitou por uma linha
dialética quase invisível entre o interno e o externo.

Mantive por toda a vida essa vaga sensação de muitas identidades – em geral em
conflito umas com as outras -, junto com uma aguda lembrança do sentimento de
26

desespero com que eu desejava que fôssemos completamente árabes, ou


completamente europeus e americanos, ou completamente cristãos ortodoxos, ou
completamente muçulmanos, ou completamente egípcios, e assim por diante (SAID,
2004, p. 22).29

Edward W. Said nasceu em Jerusalém no ano de 1935. No contexto de seu


nascimento, sua família estava vivendo no Cairo, Egito.30 No período de permanência no
Cairo, durante a sua infância, visitou regularmente a Palestina, onde vivia boa parte da sua
família materna. Said descreve um total de nove escolas que teria frequentado entre o Egito e
o Líbano, na permanância da sua família nos dois países. Em suas entrevistas descreve a
particularidade da identidade de sua família em funcão da opção religiosa. Eram cristãos,
anglicanos vivendo numa maioria de muçulmanos e cristãos ortodoxos.

Contudo minha sensação predominante era a de sempre estar fora do lugar. Por
conta disso, levei quase cinqüenta anos para me acostumar, ou, mais exatamente,
para me sentir menos desconfortável com “Edward”, um nome ridiculamente inglês
atrelado à força ao sobrenome inequivocadamente árabe Said (SAID, 2004, p. 19).31

Sua formação escolar inicial ocorreu na Palestina, precisamente em Jerusalém


ocidental na escola anglicana St. George`s School. No Cairo, estudou inicialmente em uma
escola denominada, Gezira Preparatory School (GPS) e, em 1946, ingressou no Cairo School
for American Children (CSAC). Por fim em 1949, entrou para a escola Victoria College.
Said descreveu as memórias dessa escola, a partir de uma narrativa centrada na
identidade dos alunos como membros de uma suposta elite colonial, educada nos moldes do
imperialismo britânico. A educação intelectual abrangia informações sobre a monarquia
inglesa, o Parlamento, a Índia, a África, os hábitos e idiomas dissonantes do árabe. A
identidade árabe era algo distante da experiência ensinada na escola e a língua árabe deveria
ser evitada.
A opção pelo Victoria College assegurava um distanciamento cada vez maior do
passado Palestino, em Jerusalém e apontava para um divórcio em relação à experiência árabe

29
SAID, Edward W. Fora do lugar, Memórias, SP: Companhia das Letras, 2004. p.22
30
Seu pai cristão, Palestino, emigrou para os EUA em 1911, com dezesseis anos, para não ser alistado pelos
otomanos para lutar na Bulgária. Tornou-se cidadão norte-americano e serviu nas forças armadas norte-
americanas durante a primeira guerra mundial. Após o nascimento de Edward W. Said, em 1935, casualmente
em Jerusalém, sua família mudou-se para o Cairo, onde seu pai Wadie Said abriu uma papelaria tornando-se um
comerciante bem sucedido.
31
Ibid, p.19.
27

no Egito. Said descreve o distanciamento em relação ao nacionalismo árabe, ao Nasserismo e


ao marxismo no contexto da permanência de sua família no Egito.
A conjuntura Histórica do Egito vai impondo uma intranquilidade em função das
mudanças políticas na década de 1950 que se acentuam com a Crise de Suez e com a guerra
dos seis dias em 1967. Essas memórias apontam para um isolamento alienante do contexto
efervescente que o Egito estava vivendo nos anos 1950 e 1960, e posteriormente no Líbano,
onde frequentemente Said passava as férias de verão, até a eclosão da guerra civil nos anos
1970.

Meus pais tentavam reproduzir nosso casulo do Cairo nas montanhas libanesas:
quem poderia condená-los por isso, dada nossa condição peculiarmente fraturada de
cacos Palestino-árabe-cristão-americanos que a história espalhou e que só se
mantinham parcialmente unidos pelos êxitos comerciais de meu pai, que nos
permitiam uma semifantástica, confortável, mas vulnerável marginalidade? E
quando as turbulências do Egito pós-monárquico levaram o país a se despedaçar em
torno de nós, carregamos os efeitos disso para onde quer que fossemos, incluindo
Dhour (SAID, 2004, p. 319).32

Said passava períodos em Jerusalém ao visitar seus familiares. Durante esses períodos
Said percebia a progressiva saída dos Palestinos de Jerusalém e a substituição por imigrantes
judeus europeus.

Ainda é difícil aceitar o fato de que os bairros da cidade onde nasci, vivi e me senti
em casa foram tomados por imigrantes poloneses, alemães e americanos que
conquistaram a cidade e a transformaram em símbolo supremo de sua soberania,
sem lugar para a vida palestina, confinada, ao que parece, à parte leste da metrópole,
que mal conheci. Jerusalém Oeste tornou-se agora inteiramente judaica; seus
moradores anteriores foram banidos de uma vez por todas em meados de 1948
(SAID, 2004, p. 169).33

A partir de 1951, Said migrou para os EUA, para estudar em um internato, Mount
Hermon no estado de Massachusetts. A ida de Said para os EUA, e o afastamento da família,
produziram sensações subjetivas de desterramento. Said descreveu os dias na América,
marcados por uma sensação de impermanência e pela associação de estabilidade as férias
passadas no Cairo junto à família.

Na época em que deixei o Cairo, em 1951, para o que eu sentia como meu desterro
americano, todo o relacionamento entre os ramos do Cairo e de Jerusalém de nossa
família estava, do ponto de vista dos negócios, irreparavelmente avariado. Eu sentia
que o desaparecimento da Palestina estava na base daquilo, mas nem eu, nem outro

32
Ibid, p. 391.
33
Ibid, p. 169.
28

membro de minha família, éramos capazes de dizer exatamente como ou por quê.
Havia uma dissonância fundamental que todos experimentávamos, como
estrangeiros no Egito, sem refúgio em nosso verdadeiro ponto de origem (SAID,
2004, p. 193).34

Said realizou seus primeiros estudos na Universidade de Princeton, onde se graduou


em 1957. Apesar do autor definir Princeton como uma universidade apolítica e alienada, o
autor narra o intenso convívio com estudantes de origem Palestina, tal como Ibrahim Abu –
Lughod.
Said começou a compartilhar algumas reflexões sobre as mudanças políticas que se
processavam no Oriente Médio daquele período. Para além de uma apreensão sobre a situação
de sua família, uma vez que seus pais viviam no Cairo Nasserista, Said começou a demonstrar
um maior interesse pelos contornos futuros do mundo árabe.
O autor ingressou em Harvard em 1958 como estudante de pós-graduação em
literatura. Said descreve essa experiência marcada por um contato com a história
convencional e um “pálido formalismo”. Há um breve destaque de algumas aproximações
teóricas que teriam fundamentado a sua tese de doutorado sobre a obra de Joseph Conrad.
Said destaca como “leituras significativas”; A Ciência Nova de Vico (1999), a obra; História e
Consciência de classe de Lukács (2012), e os contatos com as obras dos seguintes autores;
Sartre, Heidegger e Merleau-Ponty.
Em 1963, após ter defendido sua tese de doutorado sobre a obra de Joseph Conrad
Said ingressou como professor de literatura comparada na Universidade de Columbia, em
Nova York. Além dessa inserção acadêmica, foi professor nas Universidades de Harvard,
Jonh Hopkins e Yale.
O seu compromisso político com a causa Palestina começou a se intensificar a partir
de 196735, no ano da Guerra dos Seis dias. Esse ano representou um marco divisório de uma
progressiva sensibilização em relação à Questão Palestina, a formação de uma consciência
crítica em relação à influência norte-americana no Oriente Médio com desdobramentos na
reformulação da sua missão intelectual. Antes disso, havia uma dissociação entre a vida nos
EUA, em uma época de imobilidade política e a vida no Oriente Médio, onde era mais

34
Ibid, p. 193.
35
“Passei a ler metodicamente o que vinham escrevendo sobre o Oriente Médio. Não correspondia à minha
experiência. No início dos anos 70, comecei a perceber que as distorções e ideias erradas eram sistemáticas,
faziam parte de um sistema de pensamento bem maior, endêmico em toda iniciativa do Ocidente de lidar com o
mundo árabe. Isso confirmou minha sensação do que o estudo da literatura era em essência, uma tarefa histórica,
não apenas estética.” Trecho de uma conversa de Edward Said com Tariq Ali na ocasião da gravação de um
programa A Conversation with Edward W. Said, produção da Bandung Films.
29

consciente, ainda que não participasse diretamente das principais tendências do movimento
nacional palestino.
Após 1967, seu posicionamento frente ao movimento nacional Palestino se definiu
através da relação com a Associação de Graduados Universitários Árabes-estadunidensenses
(AAUG), comprometidos com a conscientização da Questão Palestina.

E 1967, trouxe mais deslocamentos, enquanto para mim aquilo parecia encarnar o
deslocamento que englobava todas as outras perdas, os mundos desaparecidos da
minha infância e juventude, os anos apolíticos da minha educação, a pretensão de
um magistério desengajado na Columbia e assim por diante. Não fui mais a mesma
pessoa depois de 1967; o choque daquela guerra me levou de volta para onde tudo
começou; a luta pela Palestina. Entrei em seguida na paisagem recentemente
transformada do Oriente Médio como parte do movimento Palestino que emergiu
em Amã e depois em Beirute no final dos anos 60 e ao longo dos anos 70 (SAID,
2004, p. 426). 36

Em 1968, escreveu seu primeiro ensaio político denominado “The Arab portrayed”
(SAID, 1970),37 uma resposta intelectual à fala da primeira ministra israelense, Golda Meir
que ressaltava a inexistência do povo palestino. Diante dessa fala, Said incorpora o desafio de
articular uma história de perdas e desapropriações que deveria dotar a causa Palestina de
visibilidade política.
Em 1972, passou um ano em Beirute no seu ano sabático, onde estudou filologia e
literatura árabe. Said descreveu esse contexto como produto de um desconforto produzido por
um sentimento de inadequação de uma identidade adquirida e uma cultura original
secundarizada na conjuntura estadunidense onde se radicou.
Said demarca os anos 70, como um período em que lecionou em Columbia, cursos de
literatura européia e americana, mas que gradualmente entrava em contato com os mundos
políticos e narrativos da política do Oriente Médio. Embora tivesse a pretensão de oferecer
cursos sobre a literatura árabe moderna, jamais ministrou disciplinas afinadas com esse tema.
Chegou a planejar um seminário sobre Vico e Ibn Khaldun (filólogo e historiador do século
XIV), que se limitou ao projeto.
Em 197738, Said ingressou no CNP, Conselho Nacional Palestino, considerado o
parlamento da Palestina no exílio. A sua inserção no CNP significou um envolvimento direto

36
SAID, Edward W. , Fora do lugar, Memórias, SP: Companhia das Letras, 2004. P. 426.
37
SAID, Edward W., “The Arab portrayed” In: Abu Lughod, Ibrahim (ed.), The Arab Israeli Confrontation of
June 1967: An Arab Perspective. Evanston: Northwestern University Press, 1970.
38
Embora Said tenha sido eleito para o CNP (Conselho Nacional Palestino), jamais concretizou a filiação a
partidos políticos explicitamente vinculados à causa Palestina. Freqüentou uma reunião do CNP no Cairo em
1977, após essa reunião, não participou de nenhuma outra, até sua ida para a Jordânia em 1984. Em suas
30

na luta pela libertação da Palestina.39 O engajamento simbolizava a rejeição ao nacionalismo


espelhado ou inversamente refletido no sionismo.

Da mesma forma que eles tinham o sionismo, teríamos também o nosso sionismo,
com a diferença que ele seria Palestino – mas não era isso que queríamos. Em vez
disso, falávamos de uma alternativa em que a discriminação baseada na raça, na
religião e na origem nacional seria transcendida por algo que chamamos de
libertação. Isso se reflete no nome da Organização para a libertação da Palestina e
me parece ser a essência da resistência. Não significa colocar o pé na porta com
teimosia, e sim abrir a janela. Creio que uma das coisas mais tristes que ocorreram
na história dos movimentos da libertação do século XX foi a traição da libertação
pelo bem de objetivos de curto prazo, como a independência e o estabelecimento de
um Estado(SAID, 2013, p. 150).40

A posição oficial de Said, como membro do CNP foi evocada no contexto intelectual
norte-americano para desacreditar sua luta e deslegitimá-lo como um acadêmico desprovido
de objetividade. O seu engajamento na luta por um estado Palestino foi recebido
negativamente e lido pela intelectualidade norte-americana liberal, esquerdista como
incompatível com uma postura honesta desejável.41
Em 1982, logo após a invasão Israelense no Líbano, Said juntou-se ao fotógrafo Jean
Mohr para elaborar o livro After the last Sky: Palestinian lives (SAID, 1985).42 Sua intenção
era dar visibilidade histórica ao povo palestino. A ideia era resgatar os Palestinos do lugar
subalterno, configurado a partir de uma representação desdenhosa. O sentido desse livro tem

entrevistas afirmava que seu papel era mais simbólico do que propriamente político no período de permanência
no CNP.
39
Dez anos após a guerra dos seis dias, seu engajamento se traduziu numa reflexão teórica que se desdobrou na
trilogia, Orientalismo. (1978), A Questão da Palestina (1980) e Cobrindo o Islã (1981); os três livros
estabeleciam a Palestina como objeto privilegiado que se relacionava com o problema da identidade, pela relação
entre o conhecimento e o poder e a questão da Palestina imersa na História do imperialismo, problemáticas
estreitamente vinculadas ao tema da mundanidade.
40
SAID, Edward W. A Pena e a Espada, Diálogos com Edward W. Said por David Barsamian, SP: Editora da
UNESP, 2013. P. 150.

41
Na década de 80, foi acusado pela liga de defesa judaica de ser antisemita, teve seu escritório na Universidade
incendiado criminosamente, além de ter recebido inúmeras ameaças de morte. Na década de 80, Anwar Sadat e
Yasser Arafat indicaram Said para ser o representante Palestino nas conversações de paz. Said descreve essa
situação com profundo desconforto, uma vez que essa escolha não contou com sua prévia aceitação e o assédio
da imprensa tornou-se bastante intenso a partir desse episódio.
42
SAID, Edward W, After the last Sky: Palestinian lives. Nova York, Pantheon, 1985. O título do livro se
originou do poema do poeta palestino Mahmoud Darwish, inspirado no que aconteceu com os Palestinos no
Líbano em 1982. Para Said, 1982 representou um marco cronológico da conscientização política em decorrência
da expulsão dos palestinos do Líbano. O primeiro marco, está representado por 1948, e o segundo, pelos eventos
de 1982. Em 1983, Said era consultor da ONU em uma conferência internacional sobre a Questão Palestina e
havia uma discussão sobre as condições limitadoras encontradas pelos fotógrafos para retratar os Palestinos e
suas condições de vida. A partir desse contexto, surgiu a ideia da edição do livro com o fotógrafo Jean Mohr.
31

relação com a necessidade de demarcar a origem, narrativa histórica e genealógica do povo


palestino.
No prefácio do livro, Said fala da resistência da formação de uma identidade nacional
dos Palestinos. O esforço na realização do livro43 com imagens cotidianas desse grupo
corrobora a tentativa de mostrar as contradições e as antinomias da experiência Palestina. O
livro originou-se da participação do autor em uma conferência da ONU sobre a questão
Palestina. Said afirmou que parte dos seus relatórios elaborados no âmbito da conferência
culminou em poucos artigos publicados, porque parte do material desagradou aos países
árabes envolvidos na conferência.
O livro After the last Sky (SAID, 1985) foi produzido com o objetivo de suprir as
lacunas deixadas pela censura às críticas que o autor elaborou sobre a atuação israelense e os
limites dos países árabes no envolvimento com a questão palestina. Said denunciou os maus
usos políticos da questão Palestina.
O autor chama atenção para o descuido com a situação dos assentamentos e da
expropriação das terras árabes, além das condições deploráveis nas quais os palestinos viviam
não só nos países árabes, como nos territórios israelenses. A denúncia passa pela
invisibilidade do exílio palestino e o sentido coletivo construído com base no sofrimento da
desapropriação.
Said desenvolve a problemática da identidade e da representação além da visão
distorcida sobre os palestinos. Segundo o nosso autor, quanto mais distante do passado
Palestino mais precário é o status identitário. Reconhecemos a importância do livro na
maneira como Said analisa a inserção da questão Palestina no universo mais amplamente
árabe.
O conceito de “thereness” desenvolvido pelo autor palestino diz respeito à
problemática da definição identitária de um povo exilado e seus contornos para fins de
definição externa. Reconhecemos a problemática do mapeamento das coordenadas de um
grupo que teria sido transplantado à força. Daí o conceito saidiano ter sido concebido a partir
da experiência palestina no exílio. O conceito nacional palestino se enquadra na atualidade do
arabismo e no contraponto do nacionalismo árabe em relação às políticas imperialistas.

Identity – Who we are, where we come from, what we are – is difficult to maintain
in exile. Most other people take their identity for granted. Not the Palestinian, who is

43
O livro em questão aborda um retrato da vida regular na Palestina, além de elaborar os direitos políticos e
éticos que devem ser restaurados aos povos para habilitá-los a contar, narrar suas histórias. A narrativa ganha um
papel central para a representação dos palestinos. A narrativa confere visibilidade a um grupo ofuscado pela
poltica israelense.
32

required to show proofs of identity more or less constantly. It is not only that we are
regarded as terrorists, but that our existence as native Arab inhabitants of Palestine,
with primordial rights there (and not elsewhere), is either denied or challenged
(SAID, 1985, p. 16).44

Said afirma a singularidade do caso Palestino, na medida em que define o tipo de


opressão vivida pelos palestinos, denominados “vítimas das vítimas”. A segunda demarcação
relaciona-se com o enquadramento do movimento palestino no âmbito do projeto de
libertação nacional. E, em terceiro plano, percebemos a passagem de um movimento de
libertação que no percurso, transformou-se num movimento de independência nacional.
A missão intelectual do porta-voz do movimento palestino inclui o processo de auto-
representação. O palestino que só aparece pela negação israelense deveria ganhar voz
independente, com o sentido em si mesmo. Aqui reconhecemos a problemática do
nacionalismo e a ambivalência da postura de Said, que rejeita o chauvinismo inerente aos
movimentos nacionalistas.
Por um lado o movimento de independência foi alimentado por uma ideologia
nacionalista. Por outro, havia o incômodo com uma ortodoxia de um nacionalismo
excludente. Said afirma que a consciência palestina foi violentada pela história, ou seria pela
lacuna de uma representação histórica?
Said se refere à ideia da “armadilha” da consciência nacional que equivocadamente
funciona como um fim em si mesma. O autor se refere criticamente a uma particularidade
étnica, racial ou nacional, construídas artificialmente e que se tornam as metas de uma cultura
ou partido político. Esse debate nos parece central para a compreensão de alguns dilemas da
obra do autor palestino. Retornaremos a essa temática na segunda parte da tese.
Inicialmente partidário da criação de dois estados como forma de solucionar o
conflito àrabe-israelense, posteriormente Said defenderia a criação de um único estado
binacional. Em 1983, escreveu um memorando ao Congresso Nacional Palestino que dizia
que o mundo deveria perceber que o ideal Palestino é um ideal de coexistência, de respeito
aos outros, de reconhecimento mútuo entre palestinos e israelenses.
Said sempre foi um crítico da solução armada como estratégia de resistência no
movimento nacional palestino. O autor criticava a FPLP (Frente Popular para a Libertação da

44
Ibid p.16. “A identidade – quem somos, de onde viemos, o que somos – é difícil manter no exílio. A maioria
dá por certa sua identidade. Não os palestinos, que são forçados a apresentar provas de identificação com certa
frequência. Não se trata apenas de sermos considerados terroristas, mas nossa existência como habitantes árabes
da Palestina, com direitos adquiridos lá (e em nenhum outro lugar), é ora negada ou questionada." (tradução
nossa).
33

Palestina) que entendia pejorativamente a sua resistência à solução armada interpretando-a


como uma abordagem humanística burguesa. Em 1991, ele se desligou do CNP, justificando
esse ato pelo profundo desconforto com o apoio dado por Yasser Arafat (líder da OLP) a
Sadam Hussein, na Guerra do Golfo.
Quando escreveu o livro A questão da Palestina (SAID, 1979), Said ainda acreditava
na legitimidade e na representatividade de Arafat. Nos anos 90, sua crítica política estava
direcionada para os acordos de Oslo, em um contexto de descrença pessoal acerca do avanço
das negociações de paz, uma vez que a questão do retorno dos refugiados não era tratada com
dignidade.
Said é um crítico das falsas promessas do governo israelense que ainda controlava
60% da Cisjordânia e uma parte de Gaza. O processo de criação e alargamento dos
assentamentos judaicos nos territórios palestinos tem demonstrado fortes recuos no
esvaziamento da dominação militar israelense. As fronteiras, a água, a segurança ainda são
controladas por Israel.
Os anos 199045 são marcados como um período de afastamento e críticas de Said
dirigidas à OLP e à Yasser Arafat, pelo seu posicionamento passivo na consolidação dos
Acordos de Oslo. Said considera os acordos de Oslo como um “Versalhes Palestino.” O autor
defendia um estado único onde judeus e palestinos pudessem conviver a partir de uma
experiência de cidadania democrática.
Said foi o primeiro intelectual a denunciar as armadilhas da declaração de princípios
inerentes aos acordos de Oslo. Se os acordos de Oslo foram inicialmente um reconhecimento
mútuo entre a OLP e Israel e, num segundo momento, uma declaração de princípios que
estabelecia disposições para a retirada provisória e parcial do exército israelense, isso
significava um significativo adiamento do debate sobre as questões centrais inerentes a
questão árabe-israelense. Eram estas; a situação de Jerusalém, a condição provisória e a
resolução da situação dos refugiados, a eliminação dos assentamentos judaicos em Gaza e
Cisjordânia, as fronteiras após 1967 e a soberania palestina.
Said denuncia os acordos de Wye River, estabelecidos em 1998, que dariam aos
Palestinos aproximadamente uns 10% a mais de terra. Estes não se concretizaram no governo
de Netanyahu. Ehud Barak, o seu sucessor, festejado como um pacifista, decepcionou a todos

45
Após a posse de Yitzhak Rabin e Shimon Peres no governo israelense em 1992, houve um histórico
reconhecimento da OLP como manifestação legítima do movimento nacional Palestino, para além desse avanço
uma série de concessões territoriais foram realizadas entre 1994 e 1996. Apesar de avanços parciais, Rabin se
negava a defeder verbalmente um Estado Palestino, e Peres, como ministro das relações exteriores e como
sucessor após o assassinato de Rabin, não ofereceu uma solução clara quanto à criação de um estado Palestino.
34

em relação à consolidação das promessas definidas nos anos 1990. Jerusalém continuava
sendo inegociável e os assentamentos judaicos cresciam exponencialmente nesse contexto.
A soberania, as fronteiras, o acesso à agua, a segurança global, os direitos aéreos e a
administração das estradas permaneciam sendo centralizados por Israel. O problema dos
assentamentos, para além de um retrocesso na política de desocupação, acabaria criando
“ilhas” de descontinuidade da presença Palestina, o que impedia a longo prazo, a autonomia
Palestina demarcada territorialmente.
Israel estabeleceu 62 bases militares na Cisjordânia, retirou as tropas das principais
cidades da Cisjordânia e ainda controlava os acessos às mesmas. Said criticava o vazio de
liderança, a ausência de visão política do futuro e o imobilismo da vida Palestina.

Lo que resulta sintomático de la mentalidad de la Autoridad Palestina es su total


incapacidad para responder a las críticas, o para tener seriamente en cuenta a sus
críticos, cuyo número aumenta a medida que la situación se deteriora. No estoy
hablando aquí de Hamas o de Yihad Islámica, que en mi opinión no constituyen una
alternativa a la autoridad, aunque, obviamente, son una expresión de la resistência a
la ocupación israelí. Arafat y sus asesores se han cerrado a su proprio pueblo.
Carecen del concepto de la resposabilidad frente a dicho pueblo, así como la nocion
del debate libre y democrático. Lo peor de todo es que en esa desastrosa política de
capitular ante los israelis y luego firmar todo tipo de limitaciones devastadoras para
su pueblo en el marco de acuerdos con sus ocupantes, Arafat ha hipotecado el futuro
de su pueblo, poniéndolo en mano de sus opressores (SAID, 2002, p. 42).46

No livro The end of the peace process (SAID, 2000), Said estabelece suas críticas ao
movimento nacionalista de curto alcance, alegando que, no caso de Oslo, o abandono do perfil
de um movimento social de amplo alcance teria como objetivo a despolitização da sociedade
Palestina. Oslo representou uma decepção em termos de extinção da ocupação militar
isrealense. Estes acordos representaram um recrudescimento da sua ampliação. Se no período
anterior à década de 1990 havia uma fachada na ocupação militar, Oslo acabou ampliando a
ontensiva presença da FDI (Força de defesa Israelense) nos territórios supostamente
soberanos.

46
Said, Edward W., Artigo do jornal Al- Hayat , 1 de outobro de 1995. Compilado no livro: El fin del processo
de paz , Nuevas Crônicas Palestinas (1995-2002), Barcelona: Editora Mondadori, 2002. P.42. “O que resulta
sintomático da mentalidade da autoridade palestina é a sua total incapacidade para responder às críticas, ou para
levar em conta seus críticos, cujo número aumenta à medida que a situação se deteriora. Não estou falando do
Hamas ou da Jihad islâmica, que na minha opinião não constituem, uma alternativa à autoridade, ainda que
obviamente, sejam uma expressão da resistência a ocupação israelense. Arafat e seus assessores se fecharam a
seu próprio povo e carecem do conceito de responsabilidade frente ao dito povo, assim como a noção do debate
livre e democrático. O pior de tudo é que nesse desastrosa política capitular antes os isralenses, chegou a formar
todos os tipos de limitações devastadoras para seu povo, no marco dos acordos com seus ocupantes. Arafat
hipotecou o futuro do seu povo, colocando-o nas mãos dos seus opressores”. (tradução nossa)
35

A antiga declaração de Moshe Dayan em 1968; “manter-se fora dos territorios


palestinos e deixar que suas vidas se desenvolvam normalmente (2002)”47 deixou de ter
validade para a FDI que começou a implementar medidas de caráter preventivo frente ao que
se percebia como uma ameaça militar. Essas medidas chegaram a sua culminância com a
Intifada de 2000.
Três elementos ilustram a intensificação da ocupação militar nos territórios
palestinos, a saber: o sistema de estradas definindo a segregação, os novos bloqueios das
estradas desenhados para limitar o movimento diários dos Palestinos que deveriam se
locomover o mínimo possível e o regime de autorizações de viagem e deslocamento, que
mesmo quando permitidas pela AP (Autoridade Palestina), são minunciosamente controlados
pelo governo Israelense.
Said cita Frantz Fanon (1979)48 e o pressuposto da nacionalismo que deveria motivar
uma consciência libertadora. Said recorre a essa crítica quando se refere ao foco do
movimento de libertação que deve se ater ao destino coletivo do povo palestino. Lutar contra
o nacionalismo judaico, equivale a ambicionar a inserção de uma Palestina laica e secular,
como parte da modernidade.
As críticas à postura de capitulação e passividade da OLP se intensificaram a partir
dos anos 1990.49 Para Said, faltava à OLP uma análise política madura, consistente, e uma
perícia diplomática. A sua visão em relação à OLP e ao papel de Yasser Arafat na liderança
do processo de negocição com o governo israelense vai se modificar e isso é percebido na sua
produção acadêmica e jornalística.
Para Said (2004), Oslo50 representava um retrocesso e a demonstração cabal de que
um movimento de libertação anticolonial não só descartou as conquistas obtidas, como havia
cooperado com a ocupação militar israelense. Oslo aparece como a representação da derrota
47
Ibid. p. 42.
48
FANON, F. Os Condenados da Terra, RJ: Editora Civilização Brasileira, 1979. As proximidades e
posicionamentos afinados em relação ao nacionalismo nas obras de Fanon e Said serão analisados num capítulo
específico numa parte da tese.
49
Grande parte dessas críticas foi produzida na forma de artigos jornalísticos, publicados originalmente nos
jornais e revistas: Al – Hayat, Al-Ahram, The Nation e London review of books. Esses artigos foram reunidos
nas seguintes publicações: Peace and its Discontents, The politics of dispossession, The end of the peace
process: Oslo and after, From the Oslo to Iraq and the Road Map.
50
A crítica de Said à AP foi impulsionada pela crescente desconfiança em relação a Arafat, adquirida após a
resolução da CNP em 1988. Foi o momento crucial, quando a OLP decidiu estabelecer um acordo territorial com
Israel mediado pelos EUA, alem da resistência à postura de Arafat em relação ao funcionalismo da OLP, vista
como uma postura manipuladora. Oslo representava a demonstração das imperfeições políticas e administrativas
da OLP, a frágil e ineficiente liderança de Arafat e a continuidade da ocupação militar israelense de Gaza e
Cisjordânia.
36

passiva. Os israelenses que deveriam desocupar Gaza e Cisjordânia, concederam apenas 18%
dos territórios que eles posteriormente reocuparam e com isso as taxas de desemprego em
Gaza cresceram de forma alarmante.
Os isralenses não aplicaram os acordos de Oslo. Após o assassinato de Rabin, a
ascensão de Netanyahu representaria um retrocesso para os supostos acordos. Com o sistema
das zonas A, B e C, a autoridade nacional Palestina só possuía um controle real sobre 18% da
Cisjordânia. Com Oslo, o centro de gravidade do movimento de liberacão Palestina passou da
OLP à Autoridade Nacional Palestina. A autoridade negociava com Israel. Desde 1994,
percebemos a decadência do Al Fatah e dos grupos de extrema esquerda como o FPLP e o
fenômeno do crescimento do Hamas, especialmente em Gaza.
Os acordos representam uma desistência das resoluções impostas pela ONU
denominadas; 194, 242 e 33851 e desconsideradas pela política israelense. Said se posiciona
frente à proposta de um estado de coexistência mediante à realidade da existência de 20% de
palestinos no estado nacional judaico, em processo de convivência. O argumento da
insegurança militar para aquisição de novos territórios e o adiamento da devolução de terras
não são suficientemente persuasivos.
Os limites de Oslo passam pelo escopo reduzido da abrangência da atuação da OLP
que se limitou a negociar a autonomia interna dos residentes de Gaza e Cisjordânia, pensando
no movimento Palestino como restrito aos habitantes dos territórios ocupados. Said se
perguntava por que não havia menção aos refugiados, e aos Palestinos exilados? A
inteligibilidade do papel da OLP passava pela representação desta como uma entidade que
nascera como movimento de libertação e que se transfomaria em um passivo colaborador da
ocupação colonial.

Não se esqueça de que, durante o período das negociações secretas – que não
começaram em Oslo e sim no outono de 1992, entre alguns altos oficiais da OLP,
consultores palestinos e especialistas em segurança em israel, negociando na
American Academy [ of arts and sciences] em Boston -, eles estavam negociando
futuros planos de segurança para a Cisjordânia e Gaza, principalmente para a
segurança de cidadãos israelenses. Ninguém nunca disse nada sobre a segurança dos
Palestinos. Então foi aí que tudo começou. Durante esse período, de outubro até
setembro daquele ano, tivemos o pior período de opressão na Cisjordânia. Mais
pessoas foram mortas no início do ano, vinte ou trinta pessoas em Gaza, muitas

51
A resolução 194 defendia o direito dos refugiados Palestinos, a geração que havia saído em 1948, do retorno
com compensação. A resolução 242, aprovada pela ONU, com o fim da guerra dos seis dias e a vitória do estado
judaico, determinava a devolução de todas as terras ocupadas desde 1967 e o previsto retorno dos refugiados
Palestinos que emigraram desde 1948. Deste modo, abriu-se o caminho para a criação de um Estado palestino
independente. A resolução 338 do conselho de segurança da ONU definida após a guerra do Yom Kipur (1973)
exigia o cessar fogo de ambas as partes e a aplicação imediata da resolução 242.
37

delas crianças com menos de quinze anos. Essa foi a época das deportações (SAID,
2013, p. 107).52

Said sempre se posicionou contrariamente às posições sectárias na política. O autor


elaborava críticas ao sionismo, aos seus mitos políticos e suas representações distorcidas da
Palestina histórica. Essa visão deturpada incluía a representação desta como uma terra sem
povo, além do povo sem terra. A sua perspectiva humanista voltada para o universalismo
político produzia uma rejeição veemente à epistemologia do sionismo com seus mecanismos
legitimadores do estado judaico.
Para a existência de um estado binacional, Israel deveria abrir mão da noção de um
estado judaico que agregaria os judeus da diáspora. Nas várias viagens que Said realizou a
Israel, Gaza e Cisjordânia, ele se tornou um defensor da indissociação entre os dois povos e as
dificuldades de se distinguir os dois estados. Said definia a necessidade de se desvincular das
limitações dos dogmas, da ortodoxia, para a mútua compreensão da necessidade de se criar
um estado binacional.

E é importante para os árabes entender, também, que estes não são um epifênomeno
como os cruzados ou imperialistas que podem ser mandados de volta para algum
lugar. Também é muito importante que a gente insista, como faço frequentemente,
que os israelenses são os israelenses. Eles são cidadãos de uma sociedade chamada
de Israel. Eles não são “judeus”, tão simplesmente, que podem ser vistos novamente
como errantes, que podem voltar para a Europa. Este vocabulário de existência
provisória e transitória tem que ser completamente recusado. 53 (SAID, 2006, p.36)

Em 1999, Said fundou com o seu amigo músico Daniel Barenboim a West-Eastern
Divan Orchestra, cujo objectivo era reunir na mesma orquestra jovens músicos de Israel e dos
países árabes. Os diálogos entre Said e Barenboim concernentes à questão árabe-israelense e
às diversas reflexões sobre música podem ser acompanhados pelo livro, Paralelos e
Paradoxos, reflexões sobre música e sociedade(2003).54 No contexto desse livro,
reconhecemos uma preocupação permanente em discutir possíveis analogias estéticas
concernentes a música com o mundo da política contemporânea.

52
SAID, Edward W., A Pena e a Espada, Diálogos com Edward W. Said por David Barsamian, SP: Editora da
UNESP, 2013. Página 107.
53
SAID, Edward W. Cultura e Resistência, entrevistas do intelectual Palestino a David Barsamian, RJ:
Ediouro, 2006. P. 36.
54
SAID, Edward W e BARENBOIM, Daniel, Paralelos e paradoxos, reflexões sobre música e sociedade, SP:
Companhia das Letras, 2003. (1ª. Edição- 2002).
38

Quando Daniel Barenboim e Edward W. Said (2003)55 se referem ao fracasso dos


acordos de Oslo, realizam leituras metáforicas para diagnosticar as causas da ineficácia e do
avanço do processo de paz. Para Barenboim, o andamento do processo foi dissonante em
relação ao conteúdo dos acordos, enquanto que para Said, os princípios do acordo já minavam
as possibilidades de um desfecho satisfatório para os palestinos, além da visível discrepância
em relação à realidade.
Said mostrava-se cético em relação aos avanços possíveis do processo de paz porque
achava que os dirigentes queriam um desfecho abstrato e pouco definidor em relação às
fronteiras anteriores a 1967. Havia um incômodo com o limitado debate em torno da questão
dos refugiados. Para além de um debate político, o livro em questão suscita várias reflexões
sobre estética, precisamente sobre os limites da interpretação na literatura, ou mesmo na
música.
Nas reflexões sobre estética musical, Said introduz o debate em torno do conceito de
autenticidade. Os limites da interpretação estariam atrelados ao princípio da autenticidade e
as demarcações possíveis ou aproximações com a fonte.

Mas o que é autenticidade? Autentiticidade também tem a ver com justificar o


presente em relação ao passado. Em outras palavras, se eu digo que isso é autêntico,
também estou dizendo que é verdadeiro. Os cristãos estão sempre buscando pedaços
da cruz verdadeira. Portanto, a autenticidade sempre tem a ver com alguma coisa do
presente. É errado pensar que ela tem a ver com o passado. Ela diz respeito ao
presente e à maneira como o presente vê e constrói o passado e decide que passado
deseja ter; é preciso ter certo tipo de passado.(SAID, 2003, p.132/133) 56

O paradoxo referido no texto diz respeito à identidade particular de cada um dos


autores e à busca por um elemento universal e humano. Esse debate se refere ao problema da
identidade e da representação, questões centrais na obra do autor palestino. Outro debate
representativo inerente ao conjunto da obra, está ilustrado no desfecho do diálogo entre Said e
Bareinboim e se configura pela relação estreita entre estética e política.
Said (2003) conclui a entrevista com a seguinte colocação: “E me interessa o que não
pode ser resolvido e o que é irreconciliável. Quer dizer se, no contraste entre estética e
política, fosse possível recuperar cada fenômeno estético e, de algum modo convertê-lo em

55
Said era um excelente pianista e era crítico musical da publicação norte-americana The Nation. Para Said, a
música como objeto de admiração seria quase exclusivamente a música clássica ocidental. Nas diversas
entrevistas ao abordar o tema da música, Said afirmava não se identificar esteticamente com música clássica
árabe além de estabelecer uma distância que incluía o jazz moderno.
56
SAID, Edward W., e BARENBOIM, Daniel, Paralelos e paradoxos, reflexões sobre música e sociedade, SP:
Companhia das Letras, 2003. pp.. 132/133.
39

político, não haverá resistência; acho que, às vezes, é bom ver o estético como uma denúncia
do político, como uma poderosa oposição à desumanidade, à injustiça.”57
No ano de 2001, Said realizou uma conferência58 no Museu Freud, em Londres
intitulada “Freud e os Não-Europeus”(2003), que deu origem ao livro ensaístico publicado
originalmente em 2003. Said propôs uma releitura do ensaio clássico de Freud, “Moisés e o
monoteísmo”59 com uma pespectiva que permite uma atualização da problemática judaica e
dos conflitos árabes-israelenses.
O que estava em questão naquela conferência era o desenvolvimento de uma das
hipóteses centrais do ensaio “Moisés e o monoteísmo”, a de que Moisés não era judeu, mas
egípcio. Muitos autores e comentadores da obra do psicanalista sustentam que a tese de Freud
era resultado da sua relação problemática com o judaísmo.
Segundo Freud, o advento do monoteísmo deslocou a experiência humana do registro
da sensorialidade para o da espiritualidade e do pensamento. A valorização racional do
pensamento em oposição à sensibilidade estaria no fundamento da judeidade. Apesar da
diáspora essencialmente européia, as origens se configurariam numa conjuntura não-européia.
A riqueza da identidade judaica estaria exatamente na interseção Ocidente-Oriente. A cultura
judaica teria sido marcada pela experiência constitutiva do exílio.
O que interessa a Said, é mostrar como a diluição dessa fronteira com o Oriente, mais
tênue do que a imaginada, poderia constituir obstáculos para resgatar as origens não–
européias do estado de Israel. A elaboração do Estado Nacional Judaico na Palestina dissolve
as marcas heterogêneas formadoras da tradição judaica constituindo uma antinomia ao Moisés
egípcio de Freud.
Said compara Freud e Fanon no que tange à visão sobre a diversidade cultural. Fanon
(1979) rejeita o modelo europeu e solicita que todos os homens colaborem na criação do novo
homem, e estabelece uma acusação de que a Europa havia hierarquizado os homens em raças,
além dos princípios pseudocientíficos que teriam colaborado para a manutenção do sistema

57
Ibid, p.170.
58
Em 2000, Said foi convidado pela Sociedade Freudiana em Viena para dar uma palestra, após o autor ter
enviado o título da palestra, este recebeu uma carta em fevereiro de 2001 cancelando a conferência. A alegação
do cancelamento aparecia na justificativa dos organizadores que explicavam com motivos ligados abstratamente
à situação política no Oriente Médio. Said descobriu que o motivo do cancelamento tem relação com o fato deles
terem recebido verba israelense para uma exposição sobre os ensaios de Freud que se realizaria em Tel Aviv e
que esta estava condicionada ao cancelamento da palestra de Said.
59
O ensaio “Moisés e o monoteísmo” foi escrito por Freud entre 1934 e 1938, em várias etapas, no contexto
histórico da ascensão e consolidação do nazismo, na Alemanha. O livo foi concluído no exílio de Freud, em
Londres, no ano de 1938.
40

colonial. Já o conceito de diferença cultural aparece de forma inerte e evolucionista no


contexto freudiano.
As categorias de europeu e não-europeu percorrem o trajeto da análise freudiana do
Moisés Egípcio para a Palestina Contemporânea. Said categoriza os não-europeus palestinos
no contexto de colonização judaica na Palestina e por outro lado aborda de forma crítica a
homogeneízação dos diversos grupos que ali estavam no âmbito da criação do Estado
nacional judaico.
A genealogia heterodoxa da origem da identidade judaica, tal como lida por Freud, é
apropriada por Said para a elaboração crítica de um estado formado na concepção mistificada
de uma identidade homogênea. Os mitos de origem da estado nacional judaico fundamentados
na religião pretendiam o isolamento e a demarcação da identidade judaica.

Muito distante do espírito dos apontamentos deliberadamente provacativos de Freud,


de que o fundador do judaísmo era um não judeu e de que o judaísmo começou nos
domínios do monoteísmo egípcio e não-judeu, a legislação israelense combate,
reprime e até cancela a, cuidadosamente mantida, abertura de freud, da identidade
judaica em relação ao seu passado não-judeu. As complexas camadas do passado,
por assim dizer, foram eliminadas por uam israel oficial. Dessa maneira – na medida
em que o leio no contexto das políticas ideologicamente conscientes de Israel –
Freud, por contraste, deixou um espaço considerável para acomodar os ancestrais e
contemporâneos não-judeus do judaísmo.60(SAID, 2003, pp.72/73)

O debate freudiano trazido para o contexto de preocupações do universo


contemporâneo de Said, diz respeito a uma análise das agendas nacionalistas direcionadas a
uma disputa territorial que procura uma legitimidade por meio da reconstrução do passado ou
pela invenção arbitrária da tradição. O contraponto entre as identidades deve ser ressaltado,
mostrando que o ethos não-europeu de Moisés comporta uma diferença no espelhamento em
relação ao outro que corrobora o mesmo. A identidade deve ser sempre pensada através do
seu outro, nunca em si mesma.
“Moisés e o monoteísmo” indica caminhos para se pensar as identidades
compartilhadas pela sua afirmação e pela sua simultânea negação. Freud e sua relação
problemática com a judeidade simbolizam uma identidade no mundo moderno. Distanciar o
judeu da sua “necessária” afiliação européia é lidar com a posibilidade complexa e
ambivalente de uma judeidade.
“Freud acreditou – e algumas das tensões descritas por Said remetem, penso, a esta
crença – que era tarefa da particularidade judaica universalizar-se.”61 A leitura de Freud e

60
SAID, Edward W. , Freud e os não-Europeus, SP: Boitempo Editorial, 2004. PP.72/73
61
ROSE, Jaqueline, Resposta a Edward W. Said, In: SAID, Edward W. , Freud e os não-Europeus, SP:
Boitempo editorial, 2004. P. 100.
41

seus dilemas em torno da identidade é coerente na maneira como o psicanalista mobiliza o


passado não-europeu do judeu e coloca em dúvida qualquer essencialidade nacional, religiosa
ou cultural. Para Said , um pensador pós-colonial, além de questionador das teses mistificadas
do sionismo no âmbito da criação do estado nacional judaico, qualquer ambivalência na
definição de um ethos é bastante conveniente.
Em 2002, Edward W. Said, Haidar, Abdel-Shafi, Ibraim Dakkar e Mustafa Barghouti
criaram a Iniciativa Nacional Palestina (Al-Mubadara), movimento que representaria uma
terceira força palestina, alternativa intermediária à ANP e ao Hamas.
Em 2003, Said escreveu artigos que compuseram o livro Estilo tardio, (2009)
publicado postumamente após o seu falecimento. Said estava interessado no debate teórico
sobre obras e artistas extemporâneos. Alguns escritos seus foram publicados postumamente;
Humanismo e crítica democrática (2004), De Oslo a Iraque (2008), Music at the limits (2008)
e Estilo Tardio (2009).
Na obra de Said, podemos reconhecer uma contradição entre a imersão plena na
chamada alta cultura, distanciada da atividade política e um estreito envolvimento com a
causa pela independência Palestina. Toda a sua obra possui o pressuposto da indissociação
entre cultura e política. Seu compromisso com a questão nacional palestina, assim como a
crítica à relação entre saber e o poder ampliou um paradoxo entre as suas filiações teóricas e
um posicionamento político mais ativo.
Said define uma periodização para sua obra, contextualizando um primeiro interesse
pelo que o autor chama de problemas existenciais da produção literária. Em um segundo
momento, o chamado período teórico em que Beginnings: intention and method constitui o
lócus onde a questão central do seu projeto foi formulada, e o período político no qual
podemos incluir; O Orientalismo (1978), Cobrindo o Islã (1979) e A Questão da Palestina
(1981).
A identidade da sua escrita denota uma indissociação entre o caráter social e o
estético, além do conteúdo político das suas obras que permanecem em boa parte delas até a
sua morte em 2003. A questão política aparece com frequência nas publicações em periódicos
árabes.
No final do último período da sua trajetória, o autor aponta um retorno à questão
estética. Estilo Tardio, (2009) livro incompleto e publicado postumamente representaria esse
projeto.
42

1.2 Historiografia Literária e a Escrita da História

1.2.1 Joseph Conrad e a Ficção da Autobiografia

Ao analisar a obra de Edward W. Said, procuramos utilizar como perspectiva teórica a


abordagem presente no contextualismo linguístico inglês. Devemos privilegiar a linhagem
teórica de Quentin Skinner (1989), como representante mais destacado do contextualismo
lingüístico inglês. Já abordamos essa linhagem teórica na introdução da tese e retomamos essa
perpectiva para associar ao início da análise da obra de Said.
No contexto teórico citado, a significação de um texto excede a intencionalidade
consciente do autor. Essa perspectiva demonstra resistência ao textualismo, no qual o texto
aparece como entidade autônoma.
Conhecer o contexto social pode ser útil, sem que o historiador recaia na valorização
excessiva da causalidade social. Voltamos a afirmar que Skinner representa uma posição
intermediária que pretende evitar o reducionismo contextual, por vezes ensaiado no
marxismo, influente no contexto historiográfico dos anos 60, e um possível afastamento de
um modelo textualista, incidente à partir da virada linguística.
A contextualização origina-se no caráter performático da linguagem, uma vez que a
fala é considerada uma ação62. A fala não é apenas uma enunciação verbal ou escrita. Os “atos
de fala” abrangem respostas, interpelações, o que suscita a importância do rastreamento da
receptividade das ideias, conforme um determinado contexto.
O processo de significação não se esgota na semântica das palavras ou na
hermenêutica dos textos. É preciso reconhecer os vocabulários políticos e sociais de uma
determinada época ou período histórico. A historicidade do objeto deve ser reforçada pelo
pressuposto de que a história das ideias é a “história de uma atividade”, o que estimula a
conexão entre uma abordagem filosófica e uma cuidadosa perspectiva histórica do
pensamento político.

Como toda atividade humana, a atividade discursiva ocorreu num contexto que
simultaneamente a restringe e capacita. Porém, como definir o contexto relevante a
ser reconstituído para a compreensão de determinado ato linguístico? Uma vez que

62
A ideia de que palavras são atos retrata uma identificação teórica com a filosofia da linguagem inspirada na
obra de Wittgenstein, o que também permite que o historiador elabore o conceito central de significado
(meaning).
43

“o problema da interpretação é sempre o problema do fechamento do contexto”, qual


o critério à disposição do intérprete para essa operação de fechamento?63

A citação acima pode ser respondida não só pelas definições de Skinner como também
pelo conjunto de pensadores ligados ao grupo “ideas in context”. O que delimita o contexto
para subsidiar uma interpretação é a intenção e, mais amplamente, as experiências do
pensador. O ato da fala como ação estimula o historiador a especular sobre o que o autor
estava fazendo quando escreveu. Essa definição teórica filia-se à filosofia da história de R. G.
Collingwood (1989) que orienta o contextualismo linguístico.

R.G. Collingwood partia do princípio de que somente conhecendo a si próprio,


poderia o ser humano ter um conhecimento satisfatório de outras coisas, sendo que
tal conhecimento de si próprio refere-se ao “conhecimento de suas faculdades de
cognição, do seu pensamento ou de seu entendimento, ou de sua razão.” Ao
transferir esse princípio epistemológico para sua teoria da investigação histórica,
Collingwood afirma que “toda história é história do pensamento”. Toda ação
historicamente significativa deve ser reconstituída tendo em vista o pensamento do
agente que a efetuou.64 (SILVA, 2003,p.10)

Para Silva (2010), o historicismo de Collingwood (1989) aplicado à teoria de Skinner


possibilita a valorização do contexto imediato da produção dos textos, denominado de
contexto de enunciação. O historiador objetiva analisar um universo de padrões linguísticos
constitutivos do objeto estudado. A existência de convenções linguísticas não significa o
reconhecimento de formas perenes nos textos, inibindo a ideia de uma obra “clássica” na
história do pensamento político.
O foco das atenções deslocou-se do conceito de intenção para o de efetuação, o que
possibilitou a encarnação das ideias, inibindo o rótulo de idealista para o seu trabalho. Essa
fala aparece em forma de manifesto no seu trabalho clássico, As Fundações do Pensamento
político moderno (1978).
Ainda na introdução do livro, Skinner (1978) reitera a ideia da história da teoria
política como uma história da ideologia, entendida pela relação entre teoria e prática. A
ideologia aqui é definida como um termo neutro que se refere a um conjunto de práticas
linguísticas compartilhadas por muitos escritores. O vocabulário político está atrelado à ação.
Para Skinner (1978), a recuperação dos termos de um vocabulário normativo de um agente
que está descrevendo seu comportamento político já induz à delimitação dessa ação.

63
SILVA, Ricardo, “O contextualismo linguístico na história do pensamento político: Quentin Skinner e o
debate metodológico Contemporâneo”, Revista Dados, Rio de Janeiro, vol.53, número 2, 2010. p. 3.
64
Ibid, p. 4.
44

Mas é difícil perceber como poderemos chegar a essa espécie de compreensão


histórica se continuarmos, no estudo das ideias políticas, concentrando o eixo da
nossa atenção naqueles que debateram os problemas da vida política num nível de
abstração e inteligência que nenhum de seus contemporâneos terá alcançado. Se, por
um lado, tentarmos cercar esses clássicos com seu contexto ideológico adequado,
poderemos ter condições de construir uma imagem mais realista de como o
pensamento político, em todas as suas formas, efetivamente procedeu no passado.
Um mérito que assim me atrevo a apontar no método que descrevi é que, se for
praticado com sucesso, poderá começar a dar-nos uma história da teoria política de
caráter genuinamente histórico.65

Refletir sobre as estratégias intencionais de um autor e a linguagem utilizada para


evidenciar o contorno de um contexto intelectual estimulam reflexões sobre a autoridade do
pensador, a especificidade do vocabulário analisado e a questão da mudança contingencial, ou
seja, a diacronia aplicada a esse objeto.
Pensar no que o autor “estava fazendo” quando escrevia, suscita, em termos de
recepção das ideias, algo incontrolável do ponto de vista do conhecimento. Essa recepção se
dará em contextos totalmente diversos da origem da produção.
Para Skinner, (1978) essa associação se dará como um momento aberto no tempo. A
análise do discurso pelo historiador pressupõe uma familiarização com a linguagem. O
contexto linguístico reafirma a si próprio e interage com a experiência. Os padrões
linguísticos podem ser atualizados no contexto de um idioma para outro.
As inovações linguísticas são objetos privilegiados do historiador e não
necessariamente ocorrem diacronicamente. Cabe ao “historiador do discurso político”
reconhecer paradigmas que podem variar conforme as performances intencionais.
Na decomposição do texto e na subsequente recomposição por meio de uma
articulação do autor com outros autores, o historiador deve perceber os aspectos de
continuidade e inovação que vão lhe fornecer informações válidas para fundamentar a
“história do discurso político”. A estrutura do texto representa um artefato de existência
sincrônica e a sua ocorrência ou performances simbolizam o continuum diacrônico.
Ao criticar o “paroquialismo” dos historiadores que projetam suas crenças e valores
para o pensamento político estudado, Skinner é confundido com um autor objetivista. No seu
argumento, o autor defende uma reelaboração do conceito de racionalidade em suas propostas
metodológicas. Skinner postula uma racionalidade “situacional e procedimental na elaboração
de preceitos de uma adequada metodologia de interpretação histórica”.66

65
SKINNER, Quentin. As Fundações do pensamento político Moderno, SP: Editora Companhia das Letras,
1996. p 11.
66
SILVA, 2010, OP. CIT. p.8.
45

A atrofia das dimensões interpretativas de um texto que se limitam a recuperação das


intenções autorais em um contexto sincrônico de padrões linguísticos, o que acaba esvaziando
a dimensão diacrônica do texto, ilustrada nas ressignificações atribuídas pelos leitores em
diversos contextos históricos.
A leitura que tende a questionar o aspecto historicizante da obra de Skinner não é
consensual, alguns comentadores tendem a caracterizar o autor através de uma aceitação da
temporalidade e contingência das ações e dos processos políticos, o que se reflete num estilo
de teorização política perspectivista.
Após ilustrar o debate inerente a teoria contextualista inglesa podemos iniciar a análise
do livro que originou-se da sua tese de doutorado sobre à obra de Joseph Conrad (2008)67
defendida na universidade de Harvard. Said experimenta uma análise fenomenológica da obra
de Joseph Conrad com base na análise das suas principais obras e da sua produção epistolar.
O autor utiliza a relação entre as correspondências privadas e a ficção conradiana para
investigar as condições que expressam um desassossego existencial.
Podemos afirmar que Said buscou traços de identificação com a obra de Conrad que
passam pela questão do exílio e pela identidade deslocada. Ambos escreveram numa língua
estrangeira e compartilharam experiências de exílio, deslocamento e marginalização. O exílio
teria provocado uma necessidade de compreensão da diversidade da experiência humana.
Conrad, tal como Said, parece oscilar entre dois mundos e duas linguagens, o que suscita uma
postura cética ou uma incerteza radical.
Outro fator de sedução pela obra de Conrad diz respeito à forma ambivalente como
este representa o imperialismo. O autor o considera inevitável, o que pode ser entendido como
um ato de cumplicidade com os seus mecanismos. A impressão que se tem quando se lê a
obra de Conrad é a de um mundo feito e desfeito simultaneamente. Mesmo tecendo críticas ao
imperialismo, a sua postura conformista se encaminha para o fato de que seria difícil admitir a
liberdade dos nativos. Aprisionado pelo seu contexto e por sua visão de mundo, Conrad
sustenta uma postura eurocêntrica.
Said trabalha com uma cronologia do desenvolvimento literário da obra de Conrad que
se divide em três fases distintas. A primeira fase, de 1896 a 1913, caracteriza-se pela decisão
67
Joseph Conrad nasceu em 1857 em uma Polônia dividida entre a Prússia, a Rússia e o Império Austro-
Húngaro. Em função do engajamento familiar na luta contra a Rússia, Conrad se exilara na Sibéria. Após esse
período emigrou para Marselha e depois para Londres. Em 1886, adquiriu cidadania britânica, ingressou na
Marinha e posteriormente foi contratado como oficial de barcos fluviais na sociedade anônima para o comércio
do Congo, que possuía sede em Bruxelas. A partir das diversas viagens que realizou para o Congo e para o
Oriente, começou a despertar uma vocação para escritor. Com a vivência do exílio e das aventuras em meio a
outras culturas, começou a redigir seus primeiros trabalhos como ficcionista. A sua obra mais famosa Coração
das trevas foi publicada em 1899 e se baseou na sua experiência no Congo Belga.
46

de se tornar um escritor e o respectivo reconhecimento como um ficcionista; o período de


1914 a 1918 que marca a experiência da primeira guerra e a dissolução do antigo regime; e
por fim, o período de 1918 a 1924, definido pelo enfrentamento de uma tortuosa reconciliação
com a Europa.
O autor analisa o contexto histórico inerente à linguagem literária e o desafio de
identificar a obra por meio de uma tensão permanente entre a construção integral da realidade
e a contingência da escrita. Estamos supondo que alguns problemas teóricos enfrentados na
análise da obra conradiana vão marcar a obra posterior de Said.
A tese de Said indica que a prosa conradiana não é resultado do descuido com
linguagem, mas a consequência de um duelo ou conflito interno. A análise das cartas68 de
Joseph Conrad tem relação com a possibilidade de articular e identificar os movimentos
dinâmicos ou estruturais da experiência de vida. Said entende que o esforço para criar um
monumento contra o fluxo do tempo gera uma consciência existencial problemática no autor
polonês.
A maior parte da ficção de Conrad dramatiza a relação entre o passado e o presente,
pois a concepção conflituosa sobre a sua trajetória de vida. Na obra de Said, a centralidade da
sua obra aparece por meio da experiência do exílio, o cruzamento das fronteiras entre as
culturas e o testemunho do papel da cultura no imperialismo.
Conrad teria sido um observador do fenômeno imperialista na medida em que
testemunha as particularidades do imperialismo moderno, aqui entendidos como experiências
sistemáticas que demandam reinvestimentos constantes. Para o autor polonês, os impérios
modernos pressupõem uma ideia de colaboração, de sacrifício ou de redenção. Conrad era um
crítico das formas mais cruéis de imperialismo, contudo acreditava na inevitabilidade desse
processo histórico.
No livro O coração das trevas, (2013) Conrad oferece um ponto de vista ambivalente
para lidar com o colonialismo Belga. Para Said, Conrad reúne aspectos distintos e
ambivalentes da colonização: a força e a apropriação de territórios e as práticas ocultas do
sistema de dominação que justificam ideologicamnete a autoridade exercida.
Conrad se configura como um exemplo clássico do romance europeu que não se
sustentaria sem a presença do império. Said chega ao extremo da declaração de que o

68
Said analisa as cartas pessoais de Conrad com o objetivo de analisar a sua ficção com base nas vinculações da
realidade vivida pelo autor e o seu trabalho. A narrativa da vida de Conrad subsidia a compreensão da sua ficção,
Said usa a dinâmica entre as cartas e a ficção conradiana para investigar as condições que expressam, o
estranhamento do exilado numa realidade que não é originalmente sua, o que compõe uma sensação de
estranhamento permanente.
47

romance é subsidiário da experiência histórica do imperialismo, pois está essencialmente


ligado à experiência burguesa moderna. O romance é visto como um artefato cultural da
sociedade burguesa e, portanto, inseparável do imperialismo. O romance e o imperialismo se
fortalecem mutuamente.
A visão eurocêntrica de Conrad exige uma postura antinômica do seu leitor, o que
acaba impossibilitando uma identificação óbvia com a sua visão da África. Sua escrita
representa uma contraposição à visão pós-colonial.

Arrebatado pela África de Conrad, o seu horror sufocante é o que nos leva até o final
e para além dela, na medida em que a própria história transforma a estagnação mais
rigorosa em um processo e uma busca por maior clareza, contraste, precisão ou
negação. E, é claro, em Conrad, assim como em todas as mentes igualmente
extraordinárias, a tensão percebida entre o que está insuportavelmente presente e
uma compulsão simétrica a escapar dele, é o que está mais profundamente colocado
em questão – disso se trata a leitura e a interpretação de um trabalho como O
coração das trevas. Os textos inertes permanecem em suas épocas; aqueles que se
contrapõem vigorosamente às barreiras históricas são os que permanecem conosco,
geração após geração.69 (SAID, 2004, p.56-57)

As menções a Conrad estão diluídas em todas as obras de Said, quase como se a


referência a esse autor estivesse relacionada à ideia do autor internamente dividido por
identidades múltiplas e isso interfere no seu estilo de escrita. A identificação com Conrad
passa pela diluição de uma dualidade de civilizações e binarismos profundamente incômodos.
Conrad ilustra o esfacelamento das distinções entre a civilização européia e o “coração das
trevas”.
Reconhecemos nesse contexto intelectual a mobilidade entre fronteiras e diluição das
essencialidades ou das identidades que constituem a visão pós-colonial que Said busca nos
autores para confirmar a ambivalência de ideias, práticas e orientações, aproximando as
antinomias criadas pelo mundo pós-moderno.
Conrad havia descoberto no campo das ambigüidades o abismo existente entre o que
as palavras diziam e o que significavam. A armadilha da linguagem é uma questão central
para um autor que escreve na segunda língua. O texto aparece como um objeto artificial,
repleto de mecanismos escorregadios que o distanciam da verdade da situação descrita.

Por tanto, de um modo bastante literal, Conrad cosiguió contenplar sus narraciones
como el lugar en el que lo motivado, lo ocasional, lo metódico y lo racional se
encuentran con lo aleatório, lo impredecible, lo inexplicable. Por una parte, se nos
presentan las condiciones mediante las cuales la narración de una historia se vuelve
necesaria; por outra la esencia de la historia misma parece contraria a las
condiciones de su narracion. La interación de una cosa con la outra – y la atención
que presta Conrad al escenario verosímilmente realista de la presentación del relato

69
SAID, Edward W. , Freud e os não europeus, SP: Boitempo Editorial, 2004. P.56/57.
48

exige que prestemos atención a esto – hace de la narración ese objeto único que
es.70( SAID, 2004, p.130)

Para Conrad o significado produzido pela escrita era uma espécie de esboço visual, ao
qual a linguagem escrita era colocaca em questão todo o tempo, como se uma estrutura
enganosa estivesse operante. Havia uma dúvida radical sobre o poder representacional da
linguagem escrita. Said se refere à perda de fé generalizada nos poderes miméticos da
linguagem. A escrita pode se distanciar irremediavelmente do visível, embora possa desejar se
aproximar deste, sem alcançar a inequívoca franqueza de um objeto contemplado, com seus
próprios olhos.
Foucault (1981) analisou esta aparente contradição na obra As palavras e as coisas
(1981) tratando-a como uma etapa histórica específica presente nas obras de Sade, Mallarmé e
Nietzsche. Said resgata uma possível analogia com a obra de Conrad, cuja narrativa
demonstra uma permanente necessidade de fundamentar epistemologicamente a narrativa na
expressão direta ou indireta das situações descritas na ficcçao.
Nas suas obras percebemos a disparidade entre intenção e realidade, entre o querer
falar e o escutar e compreeender. Conrad nega a sua própria escrita, quase se desculpando
pelo desvio de identidade. A sua escrita é uma negação, em função do uso do inglês que não é
sua língua nativa. Recorrer as suas experiências do passado pode significar uma busca por
uma origem autêntica que se perdeu, ou se deformou no apelo ficcional.
Para os heróis de Conrad, a matéria se converte no sistema de intercâmbio subjacente
à linguagem. Se a linguagem não consegue em ultima instância representar a intenção,
analogicamente a função mimética da linguagem aparece como um meio inadequado para
conseguir que vejamos utilizando a substância. O heroi conradiano é o próprio autor que se
propõe a reinvidicar e articular a sua imaginação.
Para Said (2008), Conrad é um autor que encarna a contradição da própria linguagem
e o seu poder mimético. Pararece que seus personagens estão sempre em conflitos ou
deslocados do seu próprio self. Isso em alguma medida reflete seus conflitos existenciais e
suas dúvidas sobre o poder da escrita em resolver as questões de definição da identidade.

70
SAID, Edward W, El mundo, el texto, y el crítico, Buenos Aires: Editora Debate, 2004.p.130. “Portanto, de
um modo bastante literal, Conrad conseguiu contemplar suas narracões como o lugar no qual a motivação, o
ocasional, o metódico y o racional se encontram con o aleatório, o imprecindível, o inexplicável. Por uma parte,
nos apresentam as condicições mediante as quais a narracão de una historia se volta necessária; por outra a
essência da história mesma parece contrária as condicições da sua narracão. A interacão de uma coisa com a
outra – e a atencão exige que prestemos atencão a isto – faz da narração esse objeto único que é.” (tradução
nossa).
49

Foi Conrad que compreendeu, com mais força do que qualquer um de seus leitores
poderia ter imaginado, no final do século XIX, que as distinções entre a Londres
civilizada e o “coração das trevas” rapidamente desapareciam em situações
extremas, e que as alturas da civilização européia poderiam instantanemamente cair
nas práticas mais bárbaras sem preparação ou transição. E foi Conrad também, em
the Secret agent (1907), que descreveu a afinidade do terrorismo com abstrações
como “pura ciência” (e por extensão pelo Islã e o “ocidente”) assim como a
degradação moral dos últimos terroristas.71 (SAID, 2003, p.46)

A leitura de Conrad é realizada no interior de um método empático; o colocar-se no


lugar do escritor, buscar entender cada palavra, cada metáfora ou frase como produtos de uma
intencionalidade percebida no ato da escolha, no labor da escrita, no processo da elaboração
do livro. A análise da linguagem permite pensar não só o campo estético da obra, como
também o contexto de produção da escrita.
Para Said, Conrad representa uma aproximação com o Niilismo extremo identificado
na filosofia de Nietzsche72. A familiaridade do escritor com esta filosofia, aparece nas
correspondências analisadas por Said, e parece uma chave de compreensão do suposto
interesse conradiano pelos paradoxos radicais do caráter humano.
O que aproximaria os dois autores e simultaneamente teria despertado a atenção do
autor palestino? A chave para essa aproximação diz respeito ao pressuposto de uma
linguagem oculta, em duplicidade, e a aliança entre poder e hierarquia que o filosófo chamou
de perspectiva.
Essa definição interessa a Said e se vincula a maneira como Nietzsche vê a história,
uma batalha de interpretações. Sem o acesso ao primeiro elo da cadeia das interpretações, ele
deve apresentar a sua própria leitura como um significado seguro. O duradouro se relaciona
com a interpretação.
A aproximação entre o escritor polonês e o filósofo, autor de A Gaia Ciência, pode ser
articulada pelo paradoxo na definição da linguagem. Essa vista por meio do excesso ou da
insuficiência, e que pode ser entendida como perspectiva ou interpretação. O niilismo dos
autores em questão é destacado por Said. O que Nietzsche chama de “polifonia de esforço”
interior se assemelha às muitas narrativas encontradas na literatura conradiana.
A narrativa de Conrad denota um estilo enigmático do inconclusivo. A narrativa que
se inicia com alguma esperança de desfecho, como uma teleologia, é abandonada no meio do

71
SAID, Edward W., Cultura e Política, SP: Boitempo Editorial. 2003. p.46.
72
Precisamos reconhecer que, no interior dos limites deste trabalho, não nos cabe discutir a filosofia de
Nietzsche, ou seja, só nos interessa essa aproximação, na medida em que, nos permite analisar a perspectiva de
Said sobre a obra de Joseph Conrad. Seu objeto de doutorado é uma referencia literária recorrente no conjunto da
sua obra. A analogia entre o escritor polonês e o filósofo está presente na coletânea, Reflexões sobre o exílio, e
outros ensaios, precisamente o artigo “Conrad e Nietzsche” (2003).
50

processo e visa surpreender o leitor com a diminuição de relevância dos personagens. Said
detecta o emprego dos discursos secundários ou repetidos na narrativa ficcional para
empreender um esforço do imprevisto no estilo de escrita do autor polonês.
A expectativa pelo exótico, pelo atípico se dilui no corriqueiro que se constitui
humano, demasiado humano. A convivência entre o habitual, o ordinário e o “intratável”
aparece na linguagem, na ação e nos personagens.
Said define Conrad como um escritor simultaneamente antimperialista e imperialista,
progressista e reacionário. Essa oscilação de posturas é ilustrada na representação da
corrupção autolegitimadora do colonialismo ocidental.
A projeção minimizadora da América Latina em Nostromo (1991), obra de Conrad,
confirma a visão que o autor tem do colonialismo. Conrad critica e reproduz a ideologia
imperial de seu tempo. Said associa a escrita de Nostromo a um contexto de entusiasmo
europeu pela experiência colonizatória.

Portanto, não é paradoxal que Conrad fosse imperialista e antimperialista;


progressista quando se tratava de apresentar com destemor e pessimismo a
corrupção autoconfirmadora e auto-enganosa do domínio ultramarino;
profundamente reacionário quando se tratava de conceber que a África ou a América
do Sul pudessem algum dia ter uma história ou uma cultura independentes, que os
imperialistas abalaram violentamente, mas pela qual foram, afinal, derrotados. Mas,
para que não pensemos em Conrad de forma condescendente, como criatura de seu
próprio tempo, seria melhor observar que atitudes recentes em Washington e entre
muitos políticos e intelectuais ocidentais não demonstram grande avanço em relação
73
às ideias conradianas. (SAID, 1993, pp.19/20)

Inserir Conrad num modelo de sociabilidade cosmopolita e deslocado das suas origens
possibilita entender o que Said teria marcado como central e passível de identificação na obra
desse escritor polonês. Devemos utilizar como guia interpretativo dessa aproximação, entre o
pensamento de Said e a obra de Conrad, o artigo do antropólogo James Clifford(2008),74 cujas
propostas versam sobre a aproximação entre dois autores poloneses que possuem perspectivas
muito semelhantes. São eles: Joseph Conrad no registro ficcional, e não muito distante,
embora com outra proposta original, Bronislaw Malinowsky, um antropólogo que estudou os
nativos das ilhas Trobriand na Nova Guiné.
Ambos são deslocados da sua origem e compuseram suas versões de identidades
moldadas pelas novas inserções culturais, em confronto com os seus pontos de origem.
Conrad se tornou um grande escritor na sua terceira língua de apreensão, aos 20 anos.

73
SAID, E. Cultura e Imperialismo, SP: Editora Companhia das Letras.1993. pp. 19/20.
74
CLIFFORD, James, Sobre à auto modelagem etnográfica: Conrad e Malinowsky In: A experiência
etnográfica, antropologia e literatura no século XX, RJ: Editora UFRJ, 2008.
51

Sua vida dedicada a escrever, a tornar-se constantemente um escritor-de-língua-


inglesa, oferece um paradigma para a subjetividade etnográfica; ela encena uma
estrutura de sentimento continuamente envolvida na tradução entre línguas, uma
consciência profundamente ciente da arbitrariedade das convenções, um novo
relativismo secular. 75 (SAID, 1993, p.97)

Clifford (2008) se aproxima da leitura saidiana sobre Conrad na medida em que


percebe a sua árdua tentativa de entrega ou assimilação à Inglaterra e ao inglês. A sua escrita
é quase um duelo lingüístico. Conrad, exilado, deslocado da sua origem, escritor de uma
ficção bem elaborada, com registros artificiais em termos de identidade coletiva.
O Coração das trevas denota uma crise de identidade, uma luta contra a dissolução
moral. Para Clifford (2008), O coração das trevas indica um paradigma da subjetividade
etnográfica. Conrad está imprensado por uma liminaridade cultural no Congo. O tom irônico
da sua escrita assume uma crise representacional de alguém que está no entrelugar. O autor
estava imerso em uma conjuntura subjetiva, contraditória e articulada ao problema da
linguagem, do desejo e da filiação cultural.
A cultura é vista como uma ficção coletiva reiventada subjetivamente pela experiência
do deslocamento, do descentramneto geográfico e cultural. Said falava de um Conrad que
lutava por moldar uma personalidade. Conrad e Malinovsky são entendidos por Clifford como
escritores autoreflexivos que ocupam posições irônicas dentro do projeto geral de um
confronto entre muitas possibilidades culturais, um mundo mediado e intermediário.
Said associa a visão do imperialismo no romance de Conrad a uma associação com a
visão do Rei Leopoldo para sua associação internacional do Congo que se imaginava
prestando serviços duradouros e desinteressados à causa do progresso. Reconhecemos uma
visão permissiva e apiedada do exotismo do outro nos romances de Conrad. O
empreendimento europeu é lido com uma “desconcertante pureza”, com o ímpeto de
preenchimento dos grandes espaços vazios do mapa, cujo gesto lembra a realidade histórica
do imperialismo. O relatório de Kurtz para a “sociedade de eliminação dos costumes
selvagens”, cujo objetivo era civilizar e iluminar as trevas, ao mesmo tempo uma antítese e
um equivalente lógico do seu resultado efetivo.
Os nativos são transformados de seres concretos a indivíduos subservientes numa
humanidade inferior. O colonizador é transformado num escritor invisível, cujo texto fala do
outro é insiste no caráter científico, desinteressado e no aprimoramento contínuo da condição,
caráter e costume dos “primitivos”.

75
Ibid, p. 97.
52

Said desenvolve o padrão autobiográfico nos romances de Conrad através da visão de


uma autoconsciência que deve ser velada nas entrelinhas da ficção. A tese de Said se
desenvolve na perspectiva de que a prosa conradiana não é um resultado prolixo de um
escritor descuidado, era o produto particular do seu duelo consigo mesmo.
53

1.2.2 Proximidades entre Said e Auerbach: Interioridade e Exterioridade

Ao concluir o seu doutorado Edward W. Said começou a lecionar na Universidade de


Columbia. O autor descreve que ele imaginava a literatura e a história como dois campos bem
separados, enquanto objetos de estudos e experiências. A mudança de perspectiva teria
ocorrido com a leitura e tradução de um texto de Erich Auerbach76. Tratava-se do ensaio
“Filologia da literatura Mundial”, um texto de 1952 que fora escrito e publicado na Alemanha
após o aparecimento de Mimésis77. Said descreve o Mímesis (1994) como sendo um dos
textos mais essenciais dos estudos literários do século XX.
No ensaio descrito por Said, Auerbach analisa a filologia como um peculiar
enredamento com a História. Esta é descrita como uma ciência em que os seres humanos
aparecem em sua totalidade. A filologia é vista com uma disciplina historicista. O filólogo era
um especialista, cujas atividades abrangiam; a compilação e a apresentação dos registros
saturados de história. A filologia era a disciplina interpretativa por excelência.
Auerbach além de leitor e tradutor de Vico78 teria se apropriado da ideia essencial da
unidade dos períodos históricos. Said, leitor privilegiado de Auerbach, se apropria de um Vico
traduzido, no sentido mais abrangente, pelo teórico alemão.
Said se interessa pela concepção de hsitória viquiana e pelas possibilidades
epistemológicas das ciências humans que Vico inaugura. O Vico de Auerbach percebe a
história para além do passado, mas como a verdadeira estrutura em que vivemos; os modos e

76
Erich Auerbach nasceu em Berlim em 1892, foi professor da Universidade de Marburg desde 1929. Com a
decretação das leis de Nuremberg em 1935, foi proibido de lecionar por ser de origem judaica. Um ano depois,
foi afastado definitivamente da sua inserção na universidade e exilou-se na Turquia, onde substituiu Leo Spitzer
na universidade de Istambul, quando lecionou até 1947. Sua especialização em filologia românica marca uma
influência teórica relacionada à erudição alemã do século XIX. Relaciona-se com o historicismo romântico
preconizando uma reflexão com base na pluralidade da individualidade dos povos. Auerbach distingue o
universalismo dialético da ideia de humanidade do Iluminismo e particulariza a primeira de forma a valorizar a
romanística alemã e sua concepção de história.
77
Erich Auerbach é conhecido por seu livro Mímesis, a representação da realidade na literatura ocidental,
escrito durante o seu exílio em Istambul no período da Segunda Guerra Mundial. Foi publicado em Berna, em
1946. Para a maior parte dos comentadores da sua obra esse livro seria central para a compreensão das suas
reflexões teóricas. Said dedica vários artigos à análise da obra de Auerbach. Entre os artigos consultados,
destacamos um capítulo dedicado ao livro Mímesis, presente no livro Humanismo e crítica democrática.;
Introdução a Mímesis de Erich Auerbach.
78
R. G. Collingwood defende em seu livro, A ideia de história, que Vico falava sobre a necessidade de distinguir
aquilo que deveria ser conhecido daquilo que não estava nos limites da compreensão humana. A doutrina dos
limites necessários do conhecimento humano forneceu recursos para uma crítica do cartesianismo e para uma
aproximação de Locke e seu empirismo crítico.
54

costumes compartilhados. A distinção entre a ideia de uma determinada realidade histórica79 e


a própria realidade não teria significado. Para Vico o ponto de vista humano é decisivo.
A temporalidade em Vico seria espiralada, diferente de um movimento cíclico tal
como na concepção de história renascentista. Mesmo seu esquema temporal não parece rígido
o que comporta exceções.

Não é um círculo mas uma espiral, pois a história nunca se repete, atingindo cada
nova fase, numa forma diferenciada em relação ao que a antecedeu. Deste modo, o
barbarismo cristão da idade média diferencia-se do barbarismo pagão da idade
homérica, por tudo o que o torna caracteristicamente uma expressão do espírito
cristão. Por esta razão, porque a história está sempre a criar novidades, a lei cíclica
não nos permite prever o futuro – o que distingue o seu emprego, por Vico, da velha
ideia Greco-romana de um movimento estritamente circular na história (encontrada
por exemplo em Platão, Políbio, e em historiadores do renascimento, como
Maquiavel e Campanella), tomando em consideração o princípio – cuja importância
fundamental já salientei – de que – de que o verdadeiro historiador nunca
profetiza.80 (COLLINGWOOD, 1989, p.92)

Todas as tradições são verdadeiras mas, nenhuma delas significa aquilo que diz. Para
se descobrir o seu significado, temos de saber a sua origem de criação e o que tal espécie
pretendia com tal coisa. Vico (1999) demonstrou como o pensamento histórico pode ser
construtivo e crítico e em segundo lugar, Vico (1999) desenvolveu os princípios filosóficos
implícitos na obra histórica em contraposição ao cartesianismo ampliando a base para a teoria
do conhecimento.
Para Said, o Vico resgatado por Auerbach significa a confirmação da possibilidade de
um conhecimento pautado pelo humanismo crítico. Said desperta um interesse pela obra de
Auerbach naquilo que ela traz em termos de síntese, de essência e culminância da análise
histórica literária do cânone ocidental.
Auerbach responde à perda da sua origem nacional e ao colapso do mundo ocidental
moderno através da recriação da cultura européia resgatando os textos da tradição humanista
européia. Said se interessa pelo fortalecimento da identidade numa conjuntura de iminência da
perda. Essa situação se aproxima da sua motivação intelectual, os traços “privilegiados” do
intectual diaspórico e a necessidade de traçar um inventário daquilo que está por se perder.
Resgatamos a associação entre a ideia de totalidade e a individualidade das narrativas
literárias, o que promove a chave de compreensão das afinidades entre Said e Auerbach. O
desejo pela manutencção da totalidade da tradição literária européia e as individualidades

79
Vico havia sustentado que certos períodos históricos tinham um caráter geral que gerava pormenores que
apareciam em outros momentos, de forma que dois períodos distintos possuíam criterios analogicamente
comparativos.
80
COLLINGWOOD, R. G., A ideia de História, Lisboa: Editorial Presença, 1989. P.92
55

historicistas de cada período deveria gerar um conceito próprio de relativismo. O próprio


Auerbach afirma as influências do historicismo alemão e da filosofia hegeliana na sua
produção. O humanismo secular auerbachiano o aproxima de Vico.
Said se refere ao filólogo como um teórico que recorre a um método empático, como
se o autor revivesse dentro de si a história da humanidade como se fosse a própria história
pessoal, imbuído de um ato de criação. A analogia com o Mímesis de Auerbach vai de um
movimento de decodificação de cada texto analisado, passando por uma visão da sua própria
época repensando a individualidade de cada época.

A Ciência Nova de Vico era a arte de ler, digamos, os poemas de Homero, não como
se fossem escritos por um filósofo do século XVIII, mas como produtos de sua
época primitiva, textos que encarnam a juventude da humanidade, a era heróica em
que, para compreender e, se necessário, construir a realidade, se utilizava a metáfora
e a poesia, não a ciência racional e a lógica dedutiva, que ocorrem muito depois. A
filologia historicista – que é muito mais do que estudar a derivação das palavras – é
a disciplina que descobre sob a superfície das palavras a vida de uma sociedade que
ali está encerrada pela arte do grande escritor. Não se pode fazer isso sem, de
alguma forma, intuir, com o uso da imaginação histórica, como a vida poderia ter
sido, e assim, como sugerem Dilthey e Nietzsche, a interpretação envolve uma
projeção quase artística do eu naquele mundo anterior.81 (SAID, 2003, p.211)

A centralidade da “representação da realidade”, divide-se em diferentes estilos; o


elevado, o baixo ou o médio”, e pode-se traduzir em diversas narrativas. Para Said, o projeto
do Mímesis tem relação com o rastreamento da visão histórica secular encarnada na
linguagem. Said ressalta que a filologia estaria em extinção dando lugar à crítica como uma
atividade passível de diversas transformações.
Erich Auerbach (1972) promove o surgimento de uma estética do romance,
relacionada com a ideia do homem se tornar consciente de si mesmo, inserido numa
existência terrena que deveria ser apreendida. A relação entre a origem do escritor, a situação
do seu público e o lugar de onde se escreve, indicam semelhanças com o nosso autor
palestino. Embora Auerbach se distancie dos estudos literários de viés sociológico, boa parte
de sua análise se enquadra na perspectiva do que o próprio autor define como realismo
histórico.
A ênfase na interioridade e na exterioridade diz respeito ao viés de conexão dos
estudos literários com a história. Vislumbrar a possibilidade de uma perspectiva histórica nos
estudos literários ou a refração da influência do contexto na compreensão dos textos posiciona
o crítico do ponto de vista teórico. Auerbach se coloca em perspectiva não só como leitor,

81
SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP: Editora Companhia das Letras, 2003. P. 211.
56

mas como autor, já que este se insere na condição de um homem do seu tempo. O realismo
também deve ser visto como a concretização do homem inserido na sua trajetória histórica.
O romance ou a novela assume elementos particulares do ser humano, inserido no
mundo e com singularidades destacadas e levadas à sua máxima expressão. O movimento é de
dupla direção, com o enfoque comparativo da filologia, o texto literário pode ser remetido ao
devir histórico e o indício da transformação histórica aparece através da análise da produção
literária.
Para Auerbach, a obra de arte é determinada pela época da sua origem, pelo lugar e
pela singularidade do autor. A mundanidade aparece através da cultura. Luiz Costa Lima
(1995)82 diferencia a sutileza da obra inscrita socialmente dos fundamentos sociológicos das
obras em Auerbach. O sentido dessa distinção na particularidade analítica da obra de
Auerbach é inferir sobre a ausência de um determinismo sociológico nesse contexto.
O debate sobre a representação, presente no subtítulo de Mímesis, indica a genealogia
desse percurso iniciado em Vico. Costa Lima (1986) aponta para a inauguração da história
humana como experiência cognitiva na Ciência Nova de Vico. A sua leitura de Auerbach e
Vico aponta para a categoria de mímesis e para uma simplificação indesejada na relação entre
realidade e texto.

Auerbach concebe a mímesis como uma rua de mão única, que só tivesse por
direção o fluxo que viesse da realidade para o texto. Hoje, ao invés, percebemos que
o texto não é simplesmente um efeito da realidade ou uma depuração através da qual
apreenderíamos o que, sem que fosse notado, já estava na realidade. Tal concepção,
modernamente tributária da influência hegeliana, ainda era demasiado “espiritual”
para que não compreendesse que o próprio meio material em que a mímesis se
realiza é passível de ter um efeito sobre a visão então constituída da realidade.83
(SAID, 2003, pp.233/234)

Podemos aproximar os dois autores em questão, Edward W. Said e Erich Auerbach, na


medida em que ambos buscam um possível rastreamento da mundanidade que remete a obra
ao contexto histórico. Devemos aprofundar essa questão em cada um dos percursos teóricos.
Se para Auerbach compreender a obra pressupõe um duelo de forças que constitui uma
oscilação entre uma subjetividade e uma referência objetiva do mundo na qual ela se insere, a
categoria de realismo mobiliza uma tríade que articula: sociedade, forma e realismo.
Podemos associar esse conjunto à tríade formulada por Said: o mundo, o texto e a
crítica. O realismo de Auerbach aparece não somente na concretude empírica, mas na

82
LIMA, Luiz Costa, “Mímesis e História em Auerbach” In: LIMA, Luiz Costa, Vida e Mímesis, SP: Editora 34,
1995.
83
Ibid, pp. 233/234.
57

transição do real externo para o real interno na obra. O autor opera com uma múltipla
perspectivação no interior da obra que envolve; o momento da produção do texto, o contexto
da recepção e a condição de sujeito do autor.
Said se refere à Auerbach como um refugiado judeu da Europa nazista que havia
produzido sua obra central durante o exílio na Turquia. A representação do exílio de
Auerbach para Said interfere no perfil da escrita de sua obra. Para Said, Auerbach se
encontrava fora do alcance dos fundamentos literários, culturais e políticos da tradição
européia. Para além das condições adversas e precárias, Auerbach estaria exercitando um ato
de resgate e salvaguarda de uma tradição em plena decadência desse cânone ocidental.
Mímesis comporta um esforço de resgatar uma espécie de síntese da cultura ocidental.
Na visão de Said, Auerbach estaria enfrentando as condições históricas do
distanciamento que significam a perda dos textos das tradições e das regularidades que
constituíam uma cultura. O distanciamento material das bibliotecas, dos institutos de
investigação esvaziaria de sentido nacional o ethos o próprio autor. Auerbach, distante da
Europa, produz uma obra absolutamente arraigada ao cânone europeu. Para Said, Auerbach
representa o exemplo clássico de filiação com a sua cultura de origem.
Devemos trabalhar com a perspectiva que relativiza a idealização das condições de
exílio de Auerbach na Turquia.84 Na visão de Konuk (2010), o itinerário do exílio representa
um conjunto de forças históricas que produziu a emigração forçada de intelectuais judeus de
origem alemã, o que acabou produzindo uma renovação cultural na Turquia.
A idealização de Said (2003) indica uma Turquia hermeticamente fechada à influência
da cultura européia, o que resulta no estereótipo do contexto árido e problemático de produção
do livro. Essa ideia fortalece o pressuposto de que a realidade diaspórica de Auerbach teria
condicionado a sua obra. Konuk (2010) se contrapõe a essa visão, segundo ele idealizada,
sobre o contexto intelectual de inserção do autor alemão.
O argumento central da tese de Konuk (2010) é mostrar em que medida, nos anos 30,
os contextos da Turquia e da Europa Ocidental eram mais próximos e imbricados do que se
imaginava. No que tange à visão saidiana sobre o exílio de Auerbach, podemos defender que
essa representação foi suscitada pela descrição do próprio autor alemão. No prefácio ao livro

84
Encontramos fundamentos que nos permitem uma relativização da representação produzida por Said acerca do
exílio de Auerbach na Turquia na interessante análise do autor, KONUK, Kader, East West Mímesis Auerbach in
Turkey, Stanford: Stanford University Press, 2010.
58

Introdução aos estudos literários85, escrito durante o seu exílio turco, Auerbach (1972)
afirma:

Este livro foi escrito em Istambul, em 1943, com a finalidade de oferecer aos meus
estudantes turcos um quadro geral que lhes permitisse compreender melhor a origem
e a significação de seus estudos. Isso aconteceu durante a guerra: eu estava longe das
bibliotecas européias e norte-americanas; não tinha quase nenhum contato com meus
colegas no estrangeiro, e fazia muito tempo que não lia nem livros nem revistas
recém-publicados.86 (KONUK, 2010, p.9)

O epílogo do livro Mímesis, de certa forma, contribui para a visão idealizada acerca da
produção intelectual auerbachiana no exílio, para além de realçar as virtudes do livro em
função das condições adversas da escrita do mesmo. Said se baseia fortemente nesse material
para compor a representação do perfil do escritor, da identidade do intelectual exilado e de um
desempenho singular em função dessa experiência.

Mas as dificuldades eram demasiado grandes; mesmo assim, tratei de textos de três
milênios e muito frequentemente tive de abandonar o âmbito que me é próprio, as
literaturas românicas. Junta-se a isto, ainda, o fato de a pesquisa ter sido escrita
durante a guerra, em Istambul. Aqui não há nenhuma biblioteca bem provida para
estudos europeus; as comunicações internacionais estavam paralisadas; de tal forma
que tive de renunciar a quase todas as publicações periódicas, à maioria das
pesquisas mais recentes, e por vezes a edições críticas dos meus textos dignos de
confiança. Portanto, é possível e até provável que muita coisa me tenha passado
despercebida, muita coisa que deveria ter considerado, e que, por vezes, afirme
alguma coisa que tenha sido refutada ou modificada por pesquisas mais recentes.
Espero que entre esses prováveis erros não haja nenhum que afete o cerne do sentido
das ideias expostas. Também é resultado da escassez de literatura especializada e de
periódicos o fato de este livro não conter notas; afora os textos, cito relativamente
pouca coisa, e este pouco deixou-se introduzir facilmente no texto.87 (AUERBACH,
1994,p.502)

A compreensão do texto coloca os dois autores no limiar da


interioridade/exterioridade. Reconhecemos a indissociação entre sincronia e diacronia. No
caso do Auerbach, na análise inerente ao Mímesis, sua obra clássica, o sincrônico se refere a
uma crise da consciência européia. O diacrônico permite o aprofundamento da tipologia dos
vários realismos, dos lugares de origem da fala dos autores.
Assim como para Said, não existe determinismo no que tange à mundanidade da obra,
em Auerbach não há reflexologia na relação entre obra e contexto. O conceito de ponto de

85
AUERBACH, Erich, Introdução aos estudos literários, SP: Editora Cultrix, 1972.
86
Ibid, Prefácio, p. 9.
87
AUERBACH, Erich, Mímesis, a representação da realidade na literatura ocidental SP: Editora Perspectiva,
1994. P. 502.
59

partida, no caso de Auerbach, e o conceito de começo para Said apontam para a compreensão
do fragmento remetido à totalidade. A parte tem uma qualidade que permite conhecer o todo.
A dupla perspectivação dos autores em questão envolve as condições objetivas da produção e
a tradução ou interpretação que não se esgota no elemento objetivo.
No livro A novela no início do renascimento,(2013) a metodologia comparativa é mais
explícita e os indícios das transformações históricas dependem do reconhecimento da
associação entre filologia e sociologia. Auerbach distancia-se das definições essencializadoras
e tipológicas e procura demonstrar as descontinuidades da novela ao longo do tempo
histórico.
Said reconhece Mímesis como um livro de um alemão exilado, afastado do seu
ambiente de origem. Embora o seu lugar de pertencimento esteja claro, o deslocamento para a
Turquia88 oferece uma nova perspectiva sobre a cultura européia. Os últimos capítulos de
Mímesis são um retrato do período contemporâneo de Auerbach, por meio de observações
agudas dos fatos e agentes sociais do contexto contemporâneo.
Na leitura de Said (2007), o Mímesis aparece como “uma tentativa de resgatar o
sentido e os significados dos fragmentos de modernidade com que, a partir do seu exílio
turco, Auerbach via a queda da Europa e da Alemanha em particular.”89
Para muitos autores, o exílio representa um estado de deslocamento crítico e
inspiração superior para elaboração de uma visão mais legítima da realidade. A metáfora do
desarraigamento inferia no retrato distorcido da solidão intelectual e da aridez de recursos,
tais como disponibilidade de fontes, presença dos clássicos literários ou existência de boas
bibliotecas disponíveis ao pesquisador. A equação exílio igual a isolamento subsidiou a visão
idealizada da permanência de Auerbach e da produção do seu clássico Mímesis.
No livro O mundo, o texto e o crítico, Said (2004) configura a insuficiência da
ambiência turca como um desafio habilitador da escrita do livro. Said entendia a Istambul dos
anos 30 como um lugar oriental, não ocidental. O argumento de Konuk pretende mostrar
como a Turquia não pode ser vista como a antítese do humanismo europeu. O autor se
distancia da visão de Said na medida em que tenta comprovar que a permanência de Auerbach

88
Auerbach chegou a Istambul em 1936, após o afastamento compulsório da Universidade de Marburg definido
pelo contexto das leis de Nuremberg que criara uma categoria de “judeu pleno” e interditava a ocupação de uma
função pública universitária aos judeus. Traçar o contexto do exílio de Auerbach na Turquia nos interessa na
medida em que isso confirma uma representação que Edward W. Said havia feito dessa produção intelectual no
contexto de deslocamento da Europa. Para Said, o modelo de produção do Mímesis obedece às condições de
distanciamento do universo intelectual europeu.
89
SAID, Edward W. Humanismo e crítica democrática, SP: Editora Companhia das Letras, 2007. P.143.
60

na Turquia estava indissociada dos movimentos secularizantes e ocidentalizantes, pelos quais


a Turquia passava, e que isso prefigurou o escopo essencialmente eurocêntrico do Mímesis.
A atmosfera ocidental e distante do legado do império otomano dividiu o cenário
intelectual dos anos 30 na Turquia. Em 1930, o universo intelectual turco percebia Auerbach
não como um judeu, mas como um europeu que deveria ajudar a reintroduzir a herança
humanista da velha Constantinopla.

The executive value of exile, to use Said`s term, lies not simply in Auerbach`s
alienation from his habitual cultural environment but in the particular cultural,
historical, and intellectual environment of modern Turkey, an environment that
offered a new home for the humanist tradition. In other words, Auerbach `s work
was not only “steeped in the reality of Europe”, as Said argues; it was also rooted in
the reality of Istambul. As if to anticipate Said`s charge, Auerbach wrote that this
work was quite consciously a book that a particular person in a particular situation
wrote at the beginning of the 1940`s.90

A chegada dos intelectuais europeus forneceu um suporte para o cenário de


modernização e secularização inerentes às reformas vividas pela Turquia nos anos 30. A
permanência de 10 anos de Auerbach na Turquia coincidiu com a introdução de mudanças
políticas, culturais e educacionais. O livro de Konuk sugere que esse processo de
modernização formador da identidade moderna turca teria relação estreita com a acolhida dos
intelectuais judeus alemães exilados.
A ampliação da ocidentalização da Turquia sob o governo de Kemal Atartuk se
configurou com a recepção de uma ampla reforma cultural e política. Atartuk acreditava que
modernização significava ocidentalização e, por conseqüência, estabelecer a educação secular
e mudanças nos hábitos e costumes da sociedade da época.
No contexto da obra citada, duas questões básicas se colocam, a saber: como a
permanência de Auerbach em Istambul modelou a escrita de Mímesis e como os livros
ajudariam a entender a Turquia no contexto das reformas modernizantes. Para Konuk,
Auerbach havia encontrado o humanismo perdido na Europa do nacional socialismo. A
desmistificação passa pelo aspecto solitário ou isolado de um Auerbach no exílio turco.

90
KONUK, Kader, East West Mímesis Auerbach in Turkey, Stanford: Stanford University Press, 2010.p.15. “O
valor estrito do exílio, para usar os termos de Said, se baseia não somente na alienação do habitual ambiente
cultural de Auerbach, mas no particular ambiente cultural, político e intelectual da Turquia moderna, um
ambiente que ofereceu nova morada à tradição humanista. Em outras palavras, a obra de Auerbach não somente
‘mergulhou na realidade da Europa’, como argumenta Said; também enraizou-se na realidade de Istambul. Como
que se antecipando à investida de Said, Auerbach escreveu que este trabalho foi conscientemente um livro que
alguém em particular, em uma situação em particular, escreveu no início dos anos 1940.” (tradução nossa)
61

A ambiência da Turquia contava com vários emigrados europeus que ajudavam a


formar uma Turquia cosmopolita. O autor palestino identifica parte da idealização positiva da
produção de Mímesis da escassez de recursos intelectuais, o que faria de execução a livro um
ato quase heróico em termos de manutenção de erudição da memória.

Edward Said, for one, took Auerbach to mean that there were “no western research
librairies” at all. Such a library, Said suggested, turning the lack into a gain, might
have otherwise “swamped” Auerbach with material. In reconstructing Auerbach`s
modus operandi, Said assumed that Auerbach had his own limited library of primary
sources but that he “relied mainly on memory and what seems like an infallible
interpretive skill for elucitading relationships between books and the world they
belong to. 91

O impacto do exílio na obra de Auerbach, ajudou a definir um estilo de produção


intelectual que Said identificou como do intelectual diaspórico. A diáspora era vista como
uma vantagem epistemológica ou um privilégio de deslocamento do olhar mais apurado ou
mais distanciado.
Ao contrário da visão de Said, que acreditava numa Turquia remotamente distante da
cultura européia, e escassa em recursos intelectuais para a elaboração do Mímesis, Konuk
desenvolve a ideia de que a Turquia desse período era um cenário de salvaguarda do
humanismo europeu, que se perdia lentamente na Europa dos anos 30. O autor insiste que as
reformas humanistas e a maneira como a construção da nação ocorriam na Turquia da época
se aproximavam das mudanças na literatura e na filologia.
A escrita do Mímesis representa uma tentativa de salvaguardar a unidade européia em
meio aos fragmentos de uma identidade dilacerada pela experiência do exílio e pela
modernidade degenerativa. Said reconhece o esforço de Auerbach no sentido de criar uma
representação alternativa para a Europa. O erudito deve incorporar a missão de reconstruir a
História do seu tempo como parte de um compromisso com o seu campo.
Toda e qualquer análise deve guardar um compromisso com a história do seu tempo.
Said se identifica de forma plena com a seguinte expressão; “Pois dentro de nós realizamos
incessantemente um processo de formulação e de interpretação, cujo objeto somos nós

91
Ibid,. p.137. “Edward Said, por exemplo, usou Auerbach para demonstrar que ‘não há bibliotecas de pesquisa
ocidental’. Tal biblioteca, Said sugere, revertendo a perda em ganho, deve, ao contrário, ter ‘afogado’ Auerbach
com material. Ao reconstituir o modus operandi de Auerbach, Said presumiu que Auerbach teve sua própria
limitada biblioteca como fonte, mas que baseou-se principalmente na memória e no que pareceu ser um infalível
habilidade de interpretação para elucidar relações entre os livros e o mundo ao qual eles pertencem.” (tradução
nossa)
62

mesmos: a nossa vida, com passado, presente, futuro; o meio que nos rodeia; o mundo em que
vivemos.”92 (AUERBACH, 1994, p.494)
Para Said, o autor é o ponto de partida para análise e interpretação, o que amplia o
estoque de possibilidades de compreensão do texto. Como filólogo, Auerbach deve rastrear os
momentos de origem da cultura ocidental que estão se esgarçando em meio a uma crise da
cultura. O filólogo deve priorizar a ordenação do material que aparece como herança ou
vestígio, deixado em meio à degeneração de uma cultura.
A rejeição a qualquer esquema rígido ou apreensão linear dos fragmentos textuais, o
aproxima dos romancistas modernos que recriam o mundo com base nos momentos pequenos
ou aleatórios. Em Mímesis, há a prática de se trabalhar com a análise de fragmentos
desconectados. Cada um dos capítulos do livro, é marcado não somente por um novo autor,
como um período histórico e ficcional distinto. Auerbach sempre volta para o texto, para o
estilo usado pelo autor para representar a realidade.
O princípio da empatia aparece como método de compreensão da obra, o que indica
proximidades com o Historicismo. Devemos dedicar uma parte subseqüente para uma
cuidadosa análise da relação entre o pensamento de Vico e a obra do filólogo alemão. Essa
aproximação ilustra mais uma afinidade do nosso autor Palestino com Auerbach. Este autor
procurou valorizar o método comparativo, no esforço teórico de uma existência associada à
História.
A chave para se compreender a concepção de História em Auerbach é definir os vários
realismos que perpassam as interpretações sobre a realidade inserida na literatura ocidental.
Alguns críticos da obra de Auerbach apontam o problema da mímesis unilateral, ou seja, uma
relação simplificada entre realidade e texto.
Novamente se coloca o problema do reducionismo ou hierarquia na relação entre texto
e realidade. Reconhecemos como inegável a centralidade da história para compreensão do
texto no autor alemão. Nesse sentido devemos vincular o cenário de formação intelectual do
autor de Mímesis na Alemanha Historicista que procurava ler as manifestações culturais
inseridas em singulares contornos. Mímesis representa um importante paradigma na busca por
modelos de História quando realiza as operações teóricas da história clássica alemã, inspirada
na concepção compreensiva de Dilthey.
O problema do ponto de partida em Auerbach nos conduz para a autodefinição do
autor quanto ao seu trabalho que se assemelha a uma topologia histórica. O concreto ou

92
AUERBACH, Erich, Mímesis, a representação da realidade na literatura ocidental SP: Editora Perspectiva,
1994. P. 494.
63

singular não se limita a uma obra autoral e o limite interpretativo tem conexão com uma
“irradiação” que promove filiações intelectuais e que se desdobra na relação entre o singular e
o geral, o característico.
A apreensão do todo se dá pelas partes, pela singularidade dos estilos literários, pelo
lugar de origem dos autores, embora a visibilidade compreensiva deva culminar com a
totalidade. Em Auerbach, o “instante qualquer” ou o evento aleatório, cotidiano pode ser o
ponto de partida para a compreensão da totalidade ou para uma interpretação sintética. O todo
está contido nas partes, mesmo a parte aparentemente menos importante.
Resgatamos o realce ao problema da tensão entre o particular e o universal. Auerbach
revela a indissociação entre a ontologia dos problemas humanos, entre uma essência que
permeia as diferentes temporalidades e as demandas contextuais. Em cada texto ou autor
particular, Auerbach encontra uma prefiguração de outras etapas da conjuntura mais ampla da
tradição de uma literatura ocidental.
Por meio de uma semântica histórica o autor alemão tenta rastrear o porcesso social, a
formação de um público e a definição de tipos sociais. A semântica histórica resignifica a
dimensão social dos textos.
A aproximação entre Said e Auerbach se encontra exatamente nessa tensão entre o
contingente, o fato histórico e o elemento universal que encaminha o sentido mais geral para
uma teleologia; a dupla movimentação que oscila entre o retrospectivo e o prospectivo; a
culminância de um gênero por meio do efeito geral na realidade histórica.

Auerbach imprime duplo movimento à análise, retrospectivo e prospectivo, pelo


pressuposto crítico da participação dos textos no gênero. Sua interpretação é pós-
figuração do gênero, assim, e lê os textos buscando nas suas imagens a ideia ou o
sentido próprio do mesmo, como se os discursos, inclusive o seu, fossem aquela
umbra futurorum de que falam escolásticos. No movimento prospectivo da sua
leitura, as semelhanças dos textos analisados prefiguram no tempo a ideia do gênero
realizado depois; no movimento retrospectivo, é o gênero que fornece o sentido
próprio de sua ideia para eles, numa contínua circularidade idealista...93 (HANSEN,
1994, p.46)

Devemos limitar o escopo da nossa abordagem acerca da obra de Auerbach,94 uma vez
que sua obra não constitui nosso objeto de análise mais direto. A aproximação ainda que

93
HANSEN, João Adolfo, Mímesis: Figura, Retórica e Imagem, In: RIEDEL, Dirce C., ROCHA, João C. de
Castro, KRETSCHMER, Johannes, (Coords.), 5º. Colóquio UERJ, Erich Auerbach, RJ: Editora Imago, 1994. P.
46.
94
Procuramos adotar algumas perspectivas interpretativas que nos possibilitam a percepção das afinidades entre
os autores. Reconhecemos a importância de um extenso e complexo debate sobre a produção de Auerbach,
realizado no Colóquio sobre a sua obra. Este possibilitou algumas entradas que nos ajudam a circunscrever uma
parcela de identificação da obra.
64

indireta da sua obra possibilita uma identificação dos traços definidores da produção
intelectual de Edward W. Said.
A realidade não pode ser entendida como um referente, esta deve ser vista por meio
de resquícios de um referencial discursivo. Para abordar o realismo em Auerbach, é
necessário circundar a temática do conceito de Figura (1997)95. Este pode ser entendido como
um mecanismo hermenêutico de interpretação bíblica, na relação entre o Antigo e o Novo
testamento. A hermenêutica da figura permite reconhecer o real na história. A representação
literária desta verdade se chama “realismo”. A história seria possibilitadora da relação entre o
fato existente e a planificação racional.
Aproximamos os dois autores pela perspectiva viquiana de imaginar uma biografia por
trás de uma obra e de, no momento posterior, fazer das afinidades de quem produz e quem lê
quase um método empático em que, pela aproximação podem organizar a compreensão. Com
Vico, Auerbach assimilou que a compreensão histórica permite o resgate de uma perspectiva
particular a cada época. Para alguns autores, Vico está presente na leitura que Auerbach
produz da sua própria época, a ideia de que a cultura européia vive um período de decadência.
A interação entre o autor e a sua obra é um ponto de reflexão que produz um
perspectivismo muito semelhante nos autores em questão. A iminência do desaparecimento de
uma visão universal ou um denominador comum do caráter humano, a ideia de totalidade na
abordagem da cultura ocidental faz de Auerbach um autor afinado com a produção
historiográfica de Edward W. Said.

1.2.3 Said e o Vico de Auerbach: Aproximações Teóricas

Aproximar a perspectiva teórica de Edward W. Said e Erich Auerbach, por meio do


entendimento da obra de Giambattista Vico demanda uma cautela para não se inferir em
conclusões artificiais. O percurso adotado, será o de inicialmente compreender o método do
realismo histórico de Auerbach (1994) que consiste em rastrear princípios, questões–chave
que estabeleçam conexões sobre uma determinada paisagem histórica.
Em Mímesis, (1994) a interpretação de um trecho do texto amplia a perspectiva de
análise de um determinado recorte contextual. Nesse sentido, recorremos ao método

95
O conceito de Figura foi desenvolvido originalmente sob a forma de um esboço teórico no livro sobre Dante
(1929) e posteriormente retomado no ensaio intitulado Figura, SP: editora Ática, 1997. (1ª. Edição -1938)
65

interpretativo de Vico sobre a unidade das épocas. Cada texto representa um indício de um
contexto mais amplo e encaminha para uma espécie de síntese.
Auerbach não define com precisão a sua fundamentação conceitual e metodológica. A
descrença na rigidez conceitual inibe pressupostos explícitos filosóficos que podem
condicionar a sua síntese histórica. A realidade não aparece como retrato histórico de uma
época, mas como matéria bruta que deve ser depreendida do método interpretativo da
representação figural.

De cada obra de arte podemos dizer que é determinada essencialmente por três
fatores: a época de sua origem, o lugar, a singularidade de seu criador. No caso da
novela, essa relação se estabelece de modo particularmente intenso, pois, enquanto
na tragédia ou na grande épica é um povo inteiro que fala, ocupado com deus e o
destino – de maneira que , para além de tempo e espaço, as profundezas da alma
sejam tocadas – na novela o sujeito é sempre a sociedade, e o objeto é, por essa
razão, a forma da mundanidade que denominamos cultura. 96(AUERBACH, 2013,
p.17)

O conceito de historicismo em Auerbach pode ser tributário à reflexão de F.


Meinecke.97 Esta compreensão denota um apego às particularidades que constituem o
pressuposto da vida histórica. A ordem do geral na cultura depende do reconhecimento do
elemento contingente.
A apropriação de Vico por Auerbach parte da máxima Viquiana, de que cabe aos
homens o conhecimento em torno daquilo que eles produzem, e soma–se a isso a ideia de que
podemos conhecer aquilo que nos é configurado como distante da nossa experiência, pois
todas são em última instância elementos da nossa natureza humana, acessíveis através de uma
identificação empática.
A filologia auerbachiana dialoga necessariamente com a sociologia do conhecimento,
e ela configura uma resposta ao problema do Historicismo e do relativismo histórico.
Reconhecemos a inexistência de um esquema teórico apriorístico na concepção de história
ideal.
A escrita pertence a um sistema de princípios que obedecem a uma afiliação sempre
restritiva pelo “mundo das nações”, categoria presente na obra de Vico98. Said buscava

96
AUERBACH, Erich, Introdução, IN: A novela no início do Renascimento, Itália e França, SP; Editora
CosacNaify, 2013. P.17
97
MEINECKE, F., El Historicismo y su genesis, Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1982.
98
Giambattista Vico nasceu em Napoles em 1668. Dedicou-se ao estudo da história, do direito romano e da
filosofia grega. Em 1699 Vico foi nomeado para a cadeira de retórica na Universidade de Nápoles. Nesse
contexto dedicou-se aos estudos de Platão, Tácito, Bacon e Grotius. A Ciência Nova, obra mais importante do
66

estabelecer as diferenças da categoria de começo em relação a uma origem, divina, mítica, e


privilegiada, distinta do humanamente produzido da sua forma secular. Said no prefácio
aponta a centralidade da filosofia viquiana para os debates presentes no livro.
A leitura da Ciência Nova de Vico fundamenta a sua compreensão da história e a
função empática da produção do conhecimento a partir do entendimento subjetivo de um
objeto. No livro, O mundo, o texto e crítico, escrito logo após a conclusão de Begininnings,
Said dedica um capítulo à teoria viquiana denominado “Sobre a repetição”.
Nesse capítulo, que inicia-se com uma citação da Ciência Nova, origina-se o debate
sobre a origem do entendimento a partir do elemento subjetivo. A análise dos fatos concretos
da história humana que está ao alcance do entendimento do filósofo ou do filólogo, revela um
principio ou força de ordenação interna. A mente opera como um sistema de freios que
contem a irracionalidade do comportamento humano.
Vico fala dos princípios universais que constituem a totalidade da história, embora se
realize de forma particular, por meio das instituições universais. A história humana é a uma
realidade que produz o conhecimento. A história é a exposição de uma dramática sequência
de etapas dialéticas. A repetição é uma forma de demonstrar que a história e a realidade
abordam a persistência humana e a originalidade divina. A repetição se associa a razão e a
experiência.
Para Vico a repetição é uma origem de sentido, como representação ou reconstrução
arqueológica, um princípio que fundamenta a facticidade histórica e a realidade no seu sentido
existencial. A repetição que interessa a Said, em Vico é a posibilidade de filiação e genealogia
que supõe uma origem para a teoria. Embora em Vico a filiação não ocorra de forma
automática e mecânica, ela é problemática, enviesada. A história emana da mente que produz
a memória histórica, a articulação das ideias, e a mudança infinita do pensamento.
Said se refere à tarefa do livro menos como um catálogo das situações teóricas onde o
começo se institua como uma questão, e procura pensar mais sobre o começo como um meio
teórico, detalhado, prático e interessante. O autor se esforça por pensar o tipo de linguagem
utilizada, que tipo de pensamento aparece quando alguém começa, ou quando escreve, ou
pensa sobre o ponto de partida, além de querer mostrar como o romance e como determinados
conceitos são formas de começo.

filósofo teve três versões, a primeira edição em 1725, a segunda edição em 1730 e a mais lida e comentada, a
última em 1744 que contou com acréscimos, correções e aprimoramentos incorporados ao texto. Quando foi
originalmente publicada, seu impacto foi limitado. O resgate da importância dessa obra vai ocorrer em 1836 por
meio da leitura de Michelet. Não só o conteúdo como a forma com que foi redigida, aparesentava uma
originalidade e uma inovação pouco assimilada no seu contexto de origem.
67

Os termos-chave que Said desenvolve nessa reflexão (transitivo-intransitivo, começos,


autoridade, intenção, método, começo como distinto de origem – texto, estrutura) são
construídos sob associações de ideias que se tornarão evidentes numa narrativa. O começo
implica retorno e repetição mais do que uma simples abordagem linear.
A investigação do conhecimento é simultaneamente um projeto retrospectivo para
Said. A questão dos princípios tem relação com os combates teóricos, com os antecessores de
onde emanam determinadas teorias. O escritor escreve contra, em oposição ou numa relação
dialética com os outros autores. As relações entre os autores e textos, a genealogia do
pensamento tem relação com o conceito de mundanidade.
Said resgata Foucault que mesmo sendo reconhecido como pós-estruturalista afirma
que a escrita não pode exisitir materialmente sem uma relação de ações que limitam,
selecionam, organizam e moldam a escrita de tal maneira a fazê-la de forma particular no
contexto definido.
A história é inteligível para Said a partir das relações coloniais e o trabalho teórico e
não pode ser descolado das operações do colonialismo. Se você separa o que você faz do que
você é, você está vivendo um processo de reificação. Podemos afirmar que o debate teórico e
epistemológico do Beginnings passa por aproximações entre a obra de Said com o
pensamento de Vico e Lukács.
Em Beginnings Said define que a critica precisa moldar para si o ponto de partida que
permite proceder concretamente ao longo do trabalho desenvolvido. De acordo com essa
noção, tais formas literárias; como o romance, objetos como o texto, práticas como a critica
são métodos constitutivos para criar o trabalho e abordar os seus começos com uma lógica a
posteriori e inevitável.
A teoria da repetição viquiana pressupõe a crença na perspectiva espiralada do tempo,
amparada no corsi et recorsi. O sentido da história tem relação com as realizações humanas.
Vico acreditava que empatia significava compartilhar algo que é da ordem do substancial, da
circularidade e da perspectivação.
Auerbach encontra em Vico uma definição da função da empatia para a construção do
conhecimento histórico. Auerbach busca a historicidade das formas de consciência
configuradas na forma literária.
A perspectiva é histórica e pensa em termos diacrônicos o lugar de onde o autor fala
subjetivamente percebido pelo crítico, que lê a obra de um determinado ponto de enunciação.
A obra literária comporta diversas dimensões sem hierarquia de causalidades abrindo à
68

possibilidade o acesso as diversas formas de consciência percebidas em temporalidades


históricas distintas.
Waizbort99 (2013) retifica o realismo no singular apontando para os diversos realismos
intrínsecos às obras literárias. Esse realismo envolve o mundo concreto configurado como
sério, trágico e problemático. A leitura de Waizbort (2013) para a aproximação entre Vico e
Auerbach (1994) configura-se menos no campo teórico, e mais na prática historiográfica. O
autor retoma a perspectiva de uma única natureza humana que se realiza por meio de
experiências distintas. O leitor se coloca em uma posição chave como aquele que realiza a
síntese acumulativa das etapas que prefiguram o que vem depois.
Na análise de Mímesis,(1994) o problema da realidade aparece como central. Onde se
entende escrita da história em cada capítulo, podemos perceber menos as definições de época,
do que os problemas teóricos relacionados com o estilo literário, a forma de consciência e a
formação histórico-social. A época segundo Waizbort (2013) significa a totalidade histórica.

Desde sempre Auerbach demonstrara – desde sua tese de doutorado em direito, de


1913 - interesse por uma perspectiva eminentemente histórica de análise e
compreensão dos fenômenos. Sua frequentação do seminário de Troelsch, no
período em que trabalhava na tese de 1921, certamente reforçou e guarneceu essa
tendência. Data desse momento o envolvimento com a ciência nova de Giambatista
Vico que se tornou um de seus autores de predileção e que Auerbach trabalhou
naquele mesmo seminário na virada dos anos 20. Vico fornecia o que lhe faltava
para compor a sua concepção de filologia, um caminho com o qual solucionaria para
si o problema de literatura e sociedade.100 (WAIZBORT, 2013, p.137)

Segundo Waizbort, a aproximação de Auerbach101 com a obra de Vico permite a


resolução de dois problemas centrais na obra do autor alemão: o do historicismo e o da
filologia. A filologia seria uma espécie de disciplina mãe das humanidades e sua função é
estabelecer uma identidade teórica deve se alargar a ponto desta se confundir com o conceito
de História.
Para além da proximidade originária da filologia, seguimos o argumento clássico do
interesse de Auerbach (1994) por Vico por meio do seu método indutivo, ou hermenêutico de
compreensão do texto. A relação entre as partes, os fragmentos e o todo no método utilizado
por Auerbach em Mímesis parece ser tributário da epistemologia viquiana.
Reconhecemos dois importantes contextos de interpretação sobre a relação, entre a
teoria da História em Vico e a crítica literária de Auerbach. O primeiro deles, elaborado pelo

99
WAIZBORT, Leopoldo, Pósfácio, A estréia de Erich Auerbach nos estudos literários, In: A novela no início
do Renascimento, Itália e França, SP; Editora Cosac Naify, 2013.
100
Ibid, p. 137.
101
Auerbach produziu uma tradução alemã condensada da obra de Giambatista Vico, publicada em 1925. Além
dessa tradução, Auerbach escreveu nove estudos e três resenhas sobre o filósofo napolitano.
69

crítico Luiz Costa Lima (1986), “Auerbach; História e Meta história” que integra o livro
Sociedade e discurso Ficcional.102
Nessa perspectiva, seguimos a interpretação de Costa Lima (1986) que, para além de
refletir sobre as afinidades, tenta entender os caminhos diversos escolhidos pelos autores e
ainda assim as aproximações inevitáveis nos percursos teóricos. O esforço viquiano em se
contrapor ao dedutivismo cartesiano o induz ao realce das particularidades em meio à
totalidade histórica.
Para Costa Lima (1986), as divergências entre os autores estão centradas na maneira
como cada um pensa os contextos e possibilidades distintas, a relação entre intuição,
linguagem e paixão. As sutilezas nessa aproximação de ambas as obras podem ser definidas
no contexto de compreensão do artigo em questão como refrações, uma proximidade
enviezada, ou menos necessária de ambas as obras. A sutileza de se pensar em refração indica
um cuidado com a especificidade de cada contexto intelectual que produziu diferentes obras.
Auerbach se impressionava com a concepção de linguagem em Vico e o papel
atribuído à poesia. Vico oferecia ao filólogo berlinense uma teoria da História, distante das
ciências naturais e uma teoria da linguagem que particularizava o poético. Costa Lima (1986)
traça uma distinção entre o verum e o certum para distinguir os dois campos de fenômenos
atrelados à filologia e à filosofia.

À medida que Vico fundava a filologia no certum, à medida que seu exercício
emprestava dignidade à matéria histórica e antropológica e à medida que ela era
separada da base necessária para a filosofia (e desde a filosofia da Vertehen, para as
ciências exatas) justificavam-se a não exclusividade concedida à razão e o íntimo
entrelaçamento da História com a poesia. Assim Vico legitimara para Auerbach o
fato de a preocupação com a poesia não poder ser separada da preocupação com a
História.103 (LIMA, 1986, p.383)

Auerbach procurava depreender da obra de Vico uma fundamentação epistemológica


para os campos de atuação. Para além da hierarquia de influência do campo cultural na
demarcação da poesia, verifica-se um “jogo de múltiplas influências”.104 A centralidade da
filologia é concebida por Vico como o ponto de partida dos questionamentos relacionados aos
artefatos humanos.

102
LIMA, Luiz Costa, Auerbach; História e Meta história, Sociedade e Discurso Ficcional, RJ: Editora
Guanabara, 1986.
103
Ibid, p. 383.
104
Ibid, p. 384.
70

Recorremos à parte do artigo em que Costa Lima discute a meta história em Vico e as
reflexões suscitadas pelo aparente relativismo problemático na obra de seu fiel leitor,
Auerbach. Costa Lima define um círculo do relativismo, em que cada época ou cultura está
circunscrita em si mesma.
A Ciência Nova apresenta um duplo movimento, um vínculo entre o divino e o
humano, por isso o plano do particularizado não se desprende do plano do eterno. O homem é
portador de livre arbítrio e simultaneamente submetido ao plano da providência.
O escopo da história é alargado na Ciência Nova, na medida em que predomina o
princípio da identidade entre o fazer e o conhecer. Se Vico defende a equivalência entre o
saber e o fazer, a culminância da história humana dispensa a justificativa teológica. O fato
histórico preenchido de sentido deve ser relativo à sua posição temporal.

Como teoria do desenvolvimento histórico da natureza humana da bestialidade à


civilização, a Ciência Nova sustenta uma analogia estrita entre a dinâmica das
transformações metáforicas na linguagem e as transformações da consciência e da
sociedade. Essa é a dialética de Vico, que não é uma dialética do silogismo (tese,
antítese, síntese), mas antes a dialética do intercâmbio entre a linguagem e a
realidade que ela busca abranger. 105(WHITE, 2001, p.231)

Para alguns comentadores de Vico como Benedetto Croce (2001)106, a História nada
tinha a ver com a história concreta que se organizava no tempo, era antes uma história ideal,
uma filosofia do espírito de tratava das mudanças da mente humana. Vico era elogiado por ter
descoberto essa dedução e criticado por tê-la utilizado de maneira equivocada. A rejeição de
Croce pela sociologia e pela filosofia da História produz essa leitura sobre a obra de Vico e
demonstra uma resistência inicial.
O problema da dedução conceitual e do afastamento da História concreta da filosofia
do espírito produz uma impossibilidade epistemológica denominada filosofia da história, além
de apontar as fragilidades teóricas do sociologismo em função das leis universais
depreendidas dos fatos concretos. Se pensada corretamente, a autonomia do mundo estético e
a descoberta da apreensão cognitiva funcionariam como antídotos para a filosofia da História
e para o sociologismo.
Para Croce, o problema se definia pela ameaça das causalidades necessárias. Embora
houvesse uma resistência crociana do esforço de Vico por uma filosofia universal da história,

105
WHITE, Hayden, Trópicos do discurso, ensaios sobre a crítica da cultura, SP: EDUSP, 2001. P.231.
106
Para uma análise apurada da leitura de Vico realizada por Benedetto Croce ver: “O que está vivo e o que está
morto na crítica de Croce a Vico”, IN: WHITE, Hayden, Trópicos do discurso, ensaios sobre a crítica da
cultura, SP: EDUSP, 2001.
71

podemos inferir que sua definição sintética da obra de Vico nos fornece pistas muito boas
sobre o lugar da sua obra na filosofia da história. Para Croce, Vico representava o século XIX
em estado embrionário.
Ao buscar a superação do cartesianismo, Vico definia a essência humana por meio da
história, ou seja, na interação diacrônica entre o homem e o mundo. A filologia seria o meio
pelo qual se pode apreender o particular. A experiência do passado é inserida como
constitutiva da memória que sofre descontinuidades ao acrescentar conteúdos novos.
Conhecer o passado não significa a descrição dos fatos e sim o resgate das ideias por meio da
filologia, o que seria um indício do uso sistemático da razão humana.
Vico desenvolve a ideia de que existe algo subliminar e fora do sentido lógico que
precisa ser enfrentado através da compreensão. Vico recorre a Aristóteles para afirmar que
“nada está no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos”. 107
Os eventos não se repetem, existe um grau de constância no devir histórico sem
comportar repetição. O tempo histórico não se define pelo aspecto cíclico e sim pela forma
espiral. A nova etapa nunca começa com a conclusão da anterior, ela se repete em espirais.
Os tempos bárbaros na concepção viquiana integram dialeticamente o progresso,
porque garantem a retomada posterior da civilização. O progresso também inclui momentos
de barbárie. Aqui percebemos uma concepção de progresso distinta do contexto iluminista.
A temporalidade não é linear tal como no contexto das luzes, embora vista como
progresso, não pressupõe. Há uma essência dos fatos e coisas humanas, mas não a repetição
dos mesmos eventos, ou seja, a barbárie se repete, mas nunca é a mesma.
A concepção de história viquiana segue um desenvolvimento histórico com a sucessão
das diferentes fases. O entrelaçamento entre o relativismo e a história contínua, despertou o
interesse em Auerbach, assim como a relação intrínseca entre o particular e o constante. O
dilema do relativismo apareceu como um problema colocado pelo historicismo.
Se o postulado de que o fato históricamente verificado se converte, no interior da
mente, no evento verdadeiro, seu ponto de partida acaba sendo uma associação do realismo
com a empatia subjetiva no campo do cognitivo.
O verdadeiro está ao alcance da compreensão humana, mas está sujeito à variação
diacrônica, embora conserve algo de universal em termos de natureza humana. Na Ciência
Nova, Vico recorre à poesia e todas as expressãoes da fantasia e do sentimento como
atividades do espírito humano. Vico recupera a poesia como o registro do verdadeiro.

107
Vico Apud SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio, e outros ensaios, SP: Editora Companhia das Letras,
2003.p. 37
72

Para José Antonio Paula,108 Vico invocava a providência divina não no sentido
teológico, agostiniano, e sim como uma espécie de “astúcia da razão”, tipicamente hegeliana.
Essa literatura parte da interpretação clássica de Benedetto Croce no seu clássico A filosofia
de Giambattista Vico (1911). Lopes segue o Vico de Croce para falar da oscilação entre o
predomínio do sujeito na história ou da providência, ainda que compreendida como um
sentido transcendente não teológico.
A leitura do historicismo em Auerbach é tributária da construção analítica de Friedrich
Meinecke, El historicismo y su génesis.109 Nesse autor o historicismo é visto, como um
fenômeno europeu cujas origens de desenvolvimento, podem ser atribuídas aos pensadores
ingleses e franceses, embora tenham alcançado a sua plenitude na Alemanha.
Meinecke pensa a particularidade de Vico, a partir do contraponto com o
cartesianismo e por meio do mecanicismo que refutava os preconceitos originados no direito
natural. Vico teria associado à ideia de providência divina com uma filosofia imanentista.

Vico avanza en lo profundo, viendo la totalidade da la vida histórica como un


processo natural de pasiones humanamente limitadas, las cuales conducen, sin
embargo, a resultados plenos de valor y sentido porque , sobre la sinrazón de los
hombres , impera una razón más alta. Vico aparta un poco, por decirlo así, sin
debilitarla, la mano de dios de la Historia y da a ésta su natural libertad de
movimientos. Esto contituyó el acto decisivo para la incipiente secularización de la
Historia en la que descansó el pensamento histórico moderno, la cual emprendió Vico
como creyiente, no como escéptico, como es el caso en los escritores de la ilustración.
Pero lo hizo sino iniciar, esta secularización, puen aun considerada la historia sub
spécie eterni, la mantiene todavía vinculada a la inmediata voluntad de dios. No
obstante, en su nueva forma de consideración incide , oculta para él mismo , una
fuerza impulsiva que empuja a concebir la vida histórica como un efecto de fuerzas y
leyes inmanentes.110 (MEINECKE, 1982, p.58)

Meinecke (1982) afirma que nos dois primeiros livros da Ciência Nova surgiria uma
tendência crescente a acentuar o princípio da imanência em contraposição a transcendência da
ação divina. Embora Vico reconheça a religião como a força mais valiosa na história, este

108
PAULA, José Antonio de, Vico, In: Ideias de História, tradição e inovação de Maquiavel a Herder,
Londrina: EDUEL, 2007.
109
Meinecke, F. El historicismo y su Genesis, Mexico: Editora Fondo de Cultura Econômica, 1982.
110
MEINECKE, Friedrich El historicismo y su genesis, Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1982.p. 58.
“Vico avança no profundo, vendo a totalidade da vida histórica como um processo natural de paixões
humanamente limitadas, as quais conduzem, a resultados plenos de valor e sentido, porque impera uma razão
mais alta. Vico afasta um pouco sem fragilizá-la a mão de Deus e dá a esta sua natural liberdade de movimentos.
Isto constitui um ato decisivo para a incipiente secularização na história, na qual descansou a história moderna, a
qual empreendeu Vico como crente, não como cético, como no caso dos escritores da ilustração. Mas o que fez,
senão iniciar esta secularização, ainda ocnsiderada a história, sub spécie eterni, a mantém vinculada a imediata
vontade de Deus. Não obstante, na sua nova forma de consideração incide , oculta para ele mesmo , uma força
impulsiva que empura a vida histórica como um efeito de forças e leis imanentes. (tradução nossa)
73

pensador enxerga a natureza das coisas através do seu nascimento, em um determinado


contexto, e sob determinadas circunstâncias.
A ideia de história universal convive com a particularidade de cada povo. A
associação entre o particular e o universal informa a sua concepção de história. Meinecke
afirma que o universal aparece diluído no particular, Vico polariza e ressalta o seu interesse
pelo primeiro elemento que o primeiro autor denomina como “típico”.
Para os comentadores do filosófo napolitano que percebem antecipadamente o
historicismo e o positivismo no seu ideário, a leitura de Meinecke (1982) relativiza essa
associação. Seria um predecessor do historicismo na medida em que percebe a extensão
universalizante do trabalho histórico a todos os povos da terra e a implantação do método
indutivo de investigação que ele representa.
As formas recorrentes de vida estabelecem modelos universais tais como; o estado a
sociedade, a religião a economia, as características humanas que se revestem de um caráter
particular na medida em que se manifestam evolutivamente, e se transfomam
diacronicamente.
O rompimento com o jusnaturalismo, com a forma estática tradicional do direito
natural, deveria ter uma aptidão ou uma predisposição para a compreesão do individual na
história. Meinecke (1982) problematiza o rompimento de Vico com o direito natural na
medida em que percebe alguns vestígios dessa tradição como a marca do seu pensamento.
Meinecke (1982) aponta as lacunas da subjetividade e a consciência da sua própria
individualidade, quase como se a rigidez do direito natural deixasse vestígios no seu
pensamento. A própria individualidade precoce, em certa medida, prematura dificultava o
acesso às particularidades das contingências históricas. Vico prepara a ambiência intelectual,
se forja com um forte antecendente da concepção individualizadora.
A natureza humana só pode ser compreendida pela história, porque esta abrange as
formas de expressão humanas e é através delas que a natureza humana se manifesta. Os
mecanismos de apreensão intelectual se dão por meio do esforço imaginativo e senso crítco. A
sua epistemologia da compreensão é devedora do princípio de que a forma de pensar os outros
tempos pode ser rastreado no interior da própria mente. O confronto entre o particular e o
universal poderia ser visto com um embrião da concepçao de história predominante no século
XIX. 111

111
Para aprofundamento das polêmicas acerca da relação entre o pensamento Viquiano e o historicismo ver;
LACERDA, Sonia, “O vero e o certo: a providência na história segundo Giambattista Vico”, In: LOPES, Marco
74

O sentido da história em Vico denomina-se “história ideal eterna” e é entendida como


a vocação essencial do historiador. Essa história ideal se desdobra em três etapas; a idade dos
deuses, a idade dos heróis e a idade dos homens. Cada etapa possui uma moral, uma
economia, uma estrutura jurídica, uma politíca e uma visão de mundo.
O método privilegiado é o filológico estabelecendo como central a linguagem que
potencializa a comprensão do homem pelo homem. As fases seguem metaforicamente uma
espiral, porque evoluem, mas jamais para o mesmo lugar. Distinto do tempo linear e
irreversível do iluminismo, Vico construiu os corsi e recorsi na liminaridade entre a
imanência humana e a transcendência divina. Esta última representa um sentido que se
manifesta nos homens. Os avanços e recuos do tempo da irracionalidade para o tempo da
razão representam a perspectiva da evolução temporal sem considerar a possibilidade de um
retorno.
Vico entendia a História como a gradual humanização dos homens. A terceira idade
dos homens parece representar a culminância da razão, da civilização embora não descarte o
potencial de barbárie inerente a essa fase. Cada sequência (corso) pode ser seguida do
(ricorso), recorrência, o que ele exemplifica com o retorno da barbárie na Europa, após o
declínio do Império Romano.
As sequências das idades constituem a “História ideal eterna”, que abrange vários
aspectos da Ciência Nova. Burke (1995)112 compreende essa expressão quase como um
modelo no sentido teórico ou como um tipo ideal na concepção weberiana, embora perceba-se
nesse modelo uma inevitável dinâmica diacrônica.

Quando usava a expressão “história ideal eterna”, Vico estava afirmando que certas
tendências históricas capitais se repetem, dando assim a origem a uma sequência de
formas genericamente semelhantes de organização política, direito, mentalidade,
literatura, etc. Não pretendia que tudo o que acontece seja determinado. Pelo
contrário, ele era veementemente contra essa ideia do “fado”, como a chamava, em
nome do livre arbítrio. Não parece que ele tenha acreditado nem mesmo na
inevitabilidade da sequencia básica das formas, pois observa em certo momento que
Cartago, Cápua e Numancia “fracassaram em completar esse curso das coisas civis
humanas, em razão de vários obstáculos”. Como uma sequencia pudesse ser
necessária, mas não inevitável,Vico não explica. Embora não fosse inevitável, a
sequência podia de qualquer modo, ser encontrada em diferentes partes do mundo.
Era normal, natural e até providencial. 113 (BURKE, 1995, pp.93/94)

A.(org.) Grandes Nomes da História Intelectual, BERLIN, Isaiah Vico e Herder, Brasilia : Editora da UnB,
1982.
112
BURKE, Peter, Vico, SP: Editora UNESP, 1995.
113
Ibid, p. 93/94.
75

Podemos relativizar a simples aplicação da empatia na aproximação entre as épocas


históricas para efeito da compreensão do texto. Diferente da hermenêutica do século XIX, a
mediação entre as diferentes historicidades no método compreensivo, só pode ocorrer por
meio da subjetiva leitura que o nosso horizonte de passado pode suscitar em nós.

Certamente, Auerbach não pensava em cobrar do leitor que antes se especializasse


na escolástica e no tomismo, para que só então ousasse abrir as páginas da
Commedia. Mas o respeito devido à relatividade dos valores impunha, para uma
interpretação adequada, conhecimento do tempo a que Dante respondia. Em síntese,
a passagem não questiona a continuidade histórica, apenas não aceita que ela se
afirme pelo simples emprego do princípio da empatia e da compreensão dela
derivada. Tampouco a passagem afirma que só podemos apreciar Dante se nos
fizermos seus contemporâneos. Auerbach não crê na transmigração histórica. Sua
posição é bem outra: dada a diferença entre séculos tão afastados, uma ponte
compreensiva só poderia ser construída a partir da constituição por nós do nosso
horizonte do passado.114 (LIMA, 1986, p.399)

Reconhecemos outra leitura do fascínio de Auerbach pelo historicismo viquiano e sua


respectiva admiração pelas formas primitivas de sociedade. Nesse sentido, Vico se preocupa
em compreender a mitologia e os conteúdos espirituais do contexto social determinante. O
período primitivo marca o nascimento das instituições. Vico é visto como o antecessor do
conceito de espírito individual dos povos, portanto o precursor do conceito de História
inerente ao historicismo alemão.
No capítulo que dedicado a uma apresentação e análise da obra de Auerbach, Said
estabelece uma genealogia teórica da obra do autor alemão, filiando seu pensamento à crítica
homérica de Friedrich Wolf, a crítica bíblica de Herman Schleiermacher e ao pensamento de
Nietzsche que culminou com pensamento de Wilhelm Dilthey.
Essa última referência nos oferece uma pista do método de compreensão utilizado por
Auerbach. Seguindo a lógica de reflexão de Dilthey, a obra prima é remetida à experiência
vivida que o crítico, mediante a erudição e a sua intuição, consegue recuperar. Nesse sentido
podemos filiar genealogicamente os métodos de compreensão de Auerbach à história
intelectual e à filologia alemã.
O próprio autor reconhece uma identificação com a tradição do romantismo alemão.
Para a compreensão de um texto é preciso se inserir no lugar do autor, no contexto do autor.
Nos vínculos entre os acontecimentos e as mudanças da nossa mente humana, entre o
pensamento e o real reconhecemos algumas das principais contradições do humanismo.

114
LIMA, Luiz Costa, Auerbach; História e Meta história, Sociedade e Discurso Ficcional, RJ: Editora
Guanabara, 1986. p. 399.
76

Podemos rastrear um percurso teórico que se origina em Vico, a leitura que Auerbach
produziu da obra do filósofo italiano, em especial A Ciência Nova. A legitimidade da História
em Vico em oposição às ideias cartesianas ajudou a definir o que ele denominava por “mundo
das nações”.
Vico compartilhou os pressupostos da coerência histórica, onde cada período possuía a
sua língua, arte, metafísica, lógica, ciência; características comuns e inerentes a um
determinado contexto. Para Vico e Auerbach, a condição de proximidade ou empatia com o
próprio objeto possibilita a sua compreensão no sentido mais amplo.

Essa é a principal ideia metodológica para Vico, bem como para Auerbach. Para
sermos capazes de compreender um texto humanista, devemos tentar entendê-lo
como se fôssemos o autor do texto, vivendo a realidade do autor, passando pelo tipo
de experiências intrínsecas a vida do autor, e assim por diante, tudo pela combinação
de erudição e simpatia, que é a marca da hermenêutica filológica.115 (SAID, 2007,
p.117)

A distância entre os acontecimentos reais e as suas representações aponta para uma


contradição irresoluta. Para Said, esse é um dilema teórico do humanismo de forma
abrangente. Os impasses teóricos no campo da representação do real, da sua respectiva
proximidade mimética em termos de identificação ou um grau de arbitrariedade na construção
teórica mental já aparece no subtítulo do livro Mímesis; “a representação da realidade”.
A análise de Said (2007) sobre os nexos entre Vico e Auerbach nos oferece indícios da
sua identificação e do seu interesse pelo método historicista. Quando Said (2007) aponta para
a transformação na relação crítico-leitor-texto, de uma passagem interpretativa unilateral para
um encontro empático entre dois elementos de épocas distintas, temos uma pista da interação
perspectivista com a qual o nosso autor se identifica.
O que interessa para Said em Vico é a possibilidade da produção teórica via
autoconhecimento que exercitado com a virtude da autocrítica, conforma o papel ideal do
intelectual e sua respectiva produção de conhecimento. Esse exercício pode ser concretizado
por meio da análise literária.
Quando Auerbach encerra o Mímesis aparece oculto no processo de análise dos
romances modernos um desencantamento com a Modernidade na forma de uma cultura
padronizada, cada vez menos rica em multiplicidade. O diagnóstico negativo acerca do
contemporâneo confirma a principal motivação da escrita do livro: deixar um legado sintético
da literatura ocidental nas suas mais variadas formas.

115
SAID, Edward W. Humanismo e crítica democrática, SP: Editora Companhia das Letras, 2007. P.117.
77

Como se vê, Auerbach considerava viver em um momento histórico muito


particular, não somente em função das duas guerras que vivenciou muito de perto.
Em uma perspectiva de longa duração, entendia que vivia precisamente o momento
histórico no qual uma cultura que se diferenciava durante cerca de três milênios
tomava o rumo de um processo acelerado de simplificação, unificação e
padronização. Daí o desafio de uma tentativa de prestação de contas do que foram
esses três milênios, e disso nasce a escrita de Mímesis.116 (WAIZBORT, 2013,
p.207)

Outro aspecto importante assinalado como parte do projeto de escrita da obra Mímesis
tem relação com a contraposição a uma filologia nacional, em voga nos anos 30 e 40
especialmente no contexto de consolidação do nacional socialismo alemão, uma escrita supra-
nacional ou o rastreamento do humanismo universal como definiria Edward W. Said.
Se Auerbach espera até o final para revelar a sua autoconsciência, Said faz do lugar de
fala um ponto de partida e sua abordagem central. Podemos reconhecer algumas
aproximações entre Said e Auerbach, nas seguintes obras: O mundo o texto e o crítico (2004),
especificamente no ensaio “crítica secular” e no livro Cultura e Imperialismo (1993). Neste
há um esforço em repensar o Mímesis do ponto de vista do crítico exilado que estava
escrevendo meio século depois de Auerbach.
Said entende o perspectivismo de Auerbach como um símbolo do humanismo secular.
O significado do ensaio de Auerbach para Said se coloca não só pela afirmação do
humanismo, sobretudo, pela contribuição metodológica central do conceito de ponto de
partida. A concepção de natureza humana pode ser a chave de compreensão da aproximação
do humanismo de Said com a construção do conhecimento em Vico.
A relação entre o universal e as particularidades do “mundo das nações”, diferente do
“mundo da natureza”, aponta para as variáveis históricas em meio ao conjunto de leis
universais, aqui lidas como Providência. Reconhecemos as sutilezas das distinções entre o
historicismo de Herder117, que tem como base o pressuposto da individualidade dos povos e a
preparação filosófica inaugurada por Vico, para o caminho posteriormente percorrido pelo
historicismo alemão.
Auerbach lê Vico na perspectiva de uma futura gestação do relativismo estético que
tanto o interessa para pensar a filologia. A filologia é o espaço privilegiado de análise das

116
WAIZBORT, L, Erich Auerbach e a Condição Humana, In: ALMEIDA, Jorge de, BADER, Wolfgang, O
Pensamento Alemão no século XX , Volume 2, SP: editora Cosac Naify, 2013. P. 207
117
A reflexão sobre os vínculos entre o historicismo alemão e a obra de Vico, entendido como seu antecessor
necessário, é bastante complexa. Há uma revisão sobre as conexões estreitas entre os dois percursos de reflexão.
Essa associação parece estar presente na obra de Auerbach. Para um maior detalhamento desse debate; ver;
BERLIN, Isaiah, Vico e Herder, Brasília: Editora da UNB, 1982.
78

particularidades históricas em meio à totalidade. Os fragmentos que permitem o acesso a


totalidade, ou seja, a relação entre as partes e o todo é o que inspira Auerbach e
consequentemente, o nosso autor palestino.
Recorremos a uma tese de doutorado118 sobre a obra de Erich Auerbach para a
necessária distinção entre a totalidade em Auerbach e a totalidade em Vico. É Importante
apontar os pontos de contato e as diferenças entre os autores.

Auerbach se interessa, na obra de Vico, pela ideia de totalidade e pelo modo de


acessá-la através de pontos de partida particulares, um modo que relaciona partes e
todo bastante semelhante ao círculo hermenêutico. A totalidade de Auerbach, porém,
não é a mesma de Vico, não é religiosa, tampouco teleológica. Mas ela existe
enquanto esta identidade abstrata que poderíamos chamar de “Ocidente”, “Europa”
ou “Cultura européia ocidental”. 119 (LESSA, 2004, p.387)

Na tese citada, a particularidade do propósito na escrita da História em Auerbach


ganha sentido com a centralidade do rastreamento do caráter geral da europeidade. A
sincronia de cada texto está a serviço da perspectiva diacrônica que a autora em questão
denomina como; filológica-histórica, com o realce para o segundo termo.
O acesso aos fragmentos literários em busca de um recorte ou unidade que seja o eixo
de compreensão se dá via um “ponto de partida” para se compreender a totalidade, a literatura
ocidental. Um elemento fragmentado que funciona como indicativo de uma característica
passível de generalização.
A resistência filosófica a conceitos gerais, a uma hermenêutica abrangente encaminha
a busca pelo material histórico, concreto. O método indutivo inspirado em Vico se direciona a
uma consciência do todo na contramão de uma especialização do saber que acaba por
impossibilitá-lo. As somas da erudição e da intuição produzem o ato interpretativo.
O papel do pesquisador é fundamental na construção da síntese histórica. Afastando-se
explicitamente das polêmicas internalistas que integram a abordagem interpretativa
hermenêutica, Auerbach atribui um caráter de importância ao relativismo que ele duplica e
remete ao crítico e ao objeto estudado.
Vico é resgatado no contexto de delimitação da compreensão inerente à natureza
humana. O ato interpretativo pode ser recortado a partir do “ponto de partida”, demarcação
estabelecida pelo pesquisador, portanto subjetiva, embora empaticamente relacionada com o
objeto.

118
LESSA, Beatriz Cepelowicz, A Construção de um Mundo: Raízes Germânicas e Judaicas na História
Literária de Erich Auerbach, TESE DE DOUTORADO, Departamento de História, PUC-RIO, 2004.
119
Ibid, p. 387.
79

O passado para Vico é a condição ontológica da existência, isto é, o eu histórico que


não é conseqüência do presente. Os “pontos de partida” nunca são apreendidos externamente
ao material analisado, mas são originados no texto. Embora extraídos da produção analisada,
os conceitos históricos devem fazer sentido para o leitor contemporâneo. Esse pressuposto se
relaciona com o conceito de realismo e sua concepção de História. A História se vincula com
o conceito de realismo que se desdobra em dupla direção: a influência dos valores da época
estudada e os princípios do próprio investigador.
A História é depreendida no campo das transformações, que são observadas a partir da
perspectiva da constância. O princípio que a sustenta é conhecida como mímesis. Esta estaria
implícita na maneira como o autor atualiza a sua narração e não no aspecto verossímel dos
eventos. A unidade ocidental, ou o elemento em comum que une as experiências humanas
seriam a representação do divino secularizado. O realismo auerbachiano não pode incorrer no
risco de se perceber a relação entre realidade histórica e literatura como uma relação
mecânica.
Para Auerbach, o que desperta o seu interesse é o serviço que a mímese poder prestar
para conferir unidade entre o caráter e o destino. Devemos reter a definição do autor alemão,
como um ensaísta, que se utiliza da história, pensando menos em panoramas totalizantes dos
fragmentos decisivos. Renunciar a continuidade histórica em tempos de degeneração histórica
para quem havia sido um contemporâneo e testemunha do nacional socialismo e sua
respectiva barbárie parecia um postulado ético complicado.
Voltando aos nexos teóricos entre Vico e Auerbach; estes se mostravam visíveis por
meio do entrelaçamento entre a relatividade dos valores e um plano metahistórico definidor da
120
unidade cultural ocidental. No artigo “Vico e o historicismo estético”, Auerbach
desenvolve que a perspectiva historicista possibilita uma abordagem estética particular e
relativa aos contextos históricos. Essa perspectiva afasta a concepção de dogmatismo estético
e a acepção da natureza humana absoluta.
O historicismo estético seguido pelo historicismo geral surgiu no contexto da segunda
metade do século XVIII, filiado às obras de Herder e Goethe, e posteriormente dos irmãos
Schlegel. Auerbach situa a origem do historicismo moderno e as ciências históricas modernas
como intimamente ligada à concepção pré-romântica das formas primitivas de civilização.
Além da filiação do historicismo a concepção de história dotada de princípios semelhantes no

120
AUERBACH, Erich, “Vico e o Historicismo estético” In: Ensaios de literatura ocidental, Filologia e Crítica,
SP; Editora 34, 2007.
80

contexto de produção da Scienza Nuova por Vico em 1725. Para Auerbach é inegável as
aproximações teóricas entre as ideias de Vico e as de Herder.
Tanto o irracionalismo poético quanto a imaginação dos homens primitivos visto
como poetas possuem relevância na obra de Vico. No sistema viquiano a imaginação
primitiva gera indiretamente o estabelecimento de limites coletivos que mobiliza a criação das
instituições. A idade poética em Vico potencializa as instituições políticas. Vico, antes de
Herder, vai gestar o conceito tão caro ao historicismo, como o de “espírito do povo”.
Para Auerbach, Vico antecipara a ideia de que poesia primitiva não seria produto
criativo individual e sim criação coletiva de uma sociedade. Para além do reconhecimento
último e tácito da existência do “espírito do povo”, Vico se interessaria pelas leis da divina
providência que governam a História. A análise dos diferentes períodos realça os estágios
particulares como etapas de uma determinada evolução.
Vico desempenhou uma importância no que tange à teoria do conhecimento e à noção
de perspectiva histórica. Inferimos que se o desenvolvimento da história humana é inerente a
mente humana, a análise e a síntese buscam compreender cada etapa histórica como um todo
integral. Vico teria criado uma base de compreensão histórica.
Os objetos da História envolvem não só passado, como também o progresso dos
acontecimentos em geral. A própria categoria de repetição, epistemologicamente incerta,
promove o pressuposto de que a História e a realidade tratam da persistência humana e não da
originalidade divina.
No plano do significado a experiência organiza o sentido, à medida que o passado
retoma experiências similares, além do fato da repetição dotar de um sentido definidor a
natureza humana. A repetição em Vico é um princípio do devir que proporciona aos fatos a
sua realidade e a sua facticidade histórica. O motivo básico se repete no ciclo com ritmos
diferentes. A repetição em Vico é filiativa e genealógica. Essa filiação em Vico é
problematizante, o que evita a tentação teórica reducionista.

Vico emplea um concepto asombrosamente similar. La historia, dice El, emana de la


mente ; y qué es la mente sino memoria histórica, capaz de articulación, modulación
y cambio infinitos? Sin embargo, la memoria fundamentalmente refrena a la mente:
la memória es casi una realidad que tanto para los hombres primitivos como para los
filósofos modernos más exquisitos sigue siendo esencialmente una realidad humana.
Por mucho que pueda parecer que cambia, nunca puede ser nada más y nada menos
que humano. Princípios de ciência nueva analizaba las estructuras de esta realidad
inmemorial tal como se transfirió del hombre primitivo al hombre moderno o, según
lo entendía Vico em una de aquellas extraordinarias observaciones que puntean su
obra, tal como el hombre primitivo engendra literalmente al hombre moderno,
81

siendo este último uma recapitulácion del primero. Según Vico, la historia es aquel
lugar en el que nunca se pierde nada. 121 (SAID, 2004, p.161)

A citação em destaque justifica a visão de história em Vico. Esta aparece para Said,
como uma pista da oscilação entre o universal e o contingente no devir histórico. A
genealogia do conhecimento tem relação com o predomínio da regularidade sobre o irregular,
sem que isso incorra no rastreamento de causalidades necessárias ou leis.
Said se interessa por Auerbach em função do seu método de aproximação entre a
literatura e a história. Embora Auerbach não assuma uma metodologia explícita em Mímesis,
a busca pela representação da realidade passa por um modo de compreesnsão que percebe a
história e a literatura como dinâmicas apropriadas pela consciência crítica do leitor.
Said persegue o problema das origens em Vico, uma vez que os padrões repetitivos
que compõem a existência humana ganham credibilidade, na medida em que há um
afastamento da perspectiva da origem. É Interessante perceber a resolução viquiana para o
paradoxo identificado nas divergências entre a metáfora genealógica e o descobrimento
fáctico.
Para Auerbach, é como se herdássemos por meio de Vico e através do historicismo,
seu possível sucessor, uma mentalidade histórico-perspectivista que não permite recuos.

1.2.4 O Mundo, o Texto e o Crítico: a Crítica Literária

A coletânea de artigos “O mundo, o texto e o crítico” (1983) foi elaborada no mesmo


período da escrita dos livros; A Questão da Palestina (1979), Orientalismo (1978) e Cobrindo
o Islã (1981). Os ensaios presentes na coletânea foram escritos após a produção do seu livro

121
SAID, Edward W. , El Mundo, El texto y El crítico, Buenos Aires: Debate, 2004. p. 161. “Vico emprega um
conceito assombrosamente similar. A história, diz ele, emana da mente; e o que é a mente senão memória
histórica, capaz de articulacão, modulação e mudança infinitas? A memória fundamentalmente refreia a mente: a
memória é quase uma realidade, tanto para os homens primitivos como para os filósofos modernos mais
estranhos, segue sendo essencialmente uma realidade humana. Por mais que possa parecer que muda, nunca
pode ser nada mais e nada menos que o humano. Princípios da Ciência Nova analisava as estruturas desta
realidade sem memória tal como se transferiu do homem primitivo para o homem moderno o, segundo o
entendia Vico em uma daquelas extraordiárias observacões que estabelecem a obra, tal como o homem primitivo
engendra literalmente ao homem moderno, sendo este último uma recapitulácion do primeiro. Segundo Vico, a
historia é aquele lugar em que nunca se perde nada. (tradução nossa)
82

122
Beginnings: intention and method (1975) que defendia a necessidade prática e teórica de
dispor de um ponto de partida para qualquer trabalho intelectual dado que a nossa existência
se desenvolve no mundo secular, no domínio humano.
Said define o livro Beginnings: intention and method, (1985) como uma produção
centrada na análise de como a mente humana localiza retrospectivamente um ponto de
origem. Na história e no estudo da cultura, a memória e a retrospecção nos remetem ao
nascimento. O princípio pode ser permanentemente revisto.123
O autor defendia a necessidade prática e teórica de dispor de um ponto de partida
racional para o trabalho intelectual dado que a existência se desenvolve na história secular, no
domínio de um esforço continuado. A gênese de uma obra não é uma demarcação da sua data
de nascimento, mas uma prova conceitual de interpretação crítica.
Reconhecemos a premissa de que nas Ciências Humanas deve-se procurar o ponto de
partida, o princípio inaugural da teoria. O início de cada projeto tem que ser depreendido de
maneira a permitir o que se segue. O ponto de partida é a delimitação, o recorte inaugural que
define o escopo do trabalho.
Podemos perceber uma linha de continuidade entre o livro ensaístico, teórico voltado
para a epistéme da produção de conhecimento e a preocupação mais direta sobre a escrita e o
caráter mundano dos textos. Nesse contexto, dada a proximidade teórica de ambos os livros,
decidimos analisar as obras124 em conjunto possibilitando algumas reflexões próximas e
referenciais teóricos em comum.
A importância da coletânea “O mundo, o texto e o crítico”(2004) justifica-se porque
percebemos que alguns dos principais dilemas teóricos de Said, já estão originalmente
presentes na reflexão sistemática sobre a mundanidade do texto, o papel do intelectual, a
aversão à especialização conformadora do esvaziamento do papel do crítico e a relação entre
poder e conhecimento.
Na introdução da coletânea percebemos uma diretriz contestadora direcionada à
hegemonia da crítica literária pós-moderna nos EUA, em fins da década de 70. O contraponto

122
Beginnings: intention and method foi o primeiro livro escrito após 1967, data que estabelece um marco
divisório nas suas preocupações teóricas, quando o autor tentava reformular sua missão intelectual. A partir
dessa obra, Said identifica um dinamismo tanto intelectual como político. Este livro começou a ser escrito
durante o inverno de 1967-68, e esse processo durou até 1972-1973. O livro só foi publicado em 1975.
123
Numa entrevista ao jornalista israelense Ari Shavit que perguntava a Said por que o interesse por um estado
binacional na Palestina? O autor respondeu; “porque quero um tecido tão rico que ninguém pode abarcar
completamente e ninguém pode posssuir completamente. Nunca pude entender a noção de “este é meu lugar e
você fica fora deste lugar”. Não gosto do regresso a origem, ao puro”. Said, Edward W. “My right to return,
entrevista com Ari Shavit, In; SAID, E.,Power, Politics, and Culture, p 457. (Tradução nossa)
124
Estamos nos referindo aos seguintes livros; Beginnings: intention and method (1975) e O mundo, o texto o
crítico (1983).
83

textualidade/História motiva a sua produção no intuito de apontar o grau de distanciamento do


texto das circunstâncias ou acontecimentos que possibilitaram o mesmo. Para Said os textos
são essencialmente mundanos, são até certo ponto, acontecimentos: mesmo quando parecem
negar este estatuto, são constitutivos do mundo social.
Na obra citada, Said ocupa-se de uma série de problemas fundamentais sobre a
natureza da escrita. Destacamos os seguintes temas: os contrastes entre filiação e afiliação,
repetição e originalidade, restrição social e talento individual, as diferenças entre começo e
origem, além da temática central que diz respeito aos vínculos entre conhecimento e poder
político.
Said defende a ideia do texto literário como um meio de estar no mundo. O texto está
vinculado às circunstâncias em que é lido e escrito em uma relação dialógica que não
caracteriza limitadamente o discurso presencial. O texto guarda autonomia estética, apesar de
arraigado a uma filiação contextual.
A insistência de Said na materialidade do texto, na mundanidade da sua produção e na
percepção do “estar no mundo” se antecipa à adesão eufórica ao desconstrutivismo nas
universidades norte-americanas. A mundanidade se ocupa da materialidade da origem do
texto porque, no seu ser material, inscreve-se a realidade das questões que o texto aborda.
Para Said, (2004) a mística da textualidade representa a antinomia da crítica laica que se
sustenta na tríade; mundo – texto – crítica.
A textualidade é a antítese da História, porque, ainda que se realize, não acontece no
espaço ou na temporalidade circunscrita. A teoria contemporânea norte-americana isola a
textualidade dos acontecimentos.
Said cita Paul Ricoeur como um teórico que percebe a realidade como propriedade do
discurso. O autor relativiza essa máxima reafirmando a influência do contexto histórico no
texto literário. Nesse sentido sua crítica pode ter como objeto a visão de que o discurso e a
realidade circunstancial existem em um estado de presença enquanto, a escrita e os textos são
percebidos em um estado de suspensão à margem da realidade circunstancial.
Said entende a visão de Ricouer como uma leitura que defende que a realidade
circunstancial é exclusivamente uma propriedade do discurso. O contraponto a essa visão
aparece no pressuposto de que os textos estão sempre enredados nas circunstâncias. O
desacordo com a extrema relativização de uma interpretação ilimitada aparece com força no
contexto em questão. Os textos são lidos como atos de poder.

Yo sustengo que esa mundaneidad no aparece y desaparece; ni está aquí o allá en el


arrepentido y viscoso modo mediante el que normalmente designamos a la historia,
84

que em esos casos es um eufemismo da la noción impossiblemente vaga de que


todas las cosas tienen lugar em el tiempo. Es más, los críticos no son meramente los
alquímicos traductores de textos em realidad circunstancial o mundaneidad; porque
ellos son objeto y también productores de circunstancias, las quales se hacen sentir
com independência de cualquiera que sea la objetividad que los métodos del crítico
posean. 125 (SAID, 2004, pp.53/54)

A análise dos processos discursivos não invalida os contextos de poder em que os


textos são produzidos. Na correlação entre referentes e elementos de significação é que se
abre o espaço de denúncia dos processos “orientalizantes”.
Nossa hipótese é a de que a vinculação entre conhecimento e relações de poder no
interior da crítica pós-colonial erige uma ambivalência que inibe um determinismo
condicionante da obra como produto do seu contexto. Nesse sentido, podemos rastrear a
distinção conceitual entre filiação e afiliação. A primeira retrata uma origem obrigatória por
meio de uma linearidade e a segunda aborda um vínculo possível não obrigatório.
A impossibilidade da existência da filiação natural no mundo moderno justifica-se
pelo grau de reificação vivido pelos homens. A transição obrigatória da filiação para a
afiliação constitui uma das relações possíveis na modernidade.
A reificação da vida intelectual, especificamente a crítica é o principal tema do autor
analisado. Para Said, (2004) a tarefa da crítica é precisamente reler o texto em termos
totalizantes, como se a separação entre texto e mundo fosse lido como uma ilustração do
processo de reificação.
O ensaio “teoria viajante” (2004)126 oferece uma perspectiva de análise da reificação e
da institucionalização da teoria. A degeneração teórica na transferência espacial das ideias
parece um caminho inevitável.
O autor Palestino argumenta que as teorias desenvolvidas em contextos locais tendem
a perder a sua elasticidade e se tornar diluídas em poder e sentido, quando transportadas para
outro lugar. As teorias são métodos estratégicos com sistema e procedimento que substituem
o pensamento genuíno.
O deslocamento das ideias e teorias de um lugar para outro formam uma condição
instrumental da atividade intelectual. Said se remete ao ponto de origem das ideias, as

125
SAID, Edward W., El Mundo, El texto y El crítico, Buenos Aires: Debate, 2004. Pp. 53 e54. “Eu sustento que
essa mundaneidade não aparece e desaparece, nem está aqui ou ali no viscoso modo, mediante o que
normalmente designamos a história, que nesses casos é um eufemismo da noção vaga de que todas as coisas têm
lugar no tempo. Os críticos não são mer mente os alquímicos tradutores de textos na realidade circunstancial ou
na mundanidade; porque eles são objetos e também produtores de circunstâncias, as quais se fazem sentir com
independência de qualquer que seja a objetividade que os métodos do crítico posuem.”(tradução nossa)
126
Teoria viajante ou teoria ambulante é o título traduzido de um capítulo da coletânea; O mundo, o texto, o
crítico.
85

circunstâncias em que nasceram as ideias ou discursos. Said classifica as etapas dessa


transição tais como; a interferência de um contecxto receptivo, o conjunto de condições de
aceitação, e a ideia já incorporada no novo contexto.
Said aborda o deslocamento radical do pensamento tradicional que requer uma fusão
entre o homem e sua atividade. Além da dialética do pensamento histórico e geográfico, os
conceitos de totalidade127 e reificação vão moldar uma parcela da produção saidiana128. Os
conceitos nos remetem diretamente ao pensamento do filósofo marxista Georg Lukács
(2012)129 e suas teses sobre alienação e a consciência de classe.Nesse contexto, está em
questão a transição que envolve o gesto revolucionário condicionador da metamorfose de um
tipo de consciência a outro.
Em História e consciência de classe, Lukács (2012) teria estendido as ideias de Marx
sobre a acomodação do fetiche dos primeiros capítulos do Capital e teria combinado com o
processo de racionalização em Max Weber. Todos os objetos, todos os produtos, pessoas,
ideias e sentimentos se tornaram objetificados racionalmente, positivamente quantificáveis e
reduzidos à lógica material do dinheiro. A reificação da consciência significa a atomização
social, a alienação individual no contexto em que os seres humanos perdem o sentido de uma
comunidade coerente e orgânica.
Para Lukács (2012), os “fatos” de uma conjuntura histórica, de uma tradição cultural
não poderiam ser compreendidos em si mesmo, deveriam ser lidos como partes de uma
totalidade. A manobra radical de Lukács direciona o conceito de totalidade como a
recuperação da consciência de classe do proletariado. Enquanto classe revolucionária,
somente o proletariado poderia adquirir a perspectiva da totalidade.
O processo de reificação representa a realidade imediata de cada pessoa que vive na
sociedade capitalista. Pode ser superado somente pelos esforços constantemente renovados de
interrupção da estrutura reificada da existência, por meio de uma relação manifesta nas

127
A ideia de totalidade, não original em Lukács podia ser localizada no pensamento de Baruch Spinoza e
Giambattista Vico, embora o resgate da categoria de totalidade, nesse contexto originava-se na dialética
marxista.

128
Podemos rastrear a presença da teoria lukácsiana em algumas obras de Edward W. Said. No livro Joseph
Conrad e a autobiografia, aparecem alguns dilemas centrais relacionados a obra do romancista, que equivalem
ao problema da alienação e do exílio, a vivência de uma autodivisão e um distanciamento em relação a sua
essência. No livro Beginnings: intention and method, o historicismo espiralado de Vico se une a mundanidade de
Lukács. Nesse livro aparece uma proximidade com a teoria do romance e com o clássico, História e consciência
de classe. Said parece utilizar o insight sobre o romance para consolidar sua ideia sobre a crítica secular.
129
Nascido em uma família da alta burguesia judaica assimilada de Budapeste, G. Lukács sempre se identificou
com a alta cultura alemã. Em seu primeiro trabalho importante, A alma e as formas (1910). Lukács admitia uma
profunda nostalgia das culturas pré-capitalistas que o autor opõe à destruição da cultura pelo capitalismo.
86

contradições do desenvolvimento. Lukács interessa a Said na sua relação com a crítica, no


modelo de como o pensamento pode escapar da armadilha da reificação e das condições dos
valores sociais ordinarios.
A prerrogativa do proletariado como vanguarda intelectual e política é substituída em
Said pela premência da figura do crítico. Se Lukács antecipa a consciência do proletariado
que vai se corporificar no partido de vanguarda, Said nota que qualquer tipo de liderança de
uma nova visão da crítica cultural ou política deve vir através da figura do crítico inserido no
universo mundano.
Lukács é um autor a quem Said recorre repetidamente. Muitos dos temas Lucáksianos
são cruciais para a obra de Said, enumeramos as seguintes questões; a necessidade de renovar
a teoria para reativar a prática, a ideia do sentido como potencial ativador da práxis, a
consciência residindo na natureza, à visão da História como totalidade e por fim a superação
da condição objetiva reificada.
O proletariado é um reintérprete da reificação burguesa. Para desenvolver alguns
conceitos de Lukács que orientaram a obra de Said, devemos nos remeter ao conjunto de
comentadores que enfatizaram as obras da primeira produção do filósofo em questão.
A complexidade da periodização da obra é uma questão teórica, por limites da
proposta do nosso trabalho, apenas procuramos descrever a existência de tal polêmica sem
aprofundar so meandros desse debate.
José Paulo Netto (2013) associa o esforço da demarcação periodizante da produção de
Lukács a Lucien Golmann130. José Paulo Netto (2013) define História e Consciência de
Classe como uma construção teórica fascinante na medida em que o marxismo aparece sob
duplo aspecto, um metodológico para o conhecimento do universo social capitalista e a
convocação à consciência social para a transformação. Resgatamos a centralidade da
categoria de totalidade e a transformação histórica mediante o amadurecimento da consciência
do proletariado.

130
Para José Paulo Netto (2013), as periodizações da obra de Lukács são complicadas em função da
artificialidade da linha evolutiva que demarca um campo de continuidades e que tendem a “hipostasia de
rupturas”. A dogmática do “jovem Lukács” em contraposição ao Lukács da maturidade aparece nesse contexto
como uma deformação vulgarizada no senso comum que subestima algumas mudanças que não se encaixam
nessa divisão grosseira, a saber: primeiro período: pré-,marxista , segundo período: a partir da História e
Consciência de classe; marxista revolucionário e o terceiro período estalinista, iniciado em 1938. José Paulo
Netto explicita as diversas periodizações divergentes da leitura de Lucien Goldmann. Alguns marcos são levados
em conta, e redefinidos por Netto; como o encontro com Marx sob o viés de Simmel, a imensa crise intelectual
gerada pela primeira guerra mundial, a transição do neokantismo pelo viés hegeliano e o terceiro encontro com
Marx que estabelecia o caráter totalizante da dialética materialista.
87

História e Consciência de classe, configura-se como um libelo contra a segunda


internacional e contra a sociologia entendida como ciência burguesa. Netto analisa as
polêmicas com Max Weber, uma referência importante para Lukács, ainda que sob a forma de
um contraponto, a partir de questões centrais mobilizadoras.
A reificação indica a crítica separação do que se faz em relação ao que se é, ou seja,
esse processo busca atribuir forma objetiva a coisas que na realidade não tem forma. O que
interessa a Said é pensar o sentido da teoria Lukácsiana para a crítica literária. O problema da
reificação aparece na crítica, quando percebe-se a separação entre o crítico, o texto e o
mundo. Avaliar a dissociação entre esses três elementos, especialmente entre a história e a
sociedade é impor um status rarefeito ao papel da crítica.
A reificação em Lukács pode e deve ser superada, é uma condição contingencial,
diferente do pensador Theodor Adorno, com quem Lukács dialogava antinomicamente sobre
à capacidade de superação da condição dissociada do homem moderno.
No mundo moderno, possibilitador do Holocausto, da bomba atômica, onde a
humanidade atingiu proporções trágicas, numa sociedade identificada pela “reificação
generalizada”, o discurso humanista fundado na defesa dos valores tradicionais da
personalidade, parecia no mínimo anacrônico. As alterações estruturais na condição humana
são inevitáveis na modernidade e conformam uma situação irreversível.
Lukács (2012) por sua vez ironizava o “grande hotel abismo”131 em que Adorno(1990)
residia e considerava que era necessário procurar as razões sociais da alienação, da
negatividade e as possibilidades concretas de superar essa condição por meio da constestação.
O filósofo Húngaro posssui várias reflexões sob a forma de ensaios, acerca da literatura como
produto filosófico e estético.
O livro A teoria do romance, Um ensaio histórico filosófico sobre as formas da
grande épica,(2012) trata de questões basicamente literárias e possui um viés de reflexão
política alinhado à preocupação estética.
Para Said, Lukács é o teórico da temporalidade estética. Esta se fundamenta na
dialética hegeliana que aparece por meio de uma sequência temporal, seguida de uma
resolução entre as partes; a oposição, a contradição e a antítese. A oposição está destinada à
reconciliação.

131
Lukács reproduz no prefácio da usa obra, A teoria do romance que uma parte considerável da nata da
inteligência alemã, cita nominalmente Adorno, “alojou- se no grande hotel abismo – como escrevi por ocasião de
uam crítica a Schopenhauer -, um “belo hotel, provido de todo conforto, à beira do abismo, do nada, do absurdo.
“E o espetáculo diário do abismo, entre refeições, ou espetáculos comodamente fluídos, só fazem elevar o prazer
desse requintado conforto.” LUKÁCS, Georg, A destruição da razão apud prefácio, A teoria do romance, Um
ensaio histórico filosófico sobre as formas da grande épica, SP: editora 34, 2012. P.18.
88

Said cita A alma e as formas de Lukács, sua primeira obra em que a impressão de que
a oposição pode ser polarizada demais para se resolver na temporalidade. Said se interessa
especialmente pela primeira fase de produção do filósofo húngaro. Os trabalhos desse
contexto versam sobre a dissonância entre sonho e realidade e a possibilidade de reconciliação
dessa disjunção.
O ponto de partida da obra Lukácsiana é a dissonância, o senso de desacordo
ontológico entre o eu e o outro, entre o sujeito e o objeto. A modernidade aparece como o
tempo da culminância da dissonância e da superação da mesma. O cerne da existência na
modernidade está representado pela distância entre sujeito e objeto.
Na análise Lukácsiana sobre o romance, este seria visto um mecanismo artístico, de
criação estética, de resolução das dificuldades da modernidade. Sendo assim o romance é uma
forma de reconciliação das discrepâncias internas da vida moderna e um representante da sua
época Histórica.
A leitura Saidiana da História e Consciência de classe promove um elo de
continuidade entre a sua reflexão sobre o romance moderno e o problema central da
reificação, que na nossa concepção é o que mais desperta a atenção do nosso autor.
História e Consciência de classe é entendida como uma obra de transição na trajetória
teórica e intelectual de Lukács, além de um encontro com o marxismo no sentido mais
explícito. A noção de uma dialética entre opostos é vista como força lógica em Hegel e
elemento sociopolítico em Marx. O marxismo reintroduz a ideia de totalidade e a superação
da reificação como meta a ser cumprida através da consciência do proletariado.
Said (1985) resgata a frase definidora de Lukács132 em relação à História. “A História
é a derrubada incessante das formas objetivas que moldam a vida do homem.”133 A
temporalidade é vista como forma, como processo e como reconciliação, momento histórico
onde é possível conseguir alguma satisfação entre o sujeito que conhece e o objeto que resiste
por meio da categoria de totalidade.
O que Said (1985) destaca em Lukács é a culminância metafísica da proposta
Hegeliana aplicada à estética e a política. O autor palestino resgata o otimismo redentor e
temporal que aparece na superação da dissonância que representa uma ameaça a identidade. A

132
No livro Beginnings, Said se refere a um radical deslocamento do pensamento tradicional que requer uma
nova fusão entre o homem e sua atividade. O contexto da dissociação entre consciência e ação nos remete ao
debate originado em Marx, que Lukács resgata mesmo sem conhecer os manuscritos de 1844. Lukács tentava
demonstrar a extensão no qual o gesto revolucionário deveria operar uma metamorfose de um tipo de
consciência para outra. Os interesses passam pela noção de mundanidade e pela crítica engajada.
133
Lukács apud Said, Reflexões sobre o exílio, página 217.
89

dissonância aqui denominada de reificação como elemento central da consciência moderna


constitui o mediador de aproximação entre o autor marxista e a obra de Said.
A visão de Lúkacs como otimista acaba confundindo as diferentes fases da sua obra.
Seguimos a lógica de compreensão de Ricardo Benzaquen (1994)134 quando comenta a obra
de Auerbach e introduz como parâmetro referencial a obra crítica de Lukács, atribuindo ao
seu primeiro livro, uma visão trágica da existência, que percebe a modernidade como a
consagração da reificação. Apenas a obra de arte clássica pode escapar a esse destino trágico
na medida em que aspira a totalidade perdida e à transcendência diluída no cotidiano. 135
Uma das consequências da sistematização e do funcionamento da crítica é o
pressuposto de que a escrita e a leitura não podem ser separados das circunstâncias que a
habilitam ou que a produzem. Nada no texto simplesmente ocorre ou existe sem que o leitor,
o crítico ou o escritor produzam em termos de efeitos da produção ou recepção.

Of the arguments I was trying to articulate in Beginnings is that each critic needs in
some way to fashion for himself a point of departure that allows him to proceed
concretely along a given course of work. According to that notion then, such forms
as the novel, such objects as “the text”, such practices as criticism, are constitutive
methods for creating work and “covering” their own begininnings with inevitability
and a posteriori logic. I was also interested not only in the transformations of which
the idea of beginning is capable, but also in demonstrating (at a very theoretical
level) how concrete circunstances and highly abstract appetites (and even fictions)
can combine to provide one with an intencional method of formulating projects for
oneself. 136 (SAID, 2002, p.22)

A atividade humana e a produção de um trabalho não podem acontecer sem levar em


conta as relações de poder. Um escritor sempre escreve contra ou a favor de alguma ideia ou
projeto. Nesse sentido, Foucault avança no campo da relação entre as ideias e o poder, e diz
que a escrita não pode existir materialmente sem uma relação de ações que a limita, seleciona,
organiza e molda. A luta pelo poder pode ser, portanto, silenciosa, oculta e sistemática.

134
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de, à sombra do vulcão, Comentário à “Pathos da travessia terrena, o cotidiano
de Erich Auerbach”, de Hans Ulrich Gumbrecht In: RIEDEL, Dirce C., ROCHA, João Cesar de Castro, e
KRETSCHMER, Johannes, (coords.), V Colóquio da UERJ, Erich Auerbach, RJ; Editora da UERJ, Imago,
1994.
135
Ricardo Benzaquen ressalta a mudança de rumo tomada por Lukács apos o suicídio da sua ex-companheira
que acaba por buscar no cotidiano uma reconciliação com a perspectiva utópica que o aproxima da política,
opção que se mostra bastante duradoura no conjunto da sua obra.
136
SAID, Edward W., Power, Politics and Culture, Interviews with Edward W. Said. P.22. “Um dos argumentos
que busquei articular em Beginnings, foi que cada crítica precisa, de certa forma, moldar para si um ponto de
partida que lhe permita proceder de forma concreta em uma linha de trabalho. De acordo com essa noção, então,
tais formas como, o romance, objetos como o ‘texto’, práticas como a crítica, são métodos constitutivos para
criar trabalho e ‘cobrir’ seus próprios começos com inevitabilidade e uma lógica a posteriori. Fiquei interessado
não somente nas transformações pelas quais, a ideia de começo é possível, mas também em demonstrar (em um
nível muito teórico), como circunstâncias concretas e inclinações altamente abstratas (até mesmo ficcionais)
podem combinar para fornecer um método intencional para formular projetos para si mesmo.”
90

Retomamos o s vínculos entre Said e Lukács através das leituras da obra de Lucien
Goldmann,137 discípulo do pensador húngaro, no seu período de formação. Essa leitura teria
constituído uma forma de pensar a dialética através de uma análise das chamadas; teorias
ambulantes ou viajantes, que tratam concretamente da domesticação do pensamento, quando
os textos são apropriados em outras cinscunstâncias sociais.
Retomamos propositalmente o contraponto entre a perspectiva de Lukács e Adorno,
referências importantes para Said, porque representam um desencantamento com a
modernidade irreconciliável. Adorno segue um percurso antinômico à Lukács que concebera
meios de escapar da culminância da modernidade e seus efeitos reificados.
Para Said, Adorno (1990) encarna os traços de um intelectual tardio. O estilo tardio
que se faz presente e ausente do contexto contemporâneo. Ser uma figura tardia significa
militar contra a corrente do seu tempo. Contra a especialização, ser ecumênico; contra o
profissionalismo. Said defende a ideia de um intelectual como um ser diletante que não realiza
concessões aos leitores e ao contexto hegemônico.

Em termos filosóficos, Adorno é impensável sem o majestoso marco erigido por


Lukács em História e Consciência de classe; mas ele é igualmente impensável sem
sua recusa ao triunfalismo e à transcendência implícitos no livro. Se, para Lukács, a
relação sujeito-objeto com suas antinomias, a fragmentação e o desterro, o
perspectivismo irônico da era moderna são registrados, encarnados e consumados de
modo supremo em formas narrativas como a epopéia renovada do romance e da
consciência de classe proletária, para Adorno, ao contrário, essa opção representava,
uma espécie de reconciliação falsa e forçosa – como afirmou num famoso ensaio
contra Lukács. A modernidade era uma realidade degradada e irredimível, e a nova
música, tanto quanto a prática filosófica do próprio Adorno, devia ser um memento
incessante daquela realidade.138 (SAID, 2009, p.38)

Para Lukács139 o amadurecimento de uma consciência de classe representa uma forma


de subversão que pode ser vista por uma tentativa de afiliação, que ao burlar as antinomias e a
atomização de uma existência, supera a reificação na moderna ordem mundial. A afiliação é
entendida como uma saída para a atomização do mundo moderno.

137
Para um maior aprofundamento da aproximação de Said do pensamento lukácsiano por meio de Lucien
Goldmann ver: BRENNAN, Timothy, Resolución, In: BHABHA, H. , MITCHELL, W. J. T. (comps.) Edward
Said, Continuando la conversación, Buenos Aires: Editora Paidós, 2006.
138
SAID, Edward W., Estilo Tardio, SP: Companhia das Letras, 2009.p.38.
139
Para Said o critico está comprometido com uma forma ensaística, cuja metafísica foi esboçada por Lukács na
obra, A alma e as formas, nessa concepção havia a afirmação de que os ensaios deveriam se ocupar das relações
entre as coisas, os valores e os conceitos. A forma deve ser condicionada pela experiência vivida. Os críticos
criam os valores que utilizam para julgar uma obra estética e encarnam na escrita os processos das condições
reais do presente, da sua situação contemporânea.
91

Em Said, (2004) o processo de representação, mediante o qual se reproduz a filiação


na estrutura afiliativa, promove a noção de pertencimento. O crítico exerce o papel de alguém
que possibilita a transferência de legitimidade da filiação para a afiliação.
A mediação presente na linguagem textual abre caminhos possíveis para a
interpretação. Said se enquadra em uma posição intermediária, não identificada pela postura
realista clássica, e não limitada pela exclusiva premência do texto. Aqui reconhecemos o
debate sobre o controle da interpretação. A visão de um texto como um elemento de
suspensão da mundaneidade é quase uma heresia teórica, vista nesse contexto como enganosa
e simplista.
Said recupera a abordagem teórica de Foucault e define que a escrita é um modo de
disfarçar a materialidade de uma produção gestada politicamente. O método de Foucault
consiste em analisar o texto como parte de um arquivo, composto de discursos que envolvem
afirmações. Os textos são compreendidos como parte de um sistema cultural controlado,
organizado.
Para o autor palestino, o texto simboliza um diálogo desigual, tal como a relação entre
o colonizador e o colonizado, ou o opressor e oprimido. A produção textual não oculta às
situações sociais ou condições históricas que são inerentes aos mesmos. A afiliação representa
a relação do texto com o acontecimento, a que pretende uma aproximação contingente.
O problema da crítica contemporânea aparece na fragilidade da adoção de uma postura
ativa no mundo, para além da cultura da descrença nos alicerces explicativos vinculados ao
elemento externo ao texto. As continuidades tradicionais, tais como nação, biografia, período
ou família são vistos como elementos pouco definidores do sentido ou da linha interpretativa
do texto. Said chega ao extremo de dizer que os textos são entendidos como exageros, desvios
ou uma negação da presença humana. O texto é lido como uma estrutura afiliativa de
elementos excêntricos.

Esto significa que el texto es crucial en el modo de “tener” um mundo , pero el


mundo tiene existência real y esa mundanidade se construyie dentro del texto. El
texto tiene uma situación específica que pone limitaciones al intérprete, “no porque
la situación se Halle oculta en el texto como um mistério, sino porque la situación
existe en el mismo nível de especificidad superficial que el próprio objeto textual. 140
(ASHCROFT e AHLUWALIA, 2000, p.59)

140
ASHCROFT, Bill e AHLUWALIA, Pal, Edward Said, La paradoja de la identidad, Barcelona: Ediciones
Bellaterra, 2000. p. 59. “Isto significa que o texto é crucial no modo de “ter” um mundo , mas o mundo tem
existência real e essa mundanidade se constrói dentro do texto. O texto tem uma situacão específica que põe
limitacões ao intérprete, “não porque a situacão se ache oculta no texto como um mistério, senão porque a
situación existe no mesmo nível de especificidade superficial que o próprio objeto textual.” (tradução nossa)
92

Said afirma que a teoria literária norte-americana abandonara um movimento


intervencionista em nome de uma exacerbada especialização para apegar-se à primazia da
textualidade. A antinomia textualidade-história desempenha uma temática importante no livro
em questão, pois a coletânea representa uma proposta ensaística de defesa da relação entre os
textos e as realidades históricas, a política, as sociedades e os acontecimentos.
Quando a relação entre cultura e política é abordada, os referenciais teóricos mais
imediatos parecem ser a obra de Foucault, com ressalvas, e o conceito de hegemonia em
Gramsci141. Nesse contexto, as culturas são vistas como um espaço para se perceber a
hegemonia de determinadas nações. A transmissão e a perpetuação de uma cultura operam
por meio de um processo permanente de reafirmação. A ideia de hegemonia142 se configura
como uma construção de sentido intersubjetivo. A cultura em Said é entendida como um
sistema hegemônico.
Em Gramsci143 a filiação aparece entre as formas de expressão cultural e ação política
para em continuação conceber um programa dedicado a considerar a produção cultural como
uma modalidade de luta política. O pertencimento preenchido por um sentido comum
histórico do povo, agora realizado numa luta conjuntural diária com as forças hegemônicas e
coercitivas pode revelar uma discrepância entre cultura e política.
A contradição em Said, parte do convívio com as referências da alta cultura enquanto
promove a oposição à política colonial. O inventário promovido pelo autor passa pela
constante vigilância das oscilações entre política e cultura. A cultura contribuía para
consolidar a tarefa política. A escrita imaginativa e a erudição se combinavam em um
discurso instrumentado para servir aos interesses do poder nacional.

141
Gramsci possuía uma postura claramente antipositivista e trazia uma influencia do idealismo originário em
Benedetto Croce e Giovanni gentile. Essa origem teórica produz um marxismo que se caracteriza por uma nítida
repulsa a todo e qualquer deteminismo presente no pensamento de Marx. A autor italiano procura se distanciar
de qualquer vestígio de um determinismo econômico, de história preestabeleceida. A dimensão da necessidade
recua diante da possibilidade do fim do socialismo. Nos escritos reunidos nos cadernos do cárcere, o ponto de
partida da elaboração crítica é a consciência como produto dos processos históricos nos quais é depositada uma
infinidade de traços que forma um inventário. Seu pressuposto metodológico se baseia na concepção de um
marxismo como uma filosofia da práxis, marcado por uma antieconomicismo radical.
142
Gramsci parece ter se inspirado na concepção de hegemonia leninista num primeiro momento, para depois
formular um conceito que pressupõe uma direção cultural; esse conceito se vincula ao de sociedade civil, ‘que
para Gramsci significa a história do domínio de alguns grupos sociais sobre os outros, sendo a trama da
hegemonia feita sempre por subordinação, corrupção e exclusão do poder, isto é uma história de classes.
143
Devemos reconhecer que a direção política em Gramsci possui um siginifcado mais amplo, de direção
cultural. Gramsci se afasta do leninismo para aderir a uma ascendência cultural que formula uma concepção de
poder que leva em conta a noção de consenso, para além do elemento de coerção. Na sociedade civil as classes
buscam exercer sua hegemonia, ganhar aliados para suas posições através da direção político-intelectual e do
consenso.
93

Said acredita e defende com veemência que existe um conjunto de circunstâncias ou


condições contingentes e mundanas a partir das quais se produz escolhas que influenciam o
ato de escrever. Said media duas posturas extremas, entre o pós-estruturalismo e o realismo
reducionistas, na medida em que defendem que o texto é importante para o acesso ao mundo,
mas a mundanidade ou circunstancialidade do texto, o status do texto como um acontecimento
que tem espeficidade, assim com a contingência histórica, devem ser incorporados ao texto.
Said argumenta que a teorias desenvlvidas em contextos locais tendem a perder a sua
elasticidade e se tornar diluídas em poder e sentido quando transportadas para outro lugar. O
autor atribui peso as condições locais do pensamento e aos lugares de enunciação.
A coletânea em questão aborda uma série de problemas fundamentais sobre a natureza
da escrita, como os contrastes entre filiação e afiliação, repetição e originalidade, restrição
social e talento individual, diferenças entre começo e origem, além da temática central que diz
respeito aos vínculos entre conhecimento e poder político.
Um dos binômios que caracterizam a mundanidade dos textos e que ilumina as
diferentes possibilidades de leitura crítica é a “filiação-afiliação”. Segundo Said há vários
meios de se colocar limitações à interpretação. Os textos estão no mundo, possuem diversos
tipos de afiliações com o contexto externo, e uma de suas funções como textos é solicitar a
atenção da realidade receptiva.
Said percebe a filiação (herança ou descendência) como força de coesão na sociedade
tradicional. Já o primeiro modo de afiliação é a relação do ensaio com o texto ou com o
acontecimento a que pretende aproximar-se. O segundo modo de afiliação é a intenção que
tem o ensaio na hora de tentar fazer uma aproximação com o leitor.
O autor resume a sua teoria nos seguintes termos: o texto possui uma dialética de
compromisso com o seu tempo. Os paradoxos de um texto indicam um discurso que se
apresenta imutável e ao mesmo tempo contingente. O texto pode ser tenso e politicamente
intransigente, como o conflito entre o dominante e o dominado.
A afiliação aparece como um princípio crítico geral porque libera o crítico de uma
visão estreita dos textos conectados por meio de uma filiação com outros textos. As afiliações
não são literárias, canônicas ou tradicionais. Este conceito é uma característica da
mundanidade do texto.
Uma das características chave da mundanidade é o recurso à repetição que impõe
determinadas limitações e demarcações interpretativas do texto. Este é visto como algo que se
origina no mundo e reafirma todo o tempo a sua existência na realidade. O texto se conecta
94

permanentemente às condições de existência do próprio autor; o exílio, a politização, a


insistente questão da identidade árabe-palestina e a questão nacional palestina.
Enquanto a filiação aponta para o âmbito utópico dos textos conectados em série, a
afiliação é aquela que permite ao texto a sua manutenção e preserva o status de autor, o seu
momento histórico, as condições de publicação, a difusão, recepção, valores e ideias
assumidas. Esse processo facilita o rastreamento dos nexos que unem o texto à sociedade.
Todo texto é visto como um ato de vontade.
O interesse de Said aparece então, na demarcação da literatura como agência cultural
que se volta para a demonstração das cumplicidades reais da cultura com as relações de poder.
O papel da crítica literária envolve um pressuposto de materialidade do texto. A rejeição à
pura textualidade, assim como do mundo ideologicamente contaminado pelo dogma político,
é a base do esforço para ir mais além das quatro formas convencionais de crítica: crítica
prática, história literária, interpretação e teoria literária.
Para Said, existe uma tendência contemporânea para evitar a investigação histórica por
ser algo menos interessante que a especulação teórica. Said afirma que a teoria crítica
contemporânea rompe com a genealogia ou com a abordagem histórica e descarta uma
posição ativa no mundo.

Huérfana de la crítica radical freudiana, saussureana y nietzcheana de los orígenes,


las tradiciones y el propio conocimento, la crítica contemporânea ha alcanzado su
independência metodológica perdiendo los derechos de adoptar uma posición activa
em el mundo. No tiene ninguna fe em las continuidades tradicionales (nación,
família, biografia, período); mas bien improvisa el orden a menudo em actos
inspirados em el bricolage y partiendo de la descontinuidad extrema. Su cultura es
uma cultura negativa de la ausência, la antirepresentacion y de la ignorância. 144
(SAID, 2004, p.201)

Para Said, toda manifestação, seja ela, um fenômeno intelectual ou artístico, é obra de
um autor individual e expressa seu pensamento e modo de sentir. Estas formas de pensar não
são entidades independentes da conduta e das ações humanas. Cada produção artística é
expressão voluntária ou involuntária de uma coletividade. O conceito de materialismo
cultural145se aplica nesse contexto.

144
SAID, Edward W., El Mundo, El texto y El crítico, Buenos Aires: Editora Debate, 2004. P. 201. “Orfã da
crítica radical freudiana, saussureana e nietzcheana das orígens, as tradições e o próprio conhecimento, a crítica
contemporânea alcançou sua independência metodológica perdendo os direitos de adotar uma posicão ativa no
mundo. Não existe nenhuma fé nas continuidades tradicionais (nacão, família, biografia, período); se improvisa a
ordem em atos inspirados na bricolage e partindo da descontinuidade extrema. Sua cultura é uma cultura
negativa da ausência, a antirepresentacão da ignorância.”(tradução nossa)
145
O conceito de materialismo cultural, nos remete diretamente ao pensamento do teórico marxista, Raymonds
Williams. Este autor contribuiu significativamente para os estudos culturais a partir de um viés marxista,
95

Said rejeita a concepção exclusivista do texto como fonte de um sentido interpretativo,


apontando para a demarcação contingencial dos sentidos externos atribuídos a essa produção.
Mesmo reconhecendo a materialidade histórica do texto, Said ressalta o aspecto da
ambivalência de sentidos interpretativos dos textos, uma vez, que o autor tenta fugir da
possível armadilha realista do texto como “filho do seu tempo”.
O chamado estilo tardio retoma a ideia de uma individualidade irredutível que não se
deixa esvaziar por meio da relação necessária entre o autor e o meio. O esvaziamento do
determinismo está presente na idealização do conceito de estilo tardio, título que nomeia um
livro póstumo146. Nessa coletânea, Said desenvolve um conceito que esvazia o determinismo
suscitado pela materialidade do texto na literatura.
Todo estilo pressupõe o vínculo do artista com a sua época, período histórico,
sociedade e predecessores. A obra estética, a despeito de sua singularidade irredutível, sempre
participa – ou paradoxalmente não participa – da era em que foi produzida e apresentada.
O estilo tardio pode ser compreendido pela relação dialética do artista com o seu
tempo. O artista em pleno controle de seu meio estético abandona a comunicação com a
ordem social estabelecida, da qual ele é parte, para chegar a uma contradição na relação com a
conjuntura. O conceito em questão se define por um contexto, onde a arte não abdica de seus
direitos em benefício da realidade. Essa categorias originária do pensamento de Theodor
Adorno, pode representar um nível de refração da obra em relação ao seu tempo. O estilo
tardio não pode ser visto como decorrente de uma morte ou envelhecimento das obras de arte.
Said (2006) pretende explorar a experiência de um estilo tardio que pode ser ilustrado
em uma tensão inerente à obra, cuja produtividade parece indicar o contrário: a relação
contraditória, tensa e alienada em relação ao contexto que a cerca; uma arte que extrapola a
sua existência e o seu contexto de origem. A obra apresenta um caráter contingencial e
descontínuo.
Assim como Adorno147 analisa a obra tardia de Beethoven, o filósofo pode ser
enquadrado na categoria de descentramento simbólico, definidora de um estilo tardio. Um

definindo o papel da cultura para entender a relação entre a análise literária e a investigação social. Dedicamos
uma análise das vinculações entre os dois autores, Said e Williams, em outro momento da tese.
146
SAID, Edward W., Estilo Tardio, SP: Companhia das Letras, 2009. (1ª. Edição 2006). Estilo tardio foi
publicado como obra póstuma, Said morreu antes de terminar esse livro.
147
Adorno é intrinsecamente crítico à ideia de uma sociedade plena com associação livre entre os homens,
dotados de uma autonomia. Adorno pensa a modernidade como um mundo em ruínas, em decadência. Na era das
catástrofes, arte representou uma espécie de arquivo histórico vinculado a memeoria, a escrita inconsciente, ao
que restou em salvaguarda. A antiestética nasce da porpria dissolução da estética. A vida cultural agrega as vidas
danificadas, esmagadas pelo real da história. A sua dialética negativa problematiza a arte extraída do sofrimento.
Toda cultura é um estado latente da “barbárie”.
96

autor deslocado do presente, inconformado com o contemporâneo que produz uma obra
repleta de aforismos autobiográficos se configura um crítico contumaz da ideia de totalidade.
Sua forma de escrita reflete o subtítulo da obra Mínima Moralia, “reflexões a partir da vida
danificada”.148
A escolha pela forma de escrita baseada nos ensaios e fragmentos já denota a aversão
ao percurso explicativo, causal e linear, o que explica a escolha por campos de tensão, onde a
verdade é pensada em seu caráter transitório. A crítica radical deve ser aporética e deve
repensar o papel da arte após a catástrofe do holocausto.
Selligmann (2009) desenvolve a análise da centralidade de Auschwitz para o
pensamento estético de Adorno, na medida em que insere a dimensão deste genocício, e sua
forma única para pensar a dialética da cutura e barbárie numa Europa esclarecida, iluminada.
Escrever um poema após Auschwitz representa o próprio ato de barbárie e incorfomismo.
Esse debate está fortemente presente na Dialética do esclarecimento (1991)149, obra escrita no
exílio norte americano em co-autoria com Max Horkheimer.

Em Mínima Moralia ele afirma que o pensador deve aceitar o desafio de estar ao
mesmo tempo dentro e fora da coisa, num gesto comparável ao de Münchhausen,
que se arranca da poça de lama puxando seus próprios cabelos. A própria obra de
arte, de resto, está submetida a esta aporia: ela deve ser autônoma e contrapor-se à
sociedade, ainda que, ao afirmar-se como autônoma, se apresente como ideologia. O
caráter ambíguo da arte consiste em ela ser ao mesmo tempo autônoma e fato social.
Ela critica a sociedade pela sua simples existência.150 (SELLIGMAN-SILVA, 2009,
p.105)

Adorno (1990) caminha numa direção metodológica assistemática e intermediária


entre a indissociação entre objeto e sujeito, que se torna um mito, renegado pelo autor, e uma
atitude postivista descartada da mesma forma.

Há, portanto, uma tensão inerente ao estilo tardio que o distancia do mero
envelhecimento burguês e que sublinha a crescente consciência de distanciamento,
exílio e anacronismo – uma consciência de que o estilo tardio expressa e, o que é
mais importante, utiliza para se sustentar formalmente. Quando se lê Adorno dos
ensaios aforísticos sobre temas como pontuação ou capas de livros de Notas de
literatura às grandes obras teóricas como Dialética Negativa e Teoria estética, tem-
se a impressão de que ele procurava em termos estilísticos aquela mesma evidência,

148
O livro Minima moralia, reflexões a partir da vida danificada, nasceu no exílio de Adorno nos EUA
Podemos reconhecer o livro, Mínima Moralia, como a referência mais próxima de Said, no que tange o debate
sobre a identidade na modernidade, o conceito de totalidade e a experiência do exílio. Procuramos retornar a essa
tmeática com mais vagar no trecho em que discutimos a problemática do exílio em Said. Identificamos que o
cocneito de estilo tardio é central para o debate estético que Said empreeende, especialmente nos seus últimos
escritos organizados postumamente.
149
ADORNO, F. e HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento, Fragmentos filosóficos, RJ: Jorge Zahar
Editor, 1991.
150
SELIGMANN-SILVA, Marcio, A atualidade de Walter Benjamin e Theodor W. Adorno, RJ: Editora
Civilização Brasileira, 2009.p.105
97

que ele encontrava no Beethoven tardio, de tensão contínua, obstinação irrequieta,


de conjunção do novo e do tardio por obra de um gancho inexorável que mantém
unido aquilo que procura com igual potencia separar-se.151 (SELLIGMAN-SILVA,
2009, p.37)

A postura intermediária de Said, entre o realismo clássico e o pós-estruturalismo


determina um princípio crítico por meio da relação de afiliação no processo de interpretação
do texto. Esta comparação nos permite inferir que a afiliação não só vincula o mundo, o texto
e a crítica, como provoca uma implícita rede de valores, expectativas e interdependência de
sentido entre o colonizado e o colonizador. As conexões não lineares que vinculam texto e
contexto estabelecem um sentido de leitura para a cultura imperial presente nas sociedades
coloniais.
A mundanidade do texto e a mundanidade da crítica rejeitam o paradigma pós-
estruturalista centrado nos ideais de morte do autor, na indefinida aplicação posterior do
significado e a importante natureza da textualidade.
A tarefa do crítico opera no sentido de uma revisão na conexão entre texto, mundo e
história, além do desvelamento do exercío subliminar do poder nos discursos. Os textos não
podem ser vistos como objetos acabados, logo as leituras devem ser remetidas às suas origens
culturais e políticas. O texto não deve ser observado apenas como objeto estético, este deve
ser remetido ao seu espaço demarcado em função da cumplicidade inerente com o poder. O
crítico deve levar em conta o precário equilíbrio entre cultura e sistema, que por meio de uma
leitura em contraponto deve ser capaz de analisar as estratégias discursivas imperiais.
Said descreve sua escrita dotada de transparência, livre do jargão acadêmico, de um
caráter ensaístico e dotado de um ímpeto mundano. A mundanidade que aparece nesse
contexto se assemelha ao secularismo de Vico, ao secular ou realista de Auerbach. A analogia
com o “terreno” pode ser associado ao mundo histórico amparado por uma base territorial que
supõe geografias imaginativas.
A escrita para Said é mais afiliativa do que filiativa em relação a experiência. Os
vínculos com o mundo social são vistos com um indicios da mundaneidade. O texto tem uma
presença material, uma história cultural e social, uma encarnação política e econômica. Ao
contrapor o filósofo francês Paul Ricouer, Said afirma que os textos denotam ontologia e
epistemologia simultaneamente. A crítica ao filósofo tem relação com essa concepção de que
a realidade circusntancial é produto da fala.

151
Ibid, P. 37.
98

O texto reproduz o sentido assimétrico da relação entre colonizador e colonizado,


opressor e oprimido. As palavras e os textos são tão mundanos que sua efetividade, em alguns
casos, define questões de propriedade, de autoridade e das relações de poder. As relações
discursivas desiguais produziram o orientalismo como disciplina acadêmica.
Said defende a afiliação como um princípio crítico generalizado porque liberta o
critico de uma visão reducionista dos textos conectados numa relação filitiva com outros
textos, diminuindo o peso do contexto de onde se originam.
As afiliações se referem a uma rede implícita de particulares associações culturais
entre formas, elaborações estpéticas, instituições, organismos, classes, forças sociais. Essa
rede afiliativa está no âmbito do controle hegemônico e isso pode ser percebido na cultura
imperial, que deve ser lida através dos textos literários.
As vinculações diretas ou indiretas, os valores, expectativas que inserem e reinserem o
colonizado numa relação afiliativa com o colonizador. A materialidade do texto inclui o
alcance da autoridade do mesmo.

1.3 O Orientalismo e a Teoria Pós-Colonial

A obra de Edward W. Said (2007) alcançou uma extensão significativa a partir dos
anos 70 com a publicação do livro Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente,152
consensualmente pensado como marco inicial dos chamados Estudos Pós-Coloniais. Podemos
afirmar que a elaboração desse livro estabelece uma estreita relação com o início da militância
de Said no movimento palestino.
Said define os antecedentes da escrita do livro Orientalismo153 como vinculados ao
sentido da sua história identitária como um árabe, palestino que cresceu em uma geração à
sombra do colonialismo direto. O livro constitui-se no esteio da problemática da

152
SAID, Edward W. Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente, SP: Companhia das Letras, 2007.
Primeira edição-1978. O Orientalismo é uma das obras mais lidas de Edward W. Said e consequentemente uma
das mais criticadas. A despeito do reconhecimento do livro Orientalismo como marco inaugural dos chamados
Estudos Pós-Coloniais em 1978 e tomando por base as variadas críticas que atribuem uma suposta superação das
suas interpretações acerca das relações entre poder colonial e cultura, reconhecemos que os debates originados
da sua leitura ainda produzem efeitos nos círculos teóricos que discutem o colonialismo, o Nacionalismo Pós-
Colonial e/ou constituem as chamadas “teorias do terceiro mundo”.
153
Estamos trabalhando com a edição de 2007, que inclui o prefácio à edição de 2003 e o pósfacio da edição de
1995.
99

representação do outro em meio à questão central da análise do discurso. A linguagem viria a


ser um objeto de atenção filológica, impedindo qualquer falsa impressão de uma
representação da realidade mimética.
A representação do colonizado é algo tão complexo, tão problemático que precisa ser
redimensionado na teoria do conhecimento. Com o pensamento pós-colonial, a noção de
colonizado havia se expandido, o que passava a incluir as mulheres, as classes subjugadas e
oprimidas, as minorias nacionais e até subespecialidades acadêmicas marginalizadas. Se toda
narrativa atribui sentido ao real, a elaboração dos sentidos é promovida pelo estudioso que
precisa pensar na mediação teórica.
No início do livro, Said recorre a uma citação Do dezoito de Brumário de Luís
Bonaparte, de Karl Marx154, “eles não podem representar a si mesmos: devem ser
representados”. O sentido dessa expressão já nos oferece o indício da centralidade do
problema da representação no livro em questão. O poder da representação, por meio da
coerção e da produção intelectual interfere no destino dos povos não europeus. A capacidade
de representar o outro constitui o sentido da sua atividade que existe na relação com o outro
ou com o poder historicamente definido.
No prefácio da versão de 2003, Said desenvolve a ideia em certa medida em resposta
aos seus críticos, de que os termos “Oriente” e “Ocidente” não possuem estabilidade
ontológica e que são produtos discursivos em parte uma afirmação, em outra, identificação da
alteridade.
No prefácio, Said contextualiza o período posterior à escrita do livro chamando a
atenção para o fracasso dos acordos de Oslo e para a eclosão da segunda intifada. Em meio a
essa conjuntura histórica, Said ressalta que esta não se constituiria uma defesa do oriente
“real”, com o reconhecimento possível dos vínculos possíveis entre práticas discursivas e o
processo imperialista.

Minha ideia em Orientalismo, é utilizar a crítica humanista para expor os campos de


conflito: introduzir uma sequência mais longa de pensamento e análise em
substituição às breves rajadas de fúria polêmica que paralisam o pensamento para
aprisionar-nos em etiquetas e debates antagonistas, cujo objetivo é uma identidade
coletiva beligerante que se sobreponha à compreensão e à troca intelectual. Chamei
aquilo que procuro fazer de “humanismo”, palavra que continuo teimosamente a
utilizar, malgrado o abandono altivo do termo pelos sofisticados críticos pós-
modernos. Por humanismo entendo, antes de mais nada, a tentativa de dissolver
aquilo que Blake chamou de grilhões forjados pela mente, de modo a ter condições

154
MARX, Karl, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, SP: Boitempo Editorial, 2011.
100

de utilizar histórica e racionalmente o próprio intelecto para chegar a uma


compreensão reflexiva e a um desvendamento genuíno.155 (SAID, 2007, p.19)

O manifesto pela desconstrução das fórmulas redutivas e pelo tipo de pensamento


abstrato que desencarna da experiência histórica está presente não só nos prefácios às diversas
edições como nas teses levantadas no decorrer do livro. O pressuposto viquiano de o mundo
secular como o mundo da história, compreendido e feito por seres humanos, aparece no
prefácio para indicar que a ação humana está sujeita a investigação e análise.
Na introdução do livro, Said inicia a sua caracterização, narrando um episódio da
guerra do Líbano, em que um jornalista francês descreve uma área como o Oriente de
Chateaubriand e Nerval, ou seja, o contexto de um Oriente tal como descrito e caracterizado
de forma estereotipada pela Europa.
Said define o Orientalismo156 como um “estilo de pensamento baseado numa distinção
ontológica e epistemológica feita entre o Oriente (na maior parte do tempo) e o Ocidente.157 O
intercâmbio entre o sentido acadêmico e o sentido imaginativo do orientalismo é datado desde
o século XVIII.
O Orientalismo tem a sua acepção política no âmbito de um estilo ocidental para
dominar, reestruturar, e impor uma autoridade para o Oriente. Nesse contexto, Said recorre ao
conceito de discurso erigido na obra de Michel Foucault. O Oriente é originário de um
discurso orientalista que mobiliza uma práxis de dominação e é ao mesmo tempo
conseqüência dessa prática imperialista.
As categorias de “Oriente” e “Ocidente” devem ser preenchidas de historicidade. O
grau de idealização atribuído a representação distorcida se refere a uma entidade mutável
encarnada no devir histórico. A relação entre o ocidente e o oriente se constitui pela relação
de assimetria e poder inerente ao encontro colonial.

155
SAID, Edward W. Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente, SP: Companhia das Letras, 2007.
Página 19.
156
Uma das primeiras abordagens críticas sobre o Orientalismo pode ser encontrada no trabalho do filosófo
egípcio Anouar Abdel-Malek que produziu um artigo chamado, “Orientalismo em crise” publicado, na revista
Diógenes 44 (1963). Abdel-Malek começa a estabelecer o fato de que a emergência dos movimentos de
libertação colonial na Ásia, após a Segunda Guerra Mundial e as consequentes descolonizações mergulharam a
profissão e o pensamento orientalista numa crise profunda. Essa crise teria sido gerada pela íntima relação entre
os eruditos orientalistas e os poderes coloniais. Dois anos depois, em 1965, o historiador palestino A. L. Tibawi,
da Universidade de Londres publicou o artigo “English Speaking Orientalists”, no qual criticava explicitamente a
maneira como esses estudiosos retrataram o Islã e o mundo árabe. O ponto de partida de Tibawi está na ênfase da
quase eterna e profunda hostilidade entre o mundo islâmico e o mundo cristão como um fato histórico
permanente que atravessa os diferentes contextos históricos. Tibawi enfatiza a maneira como os orientalistas
facilitaram uma incompreensão da natureza do Islã em si.
157
Ibid, p. 29.
101

A sistematicidade do discurso orientalista e a sua longevidade garantem uma unidade


passível de ser identificada, ainda que as proporções das variações históricas apareçam de
forma ilustrativa. Se a cultura é lócus privilegiado para se rastrear os aspectos de dominação
imperialista, essa deve fazer parte de um consenso. Said recorre às categorias gramscianas158
para analisar o papel da cultura na sociedade civil e como ela colabora para consolidar a
hegemonia de um determinado grupo.

A cultura, é claro, deve estar em operação dentro da sociedade civil, onde a


inflûência de ideias, instituições e pessoas não funciona pela dominação, mas pelo
que Gramsci chama de consenso. Numa sociedade não totalitária, portanto, certas
formas culturais predominam sobre outras, assim como certas ideias são mais
influentes que outras; a forma dessa liderança cultural que o Gramsci identificou
como hegemonia, um conceito indispensável para qualquer compreensão da vida
cultural no ocidente industrial. È a hegemonia, ou antes, o resultado da hegemonia
cultural em ação que dá ao Orientalismo a durabilidade e a força de que tenho falado
até o momento. 159 (SAID, 2007, p.34)

Para Said, a Europa é identificável pelo seu outro espelhado, o Oriente. Said se
pergunta se o que define o Orientalismo é o conjunto de traços impregnados da ideia de
superioridade européia, com conteúdo racista, imperialista e visões dogmáticas, abstratas e
essencialistas do que vem a ser o “Oriental” ou uma variação de individualidades autorais que
abordam o Oriente. A perspectiva particular e geral são duas abordagens do mesmo material.
O lugar político e histórico de onde se fala é uma premissa importante. Nesse sentido,
o lugar europeu ou norte americano de onde se enuncia vicia e condiciona um olhar enviesado
sobre o Oriente. Said denomina o orientalismo de uma “distribuição” de consciência
geopolítica em textos estéticos, eruditos, econômicos, sociológicos e históricos.
Para além de uma denominação geográfica, o Orientalismo representa um conjunto de
interesses vinculados com vários tipos de poder em intercâmbio, como poder intelectual, com
a hegemonia moral. Se o orientalismo representa uma moderna cultura político intelectual tem
menos relação com o Oriente propriamente dito do que com o Ocidente. O Orientalismo é o
estudo que na perspectiva de um intercâmbio dinâmico entre autores individuais e interesses
políticos é modelado pelos impérios britânico, francês e americano.
Said rejeita as regras fixas para se depreender os resultados entre o conhecimento e a
política. O alvo do seu estudo é o imperialismo político ilustrativo na produção intelectual,

158
Said recorre a alguns conceitos originários da terminologia gramsciana, assim como desenvolve a importância
deese pensador por territorializar a realidade histórico-social. A territorialidade deve ser entendida do mesmo
modo que a dos países submetidos à dominação imperialista, onde é claro que o imperialismo é um modo de ser
do funcionamento do sistema capitalista. Devemos retornar a análise dessa aproximação no momento em que
debatemos a cultura e o imperialismo.
159
Ibid, P. 34.
102

especialmente francesa e britânica. Said explicita a sua metodologia no que ele denomina
perceber a posição do autor num texto em relação ao material oriental por ele abordado e
posteriormente a análise das relações entre os textos e a referência dessa produção em relação
à cultura mais geral. A análise deve compreender as conexões com outras obras, outros
públicos e a respectiva recepção e aspectos particulares das instituições assim como ao
próprio Oriente.
O Oriente aparece na exterioridade, na superioridade do texto, a fala, a descrição do
Oriente aparece como causa primeira do que se diz. A representação do oriente equivale a
algo familiar à tradição de onde se enuncia o estudo. Os dados a serem observados
metodologicamente são as figuras de retórica, o cenário, os esquemas narrativos e as
circunstâncias históricas e sociais.
O Oriente que aparece no seu objeto de análise é uma representação. O valor, a
eficácia e a veracidade baseiam-se muito pouco no próprio Oriente como existência
ontológica e real. O sentido interpretativo é dado pelo ocidente, que transforma o oriente em
amorfo, distante e caricatural.

O Orientalismo reagia mais à cultura que o produzia do que a seu suposto objeto,
também produzido pelo ocidente. A história do orientalismo, portanto, tem uma
coerência interna e um conjunto altamente articulado de relações para com a cultura
dominante que o circunda. Consequentemente, minhas análises tentam mostrar a
forma e a organização interna do campo, seus pioneiros, as autoridades patriarcais,
os textos canônicos, as ideias doxológicas, as figuras exemplares, seus seguidores,
elaboradores e novas autoridades; tento também explicar como o orientalismo se
apropriou de ideias “fortes”, doutrinas e tendências que regem a cultura. Tendo sido
frequentemente informado por elas. 160 (SAID, 2007, p.53)

Said afirma que sua perspectiva é histórica e antropológica, uma vez que os textos são
mundanos e cincunstanciais. O orientalismo é visto como um sistema de interrelações entre os
textos, o que não inibe a marca individual dos autores. A ideia é revelar a relação dialética
entre autor, contexto e formação coletiva para a qual a sua obra contribui.
Said justifica permanentemente a limitação da abrangência dos autores que formam
essa sistemática. Existe uma totalidade maior de autores que são excluídos por um recorte
geográfico e temático. O autor considera uma tarefa pretensiosa a abrangência das relações
entre conhecimento e poder. Said se refere ao seu público alvo e menciona os intelectuais que
estudam o oriente que deveriam pensar a sua genealogia intelectual e a crítica de pressupostos
não questionados.
160
Ibid, p. 53.
103

Na introdução ao Orientalismo, Said atesta a partir de uma frase de Gramsci que o seu
ponto de partida ou começo teórico é a sua autorreferência. Assim como em Gramsci, o ponto
de partida da elaboração crítica é a motivação do autoconhecimento como um produto do
processo histórico que teria depositado uma série de traços históricos, sem deixar um
inventário.
Said menciona a parte fundamental desse comentário quando Gramsci complementa
afirmando que seria imperativo compilar esse inventário. O esforço da aproximação para com
o Oriente tem relação com um inventário por meio de um rastreamento dos traços da cultura
oriental no seu self. A educação ocidental teria produzido uma falsa identidade que deveria ser
desvelada.
No final da introdução, Said cita Raymond Williams quando se refere ao esforço de
eliminação dos binarismos, e o progressivo desaprender do modo dominador inerente. O
primeiro capítulo “o alcance do orientalismo” pretende explorar as relações entre
conhecimento e poder na literatura do século XIX. Said extrapola o fato de o orientalismo ser
visto como uma mera racionalização do regime colonial, já que o regime colonial teria sido
justificado previamente pelo Orientalismo.
A tradição do Orientalismo é previamente articulada através de um vocabulário, um
imaginário, ou retórica que alimentariam a experiência desse discurso contemporâneo, que
oferece subisídios para o domínio colonial. Said vincula as experiências históricas do
neocolonialismo com o Orientalismo, sistematicamente engendrado como força cultural.
O progresso nas instituições e no conteúdo orientalista coincidiria com a expansão
européia de 1815 a 1914. O Orientalismo era compartilhado como um arquivo de forma
unânime. Sendo assim, havia um formato de experiência empírica e de uma forma de
pensamento.
O Orientalismo é um termo genérico que representa a abordagem ocidental do oriente;
o Orientalismo é a disciplina pela qual o Oriente era abordado de maneira sistemática, como
um tópico de erudição, descoberta e prática. Alguns eventos ou fatos históricos são vistos
como a encarnação do projeto Orientalista, como por exemplo; a ideia e a realização do canal
de Suez.
Said descreve o movimento linear da apropriação do Oriente pelo Ocidente, em um
movimento intelectual e por meio de um projeto político. Se a Ásia representava para o
Ocidente a distância silenciosa e a alienação, o Islã era a hostilidade militante ao cristianismo
europeu. O Oriente precisava ser conhecido, depois invadido e possuído, e recriado por
eruditos que desenterravam o Oriente permanentemente clássico que se sobrepunha ao
104

Oriente moderno. Este seria produzido, elaborado miticamente pelo contato que promovera a
modernização que vinha do Ocidente para o Oriente161.
Se o Orientalismo se inicia antes dos séculos XIX e XX, esse conteúdo deixa de ser
uma “geografia imaginativa” porque a distância entre a Europa e o Oriente se encurta em
função do expansionismo imperialista. A transição do discurso erudito para a realização
histórica imperial é percebida de forma evidente nos séculos XIX e XX.
Essa tradição criada a partir da reunião do conhecimento e da realidade devem ser
entendidas no sentido foucaultiano como a síntese da categoria “discurso”. Foucault adverte
para o fato de que todo discurso parte de uma produção controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por procedimentos que têm por função conjugar seus poderes, perigos e dominar
um acontecimento qualquer.

Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o
atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. Nisto
não há nada de espantoso, visto que o discurso – como a psicanálise nos mostrou –
não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo, é, também, aquilo que
é o objeto do desejo; e visto que - isto a história não cessa de nos ensinar – o
discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação,
mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. 162
(FOUCAULT, 2003, p.10)

Para Foucault (2003),163 o discurso deve ser imaginado como prática descontínua que
se cruza, pode se ignorar ou se excluir. O discurso não pode ser visto como um jogo de
significações prévias. O mundo não apresenta algo externo que possui um elemento
subliminar que deva ser decifrado.
O discurso é uma prática que nos impomos e nessa prática nós depreendemos alguma
regularidade. A compreensão fixa as fronteiras dessa sequência de acontecimentos na forma
de discurso. As noções servem de princípio regulador para a análise e pressupõem uma certa
regularidade.
Genealogicamente, Foucault trabalha o esfacelamento do homem mediante uma
estrutura maior que obscurece os mecanismos de poder. Seguimos a reflexão de François

161
Said se refere ao Oriente como uma “escola de interpretação”, como um mecanismo téorico, heurístico cujo
objeto aparece em função dos pressupostos teóricos. As ideias orientalistas podem aliar-se a teorias filosóficas
gerais e difundir hipóteses de mundo. Said distingue entre um orientalismo latente e um orientalismo manifesto.
O posicionamento quase inconsciente, intangível pode ser relacionado à versão latente, e as diversas visões
declaradas sobre sociedades, línguas, literaturas, história, sociologia orientais e outros tópicos são denominados
de orientalismo manifesto.
162
FOUCAULT, Michel, A ordem do discurso, SP; edições Loyola, 2003. P. 10.
163
Remetemos o pensamento de Foucault e termos genealógicos para utilizar uma categoria perntecente ao seu
escopo teórico ao pensamento Nietzchiano quando parte do pressuposto de que o homem se oculta mediante a
sociedade disciplinar. A figura do homem se dissolve mediante a passagem entre os modos de linguagem.
105

164
Dosse (2012) que entende o pensamento de Foucault (2003) como uma crítica radical da
temporalidade continuísta165e da absolutização dos valores. Dosse percebe a reflexão de
Foucault como uma crítica radical ao humanismo.
Foucault fala dos diferentes ritmos de mudança nas distintas ordens do saber. A
rapidez e o alcance da mudança histórica é representativa das regras de formação dos
enunciados. Foucault se interessa primordiamente por esse tipo de mudança166. Os regimes de
poder formam um objeto privilegiado nos livros, As Palavras e as Coisas e na História da
Loucura.
O homem, sujeito e dono da sua ação, desaparece, mediante os condicionamentos que
a totalidade da sociedade disciplinar promove. Essa sociedade aparece e é explicada através
do panoptismo, definido por Foucault como uma forma de poder que é exercida através da
vigilância individual e contínua, ilustrada nas formas de punição e controle. O panoptismo
possui uma dimensão que se desdobra numa tríade: vigilância, controle e correção. Estas
constituuem uma dimensão do poder.
As práticas discursivas a que alude Foucault para definir certas regularidades que se
concretizam em instituições, esquemas de comportamento, tipos de transmissão e difusão
devem ser inventariadas por meio de um método arqueológico que analisa a sua linguagem
em seus aspectos de descontinuidade.
Deleuze (2011)167 trabalha a análise do método arqueológico como uma metodologia
que se opõe à formalização e à interpretação. Nenhum enunciado pode ter existência latente,
já que está relacionado ao efetivamente dito. O enunciado é uma inscrição simples do que foi
dito. As palavras, frases e proposições são escolhidas como fragmentos aleatórios de indícios
de poder acionados por um determinado problema.
Said cita as seguintes obras de Foucault; A História da loucura, As palavras e as
Coisas (1981), A Arqueologia do saber (1987), Vigiar e Punir (1977), como bases históricas

164
DOSSE, François, A História, SP: Editora UNESP, 2012.
165
Foucault em entrevistas, respondendo ao problema da contunuidade histórica se explica dizendo que seus
argumentos foram iensuficientes no livro As palavras e as coisas. Ele afirma que em determinados contextos de
saber, as mudanças aparecem de forma menos continuístas, ele exemplifica com a biologia, a economia política,
a medicina, especialmente a psiquiatria. Estamos nos referindo a entrevista temática realizada com M. Fontana
publicado no livro; MOREY, Miguel (org.). Un diálogo sobre el poder y otras conversaciones , Madrid: Alianza
Editorial, 2008.
166
O problema em relação à descontinuidade histórica diz respeito a novidade de se pensar o recorte e o limite,
alheios ao fundamento que se perpetua. A nova forma de história fala de conceitos que simbolizam o limiar, a
ruptura, o corte, a mutação e a transfomação. A noção de descontinuidade exerce uma função importante na
história, porque representa o impensável, o que pode ser visto sob a natureza de acontecimentos dispersos;
decisões, acidentes, iniciativas, descobertas. Se antes a descontinuidade era o estigma da dispersão temporal que
o historiador tentava diluir na história, ela se tornou um elemento fundamental para análise histórica.
167
DELEUZE, Gilles, Foucault, SP: Editora Brasiliense, 2011.
106

de uma epistemologia que pode condicionar ou impedir os enunciados. As afirmações verbais


são sempre reguladas, como se o discurso completo não estivesse acessível, apenas uma parte
dele. A face externa das enunciações denota estruturas de poder que aparecem parcialmente.
O silêncio e a resistência ao poder disciplinador são gradualmente eliminados.
Os discursos devem ser entendidos como conjuntos de acontecimentos discursivos.
Estes se efetivam no âmbito da materialidade, “que é efeito; ele possui seu lugar e consiste na
relação, coexistência, dispersão, recorte, acumulação, seleção de elementos materiais; não é o
ato nem a propriedade de um corpo, produz-se como efeito de e em uma dispersão
material.”168

A elocução é governada por regras de formação difíceis de aprender, mas


impossíveis de evitar; contudo, o que Foucault chamou de discourse – que é a
produção regulada, o intercâmbio e a circulação de enunciados – assume e adquire a
aparência de uma autoridade social tão completa a ponto de legislar a prática de
dizer o que há para dizer, de modo exato e pleno. O que é excluído é impensável, em
primeiro lugar; ilegal e inaceitável, em segundo. Em seu estudo acerca do
nascimento da prisão, Foucault explica o que chama de sociedade disciplinadora, em
que o comportamento é regulado por uma microfísica do poder, cuja encarnação
perfeita ele encontra no Panopticon de Bentham. O silêncio do comportamento
delinquente é obrigado a falar, a se expor, a se ordenar diante do olho vigilante de
um observador autoritário silente, que não pode ser visto e que raramente se ouve
falar: o silêncio e, com efeito, a resitência ao poder disciplinador são gradualmente
eliminados.169 (SAID, 2003. P.269)

A adesão as ideias de Foucault se limitam a algumas categorias teóricas uma vez que o
autor se incomoda com o que ele chama de determinismo, resultado de uma desesperança
política onde mediante uma sociedade dominadora não haveria possibilidade de resistência
individual. Para Said a visão de história de Foucault se define numa concepção “privada,
excêntrica e insular.”170
O oriente admitido pelo orientalista no limite extremo está alienado da sua essência, é
não ativo, não autônomo, diferente de si mesmo ou em relação a si mesmo. No campo da
temática, os Orientalistas adotam uma abordagem essencialista das nações e dos povos do
Oriente. Na análise de Said essa essencialidade tem uma demarcação histórica e
simultaneamente a-histórica. Nesta predomina a especificidade inalienável que transpõe todas
as etapas históricas e que conforma uma identidade fixa e imutável.

No entanto – e neste ponto devemos ser muito claros -o Orientalismo atropelou o


oriente. Como um sistema de pensamento sobre o Oriente, sempre partiu do detalhe
específico para a afirmação geral; uma observação sobre um poeta árabe do século X
desdobrava-se numa política para com (e sobre) a mentalidade oriental no Egito, no

168
Ibid, p.58.
169
SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP; Editora Companhia das Letras, 2003. p. 269.
170
Ibid, p. 270.
107

Iraque ou na Árabia. Da mesma forma, um verso do Alcorão seria considerado a


melhor evidência de uma sensualidade muçulmana indelével. O orientalismo
supunha um oriente imutável, absolutamente diferente (as razões mudam de época
para época) do ocidente. E o orientalismo, na sua forma pós-oitocentista, nunca se
revisou. 171 (SAID, 2003, p.145)

A tipologia formada pela erudição orientalista seria camufladora de uma imutabilidade


que identifica a mesma cultura. Mesmo a tendência a dividir e subdividir não altera o
resultado de uma identidade. O oriente individual não transgride as categorias gerais que
elaboram o sentido da sua estranheza.
No artigo, O Orientalismo reconsiderado(2003), Said responde às críticas suscitadas
pelo seu livro e afirma que estaria abordando as questões de ordem teórica suscitadas pela
teoria do Orientalismo. Said reafirma o conceito de geografia imaginativa, como uma linha
imaginária que separa o Ocidente do Oriente. Recorrendo a Vico e ao “mundo das nações”,
Said afirma que o Oriente e o Ocidente eram categorias criadas, elaboradas e, portanto,
analisadas como componentes de natureza social.
Said reafirma a contínua realidade política do orientalismo. O autor define que o livro
não é uma defesa enfática do mundo árabe ou do Islã na forma de um manifesto, ao mesmo
tempo em que recusa pensar as categorias de Islã, Ocidente, Oriente, como realidades
ontológicas. Said as define como “comunidades de interpretação”, em que cada categoria
representa interesses, projetos, ambições, simbolismos e retóricas que estavam em confronto
histórico.
Said cita nominalmente os teóricos que elaboraram argumentos muito semelhantes aos
seus em outras obras, anteriores ao Orientalismo. São eles; A. L. Tibawi, Abdulllah Laroui,
Anwar Abdel- Malek, Talal Assad, S. H. Alatas, Frantz Fanon, Aimé Cesaire, Sardar K. M.
Pannikar e Romila Thapar. Todos os escritores vivenciaram o imperialimo e em certa medida,
desafiaram as autoridades coloniais na leitura particular do mundo oriental.
A proposta de Said, distante de um posicionamento crítico acerca do verdadeiro
Oriente, passa por uma vigilância metodológica que repensa o Orientalismo sob o viés crítico
político, e que possibilita o repensar do isolamento do Oriente em função dos estereótipos. A
parte mais frágil do artigo em questão nos remete ao levantamento dos representantes
clássicos e contemporâneos do chamado Orientalismo. Os argumentos teóricos para
deslegitimar a historiografia de Bernard Lewis e Daniel Pipes são coerentes, porém quando

171
Ibid, p. 145.
108

seus argumentos se dirigem ao recorte corporativista da casta de Orientalistas, aos dogmas e


procedimentos disciplinares autoexaltadores, não nos parece convincente.
Ao reconsiderar o Orientalismo e responder as críticas recebidas pela escrita do livro,
Said parece realçar os vínculos políticos explícitos dos estudiosos com a defesa do sionismo,
o apoio a Israel e o ataque ao nacionalismo palestino. As críticas interpretativas e teóricas
sobre os textos que conformam uma representação caricata do oriente parecem secundárias.
Said fundamenta que o cenário teórico do Orientalismo se afina com o historicismo. O
fundamento epistemológico inerente ao Orientalismo tem relação com a ideia de que a
humanidade tem uma história que conforma uma unidade complexa, porém coerente e o telos
dessa evolução seria a Europa. O “outro” teria que ser enquadrado nesse universal europeu.
As teorias de acumulação mundial dependem de um observador único, historicista e
Orientalista que elabora um projeto histórico mundial homogeneizante. Este deve enquadrar e
assimilar as culturas, os povos e histórias não sincrônicas.
O autor do Orientalismo denomina o “essencialismo sincrônico” por meio do
pressuposto que todo Oriente pode ser visto panopticamente. A fonte da pressão constante é
narrativa, na medida em que todo detalhe oriental se move ou se desenvolve de acordo com
uma diacronia prévia. O que era sinônimo de estabilidade, entidade imutável, parecia muito
instável diante da história. A história desestabiliza a categoria ontológica incondicional e
comete uma injustiça para com o potencial de mudança inerente à qualquer contexto.

Formalmente, o orientalista se vê realizando a união do Oriente e do Ocidente, mas,


sobretudo, para reafirmar a supremacia tecnológica, política e cultural do Ocidente.
A história, nessa união, é radicalmente atenuada, se não banida. Vista como uma
corrente de desenvolvimento, como um fio narrativo ou como uma força dinâmica
que se desenrola sistemática e materialmente no tempo e no espaço, a história
humana – do Leste e do Oeste – está subordinada a uma concepção essencialista,
idealista do ocidente e do Oriente. Como sente estar bem na margem da linha
divisória Leste-Oeste, o Orientalista não só fala em vastas generalidades; ele
também procura converter cada aspecto da vida oriental ou ocidental num sinal não
mediado de uma ou outra metade geográfica.172 (SAID, 2007 p.332)

Said conclui defendendo um antiparioquialismo na produção do conhecimento e


adverte para os riscos da formação de consensos políticos portadores de políticas amplas. Se a
modernidade aponta para o limiar da especialização, da fragmentação que impõem uma
atitude defensiva, isso inibiria a contrahegemonia. Said conclui defendendo uma postura

172
SAID, Edward W, O Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente, SP: Editora Companhia das Letras.
2007.p.332.
109

diferenciada do intelectual, premido pela condição de um pensador crítico que deve prezar
pelo esforço de um posicionamento polticamente mais ativo.
O Orientalismo é um produto de um pensamento desumanizado. Em um certo sentido
as limitações do Orientalismo surgem após a essencialização e o desvelamento de uma outra
cultura. O Ocidente seria um ator e o Oriente um coadjuvante passivo. O estudioso do Oriente
se considerava um herói resgatando o Oriente da obscuridade.
O Orientalismo (1978) integra uma trilogia, onde a questão da representação do
Oriente aparece como central. A trilogia da qual o Orientalismo faz parte, abrange os livros:
Covering Islam: How the media and the experts determine how we see the rest of the world
(1981) e A Questão da Palestina (1979).
O livro Covering Islam retrata a maneira como o Ocidente percebe o mundo islâmico
em conexão com a maneira como os sionistas retrataram a Palestina, vista como um lugar
vazio. A representação do Islã é revista na medida em que Said critica essa essencialidade
vista como o reduto do terrorismo e do irracionalismo. Percebemos uma estreita conexão com
as reflexões presentes no Orientalismo.
Said afirma que parte do seu trabalho no Orientalismo deriva da experiência de ter
sido colonizado pelos ingleses ou israelenses. A questão política e a abordagem teórica são
indissociáveis. O autor afirmava que seria difícil definir hierarquicamente o que viria
primeiro.

And I think to a certain extent that has been true of my overtly political stuff, but the
theoretical work, I feel less so, it´s hard to know what that derives from. Orientalism
was really the first book I wrote which tried to bring together the two aspects of my
life. But that was in the mid-seventies, when I had already written Beginnings and
many other things. 173( ASHCROFT, 2004, p.162)

O diálogo de Said com os estudos pós-coloniais despertou o interesse teórico de


inúmeros comentadores da sua obra, especialmente sociólogos que trataram de estabelecer
uma rede de conexões, marcando uma escola de pensamento.
Para Sérgio Costa174 o hibridismo175, conceito caro ao nosso autor palestino, é
definidor de fronteiras conceituais tanto quanto o nacionalismo, o nativismo, ou o

173
ASHCROFT, Bill, Conversation with Edward W. Said, In: SINGH, Amritjit, JOHNSON, Bruce, G. (eds.),
Interviews with Edward W. Said, University Press of Mississipi, 2004. P. 162. “E eu penso que, até certo ponto,
tem sido verdadeira a minha matéria evidentemente política, mas que o trabalho teórico, isso eu sinto menos, é
difícil saber de onde vem. O Orientalismo foi realmente o primeiro livro que escrevi onde tentei reunir estes dois
aspectos da minha vida. Mas isso foi em meados dos anos 1970, quando eu já havia escrito Beginnings e muitas
outras obras.” (tradução nossa).
174
COSTA, Sérgio, Dois Atlânticos, Teoria Social, anti-racismo, cosmopolitismo, BH: Editora da UFMG, 2006.
110

vanguardismo. Nesse contexto, uma visão menos ingênua parte de uma alternativa para a
desconstrução da antinomia Ocidente/Oriente que não se resume à inversão do lugar de
enunciação colonial. Costa ressalta a busca de um reposicionamento intermediário, cujo lugar
de enunciação extrapole os riscos essencialistas na transgressão das fronteiras culturais.
O paradoxo teórico aparece na medida em que Said reafirma a materialidade das
identidades e, ao mesmo tempo, reconhece o grau de construção teórica das mesmas. O
dilema em torno da representação do colonizado no processo colonial implica reflexão em
torno de uma oscilação entre o reconhecimento da fala da alteridade e a elaboração do arquivo
colonial como uma suposta “comunidade de interpretação”.

A dificuldade da questão é que não há um ponto de observação fora das relações


concretas entre culturas, entre potências imperiais e não imperiais, entre diferentes
outros, uma perspectiva que desse a alguém o privilégio epistemológico de julgar,
avaliar e interpretar livre dos interesses, das emoções e dos compromissos das
relações em andamento. 176 (SAID, 2003, p.127)

Aqui reconhecemos o problema da representação em dois sentidos, no âmbito da


afirmação do sujeito através do outro e por meio dos limites do realismo representacionista.
Como um tributário parcial da obra de Michel Foucault, Said nega a existência de um Oriente
real e opera na crítica desconstrutiva de um Oriente produzido pelo Ocidente.

Mas como todas as capacidades enunciativas e os discursos que elas possibilitam, o


Orientalismo latente era profundamente conservador – isto é, dedicado a sua
autopreservação. Transmitido de uma geração à outra, era uma parte da cultrua, uma
linguagem sobre uma porção da realidade tanto quanto a geometria ou a física. O
Orientalismo sustentava sua existência, não em seu caráter aberto, na sua
receptividade ao Oriente, mas na coerência interna e repetitiva sobre sua vontade-de-
poder constitutiva sobre o Oriente. Dessa maneira o Orientalismo foi capaz de
sobreviver a revoluções, a guerras mundiais e ao literal desmembramento de
impérios. 177 (SAID, 2007, p.300)

O discurso é uma configuração que pressupõe simultaneamente um dilema teórico e


uma escolha política. Se, por um lado, temos uma defesa veemente da possibilidade da
agência humana, por outro, Said recorre ao sistema foucaultiano para atestar o caráter
fronteiriço e discursivo do objeto. Para Said, Foucault investe numa dupla escrita, dirigida em
primeiro plano a descrever os textos que analisa como discurso, arquivo, enunciado e

175
O conceito de hibridismo tal como desenvolvido na obra de Homi Bhabha tem sua origem na análise do
linguista Mikhail Bakhtin que distingue a mescla de duas linguagens sociais no interior de uma mesma
afirmação e ressalta o dialogismo de duas linguagens a partir de um “hibridismo intencional”.
176
SAID, Edward W., Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP: Editora Companhia das Letras, 2003. P.127.
177
SAID, Edward W, O Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente, SP: Editora Companhia das
Letras,2007. p.300.
111

posteriormente apresenta uma narrativa sua que define aquilo que os outros textos invisíveis
teriam reprimido, sublimando uma outra possibilidade de fala.
O método arqueológico supostamente revela como o discurso impessoal, sistemático,
regulado por formações eniunciativas que anulam a sociedade e governa a produção da
cultura. A tese que Foucault defende parte do pressuposto que as afirmações individuais, ou
as oportunidades de que os autores individuais possam formular afirmações individuais não
são realidades prováveis.
O discurso faz parte de uma ordem com estabilidade baseada na autoridade e no poder
regulador do conhecimento178. Said ressalta a visão espacial que Foucault tinha das coisas.
Por isso, a predileção pela análise dos espaços, territórios, esferas e sítios descontínuos e
reais. Os discursos são extensões das instituições.179

Mas a perspectiva de Foucault é que no período moderno, ao qual ele pertence, há


uma expansão incessante e irrefreável do poder que favorece os administradores,
gerentes e tecnocratas do que ele chama de sociedade disciplinar. O poder – escreve
ele em sua última fase – está em toda a parte. Ele é dominador, cooptador,
infinitamente detalhado e inelutável no crescimento de sua dominação. A tendência
histórica que me parece ter dominado Foucault intelectual e politicamente em seus
últimos anos era aquela que ele percebia – de modo incompleto, penso eu – como
cada vez mais coerente e unidirecional, e foi essa tendência que o levou das
diferenciações e sutilezas no interior do poder, em A ordem do discurso e A
Arqueologia do saber, à visão hipertrofiada do poder em obras posteriores, como
Vigiar e Punir e o primeiro volume de A História da sexualidade.180 (SAID, 2007,
pp.94/95)

Mediante um aparente dilema ilustrado pela associação entre o crítico e o militante,


defensor da causa palestina, a sua trajetória parece oscilar entre o uso parcial da teoria
foucaultiana e um posicionamento político humanista partidário da resistência colonial.
A crítica de Said à Foucault opera no âmbito da rejeição ao determinismo de uma
sociedade disciplinadora que pode ser resultado de uma ampla desesperança política e da
impossibilidade de resistência à dominação.
Said afirma que a compreensão de Foucault sobre o poder institucionalizado não é o
suficiente para o compromisso engajado politicamente. Na recusa foucaultiana de uma
cumplicidade com o poder, há uma expansão esvaziadora dessa categoria. O esvaziamento
diminui o contraponto ou o contraste possível de uma dualidade definidora.

178
Said se refere ao Orientalismo latente, que pode ser entendido como um repertório munido de uma
capacidade enunciativa que podia ser usada ou mobilizada num discurso sensato para a ocasião concreta do
momento.
179
Foucault se refere a diversos períodos, épocas, epistémes, totalidades que constituem a cultura dominante no
interior das insituições que a controlam
180
Ibid, pp..94/95.
112

A autonomia foucaultiana incomoda o autor palestino que busca diagnosticar as


relações de poder, objetivando um campo de resistência. No âmbito de se refletir sobre as
instituições sociais com seus poderes normalizantes, o autor minimiza a agência humana.
Foucault não legitimava o poder e seus danos. Seu interesse pela dominação era
crítico, mas não contestatório. O paradoxo da revelação das artimanhas do poder e do
descontrole humano sobre a sociedade sem cogitar mecanimso de resistência à sociedade
disiciplinar parece insuficiente na visão de Said. Este autor aponta o conflito entre as
arqueologias de Foucault e a própria mudança social.
Said contrapõe, Gramsci e Raymond Williams à Foucault, na medida em que os
primeiros pensadores operam com a possibilidade de uma consciência emergente ou
alternativa, incorporada em diversos grupos sociais no interior da sociedade discursiva
dominante.
Said atua alternadamente entre um marco epistemológico que rejeita a estabilidade da
identidade do colonizado e a referida crença no reconhecimento de uma identidade nacional,
ainda que remetida ao entrelaçamento entre diversas histórias, a do colonizador e a do
colonizado.

Quanto a mim, não consegui viver uma vida sem compromisso ou suspensa: não
hesitei em declarar minha filiação a uma causa extremamente impopular. Por outro
lado, sempre me reservei o direito de ser crítico, até mesmo quando isso entrava em
conflito com a solidariedade ou com o que os outros esperavam em nome da
lealdade nacional. Há um desconforto claro, quase palpável, nessa posição,
especialmente tendo em vista a irreconciliabilidade dos dois públicos e das duas
vidas que eles exigiram.181 (SAID, 2003, p.312)

Para alguns autores tributários do pensamento pós-colonial, a análise do discurso


incide na assimetria irreversível entre o Ocidente e o outro. A desconstrução do binarismo que
se constituiu na relação colonial e se perpetuou após a extinção do colonialismo acaba por
orientar a produção do conhecimento. O reconhecimento do caráter discursivo do social
estimula uma relativa proximidade entre o pós-colonialismo e o pós-estruturalismo.
Devemos desenvolver a perspectiva de Said, ressaltando a sua abordagem do
Orientalismo e demonstrando como essa leitura cria dilemas inerentes à sua démarche teórica.
A manifestação do vínculo entre a prática textual acadêmica e as relações de poder é o que
está subjacente na crítica que Said faz do discurso Orientalista.
Os estudos Pós-Coloniais buscam alternativas para a desconstrução da antinomia
Ocidente/Oriente que sejam distintas da simples inversão do lugar da enunciação colonial. A

181
SAID, Edward W. , Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP: Companhia das Letras, 2003. Página 312.
113

desconstrução do essencialismo no discurso pós-colonial supera a visão simplista de uma


mera inversão do protagonismo no discurso. O problema da mediação do conhecimento é
umas das questões centrais para a démarche teórica do autor Palestino. Essa temática induz ao
problema da representação do intelectual na sua obra.
O intelectual pensado por Said caracteriza-se pelo que denominamos de “hibridismo”
identitário, para além dessa definição, identificamos na sua experiência um estado de tensão
irreconciliável entre o estético e o social.
As fronteiras da identidade são construídas no interior do processo histórico, por isso
devem ser remetidas à diacronia histórica, ilustradas no encontro colonial. O grau de
universalização do termo pós-colonial, assim como o seu teor crítico é amplamente debatido
no artigo de Stuart Hall, Quando foi o pós-colonial? Pensando no limite.

O termo se refere ao processo geral de descolonização que, tal como a própria


colonização, marcou com igual intensidade as sociedades colonizadoras e as
colonizadas (de formas distintas, é claro). Daí a subversão do antigo binarismo
colonizador/colonizado na nova conjuntura. De fato, uma das principais
contribuições do termo “pós-colonial” tem sido dirigir nossa atenção para o fato de
que a colonização nunca foi algo externo às sociedades das metrópoles imperiais.
Sempre esteve profundamente inscrita nelas – da mesma forma como se tornou
indelevelmente inscrita nas culturas dos colonizados. Os efeitos negativos desse
processo forneceram os fundamentos da mobilização política anticolonial e
resultaram no esforço de retornar a um conjunto alternativo de origens culturais não-
contaminadas pela experiência colonial. 182 (HALL, 2006, p.102)

O esforço e a maneira pela qual cada autor, tributário ao pensamento pós-colonial,


compreende as diferenças de identidade sem recorrer aos chamados binarismos é diverso e
complexo. Os autores identificados por esse campo de reflexão contemplam uma agenda de
investigações que abrange uma releitura da “descolonização” como parte de um processo que
prevê uma reescrita descentrada e diaspórica. Esta leitura pode passar por uma orientação pós-
estruturalista ou contextualista.
Ao acompanhar a démarche teórica saidiana, o paradoxo entre humanismo crítico e
mediação autoral persiste. Ao tratar do livro Orientalismo, O Oriente como invenção do
Ocidente, o antropólogo James Clifford (1988)183 refere-se à abordagem do Orientalismo
como dedutiva e construtivista.

182
HALL, Stuart, “Quando foi o pós-colonial? Pensando no limite”, In: SOVIK, Liv, (org.), Da Diáspora ,
Identidades, e mediações culturais, BH: Editora da UFMG, 2006, p. 102.
183
O artigo On Orientalism do antropólogo James Clifford sintetiza um debate extremamente rico sobre os
paradoxos teóricos e os respectivos limites epistemológicos inerentes à proposta de desconstrução crítica da
representação ocidental acerca do Oriente. O artigo constituiu-se como referência para muitos leitores de Said e
fonte de debate para o próprio autor que fez menção a esse artigo em muitos dos seus escritos posteriores que
reconsideram a proposta construída no Orientalismo. Clifford publicou esse artigo na revista History and Theory
114

Ver o Orientalismo como um “discurso” alinha a perspectiva saidiana à metodologia


de Michel Foucault. Said afirma que o interesse na obra de Foucault se alinhava ao interesse
pela sistematicidade do discurso.184 Clifford questiona essa ramificação teórica ao reconhecer
um distanciamento de métodos, uma vez que a análise textual foucaultiana foi desenvolvida
por meio de um método “arqueológico”, e a abordagem do Orientalismo é claramente
genealógica.
Se a vinculação entre Orientalismo e Colonialismo não era tematicamente original,
outra fragilidade teórica aparece na postulação de uma identidade estável de sujeito-objeto e
na distinção ontológica e epistemológica entre os dois, o que provoca um movimento de
essencialização do Ocidente que é exatamente o que Said critica na produção Orientalista
acerca do Oriente.
O campo do Orientalismo é genealogicamente distribuído de duas maneiras:
sincronicamente, por meio de um sistema unificado de todas as versões textuais ocidentais do
Oriente, e diacronicamente, estabelecendo uma linhagem única de colocações sobre o Oriente,
do passado para o presente. Said insiste na descrição retrospectiva e contínua das estruturas
orientalistas nos séculos XIX e XX.
O Ocidente fala de um Oriente mudo, passivo e imutável. Quem está autorizado a falar
pelo “outro”, esvaziando o seu aspecto verossímil? A visão orientalista e a sua respectiva
“textualização” suprime a autêntica realidade humana. Essa realidade está enraizada no
discurso recíproco como oposto ao processo da escrita.
Todas as definições culturais devem ser colocadas sob suspeita devido ao potencial de
distorção da linguagem. Said escreve sobre o seu dilema partindo da convicção de que o
conhecimento “puro” não existe, pois está estreitamente relacionado ao poder.
Devemos ressaltar duas reflexões de Clifford apropriadas para nossa temática: a
primeira sintetiza a contradição entre o Said que apela para o realismo existencial “à moda
antiga” e opera no interior do criticismo teórico; a segunda está representada pela suspeita de
uma crítica ao Orientalismo que corre o risco de produzir o “Ocidentalismo”.

19[2], fev. em 1980 e o mesmo artigo pode ser encontrado na sua obra The Predicament of Culture, Twentieth-
Century Etnography, Literature, and Art, Massachusetts: Harvard University Press, 1988. Estamos trabalhando
com a última versão.
184
Com base na leitura das entrevistas com Edward W. Said, percebemos uma preocupação do autor em ressaltar
diferenças na maneira com que Foucault se posiciona em relação aos movimentos sociais. Apesar do interesse
nas primeiras obras do autor francês, Said afirma que a política os distanciava na medida em que a militância
palestina reivindicava o apelo à possibilidade da agência humana.
115

Podemos sintetizar o diagnóstico de Clifford a partir de uma extensa inconsistência


que aparece na aspiração humanística que requer algum tipo de “agência” e o convívio com a
renúncia do sujeito no esquema foucaultiano.
O Orientalismo185 de Said não reduz o mecanismo ativo de crítica política a um
sistema de poder traduzido por meio de referências culturais. Trata-se de um exercício de
crítica textual e de um conjunto de reflexões epistemológicas sobre procedimentos de
discursos culturais. O Orientalismo é uma totalidade complexa que aparece na forma de
discurso. O discurso orientalista é caracterizado por uma sistematicidade expressiva, revelado
na forma de textos representativos e de experiências.
Clifford chama a atenção para o discurso saidiano e sua oscilação entre o status da
distorção ideológica das culturas e a sua escassa concretização. A importância da reflexão
sobre o Orientalismo está na chave teórica para a abordagem da formas de pensamento e
representações de como lidar com “o outro”.
O autor citado, na condição de antropólogo, valoriza a chave de leitura do
Orientalismo direcionada à reflexão epistemológica das interpretações sobre as culturas
estrangeiras e outras tradições. A leitura alternativa ao Orientalismo estaria na hermenêutica
cultural de Erich Auerbach, Curtius ou Clifford Geertz. Said retorna à circularidade de quem
fala no fundo do Ocidente, e não do Oriente. Sua tarefa no Orientalismo é desmantelar um
discurso elaborado e esclarecer o “arquivo colonial” criado pelo Ocidente.
A leitura crítica de Clifford indica que o empírico separa Said de Foucault. O
experimento de Said parece mostrar que, quando a avaliação do autor e a tradição se mesclam
com a análise de formações discursivas, o efeito é o enfraquecimento mútuo.
Todos os comportamentos são regulados pela Microfísica do poder, não há espaço
para os silêncios ou para os discursos dissidentes, até mesmo a dissonância é regulada pelo
hegemônico.
Said não consegue aceitar as construções foucaultianas que inibem a possibilidade do
silêncio. Um mundo de discursos e enunciados autoritários não fornece espaço para as
“penumbras”. Essa leitura nos remete ao esvaziamento de um determinismo que poderia
diminuir a ambivalência da obra de arte. O discursivo e o material se manifestam em
permanente tensão na sua obra.

185
O que desperta a atenção de Said é a peculiar estrutura epistemológica pela qual o Oriente era visto, a partir
do qual as potências agiam. apesar das diferenças britânicas e francesas, o Oriente era visto como uma entidade
geográfica – e cultural, política, demográfica, sociológica e histórica - sobre cujo domínio eles acreditavam
possuir um direito tradicional. A relação entre o Oriente e os Orientalistas era hermenêutica, afirmava Said. O
objeto de difícil alcance, quase ininteligível segundo os padrões europeus, deveria ser desvendado, quase como
um texto cifrado.
116

Foucault elabora uma crítica ao projeto de uma História totalizante, afinada com um
projeto de uma história geral construída a partir das descontinuidades, das rupturas e do
entrecruzamento de séries organizadas pelo historiador. Nessa perspectiva, o autor repensa a
presença do sujeito na História, minimizando a importância do seu papel como protagonista
das ações racionais e conscientes.
Nesse contexto, somos constituídos por relações de poder, somos mais produtos do
que produtores e estamos envolvidos em formas de agenciamento alimentadas pelo poder e
pela formação dos saberes que nos instituem, codificando e classificando o discurso. Este não
pode ser compreendido como reflexo do real. A realidade não antecipa o seu produto
histórico: o discurso.

Certamente a História há muito tempo não procura mais compreender os


acontecimentos por um jogo de causas e efeitos na unidade informe de um grande
devir, vagamente homogêneo ou rigidamente hierarquizado; mas não é para
reencontrar estruturas anteriores, estranhas, hostis ao acontecimento. É para
estabelecer as séries diversas, entrecruzadas, divergentes muitas vezes, mas não
autônomas, que permitem circunscrever “o lugar” do acontecimento, as margens de
sua contingência, as condições de sua aparição.”186 (FOUCAULT, 1996, p.54)

Para Foucault, as práticas discursivas devem ser concebidas como formas de ação no
mundo, práticas que, quando exercidas provocam efeitos como qualquer outra ação. Este
autor adotou o termo para expressar as condições de uso dos discursos, conjuntos de
enunciados ou formações discursivas que possibilitam o exercício dos saberes, operando e
instituindo acontecimentos em campos estratégicos.
Sendo assim, não há verdades ou discursos que não estejam ligados às inúmeras
condições históricas: (enunciados, posicionamentos, instituições que os fazem funcionar).
Aquilo que chamamos cultura não possui nenhuma unidade de estilo, é antes uma confusão de
práticas discursivas rigorosamente interpretáveis, discursos que constituem as condições de
possibilidade de toda ação.
As práticas discursivas instituem identidades sociais e objetivam o fato histórico
dando-lhes visibilidade. A audácia epistemológica de Foucault aparece na evidência do papel
dos discursos, suas estreitas conexões com os saberes e os poderes, e suas respectivas relações
recíprocas. O discurso é tomado como um conjunto de estratégias que forma parte das práticas
sociais.
Foucault irá postular a centralidade do acontecimento ao considerar que um enunciado
é sempre um acontecimento, na medida em que sua análise não pode ser reduzida ao sentido e

186
FOUCAULT, Michel, A ordem do discurso, SP: Edições Loyola, 1996. P. 54.
117

ao referente. Este autor acreditava que a prática discursiva de uma época encontra o motivo de
sua escolha em suas formas intensificadas e nos seus textos canônicos.
Há um forte pressuposto de que a produção do discurso é, ao mesmo tempo,
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um conjunto de procedimentos que
tem por função delimitar o acontecimento aleatório e dotá-lo de materialidade. O autor é um
princípio de agrupamento do discurso, ele é o foco da sua coerência. O acontecimento atualiza
o elemento descontínuo, possibilitando inúmeras leituras historiográficas. Por isso, Foucault
estabelece limites sem os quais a unidade do discurso não faria sentido.
Ao rever a história tradicional das ideias, Foucault fala das quatro noções que servem
como princípio regulador para a análise do discurso: a noção de acontecimento, a de série, a
de regularidade e a de condição de possibilidade. Estas formariam um contraponto a uma
procura limitada pelo ponto da criação, pela unidade da obra ou pela marca da originalidade
individual.
A materialidade histórica dos discursos nos remete ao conceito de “práticas
discursivas”, entendidas na descontinuidade temporal. Estas se materializam nas instituições,
nos esquemas de comportamento, nos tipos de transmissão, difusão e em formas pedagógicas.
A própria noção de discurso como uma prática é resultante de determinações reguladas
num momento dado por um grupo completo das relações entre as práticas discursivas e as
práticas não discursivas. Esta definição faz uma permanente alusão à História e uma
diminuição do peso do linguístico ou do significante.
A correlação com os acontecimentos exteriores suscita uma mobilidade dos discursos
ao sabor do ritmo temporal dos eventos. Definir as condições de propensão da aparição dos
enunciados deve prescindir da causalidade mecanicista.

Há por exemplo, enunciados que se paresentam – e isso a partir de uam data que se
pode determinar facilmente – como referentes á economia política, ou a biologia, ou
a psicopatologia; há também, os que se apresentam como pertencentes a essas
continuidades milenárias – quase sem origem - que chamamos gramática ou
medicina. Mas o que são essas unidades?187 (FOUCAULT, 1987, p.35)

Foucault responde a sua própria questão com algumas hipóteses. Os enunciados


diferentes em sua forma, dispersos no tempo, formam um conjunto que tratam do mesmo
objeto. A unidade temática permite individualizar um conjunto de enunciados? Parece mais
complicado que supor apenas a existência de uma unidade temática. Foucault coloca que a

187
FOUCAULT, Michel, Arqueologia do saber, RJ: editora Forense universitária, 1987. P.35.
118

questão é saber se a unidade de discurso é feita pelo espaço onde diversos objetos se perfilam
e se transformaram, uma situação distinta da permanência e singularidade de um objeto.
A segunda hipótese versa sobre definir um grupo de relações entre enunciados; sua
forma e seu tipo de encadeamento. A terceira hipótese origina-se do critério de agrupamento
que pode advir dos conceitos permanentes e coerentes. Foucault propõe e desconstroi
afirmando as dificuldades da reconstituição da arquitetura conceitual da gramática. A
genealogia dos conceitos pode complexificar esse agrupamento em função do surgimento de
novas categorias e suas interelaçoes.
A quarta hipótese defende que para reagrupar os enunciados, descrever suas
vinculações é preciso uma relação com a identidade e persistência dos temas. Essas quatro
hipóteses acabam conduzindo a lógica de explicação da formação dos enunciados e seus
agregados, para além da sua organziação formal ou para além da situação do sujeito falante,
seu psiquismo ou contexto de origem.
Foucault188define a pratica discursiva “como um conjunto de regras anônimas,
históricas,sempre deteminadas no tempo e no espaço, que definiram, em uam dada época e
para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de
exercício da funçã enunciativa.”189
Além do conceito de discurso, a categoria de poder possui uma importância central
para o autor analisado em nossa tese. O poder em Foucault, primeira inspiração para se refletir
sobre essa categoria na produção de Edward W. Said, é menos visto como uma propriedade
do que uma estratégia relacionada com uma conduta. Seus efeitos são relacionáveis com
“disposições, manobras, táticas e técnicas, modos de funcionamento.”190
O poder significa uma relação de forças, que não se configura jamais no singular, pois
seu aspecto primordial é sempre relacional. O poder se configura como exercício e o saber é
um regulamento.191

188
Na conclusão do livro A arqueologia do saber, Foucault parece refutar o método estruturalista, onde ele
mesmo afirma que está recusando a transcendência do discurso, ou a sua relação com o campo da subjetividade.
Foucault afirma que não quis excluir o sujeito, embora estivesse centrado em mostrar diferentes práticas
discusivas distintas umas das outras, definindo as posições e funções que o sujeito podia ocupar na diversidade
dos discursos.
189
Ibid, p.136.
190
Tomamos como ponto de partida o livro sobre Foucaut do filósofo, Gilles Deleuze (2011). Destacamos a
parte em que ele debate o conceito de poder no contexto do livro Vigiar e Punir. O título do capitulo em
destaque: “Um novo Cartógrafo, Vigiar e Punir”,
191
As instituições não são essências estáveis, não têm interioridade. É como se não existisse estado apenas uma
estatização. As relações de poder que ela integra são relações estabelecidas com outras instituições, com
repartições que mudam de um estrato a outro.
119

Diferente de uma concepção do poder como um elemento intrinsecamente relacionado


ao estado, Foucault demonstra que o próprio estado aparece como efeito de conjunto ou
resultado de uma multiplicidade de mecanismos e focos que se constituem uma “microfísica
do poder”. As sociedades modernas são vistas como sociedades disciplinares, cujos
mecanismos convergem e aparecem em todas as esferas insitucionais. As relações de poder
não se configuram em engrenagens externas vistas como superestruturas e sim como
estruturas produtoras das relações no interior de uma imanência.
Deleuze estabelece vínculos entre a Arqueologia do saber192 e o livro Vigiar e
Punir193. Na Arqueologia do saber, o autor propõe uma difenciação entre dois tipos de
formações políticas, a saber: as “discursivas” e as “não-discursivas”. Foucault perseguia a
forma do visível em contraste com os enunciados, embora este insista em afirmar que não
existe conformidade necessária, ou mesmo correpondência entre as duas formas.
Deleuze (2011) define a filosofia de Foucault como uma pragmática do múltiplo. O
devir de forças aqui demarcadas está em constante movimento, é um lugar percebido na
descontinuidade. Por isso inibe as essências ou definições. Os enunciados denunciam as
mudanças da conjuntura.

Certamente os meios produzem também enunciados, e os enunciados também


determinam os meios. Além disso, as duas formações são heterogêneas, apesar de
inseridas uma dentro da outra: não há correspondência nem isomorfismo, não há
causalidade direta, nem simbolização. A arqueologia tinha então um papel de
charneira: ela colocava a firme distinção das duas formas, mas , como se propunha a
definir a forma dos enunciados, contentava-se em indicar a outra forma,
negativamente como o “não-discursivo.194 (DELEUZE, 2011, p.41)

Deleuze localiza o problema da superação da dualidade especificamente no debate


inerente ao Vigiar e Punir. O problema da multiplicidade aparece nesse contexto. Se o saber
consiste em entrelaçar o visível e o enunciável, o poder é sua causa precedente, mas o poder
também implica saber, sem esta diferenciação não haveria o ato. O saber pressupõe relações
de poder que se manifestam na transição do visível ao enunciável e o inverso também se
concretiza.
O livro A arqueologia do saber desenvolve a relação não hierárquica entre o
enunciado e o visível. O primado do enunciado não siginfica que um elemento se reduza ao
outro. Deleuze aponta que o visível não possui o mesmo ritmo que o campo de enunciados. O
saber contempla um dispositivo de enunciados e visibilidades.
192
FOUCAULT, Michel, Arqueologia do saber, RJ: Editora Forense Universitária, 1987.
193
FOUCAULT, Michel, Vigiar e Punir, nascimento da prisão, Petrópolis: EditoraVozes, 1997
194
DELEUZE, Gilles, Foucault, SP: Editora brasiliense, 2011. P. 41.
120

Segundo Foucault o objeto na sua materialidade não pode ser dissociado dos registros
formais denominados nesse contexto como discursos. O filósofo parte do detalhe fáctico para
a denominação teórica, que culmina no discurso. Este é o elemento que será heuristicamente
analisado. O mecanismo analítico se origina no que se fazia e se dizia para com o esforço
intelectual chegar ao discurso. Este demonstra ilustrativamente a singularidade histórica, a
inexistência das verdades gerais ou trans-históricas.
A metodologia é arqueológica é leva à análise do discurso, à explicitação das
diferenças entre formações históricas e o fim das derradeiras ideias gerais. Seu recurso
analítico será a prática cotidiana, a hermenêutica, e a elucidação do sentido. Seu método
incide na compreensão do que o autor do texto queria dizer no seu tempo.
O problema foucaltiano tem relação com a ausência da consciência subjetiva, ou a
ausência do sujeito que permanece invisível. O discurso provoca a variedade da história
distante da totalidade. Era preciso explicitar a particularidade de cada época histórica, sem
levar em conta metonimicamente a parte pelo todo.
É certo que um discurso, com o seu dispositivo insitucional e social, é um status quo
que só se impõe enquanto a conjuntura histórica e a liberdade humana não o substituem por
outro. Saímos da nossa “redoma” provisória sob a pressão dos novos acontecimentos do
momento ou ainda porque um homem inventou um discurso e teve sucesso. Configuramos o
discurso como uma redoma. Esta definição pode ser entendida como um a priori histórico.
Paul Veyne195 refuta a categoria de discurso em Foucault como a acepção de uma
ideologia ou uma condição super estrutural. Ele foi uma condição de formação e
desenvolvimento do capitalismo. A problemática da relação unívoca entre causa e efeito no
que tange a relação entre discurso e realidade afasta a primeira categoria da sua acepção
ideológica.

Longe de serem ideologias enganadoras, os discursos cartografam aquilo que as


pessoas fazem e pensam realmente, e sem o saberem. Foucault nunca estabeleceu
uma relação de causa e efeito num sentido ou no outro entre os discursos e o resto da
realidade; o dispositivo e as intrigas que daí decorrem, estão num mesmo plano.
Segunda confusão, considerar o discurso como uma infra-estrutura no sentido
marxista do termo. Vimo-lo mais acima, o discurso, que desempenhou, antes de
mais, uma função heurística, é uma noção por assim dizer negativa: parte de uma
constatação segundo a qual, a maioria das vezes, não se leva suficientemente longe a
descrição de um acontecimento ou de um processo, não se atinge a sua
singularidade.196 (DELEUZE, 2011, pp. 33/34)

195
VEYNE, Paul, Foucault , O Pensamento, a Pessoa, Lisboa: Edições texto e grafia, 2009.
196
Ibid, p. 33 e 34.
121

As relações entre saber, poder e verdade são centrais no contexto da obra de Foucault
e com muita freqüência são lidas de forma reducionista. Essa tríade parece ter atraído o autor
que é o nosso objeto de análise. Em princípio o saber pode ser desinteressado, mas de maneira
geral é frequentemente utilizado pelo poder. A questão central não é um problema de
significante, ou a relação entre os vocábulos e os objetos representados, o que configura uma
leitura enganosa.
Veyne compara o discurso tal como pensado em Foucault, com a concepção de ideal-
tipo em Max Weber de tal forma que a esquematização de uma formação histórica alcança sua
especificidade. As singularidades são realçadas até fazer surgir à especificidade do todo.
No livro Arqueologia do saber, Foucault reitera que nós não somos coisa alguma,
além do que foi dito. As palavras, os escritos nascem do dispositivo e não da natureza
humana, logo os signos falam em nome dos homens. O real não está reduzido ao discurso197.
Desde que um real evento está enunciado passa a se estruturar no campo do discurso.
O conceito de genealogia é um pedido por empréstimo da obra de Niestzsche. A
causalidade própria não tem um primeiro motor, uma primazia de um fator sobre o outro.
Tudo age sobre tudo, tudo reage sobre tudo. O modo de objetivação difere conforme o tipo de
questão que nos colocávamos para o problema.
Muitas vezes, a conceitualização de discurso tem mais essencialidade no seu âmbito
negativo, tem mais relação com as interdições, limitações, restrições do que suas
potencialidades. Por isso Veyne define o dispositivo, menos por um deteminismo que nos
produz, do que por um obstáculo contra o qual reagem ou não, ao nosso pensamento e a nossa
liberdade. O discuroso comanda, reprime, persuade, organiza e é o ponto de contato, de
associação e eventualmente de conflito.
O problema da resistência, na obra de Foucault parece ter incomodado Said. Diferente
da leitura de Paul Veyne, que entende, no contexto foucaultiano, que o indivíduo e a liberdade
podem ser aniquilados, mas sobrevivem em alguma instância, ou seja, até na obediência, há
resistência. Said define que Foucault não previu no seu esquema, possibilidades de agência
histórica nos meandros da resistência.

197
A tese histórica e filosófica interessante diz que o discurso , assim como o texto se voltaram invisiveis, que o
discurso começou a dissimular e a aparentar ser meramente escrita ou textos, que o discurso ocultou as regras
sistemáticas da sua formação e suas afiliações concretas com o poder. Said reconhece marcos na obra de
Foucault que produzem mudanças em relação ao problema da linguagem. O livro, As palavras e as coisas são
típicos do primeiro Foucault. Reaparece a problemática do desaparecimento ou invisibilidade do discurso. Cada
discurso, cada linguagem é em certa medida uma linguagem de controle, um conjunto de instituições no seio da
cultura. Reconsidera-se o problema da linguagem do ponto de vista político ou ético.
122

O temor de Said em relação à visão de Foucault como um estruturalista encaminha-se


para a ameaça de uma adesão com indícios da negação do sujeito, o que inibiria toda e
qualquer forma de resistência. Veyne assinala que Foucault assegura sua defesa na afirmação
da importância da estratégia, significando o fim escolhido numa luta.
O pensamento que é um combate, tem a liberdade de ganhar um recuo crítico, sobre a
sua própria constituição, retirando a sua familiaridade. Daí a acusação de uma tendência de
um certo sociologismo, em que o sujeito é reduzido ao seu campo de ação. Veyne produz uma
leitura de Foucault discípulo de Niezstsche, e define a obra do filósofo francês como uma
continuação da genealogia da moral. Nesta procura-se mostrar que qualquer concepção que se
julgue eterna, tem uma história, um devir, e que suas origens nada tem de sublime.
Voltando a obra de Said, alguns críticos do Orientalismo insistem na visão de uma
produção que peca pela ausência de discriminação dos imperialismos, pelo deslocamento
político do objeto que culmina com um excessivo grau de idealização.
Gyan Prakash198, um comentador da obra de Said, procura argumentar sobre a
distinção entre o chamado Orientalismo latente e o Orientalismo manifesto, o primeiro seria
marcado pela unidade e sincronia enquanto que a sua versão manifesta está aberta a
heterogeneidade e mudanças, o que inibe o risco da essencialização.
A operação dual e paralela dos dois tipos de orientalismo permite que esse pensamento
se prolifere e mude enquanto mantém a sua constância e autoridade. O Oriente pode ser algo
que deve ser descoberto, desvelado ou algo inteiramente conhecido.
Ao analisar o Orientalismo como discurso, Said não nega a sua heterogeneidade,
especialmente se inserida no campo da diacronia histórica. Said introduz o parâmetro da
mudança a fim de acomodar o funcionamento do Orientalismo como um instrumento de
poder, uma representação que abre a si mesmo para as condições atuais.
O problema da distorção da representação é uma questão epistemológica que a
denúncia do orientalismo comporta. Se o Orientalismo é justamente uma representação que
não guarda relação com o Oriente supostamente real, é possível que essa produção do
conhecimento interfira e exerça poder sobre o Oriente?
Para Prakash, o Orientalismo suscita o repensar do próprio ocidente nas implicações
de que a oposição Ocidente/Oriente parece ser uma externalização da divisão interna do
próprio ocidente. Prakash explora os efeitos iconoclastas do livro Orientalismo e atenua as
críticas da ausência de originalidade. O que conta afinal, em termos de efeito dessa produção

198
PRAKASH, Gyan, “Orientalism Now”, History and Theory, vol. 34, Número 3, Wesleyan University Press,
October, 1995.
123

intelectual é o extraordinário efeito de dissolução das fronteiras desenhadas pela hegemonia


ocidental colonial.
Em defesa do autor palestino, Prakash retoma o debate Said/Lewis e atribui ao último
à visão ingênua e quase positivista de uma crença de que o Orientalismo teria realizado uma
intrusão ideológica e ilegítima na política no mundo do conhecimento.
A concepção foucaultiana do Orientalismo como um discurso, por outro lado, mistura
a escrita com a autoridade política, pois os dois são mutuamente habilitadores mais do que
opostos. A autoridade orientalista depende do grau de cumplicidade da dominação ocidental
ser periférica ou episódica e não integral.
No deslocamento do campo discursivo para a empiria das práticas de poder, o
Orientalismo não pode pressupor um sistema contido de representações. Ao contrário, este
deveria se abrir aos conflitos, às mudanças e aos deslocamentos gerados pelas condições
históricas. Ainda que o risco de essencialização esteja diluído pela ampliação da historicidade
do Orientalismo, o problema da representação ainda aparece com força.
Retomamos o dilema do casamento entre as ideias de Foucault e o chamado
Humanismo saidiano. Se o Orientalismo é um “arquivo estruturado internamente” como é
possível falar em deslocamentos, mudanças e variações do devir histórico?
A representação conflituosa aparece na oposição entre a estabilidade da sincronia e a
instabilidade da diacronia. Said reduz a ambivalência no Orientalismo como um sistema de
conhecimento e como um campo de poder reivindicando a ideia de intenção. Este autor
remove a possibilidade de localizar o dominador no mesmo campo do discurso e poder do
dominado.
Um dos mais veementes críticos da produção saidiana, especialmente a tese do
Orientalismo foi o teórico marxista Aijaz Ahmad (2002)199 que, embora reconhecesse a
importância da militância palestina do nosso autor, buscou ressaltar as suas inconsistências
teóricas, seus aparentes paradoxos e sua limitação no que tange ao conhecimento histórico
acerca do Oriente Médio. A sua crítica nos interessa na medida em que coloca em destaque
um paradoxo que configura um caminho para o desvendamento da nossa hipótese.
Como Said enfrenta a dicotomia de dois projetos teóricos que estão implícitos no
conjunto da sua obra? O autor parece enfrentar o dilema da convergência entre as narrativas
do Alto Humanismo; a leitura dos cânones da literatura ocidental à luz da influência de Erich

199
AHMAD, Aijaz, “Orientalismo e depois: Ambivalência e posição metropolitana na obra de Edward Said” in:
Linhagens do presente, ensaios, SP: Boitempo Editorial, 2002.
124

Auerbach, e a atuação política a partir da produção de conhecimento acerca do Oriente


Médio.
Segundo Ahmad, podemos identificar três pressupostos unificadores e essencialistas
que definem o objeto do Orientalismo: a) uma identidade européia/ocidental unificada que
está na origem da História e conformou essa História por meio do seu pensamento e de seus
textos; b) a História unificada do pensamento europeu que remonta à Grécia Antiga, vai desde
o século XIX e adentra o século XX, por meio de um conjunto de crenças e valores que
permanecem os mesmos; c) essa História é imanente e, portanto disponível através do cânone
dos “grandes livros”.
Para Ahmad a categoria Orientalismo seria trans-histórica e global. O incômodo de
Ahmad aparece no ocultamento do sujeito na medida em que na epistemologia foucaultiana, o
fato não é nada mais que um efeito de verdade, produzido de forma desviante pelo discursivo
como indício de uma estrutura de poder.
No primeiro momento de análise, Ahmad expande a sua leitura e defende que os
procedimentos de análise são mais auerbachianas do que originários de Foucault. Embora os
conceitos metodológicos sejam tributários à obra de Foucault, Said critica parcialmente o
filosofo francês pela ausência de capacidade de se imaginar espaços de resistência.
No final do artigo, Ahmad identifica o distanciamento de Said dos mecanismos
explicativos foucaultianos reconhecendo descontinuidades na sua trajetória intelectual.
Ahmad denomina de “recuo nietzschiano” o gradual distanciamento de que todas as
representações são desfigurações da etapa teórica de Said mais voltada para o rastreamento
das possibilidades de resistência fora do discurso colonial.
A nossa hipótese de que o debate sobre o nacionalismo expõe as maiores mudanças na
sua démarche teórica é confirmada pela leitura de Ahmad. O autor estabelece uma transição
meio inusitada de uma passagem da rejeição do nacionalismo, das fronteiras nacionais para as
afirmativas mais generalizantes sobre a nação, sobre as identidades coletivas, proferidas com
a defesa da libertação nacional, da Intifada Palestina, e dos direitos a um estado soberano.
Ahmad sintetiza o seu conjunto de críticas ao autor palestino e se ressente dessas
reflexões jamais terem sido respondidas. Embora o autor reconheça a validade da obra de Said
para a academia norte-americana, Ahmad aponta algumas dessas críticas na forma de uma
síntese.

Mesmo em relação a Orientalismo, penso que a “controvérsia” nunca realmente


tratou das questões principais: a insistência de Said numa continuidade sem
remorsos da tragédia grega em diante; sua incerteza e até mesmo erro em especificar
a relação entre imperialismo e os vieses eurocêntricos nos discursos europeus
125

modernos a respeito da não-Europa; seu privilegiamento da textualidade escrita em


geral e da literatura em particular nessa narrativa da dominação da Europa sobre os
não-europeus, seu descaso pelas vertentes poderosas e até mesmo fundadoras no
orientalismo (tais como a alemã) e seu descaso ainda mais notável para com o fato
de que a Índia, a China e em geral o Extremo Oriente foram muito mais centrais no
sistema de conhecimentos que podemos chamar de modo apropriado de
Orientalismo, seus comentários descuidados sobre figuras-chave como Dante e
Marx; seu espantoso nivelamento de todos os tipos de conhecimentos europeus sob
o título de orientalismo, ao passo que, por exemplo, qualquer um que saiba algo
sobre a Índia acharia escandaloso que tanto William Jones quanto Macaulay sejam
tão facilmente chamados “orientalistas”, e assim por diante. Todos os tipos de
especificidades históricas são sacrificados em nome dessa construção chamada
“Orientalismo”.200 (AHMAD, 2002, pp.232,233)

Para Ahmad (2002), Said persegue o sentido de uma missão intelectual inspirada nos
inventários de traços definidores de uma identidade em formação, como na visão de Gramsci
nos Cadernos do Cárcere. Para uma elaboração crítica, é preciso inventariar o que se é
realmente.
Como um produto do processo histórico, que teria depositado um conjunto de traços
sem deixar um inventário, a compilação é um pressuposto perseguido por Said no livro
Orientalismo. O questionamento de Ahmad se encaminha para o fato do inventário se tornar
quase uma missão de auto referência que culmina “para uma contraleitura das textualidades
canônicas européias”201

A ideia gramsciana original de um “inventário de traços” pressupõe que haja uma


personalidade, um contexto cultural, em que esses traços estejam inscritos;
pressupõe que haja outros “traços” nos quais esses traços são tecidos, de modo que a
personalidade que surge desse tecido, dessa sobreposição, seja condicionada não por
um conjunto específico de traços, mas por sua História inteira.202 (AHMAD, 2002,
p.121)

Na visão Gramsciana as histórias e, portanto, as subjetividades, são constituídas não


pelo que podemos chamar de “momentos”, mas pelos processos de acumulação, quase como
um acréscimo de traços definidores de uma formação cultural. Ahmad questiona a
incongruência entre o humanismo histórico de Said, alimentado pela erudição auerbachiana e
a explícita menção à epistemologia de Foucault.

Essas ambivalências com relação à Auerbach e ao humanismo em geral foram


suficientemente problemáticas, mas se complicaram ainda mais pela impossível
conciliação que Said tenta alcançar entre aquele humanismo e a teoria do discurso de
Foucault, a qual nenhum intelectual sério iria querer usar simplesmente como um
método de ler e classificar livros canônicos porque a própria mente é inseparável do

200
Ibid, pp. 232/233.
201
Ibid, p. 112.
202
Ibid, p.121.
126

anti-humanismo nietzschiano e de teorias anti-realistas de representação.203


(AHMAD, 2002, p.114)

A crítica de Ahmad incide sobre o fato de que Said examina a história das
textualidades ocidentais sobre o não-Ocidente de forma isolada, sem levar em conta como as
representações poderiam ter sido recebidas, aceitas e modificadas pela intelectualidade dos
países colonizados.
Se o autor palestino insiste criticamente no binarismo Oriente-Ocidente, sendo o
primeiro silenciado e sublimado pelo segundo, por que não dar espaço para os efeitos dessa
representação no Oriente? Ahmad enfatiza que a voz silenciada na visão de Said não ganha
espaço no Orientalismo. A leitura crítica chega ao ponto de questionar quem está silenciando
quem? O Orientalismo silencia o Oriente colonizado? Ou Said silencia esse Oriente? Ahmad
questiona a ausência da historicização entre os encontros alegando a unilateralidade da
canonicidade ocidental.
Ahmad (2002) fala de uma “contaminação historicista” que transfoma arbitrariamente
as críticas do imperialismo em práticas reais do imperialismo e das contradições dos discursos
empreendidos no livro. O incômodo com a história ininterrupta do Orientalismo começa com
os registros da antiguidade e chegam ao século XX com a historiografia de Bernard Lewis e
sua visão preconceituosa e generalista do Oriente Médio. Ahmad transforma a leitura saidiana
em um registro transhistórico e quase anacrônico na medida em que o imperialismo é
construído genealogicamente.
O espelhamento da identidade européia é realçado na interpretação de Ahmad. Este
autor se incomoda com a necessária construção de um Oriente como um outro mundo hostil
que deveria gestar necessariamente o neo-colonialismo. O Orientalismo surge naturalmente
das práticas necessárias do discurso. A questão da diferença aponta para a preemência da
representação sobre as outras atividades humanas.

Mas por que a representação deve também inferiorizar o outro? Said novamente
oferece ideias muito variadas, de modo que em alguns lugares essa inferiorização é
mostrada como sendo resultado do imperialismo e do colonialismo, no sentido em
que a maioria de nós entenderia essas palavras. Mas num outro conjunto de
formulações, que empresta seu vocabulário da psicanálise, o Ocidente parece ter
sofrido algo parecido com a ansiedade do ego, pela qual o ego consegue constituir
sua própria coerência apenas por meio da objetivação do Outro, de modo que o que
Said chama de orientalismo parece ser um impulso compulsivo inerente à psique
unitária da Europa. 204 (AHMAD, 2002, p.131)

203
Ibid, p. 114.
204
Ibid, p. 131.
127

O tom crítico de Ahmad se encaminha para uma tônica ressentida da ausência da


categoria “ideologia”, mais uma vez nos deparamos com as lacunas na busca de uma
abordagem que não se pretende marxista. Ao apontar a ênfase nos critérios literários (o estilo,
as figuras de linguagem, os procedimentos da narrativa e as circunstâncias históricas), Ahmad
“acusa” o livro de desenvolver uma ênfase pós-modernista que insiste na “representação da
representação”.
O Orientalismo parece cometer o pecado de uma oscilação teórica que ora lê o
discurso orientalista como um sistema de representações no sentido foucaultiano, ora aparece
como uma desfiguração no contexto de uma problemática realista. As contradições ilustradas
na crítica de Ahmad são exemplificadas no que tange à desfiguração de uma essencialidade:
A descrença nas categorias imutáveis não corresponde à perspectiva crítica de um desvio
interpretativo em relação a um referencial real.
Consideramos um grande exagero caricato a assertiva de que nada existe fora do poder
epistêmico ou do discurso orientalista, ou mesmo uma problemática analogia da obra de Said,
com as teorias irracionalistas do final do século XIX ou início do século XX. Não há nenhuma
possibilidade de resistência histórica a esse grande paradigma que orienta essa visão macro do
discurso Orientalista. O Orientalismo permanece o mesmo com acúmulos de conteúdo
histórico percebidos de forma linear.
A crítica que Ahmad direciona a Said se assemelha curiosamente à crítica que o autor
Palestino elabora da visão foucaultiana sobre o poder. O próprio Ahmad em seu artigo associa
as críticas que ele tece sobre as insuficências do Orientalismo com as limitações de Foucault
apontadas por Said.
Para Ahmad, assim como Said tenta escapar das categorias marxistas; classe, o papel
da economia e papel das insurgências, Foucault também estaria se encaminhando pra a
mesma “armadilha”, o que torna a sua obra falível do ponto de vista do debate sobre o poder.
A mistificação da soberania microfísica e a sublimação do seu conteúdo histórico, do
devir, da mudança estão intimamente associadas às incongruências do Orientalismo e sua
respectiva soberania. Essa soberania é impeditiva da contra hegemonia.
Para Ahmad o livro Orientalismo representa uma novidade mais epistemológica do
que temática. Alguns autores tais como; Frantz Fanon com sua obra, Peles Negras, Máscaras
Brancas, Aimé Césaire com Discourses on Colonialism e Erskine Caldswell com Notes on
Dying Culture, entre outros, já teriam realizado tal empreitada; o exame da cumplicidade dos
intelectuais com as ideologias dominantes e fabricações de poder ilegítimo no processo de
dominação política.
128

Reconhecemos limites a essa crítica de Ahmad; uma vez que nos parece que a procura
incide sobre as ausências ou o que o autor Palestino não se propôs a fazer. Assim como nos
parece que Ahmad se ressente da ausência de uma perspectiva marxista quando Said aborda
temas muito caros a produção teórica marxista, como o imperialismo ou as relações de
dominação colonial. O marxismo foi lido como um filho do historicismo e inserido no
discurso orientalista.
Robert Irwin205 em seu livro Pelo amor ao saber, ao traçar a identidade das diversas
correntes “orientalistas” denomina criticamente a leitura de Said e a qualifica de insuficiente e
limitada à produção francesa e inglesa. Com base no mapeamento interpretativo acerca da
produção historiográfica sobre o Oriente Médio, Irwin parece se limitar à polêmica temática
entre Bernard Lewis e nosso autor palestino. Irwin atenua as críticas realizadas à produção de
Lewis alegando que a produção criticada faz parte de um conjunto de obra tardia,
generalizante porque voltada para popularização das ideias.
Irwin ressalta as semelhanças entre Said e Lewis, o que nos parece equivocado e
pouco persuasivo, além de atestar com escassos argumentos que as críticas dirigidas a Lewis
se deviam em grande parte, ao incômodo sionismo do autor. Não nos parece que o
orientalismo de Lewis se limite à produção tardia, assim como as semelhanças encontradas
entre os autores são pouco convincentes.
Nesse contexto, as críticas a Said apontam a imprecisão factual do Orientalismo e a
ausência de outras modalidades de produção literária, tais como a alemã e a russa enquanto
objetos de análise, além do desconhecimento da tradição literária árabe. Irwin associa o
contexto histórico de 1973206, a Guerra do Yom Kipur e à crise do petróleo como motivadores
da escrita do livro Orientalismo.
O comentador da obra de Said chama atenção para a ausência de respostas e
retificações de erros factuais nas edições posteriores a primeira. Irwin associa o contexto
histórico da época e pensa de forma simplista que o livro teria sido motivado por uma causa
política e que, portanto, seu conteúdo deveria ter se dirigido aos políticos sionistas israelenses,
e estadunidenses no lugar dos teóricos orientalistas.

205
IRWIN, Robert, Pelo Amor ao saber, os orientalistas e seus inimigos, RJ: Editora Record, 2008.
206
O contexto Histórico de 1973, tal como descrito por Irwin, inclui o atentado terrorista da embaixada saudita
em Cartum que terminou com a morte de três americanos, o esforço pela retomada do Sinai pelo Egito, e as
consequências de uma representação negativa dos árabes na mídia estado-unidense após a guerra do Yom kipur e
suas consequências mais imediatas, como a redução da produção de petróleo e o respectivo aumento promovido
pela OPEP, gerando a crise econômica em 1973.
129

O problema da origem contextual que parece oscilante e pouco definidor é apontado


pelo autor uma vez que outros leitores do Orientalismo já demonstravam que essa questão
estaria confusa no livro.
Se o Orientalismo inicia-se antes do século XIX, os vínculos entre a teoria Orientalista
e o imperialismo são confusos na visão de Irwin. O lapso do anacronismo na perspectiva
temporal que vai linearmente dos séculos XII e XIII até o século XIX, em que pese que a
análise desses períodos não segue um padrão, nem Said pretende que os discursos sejam
unificados. Irwin (2008) insiste em nomear esse estudo de anacrônico. Segundo esse autor o
reducionismo da relação entre discurso e práxis imperalista é um grande equívoco.
O elemento menos explorado e mais interessante do ponto de vista epistemológico está
centrado na problemática vinculação entre a teoria foucaultiana e o uso da leitura de Gramsci
para compreender a relação entre poder e conhecimento. Irwin aponta uma contradição na
crença de Said sobre a autoria individual e nos usos deliberados da teoria foucaltiana em
relação ao conceito de discurso.
O apelo pela apropriação parcial de Foucault207 não lhe parece satisfatório, como se as
proximidades teóricas entre os autores tivessem que ocorrer integralmente com base no
compromisso irrestrito com a teoria apropriada, o que nos parece uma leitura pobre e datada
da história intelectual.

Foucault e Gramsci tinham ideias bastante diferentes acerca da relação entre o poder
e o conhecimento. O primeiro acreditava que “o poder está por toda parte”, ao passo
que o segundo pensava em termos de hegemonia. “Hegemonia” era o termo usado
por Gramsci para descrever a imposição de um sistema de crenças entre os
governados. Apesar de sua fidelidade ao comunismo, Gramsci, como Said
posteriormente, tinha uma tendência a acreditar na primazia da ideologia na História
(em vez de uma primazia dos fatores econômicos). Os intelectuais têm um papel
crucial tanto em manter um status quo como em solapá-lo. Eles são peritos na
legitimação do poder; figuras cruciais na sociedade.208 (IRWIN, 2008, p.337)

A transcendência da formação discursiva é vista como paradoxal à crença na autoria


do sujeito. O autor afirma que Said ainda não havia decidido se o discurso dos orientalistas
coagia as vítimas do “arquivo” de onde não se podia escapar, ou se, por outro lado, os
orientalistas eram figuras conscientes da elaboração do discurso hegemônico. O autor fala de

207
Said afirma que em virtude da lição de Foucault podemos entender a cultura como um corpo de disciplinas
que se vincularam com o poder de forma sisitemática. Onde há conhecimento deve haver crítica com o intuito de
revelar os lugares, os deslocamentos do texto,este compreendido como um processo fruto de uma vontade
histórica
208
Ibid, Página.337.
130

uma conveniência ciscunstancial no uso das referências teóricas de Foucault que não seria
conciliável com a autonomia dos autores individuais.
Irwin descreve uma série de polêmicas intelectuais envolvendo Said, Bernard Lewis e
o sociólogo Ernest Gellner209 com as suas respectivas críticas aos livros: Orientalismo e
Cultura e Imperialismo. Gellner era considerado por Said um orientalista contemporâneo que
tecia generalizações sobre o mundo muçulmano, enquanto o sociólogo considerava um
equívoco as interpretaçoes saidianas de Gide, Fanon e Camus, para além do incômodo com o
uso da crítica literária para denunciar as relações entre cultura e poder.
Irwin associa o Orientalismo com a temática do Cobrindo o Islã que pretende elaborar
uma crítica à representação midiática acerca do mundo árabe. A questão da deturpação
ocidental sobre o Islã como a verdadeira essência do confronto entre Ocidente e Oriente.
As críticas de Irwin aos outros livros de Said são subsidiárias às criticas direcionadas
ao Orientalismo e versam sobre a imprecisão factual, as contradições teóricas e as
generalizações reducionistas. Ao abordar Cultura e Imperialismo, Irwin retoma a crítica de
Gellner e o seu incômodo com o fato da crítica literária constituir o meio privilegiado para
uma abordagem destitutiva das obras em questão.

1.4 A questão Palestina: o problema da identidade nacional

O livro A Questão da Palestina foi escrito entre 1977 e 1978 e publicado em uma
primeira edição em 1979. Algumas questões presentes nos argumentos do Orientalismo
podem ser encontradas nessa obra. Reconhecemos que ambas foram pensadas quase
simultaneamente, embora com propostas distintas. No livro de 1979, Said volta a identificar o
discurso orientalista, marcado por representações negativas do árabe, do Islã e do Oriente e a
sublimação da voz do palestino.
O interessante é notar as transformações na trajetória intelectual do autor palestino e
sua postura diante da questão Nacional palestina. A crença na representatividade da OLP
permanece até a edição de 1992. Após os acordos de Oslo, Said se reposiciona em relação ao
papel central da OLP na contínua resistência do movimento palestino.
Reconhecemos que o livro A Questão da Palestina representa a virada do Said
cosmopolita para o Said nacionalista. Ao rastrear a identidade palestina, o autor busca
defender a autodeterminação desse povo. Muitos parágrafos são dedicados a referências

209
Robert Irwin comenta em seu livro que Ernest Gellner estava trabalhando em um livro especificamente crítico
ao Orientalismo quando faleceu em 1995.
131

Históricas da Palestina desde o século XVIII até os dias de hoje: estatísticas populacionais,
áreas de assentamentos e detalhes da vida profissional e intelectual dos Palestinos.
A narrativa diacrônica detalhista ilustra por meio da contingência histórica o
mecanismo palestino de pertencimento, possuidor de um sentido relativamente coerente e
unificado de ação. Said aparece motivado por um desafio gramsciano a partir do ímpeto de
estabelecer um inventário das forças históricas que moldaram o povo Palestino.
Na luta pela autodeterminação, Said se despe momentaneamente da sua filiação
teórica-metodológica “cosmopolita” a favor de uma identidade relativamente estável em
resposta aos constrangimentos impostos por uma sociedade internacional, cujos membros são
os Estados que se recusam a respeitar o direito de autodeterminação dos palestinos.
No livro, encontramos afirmações quase assertivas da existência plena e irredutível da
experiência palestina, ou seja, o autor ressalta a identidade de um grupo que tenta se contrapor
às várias tentativas de dissolução da identidade a partir da experiência sionista.
Percebemos alguns dilemas teóricos em torno da obra quando o autor afirma sua
pretensão de circunscrever a chamada questão Palestina e afirma no início do livro se tratar de
um ato de afirmação política.
Para Said, A Questão Palestina é a última grande causa do século XX. A questão
palestina teria sido marcada pela experiência da expropriação, do exílio, da dispersão e da
privação dos direitos civis. Said refaz o histórico do movimento Nacional Palestino ao
estabelecer 1967 como um marco para se pensar a relação entre a política da questão palestina
e a respectiva relação com as nações árabes. Para o autor, a centralidade da questão palestina
no discurso árabe oficial é confrontada com a práxis da relação entre os palestinos e os
estados árabes.
Said denomina de conjuntura paradoxal as relações entre a causa Palestina e o
contexto mais amplo do mundo árabe. O pefil Pan-árabe Nasserista da OLP no período da
liderança de Yasser Arafat é inegável, o que não elimina a impossibilidade de trocar uma
linearidade na relação entre a causa palestina e a conjuntura geopolítica árabe.
Said estabelece três elementos definidores da trajetória dessa relação. O primeiro deles
está representado pela relação com o golfo Pérsico que, desde 1948, estabelece um apoio
econômico para a questão Palestina. O segundo elemento está representado pela revolução
Iraniana de 1979 e os respectivos vínculos entre a OLP e Khomeini. O terceiro elemento,
representado pelos movimentos progressistas do mundo árabe, grupos marxistas egípcios,
nasseristas e muçulmanos.
132

Said desenvolve diacronicamente as relações entre a Palestina e os países árabes


ressaltando as descontinuidades. Suas conclusões encaminham as seguintes colocações: a
ausência de um aliado estratégico do nacionalismo palestino, e por outro lado, a existência de
uma autonomia do movimento nacional palestino que sugere uma independência do
movimento.
Said percebe a liderança de Arafat como uma espécie de domesticação do movimento
nacional palestino. Paralela às reflexões presentes em Cobrindo o Islã, A Questão da
Palestina trabalha com a centralidade da representação dos Palestinos na mídia,
especialmente a mídia estadunidense.
A representação negativa acerca da OLP, vista como uma entidade terrorista e por isso
sem representação legítima predomina na mídia norte-americana. Said contrapõe essa visão
com a definição de terrorismo de estado praticado pelo estado Israelense.
A devastação dos campos de refugiados, as prisões arbitrárias, as deportações, as
demolições das casas, as expropriações de territórios na Cisjordânia e em Gaza, a escala de
perdas materiais e as privações físicas, políticas e psicológicas sintetizam os danos causados
aos palestinos nos anos de ocupação.
Após caracterizar a opressão da vivência de ocupação por Israel, Said caracteriza a
assimetria entre a posição dos palestinos e a hegemonia israelense. Said desenvolve as
dificuldades no reconhecimento do grau de opressão dos palestinos, em função da trajetória
histórica de Israel. Criticar a política opressora do estado nacional judaico significa questionar
algo moralmente impensável, sintetizado na História contemporânea do povo judeu, como se
houvesse um tabu moral em qualquer crítica ao estado israelense, visto como a salvaguarda
histórica de um povo que havia sido vítima da história recente.

Aqui também há uma ironia complexa: as vítimas clássicas dos anos de


perseguição antissemita e do Holocausto tornaram-se, em sua própria nação,
carrascos de outro povo, que passou a ser, portanto, vítima das vítimas. O
fato de tantos intelectuais israelenses e ocidentais, judeus ou não, se
esquivarem direta e corajosamente desse dilema é, creio eu, uma trahison des
clercs (traição intelectual) de enormes proporções, sobretudo porque seu
silêncio, sua indiferença ou ignorância, e seu não envolvimento perpetuam o
210
sofrimento de um povo que não merece tão longa agonia. (SAID, 2011,
p.33)

210
SAID, Edward, W. A Questão da Palestina, SP: Editora UNESP, 2011. Prefácio à edição de 1992. p. 33
133

Sua perspectiva é crítica e relativista quanto ao difícil relacionamento entre o


movimento palestino e os países árabes. Para Said, a questão central é reinserir a questão
palestina na ordem da História. Para o nosso autor, resgatar a historicidade da identidade
palestina implica o reconhecimento da existência contínua de um povo árabe-palestino.

A realidade é que hoje a Palestina não existe, exceto como uma


reminiscência, ou, mais fundamentalmente, como uma ideia, uma experiência
política e humana e um ato de persistente vontade popular. O tema deste meu
ensaio envolverá todos esses aspectos sobre a Palestina, embora em nenhum
momento eu pretenda, para qualquer um que viva ou escreva no Ocidente,
que a Palestina seja “uma questão” 211. (SAID, 2011, p.5)

Said afirma que a realidade Palestina será construída a partir de um ato de resistência
contra essa nova forma de colonialismo estrangeiro. A questão Palestina se define pelo
confronto entre uma afirmação e uma negação, entre uma presença e uma interpretação. O
sentido da elaboração do livro atende a uma necessidade de denúncia contra a distorção de
leituras que gera um processo de dominação histórica.
A escrita do livro recompõe historicamente a chamada presença Palestina que foi lida
de forma evolucionista ou, na leitura de Said, Orientalista. A Palestina, segundo a visão
sionista, seria retrógrada, incivilizada, portanto, deveria ser reconstruída segundo o slogan
sionista: “uma terra sem povo para um povo sem terra”.
Said trabalha a Palestina como uma dissonância de interpretação. Este exemplifica a
questão do nome, chamar o lugar de Palestina e não de Israel ou Sião já representa um ato de
vontade política. O livro busca aproximar a questão Palestina da luta pela descolonização das
outras nações pertencentes ao Oriente Médio. O que o autor ressalta é que, no caso palestino,
o legado otomano, o colonialismo sionista e a autoridade britânica tiveram de ser combatidos
simultaneamente.
Os argumentos em torno da noção de pertencimento ou especificidade de uma
comunidade indicam a ideia de uma Palestina anterior que, a partir da desapropriação,
necessita reafirmar uma realidade negada pelo sionismo e a consequente criação do Estado
judaico. Said rebate o princípio da existência rarefeita dos palestinos e refuta a tese do êxodo
espontâneo em 1948. O autor aponta as controvérsias numéricas acerca da evasão dos
palestinos no âmbito da criação do estado judaico.
Said aponta permanentemente o problema da representação dos palestinos, que não
falam por si, são sempre representados. O problema do sionismo que aparece invariavelmente
211
Ibid, P.5.
134

envolvido na realidade nativa do Oriente Médio e, ao mesmo tempo coloca-se num status de
superioridade. Assim como os orientalistas que agem de forma paternalista, os sionistas falam
ao mundo em nome dos palestinos. O contraponto a esse “silêncio” da voz Palestina perante o
mundo ocidental deve vir por meio de um inventário histórico.

Para o palestino contemporâneo que escreve de maneira crítica para saber o que sua
história significou e que tenta – como eu tento agora – saber o que o sionismo
representa para os palestinos, é relevante a observação de Antonio Gramsci de que
“a consciência daquilo que alguém realmente é (...) é conhecer a si mesmo como
produto do processo histórico que até o momento depositou nele uma infinidade de
vestígios, sem deixar um inventário”. A tarefa de produzir um inventário é uma
necessidade básica, prossegue Gramsci, e deve ser satisfeita agora, quando o
“inventário” daquilo que as vítimas do sionismo (e não seus beneficiários)
suportaram é raramente exposto à visão pública. 212 (SAID, 2011, p.82)

Para Said, a identidade é algo que impomos a nós mesmos ao longo das nossas vidas
de seres sociais, históricos, políticos e espirituais. No caso da Palestina, a identidade é
concebida às avessas como a antinomia do ocidente, da cultura política européia. O propósito
do livro pode ser ilustrado por um esforço de demarcar a singularidade Palestina, recuperar
uma história nacional combalida por uma hegemonia essencialmente européia.
A identidade palestina deveria ser rastreada na dispersão e fragmentação geográfica. A
ideia palestina nasce da expropriação ou da experiência de opressão imperialista. No esforço
da diluição do ethos nacional Palestino mediante o conflito com a dominação israelense, Said
busca definir os pormenores factuais que vão fundamentar a história Palestina.
Said retoma os argumentos presentes no livro Orientalismo quando inicia o seu
primeiro capítulo com uma reflexão sobre a categoria de Oriente. Essa categoria representa
uma espécie de generalização abrangente conceitual criada de forma estereotipada pela
historiografia européia. No centro das representações sobre o Oriente Médio está a questão
Palestina. Essa questão emerge como um contraponto da ausência, diluição ou negação de
uma definição de identidade nacional.
O livro representa um ato de afirmação política, um manifesto demarcado pelo
contraponto de uma memória política que se esforça por construir miticamente a inexistência
histórica dos Palestinos. O manifesto pretende não só rastrear os traços de historicidade dos
Palestinos como também desconstruir visões estigmatizantes e generalizantes sobre esse povo.
Se Said fala de uma essência Palestina e de uma experiência irredutível no que tange ao devir
histórico desse grupo, podemos depreender uma contradição teórica com o Said cosmopolita
ou pós-colonial e seu esforço perene na desconstrução das identidades imutáveis e essenciais.

212
Ibid, P. 82.
135

Apesar da historicidade descontínua, Said se esforça por definir elementos constantes


ou regulares de que possibilitem uma identidade ou o que chamamos de ethos nacional. Os
palestinos constituem um povo pastoril, cuja língua ou religião eram em grande parte árabe e
islâmica, com fortes laços com a terra, com certos traços sociais e culturais.
A realidade Palestina também é construída no âmbito da resistência à dominação
israelense. A questão nacional pode ser ilustrada pelo confronto entre a afirmação e a
negação, um conflito que anima e confere sentido aos grupos nacionais. A presença é
sublimada pela interpretação mais construída do que fidedigna, na visão mítica fundadora do
estado de Israel.
O projeto saidiano de refletir sobre as alternativas à narrativa sionista deve ser
indissociada com os vínculos discursivos e geopolíticos entre Israel e EUA. A leitura Sionista
sobre a ocupação da Palestina que culminou com a criação do estado nacional judaico em
1948 corrobora a compreensão que o ocidente teria de forma consensual sobre esse processo.
A visão de um sionismo que se depura da sua parcela “oriental”, que se desvincula dos
excessos praticados pelos árabes, insere essa ideologia na realidade original do Oriente Médio
e permite uma proximidade superior áquele contexto. As afinidades do sionismo com o
Oriente Médio podem ser percebidas por meio de uma oscilante movimentação de
proximidade e afastamento.

O sionista une-se ao europeu branco contra o oriental de cor, cuja principal


reivindicação política parece ser apenas quantitativa (seu número bruto) ou, do
contrário, carente de qualidade; e o sionista – porque “conhece a mente oriental por
dentro” – também representa o árabe, fala por ele, explica-o ao europeu. Sionistas e
europeus têm em comum o ideal de honestidade, da civilização e do progresso, nada
que o oriental seja capaz de compreender. Como explica Weizmann, o conflito na
Palestina é uma luta para arrancar dos nativos o controle da terra; mas essa luta é
dignificada por uma ideia, e a ideia era tudo. Em segundo lugar o conflito do
sionismo com os árabes na Palestina e em toda a região era considerado uma
extensão, uma perpetuação e até uma intensificação (para proveito do Ocidente) e do
antiquíssimo conflito entre o Ocidente e o Oriente, cujo principal substituto era o
Islã. 213 (SAID, 2011,p.33)

A questão da Palestina traz à tona o debate central sobre o problema da representação,


na medida em que o sionismo assume o discurso predominante sobre a questão palestina em
um enquadramento construído que Said denomina uma “operação de obstrução” da voz dos
palestinos. Assim como os orientalistas falam pelas sociedades por eles estudadas, os sionistas

213
Ibid, P. 33.
136

vistos no contexto desse livro como colonialistas marcam uma presença que denota a ausência
dos palestinos.
Said desenvolve um debate sobre a trajetória do sionismo e a representação dos
palestinos sobre o sionismo como uma modalidade de colonialismo. Seu interesse é registrar
os efeitos do sionismo na questão palestina estudar esse processo genealogicamente, no
interior do processo histórico imperialista do século XIX. A representação do sionismo como
uma forma de colonialismo encontra um contraponto na análise da autora Ella Shohat214 sobre
a obra de Said.
Para a autora, o sionismo não pode ser visto ou equacionado com o imperalismo.
Distinto do colonialismo, o sionismo contitui uma resposta à opressão diferente do paradigma
dual clássico da metrópole contra colônia, estariam localizados no mesmo lugar. Para
Shohat215 Israel representa um paradoxo porque, por um lado, conclui o período da diáspora,
caracteriza uma nostalgia judaica para o Oriente, fundou um estado cuja orientação ideológica
e geopolítica tem sido ditada pelo Ocidente. A terra mater israelense recupera seu lugar de
origem no Oriente, embora com a perspectiva civilizatória do “Ocidente”.
Said analisa a ironia histórica, na qual os significados culturais e simbólicos do
judaísmo, (exílio, diáspora, dispersão e expropriação) foram aplicados aos palestinos. A
rejeição a Said pela esquerda liberal estadunidense diz respeito à distância do estereótipo
clássico do intelectual Palestino que não se aplica a Said.
O problema do palestino que fala do lugar de enunciação do ocidente, descontrói e
desenquadra um lugar comum no imaginário. Shohat fala de um temor do esvaziamento da
autorepresentação israelense no ocidente. O discurso sionista se encaminha para consolidar
historicamente um marca de unidade étnica nacional. Palestinos e Judeus israelenses
compartilham um esforço pela recuperação do ethos da terra mãe nos seus respectivos
imaginários nacionais.
Para Shohat, Said historiciza consistentemente a disputa palestina/israelense de
maneira antiessencialista, na medida em que pensa a posição dialética ou de espelhamento
entre esses dois grupos.

214
SHOHAT, Ella, Antinomies of exile: Said at the frontier of National narrations In: Edward Said, a critical
Reader, SPRINKER, Michael (ed.), Massachusetts: BlackWell Publishers, 1992.
215
Estudiosa do Multiculturalismo nos EUA, Professora de cinema e Estudos Culturais da Universidade de Nova
York, Ella Shohat é autora de diversos livros, onde discute a questão da representação do Oriente Médio no
cinema, além da recepção das ideias de Edward W. Said e Frantz Fanon na produção intelectual israelense.
Autora do artigo Antinomies of exile: Said at the frontier of National narrations In: Edward Said, a critical
Reader, SPRINKER, Michael (ed.), Massachusetts: BlackWell Publishers, 1992.
137

Said recorre à citação de Gramsci dos Cadernos do cárcere. Ao parafrasear o pensador


italiano, recupera a ideia de que a consciência daquilo que se é, se relaciona com o processo
histórico, que depositou nele uma infinidade de vestígios sem deixar um inventário216. A
necessidade do inventário é emergencial no caso de um grupo que sofre a omissão diante da
divulgação da sua causa perante a opinião pública.
A comparação empreendida entre a negação dos Palestinos em relação a Israel e a
concomitante rejeição dos israelenses em relação aos palestinos, demonstra a analogia do
sionismo em relação ao colonialismo europeu. O sionismo compartilhava ideias com o
colonialismo europeu, sem contar a indisposição em criar vínculos com os habitantes da
Palestina, ou seja, o confronto permanente dos sionistas com o “Oriente no Oriente”.
O terceiro capítulo denomina-se “Rumo à autodeterminação Palestina” e pretende
desenvolver um discurso autônomo em relação à própria dinâmica do povo Palestino. Traçar a
dinâmica da cultura e da política são mecanismos definidores da identidade nacional
palestina.
Said inicia um levantamento demográfico e quantitativo dos árabes-Palestinos, entre
aqueles que vivem no território israelense, na Cisjordânia e Gaza e sob ocupação militar
israelense. Said identifica os palestinos que vivem nos países árabes, tais como; Síria, Egito,
Líbano, Jordânia, Líbia e Iraque. O autor considera que todos os palestinos vivem uma
espécie de exílio.
Said reconhece de forma crítica as múltiplas identidades atribuídas pelo Ocidente e sua
possível interlocução projetada antagonicamente pelo sionismo. As leituras dos vestígios de
uma história vivida, e a construção dessa memória apontam as múltiplas expectativas sobre o
desfecho do movimento, o retorno para os palestinos que estão fora de Israel, ou para aqueles
que têm cidadania israelense e a autonomia Palestina no interior do território israelense. Os
vestígios da história vivida fragmentaram a comunidade Palestina.
Said destaca a década de 60 como um contexto importante para o movimento
nacionalista Palestino. O mundo árabe passava por um momento de afirmação nacional com o
Nasserismo nos anos 50 e 60. As ideias do Nasserismo eram identificadas com o anti-

216
Podemos associar a necessidade de um inventário de identidade Palestina com a proposta do livro After the
last Sky, palestinian lives (1983). Se a Palestina representa o exílio, a desapropriação e as memórias de um outro
lugar sendo sobrepostas ao espaço de deslocamento.,É mais necessário, imperativo que esses traços de
identidade sejam recuperados. Os questionamentos que permeiam esse projeto de inventário se iniciam com as
seguintes questões: “Quando nos tornamos um povo?” Quando deixamos de ser? Estamos em processo de nos
tornar um povo? A identidade palestina se dilui no ethos árabe? O esforço secular para reter uma identidade é um
esforço por se colocar no mapa novamente. As considerações religiosas são secundárias, são conseqüências, não
causas dos conflitos.
138

Imperialismo e com a luta por uma unidade árabe, bandeiras tributárias à experiência
Palestina.
A proposta central do livro se refere às políticas sionistas e à forma como a questão
palestina era tratada no contexto após a criação de Israel. A questão do retorno dos refugiados
era muito importante na medida em que ela significaria uma libertação palestina. Said
distingue a posição e a perspectiva de dois grupos diferentes; a saber, a comunidade Palestina
que vive em Israel, cuja ação seria orientada para garantir a permanência em Israel, uma
coesão de comunidade, e uma simetria nos direitos que excluiria a chamada cidadania de
segunda categoria.
Já os exilados, munidos de um idealismo do expatriado, imaginavam a Palestina
integral, não fragmentada, portanto o ideal de libertação nacional vinculava-se às críticas
contundentes ao sionismo como projeto político e como sociedade. O terceiro segmento ainda
contava com os palestinos que viveram a ocupação militar israelense no pós-67.
Os cidadãos integrados à Jordânia, no caso da Cisjordânia, ou ao Egito, no caso de
Gaza, viviam a presença do estado israelense como uma ocupação militar opressora. Said
estabelece uma analogia do sionismo como experiência de dominação e o colonialismo
contemporâneo. Dada a fragmentação da comunidade palestina, a necessidade de adesão
promovida por meio de uma liderança legítima capaz de articular as múltiplas condições
coube à OLP.
Said refaz a trajetória da progressiva politização dos palestinos exilados217 e dos que
permaneceram em Israel, demarcando, no caso dos expatriados, a conscientização política que
se misturava com a política árabe mais ampla. Na década de 50, os exilados se engajaram na
chamada política de rejeição e críticas contundentes às políticas árabes fraternas em relação à
libertação da Palestina.
A temática do desenvolvimento de uma consciência Palestina que ocupa parte do livro
deve ser associado ao contexto das transformações históricas do mundo árabe. Essa temática
deve ser vinculada ao contexto da história das minorias no mundo árabe, da revolução
sociopolítica e de todo o trágico legado do colonialismo e do imperialismo ocidental no
Oriente Próximo.

217
A desapropriação e a expulsão têm significado uma discrepância fundamental entre a situação real palestina e
ideal do que devria ocorrer com os refugiados. Para Said os vestígios do passado são vistos sempre na
perspectiva da lacuna, entre uma situação possível e o preenchimento naiconal almejado pelos Palestinos. Para
além da/situação de Gaza e Cisjordânia o chamado exílio interno dos cidadãos israelenses árabes. O passado
pode ser reescrito no presente. Said cita no livro After the last Sky, Palestinian lives, o poeta palestino Mahmoud
Darwish e defende que a mecânica da perda pode se transformar na metafísica do retorno.
139

O enquadramento da luta da Palestina no movimento de libertação colonial começa a


ficar mais claro a partir dos anos 60. A luta palestina ganha uma visibilidade que os
movimentos de libertação do Vietnã, Argélia, Cuba e a África negra já possuíam. A luta
Palestina está inserida em uma tendência maior de contraposição ao imperialismo.
No livro A questão da Palestina, podemos perceber algumas preocupações
denominadas pós-coloniais que acompanham boa parte das suas análises do autor do livro,
embora possamos identificar estas reflexões com o esforço de um rastreamento do ethos
nacional de uma trajetória histórica da Palestina.
Percebemos então as contradições entre a reflexão pós-colonial desconstrutiva das
essencialidades e a visibilidade teórica dada à questão palestina. As transformações históricas
impossibilitam as categorias estáveis e imutáveis confirmadoras das definições das
identidades. Sendo assim, reconhecemos a importância do devir histórico para a relativização
das essencialidades.
A identidade Palestina está intrinsecamente relacionada à necessidade de reintegração
da terra e da realização da soberania Palestina. Todas as instituições refletem o seu exílio. O
paradoxo da indissociação da questão palestina com o nacionalismo árabe vem da ameaça à
sobrevivência palestina fora do seu território original. Reconhecemos a iminente diluição da
nacionalidade Palestina mediante a generalidade das comunidades árabes.
Até março de 1968, o movimento palestino era encarado como inserido no contexto
árabe mais abrangente. Tanto a vertente libertadora como o caráter nacionalista do movimento
palestino seriam vistos como resultados de uma situação paradoxal. Said aponta o dilema
inerente ao amadurecimento da OLP.

Mas, enquanto isso, surgiu o que viria a ser, como dito antes, a constante oscilação
Palestina – ou melhor, da OLP – entre uma direção revolucionária (libertação) e
outra que parecia transformar as estruturas do poder palestino em estruturas de um
estado árabe (independência nacional). Ambas eram resultados necessários da
paradoxal “situação” palestina que descrevo neste livro. Em teoria, essas duas
possibilidades não precisavam opor-se; entretanto, no contexto do problema da
identidade palestina, elas eram conflitantes. Mesmo quando houve uma escolha
clara, o problema dessas duas alternativas não terminou. Como os novos militantes
palestinos adquiriram uma grande quantidade de armas e organizaram-se
rapidamente em grupos militares e políticos, e é claro, como isso ocorria não na
Palestina, mas em um estado árabe fraterno, eles pareciam ser um desafio à
autoridade central do estado. 218 (SAID, 2011, p.181)

Ao traçar um perfil das correntes políticas que integram o movimento nacional


Palestino, Said afirma que, de maneira geral, todo movimento político, corrente de ideias ou

218
Ibid, P. 181.
140

debate significativos no mundo árabe foram dominados pela questão palestina. As diversas
organizações que foram criadas com o objetivo consensual de lutar pela libertação e
independência palestinas constituíram um perfil heterogêneo e fragmentador dos grupos. As
mais proeminentes são: o Fatah, a Frente popular de libertação Palestina (FPLP), Frente
popular democrática pela libertação da Palestina (uma ramificação da FPLP) e Saiqa (grupo
patrocinado pela Síria).
O Fatah seria o movimento mais representativo no que tange á liderança expressiva de
Yasser Arafat. O movimento é caracterizado por um perfil Nasserista em função da adoção da
importância da liderança que sintetiza o movimento e defende uma filosofia nacional
centralizadora. Said estabelece um perfil mais pragmático e menos ideológico do Fatah,
enquanto outros movimentos exigiam uma revolução árabe como mecanismo de reconquista
da Palestina e se recusavam a dialogar com Israel.
O Fatah, em outro contexto histórico, o Fatah acabou aderindo às várias possibilidades
de diálogo com o estado nacional judaico. No momento em que Said escreve A questão da
palestina, nos anos 70, a sua visão sobre o Fatah e a liderança de Yasser Arafat aparece como
mais otimista e crédula da legitimidade do seu grau de representatividade.
É necessário afirmar que Said escreve essa obra após a conferência de Rabat, em 1974,
quando a OLP foi designada como a única representante legítima do povo palestino, o que
acaba suscitando conflitos internos à presença Palestina na Jordânia e no Líbano.
O perfil heterogêneo do movimento palestino acaba ilustrando as opções alternativas à
luta armada em algumas tendências do movimento. A ideia palestina como elemento de
coesão motiva a persistência em determinados valores que transcendem as divergências entre
os árabes. A OLP defendia um estado democrático secular e essa ideia teria motivado os
avanços na direção contrária à pura revanche histórica.
Said insiste no problema da representação quando analisa o discurso das autoridades
egípcias, norte-americanas e israelenses que falam pelo palestino. A convivência com o outro,
o judeu israelense se insere no quadro de visibilidade que o palestino enfrenta melhor que o
israelense, na concepção do nosso autor palestino.
A representação etapista da autodeterminação palestina219 se orienta por uma
idealização de um nacionalismo restritivo para um campo de libertação nacional que deve

219
Para Said, quanto mais recente uma formação nacional, mais exclusiva e mais vigorosa é a sua reclamação.
Cada reivindicação nacional inventa tradições, suas próprias filiações. Said se define como um pensador cético
em relação as reclamações étnicas, nacionais , ou tribais, mas é preciso reformar a identidade Palestina que é
colocada em dúvida permentemente. O autor se diz desejoso de uma congruência entre memória, atualidade e
linguagem.
141

superar um processo de exclusão do outro. Aqui percebemos a presença de Fanon e suas


teorias sobre os limites do nacionalismo restritivo. Esse tema será profundamente abordado na
segunda parte da tese, quando procuramos discutir a relação entre o nacionalismo e o pós-
colonialismo.

Minha crença pessoal – que discutirei mais amplamente no último capítulo deste
livro - é que um estado Palestino independente e soberano é necessário neste estágio
para consumar nossa história como povo no decorrer do século XIX. O inventário
daquilo que somos, daquilo que fazemos e daquilo que fizeram contra nós jamais
poderá ser justificado inteiramente, ou mesmo incorporado, em um Estado. A visão
oposta, isto é, a de que um Estado pode retificar, defender e encarnar a memória de
uma história de sofrimento, parece explicar para os palestinos a teorização israelense
e a prática sionista de criar um Estado distinto para os judeus. Tanto em Israel
quanto na Diáspora, os judeus perdem muito quando se eximem dos problemas
palestinos, que em grande parte foram eles que causaram. Certamente perderam a
oportunidade de se engajar ao lado de outro povo em uma busca comum, em um
território agora comum, em um futuro comum (em oposição a um futuro
excludente). Não sou o único a trabalhar por uma patrie palestina, porque acredito
que esse sentido positivo da nossa história no século XX. Contudo, também tenho
muitos parceiros na crença de que essa patrie seria o primeiro passo, e talvez o mais
importante, rumo à paz entre árabes-palestinos e judeus árabes. Pois a paz entre
Estados vizinhos implicará fronteiras comuns, intercâmbio constante e compreensão
mútua. Com o tempo, quem não conceberá que as próprias fronteiras significarão
bem menos do que o contato humano entre pessoas para quem as diferenças
inspiram mais intercâmbio do que hostilidade? 220 (SAID, 2011, pp.200/201)

Para Said, o sionismo pressupõe um método de desapropriação da Palestina e de


promoção do exílio como vivência e a manutenção de Israel como um estado excludente. A
premissa negativa do sionismo possui ramificações muito complexas, portanto o processo de
paz deve levar em consideração esse pressuposto.
Said trata da importância do líder Anuar Sadat e da maneira como ele lida com o
sionismo, provocando um recuo nas posições israelenses. Os EUA teriam se apegado à
preemência da paz egípcio-israelense que, segundo eles poderia ser um passo para um acordo
mais amplo. As críticas de Said dirigidas à política externa norte-americana encaminham uma
reflexão sobre os passos contraditórios e inflexíveis que acabaram isolando os palestinos e as
massas árabes.
Said justifica as vantagens de Israel nos acordos de Camp David e na devolução do
Sinai para o Egito. As críticas aos limites desses acordos relacionam-se com uma
incredulidade no processo de autonomia gradual dos territórios Palestinos. Nos anos 70, o
governo Begin representou limitadas concessões e uma crença na manutenção dos territórios
ocupados além do status de Israel como um estado Ocidental superior no Oriente Médio.

220
Ibid, pp. 200/201.
142

Said resume algumas conclusões que sintetizam o argumento central do livro: a


realidade do sionismo forma uma prática favorável aos judeus e adversa aos não judeus, a
história palestina não é uma miscelânea de fatos históricos aleatórios. A experiência
recorrente de expropriação é uma realidade e o conflito real entre palestinos e sionistas ocorre
em uma região marcada e portadora de uma história plena de fatores regionais e culturais.
Said afirma de forma assertiva que 1967 foi um ano transformador na realidade
política Palestina. Essas mudanças têm sido recorrentes, embora não receba o devido peso
político. A questão palestina deve ser avaliada em sua associação com os grandes processos
históricos do Oriente Médio.
O início do livro versava sobre as diferenças entre a Palestina histórica e a Palestina
como realidade política contemporânea. A trajetória histórica do processo de desaparecimento
da Palestina e a sua transformação em fator político, deveria ganhar visibilidade e definição
de um status da Palestina árabe.

Para aqueles palestinos que perderam efetivamente a Palestina – a geração dos meus
pais, em termos de líderes políticos -, esta era uma Palestina árabe, Filastin
Arabyah. Essa geração não aceita o fato de que a Palestina se tornou Israel ou que
nesta vida ela não voltará a ser um país predominantemente árabe. Muito da vida
política e cultural do mundo árabe no período de 1948 a 1967 refletiu visões
semelhantes a essa. Israel, causa impronunciável de todos nossos males e, ao mesmo
tempo, a menos conhecida de nossas realidades, absorveu a energia árabe nacional
em grau absurdo. Israel definiu os limites do arabismo, designou nossos inimigos (o
imperialismo, o Ocidente etc.) e legitimou mais ou menos tudo que certos regimes
fizeram em nome da luta do “sionismo”. 221 (SAID, 2011, p.248)

A definição e a reafirmação da questão plestina como uma questão histórica concreta


deve se contrapor à visão sionista de uma terra desabitada ou de um grupo desprovido de
direitos políticos ou nacionais. Iluminar a questão palestina é oferecer uma visão alternativa,
um outro ponto de vista, que deve relativizar a representação sobre os palestinos, produzida
pelo establishment sionista liberal. Said reconhece uma recriação da identidade nacional a
partir da expropriação e do exílio.
O tipo de consciência crítica que Said advoga está ilustrado na expressão “o sionismo
do ponto de vista das vítimas”. O objeto palestino foi reificado pelo processo de
geografização222 histórica opressiva que habilita a consciência palestina. O sionismo
representa a Palestina e os palestinos como objetos reificados. Na forma Lucáksiana Said

221
Ibid, p. 248.
222
Said re refere no orientalismo que a geografia era o material que sustentava o conhecimento sobre o oriente.
Todas as carcterisitaicas latentes e imutáveis do oriente repousavam sobre a sua geografia, estavam nela
enraizadas. O oriente geográfico solicitava a atenção do ocidente.
143

mostra os sentidos, os processos pelos quais o sionismo manejou a reificação dos palestinos e
da Palestina. Resgatar o processo histórico é atribuir ao crítico a função de trazer de volta
elementos possibilitadores da consciência Palestina.
“O sionismo do ponto de vista das vítimas” não representa apenas um inventário
histórico gramsciano, mas simboliza a afirmação de uma crítica contundente ao sionismo e a
tomada de consciência de um processo histórico contraditório. A narrativa palestina jamais
admitida pelo sionismo, promove a necessidade de transfomação revolucionária por meio da
“permissão para narrar” que se coloca abruptamente como uma tomada de consciência. Ao
recompor o trabalho de Said por meio do pensamento de Lukács, notamos que ele está
dizendo que a consciência crítica palestina se organizou por meio das contradições da história.
A Questão da Palestina faz parte de uma trilogia que abrange o Orientalismo e o livro
Cobrindo o Islã (1981), este último reeditado com nova introdução em 1997. Esta trilogia
aborda a representação que o Ocidente produziu sobre o Oriente. Cobrindo o Islã trata
especificamente de como a mídia ocultava a temática do Islã ou abordava o tema223 como uma
construção ou entidade monolítica.
Desde a crise do petróleo nos anos 70, o Islã224 se converteu no elemento negativo
constituindo uma postura de repugnância que se estendia por todo um espectro político. Said
denomina que para a direita, o Islã representava a barbárie, para a esquerda, uma teocracia
medieval e para o centro, um ícone do exotismo oriental. É preciso fazer a distinção entre o
Islã representado por uma doutrina religiosa baseado no Corão, e o discurso que se apropria
do Islã politicamente.
A representação do Islã demonstrava uma série de generalizaçãoes que apontavam
para uma representação clássica da modernização que excluía o mundo muçulmano. O Islã é
visto como a causa de todos os problemas do Oriente Próximo, e associado necessariamente
ao terrorismo no Ocidente. Após o fim da guerra fria, o novo inimigo não era mais o
comunismo, este se convertia no Islã.

223
A revolução iraniana ampliou o estigma negativo em torno do islã, o que gerou uma imagem ampliada no
ocidente que vivia-se o ressurgimento do nacionalismo radical no mundo islâmico e que isso representava uma
guerra contra a modernidade.
224
O Islã era visto como uma entidade coerente, única e homogênea, além da indissociação equivocada e
conveniente entre o Islã político e a referência religiosa, dando a entender sobre um possível retorno da
“teocracia irracional” no Oriente. Para Said essa era uma generalização irresponsável, distante de um estudo
sério, com teorias complexas que tentavam comprovar o atavismo, o primitivismo e a violência como qualidades
ameaçadoras às sociedades ocidentais.
144

A teoria do “Choque das civilizações” de Samuel Huntinghton ajudava a traduzir a


ideia de um colapso das civilizações por meio da dualidade Oriente-Ocidente. A guerra do
Golfo parecia ilustrar o conflito entre o Islã e o Ocidente. A tese do choque de civilizações se
baseia no artigo de Bernard Lewis e acaba sendo apropriado por Ernest Gellner.
Said se refere ao Islã dos meios de comunicação. Ao discutir o Islã dos meios de
comunicação, voltamos a relação entre conhecimento e poder225. A representação responde a
razões geopolíticas e considerações da política exterior estadunidense. O Islã226 tem sido visto
como sinônimo de fundamentalismo. Esta representação tem contribuído para a distorção
política acerca da questão Palestina em função da existência de uma maioria Palestina
Muçulmana.
Em seu livro Blaming the victims (2001) em colaboração com Christopher Hitchens
Said ilustra que nos EUA existe uma progressiva campanha para silenciar a Questão
Palestina. Said entende a Intifada de 1987 como uma insurreição anticolonial da época
moderna. A esperança levantada peal intifada logo se diluiu em função dos acordos da OLP
liderada por Yasser Arafat que estabelecera acordos na guerra do golfo que reduziam o papel
da OLP nas negociações reais sobre a questão Palestina. O desligamento de Edward W. Said
do CNP se deu nesse contexto com a frustração de expectativas em torno da liderança da OLP
na questão Palestina. A crítica a declaração de princípios em agosto de 1993 que incluía o
mútuo reconhecimento de Israelenses e Palestinos culminando no acordo de paz e na
autonomia da faixa Ocidental (Cisjordânia) e Gaza.
O livro Peace and discontents foi escrito para um publico árabe, especificamente
palestino. A primeira versão do livro, publicada no Egito com o título; Gaza-Jericó, Pax
americana fala de um compromisso político com os palestinos. Trata-se de uma coletânea de
artigos publicados em periódicos árabes. Entre esses periódicos alguns como; Al Ahram e o
jornal Al Hayat.227

225
Na conclusão do livro Cobrindo o Islã, intitulado “Conhecimento e interpretação”, Said discute a relação
entre conhecimento e interpretação. Cada leitura ou interpretação avessa a qualquer modalidade de neutralidade
comporta algum tipo de afiliação política, moral, cultural. Said se refere a uma interpretação humanista onde o
leitor de uma cultura está consciente dos seus preconceitos e d sentido de alienação em relação ao texto que ele
se pretende interpretar.
226
O Islã tem sido uma discussão central na política dos estados assim como nos círculos midiáticos. A maioria
desses discursos, enconde o fato, que a maioria dos grupos islâmicos são verdeiros aliados dos EUA, quase
clientes, que estão na órbita dos interesses e negociós com este país.
227
Al Ahram é um jornal de periodicidade diária, Foi fundado no Egito em 1875, passou por variadas vertentes
polticas e editoriais, durante o período Nasserista foi nacionalizado, um dos jornais mais importantes editados no
Egito, possui versão em inglês e em francês. Al Hayat é um jornal da diáspora árabe no Ocidente, de origem
ibanesa, possui filiais na Europa e em alguns países árabes. Sua linha editorial é marcadamente liberal. Said
costumava contribuir para a versão inglesa, impressa em Londres. O jornal era muito popular no Líbano.
145

Os artigos versam sobre a situação contemporânea do oriente próximo, especialmente


os avanços e recuos da questão Palestina. Alguns desses artigos manifestam críticas
veementes aos acordos de Oslo228 e a representação ocidental sobre esse processo de paz.
Oslo represnertava a rejeição veemente das resoluções do conselho de segurança (242 e 338)
que falavam da devolução dos territórios aporpriados por Israel após 1967. Oslo não levava
em consideração essas resoluções.
Said aponta a fraude de Camp David, as promessas de devolução de 50 por cento da
Cisjordânia em territórios descontínuos, dez por cento seria anexado por Israel e quarenta por
cento submetido ao debate futuro, sendo que os assentamentos judaicos na Cisjordânia não
seriam desmantelados, e os israelenses se negariam a voltar as fronteiras anteriores à 1967,
Jerusalém Oriental seria mantida sob domínio israelense e Israel conservaria as áreas do rio
Jordão.
Said utiliza argumentos semelhantes aos utilizados no Orientalismo, mas seu foco de
debate está mais circunscrito nos contextos históricos do Oriente Médio e de como essa
representação tem interferido nas políticas de estado voltadas para este contexto.
O contexto intelectual e a representação nos meios de comunicação. A cobertura com
o trabalho dos especialistas acadêmicos em Islã, estrategistas geopolíticos falam da crise
crescente de uma forma alarmista na linha do choque de civilizações. O risco do declínio
ocidental alarmado nessas representações contribuiu para reforçar essa mitificação negativa
calcada no estereótipo orientalistas acerca do Islã.

1.5 Representações do Intelectual: as Conferências Reith de 1993

O livro Representações do intelectual publicado originalmente em 1994 reproduz uma


série de conferências transmitidas em 1993 pela BBC, onde Edward W. Said tenta responder a
questões que versam sobre o papel do intelectual no mundo contemporâneo.

228
A estratégia de Oslo era redividir e subdividir um territpório palestino em subzonas A, B, C controladas por
Israel. Said fala da pouca familiaridade com a geografia da região, do nível de arbirtrariedades inerentes aos
acordos de Oslo. As divisões davam conta de territórios descontínuos, Gaza e Jericó distantes uma da outra
estavam na mesma zona A, zona autônoma. Gaza predominava em termos de territorios autonomas porque eram
zonas conflagradas e de difícil acesso em termos de dominação política para Israel, além de uma aridez e
subsedenvolvimento econômico notáveis. A zona B seria dividida entre a conservação da polícia Palestina e
Israelense, mas na concretude tratava- se de um domínio israelense. A zona C seria marcada pela presença de
inúmeros assentamentos judaicos o que acabava por impedir a soberania Palestina na prática.
146

Com base nas diversas abordagens interpretativas da obra de Edward W. Said,


podemos nos aproximar de um suposto inventário de dilemas que não podem ser excluídos da
obra aqui analisada. O problema da mediação do conhecimento é uma das questões centrais
para a démarche teórica do autor palestino. Essa temática induz ao problema da representação
do intelectual na sua obra.
Nossa hipótese é a de que esse foi um dilema vivido pelo próprio Said, na medida em
que, como intelectual, ele preconizava o cosmopolitismo, o hibridismo do entre-lugar na
suspensão dos binarismos essencialistas. Por outro lado, como ativista, ele defendia um ethos
nacional a partir do engajamento político no movimento palestino.
Uma das visões do intelectual que permeia a obra de Said consiste em destruir os
estereótipos e outras categorias redutivas ao pensamento. O intelectual, na sua visão não é
alguém que se pode aprisionar no interior de um slogan, na ortodoxia de um partido ou de um
dogma. Com base no pressuposto pós-colonial da relação entre poder e conhecimento, Said
disserta sobre o papel político dos intelectuais, a importância da liberdade teórica e a
representação do intelectual como figura pública.
Para Said, o intelectual está permanentemente entre a solidão e o alinhamento: a
solidão, gerada pelo não enquadramento ou pelo caráter universal do discurso, e o
alinhamento, por meio do engajamento político. O humanismo saidiano presta tributo à crítica
antes da solidariedade. Aqui percebemos o dilema de posicionamento que se torna obstáculo
para a riqueza do pensamento, por isso a apologia ao contingente que subsidia a liberdade de
reflexão.
Parte da reflexão sobre o lugar do intelectual na modernidade se ancora no pressuposto
central da sua obra que guarda profunda relação com o estado de tensão irreconciliável entre a
estética e o social. Said denuncia uma padronização dos discursos que são denominados
valores universais e ocultam ou sublimam as singularidades culturais e políticas. Nesse
sentido, Said define como atributos do intelectual contemporâneo elucidar a disputa, desafiar,
derrotar o silêncio imposto ou o silêncio conformado do poder invisível.

Pois há uma equivalência social e intelectual entre essa massa de interesses coletivos
esmagadores e o discurso usado para justificar, escamotear e mistificar seu
funcionamento enquanto, simultaneamente, previne contra objeções e desafios que
possam surgir contra ele. Hoje em dia, quase universalmente, expressões como
“livre comércio”, “privatização”, “menos governo” e outras semelhantes tornaram-
se ortodoxia da globalização, são seus falsificados valores universais. São a base do
discurso dominante, idealizado para criar um consenso e uma aprovação tácitos.229
(SAID, 2003, p.35)

229
SAID, Edward W. , Cultura e Política, SP: Boitempo Editorial, 2003. p. 35.
147

Said utiliza a ideia do intelectual universal como em Foucault para contrapor


antinomicamente uma tendência contemporânea do especialista. Este pode correr o risco de se
tornar um técnico que trabalha de forma invisível, executando seu trabalho no micro espaço
de atuação e longínquo do ideal de intelectual público.
Said fala da mistura entre o mundo privado e o mundo público, da importância do
lugar de enunciação do autor, as suas experiências, seus valores. O intelectual contribui com a
sua missão coletiva, mas parte de uma inflexão pessoal, de uma sensibilidade particular. O
que interessa é o intelectual como figura representativa, sua vocação para a política, para a
solidariedade às causas coletivas. O dilema se coloca entre a adesão ao grande público
massificado, ao establishment ou à premência do elemento individual.

Como resultado, me parece, fue sólo com la publicación de Orientalism, en 1978,


que me vi forzado a enfrentar tu misma pregunta sobre la superposición entre
academia y política. Fue uma instancia dolorosa, como intenté demostrar en mi
posfacio a la edición de 1994. Allí decía que era de esperar un poco de hostilidad.
Pero me llevé la desagradable sorpresa de encontrarme con lo que me pareció la
intencional tergiversación de mi argumento sobre no ser anti-ocidental ni pró-árabe,
pro-islámico. Parte de esto – no sé cuánto – surgió de la suposición de que, estando
yo identificado como palestino/árabe, debía estar escribiendo desde ese punto de
vista.230 (OWEN, 2006, pp. 203/204).
 
 
Nem sempre a melhor e mais completa referência do ideal de intelectual é a figura do
contestador. O que Said defende como vocação intelectual é o estado de alerta constante, a
disposição de rejeição às ideias pré-concebidas, uma postura próxima ao que ele denomina
realismo firme.
Said parece ter se preocupado com a questão da linguagem do intelectual, das suas
formas de expressão. Desde a sua tese de doutorado sobre a obra de Joseph Conrad e a
impressão de uma dualidade conflitiva de uma escrita em língua não original e, portanto,
portadora de uma identidade polarizada, a questão do nacionalismo como mecanismo
formador de identidade do intelectual parece ser um tópico relevante nessa reflexão.
Ninguém se coloca além ou acima dos laços orgânicos que vinculam os indivíduos à
família, à comunidade e à nacionalidade. Said se refere a um nacionalismo defensivo, mas,
tomando como referência o pensamento de Fanon, é preciso que o intelectual tome partido

230
OWEN, Roger, Conversación com Edward Said In: BHABHA, Homi e MITCHELL, W. J.T. (Comps.),
Edward Said, Continuando la conversación, Buenos Aires: Editora Paidós, 2006. Pp. 203/204. Como resultado,
me pareceu, com a publicação de Orientalismo, em 1978, eu me vi forçado a enfrentar a sua mesma pergunta
sobre a sobreposição entre academia e política. Foi uma instância dolorosa, como tentei demostrar no meu
pósfacio a edição de 1994. Ali dizia que era de se esperar um pouco de hostilidade. Eu tive a desagradável
surpresa de me encontrar com o que parecia a intencional tergiversação do meu argumento sobre não ser anti-
ocidental nem pró-árabe, pro-islámico. Parte disto, não sei quanto, surgiu da suposicição de que, eu estando
identificado como palestino/árabe, deveria estar escrevendo desde esse ponto de vista. (tradução nossa)
148

dos gupos minoritários, tendo em vista que a crítica ao colonialismo é ponto de partida,
contudo esse alinhamento não é suficiente. O anticolonialismo é a origem de uma mudança
que deve ir além, em direção a uma transformação de consciência.
Segundo Fanon, o intelectual militante da causa nacional anticolonial não pode se
limitar a substituir o policial branco pelo seu equivalente nativo, o pensador deve ser capaz de
“inventar novas almas”. Fanon cita Aimé Césaire, o pensador da libertação martinicana, e
resignifica o papel do intelectual no sentido de garantir que a lealdade nacional à luta pela
libertação do grupo não reduza o seu senso crítico ou anestesie o seu espírito questionador.
Said fala em universalizar o sofrimento e esvaziar o caráter exclusivo ou provinciano
de um grupo sem que se possa perder o seu caráter singular da experiência histórica. A
transcendência das lealdades primordiais, étnicas, nacionais ou chauvinistas deve obdecer a
um universalismo de valores que faz do pensador um intelectual secular e antidogmático, um
questionador da autoridade ou dos consensos pré-estabelecidos.
O grande dilema contemporâneo aparece no desafio de como reconciliar nossa própria
identidade e as realidades da nossa cultura, sociedade e história com outras identidades,
culturas e povos. Said se refere ao exílio como um modelo para o intelctual que se sente
seduzido pelas propostas de acomodação, de conformismo ou de adaptação. O deslocamento
em direção às margens oferece uma lucidez crítica que comporta um privilégio de
perspectiva.
Said aborda a problemática da autonomia de pensamento no mundo árabe, quando se
refere aos riscos da secularização no universo progressivamente islamizado. Após o declínio
do nacionalismo nasserista nos anos 70, começou a se desenvolver um conjunto de crenças
locais e regionais administradas por regimes impopulares. A resistência cultural secular,
embora numericamente minoritária, tem sido sublimada e censurada.

O verdadeiro intelectual é, por contraste, um ser secular. Apesar de muitos


intelectuais desejarem que suas representações expressem coisas superiores ou
valores absolutos, a conduta ética e os princípios morais começam com sua
atividade no nosso mundo secular – onde tais princípios e conduta se realizam, a
quais interesses servem, como se harmonizam com uma ética consistente e
universal, como operam a discriminação entre poder e justiça, o que revelam das
escolhas e prioridades de cada um. 231 (SAID, 2005, p.120)
 
 
A reflexão sobre o papel político do intelectual está presente em diversas produções do
autor. Para Said, a representação do intelectual foi reformulada no contexto da Guerra Fria. A

231
SAID, Edward W., Representações do intelectual, As Conferências Reith de 1993, SP: Editora Companhia das
Letras, 2005. P. 120.
149

reconfiguração do papel do intelectual não representou a extinção dessa categoria ou o


desgaste da sua importância na sociedade contemporânea.
Said enumera alguns fatores que estimularam o reposicionamento do intelectual: o
alargamento da universidade, a ampliação do número de escritores e intelectuais, a era da
especialização, a comercialização e a transformação da economia no mundo globalizado.  
No contexto norte-americano, o profissionalismo e a especialização fornecem a norma
para o trabalho intelectual. Nesse cenário, predomina o culto do conhecimento especializado.
Na sua visão, o domínio público norte-americano está tão tomado por questões políticas e por
considerações de poder e autoridade, que o intelectual sem ambição por cargos, ou sem estar
obcecado por colocações importantes, acaba não encontrando projeção.
Os intelectuais que encontram espaço de manifestação no domínio público em geral
estão comprometidos organicamente com um partido político, um lobby, com interesses
particulares ou corporativos. Segundo Said, a separação entre os dois domínios, o acadêmico
e o público, é maior nos EUA do que em qualquer lugar. Essa consideração sobre o universo
contemporâneo esbarra em paradoxos latentes do seu diagnóstico acerca do papel público do
intelectual.
O autor cita as transformações ocorridas no contexto intelectual inglês, ressaltando
uma possível deteriorização nos anos 80 em função das transformações políticas. Said fala de
um recuo da intelectualidade britânica esquerdista, em função de um maior espaço dado aos
intelectuais neoliberais e thatcheristas, que têm a vantagem de obter mais espaço na imprensa
para apoiar ou criticar projetos políticos britânicos.
O autor palestino se contrapõe a Perry Anderson, historiador e editor da revista New
Left Review, atribuindo a seu discurso a imagem de um “canto fúnebre da esquerda”. A
resposta saidiana caminha aparentemente na direção do reconhecimento de uma
intelectualidade “sobrevivente” dessa “decomposição”.  
Said relembra a existência de intelectuais políticos de relevo tais como: Noam
Chomsky, o falecido Eqbal Ahmad, Germaine Greer, Ranajit Guha, Partha Chaterjee, além
dos intelectuais irlandeses, Declan Kiberd, Luke Gibbons, e outros que segundo o nosso autor
não aceitariam o “lamento solene do grande clamor neoliberal”.
O nosso autor oscila entre a posição, em certa medida, “otimista” para com a
possibilidade de que resta um campo alheio e intocado, onde a resistência contra a hegemonia
ainda é possível e a suspeita de que a dimensão pública do intelectual é pautada pelo sistema
dominante que estabelece as suas regras de inserção.
150

Para Said, o intelectual americano tem um desafio maior, mediante o papel


intervencionista dos EUA na geopolítica mundial. A marca da era em que vivemos aparece na
tendência de existência de uma ortodoxia mídia-governo dominante contra a qual é muito
difícil se posicionar, mesmo que o intelectual deva supor que se pode claramente demonstrar a
existência de alternativas.
Para o autor, alguns pressupostos devem orientar o trabalho do intelectual
contemporâneo e sua respectiva intervenção ativa. O primeiro deles é enfatizar a ausência de
um plano mestre, projeto ou grande teoria para aquilo que os intelectuais devem fazer, bem
como a ausência de qualquer teleologia utópica na qual a história humana pode ser descrita
em movimento. Isso deve estar associado ao papel do intelectual na preservação do passado,
tendência recorrente na aceleração do tempo.
Cabe ao pensador apresentar narrativas alternativas e outras perspectivas da história
que não aquelas fornecidas pelos combatentes em nome da história oficial, da identidade
nacional e da missão.
Said reflete sobre os usos políticos da História tendo em mente a historiografia
sionista e os sentidos políticos do passado judaico para a construção de uma historiografia
oficial israelense. Esta serviria para ajudar a construir narrativas míticas e constitutivas do
estado de Israel.
A “segunda luta” do intelectual aparece na construção dos chamados “campos de
coexistência”, no lugar dos campos de batalha. Said se refere ao processo de descolonização e
o surgimento de substitutos nacionalistas repressivos dos regimes coloniais, apesar dos
esforços retóricos do movimento dos não alinhados. Aqui reconhecemos o esforço acadêmico
que transformou esse conflito numa disputa ambígua entre oponentes ambivalentes. Said
idealiza o intelectual como uma espécie de contramemória, que com o seu contradiscurso, não
permitirá que a consciência desvie o olhar do objeto.
Para Said, o trabalho do estudioso sempre sofre a influência do seu passado, da sua
formação, das suas preocupações não acadêmicas. No seu caso, o pensamento foi modulado
por experiências como o exílio, o imperialismo e o ethos identitário palestino. O movimento
do particular para o geral e vice-versa deve ser uma constante. Isso significa falar com a
própria voz sem colaborar diretamente com os poderes hegemônicos da nossa sociedade.
Ao desenvolver algo além de uma mera vocação profissional, ou o que se denomina
por vocação intelectual, o pensador deve fazer um movimento externo à academia em direção
ao mundo mais amplo. O intelectual deve ser um oponente do consenso e da ortodoxia em
particular.
151

Na visão saidiana, o intelectual entra na esfera pública, no momento em que ele


escreve. Não importa o tipo de leitor, seja ele especializado ou não. Isso implica não ter medo
da controvérsia ou de assumir posições.
O intelectual de Said está relacionado ao humanismo crítico sem deixar de atuar nos
assuntos políticos. Seu intelectual está colocado de forma intermediária entre a universalidade
e o local, o subjetivo e o real. Esse ideal certamente se distancia do “platonismo acrítico” do
intelectual pensado por Julien Benda (1927)232, esvaziado de lugar social e acima das questões
mundanas.
Nesse contexto, os intelectuais são personagens simbólicos marcados por uma
distância obstinada em relação aos problemas práticos. Benda foi marcado pela experiência do
Caso Dreyfus e pelo contexto da Primeira Guerra Mundial, ambas as situações teriam
colocado à prova o papel ativo do intelectual.
Said tece referências constantes à reflexão gramsciana233 sobre o papel do intelectual.
Gramsci234 escreveu nos Cadernos do Cárcere que todos os homens são intelectuais: embora
se possa dizer que nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectual.
Para Gramsci235 existem dois tipos de intelectuais, os tradicionais (professores,
clérigos e administradores) e os orgânicos, diretamente ligados a classes ou empresas, que os
usavam para organizar interesses, conquistar o poder e exercer o controle.
Os intelectuais orgânicos estão ativamente envolvidos na sociedade, lutam
constantemente para alterar as mentalidades e expandir mercados. A tese de Gramsci236 é que

232 Julien Benda iniciou a escrita do seu livro mais famoso em 1924, concluído-a em 1927. O título A traição dos
intelectuais, no original La trahison dês clercs, representa um esforço em definir que a função dos intelectuais
seria pregar valores universais sem recair no realismo mundano. Seria vedado aos intelectuais a subjugação do
espiritual ao temporal, com a negação dos valores universais abstratos, tais como: justiça, verdade e razão. São
valores universais aqueles considerados consubstanciais à consciência humana, ideais desinteressados e racionais
que transcendem a realidade histórica. A categoria “clerc” significa no original em francês “clérigo” ou mais
amplamente uma pessoa instruída, um homem de letras. A menção a clérigo já denuncia a idealização do
intelectual como aquele que encarna valores universais sagrados, acima dos ideais do seu tempo.
233
A centralidade da luta pela hegemonia na nova estratégia revoluciuonária proposta por Gramsci explica a
razão por que o estudo da função dos intelectuais é tão marcante nos cadernos. Os intelectuais são atores
fundamentais das batalhas hegemônicas. Se todos os homens são filósofos, possuem uma concepção de mundo,
expressa no senso comum, todos exercem o papel de intelectual, embora nem todos exerçam integralmente esse
papel.
234
Desde Gramsci, o papel dos intelectuais ocupou um lugar central nos estudos do estado moderno. Ele
distingue entre o grande intelectual, aquele que elabora novas concepções do mundo, e a massa dos demais
intelectuais que difundem tais concepções.
235
Nos cadernos do cárcere existe um destaque para a questão intelectual, especialmente o cadeno número 12,
iniciado e concluído em 1932. Uma nota destaca a questão dos intelectuais e a outra o princípio educativo
152

todos os intelectuais são na realidade até certo ponto intelectuais orgânicos até quando estão
desvinculados de uma causa política.
A colocação intermediária de Said diz respeito a um debate sobre o intelectual, figura
pública ou pensador privado. Se a crítica a Benda como pensador conservador é óbvia, a
filiação ao pensamento gramsciano requer cuidados teóricos. Como Said percebe uma mistura
inevitável entre o público e o privado, este último entendido aqui como experiência subjetiva,
para o autor é dado como certo a inexistência da figura do intelectual privado.

Não existe algo como o intelectual privado, pois, a partir do momento em que as
palavras são escritas e publicadas, ingressamos no mundo público. Tampouco existe
somente um intelectual público, alguém que atua apenas como uma figura de proa,
porta-voz ou símbolo de uma causa, movimento ou posição. Há sempre a inflexão
pessoal e a sensibilidade de cada indivíduo, que dão sentido ao que está sendo dito
ou escrito.237 (SAID, 2005, p.26)

O movimento previsto deve ser a transferência da esfera particular, subjetiva e


individualizada para a coletiva. O círculo do intelectual deve se alargar para além dos seus
pares, sem a preocupação de agradar a uma audiência. As limitações de origem e o
enquadramento social existem, embora o intelectual deva exercitar o deslocamento, sair da
sua linha de conforto.
Para o autor palestino, a universidade ocidental, especificamente nos EUA, ainda pode
oferecer ao intelectual um espaço quase utópico, em que a reflexão e a pesquisa podem
continuar a acontecer sem eliminar alguns constrangimentos e pressões institucionais. Não
adianta ignorar as restrições do profissionalismo moderno, ou negar as suas influências.
Said sugere que, para manter uma relativa independência intelectual, o melhor
caminho é ter uma atitude de amador, em vez de profissional. O amadorismo aparece aqui no
sentido positivo, não na constatação da insuficiência ou do descompromisso. Essa postura
representa uma opção pelos riscos, pelos resultados incertos da esfera pública.
O intelectual deve estabelecer compromissos que vão além da estrita carreira
profissional. O desafio preciso do intelectual é não deixar–se enrijecer por uma instituição ou
tornar-se uma espécie de autômato, agindo segundo um sistema ou método.

236
A represerntação sobre o intelecutal tem relação direta com o poder de persuasão ou convencimento, o pdoer
que um homeme exrce osbre outro. Essa forma uma práxis interativa. Essa práxis se torna objeto de Gramsci em
suas obras associadas a sua maturidade. Os conceitos de catarse, de relações de força, de vontade coletiva, de
hegemonia, de estado integral que referem-se ao ser social que se situa numa esfera de interação. O ser social é
formado pela intima articulação dialética netre objetividade, subjetividade, entre causalidade e teleologia.

237 SAID, Edward W., Representações do intelectual, As Conferências Reith de 1993, SP: Editora Companhia


das Letras, 2005. P. 26.
153

A metáfora mais apropriada para definir o intelectual segundo a lógica compreensiva


de Edward W. Said é a analogia entre o potentado e o viajante. A imagem do viajante não
depende do poder, mas do movimento, de uma disposição de ir para o mundo, utilizar
diferentes idiomas, compreender uma variedade de retóricas e identidades.
Os viajantes suspendem a rotina ao viver ritmos variados em novos lugares. Eles
atravessam territórios e abandonam suas posições permanentemente alterando as suas
perspectivas. Diferente do potentado que precisa guardar somente um lugar e defender suas
fronteiras ou o que simboliza o dogma e a autoridade. O viajante representa a experiência da
impermanência que suscita liberdade, condição primordial para a produção do conhecimento.
Precisamos distinguir os domínios de atuação do intelectual. Said se refere muito
diretamente ao universo norte-americano, seu contexto original de formação e de atuação
acadêmica, o que não o impede de adotar uma perspectiva comparativa. No artigo “O papel
público dos escritores e intelectuais”,238 Said compara a ambivalência da categoria intelectual
no universo norte-americano e francês.
Para os franceses, esse conceito contém resíduos da esfera pública. Said cita o que
para ele seriam os intelectuais públicos franceses: Jean Paul Sartre, Michel Foucault,
Raymond Aron e Pierre Bourdieu. Esses representam o protótipo do intelectual que debate,
que apresenta as suas visões a um público mais amplo e que escreve na grande mídia.
Configura-se um ponto de partida do esquema comparativo em torno do ideal de intelectual.
O tema da compatibilidade do humanismo crítico com a ação política atravessa a obra
de Said e consequentemente os seus comentadores mais atentos. Esse dilema permeia a
representação do intelectual no conjunto da sua obra, e por isso, ocupa lugar no esquema de
compreensão da sua trajetória teórica. Sobre a representação do intelectual na obra de Said e a
respectiva recepção da sua obra no contexto norte-americano, devemos destacar a obra da
teórica Ella Shohat (1992)239.
Em artigo inserido no interior de uma coletânea sobre Edward Said, autora destaca a
receptividade negativa da obra de Said no cenário intelectual americano contemporâneo. Ella
adverte para a recepção “orientalista” das suas teses, para utilizar um termo saidiano, e para o
incômodo provocado no meio acadêmico norte-americano em relação às suas ideias.

238 SAID, Edward W., Humanismo e crítica democrática,SP: Editora Companhia das Letras, 2007. (1a. edição-
2004).  
 
239
SHOHAT, Ella, Antinomies of exile: Said at the frontier of National narrations In: Edward Said, a critical
Reader, SPRINKER, Michael (ed.), Massachusetts: BlackWell Publishers, 1992. P.. ( tradução nossa)
154

Sua reflexão inicia-se a partir dos seguintes questionamentos: vários palestinos partem
das mesmas posições políticas e teóricas de Said, por que houve uma projeção enfaticamente
negativa das suas ideias? Por que o incômodo da comunidade acadêmica norte americana com
a sua produção teórica?
A hipótese de Shohat é construída através do diferencial da trajetória intelectual de
Said. Este não parece estar confinado aos estudos sobre Oriente Médio, além de ter se
identificado como uma autoridade dos Estudos da Cultura ocidental. Seu trabalho partilha
certos traços da obra de vários intelectuais judeus/ não judeus de Nova York que contribuíram
para as mesmas revistas (Commentary, Partisan Review).
Para Ella Shohat, a figura de Said se tornara ameaçadora ao establishment norte-
americano em função da sua ambiguidade de definição, ou seja, o seu ethos intermediário,
difícil de ser enquadrado. Porta vozes da causa palestina, como Ibrahim Abu- Lughod, Rashid
Khalidi e James Zagby que, em certa medida, incorporavam estereótipos árabes,
especificamente palestinos, sem transitar por uma inserção dúbia, foram recebidos
positivamente e tiveram suas ideias mais facilmente assimiladas em função do seu lugar
identitário fixo.
Ainda na perspectiva da nossa autora, Said é visto como aquele que desorienta o
binarismo tão necessário ao contraponto Ocidente/Oriente, construído por boa parte da
intelectualidade norte-americana, marcada por uma postura explicitamente sionista. O
conhecimento sobre o Ocidente, o domínio da língua inglesa, a erudição clássica que a nossa
autora chama de “política de estilo”, envolvida em nuances de representação, impedem o
paradigma do conflito (Israel /Palestina) explorado pela mídia ocidental.
A leitura crítica de Ella Shohat sobre a recepção de Said nos EUA nos remete a uma
questão primordial para a nossa reflexão: a centralidade do conceito de exílio na produção
saidiana. O discurso nacional palestino ameaça o lugar central do judeu nas margens
privilegiadas da Europa/ Euro-América. O exílio, experiência essencialmente judaica, tornou-
se mecanismo identitário do povo palestino. Estamos refletindo sobre alterações no
monopólio dos conceitos de exílio e retorno.

Os conceitos de exílio e diáspora que permeiam os debates judaico-sionistas com


Said estão correlacionados à questão da vitimização. “Diáspora” e “exílio” têm sido
largamente monopolizados no cenário intelectual americano para se referir à
experiência judaica. O Sionismo sempre viu o seu papel de transformador da
experiência judaica diaspórica “anormal” numa nação regular.240 (SHOHAT, 1992,
p.135)

240
Ibid, p. 135. (Tradução Nossa)
155

A resistência israelense à obra de Said e aos intelectuais palestinos resulta


parcialmente no medo do bloqueio da auto-representação israelense no Ocidente. A evocação
de Said sobre os deslocamentos experimentados pelos palestinos deixou de ser
exclusivamente sionista para uma imagem reflexiva de outra experiência identitária. O
privilégio do exílio aqui retratado nos remete à multiplicidade de posições, pressuposto da
condição ontológica do intelectual.
Edward W. Said transforma a distância existencial e cultural em princípio teórico e em
reflexão crítica. Produz-se, então, uma aliança entre a contingência histórica e a necessidade
epistemológica.
O trabalho de Said está situado nas fronteiras frágeis que separam as culturas, as
nacionalidades e os discursos. Pelo difícil enquadramento social no contexto norte-americano
e pelo status intermediário, Said foi veementemente acusado de “Professor do terror”, de
autor que instigou a Intifada ou o escritor “irracional” marcado pela apologia do ódio na
atribuição analítica sobre o Oriente Médio.
O argumento crítico da intelectualidade norte-americana enfatizava a valorização da
civilidade, não atribuída ao nosso autor. A idealização da civilidade, aqui pensada como
controle de emoções – em direta oposição ao irracionalismo. Com a sua progressiva
militância, seus críticos insistiram na falta de objetividade do seu trabalho, e na linguagem
passional ao abordar a Questão Palestina.
A leitura de Shohat percebe uma incompatibilidade entre a inerente “Orientalização”
dos palestinos árabes e a sua celebração por ocidentais ilustrados, grupo do qual Said é
legítimo representante. Quando Said desenvolve o seu ensaio O sionismo do ponto de vista
das vítimas, acaba por dessacralizar a natureza paradoxal da “vitimização” judaica,
permanentemente explorada pela historiografia sionista. A evocação incômoda da memória
dos deslocamentos experimentados pelos palestinos se tornara uma imagem espelho, que
atribuía à terra de Israel ou Palestina um status de terra-mãe para ambas as imaginações
nacionais. Quando Said se utiliza da mesma imagem metafórica e desloca o peso dessa
trajetória para a identificação nacional palestina, essa experiência intelectual sintetiza uma
problemática para o imaginário norte-americano.
156

Recorremos à obra de Shohat241 para uma análise da recepção da obra de Said nos
EUA, e em Israel, pela Historiografia Pós-Sionista. Said se tornara um interlocutor da
produção intelectual liberal/esquerdista israelense nos anos 90. Shohat refaz o trajeto da obra
de Said marcando as principais obras, as marcas teóricas e busca explicar o sentido da demora
da tradução dos seus livros no contexto israelense.
As mudanças nos discursos da academia anglo-americana, fortalecidas pelo
multiculturalismo e pelos diversos “pós”; (pós-modernismo, pós-colonialismo, pós-
nacionalismo e o pós-estruturalismo) facilitaram a “viagem” das obras de Said para Israel e
possibilitaram a conciliação do “pós” com a Historiografia revisionista do sionismo,
produzindo o Pós- Sionismo. Shohat procura ilustrar esse percurso apontando algumas
incongruências. A autora afirma que os vínculos entre sionismo e colonialismo são
sublimados no pós-sionismo, ou seja, há um aproveitamento parcial da obra de Said.
O argumento final da autora, no artigo citado, destaca que a teoria pós-colonial foi
introduzida em Israel com um vácuo político e intelectual em relação à falta de leitura prévia
das produções anticoloniais (C.L.R. James, Cabral, Retamar, Aimé Césaire, Frantz Fanon).
Os intelectuais israelenses vivenciaram uma espécie de “queima de etapas”. O intelectual
israelense, leitor de Homi Bhabha ou Edward Said, jamais leu os antecedentes desse
pensamento, “pulando” para o “pós” sem ter tido contato com o anticolonialismo.
A representação do intelectual tal como pensado no contexto da obra de Said, se
vincula não só ao seu papel publíco, o seu progressivo engajamento nas causas políticas,
como também um portador da chamada crítca secular. Este é um propagador de conhecimento
e valores úteis, ele opera uma espécie de consciência atenta a esse universo. Como a teoria
eve se vincular à resistência e à contra hegemonia, o intelectual munido desse cabedal, deve
lutar contra o enquadramento alienante.

1.6 Cultura e Imperialismo: Nacionalismo e Libertação Nacional

O livro Cultura e Imperialismo242, publicado originalmente em 1993, denota uma


preocupação analítica em conexão com a representação do Oriente pelo Ocidente, objeto do

241
Para um aprofundamento do debate; SHOHAT, Ella, The “PostColonial” in Translation: Reading Edward
Said between English and Hebrew, In: Taboo Memories, Diasporic Voices, Durham: Duke University Press,
2006.
242
O livro em questão teve origem no conjunto de conferências que Said ministrou nas universidades dos EUA,
Canadá e Inglaterra entre 1985 e 1986. O conteúdo das confências versava sobre a análise dos textos europeus
157

livro Orientalismo. Said afirma que parte do trabalho sobre o imperialismo pode ser
decorrente da sua experiência de ser colonizado, por britânicos ou israelenses
No livro Cultura e Imperalismo, a cultura aparece como o espaço privilegiado para se
detectar as artimanhas do poder colonial. Ao extrapolar os aspectos meramente estéticos, a
cultura se torna um lócus privilegiado do reconhecimento de uma identidade nacional em
movimento. As diferenças e linhas divisórias entre os registros culturais formam estruturas de
autoridade e participação.
Nos registros culturais nacionais, existem aspirações e ímpetos em direção à
soberania. Quanto maior o esforço por estabelecer marcos de delimitação das fronteiras
culturais, paradoxalmente se mostra o hibridismo das experiências culturais e históricas.
Said utiliza a palavra cultura para sugerir um contexto externo, um processo ou
hegemonia nas quais os indivíduos e suas obras estão inscritas numa superestrutra. A sua
contradição aparece na relação intrínseca com a cultura hegemônica ocidental243. Embora
afirme utilizar o método do contraponto para apreender a cultura européia, não pode se
despreender de uma identificação com a cultura canônica ocidental.
Said cita os autores; Eric Hobsbawn e Terence Ranger (2006)244, quando analisa as
preocupações e a obcessão contemporânea pelas imagens puras sobre um passado privilegiado
e genealogicamente importante. A fundamentação historicista é resgatada em nome de uma
tradição necessária para a projeção de poder sobre o passado. A construção do passado
nacional também pode ser encontrada nas experiências pós-coloniais que mimetizam as
experiências da colonização.245
O termo “tradição inventada” é utilizado no sentido abrangente, porém definidor o que
envolve tanto as tradições construídas e institucionalizadas quanto as que são difíceis De
localizar no contexto de origem.

Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente


reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou
simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da

sobre África, Índia, partes do Extremo Oriente, Austrália e o Caribe. Said analisa as figuras retóricas que
simbolizam os estereótipos que fundamentam as concepções evolucionistas inerentes à produção cultural.
243
A cultura no contexto de explicação inerente a obra de Said deve ser relacionada ao ocnceito de hegemonia
que pressupõe consenso e controle. Não se trata de um regime de conformidade diretamente imposto na
correspondência entre discurso e política. Trata-se de um sistema de coerções e pressões por meio do qual a
cultura preserva a sua identidade imperial. Said procura identificar na cultura novos modelos de dominância.
244
HOBSBAWN, Eric, RANGER, Terence (orgs.), A invenção das tradições, SP: Editora Paz e Terra, 2006.
245
Esse debate deve ser aprofundado na análise das aproximações teóricas e possível filiação do pensamento
saidiano à obra de Frantz Fanon. Dedicamos uma parte da tese a análise da intersecção dessas duas obras.
158

repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao


passado. Aliás sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um
passado histórico apropriado. 246 (HOBSBAWM, e RANGER, 2006, p.9)

O objetivo e a característica das tradições inventadas é o seu caráter invariável. As


práticas devem se repetir e devem se inserir numa formalidade. A tradição tal como
Hobsbawm tipifica é diferente da convenção rotinizada. Ela deve possuir uma função
simbólica que pode ser ritualizada ou não. Muitas vezes os argumentos pragmáticos
desprovidos de função simbólica demonstram a fraqueza da tradição.
Hobsbawm considera que a invenção das tradições exige um processo de formalização
e ritualização que se refere ao passado, ainda que pela imposição da repetição. No caso do
nacionalismo sem antecendentes, torna-se necessária a invenção da continuidade histórica,
através da criação de um passado antigo que extrapole a continuidade histórica real.
A força e o caráter de adaptação das tradições antigas não podem ser confundidos com
as tradições inventadas. Hobsbawm define uma tipologia das tradições inventadas em três
classificações: primeiro; aquelas que elaboram a coesão social ou as condições de admissão
de um grupo, segundo; aquelas que legitimam instituições ou relações de autoridade e por
umltimo aquelas cujo objetivo seja a socialização, um sistema de valores e padrões de
comportamento.
As tradições inventadas são percebidas como indícios para elucidar a extensão
chauvinista de um tipo de nacionalismo, ou a forma expansionista–imperialista de uma
ideologia ligada à ideia de nação. A aplicabilidade dos estudos em torno do fenômeno das
tradições inventadas tem relação com análise da nação e dos fenômenos associados aos
nacionalismos e ao estado nacional com seus símbolos nacionais.
O conflito colonial justifica a elaboração dos mitos nativos e resignifica elementos do
passado da colônia com o objetivo de fortalecer um suposto ethos nacional. Said reconhece
que na experiência Histórica da descolonização permanecem práticas imperiais. O autor
expõe o sentido da elaboração de um exercício comparativo ao pensar sobre as experiências
sobrepostas e paralelas da colonização e da libertação colonial.

Assim, utilizando as perspectivas e os métodos do que se poderia chamar de


literatura comparativa do imperialismo, irei considerar como seria possível ampliar
o campo de sobreposições dos aspectos comuns entre as sociedades metropolitanas e
as ex-colonizadas, a partir de reavaliações ou revisões do conceito sobre as atitudes
intelectuais pós-imperiais. Observando as diversas experiências em contraponto,
como que formando um conjunto de histórias entrelaçadas e sobrepostas, tentarei

246
HOBSBAWN, Eric, RANGER, Terence (orgs.), A invenção das tradições, SP: Editora Paz e Terra, 2006. P.9.
159

formular uma alternativa para a política da culpa e também para a política mais
destrutiva do confronto e da hostilidade. Talvez isto dê origem a um tipo de
interpretação secular mais interessante, muito mais profícua do que as denúncias do
passado, os lamentos pelo fim dessa época ou- ainda mais prejudicial por ser
violenta e muito mais fácil e atraente- a hostilidade entre as culturas ocidentais e não
ocidentais que leva à eclosão de crises. O mundo é pequeno e interdependente
demais para deixarmos passivamente que elas ocorram. 247 (SAID, 1999, p.50)

Said define o conceito de cultura248 como um conjunto de práticas, como as artes de


descrição, comunicação e representação, que têm relativa autonomia perante os campos
econômico, social e político, que existem sob forma estética. Na introdução, Said justifica a
escolha dos romances europeus dos séculos XIX e XX como objeto privilegiado de análise
em função de um cenário onde as atitudes, as referências e as experiências imperiais aparecem
de forma mais clara.
A cultura nesse contexto pressupõe um conjunto de representações, sua produção, sua
circulação, história e interpretação. A dissociação da cultura e do poder parece artificial para o
autor. Said se refere à união do estético ao mundano, e reafirma o caráter híbrido das formas
culturais.
O conceito de cultura denota vestígios de uma ampla trajetória histórica que pressupõe
questões filosóficas, que podem sugerir a dualidade entre o natural e o artificial, o dado e o
criado. Procuramos utilizar o debate conceitual em torno da categoria de cultura, tal com
empreendido por Terry Eagleton (2000) no livro A ideia de cultura. 249
Para Eagleton (2000), a ideia de cultura representa uma dupla recusa que estabelece
um distanciamento simultâneo em relação ao naturalismo e ao idealismo. Eagleton cita
Raymond Williams e sua investigação da complexa história da palavra cultura. Em sua
acepção moderna, a palavra significa primeiro; civilidade, no século XVIII torna-se
civilização no sentido de um processo geral de evolução intelectual, espiritual e material.
Civilização significava o processo gradual de refinamento social como telos utópico, a
culminância do desenvolvimento. Para o autor inglês, cultura além de significar um registro
filosófico e histórico, pode ser o lugar de um conflito político.
Eagleton desenvolve o conceito no pós- modernismo onde o pluralismo se funde com
a identidade. O relativo acaba multiplicando as identidades distintas. O Pluralismo pressupõe

247
SAID, Edward W, Cultura e Imperialismo, SP: Companhia das Letras, 1999, P. 50.
248
Para Said, a transmissão e a perpetuação de uma cultura podem pressupor processos contínuos de
reafirmação, mediante a qual, a cultura hegemônica se impõe às prerrogativas outorgadas por um sentido de
identidade nacional, pelo seu poder de instrumento, aliado ao poder instituído, o que nos conduz ao conceito de
hegemonia.
249
EAGLETON,T. A ideia de cultura, SP: Editora UNESP, 2000.
160

a identidade como hibridismo, o que pressupõe pureza. Eagleton recorre a Said para atestar o
mútuo envolvimento, a interdependência das culturas que são híbridas e heterogêneas.
A cultura entra na agenda do século XX com a busca da emancipação política. A
dívida dessa noção moderna as experiências históricas do imperialismo e do nacionalismo, da
antropologia a serviço do colonialismo, é inegável.

Aproximadamente no mesmo ponto da história, a emergência da cultura “de massa”


no ocidente conferiu ao conceito uma urgência adicional. È com nacionalistas
românticos como Herder e Fichte que aflora pela primeira vez a ideia de uma cultura
étnica distinta, com direitos políticos simplesmente em virtude dessa peculiaridade
étnica; e a cultura é vital para o nacionalismo de maneira que, digamos, a luta de
classes, os direitos civis ou o combate à fome não chegam a sê-lo. Segundo certa
perspectiva, nacionalismo é aquilo que adapta vínculos primordiais a complexidades
modernas. Á medida que a nação pré-moderna dá lugar ao estado nação moderno, a
estrutura de papéis tradicionais já não pode manter a sociedade unida, e é a cultura,
no sentido de ter em comum uma linguagem, herança, sistema educacional, valores
compartilhados etc. que intervém com o princípio de unidade social. A cultura, em
outras palavras, chega intelectualmente a uma posição de destaque quando passa a
ser uma força politicamente relevante. 250 (EAGLETON, 2000, p.42)

Eagleton estabelece como tese que sobre a cultura está em crise na soeicdade
contemporânea porque estamos presos à noção de cultura frágil, porque muito ampla e por
outro lado o contraponto infere numa noção de cultura extremente rígida.
Escolhemos privilegiar a síntese desse debate como contraponto ao conceito de cultura
tal como apropriado por Said. O primeiro elemento aparece com a ênfase no percurso251 dessa
categoria sem privilegiar um dabete localizado epistemologicamente na história ou na
antropologia.
A trajetória de Raymond Williams252 e o paradigma de cultura que vigorava no
ambiente intelectual que o formou, pode explicar o seu posicionamento teórico que vai marcar
os seus leitores, entre eles Edward W. Said. A elitização da formação intelectual promove
uma idealização dos estudos culturais e suas ramificações; de que as obras culturais, como a
literatura, por exemplo. O equívoco de que a cultura paira acima de todos os conflitos sociais,

250
Ibid, P. 42.
251
Ao identificar a historicização realizada em torno do conceito de cultura, devemos nos remeter à história e ao
uso desse conceito em fins do século XVIII, na Alemanha, um nome que denominava a configuração ou
generalização do “espírito” que informava o modo de vida global de um determinado grupo. Em nossa época
esse conceito convive muitas vezes de forma abrangente, com os usos antropológicos e sociológicos, o que
denota um “modo de vida global” de um grupo social.
252
Raymond Williams, estudante em Cambridge no pós-guerra, tornou-se um destacado teórico socialista dos
estudos culturais que buscou desenvolver um trabalho focado nas diversas questões teórico-práticas que
envolvem o conceito de cultura. Sua obra abordou o papel da cultura no marxismo, formativo do chamado
materialismo cultural. Além de autor de romances, escreveu estudos sobre a mídia, a cultura de massa, o clássico
O campo e a cidade, que se pretende analisar a construção social do campo e da cidade na literatura, que
reproduz os sentidos criados no universo social da área rural e das cidades contemporâneas.
161

e deve ser vista como um fim em si mesmo, é refutada pelo teórico marxista. A
antinaturalização dos estudos culturais caminha na direção de que a cultura é a organização
simbólica dos significados e valores de uma determinada sociedade.
Identificamos a ideia de que a produção cultural é fundamental na constituição social,
e que a sociedade está profundamente enrededada em seus conflitos e lutas, cujas feições
marcam a própria forma de dar sentido á vida. Perceber o conteúdo social dos registros
culturais vai além do rastreamento dos mecanismos internos dos registros literários. A crítica
funciona exatamente como o leitor que aciona a percepção do externo, do social, no elemento
interno da obra.
Williams denuncia o formalismo exacerbado, originário de uma filtragem
norteamericana, influenciada pela teoria francesa do pós-estruturalismo. Suas críticas se
dirigem a permanente “contemporaneidade” dos objetos de estudos, e a secundarização da
história no seu movimento de descontinuidade. As conexões entre arte e sociedade o vinculam
à obra de Said.
Said resgata Williams no debate osbre afiliação, um temro que tem relação com o
mapemanmto das conexões no mundo netre praticas, indivíduos, classes, formações e
estruturas que o autor inglês utilizou nos seus livros: A Longa Revolução e O Campo e a
Cidade. Se a afiliação é um conceito dinâmico, que se faça explícita todo tipo de conexão que
nos tendemos a esquecer e que precisa estar a mostra para uma mudança política. Quando
questionado sobre o caráter intencional da afiliação, Said responde que afiliação diria respeito
mais ao alinhamento no sentido do conceito de Williams253 do que de compromisso, ou
engajamento.

Meu trabalho desde o Orientalismo deve muito ao trabalho de Raymond, ou a uma


frase na obra de Raymond que sempre luto para realiizar mas que, no final do livro,
percebo ter apenas chegado ao ponto no qual começo a lidar com ela, e talvez eu
ainda não a tenha realizado inteiramente. A frase é - embora eu tenha esquecido
onde você diz isso, Raymond – a necessidade de desaprender o modo inerentemente
dominador: o tipo de tom perturbador, intimidador e autoritário que hoje está
presente mesmo nos Estudos Culturais. Devemos para questionar isso tudo,
encontrar uma abordagem mais crítica, engajada, interativa e até dialógica – apesar
de muitos odiarem esse termo devido ao culto recente a Bakhtin – uma abordagem
na qual as alternativas são apresentadas como forças reais, e não simplesmente como
meios de se alcançar um equilíbrio, obviamente deixando invisível, por trás da tela,
a pessoa que segura a balança -quem, de fato, possui o poder. Isso pode apenas ser
feito, e em última instância, de modo colaborativo ou cooperativo. Este é o último,
talvez o aspecto mais importante que gostaria de salientar. O grande horror que,
penso, deveríamos todos sentir é o horror diante de ortodoxias sistemáticas e

253
R. Williams estabelece uma oposição entre alinhamento e compromisso, sendo o ultimo mais intencional que
o primeiro.
162

dogmáticas de um ou outro tipo que desfilam como a última palavra da alta teoria,
em tinta freca na imprensa. 254 (WILLIAMS, 2007, pp.217/218)

A crítica de ambos os autores se dirige à excessiva fragmentação da composição


estética e a dissociação que as sociedades capitalistas promovem obedecendo ao impulso
restritivo que culminam com o divórcio entre sociedade e produção cultural. A crítica cultural
marxista, do qual Williams se destaca, realiza uma tarefa premente de forma a instituir a
cultura como um modo de criticar a vida social do ponto de vista de uma idealizada
neutralidade.
A cultura não está no plano elevado que uma minoria privilegiada é capaz de
compreender e ter acesso. O elitismo, o consevadorismo da prática cultural tal como vista por
uma tradição intelectual conservadora é denunciada nesse contexto.
Said e Williams denunciam a importância da cultura como um elemento fundamental
ao funcionamento e manutenção de um sistema. Em resposta às criticas empreendidas por
teóricos marxistas que definem sua perspectiva, como demasiadamente culturalista, Williams
responde que sem a cultura é impossível compreender o conceito de hegemonia, tal como
desenvolvido por Gramsci.
O autor inglês devolve à historicidade ao conceito idealista de cultura e rejeita a ideia
de que a esfera do valor atribuído a cultura fica protegida dos confrontos. O potencial
cognitivo da crítica cultural aparece na interelação entre as formações sociais e as feições
culturais. William se autodefine um porta voz do materialismo cultural, um seguidor aprendiz
dos ensinamentos de Marx, com o foco na cultura. A cultura seria o mecanismo de elo entre
arte e sociedade com significados diferentes para contextos variados.

Creio que uma outra forma, por meio da qual um método de análise é submetido a
uma prova empírica bastante dura é a seguinte: se estamos dizendo que a análise da
representação não é um assunto separado da história, e penso que tanto Edward
quanto eu estamos dizendo isso, mas que as representações são parte da história,
contribuem para a história e são elementos ativos na maneira como a história
caminha; na maneira como as forças são distibuidas; na maneira como as pessoas
percebem as situações, tanto de dentro de sua realidade urgente quanto de fora dela;
se estamos dizendo que esse é um método real, então o teste empírico a ser realizado
aqui é verificarmos se os métodos comparáveis de análise estão sendo aplicados a
situaçãoes que estão muito distantes no espaço, possuem tessituras muitos diversas e
desencadeiam consequências bastante diversas no mundo contemporâneo.255
(WILLIAMS, 2007, p.213)

254
WILLIAMS, R. “Mídia, margens e Modernidade, Raymond Wiliams e Edward W. Said”. In: Políticas do
modernismo, contra os novos conformistas, SP: Editora UNESP, 2007. pp.217/218
255
WILLIAMS, Raymond, “Mídia, margens e Modernidade, Raymond Wiliams e Edward W. Said”.In: Política
do Modernismo, contra os novos conformistas, SP:Editora da UNESP, 2007.p.213
163

A sociologia da cultura256 formada na segunda metade do século XX, preocupa-se com


os processos sociais de toda a produção cultural, inclusive daquelas formas de produção que
podem ser designadas como ideologias. A sociologia da cultura deve se nortear pelas
instituições e formações da produção cultural, além de preocupar-se com as relações sociais
de seus meios específicos de produção. No contexto de Williams a sociologia da cultura deve
ser uma sociologia histórica. Esta deve levar em conta a diversidade histórica.
Williams defende que a cultura vista como um sistema de significações realizado, não
só abre espaço para o estudo das intituições, práticas e obras significativas como também
estimula o estudo das relações entre essas e outras intituições, práticas e obras. Seu principal
argumento definia-se pela concepção de cultura distinta daquela imaginada a partir do século
XVIII, como uma esfera autônoma, composta idealizadamente como um refúgio a salvo dos
conflitos da vida real.
A premissa de que a base de dominação imperial pode ser verificada por meio da
análise da cultura como indício da dominação colonial acaba sustentando o fato de que as
insituições políticas, militares e econômicas denotam relações de poder sutilmente ocultas.
São dois os temas predominantes no livro Cultura e Imperialismo: a saber, uma
análise do modelo mundial da cultura imperial que se desenvolve para respaldar a exploração
colonial e o segundo se contrapõe ao primeiro, e pode ser ilustrada pela resistência contra o
império.
A produção cultural está sempre impregnada do caráter político da sua sociedade. A
cultura é ao mesmo tempo função e fonte de identidade e isso justifica a busca por uma
tradição cultural alocada no passado das sociedades pós-coloniais. A cultura pode ser
mecanismo de dominação e um recurso de resistência ao império.
Quando meio de resistência há um esforço considerável para se evitar os desvios para
uma retórica fundamentalista, nacionalista, doutrinária ou religiosa, o que acaba por incidir na
hegemonia da cultura imperial. Devemos admitir que a análise desses riscos possui estreita

256
Devemos desenvolver o conceito de cultura no contexto de produção do teórico Raymond Williams,
referência bastante citada na obra de Edward W. Said. Procuramos utilizar as seguintes referências; WILLIAMS,
Raymond. Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp; 2011. Cultura, SP: editora Paz e Terra, 1992.
Marxismo e Literatura, RJ: Zahar Editores, 1979. Política do Modernismo: contra os novos conformistas. São
Paulo: Editora Unesp; 2007, Política e as letras: entrevistas da New Left Review. São Paulo: Editora Unesp;
2013. A produção Social da Escrita, SP: Editora UNESP, 2013 e por fim a obra; Palavras chave|: um
vocabulário de cultura e sociedade, SP: Editora Boitempo editorial, 2007. No livro, Política do Modernismo,
contra os novos conformistas, encontramos um apêndice, denominado, “Mídia, margens e Modernidade,
Raymond Wiliams e Edward W. Said”. Este trecho reproduzia uma conversa entre os autores, precedida da
exibição dos filmes, baseados nos seus respectivos livros; O campo e a cidade, de Mike Dibb, baseado no livro
homônimo de R.Williams e “A sombra do Ocidente”, de Geoff Dunlop, bseado no livo Orientalismo, de Edward
W. Said.
164

vinculação com o pensamento fanoniano. A política de interpretação laica aponta para os


tropeços da consciência nacional e um desses obstáculos estaria vinculado à retórica da
vitimização que inibe a mudança social.
Onde existe poder imperial existe resistência. A estratégia de resistência para Said
passa por duas fases, a recuperação do território geográfico e a mudança cultural. A estratégia
saidiana de resistência consiste em fazer uma viagem de retorno e responder ao imperialismo.
Said considera que o imperialismo e o neocolonialismo não são abstraçoes, são
concretudes fortemente associadas à geografia local e a luta por representações. Said cita a
análise do centralismo geográfico europeu subsidiado por um discurso cultural que relega o
não europeu a uma categoria secundária fortalecida pelo estatuto racial, cultural e ontológico
subalterno.
A posição secundária alimenta a posição primária e a identidade do europeu.
Percebemos que a representação do colonizado pelo colonizador depende diretamente do grau
de resistência do primeiro. Essa representação sofre uma evolução histórica simultânea ao
processo de contraposição do colonizado em relação ao colonizador. Para Said, é primordial a
construção de uma síntese superadora que questione a unilateralidade do imperialismo e do
nacionalismo.
Como nem a cultura nem o imperialismo são inertes, as conexões entre eles, enquanto
experiências no tempo, são dinâmicas e complexas. A cultura é uma forma de distinguir a
realidade. A única maneira de se estudar a cultura do imperialismo de forma não monolítica é
através do viés histórico.
Said aponta a promíscua relação entre o alinhamento acrítico dos intelectuais
contemporâneos e as instituições de poder. No devir histórico existem elos de continuidade
entre a experiência colonial, com uma perspectiva de resistência, e uma situação histórica
contemporânea.
Said retorna às teses defendidas no Orientalismo para confirmar as críticas ao
eurocentrismo do alegado universalismo dos registros literários. A universalidade do cânone
ocidental deve desvelar uma genealogia que, apesar de encoberta, pode revelar um discurso
ou um arquivo cultural com demarcações sistêmicas.
A totalidade ocidental presente na “literatura mundial” fala de uma hierarquia que
organiza o império e o espaço geográfico efetivo que colaboram para produzir um império
mundial. A história literária é privilegiada em função da uma continuidade orgância entre as
primeiras narrativas literárias com pouca ou limitada relação com o império, e os registros
posteriores onde essas conexões são fácilmente observáveis.
165

Said ilustra o caso classico da Inglaterra que é vista como uma potência reguladora e
normativa, e o mundo colonizado como subordinado e dominado. Os traços literários emanam
das relações de poder nas atitudes, nas referências e nos hábitos vivenciados nesse universo
que serve de cenário nos romances.
O empreendimento imperial deve ser percebido pelo leitor nas entrelinhas ficcionais
dos romances. Said enumera quatro conseqüências interpretativas da estruturação de atitudes
desveladoras do imperialismo, a saber: a primeira delas diz respeito a uma continuidade
orgânica insólita entre as primeiras narrativas e as produções subseqüentes. O segundo ponto
faz referência as atitudes sociais denotam as relações de poder.
O terceiro ponto quando os romancistas articulavam a posse de poder, os privilégios
no estrangeiro com as atividades análogas no país natal. E por fim o quarto ponto diz respeito
aos traços individuais de cada autor que devem ser levados em conta na análise do processo
imperialista. Os traços especificos do romance devem ser vistos nos seus aspectos autorais e
particulares sem perder a consciência da totalidade das relações de autoridade colonial que
aparecem nas narrativas. Said ressalta que a narrativa é sempre um ato social, portanto as
análises não podem ser internalistas.

Há em primeiro lugar, a autoridade do autor – alguém que põe em palavras os


processos da sociedade de uma maneira institucionalizada aceitável, observando
convenções, seguindo padrões e assim por diante. Há a seguir, a autoridade do
narrador, cujo discurso escora a narrativa em circunstâncias capazes de ser
reconhecidas e, portanto, carregadas de referências existenciais. Por último, há o que
poderíamos chamar de autoridade da comunidade, cujo representante na maioria das
vezes, é a família, mas também a nação, a localidade específica e o momento
histórico concreto. Juntos, elas funcionaram da forma mais enérgica e perceptível
durante a primeira metade do século XIX, quando o romance se abriu para a história
de uma maneira sem precedentes. 257 (SAID, 1999, p.117)

Said empreende uma territorialização do lugar social, que vincula cultura e


imperialismo258. O autor se refere a uma primazia geográfica associada a uma ideologia do
controle territorial. O retrato das relações hierárquicas tal como ilustrado no espaço social dos
romances não pode ser escrito por qualquer pessoa, a autoridade que produz a narrativa fala
de um mundo circundante, o lugar de enunciação é socialmente regulado.

257
SAID, Edward W, Cultura e Imperialismo, SP: Companhia das Letras, 1999. P. 117.
258
O debate historiográfico sobre o imperialismo é muito amplo e envolve uma série de nuances temáticas
relacionáveis, tais como: o nacionalismo, a incompletude do desenvolvimento econômico e industrial, o sistema
dos estados nacionais, entre outros. Desenvolver essa temática mereceria um amplo espaço que não se insere no
conjunto de objetivos da realização desse trabalho. Reconhecemos que Said não realizou a opção da leitura
econômica sobre o imperialismo e que seu viés de entedimento desse processo se deu por meio da análise da
cultura.
166

Quando os vínculos entre o processo imperial e a literatura são realçados a


comparação entre o imperialismo inglês e françês é inevitável. Said estabelece parâmetros
espaciais de distinção entre a empreitada inglesa e o processo de dominação francês. A França
aparece nesse contexto como um império que mostra preoucupação cultural esporádica,
delimitada e especializada. Antes de dominar a Argélia, a França não possuía uma grande
colônia como era a Índia para a Inglaterra e estava ausente do caráter ideológico e político do
império, uma visão departamental.
O poder de representar o que está além das fronteiras, mesmo em discursos informais,
deriva das formas dessa sociedade imperial. Como o discurso não era dirigido para os nativos,
a representação estabelecida se dava via mediação artificial de quem narrava. Os mecanismos
ideológicos que sustentam o processo imperial assumem uma suposta a distinção ontológica
essencialista entre Ocidente e Oriente
As fronteiras geográficas são sentidas com tamanha força, que podemos considerá-las
absolutas. Há quase que uma recusa da simultaneidade temporal e uma descontinuidade
radical em termos de espaço humano, tal com analisado pelo antropólogo Johannes Fabian. 259
Fabian delimita uma contradição inerente à disciplina antropológica. Se por um lado o
conhecimento etnológico é produzido no trabalho de campo, por meio da comunicação
intersubjetiva entre os antropólogos e o “outro”, por outro, formas tradicionais da etnografia
representativa necessitam da diluição das realidades dialógicas que gera a produção de
conhecimento na antropologia. A simultaneidade da esfera intersubjetiva do trabalho de
campo e a hierarquização inferiorizante do outro, percebidos diacronicamente na produção
antropológica, acabam integrando o que Fabiana define pelo “uso esquizogênico do tempo”.
O problema da alocronismo fundamental da antropologia como um dilema constante é
central na obra de Fabian. Se a filosofia crítica deve investigar a definição dialética do outro,
reconhecer o seu plano teórico significa reconhecer as suas condições temporais, históricas e
políticas. O problema político da assimetria epistemológica começa com a dominação e a
exploração de uma parte da humanidade pela outra.
Fabian fala da natureza ideológica dos aspectos temporais da etnografia. O
pressuposto de que conhecimento é poder é o início do primeiro capítulo do livro de Johannes
Fabian, denominado “O tempo e o outro emergente”. O conhecimento sobre o outro é

259
A análise da função constitutiva do tempo na antropologia anglo-americana e francesa e seus respectivos
desdobramentos conceituais acerca dos sistemas temporais estãos presentes no livro O tempo e o outro, como a
antropologia estabelece seu objeto. O argumento principal do antropólogo Johannes Fabian está relacionado
com uma analise da contradição inerente ao conhecimento antropológico produzido no trabalho de campo.
Fabian define o conceito de coetaneidade com o objetivo de consolidar uma categoria fenomenológica que
significa a contemporaneidade como a sincronicidade/simultaneidade.
167

necessariamente um ato temporal, histórico e político. O discurso temporal da antropologia


foi moldado durante muito tempo pelo evolucionismo e repousava numa categoria de tempo
que não era apenas secularizada e naturalizada.
As condições epistemológicas que moldavam o pensamento antropológico emergente
no século XIX, passava a ser vinculada com o colonialismo. A antropologia naturalizava o
tempo evolutivo. Todas as sociedades eram colocadas numa vertente temporal linear que
procurava arrumar todos os grupos em estágios mais evoluídos, primitivos, selvagens,
categorias condicionadas a esse vetor único que ía do mais atrasado ao mais evoluído.

Para antecipar uma objeção: as sequências evolutivas e sua concomitante prática


política do colonialismo e od imperislimo podem parecer incoporativas; afinal elas
criam um quadro de referência universal capaz de acomodar todas as sociedades.
Mas, sendo baseadas na episteme da história natural, elas se fundamentam no
distanciamento e na separação. Não haveria raison d`étre para o método
comparativo se não fosse a classificação de entidades ou traços que primeiro têm
que ser separados e diferenciados antes que se possa utilizar suas semelhanças para
estabelecer taxonomias e sequências de desenvolvimento.260 (FABIAN, 2003, p.62)

O problema da negação da coetaneidade às culturas investigadas é a questão central


nessa reflexão. Fabian desenvolve o pressuposto do reconhecimento da coetaneidade no
trabalho de campo antropológico e o convívio antinômico com a negação desse princípio na
teorização e na literatura antropológica.
Por trás desse conflito teórico e epistemológico, existe um dilema ético e político, um
pressuposto básico inerente à esse debate. O espaço político e o tempo político são
instrumentos de poder ideologicamente construídos. A negação da coetaneidade pode ser
atribuída a uma questão epistemológica importante. “Se a ascendência – o elevar-se em uma
posição hierárquica –está excluída, as suas relações devem se dar num mesmo plano: elas
serão frontais. A antropologia, como o estudo da diferença cultural, só pode ser produtiva se a
diferença é trazida para a arena da contradição dialética.”261
Said incorpora o debate sobre o tempo de Fabian na medida em que ele sintetiza os
mecanismos do ideário que formatou o campo das ideias no dominio imperial. O primeiro
ponto aparece como uma questão central para Said que se define pela distinção ontológica
entre Ocidente e Oriente.
Said recorre à critica e à negação da simultaneidade temporal, uma descontinuidade
radical em termos de espaço humano e a criação de taxonomias falsas que arrumam as

260
FABIAN, Johannes, O tempo e o outro, como a antropologia estabelece seu objeto, Petropólis: Editora Vozes
, 2003. Página 62.
261
Ibid, p. 179.
168

diferenças culturais em esquemas evolucionistas. A codificação das diferenças nos diversos


esquemas evolucionistas, utilizam categorias como, primitivo, selvagem, degenerado, natural,
antinatural. O terceiro elemento tem relação com a convergência entre a extensão dos
impérios e os discursos culturais universalizantes.
Said fala em “microfísicas” do imperialismo para mostrar a imposição do poder no
cotidiano da colônia, que para além das práticas rotineiras imersas numa sistemática do poder
colonial, conta com a elaboração de um discurso unificado. A incorporação do discurso que
justifica a dominação acaba inibindo a mudança.
Quando Said analisa Kim, o romance de Kipling, este acaba sendo associado aos
romances de Joseph Conrad numa visão complacente com a inevitabilidade do império. O
romance de Kipling é uma grande contribuição a uma Índia imaginária e orientalizada, assim
como aquilo que os historiadores vieram a denominar como uma invenção de uma tradição.
Said reconhece os méritos estéticos da obra, embora a relação entre poder e saber sejam
inerentes à perspectiva de uma obra com traços orientalistas.

A literatura de Kipling oferece uma antítese: seu mundo, por estar situado numa
Índia dominada pela Inglaterra, não oculta nada ao europeu expatriado. Kim mostra
como um sahib branco pode gozar a vida nessa opulenta complexidade; e diria eu, a
falta de resistência á intervenção européia nesse mundo – simbolizada pela
facilidade com que Kim se move pela Índia comrelativa segurança --- deve-se a essa
visão imperialista. Pois aquilo que a pessoa não pode fazer em seu meio ocidental –
onde tenta concretizar o grande sonho de sucesso significa erguer-se contra a própria
mediocridade e a corrupção e a degradação do mundo – ela pode fazer no
estrangeiro. Na ìndia, não é possível fazer tudo? Ser qualquer coisa? Ir a qualquer
lugar impunemente? 262 (SAID, 1999, p.209)

Os personagens de Kipling transitam a vontade por uma Índia colonial, que não lhes
exige nenhuma contrapartida, se sentem a vontade, sem nenhum contrangimento ou
desconforto. Said associa Kipling com Camus e sua relação com a Argélia, em função das
identidades assimiladas confortavelmente. Se a Índia é posse segura da Inglaterra, a condução
geográfica e espacial se colocam no lugar da orientação temporal da literatura européia
metropolitana.
Said afirma que ler essas obras do mundo descolonizado em contraponto ou em
confronto coletivo com outras obras não significa redúzi-las a uma propaganda imperialista
nem minimizar seus dotes estéticos e artísticos, embora o crítico jamais deva perder de vista
as ligações intrínsecas com os fatos políticos que lhes deram espaço e forma.

262
SAID, Edward W, Cultura e Imperialismo, SP: Companhia das Letras, 1999. P. 209.
169

Quand Said caracteriza o imperialismo ele faz questão de afirmar que nenhum sistema
social pode ser hegemônico na sua totalidade, existe um campo de resistência. Said perceb o
imperialismo como a doutrina dos interesses que se estabelece como norma vigente nas ideias
polítcias acerca do destino mundial da Europa, e tem como contrapartida a resistência das
classes subjugadas.
Said define o ideário imperialista e simultaneamente caracteriza o romance realista
moderno, como uma forma estética, cujos parâmetros de estilo acompanham dilemas políticos
e ideológicos caracterísitcos do imperialismo. O enredo conta sempre com personagens que
vivenciam dilemas em torno da discrepância entre as expectativas ilusórias e as realidades
sociais que os cercam. A ambivalência entre a aceitação naturalista da dominação colonial e
uma sensação de inconformismo com essa situação política, acompanhava os romances
realistas, tais como os de Joseph Conrad.

Foi como se os membros das culturas européias dominantes, depois de séculos


encarando o imperialismo como um fato de seus destinos nacionais a ser tomado
como algo natural, ou como objeto de exaltação, consolidação e intensificação,
passassem agora a olhar o mundo estrangeiro com o ceticismo e a perplexidade de
gente surpreendida, e talvez até chocada com o que via. Textos culturais
introduziram na Europa o estrangeiro pintado com traços que traziam claríssima a
marca do empreendimento colonial, dos exploradores e etnógrafos, geólogos e
geógrafos, comerciantes e soldados. No início despertaram o interesse do público
europeu; no começo do século XX, eram usados para transmitir um sentido irônico
da vulnerabilibidade européia, mostrando também que – na grande frase de Conrad
– “este também foi um dos lugares escuro do mundo”. 263 (SAID, 1999, p.243)

A metáfora literária do espaço avança sobre um materialismo complacente que


sintetiza o imperialismo na sua acepção capitalista. O autor enfatiza que a manifestação
cultural, os romances, ou a ópera, não são causas do processo de dominação imperial. Said
questiona o convívio dos ideais humanistas da Inglaterra, em caráter ahistórico, com as
celebradas formas distantes da experiência neocolonialista.
Said estabelece conexões entre os textos culturais e o processo imperial, argumentando
que, para fazer isso, é preciso rastrear supostas filiações da produção estética ao projeto
imperialista. Destacam-se, nessa obra, críticas as experiências nacionalistas pós-coloniais. A
Índia, com a formação do seu estado através de Nehru, torna-se um objeto ilustrativo.

263
Ibid, p. 243.
170

Encontramos nesse contexto um diálogo com os Estudos Subalternos264, além da


referência constante à teoria de Frantz Fanon.

O Ponto culminante dessa dinâmica de dependência é o Nacionalismo que acabou


criando estados independentes nos países antes coloniais. Dois fatores políticos, cuja
importância já havia sido notada na cultura, marcaram o fim do período do anti-
imperialismo nacionalista e inauguraram a era da resistência anti-imperialista e
liberacionista. Um deles foi a profunda percepção da cultura como Imperialismo, o
momento reflexivo da consciência que possibilitou ao novo cidadão independente a
formar o fim da pretensão cultural européia de guiar e/ou instruir o não europeu.265
(SAID, 1999, p.327)

Na introdução do livro Cultura e Imperialismo, Said fala do chamado “arquivo


cultural” demarcado pelo processo imperialista, o que estimula o problema da
representação na análise da cultura como objeto privilegiado para se pensar as relações de
domínio colonial. O imperialismo deve ser visto como uma experiência de
compartilhamento histórico. O método parte de uma análise particular de cada obra para
posteriormente pensar a obra na relação entre a cultura que ela representa e o processo
imperialista.
Os escritores não são condicionados ou reduzidos às suas condições econômicas, a
sua referencia de classe ou a chamada ideologia, estão imbricados nas suas respectivas
histórias. A cultura como decorrência de uma experiência histórica é o objeto do livro em
questão.

O Imperialismo ocidental e o nacionalismo terceiro-mundista alimentam-se


mutuamente, mas, mesmo em seus piores aspectos, não são monolíticos nem
deterministas. Ademais, a cultura tampouco é monolítica, e não constitui monopólio
exclusivo, seja do Oriente, ou do Ocidente, de pequenos grupos de homens ou
mulheres.266 (SAID, 1999, pp.25/26)

Ainda na introdução do livro citado, Said reafirma a inexistência de culturas


monolíticas e ressalta que estas estão mutuamente imbricadas, ou seja, todas são híbridas e

264
Said estabelece um amplo diálogo com a corrente dos Estudos Subalternos que inicia os estudos teóricos do
ponto de vista dos “grupos subalternos”, em especial estudos sobre o domínio colonial a partir da perspectiva dos
colonizados. Uma parte dessa corrente entende que o domínio da disciplina histórica estabelece uma hierarquia
para o entendimento da história da Ásia e África, atribuindo centralidade à Europa como ícone da modernidade.
Alguns autores partidários dessa abordagem defendem o deslocamento dos locais hegemônicos e subalternos do
saber disciplinar. Originalmente os estudos subalternos falavam de uma divisão da esfera da política entre um
campo estruturado da elite e um campo subalterno não estruturado. Esta divisão queria expressar as diferenças
perceptíveis nas políticas nacionalistas nas três décadas anteriores à independência, durante as quais as massas
indianas, especialmente o campesinato, viram-se atraídas para os movimentos políticos organizados sem
compartilhar as formas mais evoluídas da imaginação do estado pós-colonial.
265
SAID, Edward W, Cultura e Imperialismo, SP: Companhia das Letras, 1999, P.. 327.
266
Ibid, pp.. 25 e 26.
171

heterogêneas. Para evitar a configuração de um nacionalismo derivativo, Said reitera a


importância do recurso à historicidade, ou seja, o reconhecimento dos chamados “territórios
sobrepostos e histórias entrelaçadas”.
As chamadas histórias entrelaçadas fazem parte de um complexo de relações que
inibem as definições totalizantes e essencialistas. As relações entre o colonizado e o
colonizador267 devem ser entendidas na perspectiva da própria disputa imperial.

Se desde o princípio reconhecemos as histórias profundamente complexas e


entrelaçadas das experiências específicas, mas, mesmo assim, interligadas e
sobrepostas – das mulheres, dos ocidentais, dos negros, dos Estados e culturas
nacionais – não há nenhuma razão intelectual particular para conceder um estatuto
ideal e essencialmente separado a cada uma delas. Mas seria desejável preservar o
que há de único em cada qual, enquanto preservarmos também algum sentido da
comunidade humana e as disputas efetivas que contribuem para sua formação, e na
qual todas participam. 268 (SAID, 1999, p.65)

Considerando o imperialismo como um processo, Said adota o método do contraponto


para realizar uma leitura oscilante entre o registro da História metropolitana e de outras
histórias entrelaçadas. A leitura e a interpretação dos textos culturais metropolitanos não
existiriam sem os movimentos de resistência contrários ao Império. Nesse sentido, as
identidades são reconhecidas em um movimento de espelhamento oscilante.

Num sentido importante, estamos lidando com a formação de identidades culturais


entendidas não como essencializações (embora sejam atraentes, em parte porque
parecem e são consideradas essencializações), mas como conjuntos contrapontuais,
pois a questão é que nenhuma identidade pode existir por si só, sem um que de
opostos, oposições e negativas: os gregos sempre requerem os bárbaros, e os
europeus requerem os africanos, os orientais etc. sem dúvida, o contrário também é
verdadeiro.269 (SAID, 1999, p.88)

Podemos perceber linhas de continuidade nas reflexões presentes nos livros


Orientalismo e Cultura e Imperialismo. O estudo da relação entre o Ocidente e os outros não
se restringe a uma forma de entender um relacionamento desigual entre interlocutores
distintos, mas constitui um acesso para o estudo da formação e do significado das práticas
culturais ocidentais. Apesar da disparidade entre o Ocidente e o Oriente, há uma interação

267
A dialética da relação colonizador/colonizado encontra eco no pensamento de Frantz Fanon. A referência ao
livro Os condenados da terra promove uma identificação de Said com algumas ideias que movimentam a
reflexão sobre a descolonização no livro Cultura e Imperialismo. Fanon dirige as suas críticas a um nacionalismo
protagonizado por uma “burguesia nacionalista” que governava os novos países por meio de uma tirania
espoliadora muito próxima ao modo de governo dos colonizadores.
268
SAID, Edward W, Cultura e Imperialismo, SP: Companhia das Letras, 1999. P. 65.
269
Ibid, Página 88.
172

interdependente que promove uma identidade reflexiva no processo histórico do encontro


entre as diferenças.
Fanon fundamenta a análise crítica ao nacionalismo derivativo como primeira etapa de
descolonização, entendida como insuficiente. Esta caracterização induz à necessidade
posterior de transição para uma etapa de libertação, em que a identidade seria genuinamente
construída. O autor se refere à transformação da consciência nacional em uma consciência
social.
Essa transição significa uma etapa processual em direção à libertação colonial. A
teleologia da libertação, da descolonização, equivale a um sentido que visa à superação do
nacionalismo nativista em direção a uma construção mais universal e humana. A superação da
reificação sujeito-objeto em sua imobilidade aprisionadora corresponde à supressão da
fragmentação brancos/nativos. Esta só poderia acontecer por meio de um ato de vontade que,
na leitura de Fanon, ocorre por meio da resistência violenta do colonizado em relação à
dominação colonial.
Apesar das histórias entrelaçadas e dos territórios sobrepostos, desenhados e
redesenhados pela dominação européia, a libertação colonial deveria se despir da experiência
mimética referente à modernidade européia. Diferente de uma identidade dependente e
derivativa, a construção do outro deve pressupor um ethos integral no movimento pela
resistência, ainda que historicamente o entrelaçamento na relação de dominação seja
inevitável.
Para Said, a História de todas as culturas é a História dos empréstimos culturais. As
culturas não são impermeáveis, as apropriações, as experiências comuns e a interdependência
entre grupos diferentes devem ser observadas para impedir a rigidez analítica e conceitual.
O sentido do entrelaçamento para Said não diz respeito apenas à experiência
colonial/descolonizadora. A reflexão do lugar epistemologicamente privilegiado do intelectual
diaspórico pertencente a dois mundos e pode servir para a compreensão do método do
contraponto. Unir experiência e cultura, ler textos da metrópole e das periferias num
contraponto promovem a suspensão geográfica e identitária que opera no sentido da busca de
uma universalidade humanista.
A problemática da autoridade intelectual se baseia no lugar de observação,
estabelecido fora das relações concretas entre culturas, entre potências imperiais e não
imperiais, entre diferentes outros. Essa perspectiva oferece o privilégio epistemológico de
julgar e de interpretar com “isenção” de interesses e compromissos com as relações em
andamento.
173

Said descarta o entendimento do processo imperialista como um sistema totalizante,


embora perceba o grau de expansão contínua e o inevitável integracionismo desse sistema
imperialista. Muitos estudiosos do imperialismo atestam que os efeitos desse processo
histórico são sentidos no presente. Said cita Eric Hobsbaswm, Era dos impérios para falar
desse contínuio processo histórico.
Na Europa do final do século XIX, o império estava inerente a todos as esferas da vida
das nações. Os laços entre a cultura e a política imperial são diretos. Said ressalta que, mesmo
após a conclusão do processo imperial, os efeitos dessa dominação na tradição cultural são
perceptíveis.
Said define imperialismo como “prática, teoria e atitudes de um centro metropolitano
dominante governando um território distante; O “colonialismo”, quase sempre uma
consequência do imperialismo, é a implantação de colônias em territórios distantes.”270
O significado do processo imperial não se esgota no acontecimento histórico datado e
demarcado temporalmente. A existência enquanto memória coletiva e ideologia cultural e
política exerce enorme força. Said resgata Fanon para falar da cultura imperial que teria
alimentado a imaginação imperialista.
A problemática do nacionalismo é apontada como um novo “tribalismo” assustador
que estaria fraturando a sociedade contemporânea. Said cita Gramsci271 em contraposição à
Lukács como um filosófo que promove um enfoque prioritário aos fundamentos territoriais,
espaciais e geográficos da vida social. Said associa Lukács à tradição hegeliana do marxismo,
enquanto Gramsci272 estaria atrelado a uma fundamentação viquiana ou crociana.
Enquanto Said vincula Lukács à temporalidade histórica, em Gramsci a história social
estaria enraizada numa tradição geográfica.

A cultura não pode ser encarada como um fato imediato, e deve ser vista (como iria
dizer nos Cadernos) sub specie aeternitatis. Passa-se muito tempo antes que surjam
novas formações culturais, e os intelectuais, que dependem de longos anos de
preparo, ação e tradição, são indispensáveis a esse processo. Gramsci também
entende que, no longo intervalo durante o qual ocorre a gradual formação de uma
cultura, é preciso que haja “rupturas de tipo orgânico”. 273 (SAID, 1999, p.85)

270
Ibid, P. 40.
271
A teoria gramsciana que subsidia essa geografização da história social estaria sendo rastreada na questão
meridional, onde se observa um esforço analítico para perceber a divisão entre o norte e o sul da Itália para o
direcionamento das diretrizes do movimento operário nacional no contexto de impasse político.
272
Said realizou vários seminários sobre a obra de Gramsci. Podemos identificar alguns conceitos gramscianos
na sua obra, o debate sobre a representação do intelectual incorpora alguams definições gramscianas além do
conceito de hegemonia. Ao estudar a história e o papel dos intelctuais e ao consolidar oconceito de hegmeonia
Gramsci chegou a um novo cocnwito de estado. Os aparelhos hegemônicos dizem repsieto a dialética da ofrça e
do consenso, da direção e do dompinio. O poder hegemônico cosporificado na clase deve se tornar estado,
273
Ibid, p. 85.
174

As metáforas musicais são utilizadas para falar de um arquivo cultural que mistura as
supostas identidades, o contraponto entre a história metropolitana e da história do colonizado
que só operam em polifonia. A atuação em contraponto promove a consolidação da
identidade, porque nenhuma identidade atua por si só sem a existência de opostos e
referências negativas.
Said pretende realizar um inventário da leitura que a cultura vai proporcionar do
império. A visibilidade das relações de poder e a hegemonia274 serão possibilitadas pela
análise da cultura, dos meios de comunicação de massa e da micropolítica.

Se insisti, na integração e nas ligações entre o passado e o presente, entre o


imperalizador e o imperializado, entre a cultura e o imperialismo, não foi para
nivelar ou reduzir as diferenças, mas para transmitir um sentido mais premente da
interdependência das coisas. Tão vasto e, ao mesmo tempo, tão detalhado é o
imperialismo como experiência de dimensões culturais cruciais que devemos falar
em territórios que se sobrepôem, em histórias que se entrelaçam, comuns a homens e
mulheres, brancos e não-brancos, moradores da metrópole e das periferias, passados,
presentes e futuros; esses territórios e histórias só podem ser vistos da pespectiva da
história humana secular em sua totalidade.275 (SAID,1999,P.98)

No capítulo Visão Consolidada, Said privilegia a visão de que, no romance inglês, o


imperialismo aparece com regularidade e frequência. Said afirma que na produção francesa
não encontramos uma missão filosófica imperial como na produção inglesa.
O imperialismo francês, com as suas oscilações, perdas coloniais, reveses políticos e
mudanças de princípios provoca a sutileza da sua presença nos romances. Os territórios
coloniais estão associados aos romances realistas como um campo potencial de realização das
fantasias, um lugar desconhecido, inóspito e excêntrico.
Said cita autores que vinculam a cultura ao imperiaslimo apontando a limitada
procução intelectual que encaminha essa temática, ainda que de forma descritiva e narrativa.
A maioria desses autores segue uma abordagem marxista.
Nessa linha Said cita criticamente o trabalho do teórico Raymond Wiliams destacando
o limitado papel que a temática do império ocupa na sua produção. Said cita o campo e a
cidade como um exemplo de uma obra em que a temática da ligação entre cultura e
imperialismo desempenha um papel periférico na totalidade da produção.

274
O conceito de hegemonia é central na obra de Gramsci e pode ser definido quando um grupo social obtém o
consenso de outros grupos para suas propostas e, portanto, quando a ação teleológica do primeiro grupo incide
com êxito naquela do segundo. Para que isso ocorra é preciso que ambos os grupos compartilhem concepções e
valores em comum. Sem a a criação da intersubjetividade, propostas políticas conservam-se no nível subjetivo
das intenções sem adquirir condições de consolidar uma objetividade social.
275
Ibid, p. 98.
175

O autor palestino justifica o peso dessa temática nos autores para os quais o passado
colonial interferiu na sua formação identitária. Considerar a temática imperial como
privilegiada no campo literário é levar em conta tanto os mecanismos de resistência como a
apologia ao império no interior da temática imperialista.
O grande paradoxo do recorte da análise canônica ocidental em Said aparece ilustrada
na problemática da representação do silenciado, do subalterno oculto nas entrelinhas da
produção ficcional européia. O arquivo das culturas européia e americana, deve servir para
um mecanismo de definição do colonizado que aparece no subliminar do romance.
A leitura em contraponto significa ler o processo imperialista e as vozes de resistência
à dominação nas entrelinhas da produção em questão. As experiências “sobrepostas e
entrelaçadas” entre o colonizador e o colonizado devem estar em destaque ainda que o
escritor tenha uma predileção pela dominação colonial. Said cita o exemplo iliustrativo, O
estrangeiro de Albert Camus, o contexto de todo colonialismo francês, a destruição do estado
argelino, e o surgimento posterior de uma Argélia independente a qual Camus se opunha.
Said reflete sobre as limitações de um realismo reducionista mostrando como um texto
pode dar voz a uma realidade, sem ser um retrato fidedigno e reflexivo de um contexto
histórico. Por outro lado, a literatura está implicada na realidade imperial. E para os leitores
europeus a aproximação em relação à realidade do império se dava justamente pela leitura de
um deteminado romance. A realidade imperialista era tão abrangente e global que nada lhe
escapava.
A precedência da cultura sobre o político e o econômico ajuda a definir a
especificidade da resistência colonial sem atrelar elementos da cultura colonial aos
mecanismos de inspiração na ideias ocidentais de liberdade. A cultura pode preparar uma
sociedade para a dominação e pode gestar a renúncia à dominação colonial.
Deve-se admitir a importância da cultura na consolidação do sentimento imperial,
assim como a escrita da história está intimamente associada à expansão do império. A
situação contemporânea refaz o mapa político com a situação dos refugiados, imigrantes,
deslocados, exilados, conseqüência dos grandes conflitos pós-coloniais e imperiais.

O imperialismo consolidou a mescla de culturas e identidades numa escala global.


Mas seu pior e mais paradoxal legado foi permitir que as pessoas acreditassem que
eram apenas, sobretudo, exclusivamente brancas, pretas, ocidentais ou orientais. No
entanto , assim como os seres humanos fazem a sua própria história, eles também
fazem suas culturas e identidades étnicas. Não se pode negar a continuidade
duradoura de longas tradições, de moradias constantes, idiomas nacionais e
geografias culturais, mas parece não existir nenhuma razão, afora o medo e o
preconceito, para continuar insistindo na separação e distinção entre eles, como se
toda a existência human se reduzisse a isso. A sobrevivência, de fato, está na ligação
176

entre as coisas; nos termos de Eliot, a realidade não pode ser privada dos outros ecos
[que] habitam o jardim. É mais compensador - e mais difícil – pensar sobre os outros
em termos concretos, empáticos, contrapuntísticos, do que pensar apenas sobre
“nós”. 276 (SAID, 1993, p.411)

Se a luta pela independência gerou novos estados e novas fronteiras, da mesma forma
ela gerou andarilhos sem lar, nômades, errantes que não se inserem nas estruturas do poder
institucional. Pessoas que representam um intermediário entre o velho e o novo e que
expressam tensões, contradições e o que Said denomina de territórios sobrepostos explícitos
no mapa cultural do imperialismo.

1.7 Reflexões sobre o exílio: a diáspora como metáfora epistemológica

Na coletânea Reflexões sobre o exílio,277 Said ressalta que os palestinos foram


transformados em exilados pelo povo proverbial do exílio, os judeus, e acrescenta que os
palestinos alimentaram o seu sentimento de identidade nacional no contexto do exílio. Said
negocia um espaço discursivo para uma narrativa nacional que pode ser suprimida pelo
contexto intelectual pós-colonial. Essa reflexão nos remete à problemática do chamado
nacionalismo defensivo que acaba por constituir formas pouco atraentes de auto-afirmação
das identidades essencialistas.
Para Said, o exílio é a condição que caracteriza o intelectual como uma figura à
margem dos confortos, do privilégio e do poder. O intelectual que encarna a condição de
exilado não responde à lógica do convencional e sim ao risco da ousadia, à representação da
mudança, ao movimento sem interrupção.
Para Said, o diagnóstico sobre o intelectual se origina da história social e política do
deslocamento e da migração, mas não se limita a isso, uma vez que a experiência do exílio
pode ser vista de forma metafórica. Em Said, o exilado personifica uma posição privilegiada
quando encarna a utopia do intelectual. Com a suspensão do conceito fechado de diáspora que
funciona de forma binária, Said supera a ideia de exclusão ou desterro para uma configuração
dialética que ajuda a construir a identidade por meio do distanciamento.

276
Said, E. Cultura e Imperialismo, SP: Companhia das Letras, 1993. (1ª. Edição),p.411.

277
SAID, Edward, Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP: Companhia das Letras, 2003. (1ª. Edição -
2001).
177

Se o referencial nacional institui-se como um aspecto rígido da identidade, o exílio


não pode ser percebido como um desvio reificado do ethos nacional. O deslocamento nesse
contexto é constitutivo e enriquecedor. O exílio não é visto como o esvazimento do nacional.
Said suspende o relacionamento primário entre estado-nacão e identidade cultural. Na rejeição
do referencial das polticas nacionalistas a riqueza das trocas interculturais se sobrepõe.
Recorremos a um teórico dos estudos culturais para situar o exílio como uma
contingência típica da contemporaneidade. Stuart Hall (2006)278 define a globalização como a
conjuntura histórica que vem desenredando e subvertendo os modelos culturais
essencializantes e homogeneizantes, desfazendo os limites e superando as identidades
estáveis. A cultura depende de um referencial de tradição e de uma genealogia que se remete
ao passado e que nos capacita a produção de uma identidade permanentemente reiventada. As
tradições não produzem identidades, ao contrário, estas produzem as tradições. A cultura não
se define ontologicamente por ser algo, mas o verbo adequado remete a ideia de um processo
imútavel, “o vir a ser”.

Não se quer sugerir aqui que, numa formação sincrética, os elementos diferentes
estabelecem uma relação de igualdade uns com os outros. Estes são sempre inscritos
diferentemente pelas relações de poder – sobretudo as relações de dependência e
subordinação sustentadas pelo próprio colonialismo. Os momentos de independência
e pós-colonial, nos quais essas histórias imperiais continuam a ser vivamente
retrabalhadas, são necessariamente, portanto, momentos de luta cultural, de revisão e
de reapropriação.279 (HALL, 2006, p.34)

O exílio, categoria central na obra do autor palestino, desempenha uma dupla função:
não só no seu aspecto ontológico, na condição de um autor diaspórico, como também através
de uma metáfora epistemológica. Isso nos remete a uma reflexão importante: o constante
compromisso entre o texto, a produção intelectual e o respectivo contexto histórico.
A diáspora habilita Said a se distanciar do partidarismo político e, na busca do
desarraigamento, coloca o intelectual na condição de alguém que fala “da margem”. O seu
lugar de enunciação precisa ser revigorado, rastreado no interior da sua identificação como
autor palestino, o que, de alguma forma, problematiza o entre-lugar processual de um teórico
avesso a binarismos, ou definições homogeneizantes no interior de uma postura pós-colonial.
Apesar de Said se identificar como uma pessoa desmembrada da sua “pátria” e valorizar o
passado como base para uma realidade cultural fixa, homogênea, o autor insiste no aspecto
processual da cultura e da identidade.
278
HALL, Stuart, Pensando a diáspora , reflexões sobre a terra no exterior, In;.SOVIK, Liv (org.) Da diáspora ,
identidades mediações culturais, BH: editora da UFMG, 2006.
279
Ibid, p.34.
178

O exílio, longe de constituir o destino de infelizes quase esquecidos, despossuídos e


expatriados, torna-se algo mais próximo a uma norma, uma experiência de
atravessar fronteiras e mapear novos territórios em desafio aos limites canônicos
clássicos, por mais que se deva reconhcer e registrar seus elementos de perda e
tristeza. Modelos e tipos recém trnsformados lutam ocntra os mais antigos. 280
(SAID, 1993, p.390)

A vivência do exílio como um fetiche da existência, uma prática que o afaste de


qualquer conexão e compromisso, a busca por afiliações ou lealdades parece perseguir o
exilado.

Deve-se também reconhecer que o nacionalismo defensivo dos exilados favorece


amiúde a consciência de si mesmo tanto quanto as formas menos atraentes de auto-
afirmação. Projetos de reconstrução, tais como montar uma nação a partir do exílio (
como é o caso dos judeus e palestinos do século XX), envolvem a construção de
uma história nacional, o reavivamento de uma língua antiga, a fundação de
instituições nacionais como bibliotecas e universidades. E, embora tudo isso às
vezes promova um etnocentrismo estridente, também dá origem a investigações que
inevitavelmente vão muito além de fatos simples e positivos como a “etnicidade”.
Há, por exemplo, a consciência de si mesmo de um indivíduo que tenta entender por
que, a história de palestinos e judeus apresenta certos padrões próprios; por que
apesar da opressão e da ameaça de extinção, um determinado ethos permanece vivo
no exílio. 281 (SAID, 2003, p.57)

A relação entre o cânone ocidental e o exílio o aproxima da obra de Theodor W.


Adorno282. O aspecto paradoxal da filiação ao cânone ocidental dos autores diaspóricos,
reside no fato de que o domínio da cultura européia é reafirmado por escritores que por meio
do exílio situam-se em uma grande distância dessa cultura. As referências a Adorno devem
ser particularizadas nos contextos distintos de cada obra, uma vez que a sua representação e
apropriação das ideias adornianas são distintas.
A atração de Said pela obra de Theodor W. Adorno (1990), especialmente o livro
Minima Moralia, reflexões a partir da vida danificada283, tem relação com o seu permanente
inconformismo e uma associação entre o desarraigamento do exílio e uma habilitação
libertadora.
Se o único lar disponível está na escrita, na produção intelectual, esta como um
refúgio possível deveria ser apenas alusiva, animada por atuações descontínuas. A produção

280
Said, E. Cultura e Imperialismo, SP: Companhia das Letras, 1993. P.390. (1ª. Edição)
281
SAID, Edward W., Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP; Editora Companhia das Letras, 2003. P.57.
282
Said percebe Adorno como um autor essencialemente hegeliano, o que pressupõe uma inevitável teleologia
histórica que incorpora os eventos em uma progressão contínua. Esse pressuposto nos remete ao problema da
totalidade e das individualidades históricas na obra de Edward W. Said. O livro, Mínima moralia parece um
manifesto na forma de aforismos que são individualidades teoricascontra a modernidade enquanto totalidade
artificial.
283
ADORNO, Theodor W. Minima Moralia, Reflexões a partir da vida danificada, Editora Ática, 1990.
179

fragmentária e convulsiva representava a consciência intelectual como incapaz de repousar,


constantemente em alerta contra a sedução do enquadramento.

Para o intelectual, a solidão inviolável é a única forma em que ele é capaz de dar
provas de solidariedade. Toda colaboração, todo humanitarismo por trato e
envolvimento é mera máscara para a aceitação tácita do que é desumano. É com o
sofrimento dos homens que se deve ser solidário, o menor passo no sentido de
diverti-los é um passo para enrijecer o sofrimento.284 (SAID, 2003, p.20)

Said faz referência a Adorno (1990) no livro, Cultura e imperialismo quando define
que o modelo que o inspira, entende a nossa sociedade como um mundo administrado ou
como a cultura predominante definida como “industria da consciência”. O benefício da
contestação, concede através da linguagem indícios da inadequação. Essa é um privilegio, ou
uma possibilidade de libertação. Numa hierarquia intelectual, em que colocam todos no
mesmo patamar de um mundo homogeneizante, a inadequação lembra o desvio da vida que
representa uma linha oscilante e desviante se comparada com as premissas lógicas que
orientam a nossa conduta.

O exílio é afirmado a partir da existência da terra natal, do amor por ela e de uma
ligação real com ela; a verdade universal do exílio não é que se tenha perdido esse
lar ou esse amor, mas que, inerente a cada um, existe uma perda inesperada e
indesejada. Assim devemos encarar as experiências como se elas estivessem a ponto
de desaparecer. O que há nelas que as firma ou enraíza na realidade? O que
resgataríamos delas a que renunciaríamos nelas o que recuperaríamos? Para
responder a essas perguntas, é necessário ter a independência e odespreendimento de
alguém cuja terra natal é “doce”, mas cuja condição atual impossibilita recapturar
essa doçura, e ainda mais satisfazer com sucedâneos fornecidos pela ilusão ou
dogma quer derivem do orgulho pela própria herança ou da certeza daquilo que
“nós” somos.285 (SAID, 1993, p.411)

No livro Elaborações musicais (1992)286 Said explicita o seu incômodo com a


teleologia histórica de Adorno, inserida na tradição Hegeliana. Na abordagem sobre a música,
o objeto privilegiado do livro em questão, Said reconhece a sua separação de Adorno no que
tange a visão de uma sociedade administrada onde não há possibilidade de se escapar da
coerção ideológica.
A sociedade administrada de Adorno (1990) está analogicamente próxima da
sociedade disciplinar de Foucault. Said associa essas duas referências apontando suas
imperfeições em que pese às análises históricas retrospectivas conformadoras de uma síntese.

284
Ibid, p.20.
285
Said, E. Cultura e Imperialismo, SP: Companhia das Letras, 1993. (1ª. Edição ) p.411
286
SAID, Edward W. Elaborações Musicais, RJ: Editora Imago, 1992.
180

Aqui aparece o problema das generalizações teóricas e dos modelos teóricos que culminam
com diagnósticos totalizantes.
O profundo vínculo entre a cultura original e o lugar coloca o exilado dentro da
inquieta provisoriedade da cultura da diáspora. O padrão de incompletude promove o
descentramento que supõe o método do “contraponto”. Todas as culturas e todas as
sociedades constroem a identidade de acordo com a dialética oscilante entre o “eu” e o
“outro”.
A própria condição de exilado situa o intelectual em uma relação paradoxal com a
cultura. O ideal do intelectual é nunca estar plenamente adaptado. O exílio no sentido
metafísico é a inquietude ou o movimento de constante desassossego. O exílio nunca implica
uma total separação do lugar de origem, é uma situação em que o exilado nunca chega a
abandonar o antigo, nem aceita completamente o novo.
Para Said, o exílio, apesar de ser uma referência ontológica dolorosa, é
reconhecidamente um tema vigoroso e característico da moderna cultura ocidental. Esta é, em
larga escala, obra de exilados, emigrantes e refugiados. Apesar de ser visto como uma “fratura
incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e o seu verdadeiro lar”,287 o exílio
promove uma série de reflexões que pode suscitar posicionamentos vigorosos no campo
epistemológico.
Se a modernidade pressupõe uma propensão à vivência do exílio porque nos aproxima
da experiência permanente dos deslocamentos, esta aparece para o nosso autor como um
mecanismo de identidade ou formadora de um estilo de literatura, que pode ser reconhecida
por meio de um rastreamento de um determinado ethos.
A busca de um ethos nacional parece esbarrar na antinomia da reflexão pós-colonial
que parece promover um esforço no sentido da suspensão dos binarismos ou das categorias
homogeneizantes, no que tange à delimitação de uma identidade nacional. Said reconhece
uma associação essencial e paradoxal entre o nacionalismo e o exílio.
O exílio, ao contrário do nacionalismo, é fundamentalmente um estado descontínuo,
revivido pela permanente sensação de afastamento da terra natal. A necessidade do exilado de
reconstruir uma identidade a partir de refrações e descontinuidades promove um pathos que se
organiza pela perda do contato com a solidez da terra.
O risco da reconstrução artificial da identidade nos remete à aproximação com a obra
de Adorno, no que diz respeito à vivência de uma subjetividade rigorosa. Como opositor

287
SAID, Edward W. , Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP: Companhia das Letras, 2003. P. 46.
181

veemente do que chamou de um mundo administrado, Adorno afirma o desconforto com a


modernidade em uma permanente sensação de desarraigamento que ultrapassa o exílio
ontológico. O autor alemão interessa a Said por várias razões, entre elas, o fato do objeto de
interesse ser a música e a postura anti-identitária o que dificulta os rótulos e possibilita uma
abordagem antiessencialista.
O intelectual parece viver mais diretamente o risco originário da pressão da
conformidade, por outro lado o seu refúgio na escrita individual, parece ser o caminho mais
seguro. O conhecimento fragmentado, desarticulado dirige-se contra seu próprio impulso. Em
Minima Moralia Adorno fala do escritor que se instala no texto como em sua casa.
O autor de Minima Moralia definiria como parte da moralidade o “não se sentir em
casa na própria casa”. Adorno afirma: “Uma insistência desconfiada é sempre salutar,
especialmente quando se refere à escrita do intelectual. Para quem não tem mais pátria, é bem
possível que o escrever se torne sua moradia, mas não pode haver abrandamento de rigor na
auto-análise”.288
“As reflexões de Adorno são animadas pela crença de que o único lar realmente
disponível, agora, embora frágil e vulnerável, está na escrita”.289 Nessa perspectiva, o exilado,
em razão de sua posição “entre os dois mundos”, torna–se condição da possibilidade de uma
utopia intelectual. Cético em relação às “verdades”, eternamente insatisfeito diante dos
eventos históricos, o intelectual exilado aprende a enfrentar situações de profunda
instabilidade sem jamais considerá-las definitivas.
Para quem não tem mais pátria o escrever torna-se sua morada. No auge do ceticismo
adorniano a escrita não escapa e acaba não servindo como habitação. Quanto mais a vida se
tornara falsa, pura aparência na modernidade, mais imperativo o refúgio na vida privada. O
ser reduzido e degradado opõe-se tenazmente ao encantamento que transforma em fachada.
Na sociedade individualista, porém não somente o universal se efetiva através da
atuação conjugada dos indivíduos, mas a sociedade é essencialmente a substância dos
indivíduos. Nos aforismos cada uma das partes representa um ponto de partida como lócus
privado, o do intelectual na emigração. Os aforismos pretendem marcar posições iniciais ou
fornecer um futuro esforço do conceito sem colocações definitivas.
A construção da dialética negativa e desmistificadora em Adorno suscita em Said
alguns planos de análise para a reflexão sobre o exílio e o uso do conceito de estilo tardio

288
ADORNO Apud, SAID, Edward W, Representações do intelectual, As Conferências Reith de 1993, SP:
Editora Companhia das Letras, 2005. (!ª edição –1994). P..65.
289
SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP: Editora Companhia das Letras, 2003. (1a.
edição -2001).P. 58.
182

como um plano de análise estética para pensar a relação entre o que é representado e o que
não é representado, ou seja, entre o articulado e o silenciado. Estilo tardio foi um termo
utilizado por Adorno para demonstrar como as obras podem ser refratárias ao seu tempo.
O Estilo tardio não é resultado direto da morte de um estilo denominando o aspecto
mortal da obra de arte. A noção de pertencimento e afastamento de um contexto de inserção
apresenta tensões que não se reconciliam e podem remeter a experiência do exílio. O aspecto
episódico e o desdém pela continuidade remetem à ideia de obra tardia.
A recusa pelas totalidades falsas não se limita a percebê-las como inautênticas, mas
consiste em uma produção que se origina pelo caminho do exílio e da subjetividade. O
pensamento individual é parte de uma cultura em geral de uma época, ao mesmo tempo em
que diverge desse mesmo contexto.

Ser tardio é, portanto, uma espécie de exílio autoimposto diante de tudo o que
costuma ser aceito, um exílio posterior e sobrevivente a isso. Daí a visão adorniana
do Beethoven tardio, daí a sua própria lição para o leitor. Assim, para Adorno, a
catástrofe representada pelo estilo tardio se manifesta, no caso de Beethoven, no
caráter episódico e fragmentário da música, eivado de ausências e silêncios que nem
podem ser preenchidos por recurso a um esquema geral, nem podem ser ignorados
ou mitigados por frases como “o pobre Beethoven estava surdo e à beira da morte,
vamos deixar de lado esses lapsos”. 290 (SAID, 2009, p.36)

O silêncio é um dos aspectos do estilo. O que em música é a reticência que


subliminarmente indica o som pode ser o alusivo no texto literário. A expressão estilo tardio
vem de Theodor Adorno, especialmente dos seus escritos sobre música, da análise da obra de
Beethoven (1937). A arte aparece como negação291, especialmente da composição social
dominante.
Adorno é um autor que desconfiava da ideia de totalidade, isso aparecia em certa
medida na forma de fragmentos, aforismos e digressões. Para este autor, o gregarismo era
uma experiência necessariamente falsa, o todo não poderia ser verdadeiro, o que conferiu um
valor maior à subjetividade, à consciência do indivíduo que não pode ser experimentada numa
sociedade burocratizada moderna.
Adorno identifica um desconforto oriundo da modernidade por meio da vivência do
desarraigamento e previu que o único refúgio ou salvaguarda se constituiu na produção
intelectual.

290
SAID, Edward W. , Estilo Tardio, SP; Companhia das Letras, 2009, P. 36.
291
Para uma aproximação entre a obra de Derrida e Adorno; LIMA, Luiz Costa, Introdução Geral In: LIMA,
Luiz Costa (Org.), Mímesis e a Reflexão Contemporânea, RJ: Editora da UERJ, 2010.
183

O exílio pode ser uma aparente resposta para o paradoxo cosmopolitismo-


nacionalismo, uma vez que o senso de pertencimento incompleto inibe a opção por uma
identidade única. A associação do nacionalismo com o exílio é uma vinculação essencial, e ao
memso tempo dialética, são opostos que informam uns aos outros. No primeiro estágio, todos
os nacionalismos se constituem a partir de uma vivência de separação.
A relação entre o cânone e o exílio estabelece um dos maiores paradoxos da própria
carreira de Said, a de que o intelectual precisa se exilar para desenvolver uma crítica ampla e
livre dos mecanismos enfraquecederos relacionados ao registro nacional, que informa de
maneira desviante sua teoria interpretativa.
184

2 O JOGO DE ESPELHO DAS COLONIZAÇÕES: PERSPECTIVAS SOBRE O


PÓS-COLONIAL

2.1 A Historiografia Pós-Colonial

A inserção de Edward W. Said no conjunto dos estudos pós-coloniais nos exige uma
definição do que seja o pós-colonial292 enquanto um debate teórico, um tipo de discurso ou
uma opção metodológica na apreensão de determinadas realidades. Sabemos da amplitude do
debate e da problematização dessa definição, portanto devemos demarcar alguns pressupostos
que aproximam o nosso debate desse campo.
Podemos definir os autores pós-coloniais como pensadores e ativistas que abordam
criticamente as condições de subalternidade da produção de conhecimento e entendem as
experiências do colonialismo como condicionadoras de um tipo de subjetividade que enfatiza
as diferenças em relação ao poder imperial, uma possível superação do posicionamento
eurocêntrico das ciências sociais e a desconstrução de determinadas abordagens de certas
categorias modernas tais como: classe, cidadania ou nação. A interpretação do objeto do pós-
colonialismo se dá por meio da análise do discurso e das estratégias coloniais.
O sociólogo Sérgio Costa293 define os escritos pós-coloniais como um conjunto de
contribuições de intelectuais qualificados como “diáspóricos” que se caracterizam por
defender um método de desconstrução dos essencialismos e uma crítica estrutural à
concepção dominante de modernidade.
O que está em questão é o confronto pela narrativa histórica, ou os esforços do
colonizador de silenciar ou sublimar a visão do oprimido ou subalterno e as estratégias desse
para resistir a versão dominante que aparece como a verdadeira. Várias correntes desse
pensamento se filiam a uma matriz teórica pós-moderna, na qual o que está em foco é uma
abordagem epistemológica crítica a modernidade ocidental.
Recorremos à reflexão do sociólogo Sérgio Costa em função das afinidades
apresentadas entre o pensamento pós-colonial e o nacionalismo. A ideia de nação e o

292
Para uma ampla discussão sobre o tema ver; SHOHAT, ELLA, Notes on “Post-Colonial”, Social Text,
Números 31/32, Third World and Post-Colonial Issues, Duke Universitiy Press,1992. E COSTA, Sérgio,
Desprovincializando a Sociologia: a contribuição pós-colonial, Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.21,
número 60, SP: fevereiro de 2006.
293
COSTA, Sérgio, Desprovincializando a Sociologia: a contribuição pós-colonial, Revista Brasileira de
Ciências Sociais, v.21, número 60, suplemento 60, SP, fevereiro de 2006.
185

pensamento nacional são centrais para este debate, na medida em que revelam um ponto de
origem cultural, que se manifesta por meio do discursivo. O nacional pode ser a origem de
uma fronteira identitária que condiciona as hierarquias entre os colonizados e os
colonizadores. Se a nação aprofunda a assimetria e os arranjos hierárquicos definidores das
essências delimitadas, o hibridismo294 funciona com uma categoria mais inclusiva e generosa.

Em contraposição à nação, enquanto lugar de enunciação de relações assimétricas e


de dominação, bem como as outras construções identitárias homogeneizadoras,
coloca-se a ideia de hibridismo. Hibridismo aqui é mais que uma categoria empírica
que descreve a forma da cultura num mundo de interseções e interpenetrações
culturais. Trata-se, na verdade, de uma “metaconstrução teórica,” que remete
simultaneamente a i) uma dimensão epistemológica, ao indicar certa contextualidade
de onde partem as enunciações, ii) uma dimensão heurística, como chave analítica
para a compreensão dos processos culturais contemporâneos; iii) uma dimensão
política, como um apelo subversivo, referência para uma política que rompa com os
essencialismos padronizadores. 295 (COSTA, 2001, p.19)

O prefixo “pós” não indica simplesmente uma posterioridade cronológica que


representa uma produção pós-emancipatória, mas trata-se de uma reconfiguração do campo
discursivo. Segundo o autor anteriormente citado, são elementos comuns a essa produção
intelectual: a crítica ao modernismo como teleologia da História; a busca de um lugar de
enunciação “híbrida” pós-colonial e a crítica à concepção de sujeito das Ciências Sociais.
Por meio da análise do discurso, podemos depreender a assimetria irreversível entre o
Ocidente e o outro. A desconstrução do binarismo que se constituiu na relação colonial e se
perpetua depois de extinto o colonialismo acaba por orientar a produção do conhecimento.
Alguns teóricos chegam a definir essa postura teórica como uma descolonização epistêmica.
O intelectual pós-colonial reconhece que o ato de resistência do subalterno está
imbricado no discurso hegemônico. A subalternidade é quase um repensar crítico do lugar do
oprimido. O ponto de partida do pensamento pós-colonial é o pressuposto de que toda
fala/discurso tem um contexto de origem. As relações entre os discursos e as relações de
poder simbolizam a lógica interna de dominação colonial.

Tanto as experiências de minorias sociais como os processos de transformação,


ocorridos nas sociedades “não ocidentais” continuaram sendo tratados a partir das
suas relações de funcionalidade, semelhança ou divergência com o que se
denominou centro.296 (COSTA, 2001, p.12)

294
O hibridismo nesse contexto embora encontrado em vários autores e linhagens teóricas, acaba sendo remetido
ao debate originário na produção do teórico pós-colonial Homi Bhabha, que pensa o hibridismo como uma
interseção cultural que revela um momento ativo de resistência a dominação colonial. Bhabha afasta qualquer
pretensão artificial de homogeneidade que parece fragilmente hierarquizadora.
295
COSTA, Sérgio, Teoria social, Cosmopolitismo e a Constelação Nacional, Novos Estudos Cebrap, número
59, março de 2001. P.19.
296
Ibid, P. 12.
186

O movimento comparativo, entre duas polaridades, como Oriente e Ocidente, constitui


a base epistemológica das Ciências Sociais. Costa aponta a “entropia” da crítica
epistemológica produzida no âmbito da sociologia. Se teorizar implica reduzir uma
experiência às prioridades conceituais, esse movimento produz uma estabilidade
“aprisionadora”. Todos os lugares de enunciação definem fronteiras.
Para Costa, a obra do crítico literário Homi Bhabha297 ilustra esse esforço na medida
em que prioriza estratégias que não se enquadram nas polaridades clássicas definidoras de
identidades coletivas. O conceito de hibridismo298 formula a constituição identitária na
relação processual da manifestação de uma cultura.
Inspirado na teoria da descosntrução de Jacques Derrida, na teoria psicanalítica de
Lacan e na obra de Edward W. Said, Bhabha (2001) centrava sua reflexão em vários campos
teóricos, da teoria literária aos estudos culturais. Definindo o “espaço liminar” como uma
zona de conflito, interação e assimilação recíproca que todo encontro cultural comporta,
Bhabha entende o político para além de um referencial externo e procura increve- lo no
espaço da textualidade,
O discurso se torna uma pratica de significação. As diferenças culturais são vistas
como produtos discursivos e estratégias analíticas que por meio do agente funcionam como
performances no tempo presente e no espaço delimitado.
A diferença é construída no processo mesmo de sua manifestação, ela não é uma
entidade ou expressão de um arcabouço cultural acumulado, é um fluxo de representações
articuladas nas entrelinhas das identidades externas totalizantes e essencialistas. O indivíduo é
visto aqui como provisório, circunstancial que se coloca entre um sujeito falante e um sujeito
“falado”, reflexivo. O segundo nunca atinge o primeiro, só lhe resta sucedê-lo.
O hibridismo suspende contingencialmente à pretensão de homogeneidade que é
hierarquizadora. O lugar de enunciação entre os sistemas de representação é definido por
Bhabha como um “terceiro espaço” e corresponde ao contexto no qual a contingência espacial
é definida como a contingência temporal do “indecifrável”, referenciado ao instante no qual o
caráter construído e arbitrário das fronteiras culturais fica evidenciado.
O entrelugar é o contingente que inova e interrompe a atuação do presente. Em
oposição à perspectiva multicultural que reinvidica a essencialidade da alteridade, o direito a
297
BHABHA, Homi K., O Local da Cultura, BH: Editora da UFMG, 2001.
298
O Crítico literário indiano Homi K. Bhabha autor do livro O Local da Cultura, persegue uma estratégia
teórica ao definir um espaço de enunciação que não seja limitado pela polaridade interno/externo, mas que se
situa nas fronteiras do entremeio, definindo uma identidade coletiva. O conceito de hibridismo parece central
para o conjunto de explicações acerca da identidade cultural.
187

diferença no contexto de Bhabha (2001) não opera em nome de uma autenticação do outro,
nem nas diferenças universais. Costa tece inúmeras críticas a essa perspectiva teórica,
ressaltando a “circularidade” inócua das categorias analíticas oriundas de Bhabha para a
construção do conhecimento.
A obra de Bhabha (2001) nos interessa na medida em que é possível estabelecer uma
análise da crítica literária de Said sem um enquadramento automático na perspectiva de uma
compreensão sociológica e reflexiva da literatura. Reconhecemos aqui uma perspectiva pós-
colonial, que apesar da abordagem relacional entre poder e conhecimento não pode reduzir ou
condicionar a obra literária a um mero produto conjuntural. Na prática o enunciativo
conforma a identidade como um traço lingüístico que suspende os binarismos.
Bhabha refaz a leitura teórica e o circuito analítico das obras de Fanon e Said,
traçando as seguintes diferenças: em Said a circulação do poder como conhecimento se
estabelece através do fetiche, fixação do conhecimento estereotipado como poder, e em
Fanon, a circulação de poder e conhecimento ocorrem numa combinação entre desejo e
prazer.
A proximidade entre o poder colonial e o conhecimento não constitui fórmulas
unitárias e necessárias. A oscilação entre o aprisionamento dessa relação necessária (poder-
conhecimento/cultura- imperialismo) produz dialeticamente uma leitura mais sofisticada que
tenta escapar da unidade prévia de sentido.
Enquanto Bhabha nega o sentido coeso do texto e se desobriga a aprisionar os sentidos
prévios e teleológicos da narrativa, Said busca os vazios, os silêncios, as penumbras ou mais
contemporaneamente o estilo tardio da literatura. A vinculação autoral da teoria do discurso
colonial a Bhabha e Spivak não exclui as críticas erigidas por Said ao chamado pós-
estruturalismo e a hegemonia das construções discursivas. A premência do texto distancia a
perspectiva desses autores de um partidário da materialidade do texto.
Devemos apontar o trabalho de Gayatri C. Spivak (2010)299, Pode o subalterno
falar?300, como ilustrativo da proximidade com o desconstrutivismo de Jacques Derrida. Seu

299
Gayatri C. Spivak, indiana nascida em Calcutá, professora do departamento de inglês e literatura da
Universidade de Columbia, e autora entre outros, do livro Pode o subalterno falar? BH: Editora da UFMG,
2010. A autora foi tradutora da obra de Jacques Derrida para o inglês, especialmente sua obra; Gramatologia.
Sua tese de doutorado em literatura comparada defendida na Universidade de Cornell foi orientada pelo crítico
literário Paul de Man, um dos representantes da linha teórica desconstrucionista de Yale. Spivak, representante
do chamado pós-colonialismo, marcado por uma base teórica de base marxista, pós-estruturalista e
desconstrucionista se sobressai nos estudos sobre o feminismo contemporâneo, os fenômenos da globalização e o
chamado multiculturalismo.
300
O ensaio original publicado em um periódico, Wedge, com o subtítulo especulações sobre o sacrifício das
viuvas em 1985, obteve uma grande repercussão após ter sido republicado na coletânea, Marxism and the
188

artigo questiona o intelectual pós-colonial ao esvaziar o seu papel e a sua produção como um
ato de resistência em nome do subalterno, sem que este ato esteja envolto no discurso
hegemônico. Os intelectuais pós-coloniais assimilam que o seu privilégio é a sua perda. Nesse
sentido else represrntam o paradigma de intelctual.
Se projeto se relaciona com o ímpeto teórico de diluição desse duplo lugar da fala
subalterna. Spivak estabelece um vínculo e uma simultânea crítica ao grupo dos estudos
subalternos na medida em que percebe a limitação da fala subaltenra. Sua crítica parte da
ênfase a autonomia od sujeito que não deve representar um papel monolítico e subalterno,
dado o grau de heterogeneidade do sujeito.
Se a condição de subalternidade se vincula com um estado de silêncio, é necessário
discutir a dupla acepção do conceito de representação; a Vetreten e a Darstellen. No primeiro
conceito a representação é mediada por terceiros enquanto o segundo conceito diz respeito a
uma visão estética que prefigura o ato de performance ou encenação. A autora aposta na
ausência de um dialogismo verdadeiro.
Para Spivak o problema da representação aparece de forma simplista em Foucault e
Deleuze. Estes ignoram a distinção entre o retrato e a procuração. A autora fala de uma cena
pós-marxista relacionada ao poder que resgata uma reflexão antiga entre a representação
como tropologia ou persuasão. Darstellen pertence a primeira denominação, vertreten sugere
conotações mais fortes de substituição.301
O processo de fala se caracteriza por uam posição discursiva, uma interação
verdadeiramente inexistente para o sujeito subalterno desinvestido de um agenciamento. O
problema está no enfrentamento do legítimo espaço de fala no âmbito do dialogo entre o
representante e o representado.
O subalterno demanda um representante diante da sua subalternidade silenciada. A
302
heterogeneidade dos subalternos reafirma, segundo Costa, os espaços delimitados para as
chamadas “subjetividades precárias”, construídos na violência epistêmica colonial. O
intelectual pós-colonial busca entender a lógica da relação de dominação.

interpretation of culture, ponto de partida para uma crítica aos intelectuais ocidentais, especificamente Deluze e
Foucault, no que tange, a prática discursiva do intelectual Pós-Colonial. Devemos acrescentar uma autocrítica ao
grupo dos estudos subalterrnos a qual se considera atrelada.
301
Spivak aprofunda o deabte sobre a etimologia e o significado filosófico da categoria de representação em
contraste com as reflexões acerca desse conceito em Deleuze e Foucault, utilizando o âmbito do debate em Marx
e o problema da representação e cosnciência de classe. Devemos reconhecer que no interior dessa temática não
podemos ampliar o espaço dessa reflexão teórica no nosso trabalho tendo em vista o nosso objeto.
302
Sérgio, Dois Atlânticos, Teoria Social, anti-racismo, cosmopolitismo, BH: Editora da UFMG, 2006.
189

Assim, no lugar de reinvindicar a posição de representante dos subalternos que


“ouve” a voz desses, ecoada nas insurgências heróicas contra a opressão, o
intelectual pós- colonial busca entender a dominação colonial como cerceamento da
resistência através da imposição de uma epistéme que torna a fala do subalterno, de
antemão, desqualificada e, assim, a silencia.303 (COSTA, 2006, p.89)

A autora aponta a ausência do caráter dialógico na fala pelo subalterno e o desafio da


construção do mesmo como objeto de conhecimento por parte dos intelectuais que almejam
falar pelo outro. Aqui reconhecemos o problema da representação no sentido da afirmação do
sujeito através do outro. A autora aponta os limites do realismo representacionista.
Ao representar os subalternos, os intelectuais representam a si mesmos. A saída desse
dilema em torno da representação aparece no papel dos intelectuais pós-coloniais que devem
criar espaços para a articulação do subalterno onde este possa ser ouvido. O questionamento
está localizado no problema do agenciamento e na sua validade institucional. Spivak segue
como referência às críticas que J. Derrida faz a noção de poder em Foucault.
O sujeito se torna indivisível e não se orienta por uma noção dialética de desejo, ou
seja, o problema está em não admitir a sua contradição constitutiva, o que o aparta da
esquerda dialética. Para autora indiana Foucault pensa de maneira brilhante o problema do
poder nas entrelinhas, embora não pense essa situação confrontada na história do
imperialismo, o que constitui um problema e uma limitação ao escopo da sua reflexão.
A autora estabelece um diálogo com Edward W. Said no que tange suas críticas ao
conceito de poder em Foucault, reiterando as suas afinidades com essa reflexão que aparece
quase como uma defesa dessa representação em Said.

A crítica de Edward W. Said ao poder em Foucault como uma categoria cativante e


mistificadora que lhe permite “obliterar o papel das classes, o papel da economia, o
papel da insurgência e da rebelião” é muito pertinente aqui. Acrescento à análise de
Said a noção do sujeito clandestino do poder e do desejo marcado pela transparência
do intelectual. Curiosamente, Paul Bové critica Said por enfatizar a importância do
intelectual, enquanto o projeto de Foucault é esssencialmente um desafio para o
papel de liderança dos intelectuais tanto hegemônicos quanto opositores. Afirmo que
esse “desafio” é enganoso precisamente porque ignora o que Said enfatiza; a
responsabilidade institucional do crítico.304 (SPIVAK, 2010, p.45)

Para Spivak, a “violência epistêmica” se dá na própria assimetria imposta ao outro, à


sublimação desse sujeito colonial ressignificado na sua precária subjetividade. A vinculação
desse debate à perspectiva dos estudos subalternos ajuda a entender de que forma a estreita

303
Ibid, p. 89.
304
SPIVAK, G. C ,Pode o subalterno falar? BH: Editora da UFMG, 2010. P.45
190

vinculação do debate nacionalista com o pós-colonialismo aparece como central para se


pensar a representação do subalterno.
Se os estudos subalternos repensam a historiografia colonial indiana a partir das
descontinuidades nas revoltas camponesas durante a ocupação colonial, isso se converte no
manifesto de uma oposição à produção teórica elitista. A historiografia dos estudos
subalternos intenciona se contrapor a ideia canônica de que a formação da nação indiana se
daria por meio de um projeto burguês bem sucedido.
Spivak recorre a Said e à sua expressão “permissão de narrar” para reafirmar o papel
central do sujeito subalterno e sua fala heterogênea. Para minimizar o risco de uma
essencialidade no contraponto da historiografia subalterna, esse projeto “deve trafegar em
uma prática textual radical das diferenças.” 305
Said desenvolve uma perspectiva crítica da obra de Spivak na medida em que afirma
que a linguagem representa o problema principal na análise do texto. A centralidade da
linguagem em detrimento das ideias ou experiências aparece em destaque na visão do nosso
autor. Said demonstra uma impaciência com a crítica literária dos anos 80 e 90, quando afirma
que é uma escrita teórica sem um objeto particular. Nesse contexto, o autor afirma ser um
empirista que pensa a experiência da leitura, do texto sempre remetida ao contexto Histórico.
Para Said, os discursos são representados como “arquivos” ou fontes de
conhecimentos comuns. Historicamente a identificação do viés colonialista no processo de
produção do conhecimento define o objeto para além de uma demarcação meramente
cronológica.
Os estudos pós-coloniais buscam alternativas para a desconstrução da antinomia
Ocidente/Oriente que sejam distintas da simples inversão do lugar da enunciação colonial. A
desconstrução do essencialismo no discurso pós-colonial supera a visão simplista de uma
mera inversão do protagonismo no discurso.
O problema da mediação do conhecimento é uma das questões centrais para a
démarche teórica do autor palestino. Essa temática induz ao problema da representação do
intelectual na sua obra e aparece com força no artigo “A Representação do colonizado, os
interlocutores da antropologia”306em que o autor estabelece parâmetros para o debate teórico
inerente à antropologia contemporânea.

305
Ibid, P.59.
306
SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP: Editora Companhia das Letras, 2003. (1a.
edição -2001.
191

Said fala dos desafios da etnografia que encaminham os antropólogos para o primado
da textualidade mediante os dilemas do trabalho de campo no mundo pós-colonial. Parece-nos
que os desafios não são limitados à realização do trabalho de campo e aos dilemas políticos da
antropologia, mas o central nos desafios de campo perpassa o debate inerente as ciências
sociais como um todo, ou seja, aqui se estabelece a questão da viabilidade da representação,
que nós identificamos como a grande armadilha da reflexão pós-colonial.
Para além do interlocutor inserido no conflito colonial, o ambiente acadêmico também
convoca a existência do interlocutor dominado com Said denomina, cujos correlativos
teóricos encontram-se no dialogismo de Bakthin, na situação de fala ideal de Habermas ou na
filosofia de Richard Rorty.
Said fala de uma incorporação ou cooptação desnaturalizante e não autorizada a tratar
do subalterno, na medida em que a representação não autoriza a legitimação das vozes
anteriormente silenciadas. Quando as vozes subalternas são ouvidas elas adquirem um perfil
de alteridade, ou seja, contitutivamente diferente e sem equivalência, o que aprofunda o
paradoxo.
Se o Orientalismo é um tipo de erudição comprometida com uma ideologia militante,
sua forma de apresentação conforma um perfil estético. Said retoma um debate caro a
antropologia contemporânea que procura se desviar de um dilema em torno da legítima fala
pelo outro.
Os desvios excessivamente estéticos filosóficos ou pragmáticos não deram conta de
um conjunto de respostas factíveis ao debate meta antropológico que a etnologia
contemporânea enfrentaria. Said se quastiona sobre o lugar e a reflexão acerca do observador,
de onde ele fala, para quem ele escreve e com que fim ou sentido ele teoriza sobre um
determinado objeto. Said cita James Clifford e sua reflexão sobre a autoridade etnográfica.
A reflexão antropológica deve realizar o trabalho investigativo e acadêmico de pensar
um estado de influência e poder em que há uma assimetria entre os grupos ou nações. As
reflexões do campo antropológico refletem sintomaticamente os desafios da problemática
relação sujeito-objeto.
As obras recentes abordam a distância entre uma realidade política baseada na força e
um ímpeto acadêmico científico de compreender o outro. Apreender a outra cultura significa
estender a própria disputa imperial. A história do pensamento antropológico sempre caminhou
em paralelo com a dominação colonial.
192

O ponto de vista nativo-apesar do modo como foi amiúde retratado - não é apenas
um fato etnográfico, nem um constructo primário ou principalmente hermenêutico:
ele é, em ampla medida, uma resistência de oposição contínua e sustentada à
disciplina e á práxis da própria antropologia (como representante do poder
“externo”), antropologia não como textualidade, mas como um agente direto da
dominação política.307 (SAID, 2003, p.130)

Para desenvolver uma análise sobre o envolvimento da antropologia na dominação


colonial, devemos resgatar o conceito de zona de contato desenvolvido pela autora Mary
Louise Pratt (1999), no livro, Os olhos do império, relatos de viagem e transculturação.308A
autora desenvolve essa categoria como sinônimo de “fronteira colonial”, numa tentativa de
resgatar a presença espacial e temporal conjunta de sujeitos separados por descontinuidades
históricas e geográficas.
O conceito de contato enfatiza as dimensões interativas dos encontros coloniais,
suprimidas nos relatos e narrativas de conquista colonial. Nesse sentido os sujeitos são
constituídos nas relações de uns com os outros. As relações entre colonizadores e colonizados
é abordada em termos de presença próxima, interação, entedimentos e práticas interligadas,
tendo em vista a assimetria das relações de poder.
Os atenuantes europeus à gravidade da conquista e às estratégias de representação,
sobre a suposta inocência dos europeus, no âmbito da conquista colonial são tratadas pela
categoria teórica de “anticonquista”. As estratégias de afirmação da inocência são constituídas
tendo por base a retórica imperial de conquista. A encarnação do horizonte europeu do
discurso compromete a autorepresentação do colonizado.
Na literatura da fronteira imperial, a inocência do naturalista adquire siginificado em
sua relação com uma explícita culpa pela conquista, culpa que este assume e se esquiva numa
postura ambivalente. Os viajantes são testemunhas diárias da zona de contato, ainda que as
instituições do expansionismo tenham prorpocionado suas viagens, o discurso repousa sobre
um grande desejo, uma vontade de tomar posse sem subjugação ou violência.
Pratt analisa as narrativas de viagem e a potencial ambivalência entre uma culpa
civilizada e a elaboração de uma representação assimétrica do colonizado, inerente ao projeto
evolucionista e cientificista que orienta o domínio colonial. A passagem etnográfica torna
homogêneo o povo subjugado, visto como uma essência, um evento particular no tempo. As

307
Ibid, p. 130
308
PRATT, Mary Louise, Os olhos do império, relatos de viagem e transculturação, Bauru: EDUSC, 1999. A
autora pretende realizar um estudo sobre a literatura de viagem e exploração queeela considera uma crítica de
ideologia. Os relatos de viagens são entendidos como um tropos que pode levar a compreensão da dinâmica
interativa e das relações de poder na assimetria das relaçeos coloniais. A literatura de viagem codifica a fronteira
imperial nas duas linguagens eternamente conflitantes e complementares.
193

conjunções particulares de pessoas, quando transfomam-se em narrativas visam descrever os


caracteres, os traços, que se convertem numa taxonomia.

A antropologia crítica tem reconhecido a extensão com que essas práticas descritivas
têm atuado para normalizar uma outra sociedade, para codificar seus traços
distintivos aos da sociedade do outro, o narrador, para fixar seus membros num
presente atemporal em que todas as suas ações e reações reproduzem “seus” hábitos
normais. Como o sistema da natureza, elas trazem uma ordem onde, para o
observador externo, existe o caos. A produção textual da outra sociedade não é
explicitamente fundamentada nem na observação do indivíduo nem na situação de
contato na qual a observação está tendo lugar. “Ele” é uma entidade sui generis,
frequentemente apenas uma lista de características, situada numa ordem temporal
diferente daquela do sujeito perceptual e narrador.309 (PRATT, 1999, p.119)

O Discurso da resistência colonial deve estar inserido na refutação permanente de um


formalismo, que tomou conta da teoria literária recente e procurando estabelecer a validade do
pensamento contrahegemônico. Em continuidade a essa perspectiva sobre a resistência, Said
discute os estereótipos formulados a partir de um conjunto de preconceitos vinculados aos
movimentos nacionalistas que contavam com uma visão impaciente sobre o seu caráter
libertador. O nacionalismo não ocidental era visto como terrorista e irracional.
Fanon é resgatado novamente para inaugurar um pensamento original no sentido de
pensar a realidade européia e ocidental associada à história das colônias. Essas “despertam do
estupor cruel e da imobilidade maltratada do domínio imperial.” 310A genealogia de Fanon se
origina em Aimé Cesáire, Cadernos de um retorno ao país natal, e Lukács, História e
Consciência de classe, de onde emana a fonte temática da reflexão da indissociação entre a
história da Europa e a história das colônias. Para Fanon, o mundo pós-colonial depende da
ideia de um destino coletivo e plural da humanidade ocidental e não-ocidental.
O nacionalismo aparece aqui como uma necessidade paradoxal. Esse tema será
abordado com mais profundidade no capítulo posterior da tese, dedicado a uma proximidade
teórica do pensamento de Fanon e Said, no que tange à reflexão sobre o nacionalismo.
A definição de cultura para o nosso autor palestino segue os rastros da reflexão
fanoniana, pensada como zona de controle, de abandono, ou esquecimento, de força ou
dependência sempre na esfera da história global. Said cita Aimé Cesaire, W. E. B Du bois e
Senghor, e como consequência desse conjunto de pensadores, o seu conceito de negritude.
Este deve ser relembrado pelo seu conteúdo de positividade a partir da reafirmação de uma

309
PRATT, Mary Louise, Os olhos do império, relatos de viagem e transculturação, Bauru: EDUSC, 1999.
P.119
310
Fanon Apud SAID,, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP: Editora Companhia das Letras,
2003. (1a. edição -2001). p 134.
194

identidade. As particularidades dos colonizados devem conferir um caráter mobilizador de


uma identidade de resistência.
No período de libertação nacional, o resgate das particularidades da identidade quase
primordialista funcionou na forma de um manifesto de resistência necessário. Na segunda fase
de reorganização nacional, esse movimento se mostrara insuficiente. Fanon subsidia essa
reflexão por meio de um modelo de desconfiança do movimento nacionalista.

Os leitores desatentos ou descuidados de Frantz Fanon, em geral considerado um


dos três apóstolos mais eloquentes da resistência antimperialista, tendem a esquecer
suas suspeitas em relação ao nacionalismo. Se é apropriado chamar a atenção para
os primeiros capítulos sobre violência de Os condenados da terra, não se deve
esquecer que, nos capítulos subsequentes ele critica fortemente o que chamou de
armadilhas da consciência nacional. Para Fanon, tratava-se de um paradoxo, pois,
enquanto o nacionalismo é um estímulo necessário para a revolta contra o
colonizador, a consciência nacional deve ser transformada no que ele chama de
“consciência social”, assim que se complete a retirada do colonizador.311 (SAID,
2003, pp.181/182.

O intelectual pensado por Said caracteriza-se pelo que denominamos de “hibridismo”


identitário. Para além dessa definição, identificamos na sua experiência um estado de tensão
irreconciliável entre o estético e o social.
Procuramos acompanhar o debate sobre o conceito de pós-colonial presente no artigo
da autora Ella Shohat (1992)312. A autora argumenta que a denominação “pós” comporta uma
ambivalência entre o encerramento de um evento histórico e/ou a possível superação de um
paradigma teórico. A denominação “pós” não se limita apenas à superação de uma etapa
cronológica, este pode abranger um lugar de enunciação teórica.
Shohat (1992) aponta para a árdua separação de um momento histórico específico e
uma forma discursiva que aliam poder e conhecimento. Aqui se confundem momentos
históricos específicos com narrativas discursivas constitutivas de um paradigma teórico. A
oscilação entre o privilegiar a narrativa colonial e o posterior discurso anticolonial vai
possibilitar o chamado “entre-lugar” do pós-colonial. Para a autora, a permanente
relativização dos binarismos desestabiliza o campo do antagonismo político.
O pós-colonial incorre nos riscos de uma despolitização da luta anticolonial ou de um
relativismo cultural politicamente esvaziador. Shohat aponta para a simultaneidade da ampla
adaptação ou acomodação do discurso pós-colonial e o ocaso da categoria de terceiro mundo.

311
Ibid, p. 181/182.
312
SHOHAT, E., Notes on “Post-Colonial”, Social Text, No.31/32, Third World and Post-Colonial Issues, Duke
University Press, 1992.
195

Shohat aproxima a conjuntura da crise do conceito de terceiro mundo e do fortalecimento da


rúbrica teórica, pós-colonial.
A autora aponta para a abrangência histórica e temporal do termo pós-colonial que
envolve questões de ordem do momento após a colonização, até elementos pertinentes ao
contemporâneo. O pós-colonial implica ir além da teoria nacionalista anticolonial assim como
um movimento além de um ponto específico na história, além das lutas anticoloniais e dos
nacionalismos de terceiro mundo.
O conceito pressupõe uma ambiguidade espaço-temporal. A ambivalência do conceito
é um problema para as definições mais estreitas desse universo. Desde que o mundo inicou
um processo histórico, o pós-colonial facilmente se encaixou numa categoria universalizante
que neutralizava forçosamente as diferenças geopolíticas entre os países colonizadores e
países colonizados. A problemática da temporalidade pós-colonial fez a autora se questionar
quanto ao início do pós-colonial: quando ele começaria temporalmente?
O pós-colonial pode dissimular o término da problemática do colonialismo como algo
superado, ultrapassado. O colonial e o pós-colonial tendem a ser relegados ao passado, a um
momento histórico concluído, o que implicaria numa fronteira temporal que ressaltaria um
potencial oposicional.
O posicionamento entre o colonizador e o colonizado na dualidade não faz muito
sentido, no âmbito da ambivalência conceitual em torno do “pós”-colonialismo, o que
pressupôe a transcendência de uma experiência por meio da resistência. Se não há uma clara
oposição, não há dicotomia, portanto, não se convoca um ímpeto de resistência.
Podemos descrever outro posicionamento sobre o pós-colonial, presente no debate do
313
teórico Arif Dirlik,(1994) que prevê que a noção de identidade é discursiva e não
estrutural, que rejeita a noção de totalidade; e que percebe um grau despolitizante e
ambivalente na categoria de pós-colonial. No contexto citado, o pós-colonial menospreza ou
desconsidera grosseiramente a estrutura capitalista do mundo moderno. Dirlik se aproxima do
posicionamento de Shohat no que tange a despolitização que a multiplicidade do conceito
pode supor.
Se a multiplicidade gerada pelo relativismo do pós-colonial não consegue dotar o
antagonismo político de vigor, por outro lado os binarismos essencialistas recusados por esta
forma de pensamento, não representam garantia de uma inteligibilidade transparente do
conflito colonial.

313
DIRLIK, A. “The post colonial aura: third world criticism in the age of global capitalism”, Critical inquiry,
Winter, 1994.
196

Os efeitos de fronteira são tão construídos quanto qualquer categoria teórica


essencialmente definida. Podemos encontrar essa reflexão no artigo de Stuart Hall, “Quando
foi o pós-colonial ? Pensando no limite”314. Hall identifica-se com a crítica da universalização
descomprometida do conceito pós-colonial e propõe novos sentidos para o conceito:

O que o conceito pode nos ajudar a fazer é descrever ou caracterizar a mudança nas
relações globais, que marca a transição (necessariamente irregular) da era dos
Impérios para o momento da pós-independência ou da pós-descolonização. Pode ser
útil também (embora aqui o seu valor seja mais simbólico) a identificação do que as
novas relações e disposições do poder que emergem nessa nova conjuntura.315
(DIRLIK, 1994 ,p.101)

O pós-colonial deve romper as demarcações claras que separam o interior/exterior do


sistema colonial. A colonização pode ser relida como parte de um processo global
transnacional e transcultural que permita uma escrita descentrada, diaspórica ou global das
grandes narrativas. As relações diaspóricas ou transversais deslocam as noções de centro e
periferia, global e local e reafirmam a interdependência da colônia e metrópole.
Grandes parte dos teóricos que repensa a categoria de pós-colonial, recusa a chamada
“temporalidade problemática” que diz respeito à atribuição periodizante ao termo “pós”. Essa
categoria não envolve uma periodização de sucessão de estágios, onde a superação de um
contexto dá lugar automaticamente à outra conjuntura. O rompimento com o colonialismo não
pode ser pensado em termos de um evento datado, tratou-se de um longo processo com
características graduais.
Para problematizar a denominação cronológica do “pós”, Hall resgata o pensamento
de Shohat para sugerir que o pós-colonial se distingue de todos os outros “pós”, por tentar ser
epistêmico e cronológico. Há o reconhecimento da mudança de paradigma teórico e a
superação de um momento colonial que o pós-colonial intenciona superar.
A transição para o pós-colonial contou com a persistência dos muitos efeitos da
colonização e com o deslocamento do eixo colonizador/colonizado o que provocou a sua
internalização na própria sociedade descolonizada. Hall questiona o paradoxo da aposta nas
persistências em detrimento das descontinuidades do processo colonial, que em certo sentido
não seria uma simples reencenação da mesma conjuntura colonial.
Outros teóricos citados por Hall definem o pós-colonial como a desconstrução do
discurso filosófico ocidental, assemelhando-se a um mero desvio para retornar a posição do

314
HALL, Stuart, “Quando foi o pós-colonial? Pensando no limite” In: SOVIK, liv (org.) Da diáspora,
identidades e mediações culturais,
315
Ibid, p.101.
197

outro, enquanto recurso para se repensar o próprio eu ocidental. Nesse contexto aparece o
incômodo que se curva sobre a aproximação do pós-colonialismo com o pós-estruturalismo.
Os estudos pós-coloniais pressupõem a negação dos chamados arquivos disciplinares
ou demarcações teóricas que formam narrativas pelas quais os povos colonizados são
objetivados ou essencializados. O conhecimento produzido deve ser inventariado através dos
vestígios das heranças coloniais ou pós-coloniais. Esse inventário deve se orientar pela análise
dos traços textuais que aparecem por meio dos registros literários, antropológicos, sociais,
históricos ou filosóficos.
Uma possibilidade heurística do olhar pós-colonial é inverter o ponto de partida e
deslocar o centro da enunciação para os colonizados, o que suscita um debate sobre a possível
representação ou sobre a possibilidade de produção do conhecimento.
O problema da representação desempenhou um papel central na reflexão do
pensamento pós-colonial. O dilema constante das classes oprimidas é se imaginar
representada por mediadores. Com um mediador, o oprimido não se subjetiva plenamente. Se
a teoria pós-colonial representa um contra discurso, ao repensar a hegemonia do pensamento
ocidental, é necessário questionar a tradição e os cânones.
Outra possível perspectiva dessa reflexão define como meta a reformulação dos
princípios do conhecimento através de uma abordagem interna. Isso significa desconstruir a
história da modernidade desviando a sua centralidade e demonstrando as vinculações
simbólicas entre o Ocidente e a alteridade.
O historiador indiano Dipesh Chakrabarty316(2008), defende o projeto de
provincialização da Europa ao tentar transpor historicamente o universalismo liberal. O
esvaziamento do monopólio ocidental foi construído com o imperialismo europeu. Como
consequência desse processo, as histórias nacionais dos países colonizados foram lidas como
experiências derivativas dos nacionalismos europeus.

Provincializar a Europa significa, para Chakrabarty, reconhecer duas evidências:


primeiro que a reinvindicação de monopólio do atributo “moderno” por parte da
Europa é um capítulo da história moderna do qual o imperialismo europeu é parte
constitutiva; segundo, que a colaboração de nacionalistas de países do terceiro
mundo desempenha um papel fundamental no triunfo da ideologia modernista, na
qual a própria Europa viria a figurar como representação acabada da modernidade.317
(COSTA, 2013, p.268)

316
CHAKRABARTY, Dipesh, Al margen de Europa, estamos ante el final del predomínio cultural europeo?
Barcelona: Tusquets editores, 2008.
317
COSTA, Sérgio, (Re) Encontrando-se nas redes? As Ciências humanas e a nova geopolítica do conhecimento,
In: ALMEIDA, Júlia. MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adelia. GOMES, Heloisa Toller. Crítica pós-colonial:
panorama de leituras contemporâneas. Rio de janeiro: Editora 7 Letras; 2013.P. 268.
198

Provincializar a Europa não significa rejeitar a modernidade, ou os valores liberais,


universais e a razão. Esse processo deveria levar em conta que o pensamento universalista
estava sempre modificado por histórias particulares. Chakrabarty tinha consciência das muitas
Europas existentes; reais, históricas ou imaginadas. O que interessava ao autor indiano, era a
Europa que presidia o pensamento sobre a modernidade, internalizada na Índia. Uma Europa
que se fazia à imagem do colonizador, um mito fundador para o pensamento e para os
movimentos de emancipação da Índia.
Os conceitos de sujeito, democracia, soberania popular, justiça social e racionalidade
cientifica, teriam alcançado a sua culminância de realização política na Europa do século
XIX. Esses conceitos pressupôem uma visão universal e secular do ser humano. As categorias
citadas serviriam para justificar um legado teoricamente transmitido por meio do projeto
civilizatório da Europa nas colônias.
A erudição pós-colonial, na visão de Chakrabarty, também se vê inserida na ambiência
formadora das mentalidades originárias de uma tradição ocidental que estabelece de forma
abstrata, o humano e a razão. Chakrabarty fala do imperativo de se conviver com elementos
universais da condição de modernidade política.
O autor indiano reforça a ideia de que a crítica à universalidade da modernidade
política, atribuída a Europa não se limita a concepção da história historicista. As críticas
ocidentais ao historicismo se fundamentam, dado que esta corrente historiográfica teria
respaldado a dominação européia do mundo, no século XIX. O historicismo expandiu a
ideologia de que o capitalismo, signo da modernidade, se transfomaria em global ao longo do
tempo, assim como diversos nacionalismos não ocidentais se converteriam em versões locais
quase como uma difusão de um mesmo foco de origem.

El pensamiento europeo resulta a la vez indispensable e inadequado para ayudarnos


a reflexionar sobre las experiências de la modernidad política en las naciones no
occidentales y provincializar Europa se convierte em la tarea de explorar cómo este
pensamiento – que en la actualidad es la herencia de todos nosotros y nos afecta a
todos – podria ser renovado desde y para los márgenes.318 (CHAKRABARTHY,
2008, p.45)

318
CHAKRABARTY, Dipesh, Al margen de Europa, estamos ante el final del predomínio cultural europeo?
Barcelona: Tusquets Editores, 2008. p. 45. “O pensamento europeu resultou indispensável e inadequado para
ajudar-nos a refletir sobre as experiências da modernidade política nas nações não ocidentais e provincializar a
Europa se converte na tarefa de explorar como este pensamento – que na atualidade é a herança de todos nós e
nos afeta a todos – poderia ser renovado desde as margens.” (tradução nossa)
199

Apontamos dois problemas teóricos, que aparecem na reflexão sobre a crítica à


Europa, como encarnação central da modernidade política: o primeiro deles tem relação com
a questão da representação, anteriormente debatida na parte relacionada à reflexão pós-
colonial e a outra diz respeito a concepção de história, inerente ao projeto de uma evolução
linear que enquadra o outro numa condição tardia de desenvolvimento.
A Europa segue sendo o sujeito soberano em todas as histórias. As categorias de
Europa e Índia, em Chakrabarthy são tratadas heuristicamente, como conceitos hiperreais na
medida em que, não encontram correspondência determinada, específica no que tange o
referencial geográfico.
O historiador indiano identifica a tendência a interpretar a História indiana a partir de
categorias tais como; carência, falta, incompletude que se convertem em inadequação e
aparecem como um padrão seguido pela historiografia eurocêntrica. O sujeito da historia
indiana se encontra num dilema, de um lado sujeito, e de outro, objeto da modernidade, já que
representa uma suposta unidade denominada “povo indiano” que sempre esta dividida em
dois, uma elite modernizadora e um campesinato esperando pela tutela para se modernizar.
Enquanto sujeito dividido, fala internamente a um metarrelato que defende o
estadonação e o sujeito teórico dessa narrativa só pode ser uma Europa construída por
representações do imperialismo e do nacionalismo. Dado o seu caráter mimético e a sua
trajetória, a história nacional indiana será sempre uma narrativa da lacuna. Reconhcemos a
semelhança com os questionamentos sobre o subalterno, em Gayatry Spivak. Só se pode falar
sobre o colonizado mediante um relato de transição que sempre privilegiara o moderno.
Provincializar a Europa é um projeto que ainda não foi concretizado. O projeto de
provincializar a Europa não pode caracterizar-se por um projeto de relativismo cultural. A
Europa aqui é vista, assim como o Ocidente, como entidade imaginária, o que não diminui seu
caráter hegemônico.
O autor indiano reconhce duas etapas nesse projeto: a primeira passa pelo
reconhecimento da aquisição da Europa, do adjetivo de moderna e constitui parte integral do
relato sobre o imperialismo europeu dentro da historia global. Em segundo plano aparece uma
determinada versão da Europa, equiparada com a modernidade, que não é so produto da
reflexão européia. O argumento de Chakrabarty se direciona para a inserção da modernidade
fundada nas narrativas de transição. Provincializar a Europa significa esvaziar as narrativas
ligadas a limearidade do progresso e a espacialização do tempo.
A grande reflexão de vanguarda sobre o pensamento pós-colonial se encaminha para
pensar o lugar político desse conjunto de pressupostos denominado pós-colonialimo. Para
200

Spivak, a pós-colonialidade poderia representar o fracasso da descolonização. Walter Mignolo


insere esse pensamento no que ele denomina descolonização epistêmica.
A vigília a que Spivak se refere diz respeito a uma atenção ética e política para que os
questionamentos epistemológicos e teóricos não se transformem no vazio pirrônico de uma
inação política. Reconhecemos uma semelhança com a reflexão sobre o essencialismo
nacional, do nosso autor Palestino, uma vez que este repensa criticamente os pressupostos
nacionais da descolonização.
Said estabelece parâmetros de revisão a essa dualidade de civilizações e recorre a
Freud e Nietzsche para mostrar a facilidade com que as pessoas transitam ou se movem
permanentemente por fronteiras cuidadosas. Na sua concepção, o dualismo maniqueísta
assegura uma estabilidade aparente e artificial. A sua crítica à teoria do choque das
civilizações319 de Samuel Huntington foi ressaltada após o 11 de setembro e criou um
paradigma de dualismos civilizacionais convenientes para o imaginário da segurança
nacional. Para Said, a tese do “choque das civilizações” é uma farsa como a “guerra dos
mundos” que serve para reforçar espírito defensivo e minimizar uma compreensão crítica da
interdependência do nosso tempo.
A reflexão de Said sobre o humanismo produz uma crítica sobre os efeitos do
dualismo provocado pelo atentado do 11 de setembro. A guerra ao terrorismo é a principal
campanha militar no Oriente Médio. A doutrina militar dos EUA relacionada aos ataques
preventivos. Esse marco histórico tem introduzido no vocabulário do imaginário político uma
insistência nos conceitos de terror e terrorismo e tem acentuado o resgate datado de um
maniqueísmo referenciado ao século XIX: a civilização e a barbárie, o progresso e o atraso, o
Ocidente e o Oriente. Said rejeita o prolongamento histórico do uso das categorias citadas,
uma vez que ele as considera triviais e superficiais, além de pouco definidoras, dado o seu
caráter generalizante.
Seria importante distanciar o posicionamento do nosso autor, do predomínio da
influência do pós-modernismo na matriz pós-colonial. Reconhecemos como pressupostos
teóricos do pós-modernismo: o descentramento das narrativas e a diluição da autoria em
função dos vários condicionamentos que operam sobre a produção teórica.

319
A teoria do choque das civilizações realçada nos EUA, após o 11 de setembro nasceu de um artigo do
orientalista Bernard Lewis publicado na revista Atlantic Monthly em setembro de 1990, denominado As raízes da
ira muçulmana. Nesse artigo foi usado pela primeira vez a expressão “choque de civilizações”, expressão que foi
incorporada por Samuel Huntington e utilizada como título do seu polêmico livro. Said discute criticamente o
seu conteúdo no artigo “O choque de ignorâncias” inserido na coletânea Cultura e política.
201

2.2 O problema da historicidade nas narrativas nacionais

A ideia de nação tornou-se central na construção da vida social no período moderno,


especialmente nos séculos XVIII e XIX. Seria difícil demarcar o ponto de origem histórica do
surgimento das nações e dos discursos/narrativas nacionalistas. O nacionalismo seria a
culminância ou realização das identidades primárias organizadas espacialmente e
politicamente? O nacionalismo abrangia uma esperança secularizada ou um tipo de lealdade
coletiva que se desenvolvia paralelamente ao estado moderno político.
O que nos interessa debater tem relação com o lugar reservado ao nacionalismo no
percurso teórico do autor em questão. Para a realização do desenvolvimento dessa temática, é
necessário situar alguns dos principais debates em torno da questão do nacionalismo e as
análises historiográficas que posicionam os autores em relação a essa temática.
Said define nacionalismo como uma declaração de pertencimento a um lugar, a um
povo e a uma herança cultural. A afirmação nacional rejeita o exílio. O nacionalismo vitorioso
justifica uma história amarrada seletivamente por origens, textos básicos, retóricas de
pertencimento e determinados marcos históricos.
Said lê inicialmente o nacionalismo como um mecanismo rancoroso e estreito de
identidade que pode produzir conformismo. Said cita Tagore320 quando fala que a cultura da
nação, diretamente responsável pela mesquinhez, assume em alguns contextos, o encargo da
crítica generalizada ao Oriente.
Os três grandes temas que surgem na resistência cultural são destacados; o primeiro é
a visão da comunidade como um todo coerente e integral. “Devolver a nação aprisionada a si
mesma”321. Ainda que as solidariedades sejam gestadas sob uma base essencialmente
imaginária. Em segundo lugar, a ideia de que a reação ao imperialismo é um modo alternativo
de conceber história humana. Essa concepção acompanha uma ruptura das barreiras culturais.
Em terceiro lugar, Said define o afastamento do nacionalismo separatista em direção a uma
visão mais integrada das comunidades. O ressurgimento do nacionalismo se apresenta sob
feições anacrônicas.
Said cita vários teóricos consagrados do nacionalismo, e empreende uma crítica ao
desconforto do nacionalismo gestado pelo Oriente. A sua critica se dirige a ideia de uma

320
TAGORE, R, Nationalism, 1917.
321
SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo, SP: Companhia das Letras, 1993. (1ª. Edição) p. 273
202

matriz ocidental do nacionalismo e a respectiva adaptação inferiorizada dos nacionalismos


pós-coloniais.

Eric Hobsbawm e Ernest Gellner consideram o nacionalismo como uma forma de


comportamento político “ocidental” que foi sendo gradualmente superado pelas
novas realidades transnacionais das economias modernas, das comunicações
eletrônicas e da projeção militar das superpotências. Em todas essa opiniões,
acredito, há um acentuado (e na minha opinião, a-histórico) desconforto em relação
às sociedades não ocidentais que adquirem a independência nacional, a qual se
acredita ser “estrangeira” ao caráter delas. Donde a repetida insistência sobre a
proveniência ocidental das filosofias nacionalistas que, por isso, são mal adaptadas
aos árabes, zulus, indonésios, irlandeses, ou jamaicanos, os quais provavelmente
farão mal uso delas.322 (SAID, 1993, p.274)

Said afirma que não deseja transmitir o ideário de um antinacionalismo. O autor


enumera as demandas anticoloniais relacionadas ao nacionalismo, a restauração da
comunidade, a afirmação da identidade, o surgimento das novas práticas culturais e a luta
contra o domínio ocidental.
Seguindo a reflexão de Fanon, Said afirma que nós devemos nos concentrar no
argumento intelectual e cultural no âmbito da resistência nacionalista segundo o qual, uma
vez adquirida à independência, novas e imaginativas reconcepções da sociedade e da cultura
eram necessárias para se evitar as velhas ortodoxias. A síntese dessa concepção de uma
revisão permanente do pensamento nacionalista, está sintetizado na sua tese de que em seus
melhores aspectos, o nacionalismo antimperialista sempre foi crítico de si mesmo.
A resistência ao colonialismo foi conduzida na linguagem do nacionalismo que pode
designar a força mobilizadora que se aglutinou como resistência contra um império exterior.
O nacionalismo é visto no contexto de libertação como problemático, dado o tipo de grupo
social, tal como a elite burguesa nacional, que coordenou os movimentos pela emancipação
nacional, o que acabou gerando determinadas “patologias do poder”.
Said generaliza e tipifica o nacionalismo por um inequívoco viés patriarcal, com
distorções e atrasos na questão dos direitos das minorias. Said descreve duas etapas para o
nacionalismo converter-se em luta libertária. A primeira etapa consistiu no desenvolvimento
de uma consciência aguda da cultura européia e ocidental enquanto imperialismo, e a defesa
do fim da pretensão cultural européia de guiar e ou instruir o individuo não europeu. A
segunda etapa, mais profundamente libertária ocorreu no período da descolonização, a partir
dos anos 40, contexto no qual se desenvolveu a ideia da libertação com uma dose de
militância armada e insurrecional.

322
Ibid, p..274.
203

Said fala em tom de manifesto contra as essencializações e seus efeitos políticos.


Aceitar o nativismo e as conseqüências do imperialismo, as divisões raciais, religiosas e
políticas impostas pelo próprio imperialismo. Deixar o mundo histórico à metafísica das
essências é abandonar a história em favor das essencializações que pode suscitar alguns
conflitos entre os grupos.
Essa postura teórica que transita pelo devir histórico e que recusa as descontinuidades,
representa o abandono do mundo secular, uma aceitação irrefletida de estereótipos que podem
levar ao fanatismo nativista. Esses programas não representam as metas imaginadas pelos
grandes movimentos de resistência.
Aceitar a essencialidade opositora- europeu versus africano- que aceitava a estrutura
dialética dos confrontos ideológicos europeus, significava importar os próprios componentes
da essência racista. O movimento de libertação aparece como promissor, na medida em que
supera a primeira fase nativista dos movimentos de libertação. Said defende que não se fique
preso à celebração da própria identidade. A defesa de um universalismo que não deve ser
limitado, nem coercitivo significa superar o nativismo.
A progressão da nacionalidade, passando pelo nacionalismo até a etapa nativista se
encaminha para um modelo coercitivo. Se não houver uma transformação da consciência, a
experiência converte-se na coerção institucionalizada. Said exemplifica historicamente com a
experiência do Quênia, e com o exemplo da Argélia após os seus respectivos processos de
descolonização.
Said faz referências à ausência de uma análise da situação das ex-colônias após
alcançar a libertação nacional. Fanon afirma que não se chega à libertação apenas tomando o
poder. A transição pós-descolonização é uma etapa histórica pouco privilegiada por
pensadores como Fanon, exatamente porque é uma nova ordem política que conquista uma
hegemonia moral e enfrenta várias dificuldades ao organizar a sua estrutura política.
A descolonização é vista como um período de mudança cultural. Nesse sentido os
intelectuais que reprentaram ou que se imbuíram da tarefa critica e revisionista de enfrentar a
cultura metropolitana, utilizaram as técnicas, discursos e o saber da crítica reservada
anteriormente ao olhar privilegiado dos europeus.
Said resgata o conceito de cultura tal como desenvolvido na obra de Raymond
Williams. Se antes a Cultura era relacionada ao seu desenvolvimento no interior da ordem
social nacional, o mundo contemporâneo suscita outro tipo de fronteira para as demarcações
culturais. No século XX, novas formações internacionais e paranacionais tendem a ocupar o
204

lugar de vanguarda nos centros europeus. Said se apropria da sociologia da cultura de


Raymond Williams e transfere o debate para a situação colonial.
Said fala de uma “viagem para dentro” que diz respeito à situação dos intelectuais
originários das colônias que escrevem nas metrópoles. Essas incursões dizem respeito às
mesmas áreas de experiência, cultura e história e tradição ate então comandadas
unilateralmente pelo centro metropolitano. A escrita de Fanon ilustra essa sobreposição e
interdependência que não pode ser descrita apenas como reação de uma identidade nativa ou
colonial separada.
A visão eurocêtrica percebe que o logos reside exclusivamente na Europa. A história
não corre unilateralmente do Ocidente para Oriente e as armas da crítica tornaram-se parte do
legado histórico do império, em que as separações e exclusões do “dividir para dominar” são
diluídas refazendo as configurações. Said fala da integração dos intelectuais que transitam
pela metrópole e pela colônia e que produzem discursos anticolonais.
A dissociação do legado primordialista da colônia e a herança intectual da metrópole
contituem um grande dilema político e metodológico. O fracasso do advento da nação no
processo de descolonização guarda relação com o imperativo intelectual de uma burguesia
nacional moldada na metrópole.
Said cita o dilema de Ranajit Guha, idealizador dos Estudos Subalternos que se
pergunta; “como estudar o passado indiano, radicalmente afetado pelo poder britânico, não no
abstrato, mas em termos concretos, quando se é um indiano moderno, cujas origens, formação
e realidade familiar dependem historicamente desse poder?”323 O dilema de Guha é
solucionado por uma estratégia que dramatiza a questão da alteridade no domínio britânico. O
ato de separação reflete o gesto básico da descolonização.
A produção de uma história critica distante da reprodução de objetos, ideologias e
argumentos que reproduzem a visão colonialista da história deve se dedicar a resgatar a voz
nativa silenciada. Said descreve as obras em que a narrativa avança na direção de um
revivalismo nacionalista, a formação de um estado autônomo culturalmente em árdua parceira
com o Ocidente. As dificuldades de consolidação da autonomia nacional dos estados árabes
pós- coloniais aparecem em alguns dilemas políticos.

Os estados árabes pós-coloniais portanto, têm duas escolhas: muitos, como a Síria e
o Iraque, conservam o seu viés pan–árabe, usando-o para justificar um estado
monopartidário de segurança nacional que engoliu quase por completo a sociedade
civil; outros, como a Arábia saudita, o Egito, Marrrocos, embora retendo alguns
aspectos da primeira alterantiva, retrocederam para um nacionalismo regional ou

323
Ibid, p.311.
205

local cuja cultura política, a meu ver, não foi além da dependência em relação ao
ocidente metropolitano. 324 (SAID, 1993, p.314)

Said resgata a teoria do método contrapontístico, para justificar a união da experiência


e da cultura. Pretende-se ler os textos metropolitanos e das periferias de forma oscilante, sem
privilegiar a objetividade ou a tendenciosa subjetividade. O contraponto aqui leva ao
entrelaçamento, e integração que sugerem a universalidade superadora dos binarismos. A
experiência da dominação colonial e da resistência não podem ser abordadas de forma
dualista. Interessava a Said estudar a interação do nacionalismo árabe e o Ocidente.
Said resgata o capítulo “Desventuras da cosnciência nacional” do livro Condenados da
Terra para falar da antevisão de Fanon na transformação de uma consciência nacional e numa
extensão do imperialismo, e exemplifica com a situação da Argélia após a descolonização. 325
Para Said, Fanon foi o primeiro teórico a pensar as estratégias nacionalistas como
insuficientes para a resistência contra o colonialismo. O nacionalismo ortodoxo seguiu os
mesmos rastros do imperialismo, ao conceder autoridade a uma burguesia nacionalista que
estava estendendo a sua hegemonia. Narrar uma história nacional é reproduzir e estender
novas formas de dominação colonial.
Em síntese, Said resume seu argumento, inspirado diretamente no pensamento de
Fanon, afirmando que as práticas culturais imperialistas são entrelaçadas e sobrepostas. A
primeira fase da dinâmica da resistência se dá sob a forma nacionalista que deve vivenciar a
transição para a etapa da libertação sob pena de se tornar mimética da dominação colonial e
culminar numa ortodoxia nativista e chauvinista.
Said não poupa os nacionalismos árabes contemporâneoas, das mais diversas críticas e
aponta as distorções no que ele chama de nacionalismo identitário. Esse nacionalismo tem se
dividido em unidades cada vez menores. Hoje os nacionalismos são mecanismos de
integração, baseados na ideia de clã ou com caracterisitcas de seita. A identidade predomina
sobre o conhecimento e o militarismo ocupa privilégios excessivos na economia moral do
mundo árabe.

324
Ibid, p. 314.
325
Said descreve a proibição da língua árabe na Argélia, como língua formal de ensino e administração, durante
a colonização francesa. Após 1962, a FLN o transformou na língua oficial e implantou um novo sistema de
educação árabe islâmica. A FLN promoveu uma política que absorveria toda a sociedade civil Argelina. Em três
décadas, houve um alinhamento da autoridade estatal e partidária a uma identidade recuperada que levou não só
a concentração da maioria das atividades políticas nas mãos de um único partido, como a destruição da vida
democrática. Por consequência formou-se uma direita favorecendo uma identidade Argelina muçulmana baseada
em princípios corânicos, a lei da Sharia. A década de 90 representou o ápice de uma crise política com a
anulação das eleições e uma divisão na sociedade que inviabilizava a consolidação do estado de direito.
206

O sentido da análise de Said ao associar a questão do nacionalismo e suas fragilidades


no combate ao imperialismo tem relação com as contribuições do império às artes da
observação, descrição, formação disciplinar e discurso teórico.
Said defende em tom de manifesto, que devemos aceitar a configuração concreta das
experiências literárias em sobreposição e interdependência, apesar das fronteiras nacionais
instituídas e coercitivas. Nesse sentido a história e a geografia configuram novos mapas,
entidades novas, menos estáveis em novos tipos de conexões.
Com o tempo os nacionalismos tendem a produzir uma retórica excludente e, na
fronteira entre os binarismos, erige-se o perigoso território do não pertencimento, da
afirmação se conforma a negação, o deslocamento, a exclusão de identidade para reforçar o
pertencimento. O nacionalismo pode gerar o exílio e uma privação coletiva. Todo
nacionalismo resistente, quando se torna triunfante, torna-se imperialista.
O debate sobre o nacionalismo em Said, nos remete diretamente à relação estreita
entre cultura e Imperialismo porque uma das formas de manifestação do legado nacionalista
tem relação com a luta anticolonial. Na luta anticolonial existem dois lados, duas nações em
combate, ou seja, erige-se a alteridade da ruptura, do conflito e da batalha.
Said entende que as nações são narrativas. O problema de narrar ou de impedir que se
formem e surjam outras narrativas é fundamental para demarcar a relação entre a cultura e o
imperialismo. O contraponto em ter as narrativas de dominação e de resistência parece ser o
elemento chave para se compreender o processo imperialista. A cultura parece ser uma
poderosa fonte de identidade.
Said se ocupa do conceito de História quando discute as críticas sobre o orientalismo
especialmente a crítica que recai sobre a realização da obra, segundo Aijaz Ahmad a partir de
uma noção de história contínua. Said argumenta que, para um tipo de recepção da sua obra, a
questão da História é agravada no contexto de fundamentalismo islâmico.
Desde os seus primeiros escritos, Said ele explicita o seu conceito chave de
Mundanidade – Worldliness que estabelece as conexões entre o homem e sua inserção
histórica. Para Said, é imperativo resgatar as condições materiais e históricas da agência
humana que produzem estruturas de interpretação. Said defende a busca pela crítica secular326
e a simultânea recusa do ideal de texto puro no sentido pós–moderno. Essa questão nos

326
O secular para Said é quase uma forma de materialismo histórico, pois a crítica deve ser entendida como uma
forma de minimizar os rótulos de identidade e remeter à produção do conhecimento ao contexto no qual ela se
insere.
207

remete ao problema da História na obra de Said, que chamou a atenção dos críticos mais
contundentes da sua obra.
O conflito em torno da conceitualização da História327, especificamente o problema da
história contínua ou da história contingente como um processo dinâmico constitui um dos
pontos polêmicos da obra do autor em questão. As referências a Vico nos oferecem pistas do
que Said entende por história. O princípio do verum ipsum factum ou a capacidade de
conhecer a partir do que já foi realizado pelo homem indica a concepção de história em Vico.
O autor italiano fala de um resgate da expressão sapienza poética, inserida na capacidade do
ser humano para criar conhecimento, em oposição à absorção de forma passiva, reativa e
embotada.
A crença de Vico no conhecimento e na origem deste pela mente humana, significa
que o homem é a medida da percepção das coisas. O conhecimento humanista origina-se do
pensamento primitivo, denominado de poético, se desenvolve e torna-se filosófico. O
paradoxo do seu pensamento ocorre quase como uma entropia, aquilo que o constitui, dada a
sua ilimitada dimensão, pode solapar em função da “indefinida natureza da mente humana”.

Percorrendo esses três lugares lógicos; intuição, percepção e reflexão, foi possível
ao pesquisador das coisas humanas redescobrir os tempos humanos, priemeiro o
fabuloso, deposi o obscuro e, finalmente, o histórico. Este desenvolvimento dialético
do pensamento, experimentado pelo filósofo, aparece em um dos axiomas da
Ciência nova: os homens primeiro sentem sem perceber, depois percebem com
ânimo perturbado e comovido, finalmente refletem com a mente pura.328 (GUIDO,
2004, p.95)

Para Said, a falibilidade da mente humana é predominante em relação ao constante


aperfeiçoamento. O que interessa ao nosso autor em Vico é a falha que Said denomina de

327
 O próprio conceito de História ao ganhar um novo sentido no contexto do século XVIII permite com que haja
uma percepção da dupla direção entre linguagem e mundo. O século XVIII é um marco para a inauguração de
um duplo significado do conceito de história que representa simultaneamente uma sequência unificada de
eventos, constitutiva da marcha da humanidade, assim como seu relato. O caráter plural da história se converte
numa acepção particular e perde a sua identidade de exemplo moral para os homens. O conceito de História
articula muitos sentidos: a soma de todas as histórias possíveis, o seu campo empírico, o relato e o pensamento.
Na língua alemã, a categoria de Geschichte (História) teve uma trajetória teórica diferenciada que visa articular
muitos sentidos entre si, numa convergência entre objeto e sujeito. A partir desse duplo sentido, a escola
histórica alemã, entendendo a História como ciência, cujo objeto seria o passado, elevou a História como uma
ciência da reflexão.A partir do século XVIII, quando a História torna-se um conceito reflexivo, amplia-se a
incomensurabilidade entre a intenção e o resultado, isto confere um sentido enigmático à expressão “fazer a
História” e, consequentemente amplia as possibilidades de um futuro aberto. O alcance filosófico das dimensões
temporais (passado, presente e futuro) foi deslocado por uma temporalização que vincula essas três categorias de
forma menos linear e restrita.  
328
GUIDO, Humberto, Giambattista Vico, a filosofia e a educação da humanidade, Petrópolis: Editora Vozes ,
2004.p.95.
208

trágica e que paradoxalmente constitui o conhecimento histórico.329 Os obstáculos


epistêmicos para a constituição do conhecimento histórico desempenham um papel crucial na
sua conformação historicista.
Existe uma distinção que Vico faz entre o secular e o sagrado e isso parece
fundamental em críticos pelos quais Said se interessa: Auerbach, Gramsci, Raymond
Williams. Para Said, o elemento secular é uma forma de materialismo histórico.
Precisamos minimamente estabelecer um debate sobre a historiografia do nacionalimo
para situar as teorias acerca desse tema na obra do nosso autor. Este é um debate bastante
amplo que não pretendemos esgotar, apenas apontar algumas das correntes teóricas que
acabam por demarcar o posicionamento da produção em questão.
Eric Hobsbawm330 situa o marco inicial da historiografia do nacionalismo após a
Primeira Guerra Mundial. A conjuntura histórica da reorganização do mapa da Europa no
pós- guerra elaborava a centralidade do princípio da nacionalidade. O sentido moderno da
categoria de nação331 não é mais antigo que o século XVIII.
Segundo Hobsbawm, os critérios definidores da nacionalidade seriam elaborados a
partir da língua, da etnia ou em uma combinação de critérios como território comum e os
traços culturais. O livro em questão propõe uma trajetória do conceito de nação. A nação tal
como identificada pelo nacionalismo pode ser reconhecida “a posteriori”. Os conceitos tal
como pensados pelo historiador marxista em questão estão enraizados historicamente, não são
categorias filosóficas desencarnadas.
Hobsbawm se apropria do conceito de nacionalismo, tal como desenvolvido na obra
de Ernest Gellner. O nacionalismo significa “fundamentalmente um princípio que sustenta
que a unidade política e nacional deve ser congruente.”332 A ideia é distinguir o nacionalismo
moderno de outras modalidades de identificação grupal, pois a nação é uma construção
histórica. Com Gellner, Hobsbawm explora o termo de invenção, a nação como artifício e a
engenharia social que se insere na formação das nações.

329
Alguns teóricos que analisam a obra de Vico ressaltam a atualidade do seu realismo. O humanismo de Vico
leva em conta os desígnios divinos, embora reconheça que a criação humana é passível de ser analisada e
conhecida, o que constitui elementos formadores das ciências humanas. Vico e sua metafísica atestam a
existência de Deus, justificada em si mesma, de tão evidente, não precisa ser comprovada embora predomine nos
seus interesses a força providente da mente humana.
330
HOBSBAWM, Eric, Nações e nacionalismos desde 1780, programa, mito e realidade SP: Editora Paz e
Terra, 1990.
331
Para o autor de Nações e Nacionalismos, a nação se corporifica tendo como principal referência o passado. O
que justifica uma nação em relação à outra é o passado, e os historiadores são as pessoas que elaboram a
fundamentação e o rastreamento dos traços que preenchem essa existência. Funciona como uma mitologia
retrospectiva. Os movimentos nacionais do terceitro mundo se baseam nas tradições liberais e revolucionárias
democráticas do século XIX.
332
Ibid, p. 18.
209

Para efeito de análise, o nacionalismo precede a nação. Os nacionalismos elaboram os


estados e a nação. Segundo o autor, as nações são fenômenos duais, construídos do alto,
porém compreendidas pela aceitação das massas. Um princípio artificialmente erigido precisa
ser incorporado e recebido por quem o assimila. Hobsbawm critica Gellner por privilegiar a
modernização feita pelo estado.
A chamada visão de baixo significa a nação vista sob a ótica de quem é objeto da ação
e propaganda nacionalista. O objeto dos historiadores sociais deve abranger as ideias, as
opiniões e os sentimentos do chamado plano subliterário. A identificação nacional deve ser
vista no conjuntode outros laços identitários, além da diacronia pressusposta da identidade
nacional que se desloca no tempo.
A consciência nacional se desenvolve de forma desigual entre diferentes grupos
regionais e essas desigualdades não foram levadas em conta nos estudos sobre o
nacionalismo. Hobsbawn segue um percurso do movemento nacionalista333 que pode ser
dividido em três fases. O autor tem real interesse pela última etapa da consolidação do
movimento nacionalista, quando este alcança a sua fase popular, de assimilação das massas.
Hobsbawm reflete sobre a importância do protonacionalismo para o desenvolvimento
do estado nação e das nacionalidades. Uma base protonacional é desejável para a formação de
movimentos nacionais que aspiram a um estado, mas não é imprescindível para a formação
das lealdades e dos patriotismos nacionais.
Para Hobsbawm, os nacionalismos descendem mais diretamente do projeto de um
estado. O interessante da reflexão em questão é a relação não obrigatória do nacionalismo
com o patriotismo estatal.
Mesmo pensando na relação do nacionalismo com a modernização dos estados no
século XIX, o estado confrontava o nacionalismo como uma força separada divergente do
patriotismo estatal. Caso houvesse integração entre os dois, essa era um instrumento bem
poderoso politicamente, pois esse processo poderia se tornar um mecanismo de exclusão.
Historicamente o custo potencial dessa união promovia uma homogeneidade artificial e a
padronização dos seus habitantes.

333
A trajetória do movimento nacionalista obedece à lógica compreensiva do professor da Universidade Carlos
em Praga, Miroslav Hroch. Este teria publicado, um estudo comparativo pioneiro sobre os movimentos
nacionalistas dos países das Europas Central e Oriental. O autor definia as nações como conformações
antropológicas com nexos fracos entre a ascensão do nacionalismo e a moderna sociedade industrial. O autor em
questão trabaalha com uma tipologia de fases do nacionalismo. A fase A, corresponde ao período do século XIX
e foi cultural, literário e folclórico sem implicações políticas diretas. Na fase B, já existe uma militância
sistemática da ideia nacional e o inicio das campanhas políticas a favor dessa ideia. Hosbsbawm se declara
instigado por estudar a chamada fase C, que representa o momento em que os programas adquirem sustentação
de massa.
210

Hobsbawm (1990) desenvolve a importância da língua e o debate sobre a língua


nacional como critério de coesão. Na experiência contemporânea, a língua e a etnicidade
tornaram-se os critérios essenciais para a existência de uma nação.
No século XIX, o nacionalismo étnico recebeu um reforço considerável uma vez que o
contexto histórico contava com maçiças migrações geográficas e com a centralidade
progressiva do conceito de raça, além do advento da eugenia. Esse período contou com uma
rejeição dos nacionalismos pelos movimentos socialistas, dada a sua militância
internacionalista. Segundo o autor, o socialismo internacionalista e o triunfo do princípio da
nacionalidade teriam apelos excludentes.
Quando Hobsbawm (1990) reflete sobre os nacionalismos do terceiro mundo
processados no período da descolonização, ele conclui que essas são experiências coladas à
referência européia. A atualização histórica dos nacionalismos do século XIX ao século XX,
não interfere intensamente no desenvolvimento histórico como aconteceria no passado.
Otto Bauer334 definia a nação a partir da categoria de caráter nacional, este entendido
como um conjunto de características físicas e mentais que distinguiam uma nação de outra. O
caráter nacional vai se modificando no decorrer da história. A comunhão do caráter nacional é
feita e refeita a cada contingência. A comunhão relativa de traços não pode se constituir como
um caráter inato do perfil político de um grupo. A ciência ao afirmar o caráter mutável dessa
comunhão coletiva enuncia um problema e não o soluciona.
Bauer (2000) identifica o espírito do povo como um elemento misterioso que compõe
as escolas filosóficas do romantismo. O substrato nacional único e homogêneo que permanece
estável no devir histórico é utilizado como fundamento da escola historicista romântica.
Qual seria o ponto de partida do caráter nacional? Bauer responde que sua origem tem
relação com a determinação diferencial da vontade. A nação é vista como uma comunhão de
destino, ou seja, o compartilhamento da experiência.

A diferença do caráter nacional é um fato empírico, que só pode ser negado por uma
ideia doutrinária que vê apenas aquilo que quer ver e não enxerga o que todos os
outros veem. Apesar disso, porém, fizeram-se esforços reiterados para negar a
diferença do caráter nacional e afirmar que o que distingue as nações é apenas sua
língua. Essa opinião é compartilhada por muitos teóricos que se baseiam na doutrina
católica. Foi extraída da filosofia humanista do iluminismo burguês e apropriada por
muitos socialistas, que procuraram usá-la para defender um cosmopolitismo
prolétário que, como veremos, representa a posição inicial e primitiva da classe

334
BAUER, Otto, A Nação, In: BALAKRISHNAN, Gopal, Um mapa da questão nacional, RJ; Editora
Contraponto, 2000.
211

trabalhadora perante as lutas nacionais do mundo burguês.335 (HOBSBAWM, 1990,


p.63)

As forças históricas condicionam as individualidades, e a consciência vem a posteriori,


o que significa que a consciência nacional faz da nacionalidade uma motivação para o
comportamento político. Para Bauer, a expansão e a consolidação da consciência nacional é
consequência histórica da nossa sociedade capitalista.
O sistema estatal se transformou por meio do princípio da nacionalidade. O estado
forma uma nação e uma nação constitui um estado. A ausência de premência histórica explica
a interdependência entre as duas instâncias.
A nação enquanto totalidade tem relação com o aparato estatal, o próprio sistema
estatal teria se transformado com o advento do princípio da nacionalidade. Miroslav Hroch
(2000) define-se com um teórico que procura desenvolver traços históricos efetivos para
classificar e avaliar as experiências de construção nacional, como um processo inserido na
história social mais ampla.
O autor elabora uma periodização que possibilite comparações significativas entre os
movimentos nacionais. Na primeira fase, que ocorreu sob o antigo regime, pode ser rastreado
o início da agitação nacional. Na chamada fase B, demarcada temporalmente no século XIX,
os projetos nacionais foram elaborados de forma mais consistente, e a fase C se refere à
transição do movimento nacional para a chamada fase das massas.
Nesse último tipo, a agitação nacional chegou ao seu modelo constitucional num
contexto capitalista desenvolvido. Hroch estabelece que a periodização não é um fim em si e
que não são explicativas das origens e dos desfechos dos movimentos nacionais.
Para o autor, os novos nacionalismos da atual Europa central e oriental não podem ser
explicados por uma sublimação das forças irracionais que emergem em outros contextos
históricos. O autor considera essa hipótese superficial. A importância do componente
linguístico associado ao componente político encontra um paralelo no passado.
A metáfora do corpo único ainda predomina para definir a identidade nacional. Esta é
vista como um corpo nacional personalizado, baseado na homogeneidade étnica de sua
população, com elementos lingüísticosculturais e portadores de um território histórico com
suas fronteiras tradicionais, que muitas vezes inclui grupos minoritários étnicos.

A identificação com o grupo nacional inclui, como no século XIX, a construção de


uma imagem personalizada da nação. O passado glorioso dessa personalidade passa
a ser vivido como parte da memória individual dos cidadãos, e suas derrotas são
ressentidas como fracassos que ainda os afetam. Um dos resultados dessa

335
Ibid , p. 63.
212

personalização é que as pessoas encaram sua nação – ou seja, elas mesmas – como
um corpo único, num sentido mais do que metafórico. Se algum infortúnio atinge
uma pequena parte da nação, ele se faz sentir por toda ela, e, se algum ramo do
grupo étnico – mesmo que viva muito longe da “nação mãe” – é ameaçado de
assimilação, os membros da nação personalizada podem vivenciar isso como uma
amputação no corpo nacional.336 (HROCH, 2000, p.98)

Para Ernest Gellner, há uma diferença entre um mundo em que o nacionalismo é


disseminado e consolidado e um contexto em que esse fenômeno é raro, não sistematizado e
atípico. Gellner tipifica dois tipos de sociedades: uma agrária, não propensa ao nacionalismo,
tendente a resistir a ele, e uma outra industrializada que dificilmente poderia organizar-se sob
qualquer outro fundamento que não fosse o nacionalismo.
O autor enfatiza a transição de um mapa linguístico cultural complexo onde as
fronteiras linguístico-culturais não exibem muita correlação com as políticas para um mapa a
partir de 1948 onde essa correlação é mais explícita.
Os mecanismos de consolidação dessa congruência são apontados esquematicamente,
a saber: o ajustamento das fronteiras que possibiltam a combinação das populações culturais
semelhantes em uma unidade política, o deslocamento compulsório ou estimulado de
populações consideradas inadequadas para a mítica unidade nacional, a aquisição de uma
cultura com imagens internalizadas que conforma uma espécie de adesão à unidade nacional,
e a sensação de pertencimento a fronteira simbólica mais ampla.
Gellner estabelece suas discordâncias em relação às teses de Miroslav Hroch, no que
tange ao reducionismo da perspectiva marxista e sua compreensão do nacionalismo. Gellner
reafirma seu incômodo com a preservação dos estágios históricos oriundos da perspectiva
marxista e a relação com a progressiva naturalização da conscientização nacional.
Essa visão é questionada dado o olhar crítico de que a história não se resume a um
conflito entre classes, nem a um confronto entre nações. Para o autor o nacionalismo é um
princípio político que sustenta e que deve ter congruência entre a unidade nacional e política.
O nacionalismo é uma teoria de legitimidade política que prescreve que os limites étnicos não
devem se contrapor aos políticos. Existem nações em potencial, algumas se realizam, se
concretizam, outras não, e a consolidação de umas nações implica a frustração de outras.
A definição de nacionalismo em Gellner esta estritamente vinculada com o
pressuposto da existencia do estado. O nacionalismo é a existência de unidades polticamente

336
HROCH, Miroslav, “Do movimento nacional à nação plenamente formada: o processo de construção nacional
na Europa, In: BALAKRISHNAN, Gopal (org.), Um mapa da questão nacional, SP: Editora Contraponto, 2000.
P.98.
213

centralizadas e de elementos políticos morais. Para Gellner a humanidade viveu três etapas no
devir histórico, uma pré-agrária, uma agrária e a industrial. A última etapa prepara as
condições históricas para o desenvolvimento do nacionalismo.

Sendo assim e de acordo com o nosso modelo a era de transição ao industrialismo


estava vocacionada a ser também uma era de nacionalimso, um período de reajuste
turbulento nas fronteiras políticas, culturais, ou ambas, teriam que se modificar para
satisfazer o novo imperativo nacionalista que então, pela primeira vez se tornava
palpável. Como os dirigentes não cedem territórios (e toda mudança de fronteiras
políticas converte alguém a perdedor), como a mudança da propria cultura é uma
experiência dolorosa, e como havia centros de autoridade política que intencionavam
subornar homens e conquistar territótios, havia também culuras rivais e a
consequencia mais imediata, segundo o nosso modelo, e que este período de
transição esta assim mesmo vocacionado a ser um período violento e cheio de
conflitos, previsão que confirmam plenamente os fatos históricos. 337 (GELLNER,
1991, p.60)

Gellner (1991) associa os nacionalismos com o imperialismo, o colonialismo e a


descolonização. O surgimento da sociedade industrial na Europa ocidental teve como
consequencia mais óbvia a conquista do mundo pelas potências e populações colonizadoras
européias.
Para o autor o nacionalismo é consequência de uma nova forma de organização social
baseada em culturas desenvolvidas interiorizadas e dependentes da educação, cada uma
protegida pelos seus respectivos estados. Aproveita algumas das culturas existentes
geralmente transformando-as durante o processo de consolidação da nação que se supõe, deve
se apoiar no estado e numa entidade geográfica.
A ontologia social das nações é reconhecida, embora sem vigor em algumas
circunstâncias. Gellner se refere ao mito da naturalização das nações, obviamente rejeitado
em nome da historicidade de cada estado nacional. A cristalização das novas unidades
nacionais foi possível graças às condições que imperam e que possuem como fonte primordial
as heranças culturais históricas provenientes do mundo pré-nacionalista. O nacionalismo nos
seus próprios termos é frágil.
O processo de evolução necessário de uma sociedade agrária para a industrial e a
reunião de fatores para facilitar a ambiência de desenvolvimento das nações parece frágil na
visão de Gellner. Este autor idealiza a nação como produto do nacionalismo que pressupõe
uma invenção associada como contrafacção e não como criação ou imaginação.
O nacionalismo depende de práticas corriqueiras e desconstruções imaginadas, assim
como ideologias políticas. Gellner enfatiza a industrialização e demonstra os casos dos
337
GELLNER, E. Naciones y nacionalismos, Buenos Aires: Editora Alianza universidad, 1991.p.60. ( tradução)
nossa
214

nacionalismos ausentes, incompletos. A fragilidade da sua concepção do caráter de criação ou


invenção do nacionalismo, a imaginação acaba se tornando uma ficcção em caráter quase
falacioso. Em síntese a tese de Gellner aponta que o nacionalismo é um tipo de patriotismo
que se generaliza sob determinadas condições sociais que prevalecem no mundo moderno.

A verdadeira realidade subjacente ao desenvolvimento histórico me parece ser uma


transição entre dois padrões bem diferentes de relação entre cultura e poder. Cada
um desses padrões está enraizado nas bases econômicas da ordem social, embora
não da maneira especificada no marxismo. No mundo pré-industrial, padrões muito
complexos de cultura e poder se entrelaçaram, mas não convergiram de modo a
formar fronteiras políticos nacionais. No industrialismo, cultura e poder são
padronizados, subscrevem-se um ao outro e podem convergir. As unidades políticas
adquirem fronteiras nitidamente definidas, que são também as fronteiras da cultura.
Cada cultura precisa de sua própria cobertura política, e os Estados legitimam-se,
primordialmente, como protetores da cultura (e fiadores do crescimento
econômico).338 (GELLNER, 2000, pp.152, 153)

Para Jonh Breuilly (2000),339 a política nacionalista não é obra de intelectuais ou de


sentimentos nacionalistas que são promovidos na transição dos intelectuais para as massas
populares. Na sua concepção, o ideário nacionalista surge em sociedades onde grande parte da
população não desenvolve um sentimento intenso de identidade nacional. Mesmo em
sociedades onde o sentimento nacional é amplamente compartilhado, não necessariamente
haverá a elaboração de doutrinas nacionalistas.
Breuilly divide o nacionalismo em quatro distintas abordagens que se definem como:
primordialista, funcionalista e narrativa. A primeira se define pela ideia básica de uma nação
que existe longevamente e possui uma historicidade demarcada temporalmente.
Depois de definir o que é um nacionalismo primordialista, Breuilly sintetiza esse tipo
afirmando que a sua encarnação institucional é bastante frágil e que esse tipo de fenômeno se
distancia da realização histórica moderna em função da ausência de elementos distintos, tais
como: o parlamento, a literatura popular, os tribunais, as escolas e os mercados de trabalho.
Sua conclusão para essa modalidade da tipologia nacionalista é a de que a identidade nacional
é essencialmente moderna.
O nacionalismo funcionalista se define por uma demarcação da necessidade histórica
do nacionalismo. Há um pressuposto primordial de que os grupos precisam de identidade
nacional. O problema dessa modalidade aparece com o ímpeto de atribuir uma historicidade.
É preciso ligar a crise de identidade a alguma mudança especificamente moderna. O problema

338
GELLNER, E., O advento do nacionalismo e sua interpretação: os mitos da nação e da classe, In:
BALAKRISHNAN, Gopal (org.), Um mapa da questão nacional, SP: Editora Contraponto, 2000. pp. 152/153.
339
BREUILLY, Jonh, Abordagens do nacionalismo, IN: BALAKRISHNAN, Gopal (org.), Um mapa da questão
nacional, SP: Editora Contraponto, 2000.
215

do nacionalismo como função abrange uma abordagem mecanicista que, nas diversas
conjunturas históricas parece inviável.
O nacionalismo como um tipo de narrativa pressupõe a existência de um começo,
meio e fim cuja linearidade encaminha o movimento por meio do progresso em que a
culminância é projetada no futuro. A narrativa é a forma mais adequada dos tipos de relatos
históricos em que o elemento nacional fornece as fronteiras, enquanto a principal trama
histórica narra o surgimento, a expansão e o sucesso dos movimentos nacionais.
Breuilly parece se posicionar ao definir o nacionalismo como um fenômeno moderno.
Sua definição precisa levar em conta as doutrinas, as políticas de estado e os sentimentos de
pertencimento. Quanto mais a modernização política se torna solidamente desenvolvida mais
intensamente são constituídas as oposições nacionalistas.

A melhor maneira de compreender a política nacionalista é vê-la como algo que


constitui, a princípio, uma espécie de resposta oposicionista à modernização política.
Para descrever essas respostas, é preciso distinguir entre as diferentes estratégias das
oposições nacionalistas (separação, reforma, unificação) e as diferentes funções das
ideias nacionalistas nessas oposições (coordenação, mobilização e legitmidade). 340
(BREUILLY, 2000, p.180)

Anthony D. Smith (2000)341 trabalha com a atribuição historicista ao nacionalismo. Se,


por um lado, os historiadores promoveram a sua lógica fundacionista e o seu respectivo
mapeamento, por outro, foram seus mais argutos críticos. As críticas se dirigiam à
multiplicidade de consequências perniciosas que íam desde às políticas sociais e culturais até
as experiências históricas definidas pelo totalitarismo.
Para Smith (2000), a existência do nacionalismo depende da vivência intelectual no
país receptor. As elites, sobretudo intelectuais, adaptam as ideias de nação e de regeneração
nacional. O nacionalismo se desenvolve nas circunstâncias do imperialismo e do colonialismo
europeus e sua disseminação é auto-reprodutora. Tanto a nação como o nacionalismo são
constructos artificiais. Esse pressuposto operacionaliza o esforço de desconstrução da nação, e
concretiza a proposta de desvelamento dos recursos manipuladores repletos de ideologias.
Smith sinaliza para o potencial nacionalista e a sua assimilação condicionada pela
ressonância entre as massas. Nesse sentido, Smith resgata e se associa a Eric Hobsbawn342 e o

340
Ibid, p. 180.
341
SMITH, Anthony D., The Nation in History, Historiographical debates about Ethnicity and Nacionalism,
University Press of New England, 2000.
342
HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence, A Invenção das tradições, SP: Paz e Terra, 1984.
216

conjunto de “tradições inventadas”. A questão do artifício e da sobrevivência ou assimilação


em contextos culturais ou sociais distintos aparece privilegiado na obra citada.
A elaboração do nacionalismo como ideologia e movimento pode ser datada do final
do século XVIII. Nesse contexto, reconhecemos a correlação entre a nação e a modernidade.
A nação é vista como um fenômeno moderno e, para que possa se concretizar, requer
condições de desenvolvimento, tais como a burocracia estatal, o capitalimo, o secularismo e a
democracia.
Smith aponta que a fundamentação mítica voltada para o passado e a atribuição de
modernidade ao nacionalismo se encaminham criticamente para o superficialismo histórico. O
equilíbrio entre a continuidade e a descontinuidade histórica problematiza a busca pela
moderna identidade coletiva.
Para Benedict Anderson343, as nações são comunidades políticas imaginadas344 que
fazem sentido para a alma e constituem objeto de desejo e projeções. Inexistem comunidades
verdadeiras, as nações são imaginadas como comunidades na medida em que independem das
hierarquias e desigualdades e são concebidas como estruturas de vinculação horizontal.
O objetivo de seu estudo era “deseuropeizar” o estudo teórico do nacionalismo.
Anderson teria uma abordagem antropológica na compreensão do nacionalismo como um
resultado de um prévio sistema cultural. Seu interesse parte da motivação de que, após a
segunda guerra, todas as revoluções vitoriosas se definiram em termos nacionais. Sua tese é
explorar como ponto de partida a ideia da nacionalidade, a condição nacional ou o
nacionalismo como produto cultural específico. A sua expanção e migração ocorrem em meio
a uma variação de conjunturas políticas e ideológicas.
O autor exemplifica historicamente com a Guerra do Vietnã e com o advento da
República popular chinesa. Anderson refuta as previsões de que a sociedade contemporânea

343
Benedict Anderson é um especialista em política e história da Indonésia e do sudoeste asiático, estudou na
universidade de Cambridge e se tornou professor emérito da Universidade de Cornell. Autor do clássico;
Comunidades Imaginadas, reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. Nessa obra desenvolve o
conceito de comunidades imaginadas onde fundamenta a análise sobre os nacionalismos contemporâneos. Sua
afirmação de que a condição de nação é o valor de maior legitimidade universal na história contemporânea. A
nação é uma comunidade imaginada que pode ser limitada e soberana e tem a sua essência marcada por uma
conjuntura cultural. Inspirado na obra de Walter Benjamin intenciona demonstrar como os discursos da
nacionalidade são caracterizados pela noção de simultaneidade, que inaugura uma noção de tempo vazio e
homogêneo.
344
Said faz referências freqüentes à obra de Anderson e apresenta criticas a sua periodização linear e
eurocêntrica, embora faça referências a ideia de comunidade imaginária para definir o sentido de identidade a
partir de determinados traços que se enquadram nessa denominação. Em síntese, Said adere aos mecanimos
formativos da comunidade imaginária, mas rejeita com veemência o tipo de periodização linear que Anderson
desenvolve. As criticas a teoria de Anderson são equivalentes as refutações aos teóricos do nacionalismo já
citados, tais como Eric Hobsbawm e Ernest Gellner.
217

estaria abdicando da experiência nacional. A condição nacional é um valor irrefutável e


legitimamente universal, ainda é visto como um fator identitário significativo.
Anderson se opõe a autores consagrados, como o sociólogo Ernest Gellner, que
vinculou o nacionalismo ao industrialismo europeu ocidental. Influenciado por Walter
Benjamin, Anderson mostra como os discursos do nacionalismo são caracterizados pela noção
de simultaneidade que inaugura uma ideia de tempo vazio e homogêneo. As divisões
cronológicas foram abolidas e em substituição se estabeleciam regimes de temporalidade que
projetavam para a esfera do mito o passado e os momentos de origem fundacional. O senso de
comunidade naturaliza a história nacional e o próprio tempo.
No primeiro capítulo, “Raízes Culturais”, Anderson recorre a Erich Auerbach e Walter
Benjamin para desenvolver a ideia de uma temporalidade alheia ao princípio da
simultaneidade. O nosso tempo era essencialmente messiânico, o que ele define como uma
simultaneidade de passado e futuro, o tempo da espera com um presente instantâneo. A
simultaneidade demorou a ser gestada, e só foi possível com o advento das ciências seculares.
A ideia do tempo vazio e homogêneo oferece uma perfeita analogia para o conceito de
nação, entendida como uma comunidade sólida que atravessa a história no sentido ascendente
e descendente.
Para o autor, a nação nasce da convergência do capitalismo, da tecnologia da imprensa
e da diversidade da língua humana. Se a nação é intrinsicamente limitada, ela é, ao mesmo
tempo, soberana, e conformadora de uma comunhão entre seus membros. A nação é uma
comunidade política imaginada, quase uma questão de parentesco ou religião. Em Anderson,
opera-se com a ideia de que não existem comunidades verdadeiras, o que se distinguira era o
“estilo”, como eram imaginadas e os recusos de que lançavam mão para sua existência.

Basicamente sustentei que a própria possibilidade de imaginar a nação só surgiu


historicamente quando, e onde, três concepções culturais fundamentais, todas muito
antigas, perderam o domínio axiomático sobre a mentalidade dos homens. A
primeira delas é a ideia de que uma determinada língua escrita oferecia um acesso
privilegiado à verdade ontológica, justamente por ser uma parte indissociável dessa
verdade. Foi essa ideia que gerou as grandes irmandades transcontinentais da
cristandade, do Ummah islâmico e de outros. A segunda é a crença de que a
sociedade se organizava naturalmente em torno e abaixo de centros elevados –
monarcas à parte dos outros seres humanos, que governavam por uma espécie de
graça cosmológica (divina). Os deveres de lealdade eram necessariamente
hierárquicos e centrípetos porque o governante, tal como a escrita sagrada, constituía
um elo de acesso ao ser e era intrínseco a ele. A terceira é uma concepção da
temporalidade em que a cosmologia e a história se confundem, e as origens do
mundo e dos homens são essencialmente as mesmas. 345 (ANDERSON, 2008, p.69)

345
ANDERSON, Benedict, Comunidades Imaginadas, Reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo, SP;
Editora Companhia das Letras, 2008. p. 69.
218

O mecanismo catalizador de uma comunhão que representa simultaneamente a


fraternidade, o poder e o tempo estão sintetizados no chamado capitalismo editorial. A
comunidade nesse contexto simboliza uma vinculação do tipo horizontal–secular e
transtemporal.
Anderson afirma que o que tornou possível as novas comunidades, foi a vivência
interativa entre um modo de produção, as relações de produção características do capitalismo,
uma tecnologia de comunicação (a imprensa) e o desenvolvimento da diversidade lingüística.
A tríade fatalidade-tecnologia e capitalismo provocou, de forma definidora, a elaboração das
comunidades imaginadas. Estas preparariam cenário propenso à formação das nações
modernas.
Anderson estabelece a Primeira Guerra mundial como marco histórico para a
elaboração de novas nações que se baseavam em uma ideologia nacionalista, difundida nos
meios de comunicação de massa, no sistema educacional e nas regulamentações
administrativas.
O imperialismo europeu provocou a arbitrariedade das fronteiras, o fenômeno da
existência de intelectuais bilíngües, em meio a populações monoglotas. Anderson denomina
de última onda dos nacionalismos, a emergência de novos estados nacionais no processo de
descolonização da Ásia e África, vista aqui como reação ao imperialismo mundial.
No argumento do capítulo “A última onda”, aparece com toda a força o pressuposto do
nacionalismo derivativo, na medida em que o autor traça o perfil das lideranças dos
movimentos nacionalistas no âmbito da descolonização.
Anderson se remete à ampliação do estado colonial e à formação de lideranças nativas
bilíngues, inseridas nas repartições públicas e educadas nas escolas do capitalismo colonial.
Essas lideranças formadas nas salas de aulas dos modelos caóticos e turbulentos da história
americana e européia se distinguiam e se dissociavam da burguesia local.
As aulas de nacionalismo crioulo eram copiadas, adaptadas e aprimoradas. A nação
imaginada sofre uma adaptação, uma transformação social com o advento da consciência
nacional. A superação da armadilha em torno do projeto do nacionalismo derivativo infere a
reflexão sobre o caráter de invenção do nacionalismo e da revolução. Desde o final do século
XVIII, o nacionalismo passou por um processo de adaptação que variava conforme as épocas,
os modelos políticos, as economias e as estruturas sociais.
Nesse sentido, as comunidades imaginadas se expandiriam como um fenômeno
universal com as suas diversas nuances culturais. Anderson exemplifica com a história do
219

Vietnã e do Cambodja, contextos nos quais, a explosão da revolução e do projeto nacional


deveriam ser imprevistos.
Anderson não usa a equação; condições miseráveis igual a processo revolucionário. As
condições e causalidades do movimento nacional de emancipação das ex-colônias podem ser
atribuídas às forças externas. A herança do regime deposto, deixa traços de um modelo mais
conformador da situação pós-colonial.346
No capítulo “Censo, mapa e museus” o autor escreve uma justificativa retificando a
sua colocação sobre o nacionalismo nas ex-colônias, nas edições anteriores do livro
Comunidades imaginadas. Anderson, nas edições anteriores do livro347 identificava que as
políticas de construção nacional das ex-colônias eram miméticas e inspiradas nos estados
europeus. O autor assume posteriormente que a genealogia desses nacionalismos deveria ser
procurada nos estados coloniais e nas respectivas trajetórias históricas.
Anderson tece uma analogia entre a memória pessoal e a memória das nações, ao
afirmar que todas as mudanças profundas na consciência trazem amnésias que promovem as
narrativas históricas, situadas no tempo vazio e homogêneo. A consciência de uma
temporalidade linear, secular e serial gera a necessidade de uma narrativa conformadora da
identidade.
Se a língua e a cultura não são demarcadores dos princípios nacionalistas, pelo menos
funcionam como facilitadores da integração. Os ideários nacionalistas de ordem étnica,
fundamentados em questões de raça, etnia, parentesco, língua ou cultura comum, estiveram
presentes no período contemporâneo.

346
Benedict Anderson escreve uma jusitificativa no início do capítulo: “Censo, mapa , museu”, retificando a sua
colocação na edição em questão do livro . ANDERSON, Benedict, Comunidades Imaginadas, Reflexões sobre a
origem e difusão do nacionalismo, SP; Editora Companhia das Letras, 2008. P. 226 .
347
Devemos recorrer ao pósfacio do livro Comunidades imaginadas, para situar Benedict Anderson no conjunto
de debates sobre os nacionalimos. Ele mesmo fornece indicações do sentido da escrita do seu livro. O autor
afirma que um dos objetivos da escrita do livro se situa no reforço às teses de Tom Nairn, um marxista
revisionista que procurava criticar as interpretações marxistas clássicas sobre o nacionalismo, por meio de um
estudo sobre o Reino Unido, aqui visto por meio de um diagnósitco do seu processo de decadência enquanto
império. Anderson afirmava que seu objetivo era reforçar, ainda que de forma crítica, as teses de Nairn. Outro
objetivo presente na escrita é apresentado de forma explícita no pósfácio, teria como princípio a deseuropeização
do estudo teórico sobre o nacionalismo. Apesar da excelência dos trabalhos interlocutores, a obra de Gellner,
Hobsbawn e Smith, pareciam demasiadamente eurocêntricas para estabelecer uma interlocução. A proposta de
Anderson tinha como propósito estabelecer uma anáise sobre as sociedades, culturas e línguas da Indonésia,
Tailândia/ Sião. Anderson apresenta o dilema da oscilação, em forma de armadilha, entre a localização afinada
com o romantismo do século XIX, e a condenação de Partha Chatterjee quanto aos nacionalismos anticoloniais
serem vistos como derivativos.
220

Homi Bhabha (2001)348 se refere à nação como um sistema de significação cultural,


como a representação da vida social, mais do que a disciplina da política social. O autor
percebe a emergência da nacionalidade política como uma forma de narrativa com estratégias
textuais, deslocamentos metafóricos e estratégias figurativas.
A perspectiva ambivalente da nação como narrativa vai estabelecer as suas fronteiras
culturais, reconhecendo os sentidos que devem ser permeados pelo processo cultural. Bhabha
propõe a construção cultural do nacional como uma forma de filiação textual e social.

I am attempting to write of the western nation as an obscure and ubiquitous form of


living the locality of culture. This locality is more around temporality than about
historicity: a form of living that is more complex than “community”, more symbolic
than “society”, more conotative than “country”; less patriotic than patrie; more
rhetorical than the reason of state, more mythologycal than ideology; less
homogeneous than hegemony; less centred than citizen, more collective than “the
subject”; more psychic than civility; more hybrid in the articulation of cultural
differences and identifications – gender, race or class – than can be represented in
any hierarquical or binary structuring of social antagonism. 349 (BHABHA,
2001,p.192)

O debate sobre o nacionalismo como um fenômeno derivativo leva em conta a relação


entre imperialismo e dominação colonial. Para Gellner, a mesma modernidade “esclarecida”
que criava o nacionalismo serviu como base da dominação européia sobre o resto do planeta
nos 150 anos que se seguiram à Revolução francesa. O nacionalismo teria que ser entendido
como parte integrante dessa dominação. Fora da Europa, o nacionalismo era necessariamente
um discurso derivativo, bloqueando o caminho do autêntico desenvolvimento autônomo.
O debate sobre o nacionalismo como um fenômeno derivativo leva em conta a questão
do imperialismo e da dominação colonial. Partha Chaterjee,350 em artigo de uma coletânea
sobre a obra de Edward W. Said, se posiciona criticamente à abordagem da temática do
nacionalismo, na obra do autor Palestino. Chatterjee351, como estudioso da construção do

348
BHABHA, Homi, DissemiNation: Time and narrative, and tha margins of the modern nation In: Nation and
narration, NY: Routledge, 2001.
349
BHABHA, Homi, DissemiNation: Time and narrative, and tha margins of the modern nation In: Nation and
narration, NY: Routledge, 2001. P.192. “Estou buscando escrever a nação ocidental, como uma obscura e
ubíqua forma de viver o local da cultura. Esse local é mais aproximadamente temporário, do que
aproximadamente historicista; uma forma de viver que é mais complexa do que uma ‘comunidade’, mais
simbólica do que ‘sociedade’, mais conotativa do que ‘país’, menos patriótica do que pátria; mais retórica do que
razão de Estado, mais mitológica do que ideologia; menos homogênea do que hegemonia; menos centrada do
que cidadania, mais coletiva do que ‘o sujeito’; mais física do que civilidade; mais híbrida na articulação de
diferenças culturais e identificações – gênero, raça ou classe – do que pode ser representada em qualquer
estrutura de antagonismo social hierárquica ou binária.”(tradução nossa)
350
CHATERJEE, Partha, Their own words? An Essay for Edward W. Said, In: SPRINKER, Michael,
Edward W. Said, a critical Reader, Massachusetts: Blackwell Publishers, 1992.
351
Partha Chatterjee nasceu em 1947, na província de Bengala Ocidental, próximo à cidade de Calcutá. Estudou
na Universidade de Calcutá obtendo a licenciatura em Ciências Políticas em 1967. Esse período se constituiu
221

discurso político no nacionalismo indiano, e resistente a ideia do nacionalismo derivativo352


percebe com desconfiança à referência permanente ao nacionalismo na modalidade européia.
Seu dilema aparece no reconhecimento de que a política contemporânea das nações
asiáticas e africanas tem inspirado uma visão pessimista que entende que a luta anticolonial
representou uma autêntica estratégia manipuladora das elites nacionalistas. Sua reflexão
central em torno da inexistência de uma sociedade civil para os indianos emerge com a
consolidação de um conceito mais apropriado, como o de sociedade política para
compreender o verdadeiro funcionamento da Índia Contemporânea.
O segundo pressuposto mais controvertido e mais criticado consistia na defesa da
categoria de “comunidade”, como a base para o funcionamento da democracia indiana.
Alguns teóricos procuravam apontar a problemática dessa tese na medida em que essa análise
poderia enveredar na defesa de uma comunidade primordial, pensada num campo de reflexão
mais nostálgico, purista ou idealizado.
Outro problema que Chaterjee estabelece, em sua reflexão, tem relação com o conceito
de modernidade, para o autor a modernidade havia sido entrelaçada com a história do
colonialismo, cujo contexto desacredita o domínio universal da livre expressão, desvinculado
das distinções de raça ou nacionalidade.
A cumplicidade entre o conhecimento moderno e os regimes contemporâneos de poder
nos remete ao ideário de uma modernidade universal, que inibe a ideia das ex-colônias como

essencial na História Intelectual Indiana. A geração intelectual contemporânea à formação de Chatterjee havia
sido formada na ambiência do movimento nacionalista, e antibritânico dos anos 30 e 40. Conviviam duas
tendências do movimento nacionalista: o nacionalismo liberal, ligado ao partido do Congresso que estava no
poder desde 1947, e a de um marxismo vinculado à URSS, que entraria em crise nos anos 60. O movimento
camponês indiano amadureceu um projeto de resistência em função da decepção com a ausência de
redestribuição de terras após a independência da Índia. Essse movimento deu origem ao movimento Naxalita,
com conteúdo fortemente maoísta, que procurava juntar estudantes e camponeses numa perspectiva
revolucionária. A Universidade de Calcutá onde Chatterjee terminou sua licenciatura configurou-se um dos
principais cenários universitários desse movimento. Chaterjee doutorou-se nos EUA na Universidade de
Rochester e retornou à Índia para lecionar na Universidade de Amritsar, e posteriormente no centro de estudos
de Ciências Sociais de Calcutá. Esse centro abrangia duas tendências intelectuais, uma de fundamentação
marxista e outra marcada pela tendência seguida pelo movimento Naxalita. No interior do segundo grupo
emergiu a figura chave dos estudos subalternos, Ranajit Guha que formou um grupo nos anos 70, integrado por
estudiosos que procuravam revisar a historiografia Indiana da época, entre eles; Dipesh Chakrabarthy, Shahid
Amin, Gautma Badra e Partha Chatterjee, com formação mais avançada em teoria e filosofia política. Chatterjee
ganhou destaque na historiografia indiana com dois artigos na coletânea Subaltern Studies. Esse grupo teve
grande repercussão na historiografia do nacionalismo com a publicação do livro Nationalist Thought and the
colonial world, livro que desempenhou papel central nos debates sobre o nacionalismo.
352
O debate sobre o nacionalismo como um fenômeno derivativo leva em conta a relação entre Imperialismo e
dominação colonial. Para Ernest Gellner a mesma modernidade “esclarecida” que criava o nacionalismo, serviu
como base da dominação europeia. Partha Chaterjee discorda que a origem esteja na Europa, e que os
movimentos nacionalistas pós-coloniais sejam experiências miméticas e, portanto, menos autênticas. Seu
trabalho alerta para os perigos de transpor os resultados de um desenvolvimento histórico específico, da Europa
ocidental, a situações de outros países que não necessariamente compartilham as mesmas pré-condições
históricas.
222

produtoras de modernidade. As ex-colônias são vistas, numa abordagem eurocêntrica, como


consumidoras secundárias de um legado exclusivamente europeu.

Certamente vimos muitas tentativas desse tipo nos campos da literatura e das artes,
de construir uma modernidade que seja diferente. De fato, poderíamos dizer que esse
é precisamente o projeto cultural do nacionalismo: produzir uma modernidade
distintivamente nacional. Obviamente, não há uma regra geral que determine quais
seriam os elementos da modernidade e quais os emblemas da diferença. Houve
muitos experimentos em muitos campos; eles continuam ainda hoje. Meu argumento
era o de que esses esforços não se restringiram apenas aos domínios supostamente
culturais da religião, literatura e artes. A tentativa de encontrar uma modernidade
diferente ocorreu mesmo no campo presumivelmente universal da ciência. 353
(CHATERJEE, 2004, pp.61/62)

A afirmação do protagonismo histórico e da produção de uma modernidade própria se


encaminha no esforço do descentramento de origem dessa experiência. O passado imaginado,
como fundamento do contemporâneo, aponta para uma idealização de um tempo de
autonomia. Chaterjee se refere à modernidade dos colonizados, no qual o processo histórico
que havia ensinado o valor da modernidade também havia tornado os colonizados vítimas do
processo de dominação européia.
A atribuição da nação moderna como uma entidade universal e particular relaciona-se
com a ideia de povo como lócus original da soberania do estado moderno e com a ideia de
que todos os seres humanos são portadores de direitos. O estado-nação tornou-se a encarnação
particular do estado moderno. Era no interior de uma forma específica de estado-nação,
soberano e homogêneo, que se concretizava a realização dos ideais universais da cidadania
moderna. No processo histórico dos estados coloniais, o percurso do estado-nação foi
encurtado.
As ideias de cidadania republicana estavam presentes nas estratégias de liberação
nacional. A análise crítica do autor indiano permeia a visão de que algumas representaçãoes e
categorias utilizadas nos estados pós-coloniais, seguiam de forma correspondente os critérios
classificatórios utilizados pelos regimes governamentais.
Chaterjee concorda com Said que uma das maneiras de evitar o paradoxo entre a teoria
crítica e a práxis construtiva é questionar e problematizar a fácil identificação, reclamada por
cada estado nacionalista. Por outro lado, uma postura identificada pelo ceticismo absoluto
envolve riscos maiores do que os meramente intelectuais.

353
CHATTERJEE, Partha, Colonialismo, Modernidade e Política, Salvador: EDUFBA, 2004. pp. 61 e 62.
223

O nosso autor indiano considera o Said nacionalista, excessivamente otimista e,


embora faça uso das suas teorias como inspiração para o caso indiano, aproveita
distanciadamente a crítica relativista ao nacionalismo essencialista.
Devemos introduzir uma agenda para reescrever a história do nacionalismo com
diferentes atores e uma distinta cronologia. Chatterjee defende que as formas culturalmente
criativas do nacionalismo anticolonial não precisam obedecer às modalidades de nação
produzidas na Europa e na América. A tática mais realista é não subestimar a capacidade do
nacionalismo de se apropriar, com vários graus de risco, das vozes sociais dissonantes.
A relação entre a libertação e a consciência nacional encaminha a referência mais
clássica da noção de comunidade imaginada. Reiteramos que essa problemática da
conjugação da libertação nacional com a gestação dos nacionalismos nos países
descolonizados é a grande temática mobilizadora do nosso autor, o que de fato constitui o
nosso objeto de tese. O convívio teórico problemático entre a perspectiva pós-colonial e a
busca fundamentada pelo ethos nacional palestino promove um paradoxo.
A inversão da perspectiva nacionalista centrada na Europa aproxima nosso autor da
historiografia dos chamados Estudos Subalternos354. Esse conjunto de teóricos que propõe o
esvaziamento do chamado nacionalismo derivativo tem estreita afinidade com a historiografia
Saidiana.
Em geral esssa historiografia se debruçou sobre a produção teórica acerca da Índia.
Produziu-se um conjunto de questionamentos acerca da abordagem do nacionalismo indiano,
como se este estivesse vivendo um processo de aprendizado. Uma determinada concepção de
evolução histórica que deveria repensar os esquemas clássicos de nacionalismo pautados na
experiência européia.
Pensar a nação equivale a refletir sobre as culturas, estados, histórias e experiências,
tradições, povos e destinos. A motivação para analisar a nação com um artifício esvazia o
conceito do seu aspecto homogêneo e natualizado. Com as experiências pós-coloniais iniciou-
se um processo de desvelamento da artificialidade da cosntrução dos nacionalismos e seus

354
Procuramos identificar em nota de pé de página a origem desse grupo intelectual indissociado do intectual
Partha Chaterjee. Procuramos definir suas características teóricas. Os estudos subalternos se apropriam da teoria
marxista, especialmente da obra do filósofo A. Gramsci e sua reflexão sobre as formas de dominação que
buscavam pensar as relações entre o neocolonialismo e a contemporaneidade. As primeiras obras, representativas
dessa corrente, fundada formalmente em 1982, apareceram no ano de 1983, são elas; Aspectos elementares da
insurreição camponesa na Índia, de Ranajit Guha e quatro livros em forma de coletâneas que sintetizavam o
debate dessa perspectiva denominado Subaltern studies publicados pela Oxford University Press. Guha localiza
a origem dessa perspectiva na decepção dos caminhos políticos vividos pela Índia após a descolonização.
Quando este autor critica a historiografia nacionalista ou colonialista é no sentido de apontar as fragilidades de
uma interpretação que insiste no sentido linear da história, buscando suprimir a historicidade da resistência
subalterna.
224

respectisvos usos políticos. A múltipla referência problematiza as identidades como produtos


de uma única experiência histórica.
Said parece se colocar no movimento entre a definição do nacional e a sua suspensão,
quase como no contraponto que ele tanto exalta na metáfora teórica associada à música.
O autor se reequilibra entre às definições temporárias e a transgressão das mesmas no
dilema teórico pós-colonial. O entrelugar não é somente geográfico existencial, mas possui
um caráter teórico e epistemológico. A recorrente recriação das demarcações de limites
definidores do nacional produz um movimento oscilante e desconfiado.
O problema da perspectiva enunciadora e da origem de quem fala como se o ponto de
partida do discurso fosse definidor da legitimidade do discurso nos remete para árdua tarefa
de inverter as polaridades de importância política e econômica.
Recorremos a Kwame Appiah (2010)355 para o desenvolvimento do risco da inversão
da importância das identidades raciais em perspectiva nativista.356A perspectiva crítica sobre
as filiações culturais que podem culminar em identidades unívocas, nos encaminha para um
debate sobre a nação. Appiah retorna cronologicamente para os movimentos de
descolonização dos anos 60, na África, para refletir sobre a paridade da nação com a literatura
na produção intelectual dos países descolonizados.
A língua e a literatura são recursos muito utilizados para a articulação das identidades
nacionais. Como a formação da maioria dos escritores africanos, parte de uma educação
ocidental, há uma relação ambígua com o seu mundo de origem e há sempre a perspectiva de
um deslocamento cultural na escrita. A maioria dos literatos escreve na língua colonial.
Mesmo que o registro escrito se dê em inglês ou Francês, o simples fato desses escritores
africanos escreverem sobre si mesmos tem uma profunda significação politica.
A comunidade nacional pode se consntituir a partir dessa vivência e compartilhamento
intelectual. Essa assertiva demarca a relativização de uma particularidade cultural que se
orienta por registros europeus ocidentais. O particularismo afrocêntrico é dissimuladamente
universalista. O nativismo organiza suas particularidades culturais, mesmo que
involuntariamente, vinculado à modernidade ocidental. Suas demandas nativistas são
emolduradas no esquadrinhamento ocidental.

355
APPIAH, Kwame Anthony, Na casa de meu pai, A África na filosofia da cultura, RJ: Editora Contraponto,
2010.
356
O filósofo Kwame A. Appiah, nascido em Gana, professor da universidade de Harvard produziu várias
reflexões que versavam sobre o esforço de revisitar criticamente a pespectiva essencialista de um contraponto ao
racismo. A armadilha de se enveredar por uma afimação mítica e primordialista da África, fez o autor pensar as
possibilidades e riscos da elaboração de uma única identidade africana no fim do século XX.
225

Penso que quando virmos o contexto mais amplo com maior clareza, ficaremos
menos propensos às angustias do nativismo, menos inclinados a ser seduzidos pela
retórica da pureza ancestral. Há mais de um quarto de século, Frantz Fanon expôs o
artificialismo dos intelectuais nativistas, cujo populismo falacioso só faz afastá-los
do Volk [povo] que eles veneram. 357 (APPIAH, 2010, p.95)

O problema da mediação intelectual em relação ao elemento popular e o seu inevitável


alheamento ou superficialismo é denunciado no contexto exposto. Os intelectuais demonstram
um alheamento por portar uma atitude fetichista em relação à cultura o que acaba por
distanciá-los do povo em seu momento de luta. Fanon é citado por Appiah, para demonstrar o
falseamento das estruturas monolíticas, quando referidas à ideia de negritude ou a concepção
de identidade africana. Appiah resgata a relação entre as tradições inventadas, os mitos
nacionais e a dinâmica política do estado moderno.
A demonstração da valorização da erudição africana ou asiática se traduz na
legitimação do ideário universal europeu. Appiah fala de uma contaminação entre as culturas,
que não permite a distinção purista de uma identidade. Appiah lê o pós-colonialismo à partir
de uma leitura pessimista, fruto de uma escrita “pós-realista” e “pós-nativista”, elaborando
uma solidariedade mais transnacional do que nacional.

A pós-colonialidade está depois de tudo isto: e o seu “pós”, como o de pós-


modernismo, é também um “pós” que desafia as anteriores narrativas de
legitimação. E desafia-as em nome das vítimas sofredoras de “mais de trinta
repúblicas africanas.” Se há uma lição a extrair da forma alargada desta circulação
de culturas, é certamente, a de que já estamos todos contaminados uns pelos outros,
que já não existe uma cultura africana autêntica completamente autóctone à espera
de ser resgatada pelos nossos artistas (da mesma forma que, obviamente, não existe
uma cultura americana sem raízes africanas).358 (APPIAH, 2010, pp.17/18)

A ameaça originada no nativismo essencialista associada ao rastreamento da


autenticidade de um grupo constitui uma armadilha teórica e política que o pós-colonialismo
se esforça por driblar constantemente.
Retomamos a reflexão de Partha Chaterjee (2008)359 para a compreensão da categoria
de estado-nação como construção teórica e artifício político privilegiador da noção de
modernidade européia com a culminância de um telos civilizatório.
Chaterjee ressalta que a formação dos estados nacionais nas sociedades pós-coloniais
se construiu de maneira muito diferente das metrópoles. No Ocidente, o nacionalismo se

357
APPIAH, Kwame Anthony, Na casa de meu pai, A África na filosofia da cultura, RJ: Editora Contraponto,
2010. Página 95.
358
APPIAH, K A., Será o pós em pós- modernismo, o pós em pós- colonial? pp.. 17/18.
359
CHATERJEE, P. La Nación en Tiempo Heterogéneo y otros estudios subalternos, Buenos Aires: Siglo XXI
Editores, 2008.
226

baseou em categorais universais, enquanto na periferia esse ideário nacionalista se construiu


por meio da tradição, da particularidade e do passado histórico.
Como produto histórico do colonialismo, o estado construído no momento pós-
emancipação inspirou-se em categorias universais, tais como; cidadania, sociedade civil e
democracia, estas inexistentes nas sociedades colonizadas. As referências não eram
autóctones, o que acabou por promover um divórcio entre estado e sociedade que se notaria
até a contemporaneidade. O autor sustenta que as sociedades pós-colonias extrapolam tais
nacionalismos, em função da dissociação real entre um discurso e a formação de um estado
derivado que se formou seguindo o modelo europeu, com traços políticos de sociedades
destoantes dos parâmetros clássico da Europa.
Chaterjee estabelece um contraponto à tese de Benedict Anderson360 sobre o tempo
vazio e homogêneo como parte da modernidade. Este autor sustenta que essa descrição seria
idealizada, uma utopia, cuja razão moderna seria constitutiva da homogeneidade histórica, o
que parece uma expressão paradoxal.
Chaterjee rebate essa ideia, afirmando que o social preenche esse “significante vazio”
com conteúdo heterogêneo. O tempo histórico da nação é sempre heterogêneo, porque guarda
como principal referencial as distintas experiências dos variados grupos sociais.
Para Chaterjee, Anderson aparece como um teórico com ideias interessantes, mas com
uma perspectiva explicitamente essencialista. Estudar as experiências subalternas pressupõe
“uma política de heterogeneidade” que deve priorizar as estratégias contextuais, históricas e
portanto, provisórias, tendo em vista os fragmentos das contingências nacionais.
Reconhecemos um contraponto entre a historicidade do fragmento nacional diante da intenção
universalista ou idealista do discurso ocidental sobre os nacionalismos.
Chatterjee problematiza a desatualização da visão ocidental acerca da relação entre
estado e sociedade civil. Essa relação tem se modificado e isto está impresso no fato de que os
estados nacionais têm deixado de pressionar os cidadãos como se fossem um todo
homogêneo. Estes têm sido vistos a partir do pressuposto de pequenos conjuntos de
interesses.
Os movimentos pós-coloniais são vistos sob a perspetiva de uma contradição essencial
entre a “narrativa do capitalismo” e as “narrativas das comunidades”. Esta segunda narrativa

360
Para Benedict Anderson, a formação das nações tem origem no desenvolvimento da imprensa como um
dispositivo-chave para a elaboração das comunidades imaginadas. A imprensa e os romances promoveram o
compartilhamento de um espaço e um tempo em comum e esta teria sido a condição básica para o processo de
formação das nações. As comunidades imaginadas estariam conformadas no chamado tempo homogêneo.
227

figura como uma autêntica alternativa ao estado. O estado-nação domestica a “comunidade”


no esforço de resgatar solidariedades primordiais rastreadas no seu passado mítico.

Es decir, la comunidad surge a razón de todo aquello que fue excluido de los
paradigmas de los Estados nacionales contemporáneos. Los excluídos forman
comunidades, o se involucran com ellas, a partir de la constatación de un poder que
los margina. Sólo hay comunidad en la medida em que hay otro que posee um poder
que la excluye. Dicho de outra manera: la formación de los Estados nacionales
contemporáneos ha causado una fragmentación em la sociedad, y todos los grupos
excluidos ( a veces llamados “minorias”, aunque en muchos casos son mayorías) y
todas las maneras distintas de “imaginar la nación” son los fragmentos que resultan
de la formación del Estado-nación moderno.361 (CHATTERJEE, 2008, p.15)

Chatterjee associa sua reflexão sobre o nacionalismo a uma análise crítica sobre a
democracia contemporânea que ele considera como uma “política dos governados”. O autor
estabelece uma oposição entre a ideia de nacionalidade cívica, baseada nas liberdades
individuais e na igualdade dos direitos a demandas particulares, fundamentadas na identidade
cultural.
O autor recupera criticamente o ideal de nacionalismo cívico tal como caracterizado
em Anderson362, e renomea, seguindo o viés marxista, o “tempo vazio e homogêneo” como
um tempo do capitalismo. A dissonância em relação a esse “tempo do capitalismo” é vista
como um resquício de um tempo primitivo que pode ser denominado de tempo pré-moderno.
A culminância do capitalismo como telos necessário e previsto na modernidade
enquadra todos os registros de resistência no campo do arcaico e atrasado. O interlocutor
privilegiado de Chatterje363, é o autor Benedict Anderson, não só no livro Comunidades
Imaginadas, como na reflexão presente na obra The spectre of comparisons, onde
reconhecemos uma distinção entre nacionalismo e políticas de etnicidade. São solidariedades

361
CHATTERJEE, Partha, La Nación en Tiempo Heterogéneo y otros estudios subalternos, Buenos Aires:
Siglo XXI Editores, 2008. P. 15 “É preciso dizer que a comunidade surge a partir do que foi excluído dos
paradigmas originados nos estados nacionais contemporâneos. Os excluídos formam comunidades, ou se
misturam com elas, a partir da constatação que os marginaliza. Somente existe uma comunidade na medida em
que, há outro que possui um poder que os exclua. Dito de outra maneira: a formação dos estados nacionais
contemporâneos causou uma fragmentação na sociedade e em todos os grupos excluídos (as vezes chamaos de
minorias) ainda que em muitos casos seja maioria) e todas as maneiras distintas de imaginar a nação são os
fragmentos que resultam na formação do estado-nação moderno.” (tradução nossa)
362
Benedict Anderson se basea na formulação teórica de Walter Benjamin e a utiliza para demonstrar as
possibilidades materiais das formas anônimas de sociabilidade, condicionadas pela sociabilidade do capital
cultural por meio do advento da imprensa, pela elaboração ficcional dos romances. As nações teriam sido
imaginadas na sua existência. Estas comunidades imaginadas adquiriram uma forma concreta que poderiam ser
ilustradas através do chamado “capitalismo impresso”.
363
Chatterjee dedica vários capítulos do seu livro La nacion em tempo heterogêneo y otros estúdios subalternos,
ao debate sobre a tese do nacionalismo tal como desenvolvida por Benedict Anderson. O capítulo 4,
denominado, “La utopia de Anderson” retoma o debate sobre as distinções entre o nacionalismo e as políticas de
etnicidade.
228

mais ou menos extensas que conformam atos de solidariedade política. Anderson atribui um
caráter positivo aos nacionalismos e um aspecto negativo e conflitivo às políticas de
etnicidade.
O problema de Anderson para Chatterjee é que ele incorpora o universalismo político
típico da modernidade, o que indica a ideia de um mundo único em essência, cuja atividade
comum denominada política pode ser levada a várias partes. A modernidade encarna um
espaço-tempo homogêneo e vazio. A experiência histórica do nacionalismo na Europa
Ocidental, na América e Rússia proporcionou aos posteriores nacionalismos um conjunto de
formatos ou matrizes a partir dos quais as elites nacionalistas na Ásia e África escolheriam
suas respectivas trajetórias.
Chatterjee refuta essa concepção resignificando essa homogeneidade como o tempo
utópico do capitalismo, que vincula o passado, o presente e o futuro e se transforma em
condição possibilitadora para uma idealização historicista da identidade, da nacionalidade e
do progresso. A hegemonia do utópico na dimensão desse tempo vazio é questionada pelo
autor indiano na medida em que a vivência e recepção das experiências pelos diversos grupos
pode ser vivenciada de diferentes formas.
A rejeição ao presuposto da universalidade da comunidade imaginada se encaminha
para o argumento que o mundo pós-colonial não deve ocupar o lugar de um mero consumidor
perpétuo da modernidade. Chegamos ao extemeo de imaginar uma espécie de roteiro para a
resistência anticolonial. As imaginações são incluisive colonizadas.

Los más poderosos, así como los más creativos resultados de la imaginación
nacionalista en Ásia y África, radican non solamente em una identidad diferente,
sino más bien em uma diferencia respecto a los formatos modulares conformadores
de sociedades nacionales propagados por el Ocidente moderno. Cómo podemos
ignorar esto, sin reducir la experiência del nacionalismo anticolonial a una caricatura
de si misma?364 (CHATERJEE, 2008, p.92)

As propostas em torno da refutação da chamada autobiografia do nacionalismo em


Chaterjee parte de um debate direcionado à tese de Anderson. Os principais artigos do livro
que estamos analisando é um permanente diálogo de contraponto e debate das teses sobre as
comunidades imaginadas. O nacionalismo em Chaterjee não é uma resposta à dominação
colonial. Seguindo sua leitura, o nacionalismo anticolonial elabora seu próprio espaço de
soberania muito antes do início da sua batalha política com o poder imperial.

364
Ibid, p. 92. “Os mais poderosos, assim como os mais criativos resultados da imaginação nacionalista na Ásia
e na África, radicam não só uma identidade diferente, como também em uma diferença a respeito dos formatos
modulares conformadores das sociedades nacionais propagadas pelo Ocidente Moderno. Como podemos ignorar
isto, sem reduzir a experiência do nacionalismo anticolonial a uma caricatura de si mesmo?” (tradução nossa).
229

Chaterjee trabalha com exemplos para mostrar que a imaginação nacional se encontra,
no caso da Índia, no que se denomina “campo espiritual”. Se a nação é uma comunidade
imaginada, no campo do espiritual, ela adquire sua razão de ser. Na sua essência, a nação
pode ser soberana, ainda quando o estado está em mãos do poder colonial. A dinâmica deste
projeto está ocultada nas histórias convencionais, nas quais o nacionalismo começa com a luta
pelo poder político.
Percebemos nas teses de Chaterjee sobre a Índia e o seu nacionalismo pós-colonial, o
uso permanente de categorias e mecanismos epistemológicos de compreensão apropriados da
tese de Benedict Anderson. Embora esta seja refutada em sua essência, o autor indiano
procura utilizar algumas categorias equivalentes para analisar o nacionalismo pós-colonial
asiático.
A equivalência do capitalismo impresso na Índia pode ser vista através da análise da
aparição de uma crescente rede de escolas de ensino médio e da conversão da universidade de
Calcutá em uma instituição marcadamente nacional.
O fator de atração pela teoria de Anderson caminha para uma possibilidade explicativa
que extrapole as instâncias oficiais do estado. No contexto indiano, uma história do
nacionalismo como movimento político que extrapole e não se limite à luta pelo poder
colonial, pelo domínio exterior, ou seja, pelo domínio material do estado, parece ser bem
conveniente. O mecanismo de resistência ao modelo de nacionalismo europeu ou americano
passa por se considerar que os princípios de soberania e cultura nacional podem se constituir
em outras esferas para além do estado.
O projeto hegemônico de nacionalismo não podia ser indiferente às distinções de
língua, religião, casta ou classe. O projeto era uma normalização cultural, um projeto
hegemônico burguês com diferenças. No caso da Índia, haveria que se transfomar o espaço de
autonomia em um lócus de subordinação colonial associado aos mecanismos universais
européias.
O problema da atrofia da libertação nacional guarda uma dívida à submissão do
nacionalismo às velhas fórmulas do estado moderno europeu. Chaterjee insiste que o seu
ponto central não se limita a demarcar os espaços diferenciados que podem romper com os
mecanismos totalizadores da historiografia nacionalista.
Sua tarefa consiste em privilegiar as historicidades “mutuamente condicionadas, as
formas específicas que surgiram por um lado, no espaço definido pelo projeto hegemônico da
230

modernidade nacionalista e, por outro lado nas inumeráveis resistências fragmentadas até o
projeto normalizador.” 365
Longe de um simples contraponto à tese da universalidade européia, pela
demonstração do excepcionalismo indiano, Chatterjee descreve sua tarefa como algo mais
complexo, que busca a identificação das condições discursivas que tornaram possíveis as
teorias sobre o particularismo indiano. O autor pretende, em linhas gerais, reclamar um
espaço autônomo de liberdade de imaginação, em resposta a um determinado campo de poder.
Chatterjee afirma que a descolonização foi seguida por uma crise do estado do terceiro
mundo e pelas guerras culturais que se identificaram com o chauvinismo com o preconceito
étnico e por regimes frágeis politicamente com problemas de corrupção.
As aspirações nacionalistas vieram contaminadas por políticas de etnicidade com
efeitos perversos. A refutação à tese de Anderson aparece nesse diagnóstico na medida em
que, para o teórico europeu, os movimentos nacionalistas e as políticas de etnicidade
aparecem em lugares distintos.
Reconhecemos o problema de abordar o enfoque do capitalismo e da modernidade de
uma só perspectiva, a partir de uma dimensão de espaço-tempo da vida moderna. Homi
Bhabha é citado pela descrição da inserção da nação no marco da temporalidade e por definir
a narrativa da nação no inteior de uma ambivalência com planos temporais que interagem. A
pedagogia nacional está em processo de construção e a unidade do povo e sua respectiva
identificação com a nação deve ser sempre resignificada, repetida e encenada.
Chatterjee ilustra com exemplos do mundo pós-colonial o chamado tempo denso e
heterogêneo. O afastamento da hipótese da convivência das muitas temporalidades representa
a negação da ratificação do utopismo da modernidade ocidental. Avançando na inversão dessa
utopia da modernidade ocidental como paradigma central, o autor citado chegaria a afirmar
que o mundo pós-colonial representava a “maioria” do mundo moderno.
Em síntese, o argumento central em questão se encaminha para o contraponto
exemplificado historicamente da tensão entre a dimensão utópica do tempo homogêneo do
capitalismo e o contexto real, verossímel, do tempo heterogêneo da governabilidade, assim
como os efeitos produzidos por uma tensão entre os esforços por narrar à nação.
Chatterje utiliza o debate sobre o nacionalismo na Índia, durante a colonização, e no
período de formação da Índia descolonizada, para reafirmar que a nação existe em meio a um
tempo heterogêneo.366

365
Ibid, p. 104. ( tradução nossa)
231

Se, por um lado, Chatterjee parece rebater as definições de nação do autor de


Comunidades imaginadas, por outro, há uma intensa relativização contextual quando se trata
de analisar a complexidade da sociedade indiana na sua configuração nacional.

La política democrática de la nácion ofrece posibilidades sustantivas de


obtener mayor igualdad, pero sólo a través de una representación adecuada de
los grupos no privilegiados en el aparato político. De esta manera, una
política estratégica de grupos, clases, comunidades, etnias y series cerradas
de todo tipo es inevitable. Pelo la homogeneidad no es, a pesar de esto,
abandonada. Al contrario, en contextos específicos puede ofrecer una clave
que permita encontrar soluciones estratégicas para problemas de
heterogeneidad irreconciliable, como en el caso de la división de India. A
diferencia de las reinvidicaciones utópicas del nacionalismo universalista, la
política de la heterogeneidad nunca puede aspirar al premio de encontrar una
fórmula única que sirva a todos los pueblos en todos los tiempos: sus
soluciones son siempre estratégicas, contextuales, históricamente específicas
e, inevitablemente, provisionales.367 (CHATTERJEE, 2008, pp 83/84).

Se Anderson pretende preservar o momento mítico de convergência entre o


nacionalismo e a modernidade, Chaterjee aponta a impossiblidade da projeção desse esquema
no caso das experiências pós-coloniais. A cronologia elaborada e resgatada por Chatterjee
identifica diferentes sentidos para a questão nacional.
Nos anos 50 e 60, o nacionalismo era considerado uma bandeira das lutas anticolonias
na Ásia e África. À medida que as novas práticas institucionais políticas e econômicas se
naturalizavam sob a perspectiva de desenvolvimento e modernização, o nacionalismo ía sendo
relegado ao campo das histórias especializadas.
Nos anos 70, o nacionalismo se transformou em um objeto de políticas étnicas, o que
gerou inúmeros conflitos internos brutais. Na sociedade contemporânea, o nacionalismo
alcançou um status pejorativo, como se esse ideário tivesse relação com algo da ordem do
primordial, além de um fenômeno tipicamente periférico que estaria retornando para sua
origem européia.

366
Em termos de limites e demarcação do nosso debate, não caberia entrar na historicização do nacionalismo
indiano que o autor realiza, além da análise das múltiplas reflexões em torno da problemática da formação
nacional.
367
Ibid, pp. 83/84.“A política democrática da nação oferece possibilidades substantivas de obter maior
igualdade, mas só através de uma representação adequada dos grupos não privilegiados no aparato político.
Desta maneira, uma política estratégica de grupos, classes, comunidades, etnias e séries fechadas de todo tipo é
inevitável. Mas a homogeneidade não é, apesar disto abandonada. Ao contrário, em contextos específicos pode
oferecer uma chave que permita encontrar soluções estratégicas para problemas de heterogeneidade
inconciliável, como no caso da divisão da Índia. A diferença das reivindicações utópicas do nacionalismo
universalista, a política da heterogeneidade nunca pode aspirar ao prêmio de encontrar uma fórmula única que
sirva a todos os povos em todos os tempos: suas soluções são sempre estratégicas, contextuais, historicamente
específicas, e inevitavelmente, provisórias.” (tradução nossa)
232

Chaterjee (2008) diagnostica o nacionalismo contemporâneo como um fenômeno do


terceiro mundo, que o Ocidente rejeita e se sente impotente para reprimir. O nacionalismo,
independente das suas variáveis positivas ou negativas, foi visto como um produto da história
política européia.
Para Homi Babha368 a nação funciona como uma “forma obscura e ubíqua de viver a
localidade da cultura”.369 Suas definições passam pela mensuração em relação à
denominaçãoes referenciais clássicas. Bhabha370 segue essa padronização pouco definidora,
tendo como parâmetro comparativo as categorias-chave da definição de nacionalismo,
pensando numa construção cultural dessa acepção. Esta é vista por meio da temporalidade
imanente a esse fenômeno.
Para estudar a nação através da narrativa, é preciso estar atento ao campo de sentidos e
simbolos que a narrativa elabora. O autor indiano procura entender as estratégias de
identificação cultural e registro discursivo. A pretensão de um distanciamento em relação à
perspectiva historicista faz com que a nação passe a não ser uma medida de linearidade
encaminhada para a modernidade cultural, por isso a importância do debate em torno da
temporalidade.
Podemos associar essa temporalidade reivindicada por Bhabha à ideia de
mundanidade em Said, aqui entendida como a contingência histórica relacionada ao registro
textual. Bhabha persegue o ato de interpretação secular, em Said para afirmar a
metaforicidade dos povos e suas respectivas comunidades imaginadas com suas
temporalidades heterogêneas.
A ideia de temporalidade heterogênea nos remete ao debate autoral em torno de Partha
Chaterjee. Bhabha recusa a associação automática entre nação e modernidade, a primeira vista
como uma forma soberana de racionalidade política. Se a temporalidade da nação é
ambivalente e os recortes fragmentários que concorrem para o princípio do nacionalismo são
invenções, a nação deve ser observada de forma contingencial como uma narrativa.
Bhabha segue a linha desconstrutiva afirmando o tempo da ambivalência em relação à
definição da nação. Pela sua linha desconstrutiva, sabemos o que a nação não é
categoricamente. O autor questiona a metáfora progressista da coesão social moderna
368
BHABHA, Homi K., DissemiNação, o tempo e a narrativa e as margens da nação moderna In: O local da
Cultura, BH: Editora da UFMG, 2001.
369
Ibid, p. 299.
370
Para Bhabha a nação é um “vir a ser” processual que aparece como um sistema de significação cultural,como
a representação da vida social. Se a nação é uma forma de elaboração cultural, ela é uma narrativa ambivalente
que conta com estratégias textuais, deslocamentos metafóricos e estratégias figurativas.
233

direcionada a teoria orgânica do holismo da cultura. A nação se conforma como uma


narração.

Os fragmentos, retalhos e restos da vida cotidiana devem ser repetidamente


transformados nos signos de uma cultura nacional coerente, enquanto o próprio ato
da performance narrativa interpela um círculo crescente de sujeitos nacionais. Na
produção da nação como narração ocorre uma cisão entre a temporalidade
continuísta, cumulativa, do pedagógico e a estratégia repetitiva, recorrente, do
performativo. É através deste processo de cisão que a ambivalência conceitual da
sociedade moderna se torna o lugar de escrever a nação.371 (CHATTERJEE, 2008,
p. 207)

Bhabha define o tempo da nação como indisciplinado. Supomos que para deslocar a
ideia de uma temporalidade progressiva e linear, a ideologia aparece como vacilante, o que
nos transmite a impressão de uma indefinição crítica e crônica da cultura nacional. Essa
ambivalência é renomeada em vários autores; em Gellner são os trapos e retalhos da vida
cotidiana, em Said “a energia não contínua da memória histórica vivida e da subjetividade”.
O grande problema nessa definição da liminaridade do nacionalismo, é que parte-se de
um extremo a outro, da superação da demarcação historicista para um sintoma de uma
etnografia do contemporâneo. A dicotomia trabalhada por Bhabha vai do que ele denomina
por pedagógico fundado na tradição contínua de um povo até o performativo da narrativa do
entre lugar.
Bhabha recorre novamente a Said para fortalecer a sua ideia de cultura nacional como
performativa. Said menciona a hermenêutica da mundanidade realizada a partir das fronteiras
liminares e ambivalentes que articulam os signos da cultura nacional, “como zonas de
controle ou de renúncia de recordação e de esquecimento, de força ou de dependência, de
exclusão ou de participação.372
Bhabha utiliza trechos do livro Os Condenados da Terra de Frantz Fanon para
exemplificar, ou melhor, ilustrar a incomensurabilidade da cultura nacional essencialista.
Fanon é reivindicado para contestar a apropriação intelectual da “cultura do povo” como um
discurso de representação fixado ou reificado. Fanon é o canal de defesa teórica do chamado
tempo incerto da cultura nacional. O eterno confronto de um conhecimento pedagógico de
uma narrativa nacional continuísta e a chamada “zona de instabilidade oculta” do ethos
popular aparece na narrativa de Bhabha.

371
Ibid, p. 207.
372
Said apud BHABHA, Homi K., DissemiNação, o tempo e a narrativa e as margens da nação moderna In: O
local da Cultura, BH: Editora da UFMG, 2001 p. 210.
234

Fanon pertence a uma filiação teórica pós-colonial, conveniente para os argumentos de


Bhabha na medida em que prevê um tempo pós-colonial que questiona a ideia de telos, e de
passado e presente equivalentes ao arcaico e ao moderno.
Bhabha por fim conclui sua reflexão chamando a atenção para a importância do
esquecimento como mecanismo formativo da visibilidade da nação. É preciso subtrair
determinadas memórias para definir o começo da narrativa da nação. O autor chama de
“sintaxe do esquecer”, a identificação problemática de um povo nacional. O esquecer
encaminha o lembrar. Ser obrigado a esquecer torna-se a base para relembrar a nação,
preenchendo-a de novos elementos, imaginando a possibilidade de outras formas constitutivas
da identificação cultural.
Ernest Renan em um artigo “o que é uma nação?”373 intenciona fundamentar os
perscursos que França, Espanha, Inglaterra e Alemanha teriam percorrido para conquistar uma
experiência nacional. O autor atesta a fusão dos grupos populacionais que compunham eses
estados nacionais e o fator de esquecimento que operacionaliza a memória que conforma as
formações políticas desses estados.
Os argumentos de Renan se encaminham para as seguintes definições: O mecanismo
racial teria sido forjado por questões belicistas e fator lingüístico não era suficiente para
conformar uma unidade nacional. O mecanismo religioso não seria suficiente para corroborar
a legitimidade de uma unidade nacional.
Renan conclui seu argumento atribuindo um aspecto quese metafísico ao elo de
unificação da nação, que é visto como um componente de princípio espiritual. Este se
fundamenta pelo devir histórico, do passado para o presente. A existência da nação é uma
construção contínua, revivida cotidianamente.
Para Renan a nação é um produto de concepção eletiva, de uma escolha deliberada e
continuamente renovada. Uma das marcas do seu pensamento é a refutação da metáfora
organicista para a nação. Uma ideia presente no discurso nacionalista é a do pressuposto da
correspondência entre uma nação e um estado soberano. A nação seria o pré-requisito para a
consolidação do estado.

373
O artigo nasceu de uma conferência realizada na Sorbonne em 1882. Este artigo se constituiu um texto de
referência para os debates sobre a nação e o nacionalismo. Renan contestava a incorporação da Alsácia e Lorena
pela Alemanha. O evento histórico em questão, levou-o a formular argumentos contrários a política de
predominância racial particular da Alemanha da época. Sua constestação passava pela questão ideológica que
orientava o nacionalismo alemão.
235

Para Said o nacionalismo ressurgente ou militante tem limites. O autor define a


identidade nacional, transformada numa paixão coletivamente organizada, como
originalmente negada, sublimada que precisa se externalizar e assumir o seu lugar no mundo.
O paradoxo do nacionalismo parece central na trajetória teórica do autor em análise.
Seus posicionamentos desconfortáveis com os imperativos nacionalistas, não são passíveis de
uma conciliação com a luta por uma afirmação nacional dos palestinos.
O ceticismo em torno das categorias identitárias estáveis, aparece nas diversas obras,
especialmente no Orientalismo (1978) que se pretende rever as categorias binárias vinculadas
à representação do Oriente pela erudição ocidental, no livro Cultura e Imperialismo (1993)
que privilegia primordialmente o debate sobre o nacionalismo e na obra nacionalista por
essência denominada, A questão da Palestina (1979).
A revisão crítica da dualidade Ocidente-Oriente parece perseguir a linhagem do
pensamento saidiano na medida em que reflete sobre dois universos que se constituem
mutuamente no encontro colonial. As identidades essencializadas são abstrações míticas já
que as culturas são definidas a partir do seu respectivo intercurso.
Como um proeminente militante da causa palestina a redação da obra A questão da
Palestina parece fragilizar os pressupostos pós-coloniais presentes no livro Orientalismo. Nos
escritos mais diretamente voltados para a Palestina, Said parece se engajar no exercicio da
busca dos elementos da essência nacional.
A realidade desse grupo deve se mostrar visível e alinhavada nos seus traços históricos
distintivos. A fluidez e a imprecisão da identidade que podem levar ao nativismo chauvinista,
acabam sendo diluídos em nome da necessidade de se estruturar um contraponto político em
torno da experiência Palestina.
Os escritos voltados para a questão palestina se localizam no espaço intermediário
entre o reconhecimento cognitivo da heterogeneidade cultural e a necessidade política de
solidariedade à causa Palestina. Said reconhece o objeto como descentrado ou a cultura como
híbrida, embora reconheça o potencial das coletividades imaginárias construídas sob uma
estrutura de subjugação para resistir e superar essas condições.
As tensões entre as esferas; cognitiva e política aparecem, por um lado na fluidez, e no
hibridismo da identidade e por outro na estabilidade da solidariedade política. O nacionalismo
nessa segunda etapa militante aparece como algo negativamente inevitável. Para um grupo
que está sendo marginalizado que tem a sua soberania negada, ou suprimida é preciso uma
identificação afirmativa do ethos nacional.
236

Recorremos à leitura de Rahul Rao374 para entender as estratégias discursivas e


analíticas que incorrem no paradoxo nacionalista. Rao descreve a contradição em questão
como um “uso estratégico do essencialismo positivista num interesse escrupulosamente
político.”375
Segundo Rao, a perspectiva teórica do paradoxo Said cosmopolita/nacionalista aparece
no discurso acerca da “subjugação” que pressupõe o abandono da análise intercultural
relativista quanto à responsabilidade individual no campo das ações históricas coloniais.
Enquanto o Said cosmopolita evita a retórica de “acusação”, problemática numa
análise intercultural, o Said nacionalista emprega narrativas de “vitimização”, ou uma noção
correspondente ao reiterar a necessidade da autodeterminação Palestina. Como desfecho desse
discurso, a reiteração da acusação é atenuada consideravelmente pela ênfase na reconciliação
e na coexistência, marca notável dos escritos tardios de Said.
Rao376 ilustra as possíveis manobras para driblar o potencial contraditório do
nacionalismo na obra de Said. Sua distinção parte de um Said pessimista em que a questão
nacional aparece na forma de uma tragédia sem solução.
Said critica o nacionalismo triunfante que se legitima relegando a atribuição falsa e
inferior a outros grupos nacionais e percebe que os imperativos nacionalistas são impeditivos
dos compromissos cosmopolitas que ele deseja, isso pode ser ilustrado no paradoxo de todas
as lutas anticoloniais da independência, cuja etapa nacionalista deve ser ultrapassada em nome
da verdadeira libertação.
A dicotomia entre um viés passimista e um Said mais otimista que acredita que o pior
excesso do nacionalismo deve ser mitigado por meio de um tipo de transparência
metodológica. Rao chama atenção para o estilo irônico da sua narrativa, originado no esforço
por definir a identidade Palestina em distinção do ethos árabe.
Mesmo os eventos aparentemente míticos, guardam fundamentos reais que podem se
depreender para um rastreamento das demarcações identitárias mais fidedignas. A abordagem
Saidiana revela um formato peculiar da sua escrita sobre o nacionalismo, por um lado a
construção e a reiteração da mitologia nacionalista e por outro uma advertência ao seu leitor
dos mecanismos mitificadores que podem mascarar o nacionalismo.

374
RAO, Rahul, Postcolonial Cosmopolitanism, Between home and the World, Tese de doutorado, [Dphil in
Internacional Relations in the department of Politics and Internacional relation], University of Oxford, 2007.
375
Ibid, p. 163.
376
RAO, Rahul, “Born Sneerers or ironic nacionalists?” In: Third world protest, between home and the world, N.
York: Oxford University Press, 2010.
237

Rao demonstra as oscilaçãoes entre um Said nacionalista e um Said cosmopolita


desconfiado dos excessos do nacionalismo. As críticas nacionalismo passam pelos seguintes
elemntos: a possibilidade de gestação de uma hierarquia, a ideia de uma supremacia nacional,
que o nacionalismo parece requerer uma dose de elaboração mítica, uma purificação coletiva
e vários tipos de abusos em nome da elaboração nacionalista.
Seguindo as definições de Fanon, Said procura demonstrar que o nacionalismo
anticolonial corre o risco de reproduzir a dinâmica imperial. Além dessa assertiva, Said revive
o pressuposto de que o nacionalismo fornece, ainda que parcialmente o ímpeto do
imperialismo.
Rao aponta para o ceticismo incial de Said e sua desconfiança sobre a simultaneidade
da apologia do ethos nacional e vir a ser ao mesmo tempo um teórico do nacionalismo. Um
dos traços do nosso teórico na adesão a elaboração do nacionalismo, voltado para a questão
palestina aparece no esforço em demonstrar as fragilidades teóricas da primordialização dos
nacionalismos, quase como num esforço de construção e desconstrução desveladora dos
mecanismos teóricos do discurso nacionalista.
O argumento de Rao, enquadra Said em duas denominações, a do Said pessimista
portanto trágico, que entende o nacionalismo enquanto uma tragédia, como se os paradoxos
do nacionalismo não pudessem ser resolvidos. A afirmação está implicada na negação de uma
cultura, inerentemente excludente.
O Said militante político que premido pelas necessidades históricas do ocultamento da
identidade palestina considera que o nacionalismo não pode ser evitado. A empreitada do
nacionalismo deve transparecer seus artifícios teóricos, em seus escritos estabelecer os
pressupostos metodológicos, que seriam atenuantes para minimizar os danos da empreitada
nacionalista.
O Said como militante utiliza algum nível de essencialismo e culpabilização na
construção da identidade palestina estável. O Said cosmopolita resiste ao comunitarismo e
defende a justiça como um mecanismo universal. Reconhecemos três problemas na tese de
Rauhl Rao, a primeira delas; a limitada associação dos questionamentos acerca do
nacionalismo e da teoria pós-colonial. O que o autor chama de cosmopolitismo377 nós
reconhecemos como fundamentos da teoria pós-colonial associados à parte da fundamentação
teórica que identifica o autor palestino. E o segundo ponto aparece no frágil rastreamento no

377
Rahul Rao entende cosmopolitismo como uma doutrina sobre cultura que sugere que a identidade não requer
pertencimento a um detemrinado grupo cultural cujas fronteiras são claras e cuja estabilidade e coesão são
asseguradas. Culturas são entendidas não como entidades discretas mas como sistemas de ideias , crenças e
práticas que são cosntantemente em fluxo, modificando e sendo modificado na sua interação com outras culturas.
238

decorrer da sua obra, da mudança de percurso formadora de um paradoxo teórico. Podemos


perceber algumas etapas distintas da trajetória teórica que carateriza sua produção em que o
relativismo pós-colonial aparece deixando pouco espaço para um Said nacionalista, e algumas
etapas onde a questão nacional palestina se configura como objeto. O terceiro ponto diz
respeito à possível solução para o paradoxo, aqui vista como uma conciliação do
nacionalismo e cosmopolitismo por meio da proposta de um estado binacional judaico-
palestino. Na visão de Rao, a sua escolha política acaba funcionando como um mecanismo de
reconciliação da dualidade em torno do nacionalismo.
Os mecanismos desarticuladores das armadilhas teóricas relacionadas à elaboração da
naturalização e primordialização dos nacionalismos ganham força quando o autor se volta
para a obra de Fanon, especialmente o livro Os condenados da terra. Fanon apresenta a luta
nacionalista contra a ocupação colonial e a luta universal contra um projeto burguês limitado,
como etapas seqüenciais. Said lê Fanon enfatizando e se apropriando das duas dimensões da
luta anticolonial. Said não incorpora a teleologia da luta anticolonial em Fanon, mas adere
seriamente ao imperativo da transformação de uma consciência nacional numa consciência
humanista.
Rao entende que a proposta saidiana em torno do projeto de um único estado
binacional Israel-Palestina tem relação com a percepção realista da impossibilidade da criação
de um estado palestino viável, contíguo territorialmente e plenamente soberano. Além dessa
constatação, Rao entende que a única forma de conciliar a visão cosmopolita com a busca por
um estado nacional Palestino se deu através do desfecho idealizado para o conflito. Nossa
hipótese caminha para a articulação entre o pensamento de Said e Fanon que relativiza a etapa
nacionalista na luta anticolonial. A progressiva adesão ao nacionalismo “problemático” e
necessário vai ocorrendo em proporção à aproximação com a causa palestina, sempre na
perspectiva reveladora dos mecanismos internos constitutivos desse nacionalismo.
Said condemns partition as ‘the desperate and last-ditch efforts of a dying ideology
of separation, which has afflicted Zionism and Palestinian nationalism, both of
which have not surmounted the philosophical problem of the Other, of learning how
to live with, as opposed to despite, the Other. We might see in Said`s late advocacy
of a one-state solution, a final attempt at reconciliation of his cosmopolitan and
nationalist commitments. Yet it is crucial to recognize that even the one-state
solution does not dispense with the need for nationalist consciousness. For although
the demand here is not for a separate state, it will still take a nationalist struggle to
win recognition and equal protection before the law for a long-denied and
suppressed identity within the framework of a single state. 378 (RAO, 2010, pp.134,
135)

378
Ibid, Pp. 134 e135. “Said condena divisões como ‘o esforço desesperado e de última hora de uma ideologia
decadente de separação, a qual tem atingido o sionismo e o nacionalismo palestino, ambos os quais não
superaram o problema filosófico do “outro”, de aprender como conviver, como oposição ao desprezar, o “outro”,
239

2.3 Histórias entrelaçadas e territórios sobrepostos: Edward W. Said e Frantz Fanon

Considerando o imperialismo como um processo, Said adota o método do contraponto


para realizar uma leitura oscilante entre o registro da História metropolitana e de outras
Histórias entrelaçadas.
A recusa da doutrina nacionalista como mecanismo de resistência permanente
enquadra o nacionalismo típico do processo de descolonização como uma provável armadilha
que pode suscitar uma resposta do colonizado muito próxima à postura do colonizador.
Para alguns, a resposta está na oscilação entre o Said cosmopolita e o Said
nacionalista.379O Said Nacionalista começou a ser gestado a partir de 1967, quando o
compromisso com a Palestina passou a se tornar mais claro. O ano de 1967, é lembrado como
o ano da Guerra dos Seis dias e representou um marco de sensibilização no ambiente
universitário americano em relação à Guerra do Vietnã.
Reconhecemos nos aspectos críticos ao nacionalismo defensivo um tributo à obra de
Frantz Fanon380, especialmente o livro Os condenados da Terra381. Para Fanon382 e Said, a

podemos ver na defesa de Said para um Estado único, a tentativa final de reconciliação de seus compromissos
cosmopolita e nacionalista. Ainda assim é essencial reconhecer que mesmo a solução de Estado único não
dispensa a necessidade de consciência nacionalista. Apesar da presente demanda não ser um Estado separado,
ainda será necessária uma luta nacionalista para obter reconhecimento e igual proteção antes da lei para uma
identidade por muito tempo negada e suprimida dentro do molde de um Estado único.” (Tradução nossa)

 Para um maior detalhamento do debate sobre o Said nacionalista e o Said Cosmopolita ver dois trabalhos:
379

MUFTI, Aamir R., Comparatismo Global, In: BHABHA, Homi e MITCHELL, W. J.T. (Comps.), Edward Said,
Continuando la conversación, Buenos Aires: Editora Paidos, 2006. RAO, Rahul, Postcolonial Cosmopolitanism,
Between home and the World, Tese de doutorado, [Dphil in Internacional Relations in the department of Politics
and Internacional relation], University of Oxford, 2007.

380
Frantz Fanon, psiquiatra, escritor de origem antilhana, nasceu na Martinica em 1925, aluno e discípulo de
Aimé Cesáire. Aos 19 anos, deixou a Martinica para servir a forças armadas francesas. Decepcionado com o
racismo nas forças armadas, e desencantado com o suposto universalismo francês, resolveu voltar para a
Martinica. Em 1947 ingressou na Universidade de Lyon, onde escreveu Pele negra, máscaras brancas, como um
estudo sobre as patologias do racismo colonial. Em 1953 optando pela especialidade médica da psiquiatria
aceitou um emprego na Argélia, ocupada pela França. Abandonou o seu posto de médico e integrou a FLN, Foi
expulso pelas forças francesas da Argélia, e integrou o grupo ligado à frente pela libertação da Argélia no exílio
em Túnis. Em 1959 escreveu a Dying colonialism, uma coleção de longos ensaios marcando o quinto ano de luta
pela libertação da Argélia. Em dezembro de 1960, numa viagem a Mali, Fanon foi diagnosticado com leucemia.
Este escritor faleceu precocemente em 1961, com 36 anos, nos EUA, para onde foi em busca de tratamento para
sua doença. Existem quatro livros impressos sob sua autoria. Os condenados da terra (1961), Pele negra,
Máscaras brancas (1952), L` àn V de la révolution algérienne (1959), subsequentemente lançado como
Sociologie d`une révolution, L` àn V de la révolution algérienne e a coletânea publicada postumamente pela sua
esposa, Josie Fanon, Pour la revolution africaine (1964), uma antologia de vários escritos. Estamos trabalhando
com a edição em espanhol desse livro, FANON, Frantz, por La revolución africana, escritos políticos, Mexico:
240

consciência nacionalista pode induzir à rigidez estática das identidades. No interior do


processo descolonizador, não há nenhuma garantia de que os funcionários nacionalistas não
repetirão os velhos arranjos coloniais. A sua crítica ao separatismo e a falsa autonomia obtida
por uma política primordialista de consolidação da identidade foi prolongada excessivamente.
Fanon alerta para as ameaças do nativismo e da xenofobia no processo de
descolonização. O “tempo da libertação” é reconhecido como um processo de ambivalência
identitária, de uma indecisão de papéis representacionais. A indisssociação entre o colonizado
e colonizador faz da luta da antiga colônia um luta dela consigo, endógena.
A descolonização é vista como a reivindicação mínima do colonizado. A
descolonização é vista como um processo histórico, e se dá por meio do encontro de duas
forças antagônicas que extraem sua originalidade da substantivação que segrega e subsidia a
situação colonial. O colono elabora o colonizado, e ao mesmo tempo “tira a sua verdade, isto
é os seus bens, do sistema colonial”.383 A inteligibilidade desse processo, ocorre por meio da
historicidade que promove a identidade daquele que se liberta por meio da libertação. A
descolonização exige um reexame da situação colonial.
Fanon estabelece uma analogia das situações sociais e políticas do colonizador e
colonizado, com as suas respectivas cidades. A cidade do colono é uma cidade sólida,
iluminada, asfaltada, saciada, indolente, já a cidade do colonizado, a cidade negra, indígena
ou a Medina é um lugar acocorado, ajoelhado, uma cidade acuada.

Fondo de cultura econômica, 1975. O livro L` àn V de la révolution algérienne possui uma edição em inglês com
o título A Dying colonialism, N. York: Grove Press, 1965. Estamos trabalhando com esta edição.
381
Os Condenados da terra, livro originalmente publicado em françês, postumamente, em 1961 constitui a
principal referência de Fanon na obra de Said. O prefácio de Jean Paul Sartre (1961) se tornou consagrado pelo
caráter panfletário favorável à luta anticolonial e pela análise valorizadora da obra de Fanon. Sartre se referia a
imposição da cultura ocidental e do falso humanismo desmascarado com processo de dominação colonial da
Europa, na África e Ásia. Sartre fala das consciências infelizes que “se emaranham nas contradições” e
menciona a fala de Fanon sobre uma Europa que cavava sua própria ruína. O filósofo francês abordava a
decadência, uma Europa que na metáfora orgânica agonizava no seu humanismo paradoxal. Fanon denunciava as
artimanhas e estratégias coloniais, além de analisar os elementos de complacência dos agentes coloniais com a
elite colonial. A violência colonial é denunciada como um mecanismo desumanizante. Sartre analisa a violência
que emana da resistência, como a possibilidade de recomposisão existencial do homem colonizado. Trata-se de
um reencontro com a própria identidade. O reconhecimento do caráter relevante do prefácio uma vez que o livro
não havia sido escrito para os europeus promove a perspectiva dialética na sua escrita. Este autor faz um apelo
para que os europeus se descolonizem e que extirpem os colonos do seu interior. O manifesto sobre o
desvelamento do humanismo europeu é o tema central do autor. Sartre menciona o falso postulado do
universalismo que encobriria práticas reais. A França precisa ser renomeada para o nome de uma neurose,
diagnosticada na contingência história da descolonização.
382
A obra de F. Fanon é considerada um marco na trajetória do pensamento pós-colonial. Reconhecemos a
importância da revisão em torno de uma suposta modenrnidade universal, marco eurocêntrico. Fanon mostra em
contraponto a lógica pós-colonial, uma explicação em torno da visão sobre a expropriação.
383
FANON, Frantz, Os Condenados da terra, RJ; editora Civilização brasileira, 1979. P. 26.
241

E o olhar do colonizado sobre o lugar do colono é uma mirada de inveja, de luxúria, de


posse. O colonizado deseja tomar o lugar do colono. As realidades não são mascaradas e
partem de um mundo cindido.
A racialização das relações sociais na colônia define um problema chave para entender
a relação colonial. A conversão dos colonizados em figuras deprovidas de humanidade, define
não só um tipo de alienação, como também uma natureza de vínculo social diferente.
A violência384 para Fanon é um meio de diluição de fronteiras, é afirmação de uma
singularidade absoluta do colonizado que não se manifesta por um meio racional. O
maniqueísmo dessa sociedade desumaniza o colonizado.
A dicotomia que caracteriza o mundo colonial é diluída mediante a descolonização
que unifica os papéis. O papel da violência como resistência representa a síntese da superação
da reificação, do homem branco como sujeito e do homem negro como objeto. A leitura de
Lukács orienta o sentido da reificação e o processo de superação por meio da reconciliação
entre sujeito e objeto, ou mesmo do reencontro com própria identidade consolidado no
confronto colonial. A superação da fragmentação se dá por meio de um ato da vontade.
Como fundamento teórico, encontramos uma dialética da alteridade e da similitude
com o objeto imperial e a dialética hegeliana marxista, uma afirmação fenomenológica do eu
e do outro e a ambivalência psicanalítica do inconsciente. A luta contra a opressão colonial
não apenas muda a direção da história, como também contesta sua concepção historicista de
tempo linear e progressivo.

Então o colonizado descobre que sua vida, sua respiração, as pulsações de seu
coração são as mesmas do colono. Descobre que uma pele de colono não vale mais
do que uma pele de indígena. Essa descoberta introduz um abalo essencial no
mundo. Dela decorre toda na ova e revolucionária segurança do colonizado. Se, com
efeito, minha vida tem o mesmo peso que a do colono, seu olhar não me fulmina,
não me imobiliza mais, sua voz já não me petrifica. Não me perturbo mais em sua
presença. Na verdade eu o contrario. Não somente sua presença deixa de me
intimidar como também já estou pronto para lhe preparar tais emboscadas que
dentro de pouco tempo não lhe restará outra saída senão a fuga. 385 (FANON, 1979,
p.34)

O colonizado, na etapa de organização da sociedade pós-colonial, incorpora a cultura


do opressor e encarna o pensamento da burguesia colonial. O nativismo ameaça a unidade
nacional. Fanon fala em descolonizar as imaginações do colonizado. Existe uma relação
dialética entre cultura e nação.

384
O primeiro capítulo do livro Os condenados da terra intitulado Da violência foi originalmente publicado, na
revista Tempos modernos, editada e dirigida por Jean Paul Sartre.
385
Ibid, p.34.
242

A conceitualização de nação está fortemente enraizada numa noção romântica de


nacionalismo que pressupõe a conjunção entre o nacional e o internacional. A construção da
nação é necessariamente acompanhada pela descoberta e pelo encorajamento da adesão aos
valores universais.
No processo histórico de uma identidade inicialmente forjada na contraposição
processual do encontro com outro, o processo de alienação é instituído. A alienação individual
e a política estão interrelacionadas e são produtos de determinadas condições sociais e
políticas que devem ser transformadas.
Para Said a representação se torna significativa não apenas como um dilema teórico,
mas como escolha política. O debate sobre o nacionalismo e a questão da resistência colonial
suscita uma reflexão sobre o problema da identidade.
Os movimentos de autonomia produziram estados independentes no mundo pós-
colonial constituindo políticas nacionalistas de identidade que se revelaram insuficientes. O
nacionalismo seria um estímulo necessário para os movimentos de libertação, embora uma
consciência mais avançada fosse prevista.
No fundo, o que Fanon oferece de mais convincente é uma crítica do separatismo e
da falsa autonomia obtida por uma pura política de identidade que durou tempo
demais e foi utilizada em situações em que se tornou simplesmente inadequada. O
que invariavelmente acontece no nível do conhecimento é que tornam signos e
símbolos de liberdade e status pela realidade: você quer ser designado e considerado
pelo simples fato de ser designado e considerado. Isso significa que ser apenas um
árabe, negro ou indonésio independente pós-colonial não é um programa, nem um
processo, nem uma visão. Não passa de um ponto inicial conveniente a partir do
qual começa o trabalho verdadeiro e duro.386 (SAID, 2003, p.182)

O nacionalismo é uma etapa a ser garantida, mas constitui-se ponto de partida e não
fase conclusiva. Para quem tem a identidade negada e adiada, é necessário assumir um lugar
entre algumas identidades. Said enquadra o nacionalismo como uma filosofia de identidade,
transformada em uma paixão coletivamente organizada.
A crítica ao separatismo e a falsa autonomia adquirida por meio de uma política de
identidade aproxima Said de Fanon no que tange à discrepância entre a realidade heterogênea
e o conceito de identidade nacional. O problema central em fanon se relaciona com a ideia de
temporalidade e com as distintas subalternidades representadas pelo outro.
O pertencimento a vários mundos, ser um árabe palestino e ao mesmo tempo um
norteamericano, portar uma dupla perspectiva, oferece um privilégio intelectual e
epistemológico ao nosso autor Palestino.

386
SAID, Edward W. , Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, SP: Companhia das Letras, 2003. P. 182.
243

Ser portador de várias contradições, paradoxos inerentes a uma trajetória, comporta


uma liberdade de posicionamento intelectual, uma disposição para se deslocar por distintos
“mundos”. Nesse sentido, Said constitui um argumento analógico próximo à metáfora do
viajante, que transita de forma descontínua por vários territórios, refutando posições fixas e
dogmas.
Podemos reconhecer a suspensão das essencialidades ou fronteiras estáveis em termos
de identidade através da exaltação permanente do enredamento da experiência com a História.
O reencontro com a identidade deve dar lugar ao processo de uma integração entre os povos e
culturas que foram colocados a margem. A desconsolidação do eurocentrismo como
perspectiva predominante no mundo intelectual do Ocidente não pode ser substituída por
outro tipo de chauvinismo.
A ênfase na descontinuidade do devir histórico demonstra um esforço anti-
essencialista característico do discurso pós-colonial. O pós-colonial é visto aqui como uma
perspectiva simultaneamente epistêmica e cronológica que visa a uma superação de
paradigmas e retrata uma etapa conclusiva, ou um “ir além”, no que se refere a determinados
movimentos intelectuais.
Para Said, o problema da essencialização é visto como um progressivo abandono da
História. Há um imperativo em transcender as formulações direcionadas à questão racial ou
nacional. Segundo o autor, todas as culturas e sociedades constroem a identidade segundo
uma dialética na relação entre o “eu” e o “outro”. Para Fanon, é imperativo criar uma
consciência social simultânea à liberação colonial.
A consciência social é tão importante que sem ela a descolonização se converte
meramente em uma substituição de uma forma de dominação por outra. Said e Fanon
vivenciam a problemática pós-colonial em busca da superação dos essencialismos binários
construindo um apelo ao devir histórico que, no âmbito da sua diacronia, pode responder,
ainda que de forma contingencial, à problemática da representação.
A inserção das diferentes identidades no interior do processo histórico atenua a
estabilidade ontológica da alteridade. Tanto Said como Fanon desenvolvem uma objeção aos
binarismos identitários, mas ao mesmo tempo, enfrentam o problema da identidade,
afirmando que a sua consolidação se dá no encontro com o “outro”.
Para além da questão nacional e do postulado da suspensão das identidades
essencialistas e binárias, pensadas invidividualmente. identificamos afinidades entre os dois
autores, no que tange o chamado colonialismo epistemológico.
244

A colonização aparece com toda força no cerne da linguagem, nos métodos


intelectuais e na identiddade cultural. Fanon fala da importância da linguagem no primeiro
capítulo, do livro Pele negra, máscaras brancas. O primeiro capítulo denominado “O negro e
a linguagem” define que a linguagem forma um mecanismo de compreensão da dimensão
para o outro do homem de cor..
Fanon exemplifica ao ilustrar a história do antilhano que serve de intérprete, ou
mesmo o martinicano que mora um período na França, volta “consagrado” porque passa a
falar fluentemente a língua francesa. Tomar uma posição diante da linguagem, significa
resistir à dominação colonial. Esta ocorre de maneira eficaz quando da assimilação do francês
ou qualquer outra língua de dominação colonial. Todo idioma é um modo de pensar. Quando
o colonizado adota uma linguagem diferente daquela falada na coletividade de sua origem,
isso representa uma clivagem, um deslocamento.

Como se vê, não erramos ao pensar que um estudo da linguagem dos antilhanos
poderia nos revelar alguns traços do seu mundo. Dissemos no início, há uma relação
de sustentação entre a língua e a coletividade. Falar uma língua é assumir um
mundo, uma cultura. O antilhano que quer ser branco o será tanto mais na medida
em que tiver assumido o instrumento cultural que é a linguagem. 387 (FANON, 2008,
pp. 49/50)

No caso da obra de Fanon escolhemos ilustrar o dilema da desconstrução das


identidades estáveis por meio do desenvolvimento de algumas questões. Fanon388 produziu
uma crítica radical da colonização, através de um olhar minucioso sobre as estratégias da
violência, subordinação e desumanização que produzem as relações coloniais.
Fanon trabalha a universalidade da exploração colonial. O autor desenvolve a
exploração como aplicada a um só objeto; o homem. Fanon recupera Aimé Césaire para falar
da responsabilidade européia perante o racismo colonial. É o racista que faz o inferiorizado, é
o antisemita que produz o judeu, tal como Sartre diria, recuperado por Fanon.

À primeira vista, pode parecer surpreendente que a atitude do antisemita se


assemelhe à do negrófobo. Foi meu professor de filosofia, de origem antilhana,
quem um dia me chamou atenção: “quando você ouvir falar mal dos judeus, preste
bem atenção, estão falando de você”. E eu pensei que ele tinha universalmente
razão, querendo com isso dizer que eu era responsável de corpo e alma, pela sorte

387
FANON, Frantz, Pele Negra, Máscaras Brancas, Salvador: EDUFBA, 2008. pp. 49/50.
388
A missão colonial da França na Argélia produziu uma incompatibilidade entre a atuação de Fanon no hospital
de Blida-Joinville na Argélia colonial e sua consciência da necessidade de resistência. Fanon renuncia a sua
prática psiquiátrica nesse hospital e pronuncia que a missão colonial deveria ser incompatível com a prática ética
psiquiátrica. Se a psiquiatria é a técnica médica que objetiva habilitar o homem a não ser mais um estranho ao
seu meio e se o argelino permanece um alienado /estrangeiro em seu próprio país, o que provoca um absoluto
estado de despersonalização, existe algo de errado com a prática profissional do psiquiatra no contexto colonial.
245

reservada a meu irmão. Depois compreendi que ele quis simplesmente dizer: um
antisemita é seguramente um negrófobo. 389 (FANON, 2008, p.112)

A ontologia de Fanon fala de uma imanência negra, o que parece formar um paradoxo
com o seu humanismo universal. A dialética que comporta um ponto de apoio para liberdade
do outro, expulsa este dele mesmo. A consciência negra é imanente a ela mesma. O negro não
é uma parcial potencialidade de alguém. A consciência negra não pode ser tratada como a
falta de algo, equivocadamente tratada como lacuna, ou parte inconclusa. Fanon usa o
afirmativo manifesto do verbo ser, a consciência negra é, ela é aderente a si própria.390
O problema da mediação se coloca e se relaciona com a questão da representação. Eu
restituo ao outro a sua realidade humana, diferente da realidade natural. O reconhecimento
deve ser recíproco. Para obter a certeza de si, é preciso o conceito de reconhecimento.
Na conclusão do Pele negra, Máscaras brancas, Fanon estabelece a distinção entre os
dois tipos de alienação, a primeira de natureza intelectual, que concebe a cultura européia
como um meio de se desligar de sua raça, e o segundo uma alienação baseada na exploração
de uma raça pela outra, no desprezo de uma parte da humanidade por uma cultura que se
entende como superior. A forma em que se cria a alienação intelectual é produto clássico da
sociedade burguesa. Resistir à alienação como uma degeneração é empreender a revolução.
Percebemos a influência do autor martinicano na crítica das retóricas multiculturais e
antirracistas justamente por elas permanecerem enredadas em um contínuo discurso de
essencialização da diferença. A luta contra o racismo não é contra o outro, o que pode ser
definido por uma inserção dialética na relação entre as distintas alteridades.
Fanon desenvolve a perspectiva da dialética da alteridade e da similitude com o objeto
imperial, com a afirmação fenomenológica do eu e do outro e a ambivalência psicanalítica do
inconsciente. A identidade nunca é um fenômeno concluído, ela é sempre um processo que
problematiza a totalidade de um ser.
O processo colonizador ocorre no intervalo contingencial entre a recusa da dominação
e a designação. Esse pressuposto aproxima Fanon do pensamento pós-colonial e dos esforços
de superação dos binarismos essencialistas.

O lugar do outro não deve ser representado, como às vezes sugere Fanon, como um
ponto fenomenológico fixo oposto ao eu, que representa uma consciência
culturalmente estrangeira. O outro deve ser visto como negação necessária de uma
identidade primordial – cultural ou psíquica – que introduz o sistema de

389
Ibid, p.112.
390
Ibid, p.122.
246

diferenciação que permite ao cultural ser significado como realidade linguística,


simbólica e histórica. 391 (BHABHA, 2001, p.86)

No livro Pele negra, máscaras brancas392, há um desenvolvimento da polarização


entre as raças a partir do enfoque psicanalítico. A implosão de um sujeito negro libertado do
olhar e da fala do outro, o enredamento do negro escravizado por sua inferioridade e o branco
aprisionado no pressuposto de superioridade, todos estes elementos promovem uma projeção
pensada no interior de uma relação colonial qualificada como neurótica. A negritude se ergue
como uma imitação mimética, mais do que uma fonte original ou matriz.
Lewis Gordon trabalha com a perspectiva da passagem central, da transição do
neocolonialismo para o pós-colonialismo. Nessa problemática passagem à negritude é um
objeto de crítica porque impede a verdadeira dialética da história, e é percebida como uma
forma de reducionismo. O lugar por trás da falsa consciência nos permite viver falsamente um
mundo que na verdade não existe.
Na introdução do Pele negra, máscaras brancas, Fanon coloca que a sua consciência
não é dotada de “fulgurâncias essenciais” e precisamos caminhar em direção a um novo
humanismo.

O branco está fechado na sua brancura. O negro na sua negritude. Tentaremos


determinar as tendências desse duplo narcisismo e as motivações que ele implica.
No início das nossas reflexões, pareceu-nos inoportuno explicitar as conclusões que
serão apresentadas em seguida. Nossos esforços foram guiados apenas pela
preocupação de por fim a um círculo vicioso. Mas também é um fato: alguns negros
querem, custe o que custar, demonstrar aos brancos a riqueza de seu pensamento, a
potência respeitável do seu espírito. Como sair do impasse? Há pouco utilizamos o
termo narcisismo. Na verdade, pensamos que só uma interpretação psicanalítica do
problema negro pode revelar as anomalias afetivas responsáveis pela estrutura dos
complexos. Trabalhamos para a dissolução total desse universo mórbido. 393
(FANON, 2008, p. 27)

Fanon fala de uma sociogenia, diferente de uma filogenia e da ontogenia. Quando cita
Freud e a possibilidade de um diagnóstico por meio da análise do fator individual, Fanon

391
BHABHA, Homi K. , O local da Cultura, BH: Editora da UFMG, 2001. P. 86.
392
FANON, Frantz, Pele Negra, Máscaras Brancas, Salvador: EDUFBA, 2008. Esse livro é considerado uma
espécie de obra precursora do pós-estruturalismo, porque valoriza os insights das formações psíquicas do
racismo, representativo da primeira fase de produção do autor. Aos 25 anos, Fanon escreveu esta obra que
destinava-se a ser sua tese de doutorado em psiquiatria. Esta foi recusada pela comissão julgadora, uma vez que
na época o paradigma predominante nos estudos da psiquiatria era positivista, o que exigia a realização de
pesquisas físicas para os fenômenos psicológicos. A recepção não foi inicialmente entusiasta. Havia uma
predominância do pensamento francófono e o racismo era considerado um fenômeno predominantemente
anglófono, em especial nos EUA, Grã Bretanha, Austrália e África do Sul.
393
FANON, Frantz, Pele Negra, Máscaras Brancas, Salvador: EDUFBA, 2008. P.27.
247

contrapõe a possibilidade de elaborar um sóciodiagnóstico onde o fator subjetividade não seja


exclusivamente levado em conta.
Para Bhabha394 a demanda de Fanon por uma explicação psicanalítica se origina das
reflexões perversas da cidadania nos atos alienantes do governo colonial. A psicanálise é
utilizada nesse contexto para operacionalizar a transferência numa relação profundamente
neurótica e repleta de incertezas.
O artificio da identidade diz respeito a uma divisão que se corporifica no negro e no
branco. A existência fala de uma relação necessária com a alteridade. A base da identificação
tem relação com o lugar do objeto. O próprio lugar do outro, no desejo colonial é articulado
pelo desejo da inversão de papeís, o lugar do outro invejado. Para Fanon inspirado, em Lacan
a repetição do eu se localiza no desejo do olhar e nos limites da linguagem.
Said cita no livro; Cultura e Imperialismo que Fanon relê a dialética hegeliana
projetando-a na conjuntura colonial. No lugar da dialética do escravo e senhor, que pressupõe
uma reciprocidade, em Hegel, no contexto colonial percebe-se pela relação dialética entre o
senhor e a consciência do escravo. Obter o reconhecimento é reorganizar o lugar das formas
culturais imperiais. A visão dialética subsidia o que Said chama de “sobreposíção de
territórios”, uma vez que esta resgata traços ou formas já estabelececidas pelo antigo império.

Pele negra, máscaras brancas, de Fanon, revela a duplicação da identidade; a


diferença entre a identidade pessoal como indicação da realidade ou intuição do ser e
o problema psicanalítico da identificação que sempre evita a questão do sujeito: “o
que quer um homem?” A emergência do sujeito humano como social e
psiquicamente legitimado depende da negação de uma narrativa originária de
realização ou de uma coincidência imaginária entre interesse ou instinto individual e
a vontade geral. Essas identidades binárias, bipartidas, funcionam em uma espécie
de reflexo narcísico do Um no outro, confrontados na linguagem do desejo pelo
processo psicanalítico de identificação. Para a identificação, a identidade nunca é um
a priori, nem um produto acabado; ela é apenas e sempre o processo problemático de
acesso a uma imagem da totalidade.395 (FANON, 2008, p.85)

A pele negra atua como um mecanismo da experiência histórica e social que se


desprende necessariamente da sua presença. A alienação, problema chave nesse contexto diz
respeito à perda dos sujeitos com os vínculos de sobrevivência, a superação dessa etapa está
no encaminhamento da emancipação.
A solução não é o reencontro com a negritude, no sentido exclusivo. O seu
reconhecimento só se dá mediante o reflexo invertido do outro. Outra possível analogia com a

394
BHABHA, Homi K., “Interrogando a identidade, Frantz Fanon e a prerrogativa pós-colonial”, O local da
Cultura, BH: Editora da UFMG, 2001.
395
Ibid, p. 85.
248

obra de Said passa pela expériência identitária do Palestino no âmbito do encontro com a
experiência sionista.
Voltando a Fanon e sua crítica a negritude, esta é lida como uma experiência
essencialista, cujo risco de ativar uma identidade imutável deve fazer parte da relativização
teórica. O problema da negritude tem relação com o pressuposto de que a recuperação do
negro essencial inverte o maniqueísmo estruturante que concede ao racismo a sua lógica
básica.

Lo que se intenta, al englobar todos los negros bajo el término “pueblo negro” es
arrebatarles toda posibilidad de expresión individual. Lo que se intenta así es
someterlos a la obligación de responder a la idea que se ha elaborado acerca de ellos.
? que será el “pueblo blanco”? No se dice que sólo existe una raza blanca? Es
ncessario pues que explique la diferencia que existe entre nacíon, pueblo, patria,
comunidad? Cuando se dice “pueblo negro” se supone sistematicamente que todos
los negros estan de acuerdo respecto de ciertas cosas: que existe entre ellos um
principio de comunión. La verdad es que no hay nada a priori que permita suponer
la existência de um pueblo negro. 396 (FANON, 1975, p.26)

Compartilhamos a visão de que alguns comentadores estabelecem o privilégio de uma


ambivalência inerente à sua obra. Alejandro de Oto397 chama atenção para a chave hegeliana
da sua escrita de ascensão a uma consciência ampliada das relações sociais no colonialismo.
O colonizado atravessa as seguintes etapas: a desumanização que esvazia a sua identidade,
passando pelo reconhecimento da sociedade colonial até o sujeito emancipado que se esforça
por consolidar as liberdades adquiridas.
O autor revela o grau de incerteza e tensão em torno do relato da liberação. Sua
concepção de alienação, processo chave para a definição do confronto colonial pode ser
redefinida.

La alienácion en este contexto no es con respecto a um núcleo de identidad estable,


claro en su formulácion y definido en términos históricos que ha sido obturado por
el colonialismo, como de alguna manera es el espíritu que rodea a los postulados de
la negritud. No, por el contrario, la alienácion es con respecto a una potencialidad en
juego en los cuerpos de los colonizados, es con respecto a las tramas que fuerzan a
esos cuerpos a representarse de un solo modo y no de otros. Es con respecto a la
ausência de la alternativa, ya sea en el terreno de la cultura como en el de la

396
FANON, Frantz, Por La revolución Africana, escritos políticos, Mexico: Fonde Cultura económica, 1975.p.
26. “A intenção ao englobar todos os negros sob o termo “povo negro” é arrebatar toda possibilidade de
expressão individual. O que se intenciona é submete-los a obrigação de responder a ideia que se elaborou sobre
eles. O que será o povo branco? Não se diz que só existe uma raça branca? É necessário então que se explique a
diferença que existe entre nação, povo, pátria, comunidade? Quando se diz “povo negro” se supõe
sistematicamente que todos os negros estão de acordo a respeito de certas coisas: que existe entre eles um
princípio e comunhão. A verdade é que não existe nada a priori que permita supor a existência de um povo
negro.” (tradução nossa)
397
OTO, Alejandro de, “Teorias fuertes. Frantz Fanon y la descolonización como política”, In: MIGNOLO,
Walter, (org.) La teoria política en la encrucijada descolonial: Buenos Aires: Ediciones del signo, 2009.
249

explicación histórica. En esse sentido la alienación del colonizado es menos con


respecto al conocimento de un processo global que le es escamoteado por el poder
colonial que con respecto a la potencia de su constitución como sujeto si se enfrenta
a esse poder desde donde podría constituir outro tipo de genealogias culturales e
políticas.398 (FANON, 1975, p.27)

Oto enfatiza as incertezas em torno do destino do colonizado, após a libertação, o que


acaba por produzir um campo aberto de perspectivas. A história não tem um sentido pré-
determinado revolucionário. O sujeito colonial vive um conjunto de tensões que se
conformaram na trama do reconhecimento mútuo do colonizador e do colonizado, no ato do
encontro.
A alienação e o desejo político são inseridos em um processo de conflito que é o que
importa em última instância. O desejo de ser outro, de estar em outro lugar e de ocupar o
lugar do outro configuram cenários de onde se podem visualizar as motivações da resistência
e o colonialismo como sistema. O desejo começa a se manifestar na sociedade colonial e
culmina com os processos de resistência à dominação. O desejo aparece como lacuna, como
ausência e por isso está imbricado com a alienação.
Para o negro “não há nada além do destino de desejar ser branco”. Essa frase denota o
sarcasmo do desejo conflituoso. Essa expressão denuncia ironicamente a busca artificial de
um passado por meio da rearticulação do desejo colonial, o que conforma uma chave de
entendimento do projeto político Fanoniano.
O desejo pelo outro é fundador da subjetividade subalterna ainda que formatada pelo
espelho reflexivo do outro. O “ser outro” não requer a volta ao passado, ou a autenticação
histórica típica de um movimento nativista. A “ilegitimidade” do colonizado conforma o seu
futuro histórico, político e social.
A historicidade tem relação com a alienação e a constituição de uma subjetividade
resistente no coração do processo colonial. O primado do desejo subjetivo é muitas vezes
criticado como uma concessão teórica ao existencialismo Sartriano e o suposto atenuante a
uma identidade mais coletiva inserida na experiência histórica de um grupo. O tempo

398
Ibid, p.27. “A alienação neste contexto não é com respeito a um núcleo de identidade estável, claro em sua
formulação e definido em termos históricos, que tem sido obturado pelo colonialismo, como de alguma maneira
é o espírito que rodeia os postulados da negritude. Não ao contrário, a alienação é com respeito a uma
potencialidade em jogo nos corpos dos colonizados, é com respeito às tramas que forçam esses corpos a
representar-se de uma só forma e não de outras. É com respeito à ausência da alternativa, no terreno da cultura,
como no da explicação histórica. Nesse sentido a alienação do colonizado, é menos com respeito ao
conhecimento de um processo global que foi escamoteado pelo poder colonial, do que com respeito à potência
da sua constituição, como sujeito se enfrenta a esse poder onde poderia se constituir outro tipo de genealogia
cultural e política.” (tradução nossa).
250

Fanoniano é o tempo do agora, do presente, sem projeções para o futuro ou resgates míticos
do passado.
A historicidade se constroi no relato e não nas marcas factuais do processo histórico
tal como captado pela historiografia. A historicidade é adquirida em termos do sujeito que
habita o espaço colonial. A desalienação é a única possibilidade de sobrevivência do
subalterno e o prognóstico desse processo não garante que este possa acontecer na íntegra. O
risco da mímesis na etapa da libertação é uma possibilidade com que se deve contar, talvez
por isso, a questão do reencontro com o nacional não seja uma garantia para consolidar a
emancipação colonial.
Ambivalências e incertezas são necessárias para a legitimação do processo de
libertação colonial. Libertar no sentido fanoniano é muito mais do que se libertar do jugo
colonial e desenvolver uma nação. É preciso ampliar o horizonte de expectativas para a
criação de novos signos políticos, novas experiências históricas processadas na dialética da
libertação.

La dimensión fanoniana de la nación ofrece um inesperado campo de reflexión. Para


Fanon la cultura nacional era el lugar de la afirmación identitaria de um sujeto em
expansión. Esse sujeto, por lógica de su propia producción histórica es uma
impugnación tanto del colonizador como del colonizado. 399 (FANON, 1975, p. 41)

A cultura é concebida na mesma esfera da existência subjetiva, e mais importante que


pensar as identidades distintas, era necessário levar em conta o processo de relações entre
colonos e colonizados no âmbito da libertação. A cultura nacional é remetida à sua
historicidade permanentemente.
A desorganização da episteme colonial pensada originalmente no dualismo rígido e
opositor deve ser transposta, e em paralelo deve se ter em conta a desestabilização do
universo colonial por meio da violência. O primeiro capítulo do livro Condenados da terra
denuncia a necessidade de dissolução de um corpo que não é reconhecido, está dissimulado
tal com em Pele negra e máscaras brancas.
Para Fanon ser colonizado é compartilhar uma linguagem exógena e isso tem amplas
implicações para a consciência. Quando o argelino fala francês, significa que a coação se
dirige à aceitação da consciência coletiva francesa. A categoria racial ou étnica conforma a

399
Ibid, p. 41. A dimensão fanoniana da nacão oferece um inesperado campo de reflexão. Para Fanon a cultura
nacional era o lugar da afirmacão identitária de um sujeito em expansão. Esse sujeito, por lógica da sua própria
producão histórica é uma impugnação, tanto do colonizador, como do colonizado.” (Tradução nossa)
251

sua existência a partir da sua negação, assim como Said insiste para o fato de que um não
existe sem ou outro.
A questão central que se coloca é de que forma o oprimido, o colonizado pode romper
com o círculo de opressão e substancializar o humanismo universal? A afirmação do
humanismo universal e a relativização de uma essencialidade aparecem com força, tanto no
Pele negra, máscara branca, como no livro Os Condenados da terra. Albert Memmi,
Thomas Cassirer e Michael Twomey (1973) 400 desenvolvem essa perspectiva no artigo “The
impossible life of Frantz Fanon”.
Memmi se refere a uma “ilusão branca” em relação ao conflito de identidade na
infância e juventude de Fanon. A sua identificação enviesada com a Martinica, e o seu
posterior alinhamento com o movimento de independência da Argélia são pensados por
Memmi.
Memmi (1973) se pergunta, por que a Argélia? Quando Fanon descobre a fraude da
equivalência francesa com os Martinicanos, no seu lugar de origem, ele rompe com a França e
que por fim desvela o falso humanismo europeu.
A hipótese de Memmi, é que a identificação com a Argélia substituiu a identidade
martinicana, supostamente inacessível, porque eivada de um conflito ambivalente do “se
sentir inclusivamente Francês”. Memmi chama atenção para a breve influência de Aimé
Cesáire no pensamento de Fanon. A defesa da negritude foi recusada por Fanon que não via
nessa afirmação uma solução para o problema do racismo. Resistir ao erro branco não
significava contrapor uma visão negra.
Memmi formula sua própria hipótese, em torno da preferência de Fanon pela Argélia,
em detrimento da Martinica, como mecanismo fortalelecedor de uma identidade colonizada
que rejeita “a mãe terra” com o amadurecimento de uma consciência reconstituída. Quando o
colonizado finalmente redescobre a sua identidade, ele precisa encontrar fontes psicológicas e
materiais para levar adiante a luta contra o opressor.
Além das necessidades em torno da reconstrução da identidade, era preciso resgatar
seu passado e ter uma clara perspectiva futura. A Martinica não subsidiaria esse movimento
na concepção Fanoniana.

For the time being, at least, Martinique could help Fanon in neither of these
endeavors, neither in the negative nor positive effort to free himself. As a
department of France, Martinique still believed too much in its integration into the
French community to view it as an outsider. Martinique did not even dare imagine

400
MEMMI, Albert, CASSIRER, Thomas e TWOMEY, G. Michael, The impossible life of Frantz Fanon.,The
Massachussetts review, v. 14, No.1, winter 1973.
252

saparation from France. Revolt and armed struggle seemed scandalously matricidal,
even though the mother was suspected of not being a very good mother. Was Fanon
then going to fight alone? 401 (MEMMI, 1976, p.21)

A identificação de Fanon com a Argélia é entendida por Memmi como uma


experiência que o permite descobrir a África, que oferecia um patrimônio cultural e condições
para a luta pela libertação. A Argélia402 seria a substituta para a Martinica.
Fanon falava em unidade africana ou afro-asiática sem passar pela fase chauvinista,
nacional ou burguesa das lutas pela liberdade colonial. A sua resistência aos nacionalismos
aparecia com força após a etapa Argelina. Ele gradualmente se identificava com o destino da
Argélia, depois com o terceiro mundo e por fim com toda a humanidade.
Em Memmi, o abandono da negritude em nome do universal, aparece como uma
concepção errônea. Este autor fala em falso universalismo ou humanismo abstrato, baseado na
negligência de toda e qualquer identidade específica. A cultura universal é feita por elementos
particulares. Memmi vê um paradoxo no engajamento de Fanon na luta pela libertação
nacional Argelina que certamente possuía um caráter de movimento nacional.
No livro Por uma revolución africana é claro um manifesto mais marcadamente
nacionalista, já que este é dedicado à luta da Argélia pela libertação. A guerra franco argelina
embora inscreva-se no contexto histórico caracterizado pela eclosão simultânea e sucessiva de
diversos movimentos de libertação nacional apresenta suas particularidades próprias. Fanon
descreve o fenômeno da tortura como inerente à experiência colonialista na Argélia.
O papel desempenhado pelos intelectuais franceses na revolução argelina aparece com
força nos artigos reunidos no livro em questão. Para Fanon é um imperativo que os
intelectuais se posicionem a favor dos colonizados. O argelino resiste globalmente ao
colonialismo francês, não por simplismo ou discriminação, e sim porque todo Francês na
Argélia mantém com o Argelino, relações baseadas na força.
As críticas à esquerda e aos democratas franceses se direcionavam a ausência e a
superficialidade das suas posições mais altruístas, do que propriamente críticas a dominação
colonial. Fanon define a posição da esquerda francesa: “La guerra da Argélia tiende a
401
Ibid, p. 21. “Até o momento, ao menos, a Martinica não pode ajudar Fanon em nenhuma destas investidas,
seja no esforço negativo ou positivo de se libertar. Como um departamento da França, a Martinica ainda acredita
muito na integração junto à comunidade francesa para se ver como uma estrangeira. A Martinica nem ao menos
ousa imaginar se separar da França. Revolta e luta armada parece escandalosamente matricida, mesmo que a mãe
fosse suspeita de não ser uma mãe muito boa. Fanon iria lutar sozinho?”
402
O livro Por La revolución Africana expande o debate sobre a guerra Franco-Argelina e mostra o grau de
expansão das questões argelinas em relação à descolonização do universo mais amplamente Africano, além de
ilustrar os dilemas inerentes a militância de Fanon na FLN. O tom de manifesto do livro não diminui a análise
lúcida do caráter exploratório da colonização francesa na Argélia, alem de vincular o movimento de libertação
Argelina a amplitude do movimento de descolonização na África.
253

convertirse en Francia, en el seno de la izquierda, en una enfermedad del sistema francés tal
como la inestabilidad ministerial: las guerras coloniales son um tic de Francia, una parte del
panorama nacional, un detalle costumbrista.” 403
O democrata francês tem um compromisso com a negação da colonização francesa na
Argélia no que tange uma forte opressão militar e policial. Fanon contesta a incorporação
naturalizante da Argélia vista como prolongamento da França. Em tom de manifesto afirma
que depois da França ter domesticado durante mais de um século o povo Argelino, a França se
encontrava prisioneira da sua própria conquista e incapaz de desfazer essas relações ou essas
novas orientações.

Es necesario que los demócratas franceses vayan más allá de las contradicciones que
esterelizan sus posiciones si quieren efectuar una auténtica democratización con los
colonialistas. Á medida que la opinión democrática francesa tenga menos reticencias
su acción podrá ser eficaz y decisiva. Devido a que la izquierda obedece
inconscientemente el mito de una Argélia francesa, su acción se contenta con aspirar
a una Argelia donde reinará más la justicia y la libertad o, a lo máximo, una Argélia
gobernada menos directamente por Francia. El chovinismo pasional de la opinión
francesa respecto de la cuestión argelina hace presión sobre esta izquierda, le inspira
una prudencia excesiva, sacude sus princípios y la coloca en una situación
paradójica y rápidamente estéril.404 (MEMMI, 1976,P.96)

Fanon reivindica que a esquerda francesa se manifeste objetivamente contra o


colonialismo na Argélia, e que mantenha um posicionamento favorável ao movimento de
libertação da Argélia. A FLN pede às forças democráticas que se despojem dos seus ideais
difusamente humanistas e encarnem o rigor doutrinário de uma anticolonialismo.
A luta da Argélia marca um encontro com a totalidade, o que influi decisivamente nas
lutas anticoloniais. A vontade de libertação do povo argelino impossibilita a ficção da Argélia
francesa e ao mesmo tempo funciona como uma intimidação ao povo Francês, para que se
despoje da mentalidade colonialista.
O próprio lugar de identificação retido na tensão da demanda e do desejo é um espaço
de cisão. A fantasia do nativo é precisamente ocupar o lugar do senhor enquanto mantém seu
lugar no rancor vingativo do escravo. A pele negra e a máscara branca não formam uma

403
FANON, Frantz, Por La revolución africana, escritos políticos, Mexico: Fondo de Cultura económica, 1975.
P. 86. “É necessário que os democratas franceses possam ir além das contradições que esterelizam suas posições,
se querem efetuar uma autêntica democratização com os colonialistas. À medida que a opinião democrática
francesa tenha menos reticências, sua ação poderá ser eficaz e decisiva. Como a esquerda obedece
inconscientemente o mito de uma Argélia francesa, sua ação se contenta com aspirar a uma Argèlia, onde reinará
mais a justiça e a liberdade, ou no máximo uma Argélia governada menos diretamente pela França. O
chauvinismo passional da opinião francesa relacionada à questão faz pressão sobre esta esquerda, lhe inspira
prudência excessiva, sacode seus princípios e a coloca em uma situação paradoxal e rapidamente estéril.”
(Tradução nossa).
404
Ibid, P. 96.
254

divisão dual ou uma imagem duplicadora, dissimuladora do ser a partir de dois lugares
simultâneos. Aqui reconhecemos o problema liminar da identidade colonial e suas
vicissitudes.
O homem negro deseja o confronto objetificador com o outro. Este é visto como a
negação de uma identidade primordial. Se o sujeito desejado nunca é o eu essencial, o outro
projetado também não é ou outro verdadeiro, embora o outro projetado se sujeite a uma
medida de objetividade. Essa projeção sempre sugere uma falta ou uma desmedida. A
“estratégia de duplicidade”405 é elaborada como um indicio da falta dentro do qual a relação
do sujeito com outro se conforma.
Não é o eu colonialista, nem o outro colonizado, mas a perturbadora distância entre os
dois que constitui a alteridade colonial, o artifício do homem branco no corpo do homem
negro. É somente pela compreensão da ambivalência e do antagonismo do desejo do outro
que podemos evitar a adoção cada vez mais tentadora da noção da alteridade
homogeneizadora.

Vimos que o colonizado sonha sempre em se instalar no lugar do colono. Não em se


tornar um colono, mas em substituir o colono. Esse mundo hostil, pesado, agressivo,
pois que rechaça com todas as suas asperezas a massa colonizada, representa não o
inferno do qual todos desejariam afastar-se o mais depressa possível mas um paraíso
ao alcance da mão, protegido por terríveis molossos.406 (FANON, 1979, p.39)

Fanon propõe que, no sistema poder-saber que sustenta o colonialismo, é o homem


branco que reclama a categoria do outro, ou seja, há um monopólio do homem branco pelo
outro para assegurar uma ilusão do acesso à subjetividade. O interesse pela psicanálise,
especialmente pelo pensamento de Lacan no problema da identificação e na diagnose do
caráter neurótico da relação colonial, culmina com a investigação da dinâmica da alteridade
psicológica.
Reconhecemos os limites da nossa análise ao não enveredar por um rastreamento das
aproximações do pensamento de Fanon e da teoria psicanalítica. O que nos interessa
precisamente no escopo dessa reflexão é a possível aproximação entre a obra de Fanon e Said,
no que tange o problema da representação e o campo da historicidade.
Investigar o problema da oposição entre a estabilidade das identidades do colonizado e
do colonizador na sincronia e a instabilidade movida pela diacronia no âmbito do processo

405
As referências à psicanálise na produção fanoniana, especialmente o pensamento lacaniano, são muito
presentes na sua obra. Por uma questão de limites do nosso trbalho e respectivos objetivos da tese não devemos
desenvolver e rastrear a genealogia dessa apropriação.
406
FANON, Frantz, Os Condenados da Terra, RJ: Editora Civilização Brasileira, 1979. P. 39.
255

histórico nos ajuda a compreender alguns dilemas dos autores estudados e da sua respectiva
inserção no campo da produção pós-colonial.

A descolonização, sabemos, é um processo histórico, isto é, não pode ser


compreendida, não encontra a sua inteligibilidade, não se torna transparente para si
mesma senão na exata medida em que se faz discernível o movimento historicizante
que lhe dá forma e conteúdo. A descolonização é o encontro de duas forças
congenitamente antagônicas que extraem sua originalidade precisamente dessa
espécie de substantificação que segrega e alimenta a situação colonial.407 (FANON,
1979, p.26)

A originalidade da obra de Fanon, para Said vai muito além de uma reação defensiva
do colonizado, cujo principal problema consiste em aceitar implicitamente e não superar as
oposições básicas entre o europeu e o não europeu. Condicionado por uma dominação sem
remorsos, sua oposição dialética emerge, como se o nativo insurrecional, se mostrasse
cansado da lógica que o reduz, da geografia que o segrega, da ontologia que o desumaniza e
da epistemologia que o limita a uma essência. Fanon retrata a força do colonialismo
sustentada pela contraforça da resistência.
Fanon resgata a teoria de Lukàcs e a transfere para a ambiência do espaço colonial,
onde territórios, culturas, saberes e mesmo ontologias são reificadas. Para Fanon o
movimento totalizante é a violência insurrecional. A violência reúne mundos separados do
colonizado e do colonizador. A escrita de Fanon argumenta Said, oferece uma profunda
radicalização da teoria européia no desenvolvimento do confronto colonial.
Para Fanon, a consciência nacionalista pode levar com facilidade à rigidez estática,
que visa substituir as autoridades e os burocratas brancos por equivalentes colonizados. Não
há nenhuma garantia de que os funcionários nacionalistas não repetirão os velhos arranjos
coloniais. Fanon alerta para os riscos do nativismo e da xenofobia no processo de
descolonização. O tempo da libertação é reconhecido como um processo de ambivalência
identitária, de uma indecisão de papéis representacionais.
No livro Os condenados da terra, Fanon traça uma demografia da cidade colonial que
reflete sua visão da estrutura psíquica da relação entre colonizador e colonizado. O autor
alerta para a ameaça dos perigos da fixidez e do fetichismo das identidades, no interior da
consolidação das culturas coloniais. A demografia da cidade colonial reflete a sua visão da
dualidade psíquica da relação colonial. A estratégia da subversão possui um duplo registro, o
psíquico e o político.

407
Ibid, P. 26.
256

A leitura que Said realiza da apresentação dialética sujeito/objeto na obra de Fanon é


fundamentada por uma associação teórica com a obra de Lukács (História e Consciência de
classe408) e percebemos a sugestão de que essa dialética pode ser consumada e transcendida
através do processo de reificação. Este é originalmente um mecanismo de funcionamento do
fetichismo, da mercadoria que sintetiza, em termos práticos e teóricos, o obstáculo a ser
ultrapassado.
A questão da reificação se origina nos escritos de Marx e possui uma contrapartida
decisiva na teoria de Weber e seus respectivos processos de racionalização. O próprio Lukács
avalia sua obra de juventude como a consolidação de um mecanismo contraditório que se
desenvolve em paradoxo com o marxismo posterior. A sua análise da reificação encaminha o
argumento de que esta pode ser superada pela teoria da totalidade na consciência proletária.
A reificação da vida intelectual, especificamente a crítica, é o principal tema de Said
cuja leitura depende da abordagem Lukacsiana. Para Said, a tarefa da crítica é precisamente
reler o texto em termos totalizantes, como se a separação entre texto e mundo fosse lida como
a ilustração da reificação.
Seguimos os rastros de um Lukács que pensa a História por meio da alteração das
formas estruturais através do qual se dá o confronto do homem com o seu meio conformador
da objetividade do processo de vida. Lukács, em geral, é associado ao historicismo alemão,
quase como um tributário, devedor de uma percepção que problematiza a relação sujeito–
objeto e que faz do observador o próprio objeto.
Se nos orientamos pela análise da obra de Lukács realizada por István Mészáros,409a
fragilidade da totalidade e sua distância em relação ao suporte histórico é patente. A categoria
de mediação deveria ser plenamente saturada de concretização. Essa fragilidade dificulta a
superação do dualismo entre sujeito e objeto.
A adesão ao marxismo é vista nesse contexto como processual e tem relação direta
com a centralidade da dialética na obra Lukács. Para Meszáros o livro, História e consciência
de classe define a questão da totalidade num alto nível de abstração e generalização. A
totalidade nesse contexto significa a realidade concreta ilustrada por meio do processo
histórico social.

408
O contexto de produção desse livro representa a culminância da mudança de perspectivas. É por meio desse
livro que podemos compreender duas categorias centrais na dialética de Lukács, os conceitos de mediação e
totalidade. A consolidação do marxismo em Lukács provocava o enquadramento da totalidade na realidade
concreta.
409
MÉSZÁROS, István, O conceito de dialética em Lukács, SP: Boitempo Editorial, 2013.
257

O primeiro Lukács foi incapaz de formular o conceito de “totalidade concreta”


porque não estava em posição para conceber essas mediações que poderiam
transcencer os “detalhes, fragmentos, coisas isoladas do “imediatamente dado” na
unidade última de uma totalidade dialética em mutação dinâmica. A descrição de um
conglomerado não mediado, segmentado, não interconectado e congelado de coisas
discretas só poderia gerar um conceito igualmente estático de totalidade; um
nostálgico “postulado de valor” da unidade. Na época em que Lukács escreveu
História e Consciência de classe, sua visão mudou qualitativamente.410

Mediante o conceito de totalidade, Lukács enfrenta o problema da mediação e sua


concretude que é dinamicamente mediada pela realidade histórica. O encontro com o
marxismo estabelece respostas para esse dilema através das atividades práticas críticas.
Meszáros sintetiza a importância da obra em questão, afirmando que esta levanta elementoss
acerca da compreensão da relação dialética entre “sujeito e objeto”, “alienação e
objetificação”, “realidade e reflexão”.
O próprio Lukács considera História e Consciência de Classe um livro repleto de
perspectivas idealistas, um esforço para ir além de Hegel por intermédio de Marx. Para
Mészáros a crise com o livro analisado produz um retorno ao realismo ingênuo após 1923.
Lukács assume no prefácio ao livro que o recurso à dialética hegeliana significava um duro
golpe à tradição revisionista. Lukács afirma que o problema do parentesco entre o
materialismo histórico e a filosofia Hegeliana aparece com toda a força na temática da
realidade.
No livro História e consciência de classe Lukács estabelece a centralidade do
proletariado como o grupo que corporifica e materializa a abstração da condição de toda a
humanidade. Nas condições de vida desse grupo social, a sociedade vive um paradoxo em sua
plenitude, porque nele o homem se perdeu dele mesmo, e ao mesmo tempo viveu a
culminância da consciência dessa perda.
O paradoxo aparece, na medida em que, a libertação ocorre na supressão das
condições de vida inumanas que resumem sua condição. A evolução da sociedade caminha
em duas rotas paralelas, a perspectiva de classe e o conhecimento da realidade produzido pelo
materialismo dialético.
O proletariado é a classe privilegiada, em termos de evolução de consciência, o
cognoscente do conhecimento da realidade total. A meta final ou o telos parece ser a
culminância da totalidade, com a sociedade inserida em um processo. A luta oscilante se
reflete numa luta ideológica, pela consciência, pelo desvelamento ou dissimulação do caráter
de classe da sociedade.

410
Ibid, pp. 58/59.
258

Como o proletariado é impulsionado pela história, a agudização da consciência de


classe, surge na contradição dialética entre o interesse imediato e o fim último, entre o fator
individual e a totalidade.

O “reino da liberdade”, o fim da “pré-história da humanidade” significa


precisamente que as relações objetificadas entre os homens, que as reificações
começam a restituir seu poder ao homem. Quanto mais esse processo se aproxima do
seu fim, tanto maior é a importância da consciência do proletariado sobre sua missão
histórica, isto é, da sua consciência de classe tem de determinar cada uma dessas
ações. Pois o poder cego das forças motrizes só conduz “automaticamente” ao seu
fim, em direção ao autoaniquilamento, enquanto esse ponto estiver ao seu alcance.
Quando o instante da passagem ao “reino da liberdade” é dado de modo objetivo,
isso se manifesta com mais precisão no fato de as forças cegas impelirem para o
abismo de uma forma relamente cega, com uma violência cada vez maior e
aparentemente irresistível, e apenas a vontade consciente do proletariado pode
proteger a humanidade de uma catástrofe. Em outros termos, desde que a crise
econômica final do capitalismo entrou em cena, o destino da revolução (e com o ela
o da humanidade) depende da maturidade ideológica do proletariado, da sua
consciêcnia de classe.411 (LUKÁCS, 2012, pp. 173/174)

Lukács chama atenção para o caráter mercantil e desumanizante da apropriação da


força de trabalho como mercadoria pelo trabalhador. A auto-objetivação, o tornar-se
mercadoria revela a força do caráter desumanizado da relação mercantil. A reificação penetra
na consciência dos homens no desenvolvimento capitalista de maneira cada vez mais
profunda. Com a especialização do trabalho, perdeu-se toda imagem da totalidade.
Com base na leitura de comentadores da obra de Lukács, especialmente o chamado
primeiro Lukács, que se institui nas primeiras obras até a fronteira do aparecimento das
questões centrais do marxismo. Nos aproximamos dos vínculos entre Lukács e Simmel, no
que tange aos dilemas em torno da separação sujeito-objeto. O que nos interessa nas conexões
em questão, pode ser identificado pela analogia do fetichismo da mercadoria em Marx e o
destino dos nossos conteúdos culturais.
Recorremos à análise de Marcos Nobre412 para levantar questões estruturais em
Lukács. Nobre associa a objetificação da mercadoria com a objetificação do espírito. A
vinculação estreita Simmel-Lukács aparece nessa analogia das duas formas de objetificação.
Nobre levanta os problemas referentes ao desvinculamento do conteúdo econômico do
fenômeno da reificação. A associação entre o fetichismo da mercadoria como forma de
objetividade e o comportamento do sujeito definem a dimensão do projeto de Lukács.

411
LUKÁCS, Georg, História e Consciência de classe, estudos sobre a dialética Marxista, SP: Editora Martins
Fontes, 2012. Pp.173/174.
412
NOBRE, Marcos, Lukács e os limites da reificação, um estudo sobre História e Consciência de classe, SP;
Editora 34, 2001.
259

O autor citado procura ler a História e conciência de classe, levantando o debate sobre
o advento da filosofia da história. Se o historicismo mostra-se incapaz de explicar o
acontecimento histórico, transformando a realidade em coisa em si, Nobre mostra que
somente com a conceitualização do fenômeno da reificação, por meio da categoria de
totalidade, e da estrutura da forma mercadoria que a história se converte em ciência histórica.
O autor interpreta a crise posterior que Lukács vivencia com os escritos em torno da História
e consciência de classe em função do caráter historicista, weberiano, do livro no contexto de
adesão sólida aos princípios da relação entre economia e dialética no ideário marxiano.
O problema da identidade especulativa da consciência da classe operária e da teoria da
sociedade nos interessa e aproxima a teoria Lukácsiana da obra de Frantz Fanon.

Lukács não pretende nada menos do que apresentar o “estado da sociedade


moderna”, um estado em que os homens, por um lado, rompem, dissolvem e deixam
para trás de maneira sempre crescente as amarras meramente “espontâneas”, factual
–irracionais, mas que, por outro lado, levantam simultaneamente à sua volta _ nessa
realidade que eles mesmo engendraram – uma espécie de segunda natureza, cujo
curso se lhes opõe com a mesma impiedosa conformidade às leis (Gesetzmässigkeit)
com outrora as forças irracionais se lhes opuseram (mais precisamente; relações
sociais que lhes aparecem sob essa forma). 413 (LUKÁCS, 2012, p.110)

A passagem de uma constatação em torno da existência da reificação e da superação


desse fenômeno é nomeada por Nobre como contratendência da reificação. Esta diz respeito
ao binômio sujeito–objeto idêntico, o que demonstra a aproximação de Lukács com a teoria
leninista. O esvaziamento do maniqueísmo aparece através de um repertório do contingente, e
a perspectiva que aponta para o futuro demonstra que, no contexto global neocolonialista, as
fronteiras do colonizado e colonizador seriam progressivamente diluídas e a prática da
violência não será mais efetiva. A questão da violência aparece de forma ambivalente no livro
Condenados da terra, o que suscitou inúmeras leituras equivocadas desse componente da
obra de Fanon.
Devemos lembrar o contexto de produção do livro: a sua escrita foi contemporânea
aos últimos meses de vida do autor, consumido por um desejo e comprometimento de deixar
um legado que deveria apontar as complexidades da luta anticolonial e estabelecer orientações
para a reorganização da ex-colônia. Além da tipologia das doenças psicopatológicas que
envolveram os protagonistas da disputa colonial, havia uma convocação para a ampliação dos
horizontes da sua luta.

413
Ibid, p. 110.
260

Na obra citada, Fanon disserta sobre as desventuras da consciência nacional


argumentando que o futuro não traria a libertação e sim uma extensão do imperialismo, a
menos que a consciência nacional, no momento de sua vitória, se transformasse de alguma
maneira em uma consciência social. Percebemos uma desconfiança do nacionalismo
anticolonial, uma vez que esse é representado como uma derivação política da experiência
ocidental.
A questão nacional tal como concebida no livro Os condenados da terra nos remete ao
debate teórico sobre a questão das ontologias identitárias. Para alguns comentadores da obra
de Fanon, tal como Anthony Alessandrini414, essa preocupação se insere na segunda etapa da
sua obra.
O Fanon do livro Pele negra e máscaras brancas seria uma espécie de precursor do
pós-estruturalismo quando valoriza a genealogia das formações psíquicas do racismo,
enquanto o segundo Fanon, identificado pelas reflexões inerentes ao livro Os condenados da
terra, aparece como um teórico do humanismo pós-colonial.
Acompanhando a divisão da obra de Fanon realizada por Alessandrini, devemos
estabelecer um recorte privilegiador do segundo Fanon para uma aproximação com algumas
reflexões características da obra de Edward W. Said.
Alessandrini chama atenção para uma inspiração hegeliana na concepção de história
presente na parte intitulada Da violência, onde emerge uma visão da História na qual o
colonizado, por meio da violência emergente, vai inevitavelmente superar o colonialismo e
substituir os colonizadores.
No resto do livro, há uma progressiva reconsideração dessa possibilidade, em que o
contexto de substituição dos colonizadores por uma elite de colonos deve ser visto com um
certo grau de ceticismo. A continuidade dessa reflexão inibe uma visão maniqueísta do
processo colonial.
O autor aponta a inexistência de uma narrativa da culminância de um momento
histórico finalista e conclusivo, encarnada na práxis pós-colonial. Depreender essa
ambivalência da obra de Fanon significa um risco parcial, porque o autor produz uma leitura
crítica do racismo e do colonialismo, o que, por vezes, recorre à reafirmação de uma forma de
identidade mais autêntica que pode emergir da etapa pós-colonial.

414
ALESSANDRINI, Anthony, “The Humanism effect: Fanon, Foucault, and ethics without subjects”, Foucault
Studies, No.7, N. York: City University of New York, Setembro, 2009.
261

A oscilação entre uma ontologia crítica e a possibilidade da agência humana em torno


da resistência parece ser um dilema constante em Fanon. O dilema entre o maniqueísmo e o
humanismo mais universal permeia a obra de Fanon e parece visível na produção crítica da
sua obra, especialmente na leitura produzida por Homi Bhabha. Para este autor a negação do
outro sempre extrapola as bordas da identificação e revela um lugar perigoso onde se fundem
a agressividade e a identidade.

Entretanto, o sonho hegeliano de Fanon de uma realidade humana em-si-e-por-si é


ironizado, até satirizado, por sua visão da estrutura maniqueísta da consciência
colonial e sua divisão não-dialética. O que ele diz em [Os condenados da terra] a
respeito da demografia da cidade colonial reflete sua visão da estrutura psíquica da
relação colonial. As áreas dos nativos e colonos, como a justaposição de corpos
negros e brancos, são opostas, mas não a serviço de uma unidade superior. Nenhuma
conciliação é possível, conclui ele, pois, dos dois termos, um é supérfluo.415
(BHABHA, 2001, pp.99/100)

Para Bhabha, a ambivalência do pós-colonial em Fanon permite uma adequação que


pensa a diferença cultural como categoria enunciativa, contraposta a noções relativistas de
diversidade cultural ou ao exotismo da diversidade de culturas. Bhabha percebe no inteior de
uma visão hegeliana uma história esperançosa, a restauração de um eu existencialista
corporifica o subalterno e a demarcação psicanalítica visualiza traços neuróticos do racismo.
A história da alienação da natureza humana representada na condição colonial, mais
do que a artificialidade da opressão de um grupo sobre o outro, é o esvaziamento da condição
humana. A indagação do próprio self é atravessada pela projeção do outro, que desvia a sua
presença corporal, mediante a representação externa.
O sujeito colonial é sempre “sobredeterminado de fora”, por meio da fantasia e da
imagem, é ilustrado como localizado nas margens da história. Fanon parte das ambivalências
da identificação para as identidades antagônicas da alienação política e da discriminação
cultural. Bhabha considera que Fanon se precipita ao nomear o Outro e personalizar sua
presença na linguagem do racismo colonial. É do conjunto de tensões psíquicas e políticas que
pode emergir uma estratégia de subversão.
A condição de subalterno, daquele que tem que viver sob um signo necessário de
identidade, real ou imaginário, promove uma interrogação que pode desviar para o campo da
ambivalência a autoridade da fala. A leitura de Bhabha enaltece o potencial de ambivalência
que a instância subalterna “duplamente inscrita” possui, ao dimensionar a presença e a
ausência do sujeito.

415
BHABHA, Homi K. , O local da Cultura, BH: Editora da UFMG, 2001, pp. 99/100.
262

O subalterno ou metonímico não são nem vazios nem cheios, nem parte nem todo.
Seus processos compensatórios e vicários de significação são uma instigação à
tradução social, a produção de algo mais além, que não é apenas o corte ou lacuna
do sujeito, mas também a interseção de lugares e disciplinas sociais. Este hibridismo
inaugura o projeto de pensamento político defrontando-o continuamente com o
estratégico e o contingente, com o pensamento que contrabalança seu próprio “não
pensamento”. Ele tem de negociar suas metas através de um reconhecimento de
objetos diferenciais e níveis discursivos articulados não simplesmente como
conteúdos, mas em sua interpelação como formas de sujeições textuais ou narrativas
– sejam estas governamentais, judiciais ou artísticas. 416 (BHABHA, 2001, p.103)

Para Bhabha (2001), a relação entre poder e saber coloca os sujeitos em uma relação
de poder e reconhecimento que não se insere em uma simetria. A crítica do autor indiano
indica o sentido de uma relativa simplificação histórica e teórica em que o discurso e o poder
colonial são de propriedade exclusiva do colonizador, sendo que a plenitude do estereótipo
está sempre ameaçada pela falta.
Para Said, o problema da essencialização é visto como um progressivo abandono da
História. Há um imperativo em transcender as formulações direcionadas à questão racial ou
nacional. Para Said, todas as culturas e todas as sociedades constroem a identidade segundo
uma relação dialética entre o eu e o outro.

Se venho citando Fanon com tanta freqüência, é porque, a meu ver, é ele quem
expressa da forma mais intensa e decisiva a imensa guinada cultural do terreno da
independência nacionalista para o domínio teórico da libertação. Essa guinada
ocorre, sobretudo, nos países onde o imperialismo subsiste, depois que a maioria dos
outros estados coloniais já conquistou a independência: por exemplo, Argélia e
Guiné-Bissau. Em todo caso, só é possível entender Fanon se compreendermos que
sua obra é uma resposta a elaborações teóricas produzidas pela cultura do
capitlaismo ocidental tardio, recebida pelo intelectual nativo do terceiro mundo
como uma cultura de opressão e escravização colonial. Toda a oeuvre de Fanon
consiste na tentativa de vencer a rigidez dessas mesmas elaobraçãoes teóricas como
um ato de vontade política, de voltá-las contra seus próprios autores de modo a
conseguirem, nos termos que ele toma de empréstimo a Césaire, inventar novas
almas. 417 (SAID, 1993, p.332)

Para Fanon, é imperativo criar uma consciência social simultânea à liberação colonial.
A consciência social é tão importante que, sem ela a descolonização se converte meramente
em uma substituição de uma forma de dominação por outra. Na visão desses autores, o
nacionalismo ortodoxo seguiu o mesmo caminho trilhado pelo Imperalismo, ampliando a
hegemonia burguesa. A transição de uma consciência para outra, produz o reencontro com o
verdadeiro humanismo.

416
Ibid, p. 103.
417
SAID, Edward, W., Cultura e imperialismo, SP: Editora Companhia das Letras, 1993. p.332.
263

O imperialismo é lido como um encontro coletivo que revigora e redireciona o perfil


identitário dos nativos em direção a uma nova concepção de História. Said reconhece em
Fanon, um leitor de Lukács e afirma que a fragmentação e a reificação como efeitos perversos
do capitalismo, estariam presentes na visão sobre o colonialismo no livro Os Condenados da
terra.
Reconhcemos a importância da análise sobre a separação entre a consciência subjetiva
e o mundo dos objetos, elementos apropriados por Fanon que aparece com intensidade na sua
obra póstuma, Os condenados da Terra. Said refaz o percurso epistemológico da busca das
explicações lukácsianas que subsidiam a visão sobre o colonialismo de Fanon.
As imagens utilizadas por Fanon são orgânicas. O antagonismo cultural e político do
imperialismo são biológicas. Nas metáforas biologizantes, o colonialismo é um corpo
putrefado, e para o colonizado, a vida surge do cadáver em decomposição do colono. O
nascimento é associado ao surgimento de uma nova nação, e a morte atribuída ao estado
colonial.
As divisões entre colonizador e colonizado são exploradas, tal como na obra de Albert
Memmi418. A tese de Memmi objetiva um debate em torno da definição da identidade do
colonizado em relação ao colonizador. A representação do colonizador tem relação com a
sistemática das justificativas ideológicas do colonialismo. A ideologia que fundamenta a
dominação colonial deve partir da centralidade da superioridade do colonizador.
Nada pode escapar à engrenagem que articula e configura a vida econômica, política e
cultural da colônia. Tudo se estrutura e se define em função da empresa colonizadora. A
situação colonial é uma totalidade, constituída por interesses antagônicos e contraditórios. Na
primeira etapa da colonização essa contradição permanece latente, mascarada pela aparente e
provisória acomodação do colonizado.
A representação do colonizado tem estreita vinculação com a elaboração de um ideário
racista, que naturaliza um elemento cultural, transforma o fato social em essência atemporal.
O racismo resume e simboliza a relação que une colonizador e colonizado. O racismo é um
obstáculo intransponivel à assimilação. Dada a essência diferenciadora do racismo, o
colonialismo ganha, adquire uma essência metafísica que o situa além do tempo, fora da
historia em caráter permanente e imutável.

418
Albert Memmi nasceu na Tunísia em 1921. Durante a segunda guerra foi preso e levado para um campo de
trabalho forçado na Tunísia. Após a independência do seu país migrou para a França adotando a nacionalidade
Francesa em 1973.
264

Para Memmi, o colonialismo engendra um paradoxo na sua existência uma vez que
fabrica simultaneamente o colonizador e o colonizado e traz no seu interior elementos que o
fariam com que esse sistema se esgote. Nesse contexto, a mais grave carência do colonizado é
ser excluído do processo histórico. A condição de colonizado é contingencial e ocorre em
função do processo colonizatório. Memmi não acredita na assimilação, embora com aspectos
universalistas, esta se torne seja impossível por definição.
A assimilação e a colonização, vistas em sua antinomia tendem a confundir
colonizadores e colonizados e a suprimir a relação colonial. A colonização é um processo
falseador das relações humanas, que destrói as intituições e corrompe os homens. Percebemos
nesse contexto de representação sobre a colonização, afinidades com o pensamento de Fanon
no diagnóstico sobre as identidades indissociadas no processo de dominação colonial. A
liquidação da colonização é vista como condição para “a reconquista de si.”419

Para que o colonizador seja inteiramente senhor, não basta que o seja objetivamente,
é preciso ainda que acredite na sua legitimidade; e, para que essa legitimidade seja
completa, não basta que o colonizado seja objetivamente escravo, é necessário que
se aceite como tal. Em suma o colonizador deve ser reconhecido pelo colonizado. O
laço entre o colonizador e o colonizado é assim, destruidor e criador. Destrói e recria
os dois parceiros da colonização em colonizador e colonizado: um é desfigurado em
opressor, em ser parcial, mau cidadão, trapaceiro, preocupado unicamente com seus
privilégios, com sua defesa a todo preço; o outro em oprimido, partido no seu
desenvolvimento, conformando–se com o próprio esmagamento. Assim como o
colonizador é tentado a aceitar-se como colonizador, o colonizado é obrigado, para
viver, a aceitar-se como colonizado. 420 (SAID, 1993, p.84)

Quanto à questão Palestina, Memmi421 produz uma reflexão divergente de Said no que
tange a curiosa percepção de que Israel não representa uma dominação colonial. A dominação
dos Palestinos é inaceitável, embora Israel seja visto tal como a questão Palestina, um fato
nacional, que responde a uma condição difícil de ser vivida, representado no contexto de uma
aspiração coletiva alimentada de forma imaginária por uma relação primordialista com a terra.

419
MEMMI, A., Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, RJ: Editora Paz e Terra, 1977. p.
126
420
Ibid. p.84.
421
Essa reflexão pode ser localizada no livro Retrato do descolonizado árabe-muçulmano e de alguns outros,
diferente da reflexão do seu retrato do colonizado porduzido em 1950, esse livro versa sobre um debate
contemporãneo sobre o descolonizado e seus dilemas no período pós-colonial. A visão de que a descolonização
não se limitava a uma reivindicação econômica permanece. Memmi traça um panorama da situação dos estados
que se tornaram independentes e suas situações políticas e sociais. Ele apresenta na introdução do livro a
proposta do livro em questão como uma sequência do Retrato do colonizado, embora centrado numa realidade
nova. Sua escolha de objeto recai sobre o homem Magrebino, realidade próxima a sua vivência biográfica.
Memmi traça uma tipologia do ex-colonizado que define três situações; a do ex-colonizado que permaneceu no
seu país, portanto um novo cidadão de um estado independente, a do imigrante, que escolheu emigrar pra a ex-
metrópole e o filho do emigrado, nascido no país que recebeu seus pais.
265

A sua proposta se encaminha para uma solução negociada, com vistas à instauração de
dois estados, o que seria benéfico para palestinos e israelenses. O autor retifica o isolamento
dos palestinos, afirmando o envolvimento dos países árabes com a causa Palestina, e
identifica o apoio financeiro e político das várias nações árabes, que lhes forneceram armas,
dinheiro e sugestões táticas.
O mito do panarabismo que reforça o projeto da unidade árabe é questionado nesse
contexto. Memmi analisa desde o nasserismo até o projeto político de Sadam Hussein. O
esfacelamento dos mitos que permeia o mundo árabe contemporâneo, inclui a visão idealizada
do incômodo que o estado de Israel representa no Oriente Médio. Associado a esse mito
equivocado, unem-se os dois ideais, o da unidade árabe e o da extinção do estado de Israel
como pré-condição para a existência do pan-arabismo.
No âmbita da reflexão crítica sobre um ideal de sionismo concretizado no estado de
Israel, Memmi introduz sua reflexão sobre as nações erigidas no processo de descolonização.
Nesse sentido, o teor crítico dirigido as novas nações e seus desvios encontram-se de forma
conciliatória com o pensamento de Fanon e Said. Memmi fala de um projeto que já nasceu
caduco e que se esgotou antes de ter começado.

Ora, no interior das jovens nações, o tirano bloqueia tudo, reduz tudo a si e aos seus.
As nações descolonizadas são como filhos de idosos, que nascem débeis e doentios,
frutos ressecados antes de terem amadurecido. O projeto nacional do descolonizado
parece esgotado antes de ter verdadeiramente começado. Pois sua nação sofre de
uma deficiência histórica; nasceu tarde demais. As causas disso são múltiplas: o
adormecimento provocado pela colonização, que se prolonga como após a ingestão
de um sonífero, a letargia persistente do povo, a imprecisão da noção de território
nacional, que só recentemente se fixou, a aspiração sempre tentadora a um mesmo
conjunto supranacional. 422 (MEMMI, 2007, p.78)

Para Memmi o projeto nacional do descolonizado vive um paradoxo. Este teria


adquirido intensidade quando o nacionalismo europeu se enfraquecia no mundo ocidental. O
projeto nacional pós-colonial aparece como frágil e isolado, o que no caso árabe promove
uma propensão ao retorno do ideário da “nação árabe”, uma unidade mal nomeada e
artificialmente engendrada. As críticas ao nacionalismo imaturo dos países descolonizados,
podem ser vinculadas ao pensamento Fanoniano.
Said e Fanon vivenciam a problemática pós-colonial em busca da superação dos
essencialismos binários, construindo um apelo ao devir histórico, que no âmbito da sua
historicidade, pode responder, ainda que de forma contingencial, à problemática da

422
MEMMI, A. Retrato do descolonizado árabe-muçulmano e de alguns outros, RJ: Editora Civilização
brasileira, 2007.p.78.
266

representação. A inserção das diferentes identidades no interior do processo histórico atenua a


estabilidade ontológica da alteridade.
Said cita Fanon no livro Cultura e imperialismo como a contrapartida do mundo
colonial, verbalizando ecos de resistência e questionando os crimes de violência, de
eliminação e crimes de consciência da Europa imperialista. Se o imperialismo era um sistema
como verbalizava Sartre, a resistência deveria ser sistemática. Said resgata a dialética da
relação da Europa com os povos colonizados e corrobora que esta é uma criação do terceiro
mundo. Dialeticamente o humanismo europeu se constituiu por meio do esvaziamento da
humanidade dos colonizados.
Para Fanon o colonialismo é a organização de um mundo maniqueísta, de um mundo
compartimentado. O papel da violência como mecanismo libertador é a grande mediação de
libertação e reencontro com o seu próprio ethos. A violência e a contraviolência do
colonizado equilibram-se e correspondem-se numa homeogeneidade. A violência é
equivalente e reativa. O maniqueísmo do colono produz o maniqueísmo do colonizado. A
violência representa o encontro com a regeneração da identidade por meio da resistência. Esta
etapa representa a superação da reificação como já foi dito em termos Lukácsianos.
Se o aparecimento do colono significou “sincreticamente a morte da sociedade
autóctone, letargia cultural e petrificação dos indivíduos”, a vida do colonizado só poderia
ressurgir por meio da decomposição do cadáver do colono. A violência reveste caracteres
positivos e “formadores”. Parafraseando Fanon no livro, Condenados da terra; “a práxis
violenta é totalizante”, visto que cada um se transforma em um elo violento da grande cadeia.
Os grupos se reconhecem entre si na relação e a nação já está indivisa.

Ao nível dos indivíduos, a violência desintoxica. Desembaraça o colono de seu


complexo de inferioridade, de suas atitudes contemplativas ou desesperadas. Torna-
o intrépido, reabilita-o a seus próprios olhos. Memso que a luta armada seja
simbólica, e mesmo que seja desmobilizado por uma descolonização rápida, o povo
tem tempo de se convencer de que a libertação foi o assunto de todos e de cada um,
o líder não tem mérito especial. A violência ergue o povo à altura do líder. Daí essa
espécie de reticência agressiva com relação á máquina protocolar que os jovens
governantes se apressam a montar. Quando participaram na violência, da libertação
nacional, as massas não permitem que ninguém se apresente como “libertador”.423
(FANON, 1979, p.74)

Fanon analisa a fraqueza política dos partidos nacionalistas que exibem uma distância
em relação às massas e que se articulam em função de uma politização dos intelectuais
colonizados que estudaram nas metrópoles. O nascimento dos partidos nacionalistas nos
países colonizados é contemporâneo à constituição de uma elite intelectual e mercantil. A

423
FANON, Frantz, Os Condenados da terra, RJ: Editora Civilização brasileira, 1979. P. 74.
267

fração burguesa da sociedade colonial ocupa o lugar das principais lideranças dos partidos
nacionalistas.
Fanon traça uma analogia orgânica com a ideia de uma nação que possui um corpo
imenso, débil e uma cabeça racional, progressista, ambas as partes encontraram-se dissociadas
e sem vínculo orgânico. Os camponeses não se identificam com os partidos nacionalistas.
Estes fazem acordos com os colonialistas. Para Fanon os partidos nacionalistas desejam
derrubar o colonialismo, por outro lado entendem-se amigavelmente com os colonialistas.
A perspectiva nacionalista em Fanon é particular e constitui um grande guia de
orientação para a obra de Said, no que tange a reflexão crítica sobre a etapa nacionalista na
luta pela libertção colonial. Algumas das reivindicações concretas como; a supressão de
desvios humanos, trabalho forçado, limitação de direitos políticos, desigualdade salarial,
sanções corporais, vão se fundir e culminar com uma luta abrangente e menos definidora que
se limita à reivindicação nacional.
A consciência nacional é vista nesse contexto como uma mobilização parcial,
limitadora e frágil. A explicação para os desvios tem relação com o perfil das lideranças e as
dificuldades para superar a distância da burguesia nacional em relação à práxis popular.
A formação profundamente cosmopolita da burguesia nacional colonizada é vista
como uma limitação de perspectiva que compromete o caráter libertador dos movimentos
nacionais. Em seu ímpeto de projeção do desejo de tomar o lugar da burguesia metropolitana
burguesia colonial. Esta serve de intermediária para a transição para um capitalismo servil e
que sustenta um status parcialmente livre das amarras coloniais.
Para Fanon, a burguesia nacional comporta um comportamento mesquinho424, uma
imprecisão doutrinária que não representa a totalidade do povo, incapaz de dilatar sua visão
de mundo, o que gera a propensão para o fenômeno do chauvinismo ou outro extremo. A
apologia a uma unidade africana imprecisa, abstrata que retarda o processo de libertação. A
unidade pode se fragmentar em regionalismos, que se sustentados pela burguesia nacional
revelam-se incapazes de erigir uma solidez alternativa ao colonialismo.
Fanon descreve um movimento de diluição do ímpeto revolucionário das massas em
função do movimento oscilante entre a unidade africana e o retorno de um chauvinismo

424
Said cita a parte na qual Fanon caracterizava a burguesia nacional Argelina com teor de críticas a sua atuação
paritária com a metrópole. Said ressalta a divisão entre a burguesia nacional argelina e as tendências libertárias
da FLN. Após a eclosão da insurreição, as elites nacionalistas tentaram estabelecer paridade com a França. O
perfil assimilacionsita da colonização francesa fez com que os partidos nacionais oficiais se vissem forçados a
uma cooptação das autoridades dirigentes.
268

indesejável. O ideário da unidade africana caminha na contramão dos regionalismos


nacionalistas dirigidos por uma burguesia distanciada das massas populares.
Para Fanon “tudo repousa na educação das massas”, na elevação e amadurecimento do
seu pensamento, ou seja, um processo denominado politização. Politizar as massas não é falar
por elas, parafraseando Césaire, significa “inventar almas”. O demiurgo não pode ser
representado por um intelectual com a missão de dirigir as massas em nome delas.
O nacionalismo não é visto como uma doutrina política, nem um programa ainda que
abrangente, e Fanon reconhece os recuos e paralisações e admite que é preciso passar
velozmente pela etapa da consciência nacional à consciência política e social. A nação deve
ser uma idealização das massas e não de uma minoria privilegiada, tal como Fanon enxerga a
burguesia nacional.
Existe uma direção revolucionária etapista que Fanon admite a qual povos africanos
muitas vezes subvertem. No capítulo Desventuras da consciência nacional Fanon desenvolve
a ideia de que os povos Africanos muitas vezes chegam à consciência social sem passar pela
etapa da cosnciência nacional. Por isso se observa que nos países subdesenvolvidos, a
exigência violenta de uma justiça social desemboca paradoxalmente no tribalismo quase
sempre primitivo. O nacionalismo deve se transformar na cosnciência social, no humanismo
inevitável.

A expressão viva da nação é a consciência em movimento da totalidade do povo. É a


práxis coerente e esclarecida dos homens e mulheres. A construção coletiva de um
destino é a aceitação de uma responsabilidade na dimensão da história. O contrário é
a anarquia, a represssão, o aparecimento de partidos tribalizados, do federalismo,
etc. O governo nacional, se quer ser nacional, deve governar pelo povo e para o
povo, para os deserdados e pelos deserdados. Nenhum líder, por maior que seja o
seu valor, pode subsitutir-se à vontade popular, e o governo nacional deve, antes de
se preocupar com prestígio internacional, restituir a dignidade a cada cidadão,
enriquecer os cérebros, encher os olhos de coisas humanas, desenvolver um
panorama humano porque habitado por homens conscientes e soberanos.425
(FANON, 1979, p.167)

O colonialismo como estrutura perversa aniquila o passado do povo dominado. A


tarefa da desvalorização da história do período anterior à colonização se conforma numa
realização dialética. Fanon defende que a cultura é algo avesso a tradição, que precisa ser
ressignificada diante das necessidades da conjuntura histórica. Apegar-se a tradição e
contrariar a história. No país que luta contra a dominação colonial as tradições são instáveis.
Fanon apela para o universalismo, tal como em pele negra e máscaras brancas,
quando elabora uma apologia à “nação global”.

425
Ibid, p. 167.
269

Trânsfuga ou substancialista, o colonizado é ineficaz precisamente porque a análise


da situação colonial não é levada a cabo com rigor. Á situação colonial determina
em sua quase totalidade a cultura nacional. Não há, não poderia haver, cultura
nacional, vida cultural nacional, invenções culturais ou transformações culturais
nacionais no quadro de um domínio colonial. Aqui e ali surgem às vezes tentativas
ousadas de reativar o dinamismo cultural de reorientar os temas, as formas, as
tonalidades. O interesse imediato, palpável, evidente de tais sobressaltos é nulo.
Mas, esquadrinhando as conseqüências até seu limite máximo, percebemos que se
prepara uma desopacização da cosnciência nacional, um reexame da opressão, uma
abertura para a luta da libertação.426 (FANON, 1979, p.198)

Fanon fala do homem novo para uma nova totalidade que necessita de uma condição
inaugural para se contrapor à Europa e ao modelo que a dominação colonial impôs.
Reconhecemos que o dilema inerente à démarche explicativa de Said e Fanon não se limita ao
escopo das suas obras, esta se amplia como um grande problema epistemológico no campo
das Ciências Humanas.

426
Ibid, p. 198.
270

CONCLUSÃO

O dilema central entre o humanismo crítico e o ativismo político

Podemos iniciar a nossa conclusão, justificando o subtítulo que parece definir e


caracterizar o dilema central da obra de Edward Said. A oposição entre o ativismo político
que engendra uma produção voltada para o rastreamento do ethos nacional palestino e o
posicionamento teórico marcado por um humanismo mais universal, que rejeita as
essencialidades exclusivistas, parece ser o grande dilema de vida e percurso intelectual do
nosso autor. Said justifica essa conciliação por meio da metáfora do contraponto. Este autor
afirma: “é possível imaginar um humanismo literário que não seja desencarnado ou
desdenhoso da política.”427
Said afirma em seu livro Humanismo e Crítica democrática428 que não há nenhuma
contradição entre a prática do humanismo e a cidadania participativa. Para o autor palestino o
humanismo não significa um isolamento teórico ou uma perspectiva de retraimento
intelectual.

O humanismo é o emprego das faculdades linguísticas de um indivíduo para


compreender, reinterpretar e lutar corpo a corpo com os produtos da linguagem na
história, em outras línguas e outras histórias. Na minha compreensão de sua
relevância atual, o humanismo não é um meio de consolidar e afirmar que “nós”
sempre conhecemos e sentimos, mas antes um meio de questionar, agitar e
reformular muito do que nos é apresentado como certezas transformadas em
produtos de mercado, empacotadas, incontroversas e codificadas de modo acrítico,
inclusive aquelas contidas nas obras-primas agrupadas sob a rúbrica de os
“clássicos”. O nosso mundo intelectual e cultural não é hoje uma coletânea simples e
evidente de discursos eruditos; é antes uma discordância em ebulição de notações
não resolvidas, para usar a bela expressão de Raymond Williams para as articulações
interminavelmente ramificadas e elaboradas da cultura.429 (SAID, 2004, pp.48/49)

Said define que o humanismo pode se traduzir no nacionalismo defensivo nas


circunstâncias de dominação colonial. O resgate linguístico das culturas oprimidas, os
esforços por uma afirmação nacional por meio da tradição cultural, tudo isso pode ser
justificado no âmbito de um grupo ofuscado ou expropriado historicamente.
O autor reconhece que a sua formação teórica e acadêmica favoreceu inicialmente a
formação de um humanista não engajado, cuja área de especialização, inserida nos estudos
literários, procurava pensar esse objeto no interior de um abrigo mecânico da historiografia

427
SAID, E. Power , politics and culture Power, Politics, and Culture: interviews with Edward W. Said , N.
York: Vintage Books, 2002.p.215
428
SAID, Edward W., Humanismo e crítica democrática, SP: Editora Companhia das Letras, 2004.
429
Ibid, PP.48/49.
271

literária. Tudo indicava o afastamento de uma autocrítica ideológica do próprio campo de


inserção.
A dissociação do autor em relação ao contexto inerente à sua inserção é impensável. O
esforço político e a realização humanista sempre estão associados. Said infere as dificuldades
de se distinguir onde começa e termina a individualidade autoral e a imanência do domínio
público.
Os limites do humanismo europeu são mostrados pela experiência histórica do
colonialismo. Said recorre a Fanon para estabelecer os limites do humanismo europeu que em
alguma medida “se esboroa nas colônias”. Os novos humanistas devem se afinar com o
pensamento descentralizado e descolonizado dos tempos contemporâneos.
Qualificamos o humanismo saidiano de mundano pelas assertivas em defesa do caráter
histórico da produção do conhecimento. A premissa de uma natureza imperfeita de todas as
representações e dos seus vínculos estruturais com a mundanidade parece se associar às
teorias do poder em Foucault430 na medida em que pensa as expressões do conhecimento
como “contaminadas” por interesses políticos, ideologias e condicionamentos materiais
históricos.
A resignificação do termo multiculturalismo, com o qual o autor é equivocadamente
identificado, aparece como central na sua obra, na medida em que Said refuta esse termo
como um indício de um relativismo “indolente”. Ler um texto de um modo mundano e
integrador em oposição ao pensamento binário, não significa uma postura permissiva em
relação aos valores universais. Said distancia-se de um relativismo extremo que não permitia
definições ou posicionamentos políticos.
Os modelos negativos suscitados pela experiência moderna estão identificados pelo
nacionalismo, pelo entusiasmo religioso e pelo exclusivismo. Nesse contexto, o nacionalismo
é visto como perverso na medida em que traz como consequências: as narrativas separatistas,
o confronto das civilizações, o destino manifesto identificado pela superioridade de uma
cultura e as políticas de intervencionismo arrogante.
O entusiasmo religioso é antissecular, antidemocrático, ou seja, anti-humanista por
essência. O exclusivismo pode ser rastreado por meio de um discurso eurocêntrico e por
narrativas autoexaltadoras. As entidades conformadas pela mistura cultural jamais devem ser

430
A adesão ao ideário foucaultiano encontra algumas limitações. Desenvolvemos esse debate na parte referente
à análise do Orientalismo e sua linhagem teórica. Said observa limitações no método de Foucault porque
enquadra esse método como determinista, onde utod é aculturado, assoimilado, especilamente no livro Vigiar e
Punir. A leitura desse livro inicia as refutações de uma adesão mais automática ao método de Foucault.
272

retratadas através de uma identidade ficcionalmente única. O eurocentrismo é um resultado


previsível dessa postura anti-humanista e, portanto, exclusivista.
O eurocentrismo relaciona-se com o pressuposto da universalidade de alguns valores
ocidentais, especificamente europeus. Esse ideário nos remete ao conceito de sistema mundo
moderno e ao teórico Immanuel Wallerstein.431
Wallerstein defende que o chamado universalismo europeu sempre foi um fenômeno
parcial e distorcido, promovido por intelectuais que defendiam os interesses dessa classe
dirigente. Segundo o autor, a humanidade vivencia um confronto central entre o
universalismo europeu e o universalismo universal. A obra desse autor introduziu um duplo
deslocamento epistemológico. Tanto a teoria de Fanon, como a teoria da dependência
propunham leituras do ponto de vista da diferença colonial. O descentramento confirma que a
origem da enunciação intelectual é precisamente um lugar geograficamente marcado.
A centralidade de alguns valores pensados de forma inevitável e evidentes por si
denotam a universalidade inescapável de algumas ideias como: democracia, direitos humanos,
superioridade da civilização ocidental e submissão ao mercado.
Wallerstein432 discute criticamente o monopólio da modernidade como a encarnação
dos verdadeiros valores universais, quase como uma necessidade histórica.433 No âmbito
desse debate, o autor resgata o conceito de Orientalismo. A sua definição começa pelo
Orientalismo como uma modalidade, uma corrente dos estudos sobre o Oriente.
A localização da origem e perspectiva desses estudiosos permeia a tese do
eurocentrismo na respectiva corrente intelectual. Sua reflexão identifica marcos temporais em
torno das mudanças, e da identidade dos orientalistas, o que acaba por demarcar o período em
que tais premissas culturais eram vistas com forte teor crítico.
A origem dessa reflexão antiorientalista é atribuída ao autor Anouar Abdel-Malek434
que teria publicado um artigo em 1963, onde descrevia os impactos das mudanças políticas no

431
Immanuel Wallerstein se sobressaiu como um arguto crítico da globalização capitalista e da política
internacional dos EUA. Especialista em macroeconomia se debruçou sobre o continente africano e desenvolveu
questionamentos acerca da existência da realidade denominada “terceiro mundo”. O sistema capitalista mundial
tem sua origem na Europa e na América. O princípio da economia mundial como um todo, como uma realidade
viva, poderosa pode dar origem a um sistema internacional como o socialismo
432
WALLERSTEIN, Immanuel, O universalismo europeu, a retórica do poder, SP: Boitempo Editorial, 2007.
433
Algumas análises sobre a obra de Wallerstein vinculam sua teoria do sistema-mundo moderno, como produto
da teoria de dependência e do pensamento de Fanon. Wallerstein concebeu o sistema-mundo moderno em termos
de centro-semi-periferia e periferia, três unidades hierarquicamente ordenadas que se estruturavam no interior de
uma economia capitalista. A influência da obra de Fanon e da teoria da dependência teria mostrado que na
periferia também se produziam teorias que questionavam o valor universal da conceitualização gerada no centro.
434
Seu artigo denomina-se “Orientalismo em crise”, onde o autor analisa as premissas históricas dos
orientalistas. O Oriente seria uma entidade abstrata passível de uma abordagem essencialista. Suas críticas
constavam do livro Social Dialetics, Civilization and Social Theory. Wallerstein alega que o impacto da
273

meio acadêmico a partir das lutas anticoloniais. Seus argumentos abrangiam as críticas ao
Oriente como entidade abstrata e essencialista.
Wallerstein situa a tese de Said sobre o Orientalismo e a problemática sobre os riscos
de uma visão ocidentalista com base nas mudanças históricas que possibilitaram a emergência
das críticas pós-coloniais ao orientalismo como “estilo de pensamento”.
Wallerstein compara os llimites do debate suscitado por ambos os autores, Said e
Malek. O impacto das teses de Malek se deu mais diretamente no campo acadêmico, ilustrado
pelo abandono da categoria de orientalista nos estudiosos que privilegiavam os estudos
asiáticos e norte-africanos.

É uma questão de ser capaz de ver e compreender a prática humanista como um


aspecto integrante e parte operante desse mundo, e não como um ornamento ou um
exercício de retrospecção nostálgica. O eurocentrismo bloqueia essa perspectiva
porque, como diz Wallerstein, a sua historiografia desorientadoramente distorcida, o
caráter paroquial de seu universalismo, as suas pressuposições não examinadas
sobre a civilização ocidental, o seu orientalismo, suas tentativas de impor uma teoria
do progresso uniformemente direcionada, tudo acaba por reduzir, em vez de
expandir, a possibilidade de uma inclusividade universal, de uma perspectiva
genuinamente cosmopolita ou internacionalista, de uma curiosidade intelectual. 435
(WALLERSTEIN, 2007, p.76)

O humanismo significa confirmar as escolhas teóricas e a posição política do autor. A


leitura representa a transição do específico para o geral. Uma leitura crítica visa localizar
gradativamente a inserção do texto no contexto mais amplo, perceber as relações e as
influências conformadoras do mesmo.
A contraposição entre a teoria pós-estruturalista e o suposto humanismo deveria
considerar as forças sociais que atuavam sob a perspectiva subjetiva e a historicização do
indivíduo.
O humanismo saidiano não se localiza no contexto Iluminista, já que percebe a
identidade como um processo contínuo. Said pretende diferenciar as identidades de acordo
com as distinções culturais, provocadas pelas circunstâncias materiais ou da vida real dos
indivíduos que sofrem as consequências do espólio, da colonização e da marginalização.

Pertencemos ao período do colonialismo e da resistência a ele; mas também


pertencemos a um período de extraordinária elaboração teórica, das técnicas
universalizantes da desconstrução, do estruturalismo e do Marxismo Lukácsiano e
Althusseriano. Minha solução caseira das antíteses entre envolvimento e teoria
consiste numa perspectiva ampla que permita enxergar tanto a cultura quanto o
imperialismo, e da qual se possa observar a vasta dialética histórica entre ambas,

publicação das ideias de Malek foi pequeno, se comparado ao livro Orientalismo, a invenção do oridente pelo
ocidente de Edward W. Said, publicado 15 anos depois.
435
Ibid, Página 76.
274

mesmo com o risco de perdermos suas miríades de detalhes. Procederei supondo que
uma totalidade cultural não é coesa, mas que muitos setores importantes dela podem
ser apreendidos operando juntos em contraponto.436 (SAID, 1993, p.249)

A ideia de Palestina acaba sendo inseparável do amplo projeto humanista em que Said
se envolvia, o resgate do humanismo em detrimento do projeto imperialista europeu. Said
seria tributário ao projeto humanista de Fanon, que via no terceiro mundo um espaço que
suscitaria uma nova história. O humanismo referencial de Said define que a compreensão
reflexiva emana da própria mente. O humanismo implicava o desenvolvimento de uma lógica
compreensiva realista e dialética, distante de um idealismo “desencarnado”.
O caráter secular do humanismo saidiano encontra ecos na teoria viquiana, na
associação da valorização das realizações humanas e do esvaziamento da religião, vista no
contexto dessa obra, como uma expressão da alienação das capacidades da imaginação
humana, um sistema de impostura ideológica e autoridade coercitiva.

Más adelante, à medida que se intensificó mi participación em la política palestina,


seguí considerando que mi contribuición surgia, ante todo, de mi sentido de la
historia y la firmeza y sentido de possibilidad human que estudo que me había
aportado el extenso estudi de la obra de Vico. 437( OWEN, 2006, p.205)

Said conclui o livro, Cultura e Imperialismo parafraseando Erich Auerbach quando


afirma que “o nosso lar filológico é o mundo”, e não a nação ou o escritor individual. Essa
definição envolve o projeto humanista saidiano que atua na contramão da especialização, do
mundo individualizado, onde a produção intelectual é equivocadamente uma atividade
privada sem grandes consequências políticas.
Seu projeto faz supor que a atividade da escrita e da critica não podem ser atuações
neutras. Nesse sentido, Said propõe o método do contraponto, do ponto de vista de uma
análise definida como global, na qual textos e instituições são abordados em funcionamento
conjunto.
A metáfora musical parece definir a análise global e contrapontual que não pode ser
pensada como numa sinfonia. Essa leitura mais parece um conjunto atonal, onde temos que

436
SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo, SP: Editora Companhia das Letras, 1993.p. 249.

437
OWEN, Roger, Conversación com Edward W. Said, In:BHABHA, Homi e MITCHELL, W. J. T. (comps.)
Edward Said, Continuando la Conversación, Buenos Aires: Paidós, 2006. P. 205. “Mais adiante á medida que se
intensificou minha participação na política palestina, segui considerando que minha contribuição surgia, antese
de tudo do meu sentido da história, a firmeza e o sentido da possibilidade humana que estudo e que me havia
chegado pelo extenso estudo de Vico.” (tradução nossa)
275

levar em conta todos os tipos de práticas espaciais, geográficas, retóricas, inflexões, limites,
inclusões e proibições. Todas tendem a elucidar uma topografia complexa e irregular.
Podemos inferir que a questão central para Said está circunscrita na vinculação entre a
história e a representação cultural. O problema do dilema inerente a associação entre agência
histórica e pensamento pós-colonial representa uma trajetória em contraponto no seu percurso
biográfico. Said fala desse dilema em várias entrevistas, quando se refere ao período de início
da sua inserção em Columbia, e das posteriores demandas de um envolvimento com a questão
palestina.

Contudo, como frisei em minha apresentação, uma grande parte do que considero
ser uma experiência autobiográfica interessante e de valor teve de se manter distante
da minha atividade profisisional. Esse foi certamente o caso quando comecei a
ensinar em Columbia – eu podia ser considerado duas pessoas: havia o professor de
literatura, havia também outra pessoa que, como Dorian Gray, fazia coisas que não
podiam ser faladas ou comentadas de maneira alguma. Só mais tarde começei a
perceber o quão interessado eu estava no fato de que podíamos nos
compartimententar de formas diversas, e o problema não é exatamente integrar os
fragmentos; não estou certo que possamos integrar coisas díspares, tendemos a
perder alguns de seus pedaços e procuramos por fórmulas que possam fazer isso. 438
(WILLIAMS, 2007 pp.225/226)

Said fala da metáfora da travessia, e cita Raymond Wiliams439 como alguém que
aborda a questão dos limites e das fronteiras, além da experiência da migração. O autor
resgata os livros Orientalismo e Beginnings para refletir sobre a necessidade de se postular os
pontos iniciais do processo de produção do conhecimento. A vida acadêmica não exclui as
afiliações políticas, que podem significar um reencontro com a própria identidade, velada pela
inserção teórica. Said critica o desinteresse de Williams pela relação entre a cultura e o
imperialismo e justifica que isso tem relação com a sua escassa vivência pessoal nesse campo.
A assertiva de que Williams se exime de uma análise sobre o papel do colonialismo na
literatura inglesa, confirma a ideia para Said, de que seria inviável abordar a cultura
metropolitana, sem levar em conta a experiência imperialista como constitutiva da sua
identidade. Said fala do desenraizamento e da insularidade do trabalho de Williams, o que
para alguém que define seu lugar de enunciação, parece um pecado imperdoável.
Para Said, a cultura tem sido usada mais como um termo de exclusão, do que um
termo cooperativo, isso é redimensionado em termos de um sistema de normalização e

438
WILLIAMS,R., Entrevista de Edward Said in: Políticas do modernismo, contra os novos conformistas, SP:
Editora da UNESP, 2007. pp.225/ 226
439
Para uma análise da aproximação entre as obras de Said e Williams ver: PARRY, Benita, “Overlapping
Territories and Interwined Histories: Edward Said`s Post Colonial Cosmopolitanism”, In; SPRINKER, M.,
Edward Said, a critical Reader, Cambridge: Blackwell Publishers, 1992.
276

legitimação. Para Williams a cultura é um processo mutável, mais do que um sistema estável,
uma arena de confrontos, na qual os conflitos entre os interesses de classe e os sentidos
sociais dos grupos contestados convivem.
Said percebe então a cultura como um forte elemento que marca a experiência da
exclusão ou como um elemento exportado. Nesse sentido, Said resgata o problema da
travessia, a problemática do exílio e a árdua noção de pertencimento.
Podemos situar Said, no lugar de um pensador que promoveu a desconstrução de
representações consagradas no meio acadêmico sobre o Oriente. Sua expectitva passava pela
necessidade de dar visibilidade à questão palestina, embora idealizasse a desmistificação da
voz dos subalternos, como a única legítima ou autorizada a falar das minorias.
Como uma crítica que declara sua localização histórica, e seus interesses políticos, o
método saidiano, procura sintetizar uma tensão entre o reconhecimento do objeto como uma
cultura descentrada, híbrida, e as exigências políticas no processo de liberação, na construção
e afirmação da identidade coletiva. O nacionalismo em Said é necessário, ameaçador,
positivo, afirmativo e problemático.

Such equivocation on the necessity of inscribing cultural identity before it can be


transcended, of working throught attachments in order to emerge beyond them,
suggests how Said`s work commutes between a position conserving specific
structures of communal subjectivity invented by dominated peoples, and that whitch
conceptualizes the subject as split, unfixed and disseminated and its implacably
hostile to what is perceived as the essencialist claims to perpetuate holistic cultural
traditions and a transcendent native self.440 (PARRY, 1992,p.30)

O Humanismo de Said não seria simplesmente uma contribuição à hermenêutica


filológica e a filosofia da história, aparece como uma reflexão sobre o lugar da narrativa nas
práticas da vida cotidiana. Said negocia constantemente com a tensão irresoluta entre o
estético e o social. O humanismo saidiano inaugura modos racionais de compreensão que
desafiam a dissociação entre o teórico e político.
O seu dilema aparece exatamente no clima onde a militância das críticas
antiessencialistas inibe a sua concessão de poder às coletividades orgânicas imaginárias,
construídas em condições de subjugação e conservadas no processo das lutas pela libertação.
A conciliação da posição antiessencialista originária do pensamento pós-colonial, com
a defesa das origens e identidades nacionais palestinas, pode ser admitida na necessidade de

440
Ibid, p.30. “Tal equívoco sobre a necessidade de inscrever a identidade cultural, antes que possa ser
transcendido ao trabalho sobre definições de forma, a ir além delas, sugere o quanto o trabalho de Said dialoga
entre uma posição conservando o indivíduo como dividido, solto e disseminado e sua implacável hostilidade ao
que é percebido como reivindicação essencialista para perpetuar tradições culturais hostis e uma identidade
nativa transcendente.”(tradução nossa).
277

um projeto político de solidariedade. Nesse sentido, Said resgata uma agenda de defesa da
agência histórica, do papel do intelectual como indivíduo público, não enquadradado, porém
comprometido. Said pode justificar uma ambivalência no interior da sua “coerência
conciliatória”, anteriormente polarizada entre o reconhecimento cognitivo da alteridade e a
necessidade política pela solidariedade.
Reconhecemos que a obra de Said abre uma amplitude de questões que devido ao
escopo do trabalho não puderam ser abordadas satisfatoriamente. Procuramos enfatizar
algumas linhagens afiliativas de Said, que pudessem fornecer pistas para a compreensão de
uma parcela da sua obra. Toda produção teórica complexa aparece através dos seus
paradoxos, procuramos rastrear esses pontos. Deixamos para um futuro trabalho sobre a sua
obra, a explicação de questões que não foram esgotadas. Esperamos que o trabalho tenha
cumprido a missão de analisar a questão do nacionalismo, a identidade e representação no
pensamento pós-colonial o que em certa medida, nos parecem reflexões centrais para a sua
historiografia.
278

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