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A VIDA DE JOÃO CALVINO

Alister E. Mcgrath

A VIDA DE
JOÃO CALVINO
A vida de João Calvino

© 2003, Editora Cultura Cristã

Publicado originalmente em inglês com o título A Life of John Calvin, por Blackwell Publishers.
Todos os direitos são reservados.

1ª edição em português — 2003


3.000 exemplares
Tradução
Marisa Kiihne Alvarenga de Siqueira Lopes

Coordenação e Produção Editorial


Vagner Barbosa

Editoração
OM Designers Gráficos

Capa
?
Publicação autorizada pelo Conselho Editorial:
Cláudio Marra (Presidente), Alex Barbosa Vieira,
André Luiz Ramos, Mauro Fernando Meister, Otávio Henrique de Souza,
Ricardo Agreste da Silva, Sebastião Bueno Olinto e Valdeci da Silva Santos.

EDITORA CULTURA CRISTÃ


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Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Editor: Cláudio Antônio Batista Marra

Sumário

Lista de Ilustrações ................................................................................ 9


Prefácio ............................................................................................... 11

1. Introdução ...................................................................................17

A pressão pela Reforma ................................................................ 20


A gênese de um enigma ................................................................. 31

2. Paris: A Formação de uma Mente .............................................37

Incertezas sobre o período em que Calvino viveu em Paris ............. 37


O Collège de Montaigu ................................................................. 44

A linha de estudos de Calvino em Paris .......................................... 48

Correntes intelectuais em Paris ....................................................... 57


A preocupação parisiense com o Luteranismo ................................ 65

3. Os Anos Errantes: Orleans e o Encontro com o Humanismo ....69

A natureza do Humanismo ............................................................. 70

O Humanismo jurídico francês ....................................................... 76

O comentário de Sêneca ............................................................... 78

Paris em 1533 ............................................................................... 81

O discurso do Dia de Todos os Santos .......................................... 83

4. De Humanista a Reformador: A Conversão ............................. 87

5. Genebra: O Primeiro Período .................................................... 99

A Reforma como um fenômeno urbano ........................................ 101

Genebra antes de Calvino ............................................................ 107

A chegada de Calvino em Genebra .............................................. 116

O exílio em Estrasburgo de 1538 a 1541 ..................................... 121


O retorno a Genebra ................................................................... 124

6. Genebra: A Consolidação do Poder......................................... 127

Calvino e a administração de Genebra ......................................... 129

O Consistório ............................................................................. 133

O episódio Servett ...................................................................... 137

A Revolução de 1555 ................................................................. 144

Os motivos do sucesso de Calvino .............................................. 146

7. O Cristianismo Segundo Calvino: O Meio ............................. 153

A persuasiva palavra de Deus ...................................................... 153

Calvino e a língua francesa ........................................................... 157

As Institutas da Religião Cristã .................................................... 161

8. O Cristianismo Segundo Calvino: A Mensagem .................... 171


A prioridade das Institutas ........................................................... 172

A estrutura do pensamento de Calvino ......................................... 174

As Institutas de 1559 : um resumo ................................................ 178

9. A Invasão de Idéias: Calvino e a França ................................ 203

A expansão da influência de Calvino na França ............................ 204

Os homens vindos de Genebra .................................................... 211

As dimensões políticas do Calvinismo francês .............................. 213

O perfil social do Calvinismo francês ........................................... 217

10. A Gênese de um Movimento ................................................... 223

Urbi et Orbi: a expansão da influência de Calvino ......................... 224

De Calvino ao Calvinismo ........................................................... 231

Um sistema religioso .................................................................... 237

11. Compromisso com o Mundo: O Calvinismo, o Trabalho


e o Capitalismo .........................................................................249
A tese de Weber ......................................................................... 252

O Capitalismo primitivo de Genebra ............................................ 255

Calvinismo e Capitalismo: o caso da França ................................. 265

A ética calvinista do trabalho e o Capitalismo ............................... 268

12. Calvino e a Formação da Cultura Ocidental Moderna ...........279

A legitimação religiosa do ativismo econômico .............................. 284

Calvino e as ciências naturais ....................................................... 286

O fenômeno da religião civil americana ......................................... 290

O Calvinismo e os direitos humanos naturais ................................ 292

Apêndice 1 Glossário de Termos Teológicos e Históricos ............... 295

Apêndice 2 Referências a Obras de Calvino ................................... 311

Abreviaturas ................................................................................... 313

Notas ................................................................................... 315


Bibliografia ................................................................................... 339

Índice ................................................................................... 351

Lista de Ilustrações

Gravuras situadas entre as páginas 169 e 170

1. 1. Parte do mapa da cidade de Paris, da autoria de Truschet e Hoyau (1552),


que mostra a área da universidade. O Collège de Montaigu (MONT ECV) está situado no
quadrante esquerdo, na parte de baixo do mapa. Observe que a parte de cima do mapa
indica o Noroeste e não o Norte. (Biblioteca de Bodleian, Oxford.)
2. 2. Ilustração de Jayme Leão sobre retrato de Francisco I, Rei da França, 1515-
47. (Musée du Louvre, Paris.)
3. 3. Francisco I liderando uma procissão de penitência (1528), em protesto
contra os insultos dos luteranos, em Paris. (Ilustração de Jayme Leão sobre quadro da
Bibliothèque Nationale, Paris.)
4. 4. Cartoon alemão (1520), anticatólico, contrastando a pregação de Lutero (“O
Senhor Deus diz isso”) com a pregação de seus oponentes católicos (“O Papa diz aquilo”....
.... Archiv für Kunst und Geschichte, Berlim.)
5. 5. Gravura de Guilherme Farel (1489-1565). (Archiv für Kunst und
Geschichte, Berlim.)
6. 6. Vista da cidade de Genebra (1641), a partir do sentido leste do Ródano. A cidade
antiga, centralizada em torno da catedral de Saint-Pierre, fica à direita na ilustração.
7. 7. Retrato de João Calvino (1509-64). (Ilustração de Jayme Leão sobre
quadro do Archiv für Kunst und Geschichte, Berlim.)
8. 8. Gravura de João Calvino, c. 1562. (Archiv für Kunst und Geschichte, Berlim.)
9. 9. Uma visão satírica das discussões religiosas na Alemanha (1598), retratando
Lutero, o Papa e Calvino discutindo furiosamente (painel da esquerda), para desânimo de
um fiel devoto (painel da direita).
10. 10. Retrato de Teodoro de Beza (1519-1605). (Ilustração de Jayme Leão
sobre quadro do Musée du Protestantisme, Paris.)
11. 11. Retrato do líder Calvinista francês, Gaspard de Coligny (1519-72). (Ilustração
de Jayme Leão sobre quadro da Bibliothèque du Protestantisme, Paris.)
Prefácio

Não há necessidade de desculpas que justifiquem a tentativa de um outro estudo sobre a vida e a época de
João Calvino. As questões religiosas, sociais, econômicas e culturais que se concentram em torno deste
extraordinário indivíduo permanecem profundas e inesgotáveis. Calvino provou ser uma figura de extrema
influência na história da Europa, mudando a perspectiva de indivíduos e instituições, no início da era
moderna, à medida que a civilização ocidental começou a assumir sua forma característica. Além disso,
nosso conhecimento e compreensão a respeito da Reforma na Europa, em geral, e sobre Calvino, em
particular, têm sido consideravelmente aprofundados durante os últimos anos, proporcionando novas
percepções com relação ao mundo de Calvino e ao seu papel nele.
Não mais se julga apropriado pensar na história em termos “das biografias de grandes homens”.
Entretanto, certos indivíduos – como Calvino, Marx e Lênin – certamente parecem haver exercido influência
suficiente sobre o processo histórico, de forma a emprestar certa credibilidade a essa noção. As idéias,
perspectivas e estruturas desenvolvidas por Calvino provaram-se capazes de gerar e manter um movimento
que transcendeu as limitações de sua situação histórica e de suas características pessoais. Sua importância
consiste, primordialmente, mas de forma alguma exclusivamente, no fato dele ser um intelectual que se
dedicava à área da religião. Descrevê-lo como um “teólogo” é apropriado, mas enganoso, dadas as atuais
associações relacionadas ao termo. Um teólogo é hoje, de modo geral, visto tanto pela Igreja quanto pelo
meio acadêmico como alguém marginalizado, irrelevante, cujo público limita-se a um círculo extremamente
restrito de colegas teólogos e cujas idéias e métodos derivam, geralmente, de outras áreas do conhecimento.
A originalidade, o poder e a influência das idéias religiosas de Calvino nos impedem de nos referirmos a ele
meramente como um “teólogo” – embora ele certamente o fosse – da mesma maneira que é inadequado nos
referirmos a Lênin como um mero teórico político. Através de sua extraordinária habilidade em dominar
outras línguas, contextos e idéias, de suas noções sobre a importância da organização e das estruturas sociais
e de seu discernimento intuitivo acerca das necessidades religiosas e das oportunidades de sua época, Calvino
foi capaz de forjar uma aliança entre o pensamento religioso e a ação, o que fez do Calvinismo um fenômeno
de sua época.
Para compreender ao menos parte da história religiosa, política, social e econômica da Europa Ocidental e
da América do Norte, nos séculos 16 e 17, é imprescindível que se alcance um entendimento a respeito das
idéias desse intelectual e da forma como elas foram criativamente interpretadas e difundidas nos escritos de
seus primeiros seguidores. Através do dinamismo extraordinário e do brilhantismo de seus colegas,
representantes e sucessores, as idéias de Calvino converteram-se em uma das correntes intelectuais mais
potentes que a história conheceu, proporcionalmente comparável, em sua influência e alcance, ao surgimento
mais recente do Marxismo. O alemão Ernst Troeltsch, sociólogo da religião, sugeriu que somente em dois
períodos
o Cristianismo foi capaz de transformar, de forma decisiva, a cultura e a civilização humana: durante a Idade
Média, através da síntese escolástica de Tomás de Aquino e através do Calvinismo, no início da Idade
Moderna. Envolver-se com o estudo de Calvino e seu legado é, portanto, lidar com um dos raros momentos
da história moderna em que o Cristianismo modelou a sociedade, em vez de se ajustar a ela.
Embora o Calvinismo possua um núcleo nitidamente religioso, deve-se enfatizar que ele não é um
movimento puramente religioso: como uma bola de neve rolando morro abaixo, ele acumulou material
adicional e o incorporou em sua substância, talvez até obscurecendo parte do material central de origem e,
portanto, mudando seu perfil e sua forma, por conseqüência. Mesmo hoje, estas idéias, sob algum aspecto ou
forma, ainda exercem uma influência, em grande parte não reconhecida, sobre a cultura ocidental. Pelo fato
de que o Capitalismo ocidental pode, em última análise, basear-se, ao menos
PREFÁCIO 13

em parte, sobre fundamentos calvinistas, pode-se razoavelmente alegar que até mesmo o próprio Marxismo
seja obrigado a estabelecer um diálogo com
o legado ocidental de Genebra.
Falar de Calvino é falar de Genebra. Ao mesmo tempo em que a frase “A Genebra de Calvino” é
carregada de implicações potencialmente enganosas, resultando, talvez, em interpretações incorretas acerca
do status e do âmbito de liberdade de ação de que Calvino gozava em Genebra, ela é útil pelo fato de destacar
a íntima interação que havia entre o homem e a cidade. O impacto de Calvino sobre a fama e o destino de
1
Genebra, até mesmo a ponto de criar uma mitologia em torno daquela cidade , é lugar-comum na história. Se
Calvino modelou Genebra, também é verdade que Genebra modelou Calvino. A influência da cidade sobre o
homem é frágil, sutil e alegadamente pequena, em comparação ao impacto do homem sobre a cidade. No
entanto, essa influência existe e está aberta à investigação histórica e à avaliação teológica. A insistência de
Calvino sobre o fato de que o Cristianismo não se ocupa com teorias abstratas, mas envolve-se diretamente
com as realidades social e política, levanta, inevitavelmente, a questão da possibilidade da situação de
Genebra ter assumido um status normativo para as reflexões de Calvino. Em certos aspectos, de forma
limitada, porém significativa, Genebra pode ter se tornado o paradigma de Calvino para a cidade de Deus.
Dada a importância dessa possibilidade, a presente obra objetiva traçar a sutil influência das considerações e
premissas econômicas e políticas, então existentes em Genebra, sobre o pensamento de seu líder Reformador.
Certos aspectos centrais do pensamento de Calvino podem ser, no final, um reflexo das políticas, práticas e
pressupostos contemporâneos, então existentes em Genebra.
É um prazer ser capaz de escrever tal livro, ciente de que a demonologia do passado está no que se espera,
ardentemente, que possa ser o seu declínio fatal. Os grandes estereótipos do passado, retratando Calvino
como um ditador sanguinário e o Calvinismo como um rigorismo moral sem sentido, fica-ram – apesar de
serem ocasionalmente ressuscitados em escritos polêmicos
– para trás. Talvez seja inevitável que uma obra desta natureza seja forçada ase envolver com uma série de
mitos, concernentes a Calvino e a sua herança, alguns, sem dúvida, estimados por aquelas pessoas que os
mantêm. Assim, a influente representação de Calvino, feita por Stephan Zweig, que o retrata como o grande
ditador de Genebra, un homme sans coeur et sans entrailles, governando aquela cidade desafortunada com
mãos de ferro, deve ser julgada pela ampla falta de qualquer fundamento histórico substancial como sendo,
de modo geral, inconsistente com fortes evidências históricas e baseada em um entendimento inadequado a
respeito das estruturas de poder e dos procedimentos de tomada de decisão operantes em Genebra.
Da mesma forma, o repúdio ao Calvinismo ou à sua manifestação inglesa no Puritanismo, visto como um
estraga-prazeres religioso, intelectualmente estéril e destituído de qualquer importância para a civilização
ocidental, devese amplamente às estratégias polêmicas de seus oponentes contemporâneos, os quais estavam,
compreensivelmente, ansiosos por desacreditar o movimento. A descrição conservadora do Calvinismo feita
pelo alto clero inglês nesses termos agressivamente negativos é pouco mais do que uma reação de defesa a
um movimento que era percebido – de forma correta, como demonstrou a Guerra Civil Inglesa, culminando
em uma vitória militar Calvinista
– como uma grande ameaça ao status quo político e religioso. O Calvinismo, com sua plausível visão política
da Cidade de Deus, provou-se um grande desafio para os interesses escusos da Igreja e do Estado ingleses, no
século
17. O tradicional e ilustre estereótipo anglicano do movimento, que repousasobre fundamentos históricos um
tanto frágeis, ainda exerce uma influência injustificada sobre seus críticos subseqüentes. Como Edmund
Morgan mostra em seu magistral estudo da família puritana:
Contrariando a visão popular, o puritano não era, de modo algum, um asceta. Se ele constantemente
exortava contra a vaidade das criaturas como algo erroneamente praticado pelo homem caído, ele nunca
defendeu a autopenitência pelo uso de roupas ásperas ou consumo de pães duros. Ele apreciava a boa
comida, a boa bebida e os confortos domésticos e, ainda que encarasse com bom humor os mosquitos,
2
considerava um verdadeiro transtorno beber água, quando acabava a cerveja.

O Calvinismo, igualmente, também não era inimigo do progresso intelectual. Pelos últimos cem anos, a
atitude de Calvino diante da teoria heliocêntrica de Copérnico, acerca do sistema solar, tem sido objeto de
ridículo. Em seu livro intensamente polêmico, History of the Warfare of Science with Theology (1896),
Andrew Dickson White escreveu:

Calvino tomou a frente, em seu Comentário sobre Gênesis, condenando a todos que afirmavam que a Terra não está no
centro do
PREFÁCIO 15

universo. Ele encerrou a questão, com a referência habitual ao primeiro versículo do Salmo 93, e
perguntou: “Quem irá se aventurar a colocar a autoridade de Copérnico acima da autoridade do Espírito
Santo?”

Esta afirmação é repetida, de forma bitolada, por virtualmente cada escritor que se dedicou ao tema
“Religião e Ciência” posteriormente, como Bertrand Russel, em seu livro, History of Western Philosophy.
Contudo, pode-se afirmar de forma categórica que Calvino não escreveu tais palavras nem expressou tais
sentimentos em quaisquer de seus escritos conhecidos. A afirmação de que ele o fez é encontrada a princípio,
de forma caracteristicamente não comprovada, em escritos do século 19, de autoria do deão anglicano de
3
Canterbury, Frederick William Farrar (1831 a 1903) . O tratamento atual do tema “Calvino e Ciência”,
entretanto, tem sido dominado por essa ficção. Ainda não se sabe quantos mais desses mitos tornaram-se uma
característica permanente da percepção que temos de Calvino. É lamentável que ele tenha sido
grosseiramente distorcido e que ainda persista uma vasta crença de que Calvino e, posteriormente, o
Calvinismo fossem inflexivelmente hostis em relação ao “novo saber” das ciências naturais.
A preocupação deste livro não é a de louvar ou condenar Calvino ou seu legado cultural, mas é,
primeiramente, a de delinear a natureza e a extensão desse legado. É uma tentativa de demonstrar a vitalidade
dessa incrível figura e de traçar a gênese e a estrutura de suas idéias e influência sobre a cultura ocidental. O
livro foi escrito na convicção não de que Calvino seja um santo ou um libertino, mas, apenas, de que ele
merece ser estudado profundamente, por qualquer um que esteja preocupado com a formação do mundo mo-
derno em geral e da cultura ocidental, em particular. Para auxiliar tal estudo foi fornecido um glossário de
termos históricos e técnicos cujo uso freqüente é inevitável em uma obra dessa natureza. Comumente, é
impossível explicar esses termos ao longo do texto e, então, o leitor é encaminhado ao glossário.
Essa obra deve muito a muitos. Devo agradecimentos à Academia Britânica por um generoso subsídio à
minha pesquisa, que me permitiu estudar
o início da Reforma Suíça com alguma profundidade; à Universidade de Oxford, pelo auxílio dado pela
Denyer and Johnson Travelling Fellowship, possibilitando-me realizar uma pesquisa sobre o final do
Renascimento e o início da Reforma em uma série de centros europeus e ao Wycliffe Hall, Oxford, por um
período de licença das obrigações acadêmicas, durante o qual essa pesquisa foi encerrada. Sou
particularmente grato às seguintes instituições, por sua hospitalidade e pelo uso liberado de seus invejáveis
recursos: a Biblioteca Nazionale Centrale, a Biblioteca della Facoltà di Lettere e Filosofia e a Biblioteca
Medicea Laurenziana (Florença); os Archives d’Etat, Bibliothèque Publique et Universitaire e o Institut
d’Histoire de la Réformation (Genebra); o Institute of Historical Research (Londres); a Bodleian Library
(Oxford); os Archives Nationales, os Archives de l’Université, a Bibliothèque Nationale e ao Musée de
l’Histoire de France (Paris); a Stadtsbibliothek Vadiana (St Gallen); o Archive et Bibliothèque de la Ville e a
Bibliothèque Nationale et Universitaire (Estrasburgo); a Österreichische Nationalbibliothek e a
Universitätsbibliothek (Viena); o Institut für Schweizerische Reformationsgeschichte, the Staatsarchiv e a
Zentralbibliothek (Zurique). Também gostaria de expressar meu particular agradecimento ao Professor
Francis Higman, diretor do Institut d’Histoire de la Réformation, em Genebra, por suas críticas inestimáveis
de uma versão preliminar deste texto. Quaisquer erros sobre fatos ou interpretação permanecem sob minha
inteira responsabilidade.

Alister E. Mcgrath

INTRODUÇÃO

No alto dos Alpes Suíços, uma torrente de águas jorra da base da geleira do Ródano, vindo, finalmente, a
formar um dos maiores rios da Europa. Antes que o Ródano tome a direção Sul, para desaguar no
Mediterrâneo, ele passa por um lago em cuja extremidade ocidental foi estabelecido um centro comercial,
nos tempos do Império Romano. Os pioneiros romanos, moven-do-se na direção Norte, rumo à Alemanha,
deram ao lago o nome de lacus lemannus e, ao centro comercial, Genava. Genava, inicialmente, teve o status
1
de uma vila (vicus) sob a dependência da cidade de Viena, capital do extenso território de Allobroges. Sob as
reformas administrativas de Diocleciano, ao final do século 3, Genava foi elevada ao status de cidade
(civitas) na Gallia Narbonensis e emprestou seu nome – então, alterado para Genebra – a uma grande diocese
medieval. O invejado status de Cidade Imperial foi, finalmente, alcançado pelos esforços de um dos seus
bispos, Ardutus, em 1153. Posteriormente, Genebra assumiu posição relevante no panorama mundial. O
Comitê Internacional da Cruz Vermelha foi lá estabelecido, em 1864, tendo seu conhecido símbolo sido
inspirado nas cores da bandeira suíça, que foram utilizadas, porém, de forma invertida. A Convenção de
Genebra introduziu um elemento humanitário nas guerras modernas. Muitas organizações internacionais têm
suas sedes na cidade. Tamanha é sua reputação internacional nos tempos modernos, que Genebra é hoje
considerada como o local propício para conferências sobre desarmamento. A esperança de estabilidade
internacional, tão freqüentemente destruída e tão freqüentemente reavivada, tende a se concentrar sobre essa
cidade.
Contudo, no século 16, Genebra foi o centro de um movimento internacional que ameaçou romper e
desestabilizar a ordem reinante na Europa ocidental e o qual, posteriormente, pareceu propício à criação de
uma ordem social radicalmente nova na América do Norte. A cidade tornou-se um símbolo de subversão
política e religiosa. As idéias provenientes de Genebra comprovadamente exerceram um estranho fascínio
sobre gerações de europeus e ainda mantêm alguma influência nos dias atuais. Apenas a menção da palavra
“Moscou”, durante os anos da Guerra Fria, evocava poderosas imagens de uma ordem social, política e
econômica que ameaçava destruir ou devastar a civilização ocidental; da mesma forma, a palavra “Genebra”,
durante uma certa época, evocava a lembrança de um homem e de seu movimento, que juntos conspiraram
para mudar a face da Europa do século 16 e para exercer uma poderosa influência sobre épocas e territórios
muito além. Este homem foi João Calvino, e o movimento a que ele deu origem, o Calvinismo.
Nossa história começa na Europa do século 16. A Europa dessa época, contudo, não deve ser confundida
com a Europa dos dias atuais. A emergência da Europa moderna deve ser datada a partir do século 18, com o
estabelecimento de entidades políticas independentes, baseadas em nacionalidades mutuamente exclusivas e
marcantemente diversas. Os estados nacionais passaram, então, a ser considerados como estruturas distintas e
totalmente independentes, as quais exigiam lealdade de seus habitantes com base em uma identidade nacional
2
comum a todos eles.
A Europa do século 16 era muito diferente. As fronteiras nacionais eram vagas e foram definidas por
limites mais tangíveis e relevantes de língua, cultura e classe. Um sentido de identidade nacional era, de
modo geral, ausente: os indivíduos tendiam a se identificar em relação a uma vila ou região, em vez de se
identificarem em relação à nação da qual eles eram parte. Cruzar essas fronteiras nacionais mal definidas era
algo freqüente e sem maiores formalidades. Estudantes migravam de uma universidade para outra, sem a
necessidade de um passaporte ou visto; mercadores cruzavam as grandes rotas comerciais transnacionais com
o mínimo de formalidades. Certas instituições do século 20 também, como as grandes corporações
multinacionais, têm atribuído pouca consideração à existência de fronteiras nacionais. Sem sombra de
dúvida,
INTRODUÇÃO

a principal instituição deste tipo, durante a Idade Média, foi a Igreja ocidental, cuja organização e influência
estenderam-se por toda parte. Essa instituição deveria passar por profundas mudanças no século 16 – e nessas
mudanças pode-se perceber refletida a transformação da própria Europa. Provavelmente, mais por acaso do
que intencionalmente – ou talvez por completa exaustão, após a Guerra dos Cem Anos – um equilíbrio de
poder foi, pouco a pouco, sendo estabelecido, ao final da Idade Média na Europa, tendo a Igreja assumido um
papel crucial para sua manutenção. Era, contudo, um equilíbrio instável: qualquer alteração no delicado
sistema de fatores que o integravam poderia abalá-lo ou, talvez, até mesmo destruí-lo. Reformar a Igreja
ocidental, com todas as conseqüências que isso traria em seu rastro implicava, portanto, em reestruturar,
potencialmente, toda a Europa ocidental.
À medida que o século 15 cautelosamente abria caminho ao século 16, a necessidade de reforma e
renovação da Igreja era evidente em todos os lugares. A Igreja ocidental parecia estar exaurida pelas
demandas da Idade Média, que tinha visto o poder político da Igreja e, especialmente, do papado, alcançar
níveis jamais conhecidos anteriormente. As engrenagens administrativa, legal, financeira e diplomática da
Igreja estavam bem lubrificadas e trabalhando com eficiência. Certamente, é verdade que os papas da
Renascença exerceram sua autoridade durante um período de decadência moral, de conspiração financeira e
de poder político tremendamente mal-sucedido, que severamente desafiava a credibilidade da Igreja como
guia moral e espiritual. Ainda assim, como instituição, a Igreja na Europa ocidental dava claros sinais de
solidez e permanência. Entretanto, havia os sinais de exaustão, de decadência. Muitos, na Europa ocidental,
estavam convencidos de que a Igreja havia perdido seu senso de direção. Que relação havia – cada vez mais
se questionava – entre o esplendor do papado da Renascença e a humilde figura de Jesus de Nazaré?
Estudo após estudo sobre a Igreja da Europa ocidental, durante o período em que se encerrava a Idade
3
Média, confirma o declínio gradual da Igreja para um estado de decadência. Havia uma ampla insatisfação popular com a ausência dos
clérigos e bispos de suas paróquias e dioceses, com a questionável moralidade da vida clerical, com os baixos padrões da educação clerical, com a aparente indiferença da Igreja frente às condições

econômicas e sociais do começo do século 16 e com a aparente ausência de direção espiritual dentro da Igreja. Havia um endurecimento das artérias eclesiásticas devido ao que era amplamente

questões seculares. Embora se proclamasse a guardiã dos valores da Cidade de


considerado como um excesso de envolvimento em

Deus, a Igreja dava sinais de estar profundamente envolvida com as necessidades, ambições, desejos,
prazeres e riquezas deste mundo.

A PRESSÃO PELA REFORMA


Vários fatores, que culminaram no início do século 16, levaram a uma crescente
insatisfação com a Igreja ao final da Idade Média. Deve-se enfatizar que estes fatores não
eram somente religiosos, mas envolviam, também, questões sociais, políticas e econômicas.
Para que se possa entender a Reforma e, especialmente, o papel crucial que João Calvino
desempenhou neste drama, é necessário que se considere o caráter multifacetado do apelo
que ela possuía para o povo da Europa ocidental no início do século 16, particular-mente na
França.

O AVANÇO NA ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS


No início do século 16 a alfabetização de adultos era cada vez mais co-mum, o que foi
possível graças ao surgimento da imprensa, ao crescimento da indústria do papel e ao
crescente apelo do movimento humanista. No início da Idade Média, o grupo favorecido
dos letrados era formado, quase que exclusivamente, pelo clero. Os livros eram produzidos
sob a forma de manuscritos, os quais tinham que ser diligentemente copiados à mão e eram,
geralmente, confinados nas bibliotecas dos monastérios, em razão de sua raridade. Com a
finalidade de preservar pergaminhos preciosos, palavras eram abreviadas, tornando os
manuscritos difíceis de decifrar.
O Humanismo, entretanto, tornou a educação de adultos uma conquista social, uma
habilidade que abriu caminho para o avanço e a melhoria social. O estilo da escrita
renascentista era gracioso e legível, contrastando radicalmente com o complicado rabisco
da escrita gótica, preferido pelos escolásticos. Com o advento da imprensa e com o
surgimento das novas fábricas de papel tornou-se possível, para uma pessoa leiga
alfabetizada, ter acesso a obras que, até então, haviam sido reserva exclusiva do clero. À
medida que recém-surgidas classes profissionais emergentes começaram a ganhar poder nas
cidades, gradualmente usurpando o controle das mãos das tradicionais famílias patrícias,
elas introduziram à sua prática e interpretação da fé cristã praticamente o mesmo
discernimento crítico e

INTRODUÇÃO

profissionalismo que empregavam em suas carreiras seculares. O monopólio do clero, em


4
relação à educação, estava, portanto, definitivamente rompido Esse avanço abriu caminho
para que os leigos tivessem uma postura mais crítica em relação às habilidades do clero e
uma crescente autoconfiança em assuntos de religião.
Uma avaliação das bibliotecas particulares da França burguesa, no século 16, demonstra
a importância da recente conscientização dos leigos em questões religiosas, tanto quanto
demonstra um avanço na educação, sugerindo a dependência do primeiro fator em relação
ao segundo. A maioria das famílias patrícias, na Florença do século 15, possuía cópias do
Novo Testamento. O Novo Testamento francês de Lefèvre, de 1523, dirigido “à tous les
chrestiens et chrestiennes”, juntamente com seu saltério francês, de 1524, eram bastante
lidos por toda a França e eram até mesmo distribuídos, gratuitamente, na diocese de
5
Meaux. Cópias dessas obras, juntamente com os comentários do Novo Testamento, de
Erasmo, Felipe Melanchthon e do próprio Lèfreve, eram freqüentemente encontradas dis-
6
putando espaço nas bibliotecas burguesas.
O crescimento dessa nova confiança dos leigos pode ser percebido pela atenção dedicada
7
ao Enchiridion, de Erasmo ou “Manual do Soldado Cristão”, publicado em 1503. Essa obra
foi reeditada em 1509 e entrou em sua terceira edição em 1515. Dali em diante ela tornou-
se um clássico, aparentemente passando por vinte e três edições nos seis anos seguintes. Ela
era avidamente lida pela classe leiga educada, por toda a Europa. A obra promovia a idéia
radical e – para as mentes leigas – atraente de que a Igreja poderia ser reformada e
renovada pelos leigos. O clero podia auxiliar os leigos na compreensão de sua fé, mas não
gozava de status superior. A religião é uma questão espiritual interior, na qual cada fiel
busca aprofundar seu conhecimento de Deus, pela leitura das Escrituras.
Significativamente, o Enchiridion minimiza o papel da Igreja, como instituição, para
enfatizar a importância de cada fiel, individualmente.
É sabido que o século 15, longe de testemunhar um declínio na crença religiosa, na
verdade vivenciou um crescimento impressionante da religião popular. Hoje se acredita que
a literatura que florescia ao final do século 15 e início do século 16, registrando queixas
8
sobre a Igreja – a qual já havia sido considerada como indício de um declínio na influência da religião, naquele período – indique a crescente habilidade e
disposição, por parte dos leigos, em criticar a Igreja com vistas a reformá-la. Por exemplo, o período de 1450 a1520 registrou um aumento

considerável da religião popular, na Alemanha. Praticamente cada critério objetivo


concebível – o número de missas ofertadas, a tendência à formação de irmandades
religiosas, as doações para obras de caridade, a construção de novas igrejas, a quantidade
de peregrinações feitas e o desenvolvimento da literatura popular religiosa – aponta para
9
um crescimento impressionante do interesse popular pela religião.
Um renovado interesse pela fé cristã, por parte de intelectuais, ligado à percepção da
necessidade de remodelá-la e renová-la para que pudesse reconquistar sua vitalidade,
também é evidente a partir da última década do século 15. O dinamismo, liberado pelo
surgimento admiravelmente súbito (e ainda bastante inexplicado) do misticismo espanhol,
nos anos de 1490, foi reprimido pelas reformas, instigadas pela Igreja Católica espanhola,
sob a liderança do cardeal Ximenes de Cisneros, levando a uma nova preocupação com a
educação religiosa e a um reavivamento das vocações religiosas na Espanha. A
Universidade de Alcalá e a Poliglota Complutense (uma versão da Bíblia em diversos
idiomas) foram, talvez, os resultados mais tangíveis dessas reformas. Havia um renovado
interesse nos escritos de São Paulo e Santo Agostinho, nos círculos humanistas italianos, o
que refletia o grande desejo humanista de retornar ad fontes – de volta às fontes originais da
fé cristã – para beber diretamente da nascente da tradição cristã, refrescante na sua fon-te,
em vez de ter que tolerar as águas poluídas e estagnadas do final da Idade Média. Um rio
era mais puro em sua nascente: por que deveria alguém ser obrigado a ler o Novo
Testamento através do filtro de comentaristas medievais obscurantistas, quando ele poderia
ser lido diretamente, na sua língua original?

O FENÔMENO DA RELIGIÃO PESSOAL


O surgimento de uma consciência individual, talvez uma das mais significativas
contribuições da Renascença italiana à formação de uma nova autopercepção por parte dos
europeus ocidentais no início do século 16, foi motivo da preocupação inédita em
relacionar o Cristianismo às necessidades do indivíduo. Um Cristianismo puramente
institucional, que se definia em termos institucionais e exteriores (freqüência à igreja,
aceitação formal dos ensinos eclesiásticos e assim por diante) era inadequado para este
novo período. Um dos mais sutis e significativos avanços na compreensão do significado
do Cristianismo passou a ocorrer à medida que uma religião que crescera habituada a se
expressar e a se definir por meio de formas

INTRODUÇÃO

exteriores começou a redescobrir seu apelo à consciência interior. Os escritores cristãos da


Renascença reconheceram a necessidade de inserir o evangelho, de forma concreta, na
realidade do indivíduo, como algo que poderia e deveria ser pessoal e internamente
10
apropriado. O tradicional apelo de Paulo e Agostinho à consciência interior do indivíduo
levou estes escritores a serem retomados com um interesse vibrante, seja nos sonetos de
Petrarca ou nas recentes obras religiosas dos teólogos, pregadores e comentaristas bíblicos
11
da Renascença.
Posteriormente, uma geração de intelectuais enfrentou o desafio da Re-forma iminente.
Em Paris, Lefèvre d’Etaples explorou a relevância do entendimento de Paulo a respeito da
fé para o indivíduo. Em Oxford, John Colet enfatizou a importância do encontro pessoal
com o Cristo ressuscitado para a vida cristã. Nos Países Baixos, Erasmo conquistou os
corações e as mentes da elite intelectual da Europa com a proposta de reforma delineada em
Enchiridion, que enfatizava uma fé pessoal e interior, à qual Erasmo opunha, de maneira
desfavorável, a preocupação com questões exteriores, característica da Igreja enquanto
instituição. Na Itália, o movimento comumente conhecido como “evangelicalismo católico”
ou “evangelismo”, com sua ênfase na questão da salvação pessoal, instalou-se de forma
consistente dentro da Igreja, chegando mesmo a penetrar profundamente em sua hierarquia,
sem que fosse considerado, de forma alguma, herético.
Deve-se ressaltar que as origens destes movimentos nada devem a Lutero. Enquanto
Lutero era ainda um monge desconhecido que lecionava, de forma pacata, para pequenas
audiências, em uma das mais insignificantes universidades da Europa, os grandes e famosos
respiravam, novamente, a brisa fresca do Novo Testamento. Uma ênfase inédita e difundida
acerca da religião, incorporada a uma forma pessoal e a um novo interesse nos escritos de
Paulo e Agostinho, parece ser característica de muitos grupos e indivíduos influentes nas
primeiras duas décadas do século 16. Tamanha era a aversão posteriormente relacionada ao
nome de Martinho Lutero, que semelhanças entre as idéias destes grupos e indivíduos e as
idéias de Lutero vieram a ser tratadas como evidência de heresia, por parte dos primeiros,
em lugar de serem consideradas ortodoxas, por Lutero. Lefèvre, em Paris, Guilherme
Briçonnet, em Meaux e os alumbrados (um grupo de escritores místicos), na Espanha,
somente se tornaram suspeitos de heresia quando as idéias de Lutero torna-ram-se
conhecidas. Ainda que a contribuição de Lutero para a Reforma seja avaliada de forma
positiva, deve-se admitir que ela teve, de um modo geral, o efeito negativo de fazer com
que perspectivas católicas e ortodoxas autênticas, potencialmente hábeis a injetar vitalidade
em uma Igreja exaurida, fos-sem consideradas heréticas. Pelo fato de gerar um clima de
suspeita, Lutero representou um sério transtorno à sua época.
Esta renovação de ambas as religiões, popular e intelectual, pouco se deve à atuação da
instituição eclesial, a qual, progressivamente, passou a ser vista como algo que explorava o
fenômeno da religião laica, sem que em nada contribuísse para o mesmo. A religião
popular, por exemplo, era centrada em torno das questões das comunidades rurais,
refletindo suas rotinas e estações. As necessidades agrárias destas comunidades rurais –
como a produção de feno ou a colheita – estavam intimamente relacionadas com os cultos
religiosos populares. Portanto, na diocese francesa de Meaux, podemos encontrar cultos
religiosos que invocavam os santos para evitar doenças em animais e crianças, a peste e o
12
mau olhado ou para assegurar que as jovens encontrassem maridos adequados. Talvez o
elemento mais importante no período final da religião popular da Idade Média tenha sido
um conjunto de crenças e práticas relacionadas à morte, nas quais a participação de um pa-
13
dre era indispensável. As despesas envolvidas na realização destas cerimônias para os
mortos eram consideráveis, um fato que se refletia no surgimento de fraternidades
religiosas dedicadas a prover ritos de passagem adequados para os seus membros. Em
épocas de crise econômica, um sentimento de hostilidade pelo clero era inevitável: o clero
veio a ser entendido como aquele grupo que auferia lucros em cima da ansiedade dos
empobrecidos, com relação aos seus familiares mortos.
Na Alemanha, o tráfico de indulgências era visto por Lutero como moral-mente ofensivo
e teologicamente questionável, uma exploração da devoção natural do povo por seus
mortos. Suas Noventa e Cinco Teses (31 de outubro de 1517) eram uma crítica direta
àqueles que alegavam que a alma de uma pessoa morta poderia ser, instantaneamente,
libertada do purgatório se
o pagamento da quantia apropriada fosse feito a um representante eclesial. O insulto era
somado ao abuso: as taxas pagas pelos alemães eram, ao final, encaminhadas à Itália, onde
financiavam as extravagâncias do papado renascentista. Lutero ofendeu-se,
particularmente, com a cópia do anúncio de Johann Tetzel, que promovia as indulgências:

Assim que a moeda tilinta no cofre, A alma salta para fora do purgatório!

INTRODUÇÃO

A doutrina de Lutero a respeito da justificação apenas pela fé tornava o purgatório e as


indulgências desnecessários: os mortos poderiam descansar em paz, por causa de sua fé,
que os tornava aceitáveis diante de Deus, e não devido ao pagamento de um incentivo à
14
Igreja. Na França, uma campanha de indulgência havia sido organizada por Leão X e
Francisco I, em 1515, com vistas a financiar uma cruzada; entretanto, em 1518, o corpo
docente da faculdade de teologia parisiense protestou contra algumas das idéias
supersticiosas levantadas por esta campanha. Eles condenaram como “falso e escandaloso”
o ensinamento de que “quem põe, na coleta para a cruzada, uma moeda de prata ou o valor
referente a uma alma do purgatório, liberta aquela alma imediatamente, a qual, sem dúvida
15
alguma, vai, então, para o paraíso”.
Da mesma forma, o surgimento de perspectivas evangélicas – quer sejam aquelas criadas
por Erasmo ou nos monastérios – levaram a instituição eclesiástica a ser vista como
reacionária, hostil aos novos ensinamentos e ameaçada pelo avanço e pela ênfase sobre a
apropriação individual da fé. A literatura que começou a surgir na década de 1520 sugeria
que o clero tinha um interesse escuso em preservar as condutas tradicionais e negligentes,
às quais pouco exigiam deles como professores, guias espirituais, agentes ou modelos de
moral. Rabelais não foi o único a revelar e ridicularizar os abusos monásticos, nem
o foi Erasmo a criticar a aridez do escolasticismo e as inadequações do clero.

O AVANÇO DO ANTICLERICALISMO
Dentre os fatores mais significativos para nosso entendimento a respeito do contexto em
que se deu a Reforma estava o novo desprezo que era dirigido ao clero por parte de uma
classe leiga cada vez mais educada e articulada. O fenômeno do anticlericalismo era geral e
não estava ligado, de forma específica, a alguma parte da Europa. Em parte, o fenômeno
retrata a deficiência do baixo clero. Na Itália renascentista era comum que os párocos não
recebessem treinamento algum; o pouco que eles sabiam haviam aprendido a partir da
observação, do auxílio e da imitação de outros padres. As inspeções feitas pela diocese
revelavam, regularmente, padres analfabetos ou que, aparentemente, faziam mau uso de
seus breviários. O despreparo dos párocos retratava seu baixo status social: em Milão, no
início do século 16, os capelães possuíam rendas inferiores às de trabalhadores sem
qualquer qualificação. Muitos recorriam ao comércio de cavalos e de gado para poder se
16
sustentar. Na França rural, durante o mesmo período, o baixo clero gozava, a grosso modo, do mesmo status social dos
andarilhos: com exceção de sua imunidade aos impostos, ao processo nas cortes civis e ao
serviço militar obrigatório não havia, virtualmente, distinção alguma entre eles e os
17
andarilhos daquele período.
Os privilégios fiscais de que o clero gozava eram uma fonte específica de irritação,
particularmente em épocas de dificuldade econômica. Na diocese francesa de Meaux, que
se tornaria um centro para os reformistas nos anos 1521 a 1546, o clero era isento de todos
os tipos de tributação, inclusive de taxas relacionadas à provisão e proteção de tropas – o
que provocava bastante ressentimento nos habitantes locais. Na diocese de Rouen havia um
clamor público acerca dos lucros excepcionais que a Igreja obtinha com a venda de grãos
18
em um período de grande escassez. A imunidade do clero em relação ao processo, nas
cortes civis, também separou o clero do povo. Na França, as crises de subsistência da
década de 1520 tiveram um papel importante na consolidação das atitudes anticlericais. Em
seu aclamado estudo de Languedoc, Ladurie sustentou que, na década de 1520, verificou-se
uma reversão do processo de expansão e recuperação, que havia sido típico de duas
19
gerações, desde o fim da Guerra dos Cem Anos. Dali em diante, a crise começou a se
agravar, manifestando-se através da peste, da fome e do êxodo rural para as cidades, na
busca por alimento e emprego. Um padrão similar tem sido atualmente identificado, em
20
relação àquele período, na maior parte da França, ao norte do Loire. Esta crise de
subsistência concentrou a atenção popular na total disparidade que havia entre a sorte das
classes mais baixas e aquela dos nobres e da instituição eclesiástica.
21
Na França, a vasta maioria dos bispos renascentistas era proveniente da nobreza, uma
tendência retratada em uma diocese após a outra. Em Meaux, os escalões superiores da
instituição eclesiástica eram provenientes da aristocracia urbana, assim como o alto clero
22 23
por toda a região de Brie. O mesmo padrão pode ser observado em Rouen, assim como na
terra natal de João Calvino, Noyon, onde a família de Hangest monopolizava os assuntos
eclesiásticos, exercendo consideráveis poderes como patronos, assim como suprindo a
24
maioria dos bispos da diocese, por mais de um quarto de século. Na província de
Languedoc, o alto clero era composto, geralmente, por pessoas que não pertenciam aos
quadros eclesiásticos, normalmente oriundas da nobreza e impostas às dioceses pelo
patrocínio real. Raramente residentes em suas dioceses, consideravam suas tarefas
espiritual e temporal apenas como fonte de renda, à qual não faziam jus e que lhes era útil
para a

INTRODUÇÃO

promoção de suas futuras ambições políticas, em outros locais. A origem nobre e o status
do episcopado e do alto clero os distanciaram dos artesãos e camponeses e os deixaram de
fora da crise de subsistência econômica da década de 1520. Durante esse período, essa
crescente tensão na relação entre o alto clero – em grande parte estabelecido nas cidades – e
25
a população rural constitui o cenário que deu origem à Reforma na França.

A CRISE DE AUTORIDADE NA IGREJA


26
Falar sobre uma “crise de autoridade” na Igreja, ao final do período medieval, parece
ser o mesmo que mostrar a uma vítima degenerada sua predisposição em recorrer a clichês
gastos e ultrapassados. No entanto, a frase é usada intencionalmente: ela revela, com
precisão, um aspecto da sociedade em geral e da vida religiosa, em particular, ao final da
Idade Média, que muito fez, a princípio, para promover o surgimento da Reforma e,
posteriormente, para inibir medidas efetivas em oposição a esta. Dois fatores podem ser
percebidos nesta crise. Em primeiro lugar, não havia clareza a respeito de quem detinha
autoridade para falar em nome da Igreja; segundo, devido a uma lamentável combinação de
diversos elementos, como incompreensão teológica, confusão política e impotência militar,
a Igreja se encontrou progressivamente incapaz de impor a observância da ortodoxia
(admitindo-se ser possível que se chegasse a um acordo a respeito do que o termo
“ortodoxia” designava. Se uma perspectiva teológica inédita surgisse, quem possuía
autoridade para determinar se esta era consistente com os ensinamentos da Igreja?).
A rápida expansão do setor universitário por toda a Europa ocidental nos séculos 14 e 15
levou a um aumento do número de faculdades teológicas, com o aumento proporcional do
número de tratados teológicos produzidos. Naquela época, como hoje, os teólogos tinham
que fazer algo para justificar sua existência. Estes trabalhos, freqüentemente, exploravam
idéias novas. Porém, que status era atribuído a estas perspectivas? A falha em delimitar
uma clara distinção entre perspectivas teológicas e dogmas da Igreja, entre opiniões
pessoais e doutrina comunitária, deu causa a uma grande confusão. É bem provável que
Martinho Lutero possa ter confundido uma perspectiva teológica com a doutrina oficial da
Igreja e iniciado sua proposta de reforma com base neste engano. O historiador pode até
mesmo reprová-lo por este lapso de compreensão, porém o Reformador saxão parece ser
um exemplo típico dos muitos que estavam desorientados e confusos diante da vastidão do
panorama teológico medieval, em seu período final. E, afinal, quem iria diferenciar entre
opinião e doutrina? O papa? Um conselho ecumênico? Um professor de teologia? A
deficiência em esclarecer questões tão cruciais contribuiu, grandemente, para a crise de
autoridade no último período da Igreja medieval. Na França, assim como em toda a Europa,
um “longo período de magnificente anarquia religiosa” (Lucien Febvre) instalou-se.
A desordem a respeito do ensinamento oficial da Igreja contribuiu consideravelmente
para o surgimento do programa de reforma de Lutero, na Alemanha. De crucial
importância, para Lutero, era a doutrina da justificação – que trabalha a questão da maneira
27
como o indivíduo entra em relacionamento com Deus. O mais recente pronunciamento
oficial sobre esta doutrina, conhecido naquela época, era proveniente de um reconhecido
corpo eclesiástico e datava de 418 – mais de um milênio antes da Reforma – e seus
enunciados confusos e ultrapassados pouco fizeram para esclarecer a posição da Igreja
neste assunto, em 1518. A Lutero parecia que a Igreja de sua época havia aderido ao
Pelagianismo, um entendimento inaceitável a respeito de como um indivíduo entrava em
relacionamento com Deus. A Igreja, segundo acreditava Lutero, ensinava que as pessoas
poderiam alcançar o favor e a aceitação diante de Deus com base em suas obras e seu
status, o que negava, portanto, todo o conceito da graça. Lutero pode, perfeitamente, ter se
enganado quanto ao seu entendimento – porém, havia tamanha confusão na Igreja, em sua
época, que não havia quem fosse capaz de instruí-lo a respeito da posição oficial da Igreja
quanto a essa questão. Até mesmo dentro do reduto papal soberano, em Avignon, uma
anarquia de idéias prevalecia. “Cada um tem sua convicção própria”, escreveu Bonifácio
Amerbach, que mais tarde contribuiu para o caos, durante a década de 1520, ao promover
as idéias do “excelente doutor Martinho” dentro deste reduto papal.
Contudo, mais significativo em relação à Reforma, no que tange a João Calvino, era a
crescente incapacidade da Igreja em impor a ortodoxia. Na Alemanha, a complexa rede de
sínodos provinciais e diocesanos – encarregados de identificar e suprimir a heresia – não
conseguiu fazê-lo e, muito menos, tomar alguma medida decisiva no período durante o qual
a tese de Lutero estava começando a atrair atenção. A tentativa das autoridades francesas de
suprimir os valdenses (Vaudois), na primavera de 1487, não foi propriamente um sucesso,
apenas dispersando este grupo, tido como here-ge, em lugar de eliminá-lo.

INTRODUÇÃO

Dentro desse contexto, a maior ameaça era a imprensa. As regras típicas do sistema
medieval eram impotentes em seu esforço para conter a difusão da palavra impressa. Uma
coisa era legislar contra a circulação de livros não ortodoxos; outra, bastante, diferente era
descobri-los e evitar que fossem lidos. À medida que as autoridades francesas criavam
medidas, cada vez mais amplas, para evitar a importação de material subversivo do
exterior, os editores especializavam-se, na mesma proporção, em disfarçar a origem de seus
produtos. Livros impressos em Genebra (e, por esta razão, totalmente banidos da França,
posteriormente) disfarçavam suas origens usando endereços falsos de suas editoras ou,
28
mesmo, através da imitação do tipo de letra usada pelas gráficas francesas.
A vitória dramática de Francisco I sobre a aliança formada pelas tropas papal e suíça, em
Marignano, em setembro de 1515, consolidou-o como um poder a ser levado em conta nas
questões italianas e aumentou sua autoridade sobre a Igreja francesa. O posterior Acordo de
Bolonha (1516) deu a Francisco o direito de indicar todo o alto clero da Igreja francesa,
enfraquecendo, sobremaneira, o direto controle do Papa sobre esta. O gradual avanço de
Francisco em direção ao absolutismo, embora temporariamente interrompido por sua
derrota na Batalha de Pavia (1525) e subseqüente prisão em Madri, levou a uma
correspondente diminuição da influência papal sobre as questões francesas, tanto
governamentais quanto eclesiásticas. Em conseqüência, os movimentos reformistas na
França eram tratados como um assunto da alçada de Francisco, e não do Papa. Se o Papa
desejasse intervir em questões da Igreja francesa, uma incrível série de obstáculos legais e
diplomáticos o aguardava. Havendo derrotado o Papa em recente batalha, Francisco não
demonstrava o mínimo interesse em defender os interesses papais na França, exceto quando
estes coincidissem com os interesses da monarquia francesa.
O acordo de Bolonha indica a diferença fundamental entre as situações da Igreja na
Alemanha e na França, na iminência da Reforma. Como deixa claro a literatura eclesiástica
de protesto, na Alemanha havia intenso ressentimento contra
o Papa. Em parte, isto retratava um incipiente nacionalismo alemão, marcado por um
ressentimento contra tudo o que fosse italiano. Também retratava a irritação popular diante
do fato de que os recursos eclesiásticos (inclusive os processos de vendas de indulgências)
eram destinados a Roma e à manutenção de estilos de vida bastante extravagantes, a
projetos de construção e às aventuras políticas dos Papas renascentistas. As classes
dominantes da Alemanha ressentiam-se pelo modo como suas autoridades políticas locais
eram desmoralizadas, em razão da interferência papal nas questões políticas e eclesiásticas.
De muitas formas, a proposta de Reforma de Lutero apelava (talvez, até mesmo, chegando
a ponto de uma flagrante exploração) ao nacionalismo alemão e ao sentimento contrário ao
Papa, que havia na Alemanha, permitindo que a Reforma se aproveitasse desta onda
popular de hostilidade ao Papa. Contudo, o Acordo de Bolonha abrandou, em grande parte,
o sentimento antipapal na França. A centralização da autoridade política e eclesiástica na
pessoa do monarca francês – essencialmente, uma proposta da política absolutista
monárquica defendida por Francisco I e seus sucessores imediatos – criou uma estrutura de
poder na qual era notória a ausência do Papa. Se o sentimento de hostilidade ao Papa
fomentou a Reforma alemã, na França a Reforma teve de contar com outras fontes para sua
expansão.

Estas, portanto, são algumas das forças em ação dentro da sociedade e da Igreja
européias, no início do século 16. Em retrospectiva, historiadores têm caracterizado o
período como a “Europa na iminência da Reforma”. Na verdade esse entendimento,
obviamente, era em grande escala negado por aqueles que viviam naquela época, os quais
nem mesmo se consideravam como europeus e, muito menos, viam a si mesmos como
vivendo às vésperas de alguma Reforma iminente. Na realidade, escritos contemporâneos
fornecem pouca evidência de alguma percepção a respeito da agitação social, política e
religiosa que estava por acontecer, a despeito dos usuais avisos proféticos de alguns.
Foi nesse mundo que o segundo filho de Gérard Cauvin nasceu, em 10 de julho de 1509.
Acredita-se que ele tenha sido batizado com o nome de Jehan, na Igreja de Sainte-
Godeberte, alguns dias depois, embora não tenhamos nenhum registro desta cerimônia. Nos
países de língua inglesa, Jehan Cauvin é conhecido pela versão latina de seu nome –
Johannes Calvinus – João Calvino. De sua infância, praticamente nada sabemos com um
certo grau de certeza, apesar do empenho de seus primeiros biógrafos do século 17, os
quais vasculharam a catedral de Noyon e os registros da época em busca de alguma menção
ao seu nome, além de entrevistarem habitantes locais na esperança de que estes se
recordassem de algo, dentre as brumas de um passado distante, a respeito do filho de
Gerard Cauvin. O genuíno conteúdo histórico destas memórias acrescenta, provavelmente,
29
pouco mais do que banalidades – “um garoto esperto, aquele João Calvino”. Aqui, como
em toda a sua carreira, um curioso silêncio ressoa através da história no que se

INTRODUÇÃO

refere à sua personalidade. A respeito da motivação intelectual que ele introduziu à história
das idéias, nós sabemos bastante; porém, sobre o persona-gem histórico que as gerou, nós,
curiosamente, pouco sabemos. Como ser humano, Calvino permanece um enigma.

A GÊNESE DE UM ENIGMA
Sugerir que Calvino representa algo como um enigma histórico pode, à primeira vista,
parecer absurdo. Não sabemos mais a seu respeito do que sobre várias outras figuras do
século 16? Antes de iniciar a análise histórica e a reconstituição da incrível carreira de
Calvino, porém, é relevante atentarmos para o fato de que sabemos muito menos sobre ele,
particularmente sobre seu período inicial, do que gostaríamos de saber. Seu maior legado
para a civilização ocidental foram suas idéias e as formas literárias com que elas foram
expostas. Na verdade, mais de um historiador sugeriu a existência de paralelos entre
Calvino e Lênin, alegando que os dois possuíam um grau extraordinário de visão teórica e
30
aptidão organizacional. Ambos forneceram fundamentos teóricos para movimentos
revolucionários, os quais dependeram justamente de tais fundamentos para sua organização,
direção e posterior sucesso. O próprio Calvino, porém, como figura humana, de carne e
osso, por detrás dessas idéias, permanece vago. As razões para isso não são difíceis de se
entender, sendo, talvez, melhor compreendidas pela comparação de Calvino com o grande
Reformador saxão, Martinho Lutero.
Em primeiro lugar, possuímos um material abundante, proveniente da pena generosa de
Lutero, datado do período anterior ao seu surgimento como importante Reformador. Sua
carreira como Reformador tem por marcos iniciais as suas Noventa e Cinco Teses,
referentes às indulgências (31 de outubro de 1517), o debate de Leipzig de junho-julho de
1519 e os três tratados reformistas de 1520. Por volta de 1520, Lutero era tido como um
Reformador carismático e popular. Essa vocação, entretanto, fundamentava-se em um
conjunto de idéias religiosas que se desenvolveram anteriormente a seu engajamento
público. De 1513 a 1517, Lutero tinha-se engajado no ensino teológico, na Universidade de
Wittenberg, período em ele refletiu sobre as idéias que exerceram tão grande influência
sobre os acontecimentos que se seguiram. Possuímos a maioria de seus escritos, em uma ou
outra forma, daqueles primeiros anos, o que nos habilita a traçar a evolução destes con-
ceitos religiosos básicos.
No caso de Calvino, contudo, somos confrontados com uma ausência quase que absoluta
de material de sua autoria, relacionado a seu período de formação. As origens de sua
carreira como Reformador podem ser fixadas a partir de algum ponto entre o final de 1533
ou o início de 1534, mas não se sabe, precisamente, quando. Seu comentário sobre a obra
De clementia, de Sêneca, que surgiu em abril de 1532, pouco revela em relação a seu autor,
exceto quanto a sua erudição e as prováveis ambições juvenis de um estudioso humanista.
A razão para essa escassez de material não é difícil de entender. As relações entre a coroa
francesa e os ativistas evangélicos vinham se deteriorando, continuamente, durante o início
da década de 1530. No início da manhã de domingo, do dia 18 de outubro de 1534, a
nuvem negra, que já vinha se formando há algum tempo, finalmente se rompeu com o
31
“Incidente dos Panfletos”. Ocorreu que, naquele dia, panfletos que atacavam violen-
tamente práticas religiosas católicas, escritos pelo panfletista Antoine Marcourt, foram
afixados em importantes locais, por todo o reino da França, inclusive na antecâmara do
quarto do rei, em Amboise.
Enfurecido por esses acontecimentos, Francisco I foi levado a deflagrar uma série
32
intimidante de medidas repressivas contra os evangélicos, na Fran-ça, tornando
desaconselhável, àqueles que tivessem uma visão reformista, chamar atenção para este fato.
João Calvino já havia chegado a essa conclusão, em novembro de 1533, quando deixou
Paris pela segurança relativa de Angoulême, um dia após Nicolas Cop – o recém
empossado reitor – ter feito um discurso inflamado pelo Dia de Todos os Santos, na
Universidade de Paris. Devemos ressaltar que o discurso de Cop, que parecia promover
convicções evangélicas, provocou considerável oposição por parte dos mais conservadores.
Calvino, provável suspeito de haver escrito o discurso, achou aconselhável deixar Paris o
mais rápido possível, atitude totalmente justificável em face dos acontecimentos
33
posteriores. Como ressaltam seus biógrafos, ele escapou por pouco: dentro de algumas
horas, a polícia havia revistado suas salas e confiscado seus trabalhos. Esses trabalhos que,
sem dúvida, possuíam um valor inestimável para o esclarecimento da evolução do pensa-
mento de Calvino durante esta fase tão importante, jamais foram encontrados. Assim,
somos obrigados a considerar esse período de formação como um enigma. No entanto,
relutando em se deixarem conter por essa falta de evidências, alguns relatos destes
primeiros anos parecem ter cedido à tentação de apresentar suposições históricas como
fatos históricos. Até mesmo Doumergue, que corretamente afirma que se deve reconhecer
ao menos par

INTRODUÇÃO

34
te da carreira de Calvino como “une énigme chronologique” , tende a aceitar essas
suposições históricas de seus estudiosos, em vez de se empenhar na sua reconstituição
crítica.
Em segundo lugar, Lutero é excepcionalmente generoso com relação a referências
autobiográficas, as quais encontram-se espalhadas por todas as suas obras. Talvez a
referência mais famosa seja o “fragmento autobiográfico”, de 1545, escrito no ano anterior
à sua morte. Esse segmento funciona como uma introdução à primeira edição da coletânea
de suas obras escritas em latim, na qual ele se apresenta a seus leitores. Ao longo desse
prefácio, ele descreve com detalhes sua experiência pessoal, a evolução de suas idéias
religiosas e o modo como se desenrolou a crise que levou à origem da Reforma Luterana.
Embora reminiscências pessoais de homens idosos não sejam, em regra, muito confiáveis,
as memórias de Lutero parecem acuradas, até onde podem ser comprovadas. O modo como
ele sugere que se desenvolveram suas idéias religiosas (sobre as quais sua proposta de
reforma se fundamentaria) também pode ser comprovado pela comparação com suas obras
35
relativas ao período inicial de sua carreira. Calvino, contudo, parece ter sido reticente
quanto a inserir qualquer referência pessoal em suas obras. É provável que uma passagem
da obra Réplica a Sadoleto (1539), na qual um representante evangélico descreve seu
36
rompimento com a Igreja medieval, possa ser autobiográfica; entretanto, Calvino não faz
qualquer afirmação neste sentido. A parte explicitamente autobiográfica do prefácio de seu
37
Comentário sobre os Salmos, de 1557, é, porém, de uma brevidade intrigante e, em certos
pontos, de difícil interpretação. Em seus sermões Calvino usa, freqüentemente, a primeira
pessoa – mas não se pode, necessariamente, concluir que revele muito sobre si mesmo ao
38
fazê-lo. Sua modéstia o impediu de revelar as reflexões e reminiscências, das quais tanto
depende a reconstituição histórica.
A reconstituição histórica da complexa personalidade de Calvino tem sido bastante
obstruída pela subsistência de uma imagem profundamente hostil do Reformador, traçada
por Jerônimo Bolsec, com quem Calvino se desentendera em 1551. Ressentido com o
episódio, em junho de 1577, Bolsec publicou um livro, Vie de Calvin, em Lyon. Calvino,
de acordo com Bolsec, era irremediavelmente aborrecido, malicioso, violento e frustrado.
Ele considerava suas próprias palavras como se fossem a palavra de Deus e se permitia ser
adorado como Deus. Além de, freqüentemente, ser vítima de suas tendências
homossexuais, ele tinha o hábito de flertar com qualquer mulher que se aproximasse dele.
De acordo com Bolsec, Calvino abriu mão de seus benefícios, em Noyon, em razão de
terem vindo a público suas atividades homossexuais. A biografia de Bolsec é uma leitura
muito mais interessante do que as de Teodoro de Beza ou de Nicolas Colladon; no entanto,
sua obra se baseia, predominantemente, em relatos orais, anônimos e inconsistentes,
provenientes de “pessoas dignas de confiança” (personnes digne de foy), que pesquisas
mais recentes consideraram de valor questionável. A despeito desse fato, a reconstituição
de Calvino, traçada por Bolsec, tem influenciado muitas outras descrições, bastante
desfavoráveis, a respeito da vida e das ações do Reformador, que apresentam uma linha
divisória, cada vez mais nebulosa, entre fatos e ficção. O mito de Bolsec, como tantos
outros mitos que se referem a Calvino, sobrevive como uma tradição sagrada, por meio de
39
uma repetição leviana, apesar de sua evidente ausência de fundamentação histórica.
No entanto, é bastante justo sugerirmos que Calvino não era propriamente uma pessoa
agradável, faltando-lhe a perspicácia, o humor e a cordialidade que faziam de Lutero uma
pessoa tão divertida nas rodas que freqüentava. A personalidade de Calvino, como se pode
inferir a partir de suas obras, é a de um indivíduo um tanto quanto frio e reservado, cada
vez mais predisposto ao mau humor e à irritabilidade, à medida que sua saúde se
deteriorava, e dado a se engajar em brutais ataques pessoais contra aqueles com quem se
desentendia, em vez de combatê-los apenas ao nível de suas idéias. No ano de sua morte ele
escreveu aos médicos em Montpellier, descrevendo os sintomas das doenças que
deterioravam sua saúde. De modo significativo, alguns dos sintomas eram compatíveis com
enxaquecas e perturbação intestinal – ambos sintomas incontestáveis de stress. É
impossível determinar se as situações excepcionalmente estressantes, as quais Calvino teve
que enfrentar, especialmente durante o começo da década de 1520, contribuíram para essa
enfermidade ou se ele era naturalmente propenso ao stress em função de alguma
característica de sua personalidade. No entanto, a despeito de sua relutância em falar de si
mesmo, é óbvio que ele era um homem infeliz, motivo pelo qual é bastante difícil que o
leitor atual sinta algum traço de simpatia. Portanto, é muito fácil se predispor a ter uma
atitude antagônica em relação a Calvino.
Porque Calvino deveria ser tão relutante em se revelar? A explicação para sua
personalidade complexa encontra-se na forma pela qual ele entendia seu chamado. Em um
raro momento de revelação pessoal, ele deixou clara sua crença veemente de que teria sido
separado por Deus para um propósito específico. Ao meditar sobre sua carreira, ele pôde
perceber a mão oculta de

INTRODUÇÃO

Deus dirigindo sua vida nos momentos cruciais. Ele acreditava que, apesar de não possuir
qualquer mérito pessoal, Deus o chamou, mudou o curso de sua vida, conduziu-o a Genebra
40
e o investiu na função de pastor e pregador do Evangelho. Qualquer que fosse a autoridade
que Calvino possuísse, ele a entendia como sendo derivada de Deus, e não de seus talentos
e habilidades inatos. Ele não era nada mais do que um instrumento nas mãos de Deus.
Deve-se ressaltar que Calvino compartilhava da ênfase comum à Reforma, expressa na
doutrina da justificação pela fé de Lutero e na doutrina reformada da eleição imerecida
(ante praevisa merita), na pecaminosidade e na insignificância da humanidade caída. O fato
de que Deus o tivesse escolhido era uma expressão da compaixão e generosidade divinas, e
não de qualquer mérito ou qualidade pessoal que Calvino pudesse possuir. Sugerir que seu
senso de chamado divino reflete sua arrogância revela uma peculiar falta de conhecimento
a respeito da espiritualidade da Reforma.
A compreensão a respeito de seu chamado é o que contém as aparentes tensões em nosso
conhecimento sobre a personalidade de Calvino. Tímido e reservado, ainda assim, ele era
capaz de uma coragem que beirava a intransigência, recusando-se a fazer concessões
quando acreditava que a vontade de Deus estava em jogo. Pronto a ser ridicularizado, se
preciso (embora isto costumasse feri-lo profundamente), Calvino não estava pronto a
permitir que este ridículo fosse transferido dele, como indivíduo, para a sua causa e ao
Deus que ele acreditava servir. Acima de tudo, aparentava estar convencido de que era
apenas um simples instrumento, através do qual Deus poderia trabalhar; um porta-voz,
através do qual Deus poderia falar. Considerava sua personalidade como um obstáculo
potencial a essas ações divinas e, em resposta, aparentava ter cultivado a modéstia.
Desde o início o leitor deve estar, portanto, atento às dificuldades existentes em torno de
qualquer reconstituição histórica da carreira e da personalidade de Calvino e também em
relação à natural – e totalmente compreensível – tendência a se adotar uma atitude
antagônica em relação a ele. Adiante, tentaremos fazer uso dos recursos disponíveis aos
historiadores, ao final da Renascença, para desenvolver, do modo mais plausível que
pudermos, um quadro das forças religiosas, sociais, políticas e intelectuais que modelaram
alguns dos contextos em que Calvino viveu e, posteriormente, transformou. Existem,
entretanto, lacunas significativas em nosso conhecimento. Calvino era um indivíduo
extraordinariamente introspectivo, que optou por reter o material histórico que teria
41
iluminado as sombras de sua história. Assim, é inevitável que ele seja retratado como uma
figura um tanto quanto pálida, sem vida, um homem cujos mais íntimos pensamentos,
atitudes e ambições nos são totalmente negados. Insatisfeitos com o esboço monocromático
resultante, alguns historiadores caíram na eterna tentação de expandir os limites da história.
Ainda que esta atitude seja compreensível, seu perigo deve ser prontamente reconhecido: o
perfil retratado pode refletir pressuposições ocultas, por parte de historiadores tendenciosos,
42
cujas lentes coloridas podem até mesmo nos negar acesso ao Calvino histórico.
O lugar de Calvino na história da humanidade fundamenta-se, de forma predominante,
em suas idéias. Conseqüentemente, é essencial não apenas apontar quais possam ter sido
essas idéias, mas, também, permitir ao leitor o acesso às correntes intelectuais que possam
ter tido alguma influência em sua formação. Os dois capítulos seguintes são dedicados à
identificação dessas correntes – os textos, os métodos e as idéias nas quais Calvino deve ter
se inspirado para construir sua nova perspectiva sobre o mundo. Devemos, para tanto,
contar a história de três cidades e de suas respectivas universidades: Paris, Orleans e
Bourges.

2
PARIS: A FORMAÇÃO DE UMA MENTE

Paris é curiosamente modesta sobre sua conexão com Calvino, talvez refletindo um certo
grau de ambivalência a respeito dos méritos de seu impacto sobre a história da França.
Dentre os poucos reconhecimentos tangíveis dessa conexão está uma inscrição na fachada
da Bibliothèque Sainte-Geneviève, em frente ao Panthéon. Lá, registrado entre uma lista de
célebres figuras intelectuais e culturais, que inclui Erasmo e Rabelais, pode ser encontrado
o nome do Reformador francês. A biblioteca fica no local do medieval Collège de
Montaigu, uma instituição extinta na época da Revolução Francesa e demolida logo após. É
a memória dessa faculdade, extinta há muitos anos e de seus ilustres alunos, que é
preservada em meio ao denso tráfego da moderna Paris.

INCERTEZAS SOBRE O PERÍODO EM QUE CALVINO VIVEU EM PARIS


Tornou-se parte da tradição transmitida pela pesquisa acadêmica sobre Calvino que este
foi para a Universidade de Paris, pela primeira vez, em 1523, aos quatorze anos,
inicialmente freqüentando o Collège de la Marche, antes de se transferir para o Collège de
1
Montaigu. O escritor do século 3,
Cipriano de Cartago, entretanto, alerta-nos para o fato de que antigas tradições podem ser,
simplesmente, antigos equívocos; infelizmente, parece bastante provável que essa
afirmação segura dos biógrafos de Calvino – que beira a uma tradição sagrada –
concernente à data de sua chegada à Paris e à faculdade que ele inicialmente freqüentou
possa ter de ser questionada como uma interpretação que extrapola, consideravelmente, a
evidência.
As afirmações categóricas da vasta maioria dos biógrafos de Calvino, de que ele tenha
ido para Paris aos quatorze anos, são baseadas, eventualmente, em um pequeno artigo,
publicado pela primeira vez em 1621, pelo historiador local, Jacques Desmay. Desmay
percebeu uma anotação nos registros de Noyon, feita em 5 de agosto de 1523, na qual
Gérard Cauvin havia recebido permissão para que seu filho João – devemos agora usar a
2
versão moderna de seu nome – saísse de Noyon até 1º de outubro do mesmo ano. Nenhuma
menção é feita quer seja à cidade ou à Universidade de Paris. Os motivos pelos quais
Cauvin desejava que João deixasse Noyon são, explicitamente, enunciados como um desejo
de que seu filho pudesse escapar de uma epidemia de peste que, então, assolava a cidade. A
dedução de Desmay é a de que esse era um momento conveniente para que Calvino
começasse seus estudos em Paris; tal conclusão, contudo, não é validada, com base na
própria anotação constante dos registros. Na verdade, se Calvino tivesse sequer se aproxi-
mado da inteligência precoce, à qual seus biógrafos lhe atribuem, ele provavelmente estaria
apto a ingressar na universidade aos doze anos de idade, se seu Latim fosse bom o
suficiente: pelos padrões daquele período, quatorze anos poderia ser considerada
3
possivelmente uma idade avançada para iniciar a educação universitária. Em 1598, a
faculdade de humanidades de Paris, presumivelmente reagindo a uma indesejável leva de
jovens estudantes precoces, foi forçada a determinar que dez anos era a idade mínima para
que se ingressasse nos estudos formais. O fato, contudo, é que simplesmente não sabemos,
com algum grau de certeza, quando Calvino foi para Paris.
Outras possibilidades certamente existem. Em 19 de maio de 1521, Jacques Regnard,
secretário do bispo de Noyon, comunicou à congregação local da Catedral que, em seguida
4
à renuncia de Michel Courtin, tinha sido conferida a Calvino a capelania em La Gésine. Ele
permaneceria nessa capelania até 1529, quando renunciou ao cargo para reassumi-lo apenas em 1531. Por fim, renunciou ao posto, em maio de 1534. Pierre Imbart de la

Tour sugeriu que a concessão dessa capelania era o pré-requisito essencial para uma educação universitária – funcionando, efetivamente, como uma bolsa de estudo – e

portanto, Calvino foi para Paris posteriormente, naquele mesmo ano, aos onze ou doze
que,

anos de idade. Mais uma vez, é possível que isso possa representar uma interpretação que
extrapola a evidência. Serve, porém, para demonstrar quão escassa é a evidência
documental a embasar nosso conhecimento em relação ao período inicial da vida de
Calvino.
Não há evidência convincente, também, de que Calvino algum dia tenha sido membro
do Collège de La Marche, antes de se transferir para o Collège de Montaigu. Na primeira
edição de seu livro, Vie de Calvin (1564), Teodoro de Beza omite qualquer referência a La
Marche, em seu brevíssimo relato acerca do período em que Calvino viveu em Paris.
Entretanto, nessa mesma biografia, em uma referência ao famoso pedagogo Mathurin
Cordier, cujos talentos educacionais Calvino admirava profundamente, Beza refere-se a
Cordier como “seu regente no Collège de Sainte-Barbe, em Paris, na sua juventude”.
Embora isso não implique, necessariamente, no fato de que Calvino freqüentasse o Collège
de Sainte-Barbe antes de se transferir para o Montaigu, indica a existência de uma tradição
anterior, dentre o círculo de Calvino, que omitia referência ao Collège de La Marche, em
favor do Sainte-Barbe. A declaração de Beza poderia ser tomada, simplemente, como uma
indicação de que Calvino freqüentou as aulas de Mathurin, durante o período em que este
era regente em Sainte-Barbe (o que significa que é Cordier, e não Calvino, quem é
associado a Sainte-Barbe). Deve-se lembrar, contudo, que Beza escreveu sua biografia de
6
Calvino com uma certa urgência, temendo a circulação de outras versões menos
respeitáveis sobre os eventos, vindas de outros cantos, a menos que ele agisse com rapidez:
no entanto, ela nos dá toda a indicação de ser, ao menos parcialmente, baseada em sua
lembrança das reminiscências pessoais de Calvino.
Um ano mais tarde surgiu uma segunda biografia de Calvino, escrita pelo advogado
Nicolas Colladon. Esta biografia fornecia consideravelmente mais detalhes com relação ao
período de Calvino em Paris, ampliando o relato um tanto escasso de Beza. É nela que
encontramos, pela primeira vez, a sugestão de que Calvino teria frequentado inicialmente o
7
Collège de La Marche. Contudo, é difícil determinar a origem e a confiabilidade das fontes
de Colladon. Quaisquer que tenham sido seus consideráveis méritos, provavelmente eles
não se referem a seus talentos como biógrafo de Calvino, particularmente em relação ao
enigma sobre a vida de Calvino, anterior a 1534. Apenas a título de exemplo, Colladon nos
informa que Calvino escreveu seu comentário sobre a obra De clementia, de Sêneca,
8
“quando ele tinha somente cerca de vinte e quatro anos”. A obra, na verdade, surgiu em abril de 1532, quando Calvino
tinha vinte e dois anos. Entretanto, o relato de Colladon acerca dos anos de Calvino em Paris veio a ser aceito como normativo por motivos que são, em última análise,

impossíveis de se determinar. Quando Beza revisou sua biografia de Calvino, uma década mais tarde, ele omitiu sua referência anterior ao Sainte-Barbe, adequando seu
9
relato do período em Paris às declarações de Colladon sobre La Marche. A versão definitiva e oficial sobre as conexões universitárias de Calvino foi, assim, criada.

Não possuímos nenhuma declaração sequer do próprio Calvino com referência a qual
faculdade ele freqüentou anteriormente a Montaigu – se é que, na verdade, ele freqüentou
alguma. As primeiras biografias sugerem clara-mente que sua primeira conexão, em Paris,
foi com Montaigu. A referência a um período em Sainte-Barbe ou La Marche, seguido por
uma mudança para Montaigu, é difícil de explicar diante das regras da Universidade de
Paris, da forma como as conhecemos. Contudo, Calvino efetivamente se refere, de forma
explícita, a Cordier como seu professor, durante seu período em Paris, sem ligá-lo
especificamente a qualquer faculdade. Sabemos que Cordier trabalhava como pedagogo em
cerca de meia dúzia de collèges de plein exercice; em suas memórias pessoais sobre seu
período em Paris, publicadas em seis de fevereiro de 1564 (em outras palavras, antes da
morte de Calvino e das posteriores biografias de Beza e Colladon), Cordier relacionou essas
10
faculdades, incluindo Reims, Lisieux e Navarre, assim como La Marche e Sainte-Barbe.
Essas associações múltiplas de professores a várias escolas não eram incomuns em Paris,
no começo do século 16: por exemplo, em 1512, Aléxis de Rantilly era um bursarius em
teologia no Collège de Navarre, um regente em humanidades no Collège de Bourgogne e
residente no Collège de Tréguier. É, portanto, consideravelmente mais difícil do que se
poderia prever, refutar aqueles que sugerem que Calvino começou seu período parisiense
11
com uma passagem por Sainte-Barbe. Na verdade, como devemos sugerir abaixo, é muito
mais provável que um equívoco relacionado à sua referência a Cordier possa ter levado ao
surgimento da crença, inconsistente, de que Calvino tenha freqüentado outra faculdade,
antes de Montaigu.
A transferência formal de estudantes entre as faculdades, em Paris, não era uma
ocorrência incomum no início do século 16. Tanto quanto se pode determinar, isso
acontecia, invariavelmente, por uma de duas razões. Em primeiro lugar, um estudante de
uma faculdade poderia ganhar uma bolsa (ou um prêmio ou incentivo acadêmico
semelhante) de outra faculdade. Sabe-se que cerca de vinte faculdades deram bolsas para
aqueles que estudavam teologia, incluindo Montaigu. O Collège de la Sorbonne permitia
que os estudantes freqüentassem as aulas por um período inicial probatório, pagando por
seus estudos, na condição de hospites; se seu desempenho fosse aprovado, eles poderiam
ser apontados como associados (socii) e ter direito à alimentação e alojamento grátis. Um
estudante de uma faculdade menor (tal como La Marche) poderia se transferir para uma
faculdade maior (como Sorbonne, Navarre ou Harcourt) para ganhar uma bolsa de estudo
12
lá. Calvino, portanto, poderia ter começado no La Marche ou Sainte-Barbe somente para
ter acesso a uma bolsa no Montaigu. Sainte-Barbe, uma faculdade relativamente nova, não
tinha possibilidade de oferecer bolsas de qualquer tipo até 1525, quando seu reitor, Diogo
de Gouevia, empe-nhou-se em persuadir o rei de Portugal a fornecer bolsas aos estudantes
portugueses. Infelizmente, não possuímos informação confiável com respeito às provisões
finaceiras para os estudos de Calvino em Paris; é razoável inferir que o pai de Calvino, com
ajuda da diocese, fosse o responsável pela educação de seu filho. Como veremos, há razões
para supor que Calvino fosse um caméristeem Montaigu, o que indica o acesso a recursos
financeiros independentes. Se ele tivesse sido um boursier (ou bursarius, usando o termo
em Latim), ele teria tido direito a morar na faculdade. Entretanto, não há qualquer sugestão,
nas primeiras biografias, de que ele tenha sido beneficiado com uma bolsa de estudo (ou de
que ele precisasse de ajuda financeira) ou de que ele, alguma vez, tenha sido feito socius,
em Montaigu – ambos os fatos teriam merecido menção por parte de seus primeiros
simpáticos biógrafos para aumentar as credenciais intelectuais de Calvino, assim como para
explicar sua alegada mudança de faculdade.
A segunda razão para mudar de faculdade se relacionava à transição da faculdade de
humanidades (“humanidades” era, geralmente, entendido como “filosofia”) para uma das
três faculdades mais importantes, tal como teologia (as outras sendo medicina e direito),
para a qual o curso de quatro ou cinco anos, da faculdade de humanidades, era uma
preparação. Um estudante poderia formar-se em humanidades em uma faculdade e, então,
transferir-se para a faculdade de teologia. O costume atual de estudar teologia logo que se
entra na universidade era desconhecido no século 16, em Paris: Calvino não poderia ter
iniciado seu estudo em teologia sem completar seus estudos preliminares de quatro ou
cinco anos na faculdade de humanidades, que eram um pré-requisi-to. Uma sondagem dos
registros das faculdades do século 16 sugere que a mudança da faculdade de humanidades
para uma faculdade mais importante era, com freqüência, considerada como um momento
conveniente para se alterar o vínculo universitário. Noël Bédier era atípico, pelo fato de
haver estudado humanidades e teologia na mesma faculdade (Montaigu); mais típico era
John Mair, que estudou humanidades em Sainte-Barbe e teologia em Navarre, ou Jean
Gillain (que estudou humanidades em Montaigu e teologia em Harcourt).
Biografias mais recentes de Calvino repetem, mecanicamente, a afirmação de Rashdall
de que a teologia era ensinada – sem levar em conta as sedes de várias ordens religiosas –
exclusivamente em Sorbonne e na Faculdade de Navarre. Esta afirmação baseia-se em uma
13
fonte não confiável do século 17 – o caderno de Philippe Bouvot. Ainda que este
documento forneça muito material útil, a maior parte copiada de fontes perdidas do século
16, referente a estas duas faculdades, durante aquele período, ele é, entretanto,
consideravelmente não confiável, enquanto fonte das atividades de ensino das outras
faculdades daquela época. Material relacionado aos alunos e às aulas das outras faculdades
é manifestamente inexistente, simplemente porque Bouvot não tinha qualquer interesse
nestes dados: a antiga rivalidade entre Sorbonne e Navarre prevaleceu em seus horizontes
editoriais e funcionou como um filtro em relação ao material presente em suas fontes
originais. Contudo, fontes existentes do século 16 indicam que a teologia estava sendo
ensinada e estudada em uma série de faculdades, incluindo Montaigu: nos anos de 1512
a1515, por exemplo, aulas de teologia eram ministradas em Montaigu por vários doutores,
14
incluindo John Mair. Portanto, um estudante pode ter estudado humanidades em La
Marche e se transferido para Montaigu, para estudar teologia.
Entretanto, a evidência disponível não nos permite concluir que Calvino, na verdade,
tenha começado a estudar teologia enquanto esteva em Paris. Se ele tivesse ido para Paris
em 1523, ele poderia ter completado o qüinqüênio por volta de 1527 ou 1528. A esta altura,
15
ele teria sido capaz de iniciar seus estudos em uma das faculdades superiores – teologia,
direito ou medicina. Contudo, é nesse ponto que o pai de Calvino parece haver direcionado
seu filho para o estudo do direito, em vez da teologia, e que a mudança para Orleans tenha
acontecido. Isso sugere que Calvino já havia se formado em humanidades a essa altura,
para que pudesse ingressar na faculdade superior de direito civil, em Orleans. É necessário,
contudo, enfatizar que nós não possuímos qualquer evidência de que Calvino, algum dia,
tenha iniciado seus estudos nas faculdades teológicas parisienses, embora tenhamos ampla
evidência de que ele, inicialmente, tenha pretendido fazê-lo, provavelmente com base no
16
conselho de seu pai.
Parece, portanto, que existem dificuldades relacionadas à afirmação de Colladon de que
Calvino freqüentou o Collège de La Marche antes de Montaigu: a evidência para essa
afirmação básica a respeito da biografia de Calvino é precária. Mas os méritos, ainda que
precários, da afirmação de Beza com relação a Sainte-Barbe não podem deixar de ser
notados. A alegada transferência de La Marche para Montaigu não se encaixa, de forma
adequada, dentro da nossa compreensão sobre as rotinas internas das universidades
parisienses, no início do século 16. Sugerimos, portanto, que a afirmação de Colladon com
relação a La Marche possa se basear em um malentendido e, muito provavelmente,
representa uma inconsciente inferência histórica, sendo percebida e representada como um
fato histórico. Por exemplo, é bastante provável que Calvino possa ter tido aulas de
gramática latina com Marthurin Cordier, durante o período em que Cordier estava ligado a
La Marche (ou, talvez, Sainte-Barbe), sem que se presuma que Calvino tenha tido qualquer
ligação formal com quaisquer daquelas duas faculdades. Um estudante, iniciando seus
estudos em humanidades, provavelmente teria se matriculado sob a designação de uma
“nação” – no caso de Calvino, a nação da França – e estaria ligado a um mestre em
particular, o qual o prepararia para seus exames preliminares. A ligação de Calvino com
Cordier, inquestionavelmente, adequa-se a este padrão geral. A ligação a uma faculdade,
contudo, era estabelecida após o término do curso de gramática latina sendo a evidência,
então, fortemente a favor de Calvino haver estabelecido sua ligação com Montaigu, a qual
ele manteria por todo o seu qüinqüênio. Sugerimos, portanto, que a perspectiva mais
confiável, para encararmos a evidência disponível quanto ao período em que Calvino viveu
em Paris, pode ser sintetizada como segue:
1. 1. Calvino teve aulas de gramática latina com Marthurin Cordier.
2. 2. Ele, então, filiou-se, formalmente, ao Collège de Montaigu.
3. 3. Ele estudou humanidades, provavelmente com a intenção de estudar teologia,
após a conclusão de seu curso.
4. 4. Referências a Sainte-Barbe e La Marche, nas primeiras biografias, podem se
basear, eventualmente, em inferências incorretas ou malentendidos por parte de seus
primeiros biógrafos. Calvino, provavelmente, teve aulas de latim sob a supervisão de
Cordier, que podem ter sido ministradas tanto em La Marche como em Sainte-Barbe, sem
que

o jovem francês tivesse qualquer filiação formal com qualquer dessas faculdades,
nessa fase inicial.
O COLLÈGE DE MONTAIGU
O Collège de Montaigu foi fundado no início do século 14 pelo filantropo arcebispo de
17
Rouen, que foi poupado do desgosto de testemunhar seu dramático declínio, durante o
século 15. A reversão desse processo de deterioração, nos últimos anos do século, deve ser
creditada quase que inteiramente à enorme energia e dedicação de uma única figura, Jan
18
Standonck. Standonck havia estudado sob a orientação dos Irmãos da Vida Comum, um
movimento monástico concentrado nos Países Baixos que apresentava a vocação particular
para a reforma da vida monástica como fim e sólidos métodos educacionais como meio
para alcançar aquele objetivo. A rígida disciplina que ele introduziu tem sido,
19
tradicionalmente, atribuída à influência desse movimento, embora a credibilidade desse
20
julgamento seja questionável. Há indicações de que, perto do final do século 15, fortes
ligações começaram a se desenvolver entre a Irmandade da Vida Comunitária e a via
moderna. Por exemplo, Gabriel Biel e Wendelin Steinbach, destacados defensores da via
moderna na Alemanha, eram membros do monastério de Tübingen, pertencente à ordem.
No caso de Montaigu, as ligações com a via moderna foram fortalecidas sob o comando de
Noël Bédier, que parece haver constituído a faculdade como o principal santuário da via
21
moderna, em Paris, por volta da segunda década do século 16.
Erasmo teve a má sorte de passar algum tempo em Montaigu, na década de 1490. Sob a
liderança de Jan Standonck, a faculdade abriu suas portas àqueles que não possuíam
recursos suficientes para pagar por seus estudos. Erasmo foi forçado a se inscrever nesse
collegium pauperum, que trazia consigo obrigações de auxiliar nas tarefas domésticas. Ele
relembra suas impressões do lugar e de suas personalidades em seu Colloquies. Montaigu
revela-se como um lugar infestado de piolhos, decrépito e brutal, cheirando a latrinas
abertas e povoado por tiranos.
Primeiro personagem: De qual prisão ou caverna você vem?
Segundo: Do Collège de Montaigu.
Primeiro: Então, eu presumo que você está repleto de
sabedoria.
Segundo: Não, apenas de piolhos.

O leitor, com um senso de empatia histórica, pode se dispor a circular pelas seções da
moderna Bibliothèque Sainte-Geneviève e tentar imaginar um Erasmo, infestado de
piolhos, tremendo, cinco séculos atrás, em seu fétido cubículo próximo às latrinas.
Uma breve observação de Colladon sugere que Calvino teve um tempo bem melhor em
Montaigu. Os estudantes eram divididos em cinco categorias: boursiers, aos quais eram
fornecidos alojamentos; portionnistes, que pagavam por alojamento e refeição; caméristes,
que alugavam seus quartos e pagavam por seu sustento; martinets, que moravam em casas e
pagavam apenas pelas aulas e pauvres, que garantiam sua subsistência por meio de serviços
domésticos e assistiam as aulas que podiam. Enquanto Erasmo estava entre les pauvres,
Calvino parece ter estado entre les riches, mais especificamente um camériste, vivendo fora
22
da faculdade, em quartos. Montaigu situava-se na área da cidade conhecida como Quartier
Latin, um labirinto de ruelas estreitas e sujas que se encontravam, nos cruzamentos, com
faculdades, monastérios, igrejas, capelas, hotéis e diversos outros estabelecimentos
voltados ao atendimento das necessidades dos estudantes (incluindo livrarias e bordéis:
como conseqüência, os estudantes de teologia eram forçados a andar aos pares, para
diminuir os riscos de contaminação intelectual e física pelo mundo exterior). O mapa da
cidade, traçado por Truschet e Hoyau (1522) (ver ilustração 1) dá uma idéia da natureza
decadente do distrito, mas falha em transmitir o afunilamento das ruas. Estimativas do
número de estudantes variam consideravelmente: entre 4.000 e 5.000 pareceria razoável,
23
em relação ao total da população da cidade de, aproximadamente, 300.000 habitantes.
Naquele tempo, todos os estudantes parecem ter sido forçados a usar algum tipo de batina,
24
qualquer que fosse seu status eclesial. Os estudantes de Montaigu eram apelidados de
Capettes, em razão das batinas cinzas de sua faculdade.
O Quartier Latin foi quase que totalmente remodelado, tornando difícil visualizar os
cenários cotidianos que eram familiares a Calvino. No entanto, o material de arquivos nos
25
permite tentar uma reconstrução parcial das principais características da região. A entrada principal
de Montaigu ficava a leste de seu quadrilátero principal, conduzindo à Rue des Sept Voies, ao final da qual ficava, ao Sul, o portão da abadia de Sainte-Geneviève e a

igreja menor de Saint-Etienne-du-Mont, com seu cemitério. Se Calvino virasse à esquerda, ele passaria pela malfalada Rue des Chiens, que separava Montaigu da

referem-se à rua como a Rue Saint-Symphorien,


faculdade vizinha de Sainte-Barbe. Mapas posteriores, datados do século 17,

depois da igreja, em seu final oeste. Essa capela tem estado decadente há algum tempo, mas
serviu como o local de uma feira anual, o festival de seu patrono, em 22 de agosto. Essa rua
parece haver sido pouco mais do que um banheiro público para homens e cães. Embora
normalmente se referissem a ela como a Rue des Chiens (por causa dos animais), ela era
popularmente conhecida como a Rue des Chiers (por causa daquilo que os cães ali
depositavam, o que emprestou uma credibilidade extra ao relato do uso da rua, por
Montaigu, como um esgoto a céu aberto). Quando escurecia, a rua tornava-se o território de
personagens libidinosos e de outros párias. Isso representava um particular inconveniente
para Montaigu, que possuía propriedades em ambos os lados.
26
Em algum momento, em 1500, Montaigu finalmente obteve permissão para construir
uma pequena passagem coberta que cruzava a rua, para permitir o acesso ao seu jardin des
pauvres, sem forçar os membros da faculdade a se arriscarem a entrar na Rue des Chiens.
Essa galeria sobre a rua foi terminada em 26 de novembro de 1500. Uma segunda
benfeitoria foi terminada, por volta de uma semana depois; em 4 de dezembro, uma cerca
foi erguida, de um lado ao outro, ao final da rua, na altura de Montaigu, onde esta se unia à
Rue des Sept Voies. Esta cerca era trancada à noite, na esperança de evitar que a rua
continuasse um território de marginais. A rua foi pavimentada em 1522 e o esgoto de
Montaigu, em vez de ser despejado diretamente nela, foi, posteriormente, conduzido por
um canal subterrâneo até uma fossa, no lado de Sainte-Barbe.
Diretamente oposto à Rue des Chiens ficava o Collège de Fortet, onde, segundo
Colladon, Calvino permaneceu no período imediatamente anterior ao fatídico discurso de
Cop, no Dia de Todos os Santos, em outubro de 1533. Mais abaixo, na Rue des Sept Voies,
ficava o Collège de Reims. Se Calvino virasse à direita, ao sair de Montaigu, ele seguiria
pela Rue des Sept Voies, passaria pelo cemitério antes de virar à direita, para entrar na Rue
Saint-Etienne des Grès. Então, ele passaria pelo Collège de Lisieux, à sua esquerda e pela
Rue des Cholets, à sua direita, antes de alcançar a Grande Rue Saint-Jacques. Essa grande
rua, cujo trajeto é seguido pela atual estrada que tem o mesmo nome, ligava a Petit Pont da
Ile de la Cité com o Porte Saint-Jacques, no lado Sul da cidade, e era ladeada de ambos os
lados por casas altas, com telhados em forma triangular. Um dos lados dessa rua era
tomado pelo fundo do Collège de la Sorbonne, embora sua fachada principal ficasse na Rue
de la Sorbonne, que corria paralela à Rue de Saint-Jacques e a Oeste desta. Ao lado de
Sorbonne ficava o Collège de Calvin, freqüentemente chamado de “la petite Sorbonne” (as
duas faculdades compartilhavam de um patrono comum, sem qualquer relação aparente
com o Reformador que, mais tarde, compartilharia de seu nome).
Figura 2.1 Plano do Collège de Montaigu e áreas vizinhas, c. 1510

Montaigu consistia em um quadrilátero rodeado pela Rue des Chiens, ao Norte; pela Rue
des Sept Voies, a Leste; pela Rue des Cholets e a igreja de Saint-Symphorien, a Oeste e
pela Rue Saint-Etienne des Grés, ao Sul. Muitas faculdades do período eram formadas por
um grupo de casas contíguas, tanto grandes (hôtels) quanto pequenas (maisons). Montaigu
seguia esse padrão, embora seu maior prédio, o Hôtel du Grand Vézelay, somente fosse
27
adquirido da abadia, de mesmo nome, em 1517. No lado Oeste ficava o Hotel du Petit
Vézelay, enquanto no andar superior, do lado Norte, ficavam uma pequena capela e uma
sala de estudos. O logis des pauvres, certa vez honrado pela presença de Erasmo, era
situado no andar térreo de uma parte do prédio principal, que fazia divisa com a Rue Saint-
Etienne des Grès. A faculdade também possuía dois jardins, vizinhos ao Collège de Sainte-
Barbe. O menor, reservado para os teólogos, continha uma fossa (cujos problemas e desvios
eram a causa de algum atrito entre Sainte-Barbe e Montaigu), enquanto o jardim maior,
para o uso dos estudantes de latim e humanidades, era vizinho a duas casas pertencentes a
Montaigu. Era esse jardim maior que podia ser alcançado através da passagem coberta.

A LINHA DE ESTUDOS DE CALVINO EM PARIS


Por que o pai de Calvino o enviou para a universidade? Com base nas listas de matrícula
do século 15, da Universidade de Avignon, Jacques Verger foi capaz de demonstrar que a
grande maioria dos estudantes, durante esse período, vinha de famílias burguesas
28
emergentes ou aristocráticas. A motivação que fundamentava a educação universitária era
variada: enquanto alguns indubitavelmente desejavam adquirir um treinamento profissional
em direito, muitos viam a educação universitária como um meio de realizar as expectativas
sociais e assegurar seu progresso social. A educação raramente era vista como um meio de
atingir a realização pessoal, exceto no caso do sentido um tanto restrito e material do
aumento das perspectivas de carreira. Não possuímos vastas listas de matrículas da
Universidade de Paris, no início do século 16. Onde tais registros existem, no entanto, fica
evidente que a substancial maioria de estudantes que se matriculavam em Paris, durante o
primeiro quarto de século, era oriunda de um contexto que poderia, razoavelmente, ser
designado como grande bourgeoisie (embora as categorias de diferenciação social , do
século 16, sejam notoriamente imprecisas). Embora as universidades francesas estivessem
em um estado de declínio generalizado, ao final do período medieval, especialmente como
29
centros de treinamento profissional, parece claro que o pai de Calvino considerava uma
educação universitária como um óbvio e excelente meio
de crescimento social para seu filho, consolidando os importantes avanços feitos pela
família na última geração.
30
Segundo Calvino, seu pai, a princípio, pretendia que ele estudasse teologia em Paris. A
motivação para essa intenção é clara: Gérard Cauvin tinha uma boa reputação, tanto com o
bispo, como com a diocese de Noyon, abrindo caminho para um rápido progresso
eclesiástico para seu filho; o próprio Cauvin tinha alcançado um progresso considerável no
status de sua família, desde os dias de seu pai (que foi um barqueiro ou um artesão, em
Pont-l’Evêque) e pode muito bem ter tido a esperança de que seu filho, posteriormente,
aumentasse essa sorte. Além disso, o desenvolvimento de ligações pessoais com a poderosa
família Montmor (e, conseqüentemente, de uma forma indireta, com a família de Hangest)
– ambas importantes na sociedade de Noyon – parecia, com certeza, aumentar as
perspectivas de carreira de Calvino. O que poderia ter ocorrido se ele tivesse cursado teolo-
gia em Paris e evitado se associar com aqueles simpatizantes evangélicos pode ser
presumido do fato de que, em 1532, Jean de Hangest – um primo dos irmãos Montmor –
viria a se tornar o bispo de Noyon, com consideráveis poderes de patronagem dentro da
diocese e além, mesmo estes tendo sido consideravelmente desvanecidos por uma disputa
prolongada e indigna com a congregação da Catedral. A evidência existente não nos
permite inferir que Calvino tenha, na verdade, ao menos começado a estudar teologia. É
praticamente certo que ele nunca foi além do estudo das humanidades (em outras palavras,
31
filosofia). No caso, seu pai o removeu de Paris, em algum momento em 1527 ou 1528,
para que ele pudesse estudar direito civil, em Orleans. A motivação que Calvino atribuiu a
seu pai, para essa mudança de área e de universidade, foi puramente financeira: a prática do
direito era mais rentável (o direito civil, deve-se observar, não era ensinado em Paris: a
faculdade de direito dedicava-se ao estudo do direito canônico – isto é, eclesiástico.) Os
sinais sinistros da descoberta de irregularidades financeiras envolvendo Gérard Cauvin, em
Noyon, a esta altura, teriam tornado uma carreira eclesiástica um pouco problemática para
Calvino. Possuímos farta evidência quanto à seqüência normal de estudos, seguida por
potenciais teólogos em Paris, possibilitando-nos inferir o que Calvino possa ter
experimentado, durante esse tempo, na universidade.
Como observamos, a Universidade de Paris era organizada com base em um colegiado,
32
semelhante ao então (e atualmente) associado às Universidades de Oxford e Cambridge. No
33
início do século 16, mais de cinqüenta universidades foram trazidas sob sua supervisão coletiva. Ela era formada por quatro

faculdades: teologia, direito, medicina e humanidades. Um estudante era obrigado a se formar antes que a ele fosse permitido cursar matérias das três primeiras

faculdades, que eram chamadas de “superior”. Um estudante que fosse membro de uma ordem religiosa seria obrigado a ter aulas nesta ordem devido a uma centenária

hostilidade entre a universidade e as ordens religiosas: a universidade estava determinada a evitar ser inundada por frades mendicantes. Outros estudantes, como Calvino,

poderiam começar o curso de humanidades tão logo eles fossem capazes de ler, escrever e lidar com o latim, a língua na qual eles seriam ensinados e fariam seus exames.

Em sua segunda biografia de Calvino (1575), Beza afirma que Calvino dominava tão bem o latim que foi capaz de mudar para o curso de humanidades antes do
34
previsto.

Nenhuma matrícula oficial, de qualquer tipo, era obrigatória para os estudantes nessa
35
fase. Eles eram obrigados a se registrar sob uma das “nações” da universidade. Em Paris,
havia quatro dessas “nações”: França, Picardy, Normandia e Alemanha. Um padrão
semelhante existia em outras universidades medievais: a de Praga reconhecia a Boêmia,
Bavária, Saxônia e Polônia; enquanto na de Viena, as quatro nações reconhecidas eram a
Áustria, a Região do Reno, a Hungria e a Saxônia. Tal era o tamanho da honoranda natio
gallicana, em Paris, que era subdividida em cinco províncias: Bourges, Paris, Reims, Sens
e Tours. Cada uma das “nações” já havia sido responsável pela manutenção de escolas para
seus estudantes, no coração do Quartier Latin; porém, próximo ao início do século 16, esta
prática tinha caído em desuso, tendo as responsabilidades de ensino sido delegadas às mais
de quarenta faculdades da universidade. Dessas faculdades, o Collège de Montaigu parece
haver exercido uma atração particular sobre potenciais teólogos: durante o período de 1500
a 1524, mais de um quarto (25,4 por cento) dos estudantes de teologia que não pertenciam a
36
ordens religiosas, receberam seu treinamento em humanidades nessa faculdade. O rival
mais próximo de Montaigu era o Collège de Sainte-Barbe ((14,6 por cento), seguido pelo
Collège de Navarre (9,1 por cento). Das faculdades restantes que ofereciam cursos de
teologia, nesse período, nenhuma atraía mais de 7 por cento da população de estudantes.
Além do mais, Montaigu contava bastante com a província de Reims (a qual incluía a
diocese de Noyon) para seus estudantes de teologia: durante os anos de 1490 a1512, 35 por
cento dos seus estudantes eram provenientes desta província. Curiosamente, nenhum dos
sete estudantes de teologia provenientes da diocese de Noyon , que, nesta época, estavam
para ser formar em Montaigu, pertenci
am a uma ordem religiosa. A associação de Calvino a Montaigu certamente indica uma
intenção abalizada de estudar teologia nessa fase.
O que Calvino teria estudado durante o período em que esteve em Paris? Possuímos
descrições detalhadas do curso de humanidades e de sua bibliografia recomendada, durante
as primeiras décadas do século 16, que nos permitem deduzir o que ele, provavelmente,
teria, então, estudado. De importância singular é o Compendium, de Robert Goulet, um
documento datado de 1517, que dá detalhes sobre a vida universitária, em Paris, poucos
37
anos antes da chegada de Calvino. Os estudantes de humanidades eram divididos em três
grupos, de acordo com o ano: os estudantes de súmulas, os estudantes de lógica e os estu-
38
dantes de física. Os primeiros dois anos do curso de humanidades eram, portanto,
dedicados ao estudo da lógica. Em seu primeiro ano, como um estudante de súmulas,
Calvino teria sido obrigado a estudar a Summulae logicales, de Pedro da Espanha, uma obra
um tanto monótona, que chegou a mais de cento e setenta edições na sua época. Ela era
normalmente lida juntamente com comentários. Goulet seleciona três desses comentários
como sendo os preferidos: os de George de Bruxelas, Jacques Lefèvre d’Etaples e John
39
Mair.
Uma vez que essa base elementar em lógica houvesse sido terminada, os estudantes
40
estavam prontos para prosseguir para o estudo da Lógica, de Aristóteles, na sua totalidade.
Mais uma vez, os textos estipulados eram lidos em conjunto com comentários. Assim como
o comentário de John Mair sobre Summulae era bastante apreciado, seu comentário em
41
Lógica, de Aristóteles, era considerado o melhor que havia disponível. Ambos os co-
mentários de Mair adotavam um posicionamento terminista. Em seu último ano, Calvino
teria prosseguido para o estudo da Física, de Aristóteles, talvez recorrendo a obras mais
recentes que tratavam das ciências naturais, tal como de sphaera, de Pierre d’Ailly.
Que a faculdade de humanidades adotava uma postura positiva e conservadora em
relação a Aristóteles, mesmo no campo das ciências, ficará evidente. Nos demais locais da
42
Europa, Aristóteles estava, progressivamente, tor-nando-se alvo de críticas e ceticismo.
Pietro Pomponazzi, talvez o mais proeminente Aristoteliano do período final da
Renascença, na Itália, não hesitou muito em abandonar as posições de Aristóteles, onde
estas estavam sendo questionadas pela onda de descobertas nas áreas da geografia e da
física, que tanto fascinavam aquela época. Em suas palestras, em Bolonha, durante o ano
acadêmico de 1522 a 1523, Pomponazzi desafiou as posições de Aristóteles em relação à
tese de que as zonas tropicais do Sul eram inabitáveis:
Deixem-me contar a vocês que eu tinha algumas cartas de um amigo meu, que contam
que o rei da Espanha enviou três navios em direção ao Sul, para além dos 25 graus.
Eles passaram pelas zonas tropicais, descobriram que eram habitadas e encontraram
muitas ilhas. Após passar a Coluna de Hércules (Gibraltar), eles navegaram por três
meses, com vento favorável. Portanto, tudo que foi provado, com base em Aristóteles,
43
está errado.

Tais posições avançadas ainda estavam por chegar a Paris, que permanecia firmemente
comprometida com o Aristotelianismo. A tendência progressista e radical, que caracteriza
Calvino como um Reformador, não parece ter tido suas origens em Paris.
Além disso, parece que Calvino conservou muito da filosofia natural aristotélica, que ele
aprendeu em Paris, apesar de sua posterior aversão pelo escolasticismo medieval em geral.
Há referências ocasionais à meteorologia aristotélica em seu comentário sobre a obra de
clementia (1532), de Sêneca, e na primeira edição das Institutas (1536), enquanto suas
obras datadas a partir da década de 1550 são freqüentemente salpicadas de discussões sobre
44
a cosmologia aristoteliana. Em particular, parece que ele sabia e acolhia os princípios
básicos da filosofia natural de Aristóteles, especialmente em relação à física, astronomia e
meteorologia. A referência a essas perspectivas, já em 1532, certamente sugere que ele se
familiarizou com elas durante seu período de estudos em Paris (acidentalmente, o
compromisso posterior de Calvino com o Humanismo, com sua ênfase característica sobre
o retorno às fontes originais, negaria a ele o acesso às críticas e aos refinamentos em
relação à filosofia natural aristoteliana, ao final da Idade Média).
A que horas Calvino estudava? Goulet, antecipando-se a essa questão, assim escreve: “É
inútil falar em horas de estudo, no que se refere aos dialéticos. O dia não é longo o
suficiente! Há constantes discussões, vigorosas defesas de sofismos, aos domingos e
45
feriados; recitais três vezes por semana e críticas e debates aos sábados.”. Para se manter em dia com a
rígida disciplina imposta aos estudantes por suas faculdades esperava-se que eles se engajassem em discussões lógicas e filosóficas, públicas e particulares; antes, durante

e após as refeições; em todo tempo e lugar. Todo relato que possuímos sobre a vida estudantil em Paris enfatiza as exigências que eram feitas aos jovens estudantes nesta

em Montaigu; não
fase de sua carreira. No final, contudo, não sabemos, com certeza, o que precisamente Calvino estudou enquanto esteve

sabemos com quem ele estudou (com exceção, obviamente, de Cordier) ou a quais palestras
ele assistiu; não sabemos, nem mesmo, quais livros ele leu. Podemos identificar os
principais textos básicos que ele teria estudado – mas estes são apenas pontos de partida a
serem interpretados e complementados pelas visões dos comentaristas. Quais, dos três gran-
des comentários contemporâneos sobre a Summulae, Calvino usou, se é que usou algum
deles? E qual comentário sobre a Lógica, de Aristóteles? É possível que várias menções
46
confusas de espanhóis nas primeiras biografias possam ser interpretadas como referências
ao célebre dialético Antonio Coronel, cuja obra, Rosarium logices, foi publicada em Paris,
em 1510, e que era ligado a Montaigu, na década de 1520.
A maior parte da atenção, porém, focalizou-se na figura de John Mair (ou Major), que
estudou humanidades em Sainte-Barbe e teologia em Navarre antes de se tornar mestre
regente, em Montaigu, nos anos de 1525 a 1531. Em um importante estudo de 1963, Karl
Reuter alega que Calvino foi aluno de Mair durante seu período em Paris e que este
importante teólogo escocês exerceu uma influência definitiva sobre o desenvolvimento do
47
jovem intelec-tual. Especificamente, Reuter alegou que Mair apresentou a Calvino uma
“nova concepção do antipelagianismo e da teologia escocesa e um Agostianismo renovado”
e que o positivismo de Calvino, em relação às Escrituras, também era devido à influência
de Mair. Torrance também indicou certas semelhanças entre Calvino e Mair com respeito a
48
suas teorias do conhecimento A posição de Reuter representou uma significativa evolução
das primeiras perspectivas sobre a relação de Mair com Calvino. Wendel sugeriu que Mair
apresentou Calvino às obras Four Books of the Sentences, do influente teólogo medieval,
49
Pedro Lombardo, e o ensinou a lê-los sob a ótica de William de Ockham. W. F. Dankbaar
considerou que Mair apenas deu início ao pensamento teológico de Calvino, sem que tenha,
necessaria-mente, modelado sua forma posterior, sendo que, possivelmente, também o
50
tenha apresentado a uma série de escritores patrísticos.
Há uma série de complicações em relação à teoria de Reuter. Por exemplo, não é nada
evidente que Calvino tenha estudado com Mair, em primeiro lugar. Não sabemos se os dois
homens encontraram-se durante sua permanência em Montaigu (Mair era regente em
Montaigu, no período de 1525 a 1531), em razão de dúvidas relacionadas à cronologia
precisa do período em que Calvino viveu em Paris. Duas importantes críticas à tese de
Reuter foram feitas por Alexandre Ganoczy:
1. 1. Embora Ganoczy admita que Calvino possa ter lido o comentário de Mair,
Commentary on the Sentences, durante o período de 1540 a 1559 e que idéias semelhantes
àquelas associadas a Mair possam ser encontradas na edição de 1559 das Institutas (embora
não de forma exclusiva), não há nenhuma evidência textual, na primeira edição das
Institutas (1536), que garanta a conclusão de que ele tenha lido a obra antes de 1536.
Ganoczy faz a observação apropriada de que a influência de Mair deve ser demonstrada a
nível da continuidade das fontes, nas primeiras obras de Calvino, em vez da similaridade de
idéias, em suas obras posteriores.
2. 2. Na primeira edição das Institutas, Calvino tende a identificar a teologia
51
escolástica com Graciano e Pedro Lombardo. Por exemplo, há, aproximadamente, trinta e
cinco referências a esse último, na primeira edição e nenhuma referência que seja a
qualquer dos teólogos do final do período medieval, muito menos a Mair.

Em resposta a Ganoczy, entretanto, deve-se mencionar que a hipótese de Reuter não


pode ser descartada com tanta facilidade, com base na evidência oferecida. Reuter enumera
seis aspectos da teologia de Calvino que podem, razoavelmente, ser considerados como
pontos que refletem as correntes de pensamento predominantes em Montaigu, na década de
52
1520, enquanto Goumaz demonstrou, anteriormente, o modo como Calvino é
familiarizado com
o jargão teológico extraordinariamente técnico do final do período medieval e,
53
ocasionalmente, até mesmo o utiliza. É evidente que Calvino foi influenciado, de alguma
forma e em algum grau, pelas correntes de pensamento associadas a Montaigu: Reuter pode
ser culpado de uma interpretação grosseira, que extrapola a evidência, especificamente em
relação à influência de John Mair, mas que algo de tal influência permanece ainda a ser
explicado. A ausência de referência explícita a escritores tais como Gregório de Rimini,
John Mair e William de Ockham, nas Institutas de Calvino, de 1536, não pode ser
considerada como uma demonstração de que suas idéias – quer encontradas direta ou
indiretamente – não tiveram influência no pensamento de Calvino.
Uma objeção mais séria à crítica de Ganoczy a Reuter relaciona-se à natureza das
Institutas de 1536 e, particularmente, à polêmica estratégia de Calvino. Este ponto pode ser
demonstrado a partir da consideração das diferentes situações enfrentadas por Lutero e
Calvino. Lutero, escrevendo aproximadamente vinte anos mais cedo, durante a primeira
fase da Reforma, foi forçado a organizar um ataque direto às idéias que ele considerava
contrárias ao movimento de Reforma. Para Lutero, essas idéias eram os ensinamentos
religiosos dos teólogos escolásticos, predominantes nos círculos universitários, que ele
conheceu em primeira mão. Portanto, a obra Disputation against Scholastic Theology, de
1517, identifica as idéias de uma escola da teologia escolástica (a via moderna) como
contrária ao Evangelho. O programa de reforma de Lutero (ao menos, sob a ótica do
próprio Lutero) exigia, portanto, que ele confrontasse as personalidades e idéias da teologia
escolástica. Seu programa de reforma é, inicialmente, acadêmico, dirigido à reforma do
currículo teológico de uma pequena universidade alemã; posteriormente, a partir de 1520,
aquele programa tornou-se, em sua essência, caracteristicamente popular, voltado à reforma
da vida e da doutrina da Igreja e da sociedade contemporâneas.
Calvino, contudo, encarou uma situação totalmente diferente, ao escrever a edição de
1536 das Institutas e, posteriormente, ao revisá-la, durante o próximo quarto de século. Em
primeiro lugar, a teologia escolástica era de uma total irrelevância para a situação dele:
Calvino não estava preocupado com a reformulação do currículo teológico de uma
universidade – nas importantes cidades livres de Estrasburgo e Genebra, os principais
inimigos eram a indiferença e a ignorância, exigindo uma apresentação sistemática das
idéias reformistas, em vez de um confronto com as complexidades da teologia escolástica.
A estratégia educacional de Calvino envolvia uma completa marginalização da teologia
escolástica, em vez de um engajamento em um diálogo crítico com ela
– nesse aspecto, Calvino emprega táticas utilizadas com considerável sucessopor Erasmo e
Zwínglio. A decisão de Calvino de não se confrontar com teólogos medievais (tais como
Ockham, Mair ou Scotus) não pode ser considerada como um indício de que ele não fosse
familiarizado com as idéias deles, nem de que ele não as tivesse absorvido, ainda que em
uma proporção limitada. Foi sua estratégia polêmica, e não seus compromissos teológicos
pessoais, que ditaram sua atitude em relação aos escritores medievais, em 1536.
Em segundo lugar, a discussão havia mudado, entre 1517 e 1536. Para a Reforma de
Lutero, em Wittenberg, a discussão com a Igreja Católica referia-se à questão de como um
indivíduo entrava em comunhão com Deus – a célebre doutrina da justificação somente
pela fé. Essa questão continuaria a preocupar a facção Luterana por algum tempo. Mais ao
Sul, a Reforma voltava-se a uma questão diferente. Zwínglio tinha pouco interesse na
doutrina da justificação, concentrando-se, por outro lado, na reforma tanto da Igreja quanto
da sociedade, de acordo os padrões das Escrituras. Progressivamente, a questão
eclesiológica veio a dominar a soteriológica, conforme a questão da identidade e do caráter
da verdadeira Igreja veio a ser entendida como mais urgente e significativa do que a
questão de como uma pessoa entra em comunhão com Deus.
Por volta da década de 1530 – e, progressivamente, nos anos que se seguiram – a
doutrina da Igreja assumiu um novo significado. Reconhecendo a importância dessa
questão, Calvino a trata diretamente nas Institutas de 1536. Objetivando desacreditar as
teorias da Igreja Católica Romana, ele organiza um ataque direto às origens da mesma, que
entende como provenientes dos escritores medievais Graciano e Pedro Lombardo. Não há
necessidade alguma de Calvino iniciar um diálogo crítico com os teólogos do final da Idade
Média sobre essa questão: sua estratégia é desacreditar as eclesiologias medievais,
atacando-as em sua fons et origo. As referências de Calvino à obra de Pedro Lombardo,
Four Books of the Sentences, nas Institutas de 1536 são, sem exceção, retiradas do quarto
livro, que trata da doutrina da Igreja e dos sacramentos.
Em terceiro lugar, especialmente em seu período final, as questões mais explicitamente
polêmicas de Calvino tendiam a se relacionar a assuntos que eram tema de controvérsia
entre as Igrejas protestantes, em vez de tema de controvérsia com a Igreja Católica
Romana. A controvérsia com Andréas Osiander é um excelente exemplo dessa tendência,
embora a crescente ameaça representada pela Reforma Radical e o aumento da tensão com
relação ao Luteranismo sejam importantes componentes que modelaram as obras
posteriores de Calvino. Era mais importante que Calvino confrontasse seus oponentes
protestantes, ativos e vivos, do que as vozes do Escolasticismo, mortas há muito tempo,
cujos ecos distantes não tinham qualquer ressonância em Estrasburgo ou Genebra.
Com base nessas considerações, ficará evidente que Calvino não tinha necessidade
alguma de confrontar os derradeiros escritores medievais, na edição de 1536 – ou em
qualquer outra – das Institutas. A ausência de referência explícita a escritores como
Gregório de Rimini, William de Ockham ou John Mair retrata a estratégia apologética e
polêmica de Calvino e não tem qualquer relevância imediata sobre seu conhecimento,
direto ou indireto, das idéias deles. Uma forma mais confiável de constatar a influência de
Montaigu sobre a formação intelectual de Calvino seria identificar correntes do pensamento
dominante em Montaigu, na década de 1520 e questionar até que ponto tais idéias estão
retratadas em suas obras.
CORRENTES INTELECTUAIS EM PARIS
O Escolasticismo é provavelmente um dos mais desprezados movimentos intelectuais na
história da humanidade. A palavra inglesa “dunce” (estúpido) deriva-se do nome de um dos
maiores escritores escolásticos, Duns Scotus. O Escolasticismo é mais conhecido como o
movimento medieval que floresceu entre 1250 e 1500, havendo posto grande ênfase sobre a
justificação racionalda crença religiosa. É a demonstração da racionalidade inerente à
teologia cristã através de um apelo à filosofia e à demonstração da total harmonia daquela
teologia por meio da análise minuciosa da relação de seus vários elementos. Os escritos
escolásticos tinham a tendência de serem longos e argumentativos, apoiando-se
freqüentemente em diferenças debatidas de forma bastante próxima. Porém, qual sistema
filosófico melhor se adequava à defesa racional do Cristianismo? Por volta de 1270,
Aristóteles era reconhecido como “o Filósofo”. Suas idéias vieram a dominar o pensamento
teológico, especialmente em Paris, a despeito da ferrenha oposição de alas mais
conservadoras. No início do século 16, uma imersão exaustiva na lógica e física
aristotélicas era considerada como essencial para o estudo da teologia cristã em Paris.
Embora outras universidades estivessem libertando-se da perniciosa influência de
Aristóteles, nessa época, Paris permanecia firmemente aliada às suas idéias e métodos.
Os pensadores escolásticos – os “escolásticos” – são freqüentemente retratados a debater
com grande seriedade, ainda que inutilmente, a respeito de quantos anjos poderiam dançar
na cabeça de um alfinete. Embora esse debate em particular nunca, na verdade, tenha
ocorrido, mesmo consideran-do-se que seu resultado teria sido, inquestionavelmente,
intrigante, ele resume com precisão a maneira como o Escolasticismo era considerado pelos
humanistas, no início do século 16: era uma inútil e árida especulação intelectual a respeito
54
de trivialidades. A Universidade de Paris possuía uma reputação internacional como centro
desse movimento tão desprezado.
Adicionalmente às suas memórias da vida estudantil parisiense, Erasmo também nos
deixou suas recordações dos debates teológicos que deliciavam os théologastres, em
Montaigu. Deus poderia ter se tornado um pepino, em vez de um homem? Ou poderia Deus
55
desfazer o passado, por exemplo, fazendo com que uma prostituta se tornasse uma virgem?
56
Se havia um lado sério para essas questões, o sarcasmo de Erasmo permitiu que ele fosse
desconsiderado. Poderíamos fazer círculos que fossem quadrados? Certamente, Jesus não
havia debatido tais questões com os doutores, no templo. Por que nos incomodarmos com
elas?
Tais questões, porém, refletiam com precisão os interesses filosóficos e teológicos de um
movimento que ganhou uma crescente influência durante o século 14, freqüentemente
chamado de “nominalismo” na literatura mais antiga, mas também conhecido como
57
“terminismo” ou a via moderna. John Mair pode ser considerado como um de seus muitos
representantes em Paris, no início do século 16, até mesmo a ponto de debater se Deus
poderia haver se tornado um asno, em vez de um homem. O sucesso do nominalismo, em
Paris, retratava uma tendência geral nas faculdades de humanidades, em todas as
universidades do Norte da Europa, no século 15. Os estatutos da Universidade da Basiléia,
fundada em abril de 1460, inicialmente estipulou que a instrução deveria ser de acordo com
a via moderna. Heidelberg e Erfurt são exemplos de universidades cujas faculdades de
humanidades vieram a ser influenciadas nesse sentido; curiosamente, a Universidade de
Wittenberg, ligada a Lutero, permaneceu comprometida com a via antiqua, até a
surpreendentemente tardia data de 1508, refletindo o tradicionalismo apático e sem
inspiração pelo qual ela, aparentemente, ficou conhecida em um estágio bastante inicial.
58
Pode ser útil esclarecer a diferença entre realismo e nominalismo. Considere duas
pedras brancas. O realismo afirma que há um conceito universal de “brancura”, que essas
duas pedras incorporam. Essas duas pedras bran-cas, em particular, possuem a
característica universal da “brancura”. Enquanto as pedras brancas existem no tempo e no
espaço, a “brancura” universal não existe. O nominalismo, porém, afirma que o conceito
universal de “brancura” é desnecessário e, em vez disso, argumenta que devemos nos
concentrar nos particulares. Essas duas pedras brancas existem – e não há qualquer neces-
sidade de apelarmos para algum “conceito universal de brancura”.
Durante o segundo terço do século 14 a via antiqua, associada a intelectuais como
Tomás de Aquino e Duns Scotus e caracterizada pelo realismo, encontrou-se sob a
crescente pressão do nominalismo ou terminismo rival da via moderna, associada a
escritores como William de Ockham, Jean Buridan, Gregório de Rimini e Marsilius de
Inghen. A faculdade de humanidades, em Paris, sentiu-se ameaçada por esse movimento e
tentou reprimi-lo. Em dezembro de 1340, um estatuto condenando os errores
Ockhanicorum entrou em vigor. Daí em diante, qualquer candidato que desejasse postular o
grau de Mestre em humanidades, em Paris, teria que jurar que iria observar os estatutos da
faculdade de humanidades contra scientiam Okamicam e abs-ter-se de ensinar tais idéias a
seus pupilos. A ampla ineficácia dessa medida pode ser percebida pela observação da
brilhante carreira de Pierre d’Ailly, um famoso defensor da via moderna. Em 1384, ele foi
indicado como reitor do Collège de Navarre – uma de suas primeiras medidas foi assegurar
que os teólogos da faculdade tivessem amplos suprimentos de vinho. Essa indicação foi
seguida, em pouco tempo, por sua eleição para a presidência da própria universidade
(1389). A Universidade de Cologne, defendendo seus ensinamentos da via moderna perante
príncipes céticos, em 1425, foi capaz de declarar que o nominalismo era agora aceito em
Paris.
Ao final do século 15, contudo, a hostilidade em relação à via moderna intensificou-se
em Paris. Em 1º de março de 1474, um extenso decreto contra os nominalistas foi emitido
pelo rei da França, em uma tentativa de deter a crescente influência de Guilelmus Okam et
consimiles. O principal efeito do decreto foi o de persuadir muitos estudantes e mestres de
Paris, simpatizantes do movimento, a se transferirem imediatamente para as universidades
59
alemãs, onde suas idéias eram mais bem-vindas. Sendo de uma futilidade e estreiteza
evidentes, o decreto foi posteriormente revogado, em 1481, deixando o caminho livre para
o restabelecimento da via moderna em Paris. O Collège de Montaigu parece ter estado na
vanguarda desse ressurgimento nominalista nas primeiras décadas do século 16. Calvino,
portanto, freqüentou uma faculdade na qual a influência da via moderna parece ter sido
inquestionável.
A rigorosa instrução em lógica terminista e dialética, a qual Calvino teria recebido em
Paris, parece haver deixado uma marca em seu pensamento, embora a precisa extensão
60
dessa influência, bem como sua natureza, permaneçam con-trovertidas. Por exemplo, a
dialética de Calvino entre Deus e a humanidade – brilhantemente explorada como um
princípio dominante, nas Institutas de 1559
.– provavelmente se baseia em fundamentos terministas. Também é evidenteque o tema
epistemológico central debatido pelo terminismo – em outras palavras, a relação entre a
concepção mental de um objeto e aquele próprio objeto
.– dominaria o posterior pensamento de Calvino em relação a Deus. Como asconcepções
humanas de Deus podem ser relacionadas ao próprio Deus? De que maneira o termo
“Deus” pode estar correlacionado à realidade exterior que ele designa? Embasando muito
do pensamento mais maduro de Calvino está a questão de como os conceitos humanos são
construídos – uma questão de crucial importância teológica, quando o conceito em
discussão for o de Deus. No entanto, muitos dos aspectos do pensamento de Calvino, os
quais, supostamente, resultam da influência de seus mestres terministas, em Paris, também
podem ser explicados através das influências encontradas mais tarde em sua carreira,
particularmente a influência do Humanismo.

Mais intrigante é a possível influência de uma outra escola de pensamento sobre o


61
desenvolvimento do jovem Calvino. Muitos livros mais antigos que tratam da Reforma
referem-se a um confronto entre o “nominalismo” e o “Agostianismo” na iminência da
Reforma e interpretam como uma vitória do último sobre o primeiro. Em anos recentes,
porém, um considerável progresso tem sido alcançado no que tange à compreensão da
natureza do período final do escolasticismo medieval. Agora, parece que havia duas
diferentes escolas de pensamento nominalista, cuja única característica em comum era
o anti-realismo. Essas escolas são hoje conhecidas como o “caminho moderno” (via
moderna) e a “moderna escola agostiniana” (schola Augustiniana moderna). Ambas as
escolas adotavam uma posição nominalista em matéria de lógica e na teoria do
conhecimento – mas suas posições teológicas, na questão de como se dava a salvação,
diferiam radicalmente. Estritamente falando, o termo “nominalismo” referia-se à questão
dos universais e não designava qualquer posição teológica em particular. Ambas as escolas
rejeitavam a necessidade dos universais – mas adotavam perspectivas radical-mente
diferentes, em relação à questão de como a humanidade poderia ser redimida. Uma era
profundamente otimista em relação às capacidades humanas, a outra, consideravelmente
mais pessimista.
A doutrina da justificação, que assumiu importância singular dentro da Reforma de
Lutero, refere-se, como observamos anteriormente, à questão de como um indivíduo entra
em relacionamento com Deus. Como pode um pecador ser aceito por um Deus justo, sem
pecado? O que o indivíduo deve fazer para ser aceitável diante de Deus? Essa mesma
questão havia sido debatida anteriormente com alguma intensidade durante a inicial
controvérsia do século 5, entre Agostinho e Pelágio, conhecida como a “controvérsia de
62
Pelágio”. De muitas formas, esse debate foi retomado no período medieval com a via
moderna inclinando-se em direção à posição de Pelágio e a schola Augustiniana moderna
em direção à posição de Agostinho.
Para Agostinho, a humanidade estava presa em sua própria condição e não poderia
redimir a si mesma. Deixada à sorte de seus próprios meios e recursos, era impossível para
a humanidade, algum dia, iniciar um relacionamento com Deus. Nada que um homem ou
uma mulher pudesse fazer era suficiente para romper as amarras do pecado. Para usar uma
imagem, a qual Agostinho foi suficientemente afortunado por nunca ter encontrado, é como
um viciado em narcóticos tentando se libertar das garras da heroína ou da cocaína. A
situação não pode ser transformada a partir de seu interior – e, portanto, se a transformação
deve ocorrer, ela deve vir de fora da condição humana. De acordo com Agostinho, Deus
intervém no dilema humano. Ele não precisava ter feito isso mas, em razão de seu amor
pela humanidade caída, ele se torna parte da condição humana, na pessoa de Jesus Cristo,
para redimi-la.
Agostinho coloca tanta ênfase sobre a “graça” que ele é, freqüentemente, designado
como doctor gratie, “o doutor da graça”. A “graça” é o imerecido ou injustificável dom de
Deus através do qual ele, voluntariamente, rompe as amarras do pecado sobre a
humanidade. A redenção somente é possível como um presente de Deus. Não é algo que
possamos alcançar por nós mesmos, mas que tem que ser feito por nós. Agostinho,
portanto, enfatiza que os recur-sos para salvação encontram-se fora da humanidade, no
próprio Deus. É Deus que inicia o processo de salvação, e não os homens ou as mulheres.
Para Pelágio, entretanto, os recursos necessários para a salvação encontramse na própria
humanidade. Os seres humanos, individualmente, têm a capacidade de salvar a si próprios.
Eles não estão presos pelo pecado, mas têm a habilidade para fazer tudo o que é necessário
para serem salvos. Salvação é algo conquistado através de boas obras, as quais colocam
Deus em dívida com a humanidade. Pelágio marginaliza a idéia da graça, entendendo-a
como exigências que são impostas à humanidade – tal como os Dez Mandamentos
– para que a salvação possa ser alcançada. A ética do Pelagianismo pode sersintetizada
como a “salvação através da conquista pessoal”, enquanto Agostinho, ao contrário, ensina a
“salvação pela graça divina”.
É evidente que as duas teologias têm visões muito diferentes sobre a natureza humana.
Para Agostinho, a natureza humana é fraca, pecadora e impotente; para Pelágio, é autônoma
e auto-suficiente. Para Agostinho, é necessário depender de Deus para se alcançar a
salvação; para Pelágio, Deus meramente indica o que tem que ser feito para que a salvação
seja alcançada e, então, deixa que os homens e as mulheres satisfaçam essas condições, sem
qualquer ajuda de sua parte. Para Agostinho, a salvação é um presente imerecido; para
Pelágio, a salvação é uma recompensa justamente conquistada.
Na subseqüente controvérsia que houve dentro da Igreja ocidental, a posição de
Agostinho foi reconhecida como autenticamente cristã e a visão de Pelágio foi censurada
como sendo herética. Dois importantes concílios estabeleceram as visões de Agostinho
como normativas: o Concílio de Cartago (418) e o Segundo Concílio de Orange (529). O
termo “Pelagiano”, a partir de então, passou a ser tanto pejorativo como descritivo,
significando “depositar uma dependência excessiva sobre as capacidades humanas e uma
confiança insuficiente na graça de Deus”. Ao tempo da Reforma, Lutero estava convencido
de que a maioria da Igreja ocidental havia caído no Pelagianismo, pelo fato de haver
perdido a noção da “graça de Deus”, tendo vindo a depender da auto-suficiência humana.
A “escola agostiniana moderna” combinou um nominalismo filosófico com um
Agostinianismo teológico. Em comum com a via moderna, a escola não tinha qualquer
simpatia pelo realismo de Tomás de Aquino ou Duns Scotus. Ainda assim, ela desenvolveu
uma doutrina da salvação refletindo a influência de Agostinho, que era diametricalmente
oposta àquela do “caminho moderno”. Há uma ênfase radical sobre a absoluta necessidade
da graça sobre a condição de queda e pecado da humanidade, sobre a iniciativa divina na
justificação e sobre a predestinação divina. A salvação é entendida como sendo, totalmente,
obra de Deus, do início ao fim. Enquanto a via moderna defendia que os seres humanos
poderiam iniciar sua própria justificação, fazendo “o seu melhor”, a schola Augustiniana
moderna insistia em que apenas Deus poderia iniciar a justificação. Enquanto a via
moderna defendia que todos os recursos necessários para a salvação encontravam-se na
própria natureza humana, a escola agostiniana moderna argumentava que estes recursos
encontravam-se, exclusivamente, fora da natureza humana. É óbvio que esses são dois
modos totalmente diferentes de se entender os papéis do ser humano e de Deus na
justificação.
As características dominantes da epistemologia e da teologia da schola Augustiniana
moderna, exemplificadas por Gregório de Rimini, podem ser sintetizadas da seguinte forma
(com o perdão pela inclusão do inevitável jargão teológico):

1. 1. Um “nominalismo” ou “terminismo” epistemológico estrito;


2. 2. Um entendimento voluntarista, como oposto ao intelectualista, dos fundamentos
do mérito humano, e também do mérito de Jesus Cristo;
3. 3. O amplo uso dos escritos de Agostinho, particularmente de suas obras
antipelagianas, que se concentravam na doutrina da graça;
4. 4. Uma perspectiva intensamente pessimista do pecado original, com a queda sendo
identificada como um divisor de águas na história da salvação humana;
5. 5. Uma forte ênfase sobre a prioridade de Deus na salvação da humanidade;
6. 6. Uma doutrina radical da dupla predestinação absoluta;
7. 7. A rejeição do papel, na justificação ou mérito, dos hábitos de graça adquiridos
(eles eram vistos pelos escritores medievais anteriores como intermediários necessários).

Todas essas sete características fundamentais da escola agostiniana mo-derna são


fielmente espelhadas nos escritos de Calvino. O segundo ponto pode ser selecionado para
posterior discussão, nessa fase.
A tese de Reuter de que Calvino aprendeu, em Paris, uma “nova concepção da teologia
antipelagiana, inspirada em Scotus e em um renovado Agostinianismo”, pode ser revista
nos termos da influência de uma corrente teológica genérica, do final da Idade Média, em
vez da influência de qualquer indivíduo específico (tal como John Mair). A tradição
medieval posterior, como um todo (incluindo tanto a via moderna quanto a schola
Augustiniana mo-derna), adotou uma perspectiva intensamente voluntarista na questão do
63
méri-to. Isto significa dizer que o mérito da ação humana não está em seu valor inerente,
mas é baseado somente no valor que Deus escolhe atribuir a ela. Esse princípio é
sintetizado na máxima de Duns Scotus (que é comumente considerado, embora não de todo
correto, como aquele que deu origem à tendência ao voluntarismo, no pensamento medieval
posterior), que alega que o valor de uma oferta é determinado somente pela vontade divina,
64
e não por sua virtude inerente. Nas Institutas, Calvino adota uma posição idêntica em
relação ao mérito de Cristo. Embora isso esteja implícito nas primeiras edições da obra, só
é abertamente expresso na edição de 1559, como resultado da correspondência entre
65
Calvino e Laelius Socinus sobre esse tema.
Em 1555, Calvino respondeu a perguntas feitas por Socinus relacionadas ao mérito de
Cristo e à certeza da fé, e parece ter incorporado estas respostas na edição de 1559 das
Institutas, sem qualquer modificação significativa. Durante essa correspondência, a visão
intensamente voluntarista que Calvino adota em relação à ratio meriti Christi – os motivos
do mérito de Cristo – torna-se óbvia. Ele deixa claro que a base do mérito de Cristo não se
encontra na oferta que Cristo fez de si mesmo (o que corresponderia a uma visão
intelectualista da ratio meriti Christi), mas na decisão divina de aceitar tal oferta como
tendo mérito suficiente para a redenção da humanidade (o que corresponde à visão
voluntarista). Para Calvino, “sem a aceitação de Deus, Cristo não mereceria coisa alguma”
66
(nam Christus nonnisi ex Dei beneplácito quidquam mereri potuit). A continuidade entre
Calvino e a tradição voluntarista medieval posterior será evidente.
No passado, essa semelhança entre Calvino e Scotus havia sido tomada como um indício
da influência direta de Scotus sobre Calvino ou, talvez, uma influência indireta, mediada
via Socinus: assim, Alexander Gordon argumentou que Calvino adotou uma postura
influenciada por Scotus em relação à ratio meriti Christi e, com base na sua suposição de
que a corrente influenciada por Scotus constituía a base da corrente liderada por Socinus,
67
traçou a contínua evolução daquele movimento, desde Scotus até Calvino. Na verdade, a
continuidade de Calvino parece ser com a posterior tradição voluntarista medieval, derivada
de William de Ockham e Gregório de Rimini, em relação à qual Scotus representa um
ponto de transição. Nenhuma razão pode ser atribuída ao mérito da natureza do sacrifício
de Cristo, exceto a de que Deus, de forma benevolente, decretou aceitá-lo como tal. A
continuidade entre Calvino e essa tradição posterior é evidente, qualquer que possa ser sua
explicação.
As sete características acima citadas da schola Augustiniana moderna incluem,
claramente, aqueles aspectos do pensamento de Calvino atribuídos por Reuter à influência
68
de John Mair. Talvez seja significativo que, no prefácio do primeiro livro da sua obra,
Commentary on the Sentences, Mair explicitamente admite seu débito a esses três teólogos:
69
Scotus, William de Ockham e Gregório de Rimini. Portanto, certamente seria, no mínimo,
uma incrível coincidência que Calvino reproduzisse as características dominantes de um
movimento agostiniano acadêmico, o qual se desenvolveu na universidade que ele próprio
freqüentou, se ele não tivesse sido familiarizado com tais correntes teológicas. Ele nem
mesmo precisou freqüentar palestras sobre teologia para que tivesse contato com essas
perspectivas: a obra Commentary, de Gregório, chegou a três edições, em Paris (1482, 1487
70
e 1520), tendo a última sido lançada pouco antes da chegada de Calvino. Se Calvino leu
tanto quanto somos levados a acreditar por seus contemporâneos, não é improvável que
essa obra – um modelo tanto de lógica quanto de teologia, da autoria de um dos dois
71
célebres doutores da via nominalium, em Paris – tivesse atraído sua atenção. Na verdade, tem sido sugerido que a educação
72
teológica de Calvino pode derivar, em parte, de seus estudos pessoais ou leituras, durante o período que ele viveu em Paris. Reuter, obviamente,

lançou sua tese antes da schola Augustiniana moderna ter sido identificada e caracterizada,
sendo que sua teoria é consideravelmente enfraquecida por hipóteses subsidiárias desneces-
sárias (tal como a do contato pessoal com Mair). Portanto, é interessante observar a
possibilidade de que temas centrais da teologia de salvação de Calvino possam refletir as
correntes de pensamento que ele encontrou em Paris. Essa possibilidade, deve-se ressaltar,
não pode ser investigada com o rigor necessário para confirmá-la, dado o caráter
fragmentado do nosso conhecimento a respeito do período que Calvino viveu em Paris. Ela
é, contudo, intrigante e serve para nos lembrar que Calvino, longe de romper de forma
absoluta com a tradição medieval, adota, na verdade, muitas posições teológicas e
filosóficas de uma impecável linhagem medieval.

A PREOCUPAÇÃO PARISIENSE COM O LUTERANISMO


Durante 1523, a faculdade de teologia foi forçada a se reunir cento e uma vezes,
excedendo bastante as trinta e poucas reuniões que eram normalmente feitas. O motivo para
essas reuniões adicionais era uma figura distante e bastante desconhecida – Martinho
Lutero – cujas idéias ameaçavam dominar, subitamente, a cidade, a universidade e a Igreja.
O Luteranismo veio, de fato, a dominar os assuntos tanto da cidade quanto da universidade,
tornando difícil para qualquer pessoa bem informada na cidade evitar, ao menos, algum
contato com suas idéias. Como deixam bastante claro as testemunhas contemporâneas, as
obras de Martinho Lutero encontraram um público substancial e entusiasta dentre a elite
intelectual de Paris, logo em 1519; versões que plagiavam suas idéias e que eram,
freqüentemente, distorcidas e exageradas por mexericos religiosos bem intencionados, mas
sensacionalistas, circulavam de forma ainda mais ampla.
Acontecimento após acontecimento, tanto na cidade quanto na universidade, apontava
para o fascínio popular com essas novas idéias, que logo foram rotuladas como heréticas.
De longe, a mais concorrida reunião da faculdade de teologia, por muitos anos, foi a de 14
de julho de 1523, para ouvir Pierre Lizet denunciar os males do Luteranismo, como
73
representante do rei. Três semanas mais tarde, o monge agostiniano Jean Vallière foi quei-
mado vivo por haver lido e comentado as obras de Lutero. Em 4 de dezembro de 1526, sete
homens, vestidos como demônios, desfilaram por Paris, puxando um cavalo montado por
uma mulher, rodeada de homens vestidos como doutores de teologia, com as palavras
74
“Luteranos” gravadas na frente e nas costas, de forma bastante visível.
As origens dessa preocupação em relação ao Luteranismo datam de 1519,
o resultado da Disputa de Leipzig, entre Lutero e Johann Eck, na qual Lutero questionou
aspectos chave dos ensinamentos católicos. Ambos haviam concordado que suas
respectivas posições deveriam ser colocadas perante as universidades de Erfurt e Paris para
avaliação. Erfurt indicou que não desejava tomar parte naquele procedimento. Em Paris
nenhuma resposta foi, a princípio, proferida, levando alguns a suspeitar de que a
universidade iria, posteriormente, recusar-se a se envolver na questão. Paris era o centro do
galicanismo – um movimento que professava uma relativa liberdade, quase que completa,
da Igreja francesa em relação à autoridade eclesiástica do Papa. O Acordo de Bologna
(1516) foi amplamente visto como algo que reforçou as posições tanto do rei da França
quanto do papado em detrimento das estimadas libertés de l’église gallicane (liberdades da
Igreja francesa), enquanto que, simultaneamente, ameaçava a independência da
universidade e do parlement de Paris. A universidade recusou-se a permitir a impressão ou
distribuição de cópias do Acordo para circulação. Como resultado, a questão da autoridade
papal tornou-se controvertida entre os círculos universitários por volta de 1518. Como um
dos principais temas debatidos em Leipzig era a natureza da autoridade papal, a
Universidade de Paris encontrava-se em uma posição difícil. Se eles censurassem Lutero
por questionar a autoridade papal, poderiam achar que eles estavam comprometendo a
75
secular tradição galicana da universidade. Registros da época sugerem a ocorrência de uma série de reuniões da faculdade, bastante
76
difíceis, em 1520. Os problemas internos enfrentados pela universidade foram, acidentalmente, eliminados pelo próprio Lutero, através da publicação dos três tratados

reformistas de 1520, os quais a universidade não teve dificuldades em considerar inaceitáveis.

Em 15 de abril de 1521 foi concedida a aprovação final a uma detalhada condenação de


104 proposições, atribuídas a Lutero, geralmente conhecidas hoje como a Determinatio
77
Parisiense. Esse documento alegava que Lutero havia se juntado às fileiras dos hereges,
tais como Márcion, Ário e Wycliffe; não contente em ressuscitar as antigas heresias destes,
contudo, Lutero também tinha tido a impertinência de inventar outras novas. A polêmica
estratégia adotada pela faculdade de teologia consistia em associar Lutero a antigas
heresias, onde fosse possível, demonstrando, portanto, sua continuidade histórica e
78
teológica com posições já desacreditadas. É, contudo, altamente significativo (e
perfeitamente compreensível) que a Determinatio tenha falhado em tratar da questão da
primazia papal – um assunto que o Debate de Leipzig tinha suscitado como central.
A Determinatio recebeu ampla atenção, havendo sido reeditada nove vezes em latim, até
1524 e, também, traduzida para o holandês e para o alemão. Como resultado dessa censura,
as perspectivas de Lutero começaram a receber crescente atenção em Paris. Durante o
tempo em que Calvino esteve por lá, a questão de Lutero dominou a agenda da faculdade
teológica, forçando-a a promover longas reuniões. Essas parecem haver sido tediosas e
repletas de pesadas denúncias, com a suspeita de heresia sendo abertamente dirigida a, no
mínimo, quinze membros da faculdade (que nunca chegou a ter mais do que oitenta
membros). Entretanto, a faculdade era capaz de manter ao menos a aparência de união
frente à ameaça representada por Lutero, mesmo que a natureza e o significado dessa
ameaça fossem mal compreendidos. Tal foi o ódio que veio a ser atribuído ao nome de
Lutero nos círculos eclesiais conservadores, que semelhanças entre as idéias dele e as idéias
dos humanistas ou reformistas, pertencentes ao clero francês, foram progressivamente
vistas mais como um sinal de heresia, por parte destes últimos, do que como ortodoxia, por
79
parte do primeiro. Francisco I, inicialmente inclinado a defender o Humanismo de seus críticos, veio gradualmente a considerar o Luteranismo como

uma ameaça à estabilidade de seu reino. Embora essa atitude somente se transformasse em ação no desenlace do incidente dos panfletos (outubro de 1534), suas origens

alcançam o período durante o qual Calvino estudou em Paris. No entanto, as idéias de Lutero parecem haver conquistado uma ampla audiência nos círculos

universitários, em Paris, ainda que fosse hostil a reação que elas provocariam dentro da faculdade de teologia. Teria sido difícil para o jovem Calvino, enquanto era

estudante em Paris, evitar ouvir sobre o Luteranismo e ter contato com especulação e rumores ligados à misteriosa figura do saxão que havia dado causa a isso. Marchas

públicas de penitência ou protesto (ver ilustração 3), execuções públicas por heresia e polêmica antiluterana na Universidade de Paris (de forma alguma restritas à

faculdade de teologia) tornam provável que o jovem Calvino tenha tido contato, ao menos, com algumas das idéias constitutivas dessa heresia estrangeira, mesmo que de

alguma forma distorcida, e talvez tenha obtido uma impressão tanto do interesse popular quanto da hostilidade que se intensificava em torno dela, entre os círculos

universitários conservadores parisienses. Uma vez mais, porém, devemos admitir que não sabemos quando ou de que forma Calvino teve seu primeiro contato com as

idéias de Lutero.

“Incerteza”, portanto, é uma palavra que se repete por toda a nossa discussão acerca do
período em que Calvino viveu em Paris, tanto em relação à sua cronologia quanto ao seu
significado para nossa compreensão da evolução de sua carreira e idéias. Continuamente, o
historiador é forçado a refugiar-se na perigosa prática da generalização, na esperança de
que Calvino se ajuste a um padrão comum. Felizmente, contudo, há motivos para se supor
que seu período na Universidade de Paris não tenha sido de importância decisiva para a
formação de suas idéias posteriores. Se as reminiscências posteriores de Calvino – que
admitimos serem escassas – representam alguma coisa, ele parece ter considerado Paris
como pouco mais do que o lugar onde ele aprendeu o latim. Uma análise mais plausível
seria a sugestão de que os poderes de raciocínio e análise de Calvino possam ter derivado
de seu rigoroso treinamento sob a influência de seus mestres terministas. Certamente é
verdade que ele também possa ter absorvido certos conceitos lógicos e filosóficos,
consideravelmente precisos, que eram correntes em Paris; no en-tanto, estes eram pouco
mais do que fruto de uma sabedoria acadêmica contemporânea bastante convencional e não
possuíam o caráter radical associado posteriormente a Calvino. Nossa atenção agora se
volta a Orleans e Bourges, onde Calvino, provavelmente, penetrou em um universo
intelectual diferente. É durante esse período que vários historiadores suspeitam que ele
possa ter encontrado indivíduos, métodos e idéias que, finalmente, modelaram e delinearam
em sua mente a idéia de reforma.

3
OS ANOS ERRANTES: ORLEANS E O ENCONTRO COM O
HUMANISMO
Em algum ponto, no final da década de 1520, possivelmente entre os anos 1526 a1528,
Calvino deixou Paris, como um jovem licencie em arts, para iniciar o estudo do direito
1
civil, em Orleans, com Pierre de l’Estoile, “o príncipe dos advogados franceses”. Não é
inteiramente claro o motivo que levou Calvino a escolher estudar o direito. Seus primeiros
biógrafos citam várias possíveis razões para esse curso radicalmente novo: a influência de
seu pai ou do futuro reformista, Pierre Olivétan, uma desilusão crescente com a teologia ou
2
o surgimento de uma consciência sobre a natureza da “verdadeira religião”. Ainda que
possa ser mínima a nossa compreensão sobre a motivação de Calvino em se mudar para
Orleans, o novo universo intelectual em que ele penetrou é, relativamente, bem
documentado e compreendido. Em Orleans e, posteriormente, em Bourges, ele encontrou
uma forma de Humanismo que cativou sua imaginação e que, mais tarde, ele iria adaptar a
seus próprios propósitos particulares.
Orleans diferia de Paris em uma série de aspectos importantes: não era uma cidade
universitária, havia sido radicalmente reformada em 1512 e possuía somente uma faculdade
– a de direito, com o direito civil predominando sobre o direito canônico. Erasmo havia
estudado em Orleans por seis meses em 1500 e recordava-se da experiência com um certo
desgosto. Sua vida, ele dizia, tinha se tornado miserável por causa de Accursius e
Bartholus. Em vez de poder estudar o texto clássico do direito romano, as Institutas
Justinianas, ele havia sido forçado a se aprofundar nas minúcias tediosas de comentaristas
posteriores. Os comentaristas medievais levaram seu trabalho a sério, inserindo
comentários em profusão nas margens e entre as linhas do texto. Hermeneutas tais como
Accursius e Bartholus desenvolveram a arte de interpretar comentários marginais e
interlineares, a ponto de tais interpretações tornarem-se mais importantes do que o próprio
texto ao qual elas originariamente se referiam.
A essa evolução correspondeu uma mudança semelhante no campo da teologia. Nunca
faltaram comentaristas bíblicos medievais prontos a adicionar suas próprias interpretações e
explicações ao texto das Escrituras. Desde suas origens, no final da Idade Média, a arte de
glosar as Escrituras tornou-se progressivamente sistematizada, conforme os comentários,
anotações e divagações acumuladas de gerações de glosadores começaram a assumir uma
autoridade própria, praticamente independente do texto bíblico, sobre o qual elas,
3
originariamente, basearam-se. Uma glosa era adicionada sobre outra, como se fossem
camadas de tinta. Os comentários bíblicos, freqüentemente, pouco faziam além de
reproduzir o conteúdo das glosas tradicionais. Com o surgimento do Humanismo, contudo,
tudo isto estava para mudar.

A NATUREZA DO HUMANISMO
No século 20, o termo “Humanismo” veio a significar uma filosofia ou uma perspectiva
sobre a vida que afirmava a dignidade do ser humano sem qualquer referência a Deus. O
“Humanismo” havia adquirido nuances forte-mente secularistas ou talvez, até mesmo,
ateístas. Falar do “surgimento do Humanismo”, na época da Reforma, poderia, portanto,
parecer sugerir uma confrontação entre a religião e o ateísmo. Porém, essa confrontação,
com tudo o que ela envolveria, nunca se materializou. A Renascença não foi o Iluminismo.
Notavelmente poucos – se alguns – humanistas dos séculos 14, 15 ou 16 correspondem à
nossa concepção moderna do “Humanismo”. Na verdade eles eram, de modo geral,
extraordinariamente religiosos e mais interessados na renovação do que na abolição da fé
4
cristã e da Igreja.
O termo “Humanismo” foi inicialmente utilizado pelo educador alemão F.
J. Niethammer, em 1808, para se referir a uma espécie de educação queenfatizava o ensino
do grego e do latim clássicos. Niethammer estava alar
OS ANOS ERRANTES: ORLEANS E O ENCONTRO COM O HUMANISMO

mado com o crescente foco sobre as ciências naturais e a tecnologia na educação secundária
alemã e acreditava que as conseqüências potencialmente desumanizadoras dessa ênfase
apenas poderiam ser reduzidas através de um estudo mais aprofundado das ciências
humanas. Curiosamente o termo não foi usado na própria época da Renascença, embora a
palavra italiana umanista seja, freqüentemente, encontrada. Essa palavra se refere à função
de professor universitário de studia humanitatis – “o estudo das humanidades” ou “artes
liberais”, tais como a poesia, a gramática e a retórica. Repetidos estudos a respeito de
célebres escritores humanistas da Renascença italiana têm revelado uma preocupação
comum e implícita com a eloqüência. Se existe algum tema comum nos escritos humanistas
é a necessidade de incentivar a eloqüência falada e escrita, com o grego e o latim clássicos
servindo como modelos e fontes para esse ambicioso programa estético.
O surgimento da pesquisa acadêmica clássica, a qual é um aspecto tão característico da
Renascença italiana, reflete esse novo interesse em redescobrir os valores e normas
culturais da Antiguidade. A civilização e a cultura clássicas eram vistas como recursos
contemporâneos. Obras em gre-go e latim eram bastante estudadas, na sua versão original,
como meios para se alcançar um fim, e não como um fim em si mesmas. Os humanistas
estudaram as línguas clássicas como modelos de eloqüência escrita, utilizan-do-as para
obter inspiração e instrução. O estudo clássico e a competência filosófica eram,
simplesmente, as ferramentas usadas para explorar os recur-sos da Antiguidade. Como tem
sido freqüentemente mencionado, os escritos humanistas dedicados ao incentivo da
eloqüência, escrita ou falada, excedem, em muito, tanto em quantidade quanto em
qualidade, aqueles dedicados à pesquisa acadêmica clássica ou à filologia.
O reconhecimento de que os humanistas compartilhavam de uma visão comum sobre
como se chegar aos conceitos, em vez de compartilharem conceitos que fossem, em si
mesmos, comuns, permite-nos entender e aceitar o fato, de outro modo inquietante e
perturbador, de que o “Humanismo” era incrivelmente heterogêneo. Por exemplo, muitos
escritores humanistas eram adeptos de Platão – mas outros preferiam Aristóteles. A
obstinada persistência da corrente aristotélica (por exemplo, na Universidade de Pádua),
por toda a Renascença, é um sério obstáculo para aqueles que consideram o Humanismo
5
como filosoficamente homogêneo. Alguns humanistas italianos exibiam atitudes que
pareciam ser anti-religiosas – mas outros humanistas italianos eram profundamente
piedosos. Alguns humanistas eram republica
nos – mas outros eram predominantemente monarquistas. Estudos recentes também têm
chamado a atenção para um lado menos atrativo do Humanismo
– a obsessão de alguns humanistas pela magia e pela superstição – o queseja, talvez, difícil
de harmonizar com a visão tradicional do movimento. O “Humanismo” aparenta não
possuir alguma filosofia distintiva ou coerente. Não há uma única idéia religiosa, filosófica
ou política que tenha dominado ou caracterizado o movimento. Designar um escritor como
um “humanista”, portanto, não significa transmitir qualquer informação essencial em
relação à sua postura filosófica, política ou religiosa; ao contrário, indica, em primeiro
lugar, um engajamento com os recursos do período clássico como um meio para gerar
idéias modernas e, em segundo lugar, um reconhecimento das normas clássicas de estilo na
expressão daquelas idéias.
Em síntese: o Humanismo estava interessado em como as idéias eram obtidas e
expressadas, em vez de se preocupar com a precisa natureza dessas próprias idéias. Um
humanista poderia ser um adepto de Platão ou de Aristóteles – mas em ambos os casos as
idéias envolvidas eram derivadas da Antiguidade. Um humanista poderia ser um cético ou
um religioso – mas ambas as atitudes poderiam ser defendidas a partir da Antiguidade. A
diversidade de idéias, que é tão característica do Humanismo renascentista, é baseada em
um consenso geral a respeito de como essas idéias devem se originar e ser expressas.
Embora o Humanismo tenha se originado no Renascimento italiano, ele provou ser
incrivelmente dinâmico em relação à sua difusão. Vem se tornando cada vez mais claro que
o Humanismo no Norte da Europa foi, definitivamente, influenciado pelo Humanismo
italiano em cada fase de sua evolução. Se houve movimentos humanistas originários do
próprio Norte da Europa, cujas origens tenham se dado de forma independente de seu
correspondente italiano (o que, deve-se salientar, é bastante duvidoso), a evidência indica
que, indubitavelmente, esses movimentos foram posteriormente influenciados, de forma
decisiva, pelo Humanismo italiano. Atualmente, foram identificados três canais principais
6
de difusão, no Norte da Europa, dos métodos e ideais da Renascença italiana. Primeiro,
através de acadêmicos do Norte da Europa que se mudaram para o Sul, na Itália, talvez para
estudarem em uma universidade italiana ou como parte de uma missão diplomática. Ao
retornaram para sua terra natal, eles trouxeram o espírito da Renascença junto com eles.
Segundo, através da correspondência dos humanistas italianos com o exterior, cuja
quantidade era considerável, estendendo-se à maioria das regiões

OS ANOS ERRANTES: ORLEANS E O ENCONTRO COM O HUMANISMO

do Norte da Europa. O Humanismo preocupava-se em promover a eloqüência através da


escrita e escrever cartas era visto como uma maneira de incorporar e difundir os ideais da
Renascença. Terceiro, através da impressão de livros, que se originavam de fontes como a
editora Aldine, em Veneza. Essas obras eram novamente impressas por editoras do Norte
7
da Europa, particularmente as de Basiléia, na Suíça. Humanistas italianos normalmente
dedicavam suas obras a patronos do Norte da Europa, assegurando, assim, que elas seriam
notadas e que circulariam nos locais propícios.
O princípio geral que embasa o Humanismo renascentista pode ser sintetizado no slogan
ad fontes, “de volta às fontes”. Através do retorno às fontes originais, a estagnação e a
miséria intelectuais da Idade Média poderiam ser superadas com a finalidade de se engajar,
diretamente, às glórias culturais da Antiguidade. Em vez de lidar com a confusão conceitual
e a deselegância literária dos comentários bíblicos medievais, era preciso retornar aos
próprios textos bíblicos e redescobrir seu frescor e vitalidade. A realização desse sonho
parecia cada vez mais ao alcance, no período final da Renascença, à medida que a pesquisa
acadêmica humanista começou a tornar disponíveis os recursos necessários para tanto. De
importância particular nesse aspecto é a obra de Erasmo de Rotterdam, Enchiridion ou
8
“Manual do Soldado Cristão”. Em-bora a obra tenha sido publicada pela primeira vez em
1503 e então reeditada em 1509, seu verdadeiro impacto data de sua terceira edição, em
1515. A partir daquele momento, ela tornou-se uma obra cult, aparentemente chegando a
vinte e três edições nos próximos seis anos. Seu apelo era dirigido aos leigos instruídos,
homens e mulheres, a quem Erasmo considerava como o verdadeiro tesouro da Igreja. Sua
impressionante popularidade nos anos posteriores a 1515 sugere que ocorreu uma alteração
radical nas expectativas e na confiança da classe leiga educada – e, dificilmente, pode-se
ignorar que os rumores reformistas, em Zurique (1519) e em Wittemberg (1517), datam de
pouco tempo depois de Enchiridion ter se tornado um sucesso de vendas. O sucesso de
Erasmo também acentuou a importância da imprensa como um meio de disseminação de
novas idéias radicais – um aspecto que Calvino não ignorou, quando da sua vez de propagar
tais idéias.
Enchiridion, de Erasmo, desenvolvia a tese imensamente atrativa de que a Igreja poderia
e deveria ser reformada, através de um retorno coletivo aos escritos dos pais da Igreja
(primeiros doutrinadores) e às Escrituras. A leitura regular das Escrituras é colocada como
a chave para a renovação e a reforma da Igreja. Erasmo concebia sua obra como um guia
bíblico para pessoas leigas, fornecendo uma exposição simples, embora culta, da “filosofia
de Cristo”. Através de seus esforços, as águas estagnadas dos comentaristas medievais
poderiam ser colocadas de lado, conforme as pessoas eram capacitadas a beber, profunda e
diretamente, das águas frescas das fontes originais. Isso exigia um conhecimento de línguas
– latim e grego, no caso dos clássicos, complementadas pelo hebraico, para o estudo do
Antigo Testamento – assim como o acesso aos escritos sobre os fundamentos da fé cristã,
na sua versão original.
Em resposta a essa tendência do mercado, uma modesta indústria de-senvolveu-se entre
os educadores humanistas, que produziam manuais de gramática e dicionários,
normalmente combinados em um só volume, para satisfazer o crescente apetite pelo
conhecimento clássico. Calvino estava entre os muitos que se beneficiariam de tais
ferramentas quando estudou grego, por conta própria, em Orleans, sob a supervisão de seu
amigo, Melchior Wolmar. Erasmo de Rotterdam foi responsável por uma incrível
performance, em termos de obras editadas, tendo produzido uma série de edições voltadas
aos ensinamentos patrísticos, que eram uma obra-prima daquela época. Embora sua edição
sobre os escritos de Agostinho fique em desvantagem, quando comparada à grandiosa
coleção de onze volumes de Amerbach, editada em 1506, sua edição das obras de Jerônimo
foi amplamente considerada como uma maravilha intelectual do mundo. Mais importante
de todas, porém, foi a publicação do Novo Testamento, por Erasmo, no seu original em
9
grego, em 1516. Pela primeira vez, os teólogos tiveram a oportunidade de comparar o texto
original do Novo Testamento, em gre-go, com a Vulgata, sua posterior tradução para o
latim. Uma grande consequência dessa comparação foi uma perda generalizada de
confiança na credibilidade da Vulgata, a “oficial” tradução da Bíblia para o latim.
Quando um teólogo medieval se refere às “Escrituras”, ele quase que invariavelmente
quer dizer o textus vulgatus, o “texto comum”. A edição padrão desse texto era o resultado
de uma parceria especulativa entre alguns teólogos e editores parisienses em 1226, o que
resultou na “versão parisiense” da Vulgata. Naquela época, Paris era considerada como o
centro dominante da teologia na Europa, resultando, inevitavelmente, no fato de que – a
despeito das tentativas de corrigir seus erros e imperfeições óbvios – a “versão parisiense”
da Vulgata tornou-se normativa. Essa versão, deve-se enfatizar, não era sancionada ou
subsidiada por alguma figura eclesiástica: ela parece ter sido um empreendimento
puramente comercial. Os teólogos medievais, na

OS ANOS ERRANTES: ORLEANS E O ENCONTRO COM O HUMANISMO

tentativa de fundamentar sua teologia nas Escrituras, eram, assim, forçados a identificar as
“Escrituras” com uma edição comercial, de péssima qualidade, que, por sua vez, já era
baseada em uma defeituosa tradução da Bíblia para o latim. O surgimento das técnicas
textuais e lingüísticas humanistas expôs as discrepâncias alarmantes entre a Vulgata e os
textos que ela supostamente traduzia – e, assim, abriu caminho para uma reforma
doutrinária. Não mais se poderia considerar as “Escrituras” e a “Vulgata” como sendo a
mesma coisa.
Erasmo demonstrou que a Vulgata, na sua tradução do texto grego do Novo Testamento,
apresentava sérios erros em vários pontos de relevante importância teológica. Como várias
práticas e crenças da Igreja medieval eram baseadas nesses textos, suas alegações foram
vistas com medo e alarme por muitos católicos conservadores (os quais desejavam manter
essas práticas e crenças) e, na mesma proporção, com um enorme prazer pelos
Reformadores (os quais desejavam eliminá-las). Dois exemplos demonstarão a relevância
da pesquisa bíblica humanista de Erasmo para a Reforma. A Vulgata traduziu as palavras
de abertura do ministério de Jesus (Mateus 4:17) como “penitenciem-se, porque está
próximo o Reino dos céus”, com uma clara referência ao sacramento da penitência. Erasmo
advertiu que o texto grego deveria ser traduzido como “ar-rependam-se, porque está
próximo o Reino dos céus”. Onde a Vulgata parece haver se referido ao rito eclesial da
penitência, Erasmo insiste que a referência era em relação a uma atitude interior do
indivíduo – a atitude de “estar arrependido”. Um desafio significativo foi, dessa forma,
colocado quanto à necessidade e relevância das cerimônias eclesiais existentes.
Outra área da teologia que os teólogos medievais levaram muito além das modestas
perspectivas da Igreja primitiva refere-se a Maria, a mãe de Jesus. Para muitos teólogos
medievais posteriores, Maria deveria ser tratada como um reservatório de graça, o qual
poderia ser invocado, quando necessário. Em parte, essa visão baseava-se na tradução, feita
pela Vulgata, das palavras do anjo Gabriel para Maria (Lucas 1:28). De acordo com a
Vulgata, Gabriel saudou Maria como “aquela que é cheia de graça” (gratia plena),
sugerindo, assim, a imagem de um reservatório. Mas, como Erasmo advertiu, o texto grego
original simplesmente queria dizer “a favorecida” ou “aquela que achou graça”. Mais uma
vez, uma importante criação da teologia medieval parece ter sido contestada pela pesquisa
acadêmica humanista do Novo Testamento.
Calvino iria, posteriormente, provar que era um mestre nas técnicas lingüísticas e
textuais humanistas utilizadas para a interpretação das Escrituras. Nosso interesse nessa
fase relaciona-se, porém, a uma forma específica de Humanismo, a qual ele encontrou em
Orleans e Bourges. Uma conseqüência da proposta humanista de emergir diretamente ad
fontes era uma manifesta impaciência com glossários e comentários. Longe de serem vistos
como ferramentas úteis para o estudo, aqueles vieram, progressivamente, a ser considerados
como obstáculos ao compromisso com o texto original. Eles eram como filtros colocados
entre o leitor e o texto, que provocavam distorções. Eram como camadas de pó
obscurecendo um mosaico ou como camadas de tinta cobrindo um mural: eles negavam ou
impediam o acesso a um original precioso. Diferentemente dos arquitetos vitorianos, os
quais destruíram as características medievais da arquitetura de Oxford ao “restaurá-la”, os
glosadores, porém, meramente se colocaram entre o texto original e o leitor moderno. Eles
poderiam ser postos de lado e o texto original – quer este fosse o Novo Testamento ou os
códigos legais justinianos – poderia ser lido diretamente, sem estar contaminado por seus
comentários. À medida que a nova pesquisa acadêmica tornou-se mais confiante em suas
declarações, a credibilidade de Accursius e outros era, cada vez mais, questionada pelos
humanistas que atuavam na área jurídica. O grande acadêmico espanhol, Antonio Nebrija,
publicou uma detalhada descrição dos erros que ele havia detectado nas glosas de
Accursius, enquanto Rabelais escreveu, desdenhosamente, acerca das “opiniões ineptas de
Accursius”. Os fundamentos do Humanismo jurídico francês haviam sido bem fixados.

O HUMANISMO JURÍDICO FRANCÊS


Na França do século 16, o estudo do direito passava por um processo de radical revisão.
Enquanto as regiões ao Sul jamais perderam totalmente o contato com os elaborados
tópicos do direito romano, as províncias do Norte tornaram-se pouco mais do que pays de
coutume, onde o “direito” era, virtualmente, igualado a costumes não codificados ou não
escritos. A monarquia absolutista francesa, sob a liderança de Francisco I, com sua
crescente tendência em direção à centralização administrativa, considerava tal diversidade
legal como ultrapassada. Com vistas a acelerar o processo de reforma legislativa, levando
posteriormente à formulação de um sistema legislativo válido para toda a França, ela deu
apoio estratégico àqueles que estavam envolvidos com os aspectos teóricos dos códigos
10
legais genéricos, fundamentados em princípios universais. Um pioneiro dentre esses
últimos foi Guillaume Budé, que defendia um retorno direto ao direito romano como um
OS ANOS ERRANTES: ORLEANS E O ENCONTRO COM O HUMANISMO

meio de responder às novas necessidades legais da França, que eram, ao mesmo tempo,
expressivas e modestas. Em contraste com o costume italiano (mos italicus) de interpretar
textos legais clássicos à luz das glosas e comentários dos juristas medievais, os franceses
desenvolverem um procedimento (mos gallicus) de recorrer diretamente às fontes legais
11
clássicas originais, em sua língua original. Embora os légistes de Orleans e Bourges não
tivessem qualquer autoridade para impor um retorno ao direito romano, a qualidade de seu
envolvimento com os problemas teóricos que ocorriam na interpretação de um texto
clássico e na sua contextualização para atender às necessidades do momento consagraram
homens, tais como Budé, como figuras excepcionais entre os intelectuais de sua época.
Calvino provavelmente chegou a Orleans em 1528, embora não tenhamos qualquer
evidência documental que comprove este fato. No ano seguinte ele foi atraído a Bourges
em razão da reputação de um professor de direito italiano que havia chegado recentemente
12
àquela cidade, o notável jurista Andréa Alciati. Como parte de uma série de reformas
impostas em 1527, Bourges começou a tomar célebres acadêmicos de outras instituições,
oferecendo altos salários que compensavam a falta de prestígio da universidade. Alciati foi
seduzido a deixar Avignon em razão de um atrativo acordo financeiro. Após um tempo,
porém, Calvino descobriu que o carisma de Alciati estava clara-mente em declínio; ele
parece haver retornado a Orleans em outubro de 1530.
Estudando direito civil em Orleans e Bourges Calvino veio, assim, a ter contato direto
com um célebre adepto do movimento humanista. Sugerir que ele somente adquiriu uma
compreensão dos fundamentos teóricos do direito e das práticas da codificação legal é
subestimar a importância desse encontro. Certamente é verdade que quando Calvino foi,
posteriormente, requisitado para auxiliar na codificação das “leis e editos” de Genebra, ele
foi capaz de utilizar seu conhecimento do conjunto do direito romano civil clássico (Corpus
13
Iuris Civilis) para modelos de contratos, direito patrimonial e procedimento judiciário;
assim como Andréa Alciati, atraído para Bourges a um alto custo, Calvino era, ao mesmo
tempo, um filósofo humanista e uma advogado prático. A produção literária de Budé
aponta para a convicção de que a herança clássica em geral, e não apenas suas instituições e
códigos legais, estava carregada de importância para o presente. A ligação entre o direito e
a literatura (bonae litterae), estabelecida por Budé, parece haver introduzido Calvino ao
mundo dos valores, métodos e fontes humanistas. Além de seu De asse et partibus eius
(1514) e Commentarii graecae linguae (1529), e Annotationes in quatuor et viginti
Pandectarum libros (1508), Budé produziu escritos sobre o Novo Testamento e a notável
De transitu hellenismi ad Christianismum, traçando a evolução da sabedoria grega até a fé
cristã. A última obra mencionada introduziu uma extensa defesa dos princípios básicos do
Humanismo cristão, alegando que o estudo da Antiguidade é uma preparação apropriada
para o Evangelho de Jesus Cristo. Calvino adotaria uma perspectiva semelhante na grande
edição de 1559 das Institutas da Religião Cristã, permitindo a Cícero guiar o leitor da
14
religião primitiva da Antiguidade em direção ao superior Evangelho de Jesus Cristo.
As origens do método de Calvino, talvez como o maior comentarista bíblico de sua
época, estão no seu estudo do direito, na sofisticada atmosfera de Orleans e Bourges. Há
várias indicações de que ele aprendeu com Budé sobre a necessidade de ser um competente
filólogo, de fazer uma aproximação direta a um texto básico, a interpretá-lo dentro dos
parâmetros lingüísticos e históricos de seu contexto e a aplicá-lo às necessidades do
contexto atual. Contudo, Calvino iria, pela primeira vez, aplicar publicamente esses
métodos não às Escrituras, mas a uma obra de menor importância de Sêneca.

O COMENTÁRIO DE SÊNECA
No início de 1531, Calvino graduou-se como licencié ès lois na Universidade de
Orleans. O Calvino que encontramos saindo do estudo do direito dá pequena indicação de
que tivesse qualquer ambição de se tornar um légiste (o fato de que ele deveria estudar
direito parece haver sido, antes de tudo, uma decisão de seu pai, como observamos
anteriormente); ao contrário, suas aspirações parecem firmemente direcionadas à
persecução da eloqüência e da boa escrita, qualquer que fosse a fama que estas pudessem
lhe trazer. Após retornar a Paris, em junho de 1531, ele terminou uma grande obra
acadêmica, iniciada enquanto ele ainda era um estudante de direito em Orleans, em 1530. O
estudo do direito havia levado Calvino a amar a literatura. Possivelmente tentando ganhar
reputação como um acadêmico humanista, ele dedicou dois anos de sua vida a escrever um
comentário sobre a obra de Sêneca, De clementia, que ele publicou às suas próprias custas,
em abril de 1532. Um estrangeiro no mundo das publicações, Calvino logo descobriu seus
perigos: a falta de interesse em seu livro deixou-o em uma situação financeira complicada e
o forçou a emprestar dinheiro de amigos, como Nicolas Cop (filho do famoso médico e
acadêmico parisiense, Guillaume Cop) e
OS ANOS ERRANTES: ORLEANS E O ENCONTRO COM O HUMANISMO

15
Nicolas du Chemin. Tentando aproveitar-se do fato de ser conhecido em Orleans, Calvino
tentou persuadir palestrantes a mencionar a obra e a Philip Loré, seu agente editorial, a ter
16
em estoque não menos do que cem cópias.
O tratado particular que Calvino escolheu expor havia sido incluído por Erasmo de
Rotterdam em sua edição de Sêneca, em 1515. Naquela época, Erasmo estava preocupado
com sua obra sobre Jerônimo e o Novo Testamento e não é improvável que ele possa ter
dedicado menos tempo e atenção a Sêneca, do que a obra o exigia; insatisfeito com seus
esforços, ele publicou uma edição melhorada, em janeiro de 1529. Foi essa segunda edição
que atraiu a atenção de Calvino, talvez devido a seu prefácio. Erasmo cordialmente convida
qualquer pessoa, com maior capacidade e tempo livre que ele, a melhorar sua obra; era um
claro convite à derrota. Talvez seja uma indicação de sua imaturidade o fato de que
17
Calvino, visando à aprovação da esfera literária, aceitou o desafio, onde outros teriam sido
sábios o suficiente para rejeitá-lo.
O convite era como um cálice de bebida envenenada. Pode-se dizer que a carreira de
Calvino como escritor profissional tenha começado e terminado com essa obra. Se a sorte o
abandonou na questão do comentário de Sêneca, deve-se também dizer que sua fama não
provém dele tampouco. Provavelmente, é justo sugerir que se Calvino tivesse continuado
por esse caminho pelo resto de sua carreira, ele não teria merecido mais do que uma nota de
rodapé em alguma obra sobre a história da pesquisa acadêmica clássica, para se aposentar
posteriormente na mais total e merecida obscuridade. A obra demonstra uma
fundamentação exaustiva na história, literatura e cultura da Antiguidade; cinqüenta e cinco
18
autores latinos e vinte e dois autores gregos são citados. Essas estatísticas talvez sejam
menos impressionantes quando se considera que a maioria das citações deriva de
compilações existentes na época, tais como a de Aulus Gellius, Attic Nights ou a de Budé,
Commentarii graecae linguae,
o que sugere uma conquista literária talvez comparável à de alguém que tivesse recorrido
19
ao Oxford Dictionary of Quotations. Entretanto, se o material de Calvino é emprestado,
em vez de original, ele ainda assim demonstra uma considerável destreza e criatividade em
manuseá-lo.
Talvez mais significativo, contudo, seja o fato do comentário apresentar Calvino como
um homem interessado na refinada arte da persuasão através das palavras. O futuro
retórico, que aprendeu a usar as palavras com maestria para que a palavra de Deus pudesse
ser canalizada através delas, revelou-se nessa primeira obra. Repetidamente, Calvino se
mostra como alguém que aprecia uma descrição particularmente apropriada, uma oração
bem construída, uma expressão elegante ou um bom mot cuidadosamente escolhido (ele até
mesmo critica Sêneca, ocasionalmente, por seu estilo irregular). Seu apaixonado interesse
pela facilitação da comunicação, pela habilidade de suprir a lacuna entre o emissor e o
ouvinte, entre o escritor e o leitor, é evidente por toda a sua obra. Os anglo-saxões podem
evitar o termo “retórica”, onde considerem ser mais aceitável a incômoda “teoria da
comunicação”; contudo, os dois termos designam a mesma disciplina, a qual Calvino
demonstrou ter dominado quando ainda era jovem, aos vinte e poucos anos. Era uma
disciplina que se tornou uma arma, a qual ele iria empregar, com sucesso considerável, nos
esforços da Reforma que viriam pela frente.
Embora alguns comentaristas tenham sugerido que o comentário de Sêneca seja a
minúscula semente de mostarda, a qual contém in nuce a poderosa árvore da Reforma, essa
consideração só é admissível em relação aos métodos que Calvino empregou, e não em
relação aos resultados que ele obteve através da aplicação dos mesmos. Nessa obra ele
parece ter se interessado primeiramente na expressão, em vez da substância, sendo talvez
essa preocupação o elemento mais original e criativo em uma obra, cujo conteúdo é, de
modo geral, enfadonho e adaptado. No comentário encontramos Calvino estipulando o
sentido de orações ou palavras através de uma explicação filológica seguida de um apelo à
gramática e à retórica para explicar o modo como as palavras se relacionam. Requintes
finais de interpretação são fornecidos pela demonstração do uso paralelo de termos ou
frases encontrados em outras fontes da Antiguidade e em outros escritos de Sêneca.
Explicações eruditas de orações e termos latinos abundam, intercaladas com
impressionantes etimologias de palavras gregas. A impressão geral que se tem é de que essa
é uma obra escrita por um homem que se importa com as palavras e a lingua-gem, mesmo
que as idéias que estas transmitam muitas vezes pareçam, a esta altura, estar relegadas a um
segundo plano. Se Calvino aparenta demonstrar uma falta de interesse pelo produto desse
rigoroso processo de aproximação ao texto, isto talvez seja devido à sua excessiva
preocupação, a essa altura, com o método, em vez da substância. A mesma diligente
preocupação com a contextualização histórica e literária de seu texto permeia, em uma fase
mais madura, sua obra e pregação como comentarista bíblico; nestas ocasiões posteriores,
contudo, Calvino parece estar enfeitiçado, cativado, apaixonado mesmo, pela substância de
seus textos. Há um traço distinto de compromisso, de interesse existencial pelas Escrituras,
que é notadamente ausente no questionamento corriqueiro do comentário de Sêneca.

OS ANOS ERRANTES: ORLEANS E O ENCONTRO COM O HUMANISMO

Durante a segunda metade de maio de 1532, Calvino deixou Paris para ir para Orleans.
Sua intenção era, presumivelmente, completar seus estudos legais. Sabe-se que ele atuou
como um substitut annuel du procureur da Nação Picardia, de Orleans, nos meses de maio
20
e junho de 1533; embora a natureza precisa desse cargo não seja clara (parece haver sido
honorário e administrativo), parece haver sido conferido por todo o ano acadêmico de
1532-1533. Após o ano haver terminado, Calvino parece haver retornado para sua natal
Noyon: sabe-se que ele participou de uma reunião dos cônegos da catedral, em 23 de agosto
21
de 1533. Dois meses mais tarde, ele estava em Paris.

PARIS EM 1533
De vários modos a situação em Paris, então, espelhava a que existira quando Calvino
estudara lá pela primeira vez. Havia uma intensa hostilidade em relação a qualquer visão
que pudesse ser considerada inspirada em Lutero ou que fosse de uma ortodoxia
22
questionável. Em abril de 1530, a faculdade de teologia condenou como infame a sugestão
de que a “Santa Escritura não pode ser corretamente compreendida sem o auxílio do grego,
23
do hebraico e de outras línguas semelhantes”. Essa decisão é, de modo geral, considerada
como uma tentativa de menosprezar a autoridade dos leitores do Collège Royal (Guillaume
Budé, Nicolas Cop, Pierre Danès e François Vatable) que, mais tarde, se tornaria o Collège
de France, um bastião do Humanismo dentro de uma universidade ainda apegada aos
velhos métodos do escolasticismo. Em 1º de fevereiro de 1532, a faculdade proferiu a
condenação de uma série de doutrinas subversivas propostas por Etienne Le Court,
incluindo a sugestão radical de que “agora que Deus havia desejado que a Bíblia deveria ser
em francês, as mulheres assumirão o cargo dos bispos e os bispos, a função das mulheres.
As mulheres pregarão o Evangelho, enquanto os bispos irão fofocar (broderont) com as
24
jovens donzelas.”. A faculdade achou isso demasiadamente avançado para sua visão de
ortodoxia.
No entanto, o período de 1528 a 1535 foi repleto de dificuldades para a faculdade de
teologia. Em 1532, Jean du Bellay, um antigo e notório crítico da faculdade, foi indicado
para o cargo de bispo de Paris. Uma certa frieza se desenvolveu, nesse período, entre a
faculdade e o parlement parisiense. As relações entre o rei e a faculdade também eram
tensas. A faculdade havia sido vencida por Francisco I na questão do divórcio de Henrique
VIII e observava, com alarme, a crescente influência de Marguerite de Navarre, propensa
ao evangelicalismo, sobre Francisco, após a morte da rainha mãe. Sob a proteção de
Marguerite, o evangélico Gérard Roussel começou a atrair grandes multidões com suas
pregações durante a quaresma, em 1533. Não demorou para que outros pregadores
começassem a imitar seu estilo e idéias. Seriamente preocupada com o impacto de Roussel,
em 29 de março de 1533, a faculdade ordenou seis de seus membros a pregarem contra os
25
“erros e a perversa doutrina dos luteranos”. O sucesso estritamente limitado desse esforço levou a faculdade a organizar uma
operação de inteligência, autorizada pelo vigário de Paris, para lançar as bases de uma perseguição por heresia contra Roussel. Os sermões de Roussel receberam uma

atenção extraordinariamente acentuada por parte de alguns de seus ouvintes, em abril daquele ano. O rei, porém, estava alarmado com as possíveis implicações que esse

julgamento por heresia teria sobre a protetora de Roussel, Marguerite de Navarre (que estava grávida na época): em 13 de maio de 1533, o rei ordenou que Noël Bédier

(o representante da faculdade) e certos críticos de Roussel fossem banidos de Paris (o cargo de representante havia sido criado em 5 de maio de 1520, em resposta à

insatisfação com a eficiência dos detentores das então existentes posições de deão e vice-deão. Bédier foi convidado a se tornar representante e a assumir, efetivamente, a

direção da faculdade. Ele assumiu essa posição praticamente de forma contínua, até 1533).

Isso foi interpretado como um golpe decisivo contra a faculdade de teologia. A


faculdade, contudo, prontamente elegeu um novo representante e parece ter se vingado do
rei, em outubro, permitindo que o poema de Marguerite, Miroir de l’âme pécheresse, fosse
censurado (o editor, eles argumentaram, havia deixado de submeter a obra à aprovação da
26
faculdade, como estava previsto pelo parlement). Essa versão ganhou credibilidade devido
a uma tentativa recente de estudantes de apresentar uma peça de teatro, em 1º de outubro,
no Collège de Navarre (um notório território aliado da faculdade de teologia), na qual
Marguerite de Navarre era retratada como uma dona de casa que havia enlouquecido ao ler
a Bíblia. Calvino relatou esses acontecimentos com algum divertimento na carta para seu
27
“irmão e bom amigo, senhor (François) Daniel, advogado de Orleans.”. Uma referência
bastante velada, conspiratória e entusiasmada a “M.G.”, nessa carta, sugere que Calvino era
28
simpatizante das convicções evangélicas do “senhor Gérard (Roussel)”, indicando, assim,
ao menos algum grau de adesão, por parte de Calvino, ao moderado programa de reforma
ao qual Roussel estava associado.
OS ANOS ERRANTES: ORLEANS E O ENCONTRO COM O HUMANISMO

À medida que o mês de outubro de 1533 se aproximava do final, ocorreram sinais


conflitantes a serem observados no que se refere ao clima para a reforma, em Paris. A
faculdade de teologia manteve sua anterior hostilidade tanto em relação ao Luteranismo
quanto ao Humanismo; seu poder, porém, parece haver sido temporariamente reduzido. O
rei, por outro lado, progressivamente inclinado a levar em consideração as perspectivas pró-
evangélicas de Marguerite de Navarre, parecia favorável em relação às perspectivas
reformistas moderadas, associadas a Lefèvre d’Etaples e seus discípulos, tais como
Roussel. Esses homens, embora claramente interessados, de forma passional, na situação
espiritual da Igreja Católica, viam a si mesmos como chamados a renová-la internamente;
29
eles não eram “reformistas” no sentido que essa palavra adquiriria poste-riormente. Talvez
fosse fácil, para aqueles simpatizantes à causa da Re-forma, serem seduzidos por tais sinais
positivos e negligenciarem indicadores mais ameaçadores, que sugeriam que o clima contra
os évangéliques estava endurecendo. Nicolas Cop, recém-eleito reitor da Universidade de
30
Paris, no outono de 1533, optou por dedicar seu discurso inaugural à necessidade de
reforma e renovação dentro da Igreja. Isso iria se provar um catastrófico erro de
julgamento.

O DISCURSO DO DIA DE TODOS OS SANTOS


Em 1º de novembro de 1533, Cop proferiu o costumeiro discurso, marcando o início do
novo ano acadêmico. Desde a publicação, em 1580, do definitivo Histoire ecclésiastique
dês églises réformées au royame de France, compilada em Genebra, sob a direção de
Teodoro de Beza, tor-nou-se parte da tradição permanente, quanto ao período em que
31
Calvino viveu em Paris, afirmar que esse discurso foi feito na “igreja dos Mathurins”.
Embora o discurso fosse, de fato, tradicionalmente feito na capela do convento Trinitariano
de São Mathurin, que era o local habitual de reunião da faculdade de teologia, em 1533, o
local foi, na verdade, a capela dos Franciscan Observantines, localmente conhecidos como
“cordeliers” por causa da corda que usavam amarrada em volta de suas cinturas (isso ficou
claro em uma carta de Roderigo Manrique para Luis Vives, datada de 9 de dezembro de
32
1533; isso também explica uma questão que, de outra forma, seria confusa – porque foram
os cordeliers os primeiros a condenar o discurso de Cop.)
33
O discurso causou sensação. Embora ele fosse modesto em suas propostas (refletindo
atitudes fabrisianas, semelhantes àquelas de Gérard Roussel) e baseado em uma teologia
derivada (ligeiramente inspirada em Erasmo e Lutero, mantendo, contudo, muito material
tradicional católico, tal como a invocação da Virgem Maria), o discurso foi considerado
como ofensivo e radical por aqueles que o ouviram. A violência dessa reação é uma questão
histórica, mas contudo, é difícil compreender sua intensidade porque o discurso não
apresenta qualquer sinal de haver sido escrito por alguém comprometido com princípios
que fossem então entendidos como pertencentes à Reforma. Escrevendo um mês após o
acontecimento, Manrique descreveu a ira que o discurso provocou em todas as camadas da
34 35
sociedade parisiense. Marguerite de Navarre interveio em vão, em favor de Cop. Em 19
de novembro ele foi substituído em seu cargo de reitor por seu precursor imediato, o
acadêmico português Andréas de Gouveia. No dia seguinte, o reitor anterior foi intimado a
se apresentar perante o parlement; embora se saiba que Cop estava em Paris, naquele
36
momento, ele não se apresentou. Em 13 de dezembro, Francisco I escreveu, furioso, de
Lyons, ordenando a prisão do parlementaire incompetente que havia permitido que Cop
37
fugisse de Paris.
Duas cópias desse discurso inaugural ainda existem: a primeira, feita pelo próprio punho
de Calvino, parece ter várias páginas faltando; a segunda, feita por alguém do século 16,
contém o texto completo do discurso, mas com várias infelicidades gramaticais que
38
sugerem ser ela uma cópia sofrível de um original desconhecido. Uma comparação da letra
dessa última com a da carta de Cop para Martinho Bucero, datada de 5 de abril de 1534,
sugere que esse texto completo foi escrito pelo próprio Cop. Entretanto, é bastante
improvável que essa seja a cópia original do discurso. Em primeiro lugar, ele foi escrito em
um tipo de papel que parece ser proveniente do Norte da Região do Reno, possivelmente na
própria Basiléia (sugerindo que Cop a tenha escrito enquanto estava exilado nesta cidade,
em 1534); o arquivista de Strasbourg, Jean Rott, descobriu uma carta, escrita na Basiléia
pelo humanista alemão Myconius a colegas em Strasbourg, datada de 9 de novembro de
1539, cujo papel carrega a mesma marca d’água característica, como a que foi encontrada
nas folhas 3 e 4 do documento de Strasbourg. Em segundo lugar, um estudo das variações
textuais, que ocorrem entre as duas versões existentes do texto, sugere que ambas são
cópias de um original perdido, sendo o documento de Genebra a melhor das duas.
OS ANOS ERRANTES: ORLEANS E O ENCONTRO COM O HUMANISMO

Calvino também optou por deixar Paris, rumo a um destino desconhecido, durante as
39
duas últimas semanas de novembro de 1533. Por volta do início de dezembro, ele sentiu-se
40
capaz de retornar. Mas por que Calvino sentiu-se forçado a fugir de Paris durante a
repercussão da questão de Cop? Nenhuma fonte contemporânea sugeriu que ele tenha sido
o autor ou que estivesse, de alguma maneira, envolvido na produção do provocante discur-
so de Cop (a primeira pista de que o próprio Calvino tenha escrito o discurso é encontrada,
de forma caracteristicamente não substancial, na biografia revisada de Calvino, de 1575, da
autoria de Beza.) Por um lado, a questão pode ser respondida sem grandes dificuldades:
durante a repercussão do episódio de Cop, as autoridades tomaram medidas contra, pelo
menos, cinqüenta indivíduos que eram considerados simpatizantes das idéias “luteranas”;
Calvino teria, inquestionavelmente, estado entre eles, tivesse ele permanecido na cidade.
Entretanto, aquela possibilidade mais intrigante permanece: a de que Calvino teria, na
verdade, escrito o discurso de Cop. A evidência em relação a essa possibilidade, embora
sugestiva, está longe de ser irrefutável. Se o discurso foi feito por Calvino, ele ainda teria
que desenvolver seu estilo posterior. Atribuir o discurso a Calvino não lhe presta qualquer
honra, seja literária ou teológica. Isso também indica certas atitudes teológicas que não são
características do posterior Reformador; no entanto, não há qualquer razão particular para
excluir o fato de que ele possa ter assumido essas posturas, nesse estágio inicial, quando ele
parece ter-se alinhado com uma concepção fabrisiana da Reforma, que era mais moderada.
Do mesmo modo, a questão permanece: por que Calvino deveria ter copiado o discurso por
seu próprio punho? Que associações isto teria em relação a Calvino, que merecesse tal
atitude de sua parte? A existência do documento sugere que, ao menos na mente de
Calvino, o discurso estava definitivamente associado à sua própria formação religiosa,
talvez até mesmo a ponto de refleti-la.
Porém, a questão central ligada à formação religiosa de Calvino relacio-na-se à sua
transição de humanista a Reformador. Em que ponto ele se afastou do moderado programa
fabrisiano de Reforma e aderiu a uma agenda mais radical, hoje associada a seu nome? Que
considerações o levaram a essa decisão? Lidar com tais questões é voltar-se para a questão
da “súbita conversão” de Calvino – uma decisão aparentemente catastrófica (no senti-do de
ter sido abrupta e abrangente) de se comprometer, irrevogavelmente, com a causa da
Reforma.

4
DE HUMANISTA A REFORMADOR: A CONVERSÃO

Um tema central da espiritualidade cristã é a noção de que grandes pecadores possam ser
redimidos de suas transgressões através de um momento de conversão único e quase
sempre dramático. Paulo e Agostinho, os dois precursores do Cristianismo ocidental,
passaram por experiências, em sua conversão, que as gerações posteriores tomaram como
1
modelos. Falar de “conversão”, porém, não é meramente chamar a atenção para uma súbita
mudança da mente ou do coração; é sugerir que, discretamente, ainda que de forma
decisiva, por detrás dessa reviravolta deve-se discernir a mão de Deus. Conversão é algo
dirigido a Deus e alcançado por Ele. A experiência de Paulo na estrada para Damasco (Atos
9:1-19) aponta para uma nítida percepção, de sua parte, e posteriormente da parte dos
primitivos círculos cristãos, da influência de Deus sobre um material aparentemente
inapropriado e rebelde. Paulo- ou Saulo de Tarso – como devemos chamá-lo nesta fase –
considerava-se irremediavelmente arraigado a seus caminhos, irreconciliavelmente
contrário ao Cristianismo; sua transformação posterior foi de tamanha magnitude e inten-
sidade que ele somente poderia atribuí-la a uma intervenção divina.
À medida que a Reforma ganhava impulso, havia uma tendência crescente a considerar a
Igreja Católica medieval como algo que se assemelhava aos piores aspectos do Judaísmo
posterior ao exílio. Ela não ensinava a justificação pelas obras da lei, que, segundo Paulo,
2
havia sido o principal erro teológico do Judaísmo? Um certo paralelo era observado entre o Catolicismo medieval e o
Judaísmo, de um lado, e entre o evangelicalismo e o Cristianismo do Novo Testamento, de outro. Assim como Paulo simbolizava a impetuosa transição do Judaísmo para

o Cristianismo, sua conversão devia ser tomada como um paralelo, no século 16, por alguém que rompesse com seu passado católico para assumir, deliberada e

decisivamente, uma ligação com a Reforma. Ninguém nascia evangélico nos anos de 1520 ou de 1530: tor-nar-se um envolvia uma decisão consciente de romper com o

passado, equi-valendo-se àquilo que havia sido experimentado pelos judeus convertidos ao Cristianismo, no seu período inicial. A experiência decisiva de sua conversão,

narrada por Agostinho, também era incorporada pelos propagadores da Reforma. Não havia paralelos entre a gradual desilusão de Agostinho com a superstição pagã

(como eles a viam), culminando em uma mudança decisiva de direção e franca adesão ao Evangelho, e as suas próprias jornadas espirituais, que se afastavam da

superstição religiosa da Igreja medieval em direção à redescoberta da religião do Evangelho?

O termo “conversão” era, então, bastante carregado de nuances e apelos implícitos a


acontecimentos vitais e a padrões normativos da história cristã. Como alguém que
desprezava o culto à personalidade, Calvino fornece poucas pistas de sua própria evolução
religiosa. Há apenas uma passagem nos seus escritos que pode, de forma realista, ser
tomada como um relato fidedigno de sua decisão em romper com seu passado: o prefácio
3
de seu Comentário sobre os Salmos (1557). Ao descrever esse rompimento com a Igreja
medieval como uma “súbita conversão” (subita conversio), Calvino estava,
indiscutivelmente, aderindo a essas poderosas associações. A “conversão” não designava,
meramente, uma experiência religiosa privada e interna; ela abrangia uma mudança
exterior, visível e radical da lealdade institucional. Ao descrever como se desenvolveu seu
chamado para ser um Reformador, ele afirma que estava “tão intensamente devotado às
4
superstições do papado” que apenas um ato de Deus poderia libertá-lo dessa situa-ção. Ele
era um conservador, incapaz de se libertar, possivelmente até mesmo contente em se
espojar no lodo reconfortante e familiar da espiritualidade católica. Em uma série de
imagens bruscas, Calvino retrata sua situação como a de alguém que está aprisionado em
seus próprios caminhos, incapaz e, talvez, até mesmo relutante em se libertar. Uma
intervenção externa era necessária para que ele algum dia pudesse se libertar da matriz da
religião pre
DE HUMANISTA A REFORMADOR: A CONVERSÃO

dominante, ao final da Idade Média. Empregando uma imagem eqüestre, ele compara a
maneira como Deus lida com ele, nessa fase, a um cavaleiro que dirige seu cavalo por meio
das rédeas. “Por fim, Deus mudou minha trajetória para uma direção diferente, pelo freio
secreto (frenum) de sua providência... Por uma súbita conversão (subita conversione) à
5
docilidade, ele do-mou uma mente bastante intransigente pelos seus anos.”.
Aqui, a gramática de Calvino ilustra tanto sua teologia quanto a compreensão de sua
experiência religiosa pessoal. Durante a narrativa, Deus é apresentado como a parte ativa:
Calvino é passivo. Deus age, Calvino sofre a ação. Uma atitude semelhante é expressa pelo
Reformador de Zurique, Huldrych Zwínglio, em um poema datado de 1519, no qual ele
reflete sobre sua experiência de haver estado à beira da morte em decorrência da peste que,
então, assolava a cidade. Se ele iria morrer ou viver estava nas mãos de Deus. Zwínglio
registra a percepção de sua total impotência; ele não era mais senhor de si mesmo, mas um
6
brinquedo divino, uma porção de argila a ser modelada, um vaso a ser quebrado. Como
conseqüência, as noções de providência e onipotência divinas vieram a assumir um papel
central no pensamento de Zwínglio, investidas de importância existencial. Sua doença qua-
se fatal emprestou vitalidade e relevância à idéia da providência de Deus. A providência
não era mais alguma noção abstrata, mas uma força com a qual se deveria lidar, algo que
afetou a própria sobrevivência de Zwínglio.
O relato breve e denso de Calvino sobre sua conversão é ao mesmo tempo revelador e
enigmático. Ele indica, claramente, que considerava a si mesmo como havendo sido
separado por Deus, como havendo sido chamado para servir a Deus, através de uma
7
capacidade e em um local bastante específicos, embora ainda não definidos. De forma
alguma, deve-se ressaltar, essa consciência de uma vocação divina pode ser tomada como
um sinal de arrogância da parte de Calvino: sua compreensão a respeito das condições sob
as quais os seres humanos se relacionam com Deus impede qualquer atitude desse tipo.
Aqueles conceitos centrais à doutrina da justificação pela fé de Lutero ecoam no jovem
Calvino: Deus chama os pecadores, os rejeitados e aqueles que não têm esperança, aqueles
que são estúpidos e fracos aos olhos do mundo. Ser chamado por Deus é qua-se um sinal de
falha total, segundo os padrões humanos. Há importantes paralelos entre o relato de
8
Calvino sobre sua própria conversão e seus comentários sobre a conversão de Paulo,
sugerindo que ele reconhecia uma afinidade histórica e religiosa entre os dois eventos.
Contudo, o enigma permanece – na verdade, o relato de Calvino sobre a sua própria
conversão gera tantos mistérios quantos os que ele resolve. Quais meios históricos e
humanos foram empregados pela “providência de Deus”? E como o seu senso de vocação e
a sua conversão estão relacionados? Calvino tomou consciência de um chamado para servir
a Deus como um ministro do Evangelho antes, durante ou depois de sua conversão? O
relato extremamente compacto, no prefácio de 1557, sugere que eles possam ter sido
simultâneos – mas não existe a possibilidade de que Calvino, em sua velhice, tenha
condensado, em um instante, evoluções que ocorreram durante um período de tempo
duradouro? Martinho Lutero relembrando, em sua velhice, seu grande momento de
conversão, cerca de trinta anos após o even-to, parece haver condensado substancialmente a
história: percepções, as quais se pode demonstrar que ocorreram durante um período de
anos, são apresentadas como se tivessem acontecido em um momento de devastadora ilu-
9
minação. Não há uma probabilidade real de que Calvino possa ter feito o mesmo, com a
memória sendo influenciada pela teoria ou pelos paradigmas de Agostinho ou de Paulo?
Ganoczy sugeriu, com certa razão, que as referências de Calvino a uma “súbita
conversão” não devem ser entendidas como um relato histórico, mas como um comentário
10
teológico a respeito do início de sua carreira. Existem excelentes razões para sugerir que
Calvino deseja identificar, em sua própria vida, um exemplo do fenômeno genérico da
momentânea, porém decisiva, invasão divina na dimensão humana. Não há quaisquer
referências cronológicas particulares implícitas e, muito menos, quaisquer que sejam
explicitamente declaradas. O termo subita ressoa com nuances do inesperado, do
imprevisível, do incontrolável – todos aspectos essenciais da maneira pela qual Deus age,
segundo Calvino. Falando de sua conversão, ele não tem a intenção de nos informar
historicamente, mas deseja sinalizar seu vínculo com as grandes figuras “renascidas” do
mundo cristão – homens e mulheres cujos caminhos Deus reverteu para que eles pudessem
lhe prestar um grande serviço.
A despeito disso é, talvez, inevitável que um apelo à história deva ser feito em uma
tentativa, ainda que limitada em seu potencial sucesso, de resolver o enigma da “súbita
conversão” de Calvino. Apesar de sua aparente relutância em situar essa experiência no
mapa da história humana (sua clara preferência sendo a de discutir a questão sub specie
aeternitatis), é recomendável indagar se algum episódio em sua carreira aparenta ter
correspondência com o padrão de mudanças sugerido por essa intrigante reflexão
autobiográfica.

DE HUMANISTA A REFORMADOR: A CONVERSÃO

Calvino foi, como vimos, forçado a deixar Paris – aparentemente ainda como um
moderado Reformador, adepto de Fabrício – durante a repercussão do episódio de Cop, em
novembro de 1533. Não fica claro onde ele buscou refúgio; na verdade, ele retornou a Paris
em algum momento, em dezembro. Entretanto, a deterioração da situação naquela cidade
era evidente e Calvino considerou prudente se esconder. Por volta do início de 1534 ele
havia se estabelecido em Saintongue, o lar de Louis du Tillet, o então cânone de
Angoulême e reitor de Claix. A recepção com a qual du Tillet acolheu seu amigo foi
cautelosa e, aparentemente, mais motivada pelo amor humanista de Calvino pela filosofia
do que por suas idéias religiosas. De acordo com uma fonte quase contemporânea, a família
11
du Tillet possuía uma biblioteca de milhares de volumes em Angoulême: a obra de
Calvino, Psychopannychia – uma obra escrita (mas não publicada) nessa época, para refutar
o ensinamento anabatista de que a alma entrava em um estado de repouso, com a morte –
demonstra um conhecimento sofisticado e, aparentemente, direto dos primeiros escritores
cristãos, sugerindo que ele tinha acesso a uma excelente biblioteca para consulta, nesse
período. Outros documentos sugerem que Calvino entrou em contato com indivíduos
adeptos da Reforma, enquanto estava em Angoulême. Pierre de la Place – posterior-mente
integrante do número de vítimas dos massacres do dia de São Bartolomeu (1572) –
escreveu para Calvino, por volta de 1550, relembrando, com evidente afeição, seu
12
relacionamento em Angoulême.
Entretanto, a evidência não aponta para qualquer rompimento fundamental nessa fase
com o que Calvino iria posteriormente designar como “as superstições do papado”. Ele era
adepto da Reforma, a esta altura compartilhando um ponto de vista já associado a muitos
dentro da Igreja francesa; não há, contudo, qualquer pista de um rompimento com essa
Igreja. Calvino “ainda usava a máscara de um católico”, como coloca Florimond Raemond,
e “não pregava, orava ou adorava de qualquer forma que fosse contrária aos costumes
13
católicos”. Além disso, a obra Psychopannychia não contém qualquer polêmica
anticatólica. É difícil encontrar, mesmo que apenas um traço, de que a obra tenha sido
escrita por um jovem recentemente convencido dos erros de seus anteriores costumes
católicos.
Da mesma forma, uma breve passagem pelos arquivos da diocese de Noyon podem
indicar um marco na carreira de Calvino. Em 4 de maio de 1534, ele deixou a capelania de
14
La Gésine, a qual passou para um novo beneficiário. Isso pode ser visto como um rompimento com a Igreja Católica.
Talvez Calvino tenha decidido que, em razão de suas novas perspectivas sobre a natureza
da verdadeira religião, ele não mais poderia se permitir tirar proveito daquilo que ele
considerava ser uma Igreja corrupta e não evangélica. Pode haver alguma verdade nessa
sugestão; lamentavelmente, porém, ele e seus primeiros biógrafos passaram pelo incidente
em silêncio. Se ele possui um significado tão importante para eles, sinalizando,
publicamente, o rompimento de Calvino com a Igreja Católica, esse silêncio curioso e
ressonante ainda há que ser explicado. Contudo, certamente é plausível assumirmos que ele
havia determinado romper suas ligações institucionais com a Igreja, que restavam a essa
altura, sugerindo, assim, que uma “conversão” possa ter ocorrido antes do que se esperava.
Infelizmente, contudo, isso permanece apenas como uma suposição.
É possível que o peso da interpretação atribuído à renúncia de Calvino à capelania de
Noyon por alguns dos seus mais recentes biógrafos possa se basear em uma interpretação
equivocada de um acontecimento que ocorreu três semanas mais tarde. Os arquivos de
Noyon registram que, em 26 de maio, um “Iean Cauvin” foi preso por causar um distúrbio
15
na igreja, no domingo da Trindade. Será que essa foi uma demonstração da insatisfação de
Calvino com a Igreja contemporânea? Libertado em 3 de junho, essa pessoa foi
prontamente presa, após dois dias. Essa interpretação dos eventos, porém, parece basear-se
em uma identificação falsa; os editos de Noyon regis-tram que o “Calvino” que havia sido
16
preso possuía um pseudônimo – Mudit. Em outras palavras, o Iean Cauvin dict Mudit era
cuidadosamente diferenciado do indivíduo, de mesmo nome, que havia aparecido nas
crônicas daquela cidade apenas poucas semanas antes. Vale a pena observar a esse respeito
17
que, em 1545, Calvino escreveu a um colega louvando a Deus por nunca haver sido preso;
se ele porventura tivesse, alguma vez, tido qualquer problema de tal gravidade com as
autoridades por uma ofensa inaceitável dessa natureza, é pouco provável que seus
opositores noyonnais tivessem permitido que isso passasse em brancas nuvens.
O que se seguiu a esse período em Noyon é obscuro. Colladon faz alusão a períodos
18
passados na corte de Marguerite de Navarre e, posteriormente, em Paris e Orleans. De
acordo com Colladon, enquanto esteve em Paris Calvino tentou se encontrar com Miguel
Serveto – que aparecerá como figura importante em nosso relato sobre o período posterior
de Calvino em Genebra. Um lugar seguro para o encontro, na Rue Saint Antoine, havia sido
anteriormente combinado em razão do perigo que Calvino enfrentava, pela

DE HUMANISTA A REFORMADOR: A CONVERSÃO

19
sua presença na cidade, Serveto, lamentavelmente, não apareceu. Eles se encontrariam
novamente, contudo, em Genebra, uns vinte anos depois.
A situação dos évangéliques piorou ainda mais no final do outono daquele ano, em razão
do incidente dos Panfletos. Antoine Marcourt, o famoso panfletista de Neuchatêl, adepto da
Reforma, alcançou o auge da propraganda de sua carreira. Bem cedo, na manhã de
domingo do dia 18 de outubro, planfletos anônimos atacando violentamente práticas
20
religiosas católicas fo-ram afixados em importantes locais, por todo o reino da França.
Católicos leais a caminho da missa, em Paris e em algumas cidades da província, foram
afrontados por cartazes, do tamanho de um jornal, que proclamavam os “abusos horrendos,
graves e intoleráveis (importable) das práticas papais”. Aqueles que pararam para ler os
quatro parágrafos cáusticos dificilmente deixaram de notar pequenas ameaças veladas à
Igreja estabelecida. O evangelicalismo subitamente passou a ser visto como uma “religião
21
de rebeldes”, que ameaçava desestabilizar a sociedade francesa e pôr em perigo o status
quo. A ortodoxia católica, até então defendida com uma visível falta de entusiasmo pelas
instituições políticas, agora passa a ser vista como algo ligado à preservação da estabilidade
social e política. Novos aliados são encontrados e novas alianças são forjadas: de repente,
ser um evangélico em Paris e chamar atenção para esse fato tornou-se, decididamente,
pouco aconselhável. Ser um evangélico era como ser um subversivo, talvez, até mesmo, um
traidor.
É provável que dentre os indignados leitores dos panfletos estivesse o próprio Francisco
I, que acordou naquela manhã de domingo, no château de Amboise, para descobrir um
exemplar daqueles, do lado de fora de seu quarto. Provavelmente afrontado tanto pela falha
na segurança quanto pelo conteúdo religioso do ofensivo folheto, Francisco regressou a
Paris para iniciar uma vigorosa perseguição de todos que fossem suspeitos de serem sim-
patizantes da causa evangélica. Antes mesmo que ele chegasse lá, porém, as perseguições
haviam começado.

Sob esses acontecimentos e as lembranças de Calvino sobre sua reorientação religiosa,


podemos discernir um padrão característico – a transição de uma compreensão da religião,
22
que passava de “consensual” para “comprometida”. Os acontecimentos fizeram Calvino perceber a importância de suas
incipientes perspectivas religiosas. Essas não eram idéias concebidas e debatidas em torres de marfim, eram idéias que ameaçavam desestabilizar uma cidade e um reino

homem marcado. Sua existência tornou-se inseparavelmente ligada às


e que identificavam Calvino como um

suas crenças religiosas. Quem ele era, como pessoa, era modelado a partir de suas idéias –
dentro de sua própria visão, assim como pela percepção dos demais. A integração entre
vida e pensamentos, pessoa e idéias data, inquestionavelmente, desse ano errante, durante o
qual foi forjada a aliança entre identidade pessoal, teologia e ação.
À luz dos acontecimentos de outubro de 1534, Calvino considerou prudente deixar a
França. Nicolas Cop já havia buscado e encontrado refúgio na cidade suíça de Basiléia,
então conhecida como um centro das letras, assim como por ser um lugar seguro para
23
aqueles que eram simpatizantes da causa evangélica. O custo dessa viagem deve ter sido
considerável. Calvino viajou em companhia de seu amigo du Tillet, que parece haver pago
as despesas sem se queixar. Passando por Estrasburgo, eles provavelmente chegaram a
Basiléia em janeiro de 1535. Agora Calvino estava seguro, mas para onde ele iria a seguir?
E o que ele faria durante seu exílio forçado?
Adotando o pseudônimo de Martinus Lucianus (um anagrama de “Caluinus”), ele
adaptou-se à vida no exílio. A Basiléia, como Estrasburgo, era uma cidade onde se falava o
alemão; Calvino que, praticamente, nada sabia de alemão, limitava seus contatos sociais e
literários àqueles que falavam latim e francês. A Universidade da Basiléia, que já havia sido
um grande centro humanista, estava praticamente extinta; não havia uma comunidade de
acadêmicos com os quais Calvino pudesse facilmente se relacionar. Dentre aqueles com
quem se sabe ou se considera que ele tenha tido contato durante esse período, estão Elie
24
Couraud, Pierre Caroli, Claude de Feray, Guilherme Farel, Pierre Toussaint e Pierre Viret.
Erasmo de Rotterdam, outrora uma reconhecida autoridade em meio ao cosmopolitano
mundo das letras, regressou a Basiléia, em maio daquele ano, acamado e doente, havendo
passado cinco anos em Freiburg im Breisgau. Não há nenhuma evidência de qualquer
encontro pessoal entre os dois homens; Erasmo morreu em junho de 1536.
Entretanto, a despeito das restrições a ele impostas por sua vida na Basiléia, Calvino
aproveitou, da melhor forma possível, seu tempo na cidade do Norte da Suíça. Seu lugar no
exílio tornou-se um observatório a partir do qual ele pode continuar atento ao que se
passava em outros lugares. Ele tomaria conhecimento de dramáticos acontecimentos na
cidade de Genebra:
o envenenamento do Reformador Pierre Viret; o debate público no qual os oradores
evangélicos tiveram uma vitória fácil sobre seus oponentes católicos; a abolição da missa
católica pelo Conselho dos Duzentos, em 10 de

DE HUMANISTA A REFORMADOR: A CONVERSÃO

agosto. Aqui, ele tomaria conhecimento dos desatrosos acontecimentos na França, tal como
25
a execução de seu amigo Etienne de la Forge, queimado vivo, em 16 de fevereiro de 1535.
Ele veria os évangéliques serem descritos como anabatistas anarquistas e rebeldes, que não
26
mereciam ser comparados a seus distintos companheiros protestantes alemães. Essa era
uma acusação extremamente delicada naquela época: A Guerra dos Camponeses (1525)
tinha revelado à organização protestante alemã quão perigoso era o movimento anabatista
como uma força social radical; a impressão havia sido reforçada, através da recente
conquista anabatista da cidade de Münster, sob a liderança de Jan van Leyden (1533-5), a
qual, posteriormente, teve que ser reconquistada à força, por meio de um cerco. Assim
como os príncipes alemães haviam se sentido no direito de executar os anabatistas, também
Francisco tinha todo o direito de executar os elementos rebeldes de seu povo, que se
mascaravam como Reformadores religiosos.
Era um argumento poderoso, habilmente disposto, a conselho do embaixador de
Francisco, Guillaume du Bellay, irmão do bispo de Paris. Calvino ficou enfurecido com tais
sugestões, particularmente porque ele mesmo havia acabado de escrever um tratado contra
os anabatistas. Ele ficou profunda-mente magoado com a alegação de que os évangéliques
27
eram inspirados por motivos políticos, em vez de religiosos: “Et ce fut la cause qui
m’incita à publier mon Institution de la religion Chrestienne.”. De forma característica,
como o tempo mostraria, Calvino decidiu agir da única maneira que estava ao alcance de
sua mente politicamente ingênua, contudo talentosa e voltada à literatura: ele tomou sua
caneta e escreveu um livro.
28
Por volta de 23 de agosto de 1535, a obra estava terminada, embora não a tempo que
permitisse ao livro participar da feira de livros de Frankfurt, ainda no outono. Os leitores
aos quais se pretendia que a primeira edição das Institutas fosse dirigida, acredita-se terem
sido os evangélicos franceses, ansiosos por consolidar a compreensão de sua fé. É provável
que algo dessa intenção possa estar por trás de uma concepção inicial da obra, embora se
deva reconhecer que não está claro quando Calvino começou a escrevê-la. Na verdade,
porém, parece que, uma vez descontadas todas as formalidades e cortesias diplomáticas do
prefácio, a platéia específica pretendida por Calvino para a obra, em sua forma final, era um
tanto diferente: o livro objetiva, principal-mente, provar a manifesta estupidez da alegação
de que a perseguição dos évangéliques poderia ser justificada pela sua comparação com os
anabatistas alemães. Indignado e ferido pelas declarações feitas pela corte francesa, que
agora tinham ampla circulação pela Alemanha, Calvino escreveu, atacando com vigor
aqueles que haviam retratado os évangéliques como “anabatistas anarquistas”. Sua
apresentação de “quase todo o sumário da crença e de tudo quanto for necessário se saber a
respeito da doutrina da salvação” pretende demonstrar a ortodoxia das perspectivas dos que
lutavam pela Reforma e, dessa forma, desacreditar aqueles que, com propósitos políticos
(Francisco I precisava do apoio dos príncipes alemães contra o Santo Imperador Romano
Carlos V) buscaram retratá-los como hereges e radicais.
Na verdade, a obra teve, talvez, um resultado um tanto diferente daquele pretendido por
Calvino, embora não necessariamente diferente daquele que ele esperava que ela tivesse.
Trataremos das Institutas mais detalhadamente nos capítulos 7 e 8; nesta fase é necessário
apenas ressaltar que a considerável reputação de Calvino como um intelectual e escritor
religioso pode se justificar apenas com base nesta obra.
Possivelmente, após corrigir o rascunho das Institutas,Calvino tenha partido para a
cidade italiana de Ferrara, provavelmente atraído pelas perspectivas evangélicas da então
Duquesa de Ferrara, uma prima de Marguerite de Navarre. Uma série de évangéliques
franceses parecem ter considerado sua corte como um local seguro durante a repercussão
do incidente dos panfletos. Dentre estes estava o poeta Clémen Marot, acompanhado por
um indivíduo chamado Jehannet. Esta pessoa envolveu-se em um incidente, na sexta-feira
santa (14 de abril), que ameaçou desencadear uma onda de sentimento antievangélico em
meio a corte de Ferrara, pondo em risco numerosos évangéliques que haviam se refugiado
lá.
Toda a corte e aqueles que a freqüentavam – incluindo Jehannet e, possivelmente,
também Calvino – haviam se reunido para a tradicional cerimônia de sexta-feira santa de
adoração da cruz. No clímax da cerimônia, Jehannet marchou para fora da capela, atraindo,
aparentemente, tanta atenção quanto possível para sua partida. Quando questionado sobre
sua conduta anormal e ofensiva, Jehannet declarou suas preferências evangélicas e,
aparentemente, tornou claro que, embora fosse ignorado pelo resto da corte, a duquesa
estava dando abrigo a vários outros indivíduos que compartilhavam dessas mesmas
tendências. Convencido de que sua posição estava fatalmente comprometida, Calvino
29
regressou a Basiléia antes (segundo Colladon) de prosseguir para a França. O Edito de
Coucy (16 de julho de 1535) deu permissão aos exilados religiosos para regressar à França,
30
desde que eles renunciassem às suas opiniões dentro de um prazo de seis meses.
Aproveitando

DE HUMANISTA A REFORMADOR: A CONVERSÃO

se desse fato, Calvino viajou para a França para resolver questões familiares pendentes.
Uma nota de uma procuração, datada de 2 de junho de 1536, ainda existe, na qual “João
Calvino, licencié ès lois, residente em Paris”, deu a seu irmão, Antoine, autoridade para
31
terminar algumas questões da família, em Noyon. Em 15 de julho, ele partiu para
Estrasburgo, deixando para trás os perigos da França.
Infelizmente, a estrada que levava diretamente a Estrasburgo estava ameaçada pelos
movimentos de tropas que participavam da guerra entre Francisco I e o Imperador. Calvino
teve que pegar um desvio, indo para o Sul. Ele parou para pernoitar em uma cidade. Essa
cidade era Genebra.

5
GENEBRA: O PRIMEIRO PERÍODO

Falar de Calvino é falar de Genebra. Calvino iria influenciar e ser influenciado por
Genebra. A relação desse homem com sua cidade adotiva é uma das mais simbióticas da
história. O próprio Calvino, ocasionalmente, irritavase com a proximidade dessa relação,
que ele muitas vezes considerava embaraçosa: com bastante freqüência ele se queixava de
que indivíduos mal informados atribuíam medidas do Conselho municipal de Genebra à sua
1
pes-soa. Embora seu primeiro período de ministério nessa cidade tenha sido curto e, de muitas maneiras, desastroso, seu retorno posterior, de forma qua-se
triunfal, marcou o início de um período novo e significativo da história da cidade. Mas Genebra é curiosamente marginalizada por muitos dos biógrafos de Calvino. Não

que ela seja totalmente ignorada, mas pelo fato de ser, por outro lado, tratada de uma forma muito parecida com a que as biografias eduardianas, sobre os grandes líderes

e pioneiros ingleses, referem-se às esposas destes indivíduos – como influências sem grande importância, infrutíferas, merecedoras de uma menção breve e respeitosa,

não possuindo, contudo, qualquer relevância decisiva em relação ao tema. Genebra não pode ser tratada dessa forma. Para entender Calvino como um homem de ação,

tanto do
em vez de um idealizador de grandes teorias sem relevância para a história, é necessário estar em consonância com a cidade que deu origem e modificou

seu pensamento. Certas idéias de Calvino parecem ter sido desenvolvidas tendo em vista a
situação de Genebra. Se este capítulo parece sugerir que Genebra seja, transitoriamente,
mais importante do que Calvino, isso é feito, em parte, para corrigir uma incongruência
fatal que ocorre em muitas das biografias existentes sobre Calvino.
Um exemplo pode demonstrar o ponto que temos em mente. De muitas maneiras, a
organização da igreja de Genebra, feita por Calvino através das Ordenanças eclesiásticas
de 1541 (ver p. 111), representa uma resposta ponderada, planejada e absolutamente
pragmática em relação às estruturas existentes em Genebra. A quarta ordem de ministério
reconhecida pelas Ordenanças era o diaconato. Até o final do período medieval,
o diaconato tinha sido visto como pouco mais do que um aprendizado para a função de
sacerdote, permitindo que um intervalo decente se passasse antes que um indivíduo fosse
finalmente ordenado. Calvino insistiu na idéia de que os diáconos deveriam ser um
ministério leigo à parte, com um conjunto específico de funções e responsabilidades
próprios. Em parte, essa insistência sobre um papel distinto para o diaconato baseia-se na
sua leitura do Novo Testamento: ao comentar Atos 6:1-6, ele faz a ligação do diaconato
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com o cura pauperum, a responsabilidade dos apóstolos de cuidar dos pobres.
A idéia pode ser, na verdade, bíblica; a maneira pela qual ela foi implementada deu-se
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totalmente dentro dos moldes de Genebra. Calvino estipulou que deveria haver cinco
diáconos, dos quais quatro deveriam ser procureurs e, um deles, um hospitallier. Na
essência, Calvino estava fazendo pouco mais do que emprestar a sanção religiosa à obra do
Hôpital-Géneral de Genebra, fundado antes da Reforma e responsável por um programa de
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assistência social. Esta instituição reunia as diversas organizações assistenciais da cidade
sob uma única autoridade (e, eventual-mente, sob um único teto, o antigo convento de
Saint-Claire). Seis indivíduos eram indicados para administrar a assistência social na
cidade; cinco deviam ser procureurs, responsáveis pela administração geral do pro-grama
de assistência social; o sexto era designado hospitallier, encarregado, especificamente, da
supervisão do próprio Hôpital. A concepção de Calvino sobre a função eclesiástica de
diácono meramente conferia autoridade religiosa a uma instituição secular existente em
Genebra. Isso ilustra bem o modo pelo qual Genebra influenciou Calvino, tanto quanto
Calvino influenciou Genebra.
A REFORMA COMO UM FENÔMENO URBANO
Uma das características mais impressionantes da Reforma, na Europa, é
o fato de que esta foi um fenômeno predominantemente urbano. Na Alemanha, mais de
cinqüenta das sessenta e cinco cidades imperiais soberanas tiveram uma reação positiva à
Reforma, com apenas cinco delas optando por ignorá-la completamente. Na Suíça, a
Reforma se originou em um contexto urbano (Zurique) e se espalhou através de um
processo de debate público dentre as cidades confederadas tais como Berna, Basiléia e
outros centros – como Genebra e St Gallen – ligados àquelas cidades por obrigações
provenientes de tratados. O Protestantismo francês começou como um movimento
predominantemente urbano, tendo suas raízes em cidades importantes como Lion, Orleans,
Paris, Poitiers e Rouen. Por que – tem-se perguntado freqüentemente – a Reforma era tão
atrativa para as comunidades urbanas do século 16?
Várias teorias têm sido desenvolvidas para explicar esse fenômeno. Berndt Moeller
argumentou que o sentimento de comunidade urbana havia sido destruído, no século 15,
pela progressiva tensão social nas cidades e pela crescente tendência de dependência em
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relação a entidades políticas externas, tais como o governo imperial ou a cúria papal. Pela adoção
da Reforma de Lutero, sugeriu Moeller, tais cidades foram capazes de restaurar um senso de identidade comunitária, incluindo a noção de uma comunidade com uma

religião comum, que unia os habitantes em torno de uma vida religiosa compartilhada. De forma significativa, Moeller chama a atenção para as implicações sociais da

doutrina de Lutero sobre o sacerdócio de todos os crentes, que aboliu certas distinções tradicionais existentes na sociedade urbana e encorajou um senso de unidade

comunitária. Moeller alegava que o pensamento de Lutero era, inevitavelmente, produto de um local menos desenvolvido culturalmente, a porção situada no Nordeste da

Alemanha, que não possuía a sofisticação das comunidades mais desenvolvidas do Sudoeste. Proveniente de uma pequena vila, que não possuía as estruturas coletivas

das associações e os impulsos comunitários das grandes cidades, Lutero dificilmente poderia evitar produzir uma teologia que fosse voltada para dentro, provincial em

vez de urbana, que falhava em se engajar na disciplina comunitária e nas estruturas corporativas urbanas. Era previsível que a falta de familiaridade de Lutero com as

direção da introspecção
ideologias urbanas contemporâneas levasse à formulação de uma teologia que fosse profunda e subjetiva, orientada na

individual, tanto quanto desinteressada pela regeneração e disciplina comunitárias. As


teologias de Bucero e Zwínglio eram, em profundo contraste, orientadas no sentido das
realidades urbanas. Bucero e Zwínglio basearam suas eclesiologias sobre a correlação
histórica entre as comunidades urbana e eclesial, enquanto Lutero era forçado a construir
sua eclesiologia com base na noção abstrata da graça, que ameaçava romper a unidade
cívica.
Uma segunda explicação, amplamente baseada sobre sua análise da cidade de
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Estrasburgo, foi desenvolvida por Thomas Brady. Brady argumentava que a decisão de
adotar o Protestantismo em Estrasburgo foi o resultado de uma luta de classe, na qual uma
coalizão dominante de patrícios e mercadores acreditava que a única maneira pela qual sua
posição social poderia ser mantida era através do alinhamento com a Reforma. As
oligarquias urbanas introduziram a Reforma como um modo sutil de preservar seus
interesses velados, que estavam ameaçados por um movimento popular de protesto. Brady
sugeriu que uma situação semelhante ocorreu em muitas outras cidades.
Uma terceira explicação acerca do apelo da Reforma para as comunidades urbanas do
século 16 concentra-se na doutrina da justificação pela fé. Em um estudo publicado em
1975, Steven Ozment alegava que o apelo popular do Protestantismo era derivado dessa
doutrina, que oferecia alívio da pressão psicológica advinda do sistema penitencial adotado
pela Igreja Católica ao final da Idade Média e de uma doutrina da justificação
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“semipelagiana” associada a este sistema. Como o peso dessa carga psicológica era bem
maior e mais evidente nas comunidades urbanas, foi dentre tais comunidades que o
Protestantismo encontrou seu maior apoio popular. Ozment alegou que Moeller exagerou
intensamente as diferenças entre Lutero e os teólogos do Sudoeste. Os primeiros
Reformadores compartilhavam de uma mensa-gem comum, que poderia ser sintetizada
como a libertação dos fiéis das car-gas psicológicas impostas pela religião ao final da Idade
Média. Quaisquer que fossem suas diferenças, os mestres Reformadores – tais como
Bucero, Zwínglio e Lutero – compartilhavam de uma preocupação comum de proclamar a
doutrina da justificação pela fé através da graça, dessa forma eliminando a necessidade
teológica e diminuindo a preocupação popular com as indulgências, o purgatório, a
invocação dos santos e assim por diante.
Cada uma dessas teorias é relevante e forneceu um estímulo importante para o estudo
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mais detalhado da evolução do Protestantismo urbano na primeira fase da Reforma. Da mesma
forma, cada uma tem demonstrado possuir fraquezas evidentes, como é previsível em teorias genéricas

ambiciosas. Por exemplo, no caso de Genebra, como veremos, as tensões sociais que
resultaram, ao final, no alinhamento com a cidade protestante de Berna e na adoção da
Reforma de Zwínglio não surgiram de diferenças sociais, mas da divisão, dentro de uma
mesma classe social, resultante da discussão sobre se deveriam apoiar Sabóia ou a
Confederação Suíça (Confederação Helvética). Os mamelucos, que eram a favor de Sabóia
e os eiguenotes, favoráveis a Berna, eram ambos provenientes de um grupo social comum
caracterizado por uma série de perceptíveis interesses econômicos, familiares e sociais, que
eram por eles compartilhados. Da mesma forma, a sugestão de Ozment sobre a existência
de uma preocupação universal com a doutrina da justificação encontra pouco fundamento
no caso de várias cidades, as quais pertenciam ou eram ligadas à Confederação Suíça – tais
como Zurique, St Gallen e Genebra – e desconsidera as óbvias hesitações, por parte de
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muitos Reformadores suíços, com respeito a essa doutrina. Entretanto, algumas características comuns surgem a partir
do estudo das origens e da evolução da Reforma em cidades como Augsburgo, Basiléia, Berna, Colmar Constance, Erfurt, Frankfurt, Hamburgo, Lübeck, Memmingen,

Ulm e Zurique. É bastante útil identificar esses fatores e observar como eles são relevantes para a gênese da Reforma, na própria Genebra.
Em primeiro lugar, a Reforma nas cidades parece haver sido uma resposta a algumas
formas de pressão popular por mudanças. Nuremberg é um caso raro de um Conselho
municipal que impôs a Reforma sem que tenha havido um significativo protesto ou
exigência popular anterior. A insatisfação das populações urbanas do início do século 16
não era, necessariamente, de caráter unicamente religioso; queixas sociais, econômicas e
políticas estão presentes, sem dúvida alguma, em vários níveis, em meio ao tumulto
evidente naquela época. Geralmente, os conselhos municipais muitas vezes reagiam em
resposta a essa pressão popular, canalizando-a na direção propícia às suas próprias
necessidades e propósitos. Essa sutil manipulação de tal pressão era uma maneira óbvia de
neutralizar e controlar um movimento popular de protesto, que era potencialmente
perigoso. Uma das mais significativas observações que podem ser feitas em relação à
Reforma na cidade é a de que os regimes urbanos existentes permaneciam, muitas vezes,
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relativamente inalterados pela introdução de novas idéias e práticas religiosas, sugerindo
que os conselhos municipais eram capazes de responder à pressão popular sem fazer
mudanças radicais nas ordens sociais existentes.
No caso de Genebra havia uma considerável pressão popular interna em prol da criação
de laços com a Confederação Suíça durante os anos de 1520. Essa pressão desenvolveu-se
como conseqüência de uma série de fatores, não havendo qualquer possibilidade de que
algum deles possa ser considerado como sendo de fundo religioso. Se algum aspecto pode
ser identificado como predominante, este foi o desejo, por parte de vários líderes da cidade,
de se libertarem da perniciosa influência do ducado de Sabóia. Como muitas cidades da
época, Genebra ansiava por uma total independência, seguindo o exemplo das cidades
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suíças (relembramos que Genebra não se uniu à Confederação Suíça até 1815.) A
liberdade política foi a força motriz que alimentou grande parte do tumulto em Genebra na
década de 1520, e não quaisquer interesses religiosos em particular.
No início da década de 1530, entretanto, um importante elemento religioso entrou em
ação, vindo, eventualmente, a dominar a situação. A aliança da cidade com Berna levou a
uma crescente simpatia popular em relação às perspectivas evangélicas desta última. O
Conselho municipal foi forçado a responder a essa pressão, ao mesmo tempo em que
evitava um potencial confronto militar com Sabóia, que seria desastroso. Através de uma
série de medidas diplomáticas, entre 1534 e 1535, o Conselho municipal foi capaz de
despistar os representantes de Sabóia, aumentando sua própria autoridade e promovendo
sutilmente o evangelicalismo, sem provocar um confronto com
o ducado. Foi somente em janeiro de 1536 que Sabóia perdeu a paciência com a diplomacia
e optou por uma intervenção militar.
Em segundo lugar, o sucesso da Reforma na cidade dependia de uma série de
contingências históricas. Adotar a Reforma era arriscar uma desastrosa mudança nas
alianças, pelas quais os tratados ou as relações que existiam – militares, políticas e
comerciais – com os territórios e as cidades que optassem por permanecer católicos eram
normalmente considerados rompidos, em conseqüência desse processo. As relações
comerciais de uma cidade –das quais poderia depender a sua sobrevivência econômica –
poderiam, dessa forma, ficar fatalmente comprometidas. Portanto, o sucesso da Reforma
em St Gallen foi parcialmente devido ao fato de que a indústria de linho da cidade não foi
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adversamente afetada, em um nível significativo, pela decisão de se adotar a Reforma.
Igualmente, uma cida-de (como Erfurt) que fosse bem próxima de uma cidade católica (Mainz) e de um território Luterano (Saxônia) não podia arriscar a se envolver em

um conflito militar com nenhuma dessas duas partes interessadas, com conse qüências potencialmente letais para a sua
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independência. Além disso, sérios conflitos internos, resultantes da decisão de introduzir a Reforma poderiam deixar uma cidade vulnerável à influência

externa – um aspecto relevante na decisão do Conselho municipal de Erfurt em interromper as atividades reformistas na década de 1520.

No caso de Genebra, uma contingência histórica predominante foi a existência do


ducado católico de Sabóia e de seus aliados, praticamente às portas da cidade. Para que a
Reforma fosse bem-sucedida, a relevante ameaça política e militar ao seu avanço,
representada por esse ducado, tinha que ser neutralizada. O movimento crescente dentro de
Genebra, tendente a um alinhamento com as práticas evangélicas de Cristianismo, nos anos
de 1532 a 1535, veio eventualmente a provocar uma resposta militar por parte de Sabóia,
em janeiro de 1536. Genebra teria sido totalmente devastada por essa ofensiva, não fosse a
aliança militar feita com a cidade de Berna, a qual era adepta do evangelicalismo desde o
final da década de 1520. Isso viria a se aliar ao apoio financeiro de bancos ligados aos
evangélicos, particularmente na Basiléia, uma vez que Genebra estava firmemente
comprometida com a Reforma. Como conseqüência, a pressão externa para preservar o
Catolicismo foi mais do que contrabalançada. A Reforma poderia prosseguir. Entretanto,
uma contingência histórica posterior complicava, nesse momento, a situação: Berna,
havendo dado a Genebra seu apoio em um momento crucial de sua história, exigia agora
sua contrapartida. Genebra não era livre para escolher seu próprio caminho para a Reforma:
a cidade deveria adotar as crenças e práticas religiosas já associadas à própria cidade de
Berna.
Terceiro, a visão romântica e idealizada de um Reformador chegando na cidade para
pregar o Evangelho com uma sucessiva decisão imediata de se adotar os princípios da
Reforma deve ser dispensada como uma visão um tanto quanto irrealista. Durante todo o
processo de Reforma, desde a decisão inicial de implementá-lo até as decisões
subseqüentes, relacionadas à natureza e ao ritmo das propostas reformistas, o Conselho
municipal era quem permanecia no controle. A Reforma de Zwínglio, em Zurique, prosse-
guiu de forma consideravelmente mais lenta do que ele gostaria, em razão da postura
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cautelosa adotada em momentos cruciais pelo Conselho municipal. A liberdade de ação de
Bucero, em Estrasburgo, era igualmente limitada. Como Calvino viria a descobrir, os
conselhos municipais eram perfeitamente capazes de banir de seus territórios os
Reformadores, se estes descumprissem políticas ou decisões publicamente professadas pelo
conselho.
Na prática, a relação entre o Conselho municipal e o Reformador era, geralmente,
simbiótica. O Reformador, através da apresentação de uma visão coerente do Evangelho
cristão e de suas implicações para as estruturas e práticas religiosas, sociais e políticas da
cidade, era capaz de evitar que uma situação potencialmente revolucionária se degenerasse
em caos. A ameaça constante de retorno ao catolicismo ou de subversão, através dos
movimentos radicais anabatistas, tornou inevitável a necessidade de um Reformador.
Alguém tinha que dar uma direção religiosa a um movimento que, descontrolado e sem
direção, poderia acabar em desordem, com conseqüências graves e inaceitáveis para as
estruturas de poder existentes na cidade e para os indivíduos que as controlavam. Da
mesma forma, o Reformador era um homem submetido à autoridade, alguém cuja liberdade
de ação era limitada por líderes políticos, ciumentos de sua própria autoridade e que
possuíam propostas de reforma que, geralmente, extrapolavam as propostas do Reformador,
para incluir a consolidação de sua própria influência econômica e social. A relação entre o
Reformador e o Conselho municipal era, portanto, delicada e facilmente inclinada à
deterioração, permanecendo o verdadeiro poder nas mãos do último.
No caso de Genebra, um relacionamento delicado desenvolveu-se entre
o Conselho municipal e seus Reformadores (inicialmente, Guilherme Farel e Calvino,
posteriormente apenas Calvino). Consciente e ciumento da autoridade e liberdade
conquistadas a duras penas, o conselho estava determinado a não substituir a tirania de um
bispo católico pela de um Reformador. Em 1536, Genebra havia recentemente conquistado
sua independência de Sabóia e mantinha, de forma acentuada, esta independência, a
despeito da tentativa de Berna de colonizar a cidade. Genebra não estava disposta a ser
governada por algum ditador, a menos que este estivesse em condições de provocar
enormes pressões de ordem econômica e militar que fossem insustentáveis. Como
conseqüência, foram impostas severas restrições às ações de Calvino. Sua expulsão de
Genebra, em 1538, demonstra que o poder político permanecia firme nas mãos do Conselho
municipal. A noção de que Calvino foi o “ditador de Genebra” é, como deveremos
demonstrar, totalmente despida de qualquer fundamento histórico. Entretanto, o Conselho
municipal desco-briu-se incapaz de lidar com a situação religiosa que se deteriorava, na au-
sência de Calvino. Em um ato incrível de pragmatismo social e de realismo religioso, o
conselho chamou de volta o Reformador e permitiu que ele prosseguisse com sua obra de
reforma. Genebra precisava de Calvino, tanto quanto Calvino precisava de Genebra.
Tendo em mente essas observações gerais, podemos nos voltar à consideração da
primeira fase da Reforma em Genebra. Mesmo antes da chegada acidental de Calvino na
cidade, um programa de Reforma estava em funcionamento. Como isso se deu é uma
história que possui seu próprio encanto. Embora nós já tenhamos tocado em alguns de seus
aspectos, a história exige ser contada com detalhes.

GENEBRA ANTES DE CALVINO


Antes da Reforma, Genebra era uma cidade governada por bispos estava em declínio.
Sua prosperidade havia sido decorrente de quatro feiras internacionais de negócios, que
ocorriam anualmente desde de 1262 e que aconteciam no dia de Reis, na Páscoa, no dia de
São Pedro e no Dia de Todos os Santos. Elas atraíam um grande número de comerciantes
vindos dos vales do Reno e do Danúbio, do Norte da Itália, de Borgonha e da Confederação
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Suíça. Essas feiras eram tão importantes que o banco dos Médici até mesmo julgou que
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valia a pena abrir uma filial em Genebra. A situação mudou drasticamente, porém, ao final
da Guerra dos Cem Anos. Luís XI implantou feiras exclusivas nas proximidades de Lion,
escolhendo cuidadosamente suas datas, de forma que coincidissem exatamente com as de
seu único rival na região, Genebra. O declínio logo se instalou; os Médici, sentindo o rumo
que
o vento tomava, transferiram suas atividades de Genebra para Lion.
Os negócios da cidade, antes da Reforma, eram governados pelo ducado vizinho de
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Sabóia. Essa dominação havia se estabelecido desde o século 13, quando o bispo de
Genebra havia conferido à casa de Sabóia o posto de vidomme, em 1265, dando a Sabóia o
direito de escolher o indivíduo responsável pela manutenção da justiça civil e criminal, que
era aplicada aos leigos dentro da cidade. Desde 1287, o vidomme morava no antigo
casteloepiscopal , em uma ilha no rio Ródano. À medida que o poder de Sabóia aumentava,
no século 15, aumentava sua influência sobre os negócios da cidade. Muitas das áreas rurais
e vilas, em volta de Genebra, pertenciam a Sabóia e a seus protegidos. Sobretudo, em 1449,
a casa de Sabóia conquistou efetivamente o controle da diocese de Genebra, quando Felix
V (anteriormente o primeiro Duque de Sabóia, Amadeus VIII), que era contrário ao Papa,
renunciou a seu título papal, enquanto retinha vários dos privilégios inerentes a este.
Daquele momento em diante, o bispo de Genebra tornouse, virtualmente, uma marionete
controlada por Sabóia, sem que dele fossem exigidas quaisquer qualidades religiosas: em
1451, o recém indicado bispo (neto de Amadeus VIII) era apenas uma criança de oito anos
de idade.
Portanto, o líder terreno e espiritual de Genebra ficava praticamente au-sente da cidade,
de forma permanente. Seus poderes, embora fossem consideráveis, eram geralmente
exercidos, durante sua ausência, por aqueles que ele nomeava, principalmente pelo
conselho episcopal e pela assembléia de trinta e dois cânones da catedral. O bispo, porém,
permitia que a população leiga da cidade elegesse certos oficiais para participar do governo
local. Talvez os mais importantes desses oficiais fossem os síndicos, quatro homens leigos,
eleitos anualmente por uma assembléia plenária, composta por todos os cidadãos adultos do
sexo masculino. Além do direito de atuarem como juízes em certos casos criminais, os
síndicos também escolhiam um Petit Conseil (Pequeno Conselho) de cerca de vinte a vinte
e cinco cidadãos, responsáveis pela manutenção rotineira da cidade.
À medida que se iniciava o século 16, Genebra era simplesmente um entre vários
pequenos planetas, cuja órbita girava em torno do sol de Sabóia. Se a população de
Genebra desaprovava completamente esse estado de coisas, seus protestos eram discretos e
praticamente inaudíveis. Contudo, os ventos da mudança estavam soprando. Dentro da
própria Genebra, a influência de Sabóia estava em declínio; fora de Genebra, as influências
política e militar da Confederação Suíça estavam se tornando, progressivamente, evidentes.
Em Genebra, os primeiros traços de um movimento a favor da independência de Sabóia
podem ser percebidos no período de 1482 a 1490. O cargo de bispo ficou vago por um
período, o que permitiu que a assembléia de cânones da catedral estendesse seus poderes e
aprofundasse um sentimento de identidade cívica. Os mercadores da cidade, conscientes de
que a viabilidade financeira das feiras de negócios anuais era, agora, bastante dependente
dos negociantes suíços e alemães, defendiam um estreitamento dos laços com a
Confederação Suíça. Dentro da cidade começou a surgir uma tensão, à medida que as
facções se formavam. Oitenta e seis cidadãos de Genebra, liderados por François Bonivard,
participaram de uma jornada até a cidade suíça de Friburgo, onde foram declarados
cidadãos, em 7 de janeiro de 1519. No mês seguinte, a cidade de Genebra, agindo sem
autorização de Sabóia, entrou em aliança com Friburgo. A pressão de Sabóia resultou na
anulação desse combourgeoisie, em abril daquele ano; quatro meses mais tarde, o principal
ativista do combourgeoisie foi executado em praça pública. Embora fisicamente reprimida,
porém, a facção pró-Suíça não demorou a se reorganizar. As atas do Conselho municipal,
no ano de 1519, registram como aguynos
o nome dado a esse grupo; as atas de 1520 o identificam como eyguenots.
Figura 5.1 – A diocese de Genebra, 1530
A introdução dessa expressão merece atenção. Naquela época, os suíços não eram assim
conhecidos, mas eram chamados de “os confederados”. A palavra suíça-alemã para
“confederado”, Eidgnoss, provou-se praticamente impossível de ser pronunciada no dialeto
de Genebra (que era mais próximo do dialeto de Sabóia do que da língua francesa; o
francês era considerado uma língua estrangeira pela maioria dos habitantes de Genebra
durante o século 16). A expressão eiguenot ou eyguenot representa a tentativa feita pelos
moradores de Genebra para reproduzir a palavra usada para “confederado” (Eidgnoss). A
história posterior dessa expressão se tornou particularmente interessante pelo fato de que há
a hipótese de que a expressão francesa huguenot possa ter derivado dela, através da
expressão intermediária do dialeto de Sabóia, enguenô,
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ou da expressão posterior usada em Genebra, enguenot.


Em 4 de dezembro, a cidade independente de Lausanne entrou em combourgeoisie com
as cidade suíças de Berna e Friburgo. Como Genebra, Lausanne era um bispado que ficava
na área de Pays de Vaud, controlada por Sabóia. As notícias desse pacto chegaram a
Genebra e atraíram um interesse considerável. Agindo rapidamente, alguns mercadores,
favoráveis à Suíça, viajaram a Friburgo e a Berna para negociar um pacto semelhante com
estas cidades. Apesar da tentativa do então bispo de Genebra, Pierre de la Baume, de vetar
o pacto, Berna fechou o acordo em 7 de fevereiro de 1526. O partido de Sabóia – os
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mamelucos, que usavam azevinho como os galeses usavam o alho-poró – ficaram furiosos com seus
companheiros, os eiguenots (que decidiram usar penas de galos, como um símbolo de suas alianças rivais). Porém,

o bispo, dando-se conta de que a sua posição em relação ao ducado de Sabóia tinha sido
comprometida por sua falha em impedir o pacto, decidiu compensar seu prejuízo e tentou
ganhar a simpatia dos eiguenots, dando seu apoio ao combourgeoisie com Berna. Essa foi a
primeira de uma série de ações, através das quais o bispo, mais acidental do que
intencionalmente, cedeu autoridade ao Conselho municipal de Genebra em relação a uma
questão após a outra. Por volta de 1530, o conselho era praticamente o líder supremo da
cidade.
Até esse ponto, as questões religiosas não haviam figurado, de forma alguma, nas
negociações entre Genebra e os suíços. Essa situação se alterava nesse momento. As
origens desse importante avanço encontram-se, principalmente, na reforma de Zwínglio,
em Zurique. Embora suas atividades reformistas em Zurique tenham se iniciado em 1519,
elas entraram em uma nova fase com o Grande Debate de 29 de janeiro de 1523. Por volta
de seiscentas pessoas reuniram-se para ouvir Zwínglio apresentar e defender suas idéias e
práticas reformistas perante seus opositores católicos, escolhidos pelo bispo de Constance.
Após ouvir os argumentos, o Conselho municipal votou a favor da adoção dos “princípios
fundamentais” da reforma de Zwínglio. Isso foi um marco no curso da Reforma Suíça, pelo
fato de haver estabelecido um princípio crucial: as cidades independentes iriam decidir se
adotariam ou não a Reforma, após ouvirem os argumentos contrários e favoráveis a ela e,
então, procederem a uma votação.
Cinco anos mais tarde, um debate semelhante (ou Gemeinschwörung) aconteceu em
Berna. Zwínglio, Bucero, o humanista de Estrasburgo, Wolfgang Capito e outros
defenderam a perspectiva evangélica com tamanha eficiência que o Conselho municipal
votou pela adoção da Reforma de Zwínglio. Não é possível enfatizar de forma suficiente a
importância dessa decisão para Genebra: a Berna que havia se aliado a Genebra, em 1526,
era católica; a partir de janeiro de 1528, ela era evangélica. De maneira significativa, a cida-
de de Friburgo – a outra combourgeois – permaneceu católica, causando tensões que
atingiriam um clímax em 1534. Berna, já uma grande potência militar na região de Pays de
Vaud, também estava, agora, engajada em uma cruzada dirigida à propagação da Reforma
de Zwínglio.
Figura 5.2 – Genebra e seus arredores, 1500-35

Os acontecimentos começaram a se suceder rapidamente em Genebra durante o ano de


1532. Mercadores alemães em visita à cidade trouxeram com eles obras de Lutero, que
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encontraram um ávido mercado no local. Panfletos luteranos começaram a circular pelas
igrejas locais. O teólogo Reformado, Guilherme Farel, chegou munido de um salvo-
conduto outorgado por Berna e começou a propagar as visões evangélicas na cidade. Sua
pregação obteve um considerável sucesso. Friburgo protestou contra a crescente influência
do evangelicalismo na cidade e ameaçou romper sua aliança com Genebra, a menos que
essa expansão fosse reprimida. Em 10 de abril de 1533, Garin Muète celebrou publicamen-
te um culto de santa ceia, de acordo com o rito Reformado de Farel. O culto, que se deu no
jardim de Etienne Dada, em Faubourg du Temple foi, posteriormente, repetido por várias
21
vezes, todos os dias. Revoltas religiosas irromperam em Genebra, naquele mês de maio,
vindo posteriormente a alarmar Friburgo. A cida-de católica exigiu que Farel fosse banido.
Ciente de suas obrigações perante a cidade evangélica de Berna, o Conselho municipal
hesitou. Atento às oportunidades que a situação oferecia, em 31 de dezembro de 1533, o
Conselho municipal de Berna ordenou que Pierre Viret fosse a Genebra, com urgência, para
22
que ele pudesse ajudar Farel. Ele lá chegou em 4 de janeiro de 1534.
Seguindo um modelo adotado por Zurique e Berna, o conselho decidiu promover um
debate público, colocando Farel em oposição a um rival católico, para que pudessem ser
verificados os méritos relativos às formas evangélica e católica de Cristianismo. Guy
Furbity, um frade dominicano doutor em teologia, que possuía fortes ligações com a
faculdade de teologia parisiense, foi convidado para apresentar a visão católica. O debate
começou em 27 de janeiro de 1534 e se concentrou em torno da questão da autoridade
papal; porém, ele transformou-se em um caos quando o representante católico insinuou que
Farel não passava de um mero fantoche da Confederação Suíça. O resultado do próprio
debate é obscuro, exceto pelo fato deste ser amplamente percebido como uma vitória por
omissão, a favor do grupo dos Reformadores. Um relato contemporâneo desses
acontecimentos, combinando o aspecto dramático com o irônico, pode ser encontrado em
Le levain du Calvinisme, as memórias de Jeanne de Jussy, uma noviça do convento de
Saint-Claire, em Genebra, na época do debate. Esse convento situava-se à rua Verdaine, na
altura em que esta se encontrava com Bourg-de-Four, no centro de Genebra, e tornou-se,
posteriormente, como já comentamos, o Hôpital-Général, encarregado da administração do
programa de bem-estar social da cidade Reformada. Irritada com o rumo dos
acontecimentos, Friburgo lavou completamente suas mãos a respeito do assunto: em 15 de
maio, rompeu sua aliança com Genebra. Subitamente, Genebra possuía apenas um protetor
– a cidade protestante de Berna. E Berna era conhecida por oferecer proteção somente na
base da troca por dinheiro. De acordo com os termos da combourgeoisie, Genebra era
obrigada a pagar por qualquer ajuda que Berna pudesse lhe proporcionar. Uma crise tanto
financeira quanto política parecia inevitável.
Em meio a essa crise progressiva, Farel e Viret, ambos vivendo sob a proteção de Berna,
puseram uma pressão cada vez maior sobre o Conselho municipal para que este adotasse a
Reforma em sua totalidade, em vez de adotála pouco a pouco, de forma parcial. O conselho
cedeu ligeiramente; no começo do verão de 1535, ele anunciou que a missa católica havia
sido abolida. O bispo de Genebra retaliou, em 22 de agosto, excomungando toda a
população da cidade. Houve um êxodo imediato do clero católico e de religiosos, que
deixaram Genebra em busca de proteção em Annecy, cidade que pertencia ao ducado de
Sabóia. O conselho apropriou-se do patrimônio e das terras da Igreja, desmantelando a
tradicional classe dirigente feudal e eclesiástica. Em um notável ato de desafio, eles abriram
sua própria casa da moeda, em 26 de novembro. As novas moedas da cidade traziam um
lema, que iria ecoar durante todo o período da Reforma: post tenebras lux – “após as trevas,
luz!”.
Figura 5.3 – As fronteiras da Confederação Suíça e territórios de Sabóia, 1535

O ducado de Sabóia estava agora completamente alarmado com o que se sucedia. Sua
resposta à situação seguiu um padrão maquiavélico: onde a diplomacia falhava, uma
intervenção militar poderia surtir resultados. Gene-bra foi efetivamente sitiada, de forma
permanente, por volta de janeiro de 1536, tendo todas as suas ligações com o mundo
exterior cortadas. A cidade não teve saída a não ser a de apelar para Berna. Berna interveio
em prol de Genebra, não ignorando as evidentes oportunidades que a situação propor-
cionava à expansão de sua esfera de influência política. Após derrotar Carlos,
o Valente, e os burgúndios, em 1477, a Confederação Suíça há muito acalentava a idéia de
expandir sua influência em direção ao Oeste, em detrimento de Sabóia. Durante as guerras
com a Burgúndia, Berna e Friburgo haviam anexado, individual e conjuntamente, áreas
23
consideráveis do território pertencente ao ducado de Sabóia. Berna anexou Erlach, Les
Ormonts, Aigle e Bex; Friburgo havia tomado Illens. Agindo em conjunto, os dois cantões
conquistaram Morat, Grandson, Orbe e Echallens. Le Valais, aproveitandose da fragilidade
de Sabóia, anexou o vale do Ródano, entre Vétroz e Massongez, a Sudeste do lago Léman.
A conquista de Orbe e Echallens foi particularmente importante. Embora fossem
insignificantes em termos de território, elas se situavam no seio do território de Sabóia.
Desde de 1477, o povo de Berna pensava em anexar Pays de Vaud. No início da década de
24
1530, Orbe era um centro do movimento protestante na região; Pierre Viret, que havia
nascido ali, posterior-mente se tornaria uma figura central na luta pela Reforma naquela
área. O apelo de Genebra parecia oferecer uma legitimação plausível para a apropriação do
território pertencente a Sabóia – e ainda mais. Berna, Friburgo e Le Valais adiantaram-se
para explorar a situação.
Os exércitos de Berna avançaram em direção ao Oeste, anexando Lausanne – que havia
entrado em combourgeoisie com Berna e Friburgo, em 1525 – como um território
pertencente a Berna. Toda a região de Pays de Vaud foi tomada e toda área ao redor de
Genebra – incluindo Pays de Gex e asbaillages (províncias) de Ternier e Gaillard – foi
conquistada, colocando, assim, um cordão de isolamento entre Genebra e seus anteriores
proprietários, Sabóia. Por fim, os exércitos de Berna ocuparam a região Oeste de Chablais,
na costa Sul do lago Léman. Enquanto isso, Friburgo havia conquistado Estavayer,
Roment-Châtel-Saint-Denis, Surpierre, Vuissens e Saint-Aubin, enquanto Le Valais
expandia seu território para incluir a região Leste de Chablais.
Em 2 de fevereiro, os exércitos de Berna entraram em Genebra. Como ficou óbvio três
dias mais tarde, seu objetivo não era bem o de libertar a cidade do domínio de Sabóia, mas
de torná-la uma colônia de Berna. Os conquistadores de Berna exigiram de Genebra os
mesmos privilégios anteriormente gozados por Sabóia. Por volta de 17 de fevereiro, a
situação havia se alterado. Os exércitos de Berna se retiraram. Por alguma razão, Genebra
não estava destinada a compartilhar do destino infeliz de Lausanne, sendolhe permitido
manter sua independência sujeita a certas condições, impostas por tratado. É provável que
os exércitos de Berna suspeitassem das ambições do exército francês em relação àquela
vizinhança e tenham ficado, conseqüentemente, com medo de avançar demais naquela
região.
E assim a república de Genebra teve seu início. Ela herdou uma crise financeira; durante
a guerra pela independência, foram assumidas despesas consideráveis: as defesas da cidade,
anteriormente negligenciadas, haviam sido reconstruídas, a periferia da cidade havia sido
arrasada, seus habitantes tinham sido transferidos e um grande número de soldados teve de
ser contratado. Além disso, ela teve que pagar pela ajuda de Berna. O tesoureiro da cidade,
Claude Pertemps, fez frente às despesas através de um forte programa de secularização,
pelo qual o Conselho municipal confiscou todas as propriedades e as fontes de renda que
pertenciam à Igreja em Genebra. Um amplo apoio, proveniente de fontes financeiras
evangélicas, também estaria disponível, uma vez que Genebra havia se comprometido
25
seriamente com a Reforma. Multas também eram impostas aos cidadãos de Genebra que haviam deixado a cidade durante o período de 1534
26
a1536 e que agora desejavam regressar. Essencialmente, foram os perdedores que pagaram o preço da guerra pela independência de Genebra.

Figura 5.4 – As fronteiras da Confederação Suíça e territórios de Sabóia,


1536

Farel agora pressionava o Conselho municipal para que adotasse a Reforma abertamente,
com resultados positivos: em 19 de maio, o Pequeno Conselho decidiu convocar “um
grande conselho geral para perguntar se o povo queria viver de acordo com a nova fé
27
Reformada”. Menos de uma semana depois, em 25 de maio, uma assembléia pública dos
cidadãos de Genebra votou pela conclusão da primeira fase da Reforma na cidade, jurando
“viver, de agora em diante, de acordo com a lei do Evangelho e com a palavra de Deus e
abolir todos os abusos papais”. A república iria se manter independente por duzentos e
cinqüenta anos, até que, por fim, os exércitos revolucionários franceses invasores
conquistaram a cidade, na última década do século 18.
A declaração dos cidadãos de Genebra pode dar a aparência de haver criado uma Igreja
Reformada. Na verdade, ela fez pouco mais do que criar uma perspectiva reformadora
vazia, sem substância, dentro da qual as intenções tinham precedência sobre as ações.
Rejeitar o catolicismo era uma coisa; construir uma nova ordem e um novo governo eclesial
era outra bem diferente. Sem uma ideologia religiosa definida, nenhum passo positivo nessa
direção poderia ser dado. Uma deterioração que levaria ao caos era uma possibilidade
plausível. Com a chegada de Calvino, Farel acreditou ter encontrado exatamente o homem
que ele e Genebra necessitavam. Mas como Calvino foi parar em Genebra?

A CHEGADA DE CALVINO EM GENEBRA


As Institutas de Calvino demoraram a lhe trazer fama. Enquanto viajava da França para
Estrasburgo, no verão de 1536, ele decidiu não fazer menção alguma sobre sua obra:

Ninguém lá sabia que eu era o seu autor. Aqui, como em todos os


lugares, eu não fiz qualquer menção a esse fato e intencionava
continuar fazendo o mesmo, até que finalmente Guilherme Farel
me reteve em Genebra, não tanto por conselho ou argumento,
mas através de uma terrível maldição, como se Deus tivesse, do
céu, colocado sobre mim suas mãos, para me deter. Eu tinha a
intenção de ir para Estrasburgo; a melhor estrada para lá, porém,
estava fechada pelos conflitos na região. Eu decidi passar por
Genebra rapidamente, não permanecendo mais do que uma noite
na cidade. Pouco antes, as doutrinas, práticas e rituais da Igreja
Católica haviam sido banidos de lá, pelo bom homem que eu men
cionei e por Pierre Viret. A situação, contudo, estava ainda longe
de estar resolvida, havendo divisões e facções sérias e perigosas,
dentre os habitantes da cidade. Então alguém, que havia, de for
ma perversa, se rebelado e se voltado para os papistas, descobriu
que eu estava na cidade e divulgou esse fato aos demais. Diante
disso, Farel (que ardia, com grande zelo, pela expansão do Evan
gelho) fez de tudo para me deter lá. E, após ter ouvido que eu
tinha uma série de estudos particulares, para os quais eu desejava
me manter livre, e descobrindo que ele não havia conseguido me
convencer com seus pedidos, ele soltou uma imprecação, dizendo que Deus poderia
amaldiçoar o tempo livre e a paz para estudar que eu buscava, se eu lhe virasse as
costas e fosse embora, recu-sando-me a lhes dar apoio e ajuda, em uma situação de
tamanha necessidade. Essas palavras me chocaram e causaram em mim tal impacto
que desisti da viagem que intencionava fazer. Porém, consciente da minha vergonha e
28
timidez, eu não queria ser forçado a desempenhar quaisquer funções específicas.
Portanto, foi assim que Calvino, em agosto de 1536, foi persuadido a permanecer em
Genebra. Precisamente o que Farel viu nele, nós jamais saberemos.
Inicialmente, Calvino parecia inadequado para enfrentar alguns dos desafios que se
opunham ao movimento evangélico em Genebra. Introspectivo e com inclinações
intelectuais, ele deu poucas mostras de ser de algum valor dentro do ardiloso mundo
político de Genebra, na década de 1530. Ele não possuía qualquer experiência pastoral e
era, praticamente, ingênuo no que se referia às realidades da política urbana e da vida
econômica. Calvino podia ficar à vontade na cosmopolitana república das letras; as
necessidades da república de Genebra eram, porém, algo bem diferente. Suas primeiras
responsabilidades em Genebra eram bastante adequadas ao seu temperamento: ele não tinha
que exercer qualquer ministério pastoral, nem manter contato com o Conselho municipal,
nem mesmo pregar; sua responsabilidade era, simplesmente, a de ser um professor ou
29
alguém que proferia conferências públicas sobre a Bíblia.
Assim, as primeiras semanas de Calvino em Genebra foram monótonas. Entretanto, ele
logo alcançou a fama. Os exércitos de Berna que, pouco antes, naquele mesmo ano, haviam
ocupado Lausanne, desejavam agora consolidar seu poder sobre o novo território,
convertendo sua população ao movimento evangélico. O meio mais usado para isso era
através da organização de um debate público, feito no idioma local. Sem perda de tempo, os
30
líderes de Berna planejaram tal debate para as duas primeiras semanas de outubro de 1536.
Em Lausanne, porém, falava-se o francês, tornando-se assim difícil para que os
representantes de Berna, que falavam o alemão, apresentassem sua defesa de forma
convincente. O Conselho municipal de Berna – Messieurs de Berna, como eles ficariam
conhecidos, nas atas do conselho de Genebra – convidaram Farel e Viret para defender a
Reforma. Estes decidiram levar Calvino consigo.
31
Dez artigos foram apresentados para debate. Les conclusions qui doibvent estre
disputées a Lausanne nouvelle province de Berne, em 1° de outubro de 1536, definem, de
um modo geral, os principais pontos da Reforma. Apesar de terem sido confrontados por
representantes locais do clero católico, Farel e Viret acharam o debate difícil. Em 5 de
32
outubro, Calvino interveio finalmente. Ele reverteu o ritmo do debate. Um orador católico
sugeriu que os evangélicos menosprezavam os doutrinadores cristãos dos primeiros cinco
séculos, considerando que eles não tinham qualquer autoridade em matéria de doutrina.
Parece que o período durante o qual Calvino se dedicou ao estudo desses doutrinadores, em
Saintongue, marcou sua vida para sempre. Levantando-se, Calvino declarou que aquilo não
era, de forma alguma, a verdade: os evangélicos não só respeitavam mais esses
doutrinadores do que seus oponentes católicos, como também os conheciam melhor.
Citando uma incrível série de referências a seus escritos, incluindo sua localização –
aparentemente, tudo de memória – Calvino praticamente destruiu a credibilidade de seu
oponente. Cipriano é citado ao pé da letra (“no segundo livro de suas epístolas, a terceira
epístola”), Crisóstomo é citado ainda com maior detalhe (“a vigésima primeira homilia,
33
mais ou menos em sua metade”). O efeito dramático dessa intervenção foi considerável e
proporcionou ao grupo evangélico uma vantagem ainda mai-or do que aquela de que eles já
gozavam.
Se observarmos mais atentamente as citações de Calvino, chegaremos a uma opinião
mais bem humorada acerca de seus conhecimentos acadêmicos. Os doutrinadores são
citados de forma descontextualizada, freqüentemente com a omissão de material, que
aponta para uma interpretação diversa daquela que Calvino sugerira. Entretanto, seus
oponentes católicos em Lausanne (e, na verdade, nos demais locais, como o tempo viria a
34
provar) não possuíam a habilidade necessária para refutá-lo. Calvino saiu do Debate de
Lausanne com uma recém-descoberta (e, deve-se dizer, plenamente merecida) fama de
orador e argumentador religioso. Talvez ainda mais relevante tenha sido o fato de que seu
sucesso em Lausanne parece têlo convencido de que possuía mais talentos do que
suspeitava. A Confession de la Foy, apresentada aos síndicos e ao resto do Pequeno
Conselho em 10 de novembro, demonstra essa confiança. A nova deferência com que era
tratado por Farel e Viret também sugere uma nova atitude da parte deles em relação a seu
colega mais jovem; ao final de 1536, Calvino havia sido designado como pregador e pastor
35
da igreja de Genebra.
Neste aspecto, é necessário enfatizar que os pastores evangélicos, na Genebra de 1536,
eram poucos mais do que servidores civis (de fato, é bastante provável que Calvino jamais
tenha sido “ordenado” no sentido eclesiástico do termo; ele foi, provavelmente, apenas
licenciado como pastor, pelo Conselho municipal). Diferentemente de seus antecessores
católicos, eles eram destituídos de poder e riqueza dentro da cidade; na verdade, eles nem
mesmo eram cidadãos de Genebra e, portanto, não tinham acesso aos órgãos de tomada de
decisão. Após a Reforma, os pastores de Genebra eram, geralmente, imigrantes franceses,
em vez de cidadãos locais – uma situação que deu origem a uma certa tensão dentro da
cidade. Pierre Viret era nativo de uma região em volta de Genebra, atualmente conhecida
como Suisse Romande; porém, ele não era um cidadão de Genebra. É verdade que, após a
segunda revolução de 1555, os pastores evangélicos de Genebra assumiram uma posição de
liderança nas questões internas e internacionais da república de Genebra; contudo, nenhum
36
traço dessas futuras funções e status é evidente, nos últimos seis meses de 1536. Calvino
era pouco mais do que um simples servidor civil, vivendo na cidade sob licença. Era o
Conselho municipal – e não Calvino, Farel ou Viret – que controlava os assuntos religiosos
da nova república.
A posição dos pastores era, assim, excepcionalmente vulnerável às mudanças nas
alianças políticas que havia na cidade. Assim, foi um infortúnio, para dizer o mínimo, que o
próprio Farel tenha se tornado o centro das divisões na cidade, fato este cujas origens datam
de 1535. Por volta de 1537, facções pró e contra Farel estavam bem consolidadas. Os
primeiros (conhecidos como Guillerminos ou Farets) eram liderados por Michael Sept, os
últimos (posteriormente conhecidos como os Articulantes ou Artichauds) eram liderados
pelo comandante de milícia, Jean Philippe.
No início de 1537, a situação indicava um bom prognóstico para os Reformadores. Os
quatro novos síndicos eram do grupo dos Guillerminos, amigos pessoais de Farel. Na
verdade, um deles tinha sido eleito sem nem mesmo estar na lista preliminar de oito
candidatos. Aproveitando-se das inclinações reformistas dos Messieurs (como eram
chamados os síndicos e o Pequeno Conselho), uma série de medidas reformadoras foram
propostas. Em 16 de janeiro, os pastores, agindo aparentemente por iniciativa própria, apre-
sentaram aos Messieurs um projeto não oficial de regulamentos eclesiásticos, destinado a
37
criar “uma igreja bem organizada e regulamentada”. Esses Articles sur le Gouvernement de l’Eglise faziam a apresentação
de cinco aspectos que os pastores consideravam importantes. A comunhão deveria ser celebrada com freqüência, de forma reverente e

piedosa; porém, em razão das “falhas do povo”, os pastores estavam dispostos a fazer uma
concessão em relação a seus ideais e aceitar como norma sua celebração mensal. A
“correção e disciplina da excomunhão” (em outras palavras, a exclusão do direito de
participar da comunhão, mas não de ouvir aos sermões) foi recomendada como necessária,
38
para que se mantivesse o respeito. Os pastores defendiam a instalação de um tribunal disciplinar eclesiástico, independente dos tribunais
civis comuns, para o julgamento de tais casos. Os Salmos deveriam ser cantados, os jovens deveriam ser instruídos e examinados publicamente sobre seu conhecimento a

respeito da fé Reformada e novos regulamentos para o casamento foram propostos. Um Catéchisme (originalmente chamado Instruction et confession de la foy) foi

preparado em novembro daquele mesmo ano tendo em mente o quarto aspecto que os pastores consideravam necessário. Porém, em novembro do ano anterior, Calvino

havia requisitado aos Messieurs de Genebra que exigissem, de cada residente (habitante – isto é, um residente estrangeiro legal, p. 130) de Genebra, que estes aderissem

a cada um dos vinte e um artigos da sua Confissão de Fé. Não está bem claro o motivo pelo qual ele devesse ter restringido sua exigência de adesão aos habitantes (tais

como ele e Farel), aos quais eram negados os direitos de voto nas eleições de Genebra e o direito de concorrer a cargos públicos; a explicação mais plausível é a de que

essa exigência fornecia um meio de retirar da cidade os estrangeiros que fossem simpatizantes da antiga religião. Contudo, os artigos de janeiro de 1537 exigiam que

“todos os cidadãos e moradores de Genebra e as pessoas que vivessem sob sua jurisdição” confirmassem sua submissão a tal confissão.

Pode parecer que, até o final de 1537, muito havia sido alcançado na construção da Nova
Jerusalém com a qual Calvino e Farel sonhavam. Na verdade, porém, uma reação havia
irrompido. A Reforma em Genebra pode ter alterado as estruturas e práticas civis e
eclesiásticas; ela não havia e nem poderia haver alterado, porém, a natureza humana. A
facção contrária a Farel descobriu que havia sido tremendamente fortalecida pela
impopularidade das medidas tomadas por Farel e Calvino. Os cidadãos de Genebra não
gostaram de serem forçados a ouvir sermões, mais do que haviam gostado da ameaça de
excomunhão. Mesmo a facção favorável a Farel hesitava a respeito da excomunhão: em
janeiro de 1537 os magistrados exigiram que to-dos aqueles que desejassem se apresentar
para a comunhão fossem admitidos. Os Messieurs haviam rejeitado a instalação de
qualquer tribunal que pudesse representar uma ameaça aos poderes dos magistrados e –
atentos às obrigações que assumiram através do tratado com Berna, o qual dispunha que a
comunhão deveria ser celebrada quatro vezes ao ano – recusaram-se a aceitar a idéia da
comunhão mensal. Os cidadãos de Genebra também se ressentiram com a imposição das
medidas que eles consideravam como legalistas e severas, as quais pareciam ser
inconsistentes com a nova liberdade que a cidade reivindicara em 1536. O resultado foi,
talvez, inevitável: todos os quatro síndicos eleitos em 3 de fevereiro de 1538 eram
contrários a Farel e Calvino, adotando uma postura favorável a Berna, em assuntos rela-
tivos às crenças e práticas religiosas. Imediatamente a seguir, seis Guillerminos foram
suspensos do Pequeno Conselho, acusados de conspiração política.
A tensão aumentou ainda mais em março. Uma série de acontecimentos afetou a
autoridade de Calvino na cidade. Os pastores foram proibidos de qualquer envolvimento
39
em assuntos políticos. Como que para enfatizar quem estava no controle de Genebra, o
conselho adicionou a essa injúria um insulto, estipulando, simultaneamente, a maneira
como os assuntos religiosos da cidade seriam, de agora em diante, conduzidos: o modelo de
40
Berna, em vez daquele elaborado por Farel e Calvino, seria adotado. Quando estivesse em
Genebra a pessoa iria, agora, fazer tudo da mesma forma como se fazia em Berna. Atento à
posição vulnerável que Genebra ocupava e consciente do destino da até então independente
Lausanne, o Conselho municipal tinha pouca disposição para se envolver em discussões
religiosas com seus “libertadores”. Um mês mais tarde, uma carta dos Messieurs de Berna,
41
endereçada a Calvino e Farel, exigia que eles concordassem com o modelo de Berna. Após
um período de indefinição e desafio, que culminou no dia da Páscoa (21 de abril), o
conselho, finalmente, perdeu a paciência. Calvino e Farel foram expulsos de Genebra.
O EXÍLIO EM ESTRASBURGO, DE 1538 A 1541
Parece que levou algum tempo para que Calvino aceitasse que ele havia sido, de fato,
irrevogavelmente expulso de Genebra. Sua tentação inicial foi a de retornar à obscuridade
de sua vida privada, retomando os objetivos acadêmicos que ele fora obrigado a abandonar
em 1536. Seu retorno a Basiléia sugere, certamente, essa linha de raciocínio. Porém,
primordialmente, sua crença acerca de sua própria vocação para o ministério parece ter sido
abalada. Deus
o havia realmente chamado para o ministério na Igreja? Sua expulsão de Genebra parece tê-
lo levado a questionar seu senso anterior – na verdade, sua certeza – a respeito de tal
42
vocação. Essa dúvida foi agravada, inquestio
navelmente, por uma carta de du Tillet que sugeria que Calvino não possuía,
43
absolutamente, qualquer tipo de chamado divino para o ministério.
Parte do problema de Calvino, como ele mesmo veio a perceber, era o fato de ele haver
sido percebido como alguém inexperiente e sonhador, durante sua experiência em Genebra.
Mesmo que se recusasse terminantemente a aceitar que ele havia feito algo que fosse errado
enquanto esteve em Genebra, ele reconhecia claramente que certas coisas poderiam e
44
deveriam ter sido feitas de forma diferente. Sua crise pessoal parece logo ter se
solucionado. Em 20 de outubro Calvino escreveu a du Tillet, declarando com segurança
que ele não mais duvidava de sua vocação divina para ser pastor: “o Senhor me deu razões
45
mais seguras para me convencer de sua validade.”. Parece que essa nova confiança em sua
vocação pode ser atribuída à nova esfera de ministério e atividade literária para a qual ele
havia sido chamado – Estrasburgo.
Enquanto Genebra representava uma rota de passagem da Europa, Estrasburgo era um
dos grandes centros europeus. Sob a liderança de Johann Sturm, Estrasburgo havia ganho
um prestígio internacional que era completamente negado a cidades de menor importância,
46
como Genebra. A Reforma havia sido implementada lá há algum tempo; a cidade oferecia,
assim, ao jovem Calvino, a possibilidade de um ministério estabilizado, em vez de um
ministério pioneiro. Acima de tudo a cidade lhe prometia algo de que, até então, ele havia
sentido falta – experiência pastoral e política. O líder que comandara sua reforma, Martinho
Bucero, havia reunido à sua volta uma constelação de estrelas menores, tais como
Wolfgang Capito. A possibilidade de mudar para Estrasburgo havia sido proposta em julho;
somente em setembro Calvino, finalmente, a aceitou. Embora Estrasburgo fosse, como
Basiléia, uma cidade onde se falava o alemão, havia dentro de seus limites uma colônia
considerável de residentes que falava o francês. Calvino viria a se tornar o pastor da
congregação francesa Reformada na cidade. É evidente que a reação positiva a sua
47
pregação e ministério restaurou a autoconfiança nas habilidades que possuía.
Se Calvino tinha quaisquer dúvidas a respeito de sua mudança para Estrasburgo, estas
foram logo acalmadas. Em todos os aspectos de sua vida, com exceção de um, a mudança
se mostrou compensadora. Ele foi capaz de adquirir experiência de diplomacia eclesiástica,
do nível mais elevado possível, ao acompanhar Bucero e seus colegas a conferências
internacionais em Worms e Ratisbon. Da segurança de seu observatório, em Estrasburgo,
ele foi capaz de perceber a natureza, plenamente insatisfatória, da relação entre a Igreja e o
Estado nos territórios alemães, sendo este, talvez, o legado mais sinistro de Lutero para a
Reforma; observando como o Estado dominava as igrejas, Calvino idealizou outros
modelos. Ele foi capaz de desenvolver seu talento como professor na recém-fundada
academia de Johann Sturm. Ele também foi capaz de começar a pôr em prática as medidas
que havia imposto anteriormente à igreja de Genebra, então sem sucesso, e aprender através
dessa experiência. Bucero já havia adotado, por conta própria, muitas das medidas então
sugeridas por Calvino: os salmos eram cantados, a instrução nos catecismos era obrigatória
para os jovens e somente os fiéis devotados, comprometidos, tinham permissão para
participar da celebração da comunhão.
Sua única dificuldade relacionava-se à sua situação financeira. Calvino estava passando
por circunstâncias difíceis nessa área. Parece que ele foi obrigado a vender parte de sua
48
biblioteca pessoal durante esse período em Estrasburgo. Escrevendo em 1543, Calvino
sentiu-se na obrigação de se desculpar pela falta de citações detalhadas na edição de 1539
de suas Institutas (que havia sido finalizada em Estrasburgo, por volta de outubro de 1538):
ele havia, conforme explicou, sido forçado a fazer citações de memória, pois tinha, em
49
mãos, apenas um único volume de Agostinho.
A despeito do fato de haver ficado sem os livros, a produção literária de Calvino,
enquanto esteve em Estrasburgo, foi impressionante: a nova edição das Institutas, que foi
lançada em agosto de 1539, logo foi complementada por sua inovadora versão para o
francês, de 1541. A Réplica a Sadoleto, na qual Calvino defendeu as noções elementares da
Reforma em Genebra contra as críticas e provocações desse eminente diplomata da cúria
católica, foi publicada em outubro de 1539 (a carta de Sadoleto aos cidadãos de Gene-bra
também revelava uma ameaça potencial para aquela cidade, para uma reversão ao
catolicismo, à qual os oponentes de Calvino, em Genebra, não foram capazes de reagir). O
primeiro dos grandes comentários de Calvino – sobre a carta de Paulo aos Romanos – foi
finalizado nessa mesma época e publicado no ano seguinte. O Short Treatise of the Lord’s
Suppers foi impresso em 1541. Mesmo uma análise superficial dessas obras – por exemplo,
da nova edição das Institutas – indica uma nova clareza de expressão e amplitude de
perspectiva que somente podem ser atribuídas à ampliação de seus horizontes intelectual e
institucional, a qual foi alcançada através da experiência adquirida diretamente com a
administração da igreja em Estrasburgo. As vagas generalidades de 1536 foram substituídas
pela precisão de detalhe, pela clareza de direção e pelo realismo minucioso que são as
marcas dos pensadores que amadureceram através da experiência com o mundo real da
sociedade e das instituições humanas. Até 1541, Calvino havia adquirido uma considerável
experiência prática de administração da igreja e havia dedicado muita reflexão à teoria da
organização e disciplina eclesial e civil (na qual ele foi consideravelmente influenciado por
Bucero). A Igreja e a comunidade Reformadas, que haviam existido apenas em sua mente,
na Genebra de 1538, eram agora realidades concretas. A teoria abstrata e o sonho foram
substituídos pela experiência prática e concreta.
Calvino não deu qualquer indicação de que desejasse deixar seu local de exílio. Em
julho de 1540 ele adquiriu a cidadania strasbourgeois e, no mês seguinte, seguiu o conselho
de Bucero e casou-se com uma viúva local, Idelette de Bure. Não havia sobre ele
absolutamente pressão alguma para que deixasse Estrasburgo; na verdade, seu prestígio
social e intelectual estava em ascendência. Em Genebra, porém, a situação havia se
alterado. Já em outubro de 1540, especulações voltavam-se em direção a Estrasburgo: iria
Calvino regressar a Genebra?
O RETORNO A GENEBRA
As eleições de 1539, em Genebra, ficaram indefinidas, não tendo conseguido retirar
totalmente os oponentes de Farel e Calvino das posições de influência e, ao mesmo tempo,
ainda negando o poder a seus seguidores. As relações entre Berna e Genebra começaram a
se deteriorar, particularmente em função de algumas dúvidas em torno do acordo de 1536,
estabelecido entre as duas cidades, que pôs fim à ocupação de Genebra por Berna. Jean
Lullin, um notável oponente de Farel e Calvino que apoiava Philippe, liderou uma
delegação de três representantes que foi de Genebra até Berna para esclarecer a situação.
Os representantes de Berna insistiram em negociar em uma espécie de alemão que era
falado na Suíça, uma língua que Lullin afirmou compreender perfeitamente. Uma série de
artigos foi negociada. Os Articulantes (nome que lhes foi dado em razão dos artigos que
eles haviam negociado) pareciam haver assegurado sua superioridade.
Porém, dois meses mais tarde, os representantes de Berna, de forma premeditada,
providenciaram uma tradução desses artigos para o francês, em benefício de seus aliados. O
povo de Genebra ficou horrorizado: o conhecimento de Lullin em relação àquela espécie de
alemão que era falado na Suíça estava aquém do que alguém poderia haver esperado. Os
artigos foram imediatamente repudiados e ordenou-se que Lullin retornasse a Berna para
renegociar o tratado de 1536. Ele se recusou. Em abril de 1540, Berna insistia em um pon-
to: o tratado de 1536, de acordo com o que havia sido “esclarecido” em 1539, deveria ser
totalmente executado. Seguiu-se uma revolta que reivindicava a prisão dos Articulantes,
que eram agora considerados nada mais do que agentes defensores dos interesses de Berna
na cidade. O apelo de Berna por clemência simplesmente confirmou essa suspeita: todos os
três foram condenados à morte in absentia. Após posterior revolta, Jean Philippe e um de
seus seguidores foram presos e executados. A facção contrária a Farel deixou de ser uma
força significante na política de Genebra, havendo sido fatalmente comprometida em razão
de suas simpatias em favor de Berna.
Até outubro de 1540, a facção favorável a Farel havia conquistado o controle da cidade.
Os acontecimentos que se deram na ausência de Farel e Calvino haviam demonstrado a
íntima interdependência entre Reforma e independência, entre princípios e moral. Embora o
Conselho municipal estivesse interessado, sobretudo, na independência e na moral da
cidade, o fato de que a agenda religiosa de Farel não poderia ser negligenciada foi sendo,
50
gradualmente, perce-bido. A facção favorável a Farel tinha, provavelmente, pouco
entusiasmo por uma reforma religiosa ou pela imposição de normas públicas; entretanto,
parecia que a sobrevivência da república de Genebra dependia de tais aspectos. Assim, uma
de suas primeiras ações foi chamar de volta Farel e Calvino, com o objetivo de restaurar as
reformas de Farel, de 1536. Seus inimigos haviam sido neutralizados; era seguro retornar.
O convite parece haver sido endereçado, principal-mente, a Farel. Contudo, Farel morava
agora em Neuchâtel e trabalhava para empregadores de Berna. Mesmo que ele estivesse
preparado para retornar a Genebra (e parece que ele não tinha qualquer intenção de fazê-
lo), seus empregadores de Berna não estavam dispostos a liberá-lo, para que as relações
entre Berna e Genebra não se deteriorassem ainda mais. Inicialmente, Calvino não
demonstrou a mínima intenção de regressar. Porém, em fevereiro de 1541, Farel conseguiu
persuadir um Calvino relutante e hesitante a regressar.
Em 13 de setembro daquele mesmo ano, Calvino entrou novamente em Genebra. O
jovem inexperiente e impetuoso que havia partido em 1538 era agora substituído por um
talentoso e experiente estrategista eclesiástico, atento às atitudes do mundo à sua volta. O
segundo período em Genebra iria assistir posteriormente a uma troca decisiva, a seu favor,
no equilíbrio de poder que havia na cidade. Porém, isso provou ser ainda parte de um futuro
um tanto distante. Um enganoso recomeço o aguardava, enquanto Calvino se preparava
para regressar.

6
GENEBRA: A CONSOLIDAÇÃO DO PODER

Como Byron observa em Hints from Horace, é difícil “atribuir um novo interesse a uma
história contada pela segunda vez”. A história das tribulações pelas quais Calvino passou
durante seu segundo período em Genebra tem sido contada por tantas vezes e tão bem, que
haverá pouca utilidade em repeti-la. Os mitos que se referem a esse período abundam,
refletindo a profunda aversão através da qual Calvino era visto por muitos, nos séculos 19 e
1
20. Pode ser interessante observar alguns deles, para demonstrar quão profundamente o
mito do “grande ditador de Genebra” está embutido nos relatos históricos e religiosos
populares. Como devemos enfatizar por toda essa obra, quando esse mito não é uma
completa invenção, ele representa uma grave distorção dos fatos históricos.
Em La Comédie humaine, Honoré de Balzac nos informa que, imediatamente a partir do
retorno de Calvino a Genebra, em 1541, “as execuções começaram e Calvino organizou seu
terrorismo religioso”. Talvez Balzac, ao exercitar sua considerável licença poética, tenha
confundido Calvino com Robespierre; de qualquer modo, não houve qualquer império do
terror em Genebra e Calvino jamais assumiu qualquer posição para instigar, muito me-nos
para controlar ou dirigir esse tipo de campanha. Desde seu retorno até sua morte, houve
apenas uma execução em Genebra, motivada por uma ofensa religiosa; o envolvimento de
Calvino nesse episódio foi, como veremos, um tanto quanto periférico.
Mais recentemente, buscando desacreditar Calvino, Aldous Huxley declara, sem
qualquer base documental, que “durante o período do governo teocrático de Calvino em
Genebra, uma criança foi publicamente decapitada por haver se aventurado a agredir seus
2
pais.”. Em primeiro lugar, não há qualquer registro de algum incidente desse tipo nos
arquivos de Genebra (os quais são tão detalhados quanto se poderia desejar); em segundo
lugar, não há qualquer fundamento, nos códigos civil e criminal de Genebra, que pudesse,
em tese, justificar tal procedimento, muito menos tal penalidade tão severa; em terceiro
lugar, o conteúdo e a execução dos códigos civil e criminal de Genebra não tinham
qualquer relação com Calvino. Profissionalmente, como advogado, ele ocasionalmente se
envolvia no desenvolvimento de projetos legislativos para Gene-bra; por exemplo, por volta
de 1543, ele foi convidado para desenvolver um projeto de lei que tratasse da questão das
sentinelas municipais. Porém, esses projetos não eram suas leis, mas da própria cidade.
Em quarto lugar, Huxley pode ser questionado pelo seu uso desinformado da expressão
“governo teocrático”. Na verdade, tem-se sugerido, freqüentemente, que o pensamento
3
político de Calvino é profundamente teocrático. Entretanto, é importante esclarecer o que
esse termo sutil possa significar. Ele é popularmente tido por algo que implica em um
regime político no qual a autoridade civil é dominada pelo clero ou por algum outro instru-
mento de poder ligado à Igreja; nesse sentido, pode-se demonstrar com facilidade que
Calvino nunca conseguiu estabelecer e, de qualquer forma, nunca pretendeu estabelecer
uma teocracia em Genebra, a despeito das declarações de Huxley em sentido contrário. O
termo tem um segundo significado, porém, o qual talvez seja mais apropriado aos níveis
teológico e etimológico: um regime no qual se reconhece que toda autoridade é derivada de
4
Deus. O conceito de Calvino a respeito do governo civil, particularmente no que se refere à
situação de Genebra, pode ser considerado radicalmente teocrático nesse sentido último e
menos ameaçador do termo. Contudo, em ambos os sentidos, entende-se que Deus está
indiretamente envolvido nas questões de ordem e governo, tanto através do clero, na forma
de agentes que alegam operar em nome de Deus, quanto através da própria noção de
autoridade civil, a qual deriva em última análise de Deus.
É possível que Calvino possa ter pensado que ele estava retornando em triunfo para
assumir a Reforma de Genebra. Se ele algum dia teve tal ilusão (e
GENEBRA: A CONSOLIDAÇÃO DO PODER

a evidência documental sugere o contrário), ela teria sido cruelmente destruída em questão
de meses. Deve ter havido, na verdade, um período de lua-de-mel, durante o qual o
conselho parece lhe haver conferido liberdade suficiente para reformar as estruturas da
igreja de Genebra. Esse período, porém, foi relativamente curto. Repetidas vezes Calvino
foi contrariado em seus desígnios por um conselho astuto e ansioso por preservar e ampliar
seu próprio controle sobre a cidade.
Ao final da década de 1540, tornou-se cada vez mais óbvio que Calvino simplesmente
não possuía o status político necessário para alcançar seus objetivos. O Conselho municipal
tornou-se, gradualmente, hostil em relação a Calvino, à medida que os “libertinos” (o grupo
associado a Ami Perrin, por outro lado também conhecido como os “perrinistas”)
ganhavam domínio. De fato, o conselho se portava como se fosse um senhor Micawber às
avessas, sempre procurando por alguma coisa para rejeitar.
As dificuldades profissionais de Calvino eram intensificadas por sua tragédia pessoal.
Como observamos anteriormente, ele havia se casado com uma viúva, Idelette de Bure,
5
quando esteve em Estrasburgo. O único filho deles morreu logo após o nascimento. Sua
mulher ficou gravemente enferma em 1545 e, após muito sofrimento, com sucessivas
melhoras e pioras, ela faleceu em março de 1549, deixando Calvino a cuidar de seus dois
filhos, nascidos de seu primeiro casamento. Parece que Calvino tinha muitos seguidores,
6
mas poucos amigos; ele estava desolado por sua perda. Até 1555, ele parecia bastante
privado de apoio, em meio às estruturas de poder da cidade. Para entender como surgiu essa
situação, é necessário considerar a organização de Genebra, naquela época.

CALVINO E A ADMINISTRAÇÃO DE GENEBRA


Se há alguma entidade política do século 16 que possa ser comparada a uma cidade-
estado grega, esta cidade é Genebra. François Bonivard dedicou sua edição francesa do
estudo de Guilherme Postel sobre os clássicos magistrados atenienses ao Petit Conseil de
Genebra, sugerindo que se percebia a existência de certos paralelos entre as duas cidades-
estado, a antiga e a moderna. O território de Genebra era estritamente limitado em função
da geografia física, da cautela militar e da ambição política – considerações que,
ocasionalmente, tendiam para direções opostas. Na prática, a Genebra do século 16 era uma
pequena cidade fortificada, confinada entre muros cuja independência era questionável (sua
manutenção representava um dreno constante na economia local). A administração da
7
cidade seguia um modelo bastante consolidado nas maiores cidades francesas. A partir da época da
8
Segunda Bourgeoisie em diante, a estrutura básica da administração de Genebra assumiu a forma seguinte.

A partir de 1526, os habitantes de Genebra dividiam-se em três categorias. Cidadãos


(citoyens) eram aqueles que haviam nascido (e foram subseqüentemente batizados) na
cidade e eram filhos de pais que eram citoyens. O corpo diretivo – o Petit Conseil – era
inteiramente composto por cidadãos. Aqueles que haviam nascido fora dos limites da
cidade pertenciam a duas categorias. Àqueles habitantes da cidade que possuíam (ou
tinham condições de adquirir ou de outro modo negociar) o privilegiado título de
bourgeois, eram conferidos os direitos de se encontrarem anualmente para eleger os oficiais
do governo e de serem eleitos para o Conselho dos Sessenta (o Conseil des Soixante) ou
para o Conselho dos Duzentos (o Conseil des Deux Cents). Estritamente falando, nenhum
bourgeois poderia ser eleito para membro do Petit Conseil. Os demais (habitants), que não
se enquadravam nessas duas categorias, possuíam efetivamente o status de estrangeiros que
eram residentes legais, com nenhum direito de voto, de portar armas ou de assumir
qualquer posto público na cidade. Apenas uma exceção era feita: um habitant podia se
tornar um pastor ou dar aulas na haute école – mas somente em razão da ausência pra-
ticamente absoluta de outras pessoas, que fossem nascidas em Genebra e estivessem
qualificadas para desempenhar tais funções. Foi nessa última categoria que o próprio
Calvino se enquadrou, até 1559.
Não é clara qual a função que o Conseil des Soixante desempenhava; este parece ter sido
nada mais que um resquício de estruturas do século 14, não havendo feito algo de maior
importância durante o período em que Calvino permaneceu na cidade. O Conselho dos
Duzentos foi estabelecido em 1527 em razão das dificuldades ocorridas com o Conselho
Geral: o Conseil Général provou-se uma ferramenta provinciana e ineficaz, que obviamente
datava de um período em que a população de Genebra era suficientemente reduzida, de
modo a permitir a convocação de toda a sua população nativa para a tomada de decisões.
Até a época de Calvino, a mesma era convocada duas vezes ao ano para propósitos
estritamente delimitados e pré-determi-nados: a eleição dos síndicos, em fevereiro, e o
estabelecimento aos preços do milho e do vinho, em novembro. Seguindo um modelo já
adotado por cidades como Berna e Zurique, o Conseil des Deux Cents foi criado como

GENEBRA: A CONSOLIDAÇÃO DO PODER

um tipo de concessão, permitindo que o amplo caráter representativo do Conseil Général


fosse mantido sem que houvesse a inconveniência da participação em imensas assembléias
de indivíduos.
O órgão central da administração de Genebra, como observamos anteriormente, era o
Petit Conseil, também conhecido como o Senatus, o Conseil Ordinaire, o Conseil Estroicte
– ou simplesmente como o Conseil. Uma menção genérica ao “Conselho municipal de
Genebra” deveria, invariavelmente, ser entendida como uma referência a esse conselho.
Seus membros eram muitas vezes chamados de “Messieurs de Genève” ou os Seigneurie.
Esse conselho era formado por vinte e quatro homens, que fossem cidadãos de Genebra,
incluindo os quatro síndicos. Praticamente toda a área de atividade pública estava sujeita ao
escrutínio dos Messieurs de Genève, que não tinham qualquer intenção de permitir que
algum aspecto da vida da cidade escapasse ao seu controle. Para uma pequena cidade como
Genebra, a manutenção de sua independência de seus poderosos vizinhos parecia pratica-
mente impossível naquela época; isto se deve à vigilância e à astúcia com que
o Conselho municipal preservou e exerceu sua autoridade, o que manteve sua
independência duramente conquistada durante um quarto de milênio. Genebra manteria sua
soberania até que tropas revolucionárias francesas, na busca por novas esferas de
influência, invadiram a cidade, na década de 1790 (por sinal, um acontecimento que
desempenhou um papel preponderante na decisão de Genebra de se unir à Confederação
Helvética, em 1815).
As rígidas restrições em relação ao direito de voto, na Genebra do século 16, refletiam as
ansiedades difundidas pela cidade a respeito da possível influência de estrangeiros sobre os
assuntos municipais. Ao restringir a cidadania com seus plenos direitos de voto e de
ocupação de cargos a certos residentes nativos, o conselho, efetivamente, impediu as
ambições de qualquer estrangeiro de vir a exercitar alguma influência política na cidade.
Portanto, foi negado a Calvino o acesso à estrutura de decisão da cidade. Ele não podia
votar e não podia concorrer a cargos públicos. De 1541 a 1559 seu status na cidade era o de
habitant. Diferentemente da posterior celebridade de Genebra, Jean-Jacques Rousseau,
Calvino nunca pôde enfeitar as páginas iniciais de suas obras publicadas com as cobiçadas
palavras citoyen de Genève. Em 25 de dezembro de 1559 seu nome foi, finalmente, anotado
9
no Livre des bourgeois de l’ancienne republique de Genève. Embora lhe tenha sido
tardiamente concedido o status de bourgeois, Calvino foi definitivamente excluído da
possibilidade de se tornar um cidadão da cidade que se tornou tão intimamente associada a
seu nome. Sua influência sobre Genebra foi exercida de forma indireta, através de
pregações, conferências e outras formas de persuasão legítima. A despeito de sua
habilidade para influenciar através de sua autoridade moral, ele não possuía qualquer
jurisdição civil, nenhum direito de coagir outros a agir de acordo com o que ele desejava.
Calvino podia e efetivamente incitava, seduzia e suplicava: ele não podia, contudo, ordenar.
A imagem de Calvino como o “ditador de Genebra” não guarda qualquer relação com os
fatos históricos conhecidos. Seu perfil, traçado por Stephan Zweig, de um líder autoritário
que governava os desafortunados habitantes de Genebra com uma vara de ferro deve-se,
talvez, mais à imaginação de Zweig e à sua agenda antiautoritária, informada e temperada
por imagens de Robespierre, Hitler e Stalin, do que às realidades da vida, na Genebra do
século 16. O Conselho municipal não tinha qualquer intenção de entregar seus direitos e
privilégios, duramente conquistados, a quem quer que fosse, muito menos a um de seus
empregados – um estrangeiro destituído do direito de voto, a quem eles poderiam despedir
e expulsar da cidade quando bem entendessem. Nenhuma parte da lei ou do ordenamento
civil de Genebra – com as exceções do Consistório e da Venerável Companhia de Pastores
– devia a Calvino sua existência, sua forma ou sua consentida esfera de atividade. De todas
as formas, o Conselho municipal mantinha sua autoridade em questões religiosas. O fato de
que a autoridade de Calvino sobre os assuntos civis era de caráter puramente pessoal e
moral foi demonstrado pelas dificuldades que seus sucessores enfrentaram após sua morte.
Até março de 1553, a posição de Calvino havia se tornado insustentável. Uma coalizão
contrária a Calvino tinha adquirido o controle dos principais cargos municipais. Nas
eleições de fevereiro de 1552, seu oponente de longa data, Ami Perrin, foi eleito como
primeiro síndico, havendo seus simpatizantes assumido dois dos três cargos restantes de
síndico. O cunhado de Perrin, Pierre Tissot, tornou-se o delegado municipal. Até 1553, o
partido perrinista
– comumente conhecido como os libertinos – havia assumido o controle doPetit Conseil.
Eles agora se sentiam capazes de desafiar Calvino em seu próprio território – a questão da
disciplina eclesiástica, a qual, de acordo com as Ordenanças de 1541, era a esfera de
atividade conferida aos pastores e exercida por meio do Consistório. A igreja de Genebra,
seguindo o modelo de Berna, tinha quatro dias santos nos quais a comunhão era celebrada,
que se distribuíam uniformemente pelo calendário eclesiástico – Natal, Páscoa,

GENEBRA: A CONSOLIDAÇÃO DO PODER

Pentecostes e setembro – o que levou algum francês cínico a fazer a observação de que
estes dias haviam se inspirado nas quatro feiras de comércio, que aconteciam anualmente
10
em Lion. Com a proximidade da celebração da comunhão de Páscoa, em 1553, o conselho
requisitou ao Consistório que lhe fornecesse uma lista de todos os atuais excomungados,
juntamente com a justificativa de cada caso de excomunhão. A implicação disso era clara: o
conselho se considerava no direito de rever todos os veredictos relacionados à disciplina
eclesiástica. Isso equivalia a uma rejeição – ou, na melhor das hipóteses, a uma
interpretação subversiva – das Ordenanças de 1541, por meio das quais Calvino pensou
que havia pacificado a questão acerca de quem possuía autoridade para exercer a disciplina
eclesiástica.
Poucos meses depois, uma nova decisão enfraqueceu ainda mais a posição de Calvino,
em Genebra: os pastores, mesmo que fossem cidadãos de Genebra, foram proibidos de ser
membros do Conselho Geral, que era o colegiado que elegia os síndicos. Uma quantidade
significativa dos simpatizantes de Calvino foi, dessa forma, efetivamente destituída de seus
direitos. Pouco depois, o conselho interveio em um assunto eclesial, avançando mais além,
portanto, sobre a esfera de autoridade progressivamente reduzida de Calvino: François
Bourgoin, pastor da vila de Jussy, foi transferido para um posto em Genebra e substituído
por alguém indicado pelo conselho. Em 24 de julho de 1553, Calvino propôs se demitir; seu
11
pedido foi recusado. Porém, pouco tempo depois, a tensão entre Calvino e o Conselho
municipal desviou-se dessa queda de braço, à medida que surgiu uma nova ameaça –
o caso Serveto. Para entender o papel de Calvino nesse episódio, é necessário considerar o
papel do Consistório, antes de nos voltarmos para a monopolização do judiciário pelo
Conselho municipal.

O CONSISTÓRIO
Se as Institutas da Religião Cristã representam os músculos da Reforma de Calvino, sua
organização eclesiástica representa a espinha dorsal. As Ordenanças Eclesiásticas (1541),
que deram à igreja de Genebra sua forma e identidade características, foram elaboradas por
Calvino quase que imediatamente após seu retorno a Genebra, do período de seu exílio em
Estrasburgo. Convencido da necessidade de uma igreja disciplinada, bem organizada e
estruturada, ele procedeu à elaboração de diretrizes detalhadas, que disciplinavam cada
12
aspecto de sua existência. O estabelecimento de um aparato eclesiástico adequado aos objetivos de
Calvino deve ser considerado como um dos aspectos mais significativos de seu ministério e
fornece um peso adicional à hipótese que estabelece um paralelo entre ele e Lênin; ambos
eram admiravelmente conscientes da importância das instituições para a propagação de
13
suas respectivas revoluções e prontamente organizaram aquilo que era necessário para tanto.
A importância das estruturas eclesiásticas para o desenvolvimento internacional do
Calvinismo pode, talvez, ser melhor apreciada pela comparação das situações, bastante
divergentes, pelas quais o Luteranismo e o Calvinismo vieram a se estabelecer tanto na
Europa ocidental quanto na América do Norte. O Luteranismo avançou geralmente através
da simpatia de monarcas e príncipes, os quais não foram, talvez, totalmente indiferentes
acerca do importante papel eclesial a eles atribuído pela doutrina dos “dois Reinos” de
Lutero. Embora Calvino tivesse consciência do potencial que havia no fato de se ganhar a
simpatia dos monarcas em relação a suas idéias (sendo a sua ambição particular conquistar
uma platéia que lhe fosse favorável, dentre a corte francesa), o Calvinismo geralmente teve
que sobreviver e se expandir em situações claramente hostis (tal como a da França, na
década de 1550), nas quais tanto o monarca quanto a instituição eclesial existente
opunham-se ao seu desenvolvimento. Sob tais condições, a própria sobrevivência dos
grupos calvinistas dependia de uma Igreja forte e bem disciplinada, capaz de sobreviver à
hostilidade de seu contexto. As estruturas eclesiais calvinistas, mais sofisticadas, provaram-
se capazes de suportar situações consideravelmente mais difíceis do que suas equivalentes
luteranas, fornecendo ao Calvinismo um recurso vital para conquistar espaço em situações
políticas que, à primeira vista, pareciam totalmente adversas.
O aspecto mais típico e controvertido do sistema de administração eclesial elaborado por
Calvino era o Consistório. A instituição surgiu em 1542, composta por doze líderes leigos
(que eram anualmente escolhidos pelos magistrados) e por todos os membros da Venerável
Companhia de Pastores (que eram nove, em 1542, e dezenove, em 1564). A intenção era de
que esse colegiado se reunisse semanalmente, às quintas-feiras, com o propósito de manter
a disciplina eclesiástica. As origens dessa instituição são obscuras; parece que cortes
matrimoniais, existentes na época, tal como a Ehegericht de Zurique, podem ter servido
14
como modelo e que um protótipo havia sido, de fato, estabelecido em Genebra, durante o
15
exílio de Calvino em Estrasburgo Certamente, é significativo o fato de que uma das
primeiras

GENEBRA: A CONSOLIDAÇÃO DO PODER

atividades do Consistório fosse voltada para problemas matrimoniais, os quais eram vistos
como uma questão tanto pastoral quanto legal; isso pode perfeitamente retratar a função de
cortes matrimoniais já existentes (as quais eram de caráter predominantemente leigo).
A questão da disciplina eclesiástica havia demandado bastante preocupação por parte
das autoridades nas cidades reformadas suíças. Se pudéssemos dizer que algum padrão
dominante tenha surgido até a década de 1530, este foi o da visão de Zwínglio a respeito da
16
subordinação da disciplina eclesiástica aos magistrados seculares. Sob a liderança do
sucessor de Zwínglio, Heinrich Bullinger, a cidade de Zurique considerava a excomunhão
17
como uma questão civil, de competência dos magistrados, e não do clero. Basiléia também
tinha sérias reservas em relação à conveniência de se atribuir a um tribunal puramente
18
eclesiástico a competência para excomungar pessoas. Se a cidade de Berna é de alguma
forma uma exceção a essa regra, isto se deve ao fato de que ela não excomungava membros
19
de suas igrejas.
As origens de uma teoria divergente podem ser encontradas em Basiléia, no ano de
1530, quando Johann Oecolampadius defendeu uma tese, perante
o Conselho municipal de Basiléia, de que havia uma diferença fundamental entre
autoridade civil e autoridade eclesial. Era necessário criar-se uma corte eclesiástica que
deveria, em síntese, tratar do pecado, enquanto os magistrados seculares continuariam a
20
tratar das ofensas criminais. A primeira deveria ter o direito de excomungar transgressores
para encorajá-los a mudarem seus caminhos e evitar a destruição da unidade e da vida da
Igreja. O Conselho municipal da Basiléia discordou e o assunto foi encerrado.
Entretanto, a idéia de uma corte especificamente eclesiástica ganhou força durante a
década de 1530. Embora Martinho Bucero tenha escrito a Zwínglio, em 19 de outubro de
21
1530, revelando sua hostilidade a respeito da idéia de tal corte, parece que ele mudou sua posição pouco tempo
depois. Não é improvável que isso seja um reflexo do distanciamento entre Bucero e Zwínglio, fruto de uma carta deste último, datada de 12 de fevereiro de 1531, na
22
qual ele acusa Bucero de trair a verdade evangélica por causa de expedientes políti-cos. Em 1531, Bucero defendeu a sugestão de que a cidade de Ulm deveria ter uma

corte eclesiástica composta por leigos e pastores para tratar de assuntos de disciplina eclesial. A tomada de Münster pelos radicais, em fevereiro de 1534, despertou no

Conselho municipal de Estrasburgo a consciência da necessidade de impor a disciplina eclesial e a ortodoxia, se Estrasburgo – então, com uma sólida reputação como

tino de Münster. Entretanto, o conselho rejeitou a preferência de


refúgio para radicais – quisesse evitar o des

Bucero por uma corte especificamente eclesiástica; o controle da disciplina eclesial deveria
23
permanecer firmemente nas mãos das autoridades civis.
Foram as idéias de Bucero, e não o costume de Estrasburgo, que parecem haver
24
despertado a imaginação de Calvino durante sua breve estada na cidade. Os artigos que
tratavam da organização da igreja em Genebra, preparados por Calvino e Farel, em janeiro
de 1537, antecipam praticamente cada aspecto das Ordenanças Eclesiásticas de 1541 –
25
com a exceção notável do Consistório. Isso sugere que foi durante seu período em
Estrasburgo que Calvino desenvolveu a idéia.
Calvino concebeu o Consistório, primordialmente, como um instrumento para o
“policiamento” da ortodoxia religiosa. Este era o garantidor da disciplina, a qual sua
experiência em Estrasburgo o havia levado a reconhecer como essencial para a
sobrevivência do império cristão Reformado. Sua função primária era lidar com aqueles
cujas perspectivas religiosas eram suficientemente discrepantes a ponto de representarem
uma ameaça para a ordem religiosa vigente em Genebra. Pessoas cujo comportamento
fosse tido como inaceitável, por outras razões de ordem pastoral ou moral, deveriam ser tra-
tadas da mesma forma. Em primeiro lugar, devia-se demonstrar a tais indivíduos o erro de
sua conduta; se isso falhasse, a pena de excomunhão estava disponível como uma sanção.
Entretanto, essa era uma pena eclesiástica, e não civil; ao herege poderia ser negado o
acesso a uma das quatro celebrações anuais de comunhão em Genebra, mas ele não poderia
ser submetido a qualquer pena civil por ordem do próprio Consistório. O Conselho
municipal, constantemente ciumento de sua autoridade, insistia em que “tudo isso deve se
dar de tal forma que os ministros não tenham qualquer jurisdição civil, nem usem nada,
exceto a espada espiritual da palavra de Deus . . . nem deve o Consistório diminuir a
autoridade do Seigneurie ou da justiça comum. O poder civil deve permanecer
desimpedido.”.
Após a morte de Calvino, o Consistório parece haver perdido seu senso de direção e se
degenerado em pouco mais do que um instrumento rudimentar de controle social, beirando
o ridículo. Em 1568, dois homens e uma mulher foram excomungados por “escândalo e
desrespeito à instituição do casamento”: eles haviam participado de um café da manhã,
após o casamento, no qual o noivo tinha de cortar um pão em fatias, as quais simbolizavam
a quantidade de relações sexuais que ele havia tido com sua noiva. Durante os

GENEBRA: A CONSOLIDAÇÃO DO PODER

26
anos de 1564 a 1569, 1906 ordens de excomunhão foram emitidas. Em 1568, por exemplo,
um único indivíduo alcançou a duvidosa reputação de ter sido excomungado por quatro
vezes sendo, portanto, forçado a perder cada uma das cerimônias de comunhão que foram
celebradas naquele ano.
Os motivos para a excomunhão proporcionam uma leitura fascinante: brigas e surras
conjugais, domésticas ou públicas, resultando em relatos de violência, a maioria das
questões rotineiras do Consistório. Jogatina, bebedeira e fornicação era tudo o que se
encontrava no regulamento do Consistório; tudo isso era, porém, menos comum do que se
possa ter esperado. Entretanto, é evidente que a função marcantemente religiosa, atribuída
por Calvino ao Consistório, havia se deteriorado; com sua morte, a instituição que ele havia
criado perdeu muito de seu propósito.
A controvérsia em torno do papel do Consistório, no início da década de 1550, centrava-
se na questão de quem possuía o direito de impor a pena de excomunhão, se os Messieurs
de Genebra ou o Consistório. Segundo as Ordenanças Eclesiásticas, parecia a Calvino que,
sem sombra de dúvidas, era o Consistório que estava investido desse direito. Seus
oponentes, liderados por Ami Perrin, defendiam que apenas o Conselho municipal poderia
impor tal penalidade. Uma causa importante, que contribuiu para o atrito que surgiu entre
27
Calvino e os perrinistas, estava relacionada à questão da disciplina eclesiástica. Embora
Perrin e seus adeptos não fossem contrários à Re-forma, eles se opunham intensamente ao
sistema de disciplina de Calvino (é por esse motivo que eles são chamados de “libertinos”,
embora o termo moderno, “liberal” talvez traduzisse sua posição de forma mais
apropriada). A questão atingiu seu clímax com o episódio Serveto.

O EPISÓDIO SERVETO
Se havia uma área da vida civil a qual o Conselho municipal estava determinado a
manter totalmente sob seu controle, esta era a da administração da justiça. A magistratura
de Genebra havia conquistado o direito de administrar a justiça civil e criminal, durante sua
revolta contra o bispo de Genebra e seu protetor, o ducado de Sabóia. Observamos
anteriormente que, antes da mudança de Genebra em direção à independência, o símbolo da
autoridade episcopal na cidade havia sido o vidomne. Esse oficial que, juntamente com sua
assessoria, ocupava o castelo na ilha que havia no meio do rio Ródano, havia servido como
um lembrete visível da soberania do bispo sobre sua cidade.
Em 1527, o direito do bispo de julgar casos civis foi cedido à cidade. Nos anos
seguintes, plena autoridade judicial foi gradualmente cedida aos Messieurs de Genebra: o
direito de executar sentenças criminais foi transferido aos síndicos e os apelos, oriundos da
cidade para as cortes externas superiores, foram impedidos. Até 1530, a cidade havia
adquirido o controle total do judiciário. O direito de administrar a justiça superior era,
efetivamente, como uma demonstração pública de independência da cidade. Permitir que
qualquer indivíduo ou poder estrangeiro influenciasse a justiça de Genebra era destruir a
28
soberania duramente conquistada pela cidade. De maneira nenhuma os Messieurs de
Genebra estavam dispostos a permitir que um estrangeiro exercesse qualquer influência
sobre essa característica central da administração civil da cidade. A Calvino pode ter sido
conferida autoridade, perante o Consistório, para disciplinar membros infratores de suas
congregações, impedindo-os temporariamente de participar das cerimônias de comunhão;
porém, como um mero habitant, ele era rigorosamente excluído da administração da justiça
civil e criminal. É com isso em mente que podemos nos voltar à consideração do episódio
que, posteriormente, levou por um lado à consolidação do poder de Calvino em Genebra e,
29
por outro, à sua difamação como um tirano sanguinário.
O julgamento e a execução de Miguel Serveto por heresia é responsável, mais do que
30
qualquer outro episódio, pela reputação posterior de Calvino. Não é inteiramente claro por
que os acadêmicos qualificaram a execução de Serveto como algo mais importante e
significativo do que as execuções em massa que se deram na Alemanha, após a frustrada
Guerra dos Camponeses (1525) e após o término do cerco de Münster (1534), ou a cruel
política de execução dos sacerdotes católicos, na Inglaterra, na época da rainha Elizabeth.
Mesmo muito tempo depois, em 1612, o governo inglês, sob as ordens dos bispos de
Londres e Lichfield, queimou em praça pública dois indivíduos que defendiam idéias
similares às de Serveto. Na França eram empregadas políticas cruéis de execução
semelhantes: trinta e nove indivíduos foram condenados à fogueira, em Paris, por heresia,
31
entre maio de 1547 e março de 1550.
O Edito de Chateaubriand (de 27 de junho de 1551) aboliu a exigência de que a punição
máxima por heresia deveria ser confirmada, caso a caso, pelo parlement: dali em diante, as
cortes inferiores eram livres para proceder contra os hereges da forma que bem
entendessem. O século 16 pouco conheceu ou ignorou totalmente a aversão moderna pela
punição máxima, considerando-a um método legítimo e conveniente de eliminar os que
fossem

GENEBRA: A CONSOLIDAÇÃO DO PODER

indesejáveis e de desencorajar sua imitação. A cidade de Genebra não era uma exceção:
não possuindo a detenção para longos períodos (os prisioneiros eram mantidos na cadeia
por um breve período, às suas próprias custas, enquanto aguardavam julgamento), a cidade
tinha apenas duas espécies de pena máxima em vigor – o banimento e a execução.
Além disso, não é inteiramente claro o motivo pelo qual o episódio devesse ser
considerado como uma demonstração de algo particularmente monstruoso em relação a
Calvino. Seu apoio tácito à pena máxima por ofensas tais como a heresia, a qual ele (e seus
contemporâneos) considerava grave, faz dele nada mais do que um filho de sua época, em
vez de uma ultrajante exceção aos padrões daquele tempo. Escritores posteriores ao
Iluminismo têm todo o direito de protestar contra a crueldade das prévias gerações;
entretanto, apontar Calvino como alvo de particular criticismo sugere uma seletividade que
se aproxima da vitimização. Apontar em sua direção dessa forma – quando sua participação
foi, para dizer o mínimo, indireta – e negligenciar alegações de infâmia muito mais graves,
atribuídas a outros indivíduos e instituições, levanta sérios questionamentos sobre as
inclinações de seus críticos. Serveto foi o único indivíduo executado em Genebra por causa
de suas convicções religiosas durante a época de Calvino, em um tempo no qual execuções
dessa natureza eram comuns em vários lugares.
Além disso, o julgamento, a condenação e a execução (inclusive a opção pelo tipo
específico de execução) de Serveto foram, totalmente, obra do Conselho municipal, em um
período de sua história durante o qual este era particularmente hostil em relação a Calvino.
Os perrinistas haviam conquistado o poder recentemente e estavam determinados a
enfraquecer a posição de Calvino. O julgamento de Serveto – que guarda paralelos com o
julgamento dos gentilis, em Berna, na década seguinte – intencionava demonstrar sua
impecável ortodoxia, como se fosse uma preparação para sabotar a autoridade religiosa de
Calvino na cidade. O Consistório – o instrumento normal de disciplina eclesiástica, sobre o
qual Calvino possuía considerável influência – foi completamente ignorado pelo conselho,
em seus esforços para marginalizar Calvino. Contudo, ele não poderia ser totalmente
ignorado em uma questão de controvérsia religiosa de tal relevância. Ele estava envolvido
na questão, inicialmente, como um primeiro promotor indireto das acusações e,
posteriormente, como uma testemunha, na qualidade de especialista em teologia; esse
testemunho, contudo, poderia ter partido de qualquer teólogo ortodoxo da época, quer fosse
protestante ou católico romano.
Esse ponto deve ser explorado. Alguns críticos de Calvino parecem sugerir que todo o
seu sistema religioso deve ser repudiado em razão do episódio Serveto. Contudo, o próprio
Tomás de Aquino escreveu abertamente em apoio à queima de hereges, como se segue: “Se
o herege ainda permanece obstinado em suas convicções, a Igreja, desistindo de sua
conversão, propicia a salvação de outros retirando-o da Igreja, pela sentença de
excomunhão e, então, o entrega ao juiz secular para que seja exterminado do mundo pela
32
morte.”. Esse e muitos outros aspectos do pensamento de Aquino – por exemplo, sua
defesa da escravidão, sua atitude em relação aos judeus e sua crença na inferioridade
33
natural das mulheres – são totalmente inaceitáveis, com toda razão, para muitos no mundo
moderno; isso não torna seu pensamento político e religioso inaceitável em sua totalidade.
O leitor moderno deve exercitar – e geralmente o faz – um certo grau de seletividade em
relação a tais aspectos, tendo em mente que muitas das perspectivas de Aquino eram
historicamente condicionadas, continuando a considerar Aquino uma fonte fértil de idéias
religiosas ou de outra natureza. O mesmo fato acontece e deve valer em relação a Calvino.
Não estamos alegando, de modo algum, que é aceitável
o fato de qualquer indivíduo envolver-se em julgamentos que levem à punição máxima.
Não representa necessariamente uma defesa das atitudes e ações, tanto do Conselho
municipal de Genebra, como do próprio Calvino, o fato de apontarmos que estas encontram
amplo apoio dentre as obras de Tomás de Aquino. Porém, se Calvino não pode ser
desculpado nesse ponto, ele pode e deve ser contextualizado como alguém que viveu em
uma época a qual, não possuindo muitas das preocupações típicas do pensamento liberal do
século 20, considerava a execução de hereges como uma atividade rotineira.
O leitor moderno pode estar inclinado a considerar “heresia” como a expressão de uma
opinião em conflito com a ortodoxia dominante – e, como tal, recebê-la favoravelmente
como uma expressão de criatividade e de liberdade pessoal. Deve-se enfatizar que esse é
um entendimento moderno do conceito, para o qual o século 16 não se encontrava
preparado. Estudos sócio-políticos detalhados sobre as mais importantes heresias cristãs
históricas sugerem que estas não estavam preocupadas meramente com idéias, mas com
uma agenda social e política muito mais ampla. Por exemplo, a controvérsia donatista, ao
final do período clássico, pode parecer relacionada meramente a teorias contrárias sobre a
natureza da Igreja cristã; contudo, sua agenda fundamental voltava-se aos conflitos entre os
berber, povo nativo do Norte da África, e os colonizadores romanos. As questões teológicas
eram, normalmente, um ver

GENEBRA: A CONSOLIDAÇÃO DO PODER

niz que recobria os movimentos sociais e nacionais voltados a desafiar o status quo sócio-
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político, assim como sua respectiva “posição religiosa oficial”. O considerável apelo
popular associado às heresias, durante o período medieval, normalmente refletia não tanto
um interesse em suas idéias religiosas, mas uma percepção de suas implicações sociais e
políticas. Um exemplo particularmente esclarecedor desse fato é fornecido pelo
Hussianismo, o movimento associado a João Huss, no início do século 15. Embora o
movimento possa parecer essencialmente voltado a abstrações teológicas, tais como a
natureza da Igreja, sua força motriz se encontrava no seu forte apelo ao nacionalismo
boêmio e ao seu programa sócio-econômico. A Igreja Católica foi forçada a se posicionar
prontamente contra a heresia, em razão de suas tendências potencialmente
desestabilizadoras. O poder da Igreja, tanto quanto sua doutrina, era o que estava sob
ameaça.
Com a chegada da Reforma às cidades da Europa ocidental, as desestabilizadoras
tendências de heresia tornaram-se cada vez mais evidentes. Desde o início havia uma
tensão entre aqueles Reformadores (tais como Lutero, Zwínglio, Bullinger, Bucero e
Calvino) que viam a Reforma como um processo simbiótico, o qual envolvia os
Reformadores e os magistrados agin-do em conjunto dentro da ordem estabelecida e
aqueles Reformadores radicais (tais como Jacob Hutter), que consideravam a verdadeira
Reforma como uma varredura da corrompida ordem social e política existente. O Conselho
municipal de Zurique sentiu-se ameaçado por tais elementos radicais na década de 1520 e
tomou todas as medidas disponíveis para evitar que eles alcançassem alguma influência na
cidade. A ala radical da Reforma, também conhecida como o anabatismo, era
primordialmente caracterizada, a nível religioso, pela sua rejeição do batismo infantil: a
nível social, porém, suas perspectivas eram radicalmente antiautoritárias, incluindo,
freqüentemente, importantes indícios de Comunismo. Acontecimentos em Münster, que
35
caiu sob domínio dos radicais em 1534, confirmaram a grave ameaça que a ala radical da Reforma representava para as estruturas
sociais existentes. Embora os conselhos municipais católicos e protestantes pudessem divergir em muitos pontos, eles tinham uma crença em comum de que a heresia

ameaçava a estabilidade e, consequentemente, a existência de suas cidades. O destino de Münster – que teve de ser reconquistada através de um cerco prolongado e

sangrento – revelou o fato de que a heresia envolvia bem mais do que simples idéias: ela representava uma séria ameaça à existência urbana. Nenhuma cidade poderia se

medidas drásticas, adotadas pelo Conselho


dispor a permitir tal influência desestabilizadora dentro de seus limites. As

municipal de Estrasburgo após 1534, a fim de eliminar a ameaça radical, ilustram, de forma
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clara, o quanto essa ameaça era seriamente encarada naquela época.
Genebra não era uma exceção. Uma vez que havia sido provada a existência de um
herege em seu meio, cujas simpatias o alinhavam com a ala radical da Reforma, as
autoridades de Genebra tiveram pouca opção, exceto agir, apesar das dificuldades advindas
do fato de que Serveto não estava, estritamente falando, sujeito à justiça de Genebra. Não
está totalmente esclarecido o motivo pelo qual Serveto deva ter escolhido visitar Genebra;
provavelmente ele parou na cidade quando estava a caminho de Basiléia em busca de
37
refúgio, como fez Calvino antes dele. Ele já havia sido condenado como herege pelas
autoridades católicas, na França; contudo, ele havia escapado da prisão em Viena e se
encaminhado a Genebra, para ser preso, em 13 de agosto de 1553. Ele havia publicado,
recentemente, um livro intituladoChristianismi Restitutio (será que havia um deliberado
paralelo com a Institutio Christianae religionis, de Calvino? A obra negava um ponto
central da fé cristã – a Trindade e uma prática tradicional – o batismo infantil). Embora
Calvino claramente considerasse a primeira questão infinitamente mais grave, a julgar pela
ferocidade de seus ataques verbais a Serveto (ataques, diga-se de passagem, cuja natureza
confirma a impressão generalizada sobre a crescente mesquinhez e amargura de Calvino, à
medida que envelhecia), é provavelmente a última questão que representa o motivo das
ansiedades do Conselho municipal. Isso ocorria pelo fato de que a negação do batismo
infantil automaticamente alinhava Serveto aos anabatistas (a expressão significa,
literalmente, “aqueles que batizam novamente”), a ala radical da Reforma, a qual havia
causado tantos problemas em Zurique, Münster, Estrasburgo e em outras localidades. Os
anabatistas haviam abolido a propriedade privada e transformado todas as propriedades em
38
utilidade pública; eles haviam introduzido o princípio da igualdade econômica – em
resumo, eles representavam uma ameaça vital à ordem econômica e social da qual dependia
a frágil existência de Genebra. O Conselho municipal deve ter tido poucas dúvidas de que
havia uma ameaça real. Embora tenha sido Calvino que, agindo pessoalmente,
providenciou a acusação e a prisão de Serveto, foi o Conselho municipal que – apesar de
sua forte hostilidade em relação a Calvino – assumiu o caso e processou Serveto com
39
rigor. Isso causou surpresa aos expectadores externos: Wolfgang Musculus escreveu sobre
sua convicção de que Serveto, evidentemente, esperava se beneficiar da hostilidade do
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Conselho municipal em relação a Calvino. Deve-se observar

GENEBRA: A CONSOLIDAÇÃO DO PODER

que a atuação posterior de Calvino nesse processo foi a de um consultor técnico ou de uma
testemunha especializada, em vez de um acusador. Em 21 de agosto as autoridades de
Genebra escreveram para Viena, pedindo informações adicionais a respeito de seu
prisioneiro. Especificamente, elas requisitaram “cópias das provas, informações e do
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mandado de prisão” que havia contra Serveto. As autoridades católicas de Viena exigiram,
imediatamente, a extradição de Serveto para que fosse processado lá. O Conselho
municipal ofereceu-lhe, então, uma opção: ele poderia retornar a Viena ou permanecer em
Genebra, submetendo-se à decisão da justiça desta última. É significativo que Serveto
42
escolhesse permanecer em Genebra.
À medida que se desenrolavam os acontecimentos, tornava-se cada vez mais evidente
que o Conselho municipal tinha duas opções: eles poderiam banir Serveto da cidade ou
executá-lo. Incertos acerca de como proceder, o Conselho municipal consultou os aliados
43
de Genebra em Berna, Zurique, Schaffhausen e Basiléia. As respostas foram inequívocas.
A anotação feita nos registros da Venerável Companhia de Pastores gravou a decisão do
44
Conselho municipal, em 25 de outubro de 1553, como se segue : “Suas Excelências,
havendo recebido os pareceres das igrejas de Basiléia, Berna, Zurique e Schaffhausen a
respeito do caso de Serveto, condenaram o referido Serveto a ser levado a Champey e lá ser
queimado vivo.”. Provavelmente, tendo em mente as memórias das execuções de alguns de
seus amigos, que foram queimados em Paris, o próprio Calvino tenha tentado alterar o tipo
45
de execução para algo mais humano como a decapitação; ele foi ignorado. No dia seguinte,
Serveto foi executado. Genebra não possuía carrascos profissionais. Seus carrascos – como
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seus carcereiros e todos os demais oficiais públicos – eram amadores. A execução foi uma
verdadeira carnificina.
Em 1903 um monumento de granito foi erguido no local onde Serveto foi executado.
Sua inscrição condena “um erro que pertenceu a seu século”. Contudo, lamentavelmente,
toda organização cristã de maior relevância cuja história possa ser traçada até o século 16
tem sangue literalmente espalhado sobre suas credenciais. Os católicos romanos, os
luteranos, os reformados e os anglicanos: todos condenaram e executaram seus próprios
Servetos, seja de forma direta ou
– como no caso do próprio Calvino – indiretamente. É justo sugerir que sejaimpróprio
apontar para Calvino como se ele fosse de algum modo o precursor desse costume
selvagem ou um defensor particularmente ardoroso e detestável dessa prática, enquanto a
maioria de seus esclarecidos contemporâneos desejava vê-la abolida. O caso de Etienne Le
Court, que foi publicamente humilhada, estrangulada e queimada pela Inquisição, na cidade
de Rouen, em 11 de dezembro de 1533, por sugerir, entre outras coisas, que “as mulheres
iriam pregar o evangelho”, parece ter sido muito mais chocante. Provavelmente os
historiadores, como qualquer pessoa, tenham suas próprias motivações.
As conseqüências do episódio de Serveto foram consideráveis. Basiléia, com sua
47
crescente simpatia por políticas liberais, ficou chocada com a execu-ção. Sebastião
Castellio, antecipando perspectivas mais modernas, escreveu um panfleto em Basiléia
argumentando veementemente a favor da tolerância em relação às questões religiosas (e,
assim sendo, em relação a tudo o mais). Isso incitou Teodoro de Beza a desenvolver uma
influente teoria de governo que explicava e justificava o comportamento do Conselho
48
munici-pal. O episódio também serviu para impelir Calvino ainda mais adiante na
vanguarda do protestantismo, consolidando sua já considerável reputação como um
intelectual e escritor religioso: como indicam diversas cartas de colegas admiradores da
Alemanha e de outras localidades, Calvino era agora considerado o defensor da verdadeira
fé em meio aos círculos protestantes. Em Genebra, porém, ele ainda se encontrava bastante
isolado. Essa situação, contudo, começou a se modificar e iria culminar na revolução de
1555, a qual consolidou definitivamente a autoridade de Calvino na cidade.

A REVOLUÇÃO DE 1555
Tendo acabado a distração do episódio Serveto, o Conselho municipal foi capaz de
voltar à sua então tradicional função de oposição a Calvino. Sua decisão de rever as
excomunhões, na Páscoa de 1553, havia sido seguida por uma outra manobra, em setembro
do mesmo ano, à medida que se aproximava outra celebração pública de comunhão.
Philibert Berthelier, que havia sido excomungado pelo Consistório, apelou contra essa
decisão. Seu apelo, contudo, não foi dirigido ao próprio Consistório, mas ao Petit Conseil,
agora dominado pelos rivais de Calvino. Essa foi uma manobra astuta (pelo fato de implicar
em que o conselho detinha autoridade em matéria de excomunhão). O conselho não perdeu
tempo em derrubar o veredicto do Consistório, embora tenha pedido a Berthelier para
abster-se da comunhão, naquela ocasião em particular. Contudo, Calvino ficou possesso
diante deste desafio evidente à sua autoridade. Ele insistia em que era o Consistório, e
somente o Consistório, que detinha
o poder para excomungar pecadores notórios e impenitentes e que somente este órgão
deveria ter o poder para rever tais decisões de excomunhão. A questão foi discutida no
Conselho dos Duzentos, em 7 de novembro. Por uma

GENEBRA: A CONSOLIDAÇÃO DO PODER

ampla maioria, ficou decidido que as decisões finais, em matéria de excomunhão, deveriam
49
ficar nas mãos do conselho. Parecia que, finalmente, Calvino havia sido colocado em seu
devido lugar – sob o controle do conselho.
Contudo, em 1555 ocorreu um dramático realinhamento de poder. Para entender como
isso se deu é necessário considerar as alterações na população de Genebra, que estavam
ocorrendo naquela época. A população da cidade, em 1550, foi estimada em 13.100
50
habitantes; até 1560, ela era de 21.400 habi-tantes. O principal motivo desse crescimento
51
maciço era o grande número de refugiados protestantes que buscavam refúgio lá. Genebra
tinha conquistado uma reputação internacional como um abrigo seguro para aqueles que
buscavam refúgio, em razão de suas convicções religiosas. Esses refugiados eram, em sua
maioria, provenientes da França. Dos 4.776 registrados no Livre des Habitants de Genève
durante os anos de 1549 e 1560, possuímos detalhes sobre a profissão de 2.247. Desses,
52
1.536 (68,5 por cento) eram artesãos. Calvino, escrevendo em 1547, observou que muitos
desses refugiados haviam sido forçados a deixar para trás seus bens e estavam vivendo, no
53
momento, em circunstâncias bastante difíceis. Entretanto, alguns eram ricos, bastante
instruídos e de considerável posição social – editores, como Robert Estienne, advogados,
como Germain Colladon e empresários, como Laurent de Normandie. Eles eram, quase que
54
invariavelmente, defensores vigorosos de Calvino.

Figura 6.1 – Números dos novos nomes acrescentados anualmente ao Livre des Bourgeois de
Genebra, 1549-1561
O conselho havia estado preocupado com sua situação financeira por algum tempo e,
subitamente, parece haver despertado para a possibilidade de extrair consideráveis recursos
desses estrangeiros abastados. O Petit Conseil há muito detinha o direito de conceder a
indivíduos o status de bourgeois, desde que o pedido fosse acompanhado de riqueza e
distinção social suficientes. Uma robusta taxa de admissão assegurava que a cidade se
beneficiasse. Contudo, dificilmente tais pedidos de admissão foram feitos, no período de
1540 a 1554. Por exemplo, o status de bourgeois foi concedido somente a seis pessoas,
55
durante o ano de 1554.
As comportas foram subitamente abertas em 18 de abril de 1555, à medida que o Petit
Conseil começou a conceder aos refugiados adequados (isto é, ricos e de prestígio) o status
de bourgeois. Até 2 de maio daquele ano, cinqüenta e sete pessoas haviam adquirido esse
56
cobiçado status, tendo os cofres de Genebra sido, em conseqüência, significativamente
acrescidos. Uma crise financeira pode ter sido evitada; uma crise política seguiu-se
imediatamente. O motivo era que os bourgeois tinham o direito de votar nas eleições de
Genebra e, prontamente, exerceram esse direito. Percebendo o que havia acontecido, em 16
de maio os perrinistas tentaram impedir os direitos de voto dos novos bourgeois. Eles não
foram bem-sucedidos. As sessões de abril e maio do Conselho Geral – o colegiado dos
eleitores de Gene-bra – estavam lotadas com os partidários de Calvino, que haviam sido
subitamente emancipados. O delicado equilíbrio entre os opositores de Calvino e seus
partidários, em meio ao colégio eleitoral, foi destruído e a oposição a Calvino,
conseqüentemente, derrotada. Esse processo teve prosseguimento na eleição de 1556. A
essa altura, os amigos de Calvino estavam no comando da cidade. Ele poderia finalmente
descansar e voltar seus pensamentos, entre outras coisas, para a evangelização de sua terra
natal, a França.

OS MOTIVOS DO SUCESSO DE CALVINO


Talvez seja extremamente fácil, para os críticos e simpatizantes do pro-grama de
reforma de Calvino, arriscar explicações para sua incrível influência sobre a sua própria
época, assim como sobre as posteriores. A literatura do século 16 faz freqüentes referências
tanto à divina providência (na qual Calvino é visto sob uma ótica positiva) quanto a um
pacto satânico (na qual ele é visto de forma menos favorável). Uma abordagem mais
voltada à história, entre-tanto, pode consistir em estabelecer uma comparação entre Calvino
e outro

GENEBRA: A CONSOLIDAÇÃO DO PODER

Reformador que, em muitos aspectos, ocupou uma posição semelhante e alcançou sucesso e
fama locais similares, ainda que lhe tenha sido negada uma projeção, mesmo que
remotamente próxima, ao sucesso internacional alcançado por Calvino. Portanto, nossa
proposta é comparar Calvino com um Reformador proveniente do leste da Suíça, Joaquim
von Watt, comumente conhecido pela forma latina de seu nome, Vadian (1484-1551).
Vadian vivia em St Gallen, uma cidade que apresentava diversas semelhanças em relação a
Genebra, se situava ligeiramente a Leste das fronteiras da Confederação Helvética.
Enquanto Calvino era ainda um estudante em Paris, Vadian já ha-via colocado sua cidade,
de forma sólida, nos trilhos da Reforma. Essa Re-forma parece ter sido alcançada sem
derramamento de sangue ou emprego da força: a estátua de Vadian, erigida em St Gallen, o
retrata com a Bíblia nas mãos e com a espada embainhada, ao seu lado (enquanto a estátua
de Zwínglio, em Zurique, o retrata com a espada em punho e pronto para ação). Não há
qualquer monumento para algum Serveto, em St Gallen, o que reflete tanto a ausência do
uso de medidas fatais para assegurar os interesses da Reforma, quanto a forma
indubitavelmente positiva pela qual a cidade recebeu Vadian e sua Reforma.
Comparar Calvino e Vadian significa identificar os fatores que são potencialmente
importantes para explicar a trajetória da Reforma em Genebra e St Gallen. Uma análise
preliminar de ambas as cidades e de seus Reformadores sugere que eles eram semelhantes
em muitos aspectos, sendo que Vadian gozava de uma reputação pessoal e de uma
autoridade institucionalmente legitimada que excedia, em muito, a reputação e a autoridade
associadas a Calvino.

1. St Gallen e Genebra eram cidades de porte semelhante, cada qual aliada a cantões
57
pertencentes à Confederação Helvética. O sucesso da Reforma em cada uma dessas
cidades foi, em parte, devido ao apoio dos cantões protestantes que integravam a
Confederação. A Reforma de Vadian, em St Gallen, foi facilitada por um expressivo
grau de apoio político de Zurique, o qual serviu para enfraquecer a oposição inicial às
58
reformas. Genebra, como observamos, foi consideravelmente auxiliada pelo apoio
político e militar de Berna, nos períodos críticos. Ambas as cidades possuíam
ligações comerciais que derivavam do status de Genebra, como um centro comercial,
e da importância de St Gallen, como um produtor líder no mercado de linho de alta
qualidade. A importância de St Gallen nesse aspecto era muito maior.
A considerável influência pessoal de Vadian foi mediada, em parte, através de contatos
9
comerciais com a Polônia e a Hungria, por exemplo, bem como por uma extensa
rede familiar.
1. 2. Vadian era um acadêmico humanista de renome internacional. Após uma
brilhante carreira na Universidade de Viena, então um centro do Humanismo, que culminou
com sua eleição como reitor da universidade (incluindo a conquista de um doutorado em
medicina e sua eleição como professor de poesia), ele regressou à St Gallen, sua cidade na-
tal, para dar seqüência à sua carreira literária (e, conforme veio a se suceder, à propagação
60
da Reforma). Não havia mais posições acadêmicas a serem por ele conquistadas, em
Viena; St Gallen, ao contrário, acenava com a promessa de acesso ao mundo da política e
da diplomacia, adicionalmente à sua busca contínua por eloqüência. A reputação de
Calvino como humanista era praticamente nula, sendo que ele não havia ocupado quaisquer
postos acadêmicos nas universidades às quais freqüentou.
2. 3. Vadian era um cidadão de St Gallen, um membro de uma de suas famílias mais
61
proeminentes, um importante membro de uma de suas sete associações e, em 1529, ele se
62
tornaria seu principal cidadão (Bürgermeister) por aclamação internacional , quando ainda
era relativamente jovem. Ele manteve esse poderio na cidade até sua morte, mais de duas
décadas mais tarde. Vadian esteve no centro do poder na cidade e em suas regiões
adjacentes por um longo período e estava, assim, intimamente envolvido em todas as
decisões relacionadas à implementação da Reforma naquele local. Calvino somente
adquiriu o status de bourgeois, em Genebra, na sua velhice: ele nunca veio a ser um
cidadão da cidade. Ele não poderia concorrer às eleições (e até dezembro de 1559 ele não
podia nem mesmo votar nas eleições municipais); nem teve ele qualquer acesso
privilegiado ao Conselho municipal ou influência direta sobre este, em nenhuma fase de sua
carreira.
3. 4. Durante todo período de implementação da Reforma em St Gallen, nenhuma
oposição religiosa significativa foi experimentada por seus cidadãos. Isso não significa que
63
o processo tenha transcorrido sem complicações, mas que não havia uma oposição
especificamente religiosa às medidas implementadas. Em Genebra, contudo, havia ampla
oposição interna às reformas religiosas de Calvino, durante todo o seu primeiro período
(1536-8), assim como durante a primeira parte

GENEBRA: A CONSOLIDAÇÃO DO PODER

de seu segundo período na cidade (1541-53). A situação enfrentada por Calvino era
consideravelmente mais difícil do que aquela encontrada por Vadian. Só se pode, na
verdade, falar de Genebra como sendo o “centro do poderio” de Calvino após a
revolução de 1555.
Com base nessas considerações pode parecer, portanto, que Vadian deveria ter sido o
Reformador mais bem sucedido. De fato, se o critério de sucesso adotado se relacionar à
geração de um consenso popular a favor da Reforma na cidade e à implementação bem
sucedida desse programa de reforma, com um mínimo de dissensão interna, Vadian deve
ser considerado, de longe, o mais bem sucedido de ambos. Porém, Vadian é praticamente
desconhecido fora dos círculos especializados em estudos da história local da Suíça,
enquanto se pode razoavelmente sugerir que Calvino é um dos nomes mais conhecidos do
século 16. Como isso pode ser explicado?
Uma variedade de fatores relevantes pode ser identificada:
1. 1. Calvino e Vadian tinha visões significativamente diferentes a respeito do que a
“Reforma” implicava. Para Vadian, a Reforma estava voltada, principalmente, para a
64
alteração do modo de vida e da moralidade. De muitas maneiras, representava um
programa de Reforma local, vinculado a aspectos e preocupações especificamente
regionais. Calvino, entretanto, via a Reforma como algo que representava um desafio às
estruturas, às práticas e às doutrinas existentes da Igreja – um programa de Reforma bem
mais radical, que não estava vinculado a qualquer situação local, mas que possuía a
capacidade de transcender divisões geográficas, culturais e políticas. A rápida expansão do
Calvinismo na França, de 1555 em diante, ilustra bem esse ponto: o Calvinismo possuía um
zelo missionário que era praticamente ausente na perspectiva de Vadian sobre os objetivos
da Reforma. Como conseqüência dessas diferentes visões a respeito da natureza do
processo de Reforma, os dois homens adotaram papéis significativamente diversos. Vadian
pre-ocupava-se principalmente com a alteração de uma situação local; Calvino via a si
próprio dirigindo-se inicialmente à França e, posterior-mente, a uma audiência
internacional. Ainda que a princípio o realismo político forçasse Calvino a se dirigir à
situação específica em Genebra, seus horizontes eram bem mais amplos. No momento em
que sua posição em Genebra se consolidou (abril de 1555), ele iniciou um grande programa
de evangelização – a princípio, secreto – no reino da França.
2. Os dois homens adotaram programas de publicação de suas obras bastante
diferentes, que refletiam as perspectivas a respeito de sua vocação como Reformadores. As
65
obras publicadas de Vadian eram, em geral, de natureza humanista; com uma exceção, os
manuscritos de suas obras especificamente teológicas – tal como Brevis indicatura
symbolorum
– permaneceram não divulgados, entre os muros de St Gallen. Calvino empenhou-se
em um programa de ampla divulgação de suas obras, as-segurando-se de que suas idéias
religiosas alcançassem uma audiência o mais vasta possível (ver capítulos 7, 9).
2. 3. O público-alvo de Calvino era, a princípio, principalmente os franceses e os
povos de língua francesa; a edição de 1536 das Institutas, embora escrita em latim, parece
ter em mente as necessidades e dificuldades dos évangéliques franceses. A edição de 1541,
publicada na França, recebeu especial atenção em sua terra natal. As obras de Vadian,
escritas na língua local (que permaneceram não publicadas e sem circulação, em sua forma
manuscrita), foram escritas em uma espécie de alemão que era falado na Suíça e tiveram,
conseqüentemente, uma audiência bastante restrita – a qual, de qualquer forma, já havia
sido amplamente conquistada pela Reforma. Se as obras de Vadian, escritas na língua do
local, tivessem sido divulgadas, ele teria pregado, em grande parte, para os convertidos. Em
oposição, as Institutas de Calvino são notórias por haver desempenhado um importante
papel em ganhar a simpatia dos novos convertidos em prol da sua visão da fé cristã e da
Reforma nela implicada – a princípio na França e, posteriormente, muito além.
3. 4. A carreira de Calvino o colocou em contato com uma série de grandes editores na
Basiléia, em Estrasburgo e em Genebra. Ele possuía relativa facilidade para providenciar a
publicação de seu material. Contudo, havia relativamente poucos editores na área de St
Gallen; foi somente na metade do século 16 que Dolfin Landolfi transferiu sua gráfica de
66
Brescia ou Veneza (não se sabe bem de qual delas) para Graubünden. Vadian, portanto,
não teve fácil acesso direto à inovação tecnológica que estava transformando a natureza da
controvérsia religiosa, no início do século 16.
4. 5. Presumivelmente, tendo em mente a situação local de St Gallen, Vadian tendia a
considerar a “igreja” e a “sociedade” como algo que se referia, a grosso modo, ao mesmo
grupo de pessoas. Por conseqüência, sua concepção de Igreja coloca pouca ênfase sobre a
estrutura e a disciplina. Calvino estava consciente da importância das estruturas e da disci

GENEBRA: A CONSOLIDAÇÃO DO PODER

plina eclesiais e idealizou um modelo de Igreja que se mostrou incrivelmente


adequado ao programa de expansão internacional que ele incitava. Expandir-se é uma
coisa; sobreviver a essa expansão é algo bem diferente. O Calvinismo provou-se
capaz de sobreviver sob condições intensamente hostis, assumindo, praticamente, o
status de um movimento clandestino (há interessantes paralelos entre o Calvinismo
francês, da década de 1540, e início da década de 1550, e os maquis franceses,
durante a ocupação da França pelos nazistas, na II Guerra Mundial). A resistência do
movimento deve-se em grande parte às estruturas e à disciplina que Calvino idealizou
para o mesmo. Sua grande capacidade de organização, comparável à de Lênin, pode
perfeitamente ter sido de importância decisiva para a expansão internacional de seu
movimento.
6. Uma última impressão, ainda que subjetiva, deve ser mencionada. O leitor das obras
de Vadian, tanto em latim quanto em alemão, fica provavelmente mais impressionado
pela eloqüência com que ele expressa suas idéias do que com a qualidade dessas
idéias e com a argumentação empregada para sua criação ou justificação. Calvino,
contudo, revela-se em seus escritos (especialmente naqueles de seu período em
Estrasburgo) como alguém que possui uma mente brilhante, capaz de criar e defender
idéias intrinsecamente interessantes. Vadian, como Erasmo de Rotterdam, tende a se
revelar como alguém intenso na expressão, contudo fraco na substância; Calvino é
forte em ambos os aspectos. Como indica o decorrer da Reforma, foi em grande parte
o conteúdo dos escritos de Calvino o que estava por detrás de seu ape-lo, perante tão
expressivo grupo de simpatizantes.

Esses pontos de comparação estão longe de serem exaustivos; no entanto, eles sem
dúvida apontam para certos fatores que embasam a enorme influência de Calvino. Sua
percepção das possibilidades, proporcionadas pela sua visão singular da Reforma, através
do estabelecimento de instituições (tais como a Academia de Genebra) e de estruturas (tais
como a Venerável Companhia de Pastores) apropriadas e da exploração de tecnologia
(como a impressão) colocaram-no na vanguarda de um movimento que foi, desde o
princípio, internacional em sua orientação.
Porém, como essa expansão internacional ocorreu? Como um conjunto de idéias
associadas a um homem, na minúscula cidade-estado de Gene-bra, conquistou uma
audiência tão vasta e evocou uma resposta tão poderosa por toda a Europa? Talvez a
maneira mais apropriada para se entender o incrível ímpeto que essas idéias possuíam seja
seguir seu impacto sobre o reino da França, na época de Calvino. Seu impacto foi tão
grande que, a certa altura, parecia a muitos que a França poderia se tornar a primeira nação
a adotar um credo Calvinista. Nossa narrativa, portanto, vol-ta-se à França, terra natal de
Calvino (capítulo 9), à medida que consideramos essa extraordinária invasão de idéias.
No entanto, convém interrompermos brevemente nosso relato histórico, com a finalidade
de refletirmos sobre essas idéias em si mesmas. Quais eram as idéias religiosas de Calvino
e como elas se propagaram? Os dois capítulos seguintes se voltam a essas idéias e ao modo
como elas foram apresentadas para seu tempo e época. Deve-se enfatizar, contudo, que as
idéias de Calvino não eram de caráter puramente religioso e que sua influência deve-se,
parcialmente, a seu pensamento político e econômico (capítulo 11). “O Cristianismo
segundo Calvino” envolve idéias, atitudes e estruturas sociais um tanto quanto definidas,
que vão muito além de um mero sistema de idéias religiosas abstratas. Havendo feito essas
observações, podemos agora nos voltar à consideração da apresentação extremamente
influente de Calvino sobre a natureza do Cristianismo.

7
O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO:
O MEIO

“Conheci um médico brincalhão que descobriu o credo no canal biliar e costumava


afirmar que se houvesse uma doença no fígado, o homem havia se tornado um Calvinista”
(Ralph Waldo Emerson). Apesar dessa tese ser atrativa, aqueles que buscavam uma
explicação para o apelo de Calvino geralmente situavam sua atração no intelecto humano,
em vez do canal biliar. O historiador alemão Karl Holl escreveu que “grande parte do
penetrante po-der do Calvinismo deriva de seu intelectualismo. O calvinista sabe em que
1
acredita e porque acredita.” Um relato sobre o pensamento religioso de Calvino deve
assumir um lugar de honra em qualquer análise sobre a vida e a influência do Reformador.
No entanto, tal relato deve ser precedido por uma discussão sobre os meios que Calvino
utilizou para desenvolver e promover suas idéias religiosas. Meio e mensagem estão
intrinsecamente entrelaçados em sua descrição da fé cristã.

A PERSUASIVA PALAVRA DE DEUS


Deus é capaz de se comunicar com os seres humanos através da linguagem humana.
Essa crença é fundamental, a ponto de ser um axioma, para a perspectiva de Calvino a
respeito do Cristianismo. Importantes antecipações da máxima do século 20, de Karl Barth,
“Deus falou! Deus dixit! Dominus dixit!” , podem ser encontradas em Calvino. Embora
possam ser fragmentadas e imperfeitas, as palavras humanas possuem, no entanto, a
capacidade de funcionar como um meio através do qual Deus é capaz de se revelar e
propiciar um encontro transformador entre o Cristo ressuscitado e aquele que crê.
Sob a superfície das afirmações de Calvino sobre a capacidade das palavras humanas em
transmitir a realidade de Deus, encontra-se uma teoria incrivelmente sofisticada sobre a
natureza e a função da linguagem humana. Na Idade Moderna, o termo “retórica” veio a
significar algo como “palavras elegantemente dispostas, embora destituídas de conteúdo”;
no século 16, entre-tanto, o termo designava a ciência da comunicação, a investigação
2
acerca do que as palavras significam e de como podemos utilizá-las. O surgimento do
movimento humanista trouxe consigo um novo interesse pela maneira através da qual as
palavras e os textos são capazes de mediar e transformar a experiência e as expectativas
humanas; Calvino foi hábil em utilizar tais percepções ao formular suas perspectivas sobre
o conceito da “palavra de Deus” e sua manifestação no texto da Escritura. Ele utilizou seu
conhecimento retórico de forma sutil, a ponto de que o mesmo pudesse passar totalmente
despercebido. Entretanto, as idéias da ciência da retórica ecoam por todos os seus escritos –
de uma forma experimental, no comentário de Sêneca, com alguma profundidade, na sutil
3
sofisticação do comentário em Romanos (1540) e, talvez, na forma mais completa de todas,
em suas últimas edições das Institutas.
Calvino argumenta que, nas Escrituras, Deus revela a si mesmo verbal-mente, sob a
forma de palavras. Porém, como simples palavras podem fazer justiça à majestade de
Deus? Como as palavras podem atravessar o enorme abismo que há entre Deus e a
humanidade pecadora? A discussão de Calvino sobre essa questão é, de um modo geral,
considerada como uma de suas valiosas contribuições para o pensamento cristão. A idéia
4
que ele desenvolve é normalmente denominada o “princípio da acomodação”. A palavra
“acomodação” significa, nesse contexto, “ajustar-se ou adaptar-se para suprir as
necessidades da situação”.
Calvino alega que, na revelação, Deus adapta a si mesmo às capacidades da mente e do
coração humano. Deus se retrata de uma forma que somos capazes de compreender. A
analogia que está por trás do pensamento de Calvino, nesse ponto, é a de um orador. Um
bom orador conhece as limitações de sua audiência e adapta o seu discurso de acordo com
as mesmas. O abismo entre o orador e o ouvinte deve ser atravessado, se há a intenção de
O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: O MEIO

que a comunicação ocorra. As limitações de sua audiência determinam a linguagem e as


imagens que o orador utiliza. As parábolas de Jesus ilustram esse aspecto com perfeição:
elas empregam uma linguagem e ilustrações (tais como as analogias baseadas em ovelhas e
pastores) perfeitamente apropriadas para sua audiência, no contexto rural da Palestina.
Paulo também utiliza idéias adaptadas à situação de seus ouvintes, retiradas do mundo
5
comercial e legal das cidades, nas quais vivia a maioria de seus leitores.
No período clássico, os oradores eram altamente instruídos e eloqüentes, enquanto suas
audiências eram, geralmente, formadas por pessoas sem instrução que não possuíam
qualquer capacidade de lidar com as palavras de forma hábil. Por conseqüência, o orador
tinha que descer ao seu nível se desejasse se comunicar com as mesmas. Ele tinha que
construir uma ponte sobre o abismo que havia entre ele e sua audiência, compreendendo
suas dificuldades em entender a linguagem dele. Calvino defende que de forma semelhante
Deus teve que descer ao nosso nível, para se revelar a nós. Deus se rebaixou para alcançar o
nível de nossas capacidades. Assim como uma mãe ou uma babá se rebaixa para ser
entendida por sua criança, falando de um modo diferente daquele que é próprio de um
6
adulto, Deus também se inclina para chegar ao nosso nível. A revelação é um ato de
condescendência divina, através do qual Deus transpõe o abismo entre si próprio e suas
capacidades e a humanidade pecadora com suas frágeis potencialidades. Como qualquer
bom orador, Deus conhece sua audiência – e adapta sua linguagem de acordo com a
mesma.
Um exemplo dessa acomodação é fornecido pelas formas como Deus é retratado nas
Escrituras. Calvino observa que Ele é freqüentemente representado como se possuísse boca,
7
olhos, mãos e pés. Isso pareceria sugerir que Deus é um ser humano. Pode parecer implicar
em que, de algum modo,
o Deus eterno e espiritual tenha sido reduzido a um ser humano físico (a questão em análise
é normalmente denominada como “antropomorfismo” – em outras palavras, ser retratado
em forma humana). Calvino alega que Deus é forçado a se revelar através dessa forma
pictórica por causa dos nossos intelectos limitados. Imagens de Deus que o retratam como
possuindo boca ou mãos são como uma divina “linguagem infantil” (balbutire), uma forma
pela qual Deus desce ao nosso nível e utiliza imagens que possamos compreender.
Maneiras mais sofisticadas de falar sobre Deus certamente são apropriadas – porém,
provavelmente não seremos capazes de compreendê-las. Assim, Calvino observa que
muitos dos aspectos da história da criação e da queda (Gênesis 1-3), tais como o conceito
dos “seis dias” ou das “águas sobre o firmamento”, são adaptados à mentalidade e às
8
perspectivas de um povo relativamente simples. Para os que se opõem, alegando que isso é rudimentar, Calvino responde que é
o modo de Deus certificar-se de que não sejam erguidas barreiras intelectuais contra o evangelho; todos – mesmos os humildes e os sem instrução – podem aprender
9
sobre Deus e vir a crer nele.

Calvino usa três imagens principais para desenvolver essa idéia da divina acomodação às
capacidades humanas na revelação. Deus é nosso Pai, que está disposto a usar a linguagem
infantil para se comunicar conosco. Ele se adapta à fragilidade e à inexperiência da
infância. Ele é nosso mestre, que está consciente da necessidade de descer ao nosso nível,
se tem a intenção de nos ensinar sobre si mesmo. Ele se adapta à nossa ignorância para nos
ensinar. Ele é nosso juiz, que nos convence de nosso pecado, rebeldia e desobediência. Da
mesma forma que a retórica humana em uma corte é traçada para assegurar um veredicto,
Deus também tem interesse em nos convencer e nos julgar em relação ao nosso pecado; em
permitir que o seu veredicto se torne o nosso veredicto, à medida que percebemos que
somos de fato pecadores, afastados de Deus. Calvino insiste que a verdadeira sabedoria se
encontra no conhecimento de Deus e de nós mesmos: é através do reconhecimento da nossa
10
condição de pecadores que descobrimos que Deus é nosso Redentor.
A doutrina da encarnação fala de um Deus que veio até nosso nível para nos encontrar.
Ele veio entre nós como um de nós. Calvino expande esse princípio para a linguagem e as
imagens da revelação: Deus revela a si mesmo em palavras e imagens que possamos
compreender. Seu interesse e propósito estão em se comunicar, transpor o profundo abismo
que há entre ele, como Criador e a humanidade, como sua criação. Para Calvino, a disposi-
ção e a capacidade de Deus em condescender, em se rebaixar, em se adaptar às nossas
11
capacidades, é um sinal de seu amor misericordioso e de seu cuidado por nós.
Deve-se enfatizar, desde o início, que Calvino não reduz e não acredita que seja possível
reduzir Deus e a experiência cristã a palavras. O Cristianismo não é uma religião verbal,
12
mas, antes, baseada em experiências; está centralizado no encontro transformador daquele
que crê com o Cristo ressuscitado. A partir da perspectiva da teologia cristã, contudo, essa
experiência é posterior às palavras que a geram, evocam e informam. O Cristianismo é
centralizado em Cristo, não em livros; se este aparenta ser centrado

O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: O MEIO

em livros, isto se deve ao fato de que é através das palavras da Escritura que o fiel se
encontra e se alimenta do conhecimento de Jesus Cristo. A Escritura é um meio, não um
fim; um canal, em vez daquilo que é transmitido por esse canal. A preocupação de Calvino
com a linguagem humana e, principalmente, com o texto da Escritura, reflete sua crença
fundamental de que é ali, isto é, através da leitura e da meditação sobre aquele texto, que se
torna possível encontrar e experimentar o Cristo ressuscitado. A concentração sobre o meio
retrata a importância crucial que Calvino atribui ao fim. Sugerir que Calvino seja um
“bibliólatra”, alguém que idolatra um livro, é demonstrar uma vergonhosa falta de
percepção sobre seus interesses e métodos. É precisamente porque Calvino atribui uma
importância suprema à adoração apropriada de Deus, à medida que este revelou a si mesmo
em Jesus Cristo, que ele considera tão importante reverenciar e interpretar, corretamente, o
único meio através do qual se pode obter o pleno e definitivo acesso a esse Deus – as
Escrituras.

CALVINO E A LÍNGUA FRANCESA


Sugere-se com freqüência que, durante o século 17, a língua francesa desenvolveu
qualidades abstratas, semânticas e analíticas (normalmente descritas como clarté e logique).
Mas como se desenvolveu, deve-se questionar com razão, la clarté française, tão
característica dos escritores do classicismo francês (tais como Descartes e Pascal)?
Sobretudo, devido ao fato de que o estilo francês de muitos escritores do século 16 (tais
como Montaigne, Rabelais e Ronsard) notadamente não apresenta essa característica típica.
Gostaríamos de sugerir que Calvino pode ser considerado um fator indutor dessa
importante evolução, em parte devido ao seu envolvimento na tendência generalizada de
popularizar as abstrações altamente complexas da teologia cristã e, em parte, devido à sua
13
contribuição pessoal para a formação da língua.
Até a segunda década do século 16, havia um corpo substancial de literatura devocional
em francês. O francês era, na verdade, a primeira língua de uma minoria na França: a
langue d’oc e o bretão são exemplos de importantes línguas regionais. O poema de
Marguerite de Navarre, Miroir de l’âme pécheresse, alvo de controvérsias na Universidade
de Paris, é um excelente exemplo desse gênero de literatura. Uma análise dessas obras
populares devocionais, porém, sugere que o estilo francês envolvido, ainda que admirável
pelos propósitos da narrativa ou da meditação, é simplesmente incapaz de sustentar o peso
de uma detalhada argumentação conceitual. Simples diálogos entre a alma humana e Jesus
Cristo podem perfeitamente enaltecer o espírito e ser capazes de inspirar uma resposta
religiosa apropriada, por parte de seus leitores; porém, onde eram necessárias a
argumentação detalhada, a precisão intelectual, a clareza e a seqüência lógica da
apresentação, era necessário retornar ao latim. A língua francesa, na forma como existia por
volta do ano de 1500, era fundamentalmente inadequada às necessidades das disciplinas
intelectuais – quer se tratasse de teoria política ou jurídica, de dogmática teológica ou de
filosofia. O predomínio do latim como a lingua franca da elite intelectual france-sa não se
devia simplesmente ao seu cosmopolitismo, nem tampouco ao desejo dos intelectuais de se
distanciarem das pessoas comuns; este se devia, em grande parte, à incapacidade
fundamental da língua francesa, na forma através da qual ela então existia, em corresponder
à articulação e à evolução da maioria das disciplinas intelectuais.
Com o advento da Reforma, uma nova e importante evolução ocorreu. As
complexidades da exegese bíblica, da política eclesiástica e da dogmática teológica
penetraram, subitamente, no domínio público. Um dos momentos mais significativos na
história da Reforma foi a decisão de Martinho Lutero, em 1520, de se transformar de um
Reformador acadêmico (que argumentava em latim, para um público acadêmico), em um
Reformador popular (que argumentava em alemão, para um público mais extenso). A
Reforma testemunhou o estabelecimento de um enorme desafio aos conceitos existentes
sobre a maneira pela qual a Bíblia poderia e deveria ser lida, sobre as estruturas da Igreja e
a doutrina cristã. Constantemente, os Reformadores se dirigiam ao povo, por sobre as
cabeças do clero e dos teólogos. As pessoas, eles insistiam, devem decidir. A prática da
Reforma Suíça, onde era realizado um debate público entre evangélicos e católicos na
língua local, seguido de uma sessão plenária de votação, na qual a assembléia de cidadãos
se decidia a favor ou contra a aceitação da Reforma, retrata esse princípio básico.
A totalidade das complexidades da teologia cristã e da política eclesial tornou-se,
portanto, uma questão de debate público. O fato desse debate se estender muito além dos
estreitos limites dos campos da academia fazia com que fosse conduzido na língua do local.
Por volta de 1540, tinha-se tornando comum conduzir uma argumentação teológica,
normalmente de natureza altamente abstrata, em francês. A Universidade de Paris, em uma
tentativa de deter essa alarmante tendência, publicou uma lista de livros proibidos, a qual
O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: O MEIO

fornece inestimáveis informações sobre a extensão com que as questões religiosas estavam
sendo discutidas na língua local: o Catalogue des livres censures, no ano de 1543, cita
quarenta e três títulos em francês; no ano de 1544, aumentou essa lista para 121 livros; em
1551 (o ano do Edito de Chateaubriant), esta inclui nada menos do que 182 títulos em
francês e, no ano de 1556, cita 250 desses títulos. No período de sete anos, de 1560 a 1566,
tem-se notícia de nada menos do que doze edições, em francês, das Institutas de Calvino
(ver quadro 7.1 para maiores detalhes), as quais emanaram principalmente de Genebra e
Lion, mas também de locais tão ao Norte quanto Caen. Além disso, deve-se enfatizar que
não foram apenas os evangélicos que produziram sua teologia em francês. Mesmo uma
análise superficial da produção dos editores parisienses durante o período de 1550 a 1599
demonstra que algumas das 250 obras dessa natureza foram produzidas por opositores
14
católicos da Reforma. Os adeptos e os adversários eram igualmente forçados a argumentar
em francês, refinando ainda mais, assim, o meio que utilizavam para expressar suas idéias
contrárias.
A ferramenta lingüística da argumentação abstrata – que alcançou seu apogeu no século
17 – foi, portanto, forjada durante a Reforma francesa. A própria Reforma falhou, ao final;
no entanto, seu legado à língua francesa foi tão decisivo quanto irreversível. Ela foi apenas
um pequeno passo para a transferência das habilidades lingüísticas, aprendidas
primeiramente na argumentação religiosa, para campos mais vastos de polêmica – o direito,
a política e a filosofia.
Levando em conta que Calvino foi um importante participante na produção da literatura
religiosa francesa a partir de seu refúgio editorial em Gene-bra, ficará claro que ele deve ser
considerado igualmente responsável, ao menos em parte, por esse refinamento da língua
francesa. A publicação da edição francesa de suas Institutas, em 1541, representa um marco
para a Reforma e para a evolução da língua francesa. Essa obra, amplamente considerada
15
como “o primeiro monumento da eloqüência francesa”, provocou algo que se aproximava
de uma reação de pânico, em Paris: as Institutas são a obra especificamente identificada
para censura, pelo parlement parisiense, em 1º de julho de 1542. Não é difícil entender o
porquê. La clarté française encontra-se evidente em todas as suas páginas. Suas sentenças
são curtas, possuindo relativamente poucas orações subordinadas. De fato, a estrutura das
sentenças de Calvino demonstra incríveis paralelos com aquela posteriormente associada a
Jacques du Perron, consagrado como um dos mais sofisticados estilistas franceses do final
do século 16. Cada sentença de Calvino tende a se desenvolver em torno de um único ponto
e, freqüentemente, inicia-se com uma conjunção, permitindo ao leitor obter tanto um senso
de direção quanto um senso da relação que há entre a sentença atual e a anterior. A
contradição, por exemplo, é sinalizada mesmo antes do motivo daquela contradição ser
16
declarado. A obra é, em sua totalidade, um modelo de clareza e síntese, ampliando o potencial da língua francesa como um meio para a argumentação abstrata.
Curiosamente, esta não representa uma simples tradução da edição latina de 1539, mas praticamente uma reconstrução da obra original a partir da perspectiva das

limitações tanto da língua francesa quanto de seu público em potencial. O contraste com as traduções francesas, bastante latinizadas, de seus opositores (que tinham, cla-

ramente, dificuldade com o francês) é, às vezes, um tanto impressionante.

Nenhuma das posteriores versões francesas das Institutas (as de 1545, 1551 e 1660) é
capaz de se comparar com a de 1541, em termos da incrível unidade, espontaneidade e
sensibilidade. Ainda que a edição de 1560 possa ser superior em relação ao alcance de seu
conteúdo e à sua profundidade teológica, esta não apresenta os vários méritos literários da
primeira versão francesa. Dá a impressão de que Calvino, em sua velhice, estava mais inte-
ressado em expressar com precisão o conteúdo teológico de seu pensamento do que em
17
alcançar a elegância do estilo.
A total importância de Calvino como um escritor da língua francesa talvez seja melhor
apreciada através da comparação entre ele e outros dois escritores evangélicos que são do
nosso conhecimento, Guilherme Farel e Pierre Viret. Em sua obra de 1542, Sommaire,
Farel elogia as Institutas de Calvino, publicada no ano anterior, qualificando-a como uma
“obra excelente”. Seu próprio estilo, contudo, é intrincado e, em alguns pontos,
excepcionalmente difícil de entender. Infelizmente, o mesmo pode ser dito de Pierre Viret,
a se julgar por sua obra, Disputations chrestiennes (1544). Farel e Viret demonstram uma
certa preferência por sentenças longas (em média, as de Viret são duas vezes e as de Farel,
três vezes mais longas que as de Calvino) e por uma grande quantidade de orações
subordinadas (Farel consegue empregar onze e Viret, até dezoito delas, em uma única
sentença). O resultado inevitável é um estilo difícil de se ler; o sofrível e evidente contraste,
frente à clareza e à sutileza de Calvino, vem posteriormente colocar em evidência as
18
incomparáveis habilidades de Calvino como um criativo escritor da língua francesa.

O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: O MEIO

AS INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ


Em 28 de março de 1536, Marcus Bersius escreveu, da Basiléia, para Vadian,
burgomestre e principal Reformador da cidade de St Gallen, no Les-te da Suíça. Após
algumas amenidades, Bersius vai direto ao motivo de sua carta: manter Vadian atualizado
quanto aos livros mais recentes, lançados pelas gráficas da Basiléia. Dentre as anotações
mais importantes estão os discursos de Cícero, o comentário de Oecolampadius em
Gênesis, os comentários de Crisóstomo sobre as epístolas de Paulo e o de Bucero, em
Romanos. A lista é impressionante tanto em quantidade quanto em qualidade, refletindo a
crescente importância da Basiléia como um centro editor. Perdida, em meio à lista,
podemos encontrar uma menção em relação a “um catecismo dedicado ao rei da França, da
19
autoria de algum francês”. Essa descrição vaga e breve é uma das primeiras referências
conhecidas à obra que consagrou a reputação de Calvino, publicada anteriormente, naquele
mesmo mês, pelos editores da Basiléia, Thomas Platter e Balthasar Lasius: as Institutio
Christianae Religionis, comumente conhecida em português como as Institutas da Religião
Cristã.
A tradução do título em latim apresenta algumas dificuldades. A palavra Institutio
sugere, automaticamente, um paralelo com as Institutas de Justiniano, um importante
código legal do período clássico, conhecido por Calvino desde seu período em Orleans. Em
termos de sua estrutura e conteúdo, contudo, a obra guarda pouca semelhança com um
código legal. Erasmo usou o termo com o significado de “instrução” ou mesmo de
“cartilha” (sua obra de 1516, Institutio principis Christiani, pode ter servido, por exemplo,
como inspiração para o título da obra de Calvino). A palavra “instituição” pode, talvez,
traduzir uma outra preocupação de Calvino – retornar a uma forma mais autêntica de
Cristianismo do que aquela encontrada ao final do período medieval. É
o Cristianismo, da forma como foi originalmente instituído, que interessa a Calvino, e não
aquele que foi desenvolvido (ou deformado, segundo sua opinião) durante a Idade Média.
Na prática, a maioria das versões para o inglês escolheu traduzir o título como as Institutes
of the Christian Religion, a despeito das alternativas apresentadas pelo original em latim.
É evidente que a primeira edição das Institutas foi inspirada na obra de Lutero, O
Catecismo Menor, de 1529. Tanto sua estrutura quanto seu conteúdo indicam a extensão
20
com que Calvino se inspirou nessa obra pedagógica da Reforma alemã. Suas 516 páginas de pequeno
tamanho incluem seis capítulos, dos quais os quatro primeiros são inspirados no catecismo de Lutero.

Calvino, porém, é capaz de se engajar em discussões mais detalhadas sobre os temas do que
Lutero, pelo fato de que sua obra não é um catecismo, o qual deve ser memorizado. O
primeiro capítulo é essencialmente um comentário sobre os Dez Mandamentos (ou
Decálogo) e o segundo, um comentário sobre o Credo Apostólico. A influência de Bucero é
automaticamente percebida: enquanto a discussão de Lutero sobre o credo tem três partes
(o Pai, o Filho e o Espírito Santo), Calvino adiciona uma quarta parte bastante substancial,
a respeito da Igreja, reconhecendo a importância tanto teórica quanto prática dessa questão.
Após explicações sobre “a lei”, “a fé”, “a oração” e “os sacramentos”, Calvino inclui dois
capítulos, de natureza mais polêmica, que tratam dos “falsos sacramentos” e da “liberdade
de um cristão”.
21
A segunda edição das Institutas data do período em que Calvino viveu em Estraburgo.
Publicado em latim, em 1539, o volume representa o triplo da primeira edição de 1536,
possuindo dezessete capítulos, em vez de seis. Os dois capítulos de abertura tratam, agora,
do conhecimento de Deus e da natureza humana. Foi incluído um material adicional sobre a
doutrina da Trindade, a relação entre o Antigo e o Novo Testamento, a penitência, a
justificação pela fé, a natureza e a relação entre a providência e a predestinação e sobre a
natureza da vida cristã. Embora a obra conserve grande parte do material da edição anterior,
é evidente que o seu caráter e seu status foram modificados. Esta não é mais uma cartilha
ou um manual; está em vias de ser uma declaração definitiva sobre a natureza da fé cristã,
comparável à Summa Theologiae de Tomás de Aquino. “Meu objetivo nessa obra”,
escreveu Calvino, “é o de preparar e treinar estudantes de teologia para o estudo da palavra
de Deus de modo que eles tenham um fácil acesso à mesma e sejam capazes de prosseguir
22
nesse estudo sem quaisquer obstáculos.”. Resumindo, a obra pretende ser um guia para as
Escrituras, funcionando como um livro de referências e um comentário sobre seus
significados por vezes complexos e intrincados.
Esse é um ponto importante, como posteriormente ressaltou o próprio Calvino, pelo fato
de que estabelece suas Institutas como a fonte primária de seu pensamento religioso. Suas
outras obras – tais como comentários bíblicos e sermões – são de importância secundária
nesse aspecto, quaisquer que possam ser seus méritos. Como observado anteriormente, a
edição francesa das Institutas, publicada em 1541, não é, curiosamente, uma tradução direta
da edição de 1539; há vários pontos em que material da edição de 1536, embora alterado
em 1539, foi incluído na tradução da edição de 1541.
O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: O MEIO

Isso levou à suposição de que Calvino possa, originalmente, ter pretendido produzir uma
23
versão francesa da edição de 1536 e, abandonando esse projeto, ter incorporado à edição
de 1541 material já traduzido, sem as modificações feitas na edição de 1539. A obra
apresenta uma série de pequenas alterações, às quais podem, em sua totalidade, ser
explicadas tendo em vista o público de leitores a que se dirigia. Aspectos acadêmicos que
pudessem causar complicações são omitidos (por exemplo, todas as palavras em grego e
referências a Aristóteles) e material adicional que pudesse parecer familiar ao público
pretendido (por exemplo, provérbios e expressões francesas) foi acrescentado.
Uma posterior edição em latim surgiu em 1543, com a respectiva tradução em 1545.
Aumentada, agora, para 21 capítulos, essa edição incluía, como seu acréscimo mais
significativo, uma importante seção sobre a doutrina da Igreja. Alterações de menor
relevância incluíam o acréscimo de dois capítulos sobre pactos e tradições humanas e a
criação de um capítulo à parte para material relacionado a anjos. O impacto da experiência
sobre as reflexões religiosas de Calvino fica evidente nessa edição, particularmente no que
tan-ge à discussão sobre a importância da organização eclesiástica. Apesar dos evidentes
méritos dessa edição, um defeito inerente, já perceptível em 1539, torna-se agora bastante
óbvio: a obra é mal organizada. Novos capítulos são adicionados, sem que haja a
preocupação sobre seu impacto geral sobre a estrutura e a organização da obra. Muitos
capítulos são demasiadamente longos, sem que seja feita uma tentativa de subdividi-los em
seções. A edição em latim de 1550 e a subseqüente versão para o francês, de 1551,
tentaram remediar essa deficiência pela subdivisão de seus vinte e um capítulos em
parágrafos. Uns poucos acréscimos podem ser observados, como as novas seções que
tratam de autoridade bíblica e da consciência humana. Contudo, a falha fundamental
permanece: a edição de 1550, como a de 1543, deve ser considerada como uma obra
incrivelmente mal organizada.
Reconhecendo duplamente a necessidade de uma total revisão e do limitado tempo
disponível para tanto (a enfermidade foi um aspecto recorrente, nos últimos anos da vida de
Calvino), o Reformador decidiu remodelar sua obra completa. Surpreendentemente, há
poucos acréscimos; aqueles que foram feitos são, de modo geral, pouco atrativos, refletindo
a crescente irritabilidade de Calvino e sua tendência de abusar e denegrir seus oponentes. A
modificação mais evidente e positiva é a total reorganização do material, a qual prati-
camente restaura a unidade de algo que havia quase se desintegrado em uma série de
fragmentos desconexos. O material é agora distribuído em quatro “livros” (libri),
organizados da seguinte forma: o conhecimento de Deus, o Criador; o conhecimento de
Deus, o Redentor; a maneira de participar da graça de Jesus Cristo; os meios exteriores que
Deus utiliza para nos levar a Jesus Cristo. Os vinte e um capítulos da edição de 1551 são,
agora, transformados em oitenta, cada um deles cuidadosamente subdividido para facilitar a
leitura e distribuído entre esses quatro livros. É provável que Calvino tenha adaptado a
estrutura quadripartite da edição de 1543 para criar a nova divisão do material; uma
explicação alternativa é a de que ele tenha observado e adaptado a quádrupla divisão do
material, da obra Four Books of the Sentences, de Pedro Lombardo, aos quais ele faz
constantes referências. Estaria Calvino posicionando a si mesmo como o sucessor
protestante de Pedro Lombardo e as suas Institutas como a obra sucessora do magnífico
tratado teológico deste último? Jamais saberemos. O que certamente sabemos é que as
Institutas estavam, então, firmemente consolidadas como a obra teológica de maior
influência da Reforma Protestante, superando em importância as obras concorrentes de
Lutero, Melanchthon e Zwínglio.
O sucesso das Institutas de 1559 reflete sua organização soberba. Felipe Melanchthon
estabeleceu o padrão definitivo para as obras luteranas sobre teologia sistemática, em 1521,
24
através da publicação de sua obra Loci Communes. Em sua primeira edição, essa obra
tratava simplesmente de uma série de assuntos de evidente relevância para a Reforma
Luterana. Gradualmente, porém, considerações polêmicas e pedagógicas forçaram
Melanchthon a aumentá-la consideravelmente. Ele respondeu a esse desafio de uma forma
surpreendentemente inadequada: ele meramente adicionou material extra, a despeito da
impressão de falta de uma estrutura unificada que isso provocava. Logo se tornou evidente
que essa maneira de lidar com
o material era grosseira e desorganizada, incapaz de alcançar a análise sistemática,
necessária às discussões teológicas do final do século 16 e início do século 17. Por outro
lado, a estrutura intensamente sistemática e organizada de Calvino provou-se perfeitamente
adequada não somente às necessidades de sua própria geração, mas também para as
necessidades da geração pelo menos um século depois dele. O Luteranismo jamais se
recuperou, de fato, do equivocado início que lhe foi proporcionado por Melanchthon; o
domínio intelectual do Protestantismo, por parte dos teólogos da tradição Reformada, é
duplamente devido à estrutura e ao conteúdo da última edição das Institutas de Calvino.

O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: O MEIO

Tabela 7.1 – Edições das Institutas da Religião Cristã, de Calvino, até 1600.

Data Lugar da Editor Língua


Publicação
1536 Basiléia Platter e Lasius Latim
1539 Estrasburgo Vendelin Rihel Latim
1541 Genebra Michel du Bois Francês
1543 Estrasburgo Vendelin Rihel Latim
1545 Genebra Jean Gérard Francês
1550 Genebra Jean Gérard Latim
1551 Genebra Jean Gérard Francês
1553 Genebra Robert Estienne Latim
1554 Genebra Adam e Jean Rivery Latim
1554 Genebra Philibert Hamelin Francês
Jaquy, Davodeau e
1557 Genebra Francês
Bourgeois
1557 Genebra Bougeois, Davodeau e Italiano
Jaquy
1559 Genebra Robert Estienne Latim
1560 Genebra Jean Crespin Francês
1560 Emden Desconhecido Holândes
1561 Genebra Antoine Reboul Latim
1561 Londres R. Wolfe e R. Harison Inglês
1561 Genebra Conrad Badius Francês
1561 Genebra Jacques Bourgeois Francês
1562 Londres R. Harison Inglês
1562 Caen Pierre Philippe Francês
1562 Desconhecido Desconhecido Francês
1562 Lion Louis Cloquemin Francês
1562 Genebra Jacques Bourgeois Francês
1563 Lion Sébastien Honorati Francês
1564 Genebra Thomas Courteau Francês
1565 Lion Jean Martin Francês
1565 Lion Pierre Haultin Francês
1566 Genebra François Perrin Francês
1568 Genebra François Perrin Latim
1569 Genebra François Perrin Latim
1572 Heildeberg Johann Meyer Alemão
1574 Londres Viúva de R. Wolfe Inglês

Tabela 7.1 – Continuação

Data Lugar da Editor Língua


Publicação
1576 Londres Thomas Vautrollier Latim
1576 Lausanne François le Preux Latim
1577 Lausanne François le Preux Latim
1578 Dordrecht P. Verhagen e C. Jansz Holandês
1578 Londres Thomas Vautrollier Inglês
1582 Londres H. Middleton Inglês
1584 Londres Thomas Vautrollier Latim
1585 Edinburgh Thomas Vautrollier Inglês
1585 Genebra Eustache Vignon e Jean le Latim
Preux
1586 Herborn Christoph Raben Alemão
1587 Londres H. Middleton Inglês
1587 Edinburgh Desconhecido Inglês
1589 Herborn Christoph Raben Latim
1592 Genebra Jean le Preux Latim
1593 Leiden J. P. Jacobsz e J. Bouwensz Holandês
1595 Leiden J. P. Jacobsz e J. Bouwensz Holandês
1596 Bremen Jean Wessel Francês
1597 Londres Richard Field Espanhol
1599 Londres A. Hatfield Inglês

Esta tabela é baseada em uma pesquisa realizada nos acervos das principais bibliotecas da
Europa, em conjunto com o material reunido por M. Antal Lökkös, na Bibliothèque Publique et
Universitaire, Genebra, em 1986, em comemoração ao 450º aniversário de publicação da primeira
edição da obra. A lista fornecida pela tradução McNeill/Battles (Institutas, vol. 2, 1527-9) está
incompleta.

Uma característica das publicações religiosas do século 20 tem sido o aspecto de “guias
de estudos” que se atribui aos best-sellers religiosos, objetivando consolidar seu apelo
através da síntese e da ilustração de seu conteúdo. O sucesso da edição de 1559, das
Institutas de Calvino, provocou o surgimento de um produto similar no mercado editor – o
“sumário” ou

O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: O MEIO

“compêndio”. Mesmo no século 16, numerosos resumos dessa obra volumosa estavam em
25
circulação, gozando aparentemente de considerável sucesso comercial. Em 1562, Augustin
Marlorat publicou uma série de índices para a obra, facilitando a localização dos assuntos e
das passagens bíblicas nela contidas. Em 1576, Nicolas Colladon, um dos primeiros
biógrafos de Calvino, produziu uma edição que incluía breves sínteses marginais do con-
teúdo de passagens significativas, em grande parte para aliviar o tédio dos aplicados
estudantes de teologia. Thomas Vautrollier, o refugiado huguenote que se tornou um dos
mais notórios editores religiosos de Londres, produziu dois guias de estudo baseados nas
Institutas: o Compendium, de Edmund Bunny (1576), tentou lidar com o estilo condensado
e com as sutilezas de argumentação de Calvino para benefício dos perplexos estudantes.
Guillaume Delaune (um refugiado huguenote que adotou o nome inglês William Lawne)
produziu um sumário (Epitome) das Institutas em somente 370 páginas de tamanho
pequeno, sete anos mais tarde. Além de sintetizar a obra de Calvino,
o Epitome fornecia fluxogramas e diagramas que permitiam ao atônito leitor acompanhar a
intrincada estrutura da obra. O sumário foi publicado em inglês, pouco tempo depois, com
o título de Um Resumo da Instituição da Religião Cristã, escrita por M. Iohn Caluin.
Outros “guias de estudo” fo-ram publicados por Caspar Olevianus (1586), Johannes
Piscator (1589) e Daniel de Coulogne, também conhecido como Colonius (1628). Por meio
deles, Calvino se tornou cada vez mais acessível e compreensível para um círculo de
leitores que aumentava dia a dia.
Embora Calvino tenha influenciado seus contemporâneos, isso se deu principalmente
por meio das sucessivas edições das Institutas. A propagação e difusão de suas principais
idéias deve-se, quase que inteiramente, a essa obra. Isso, porém, não quer dizer que a
reputação e a influência de Calvino derivem totalmente da obra. Tal era o seu domínio da
palavra escrita e falada que ele foi capaz de desenvolver, de acordo com seus propósitos,
outros três gêneros literários. A importância literária e teológica dos mesmos é conside-
rável; entretanto, deve-se ressaltar que sua importância histórica é um pouco menor, pelo
fato de que esses gêneros não tiveram um impacto que sequer se assemelhasse ao das
Institutas, durante o século 16. Reconhecer esse fato não significa dizer que Calvino tenha
sido um pregador ou um comentarista mal sucedido; os textos disponíveis indicam
exatamente o oposto. Como comentarista bíblico, por exemplo, ele encontra-se facilmente
26
entre os mais brilhantes de sua era. Antes, isso significa reconhecer o impressionan
Figura 7.1 – Parte de uma carta, datada de 5 de agosto de 1545, de Calvino para M. de
Fallais (Jacques de Bourgogne)

te sucesso e impacto das Institutas nos dias e na época de Calvino.


Finalmente, deve-se mencionar o papel da correspondência como veículo para a
transmissão das idéias de Calvino. A importância da correspondência como um meio para a
propagação de idéias e valores estéticos foi há muito reconhecida pelo movimento
humanista. A correspondência possibilitou aos humanistas italianos transmitir e ilustrar
suas idéias com eloqüência perante uma platéia progressivamente receptiva, ao Norte dos
27
Alpes. Calvino, entretanto, foi capaz de utilizar a carta como uma forma de propaganda
política e religiosa, permitindo que suas idéias radicais penetrassem em cada recanto da
França. Embora não estivesse presente, ele era capaz de manter contato com seus
partidários em Agenais, Angoulême, Burgo, Brie, Champagne, Grenoble, Languedoc, Lion,
Orleans, Paris, Poitiers, Provença, Rouen e Toulouse. Por todo o período das décadas de
1530 e 1540, Calvino esteve em contato íntimo com um círculo de profissionais de classe
média – tais como advogados, estudantes e professores – que o mantiveram informado
28
sobre a turbulenta situação religiosa em sua terra natal. Por meio dessa

O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: O MEIO

ampla correspondência, ele foi capaz de estabelecer e consolidar sua influência sobre o
movimento evangélico francês em um período decisivo de sua história, à medida que suas
idéias econômicas e religiosas conquistavam uma audiência progressivamente atenta dentre
a burguesia marginalizada.
Porém, quais eram essas idéias religiosas? Havendo refletido sobre o meio, devemos,
nesse momento, nos voltar para a mensagem em si.

O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO:


A MENSAGEM
Para se entender Calvino é necessário ler Calvino. Da mesma forma que não se pode
esperar que um guia da França, sua terra natal, possa ser um substituto para uma
experiência em primeira mão daquele país, não há uma alternativa adequada para um
envolvimento pessoal com as próprias obras de Calvino. Muitas das apresentações sobre
seu pensamento possuem um sabor de “segunda mão” – assim como ocorre, na verdade,
inclusive com esta obra. Para que se obtenha uma compreensão acerca dos pensamentos de
Calvino, de seu método de análise, de seu uso da analogia, de sua exploração da retórica e
da maneira pela qual potenciais dificuldades e enganos são evitados, é necessário que se
esteja disposto a ler suas Institutas. O presente capítulo representa uma introdução a essa
leitura.
A analogia com um guia pode servir para explicar o propósito pretendido para esse
capítulo. Ele é como um mapa que localiza as diversas partes das Institutas, permitindo que
o leitor alcance uma compreensão preliminar da maneira como estas se relacionam umas às
outras. Este capítulo pretende chamar a atenção para certas características que merecem ser
notadas e proporcionar tanta informação preliminar quanto possa ser necessário ou
adequado para que se compreenda a importância desses ítens
destacados. Porém, sobretudo ele representa um auxílio à descoberta, um estímulo ao
encontro e um incentivo à experiência em primeira mão.

A PRIORIDADE DAS INSTITUTAS


A forma mais conveniente – e, como devemos sugerir, a mais confiável – de apresentar
um esboço da perspectiva de Calvino sobre o Cristianismo consiste em distinguir os temas
centrais da edição de 1559 das Institutas da Religião Cristã. O próprio Calvino, de forma
explícita, identificou as Institutas como a única apresentação oficial de suas idéias
religiosas. Isso não quer dizer que outras fontes em potencial para essas idéias – por
exemplo, seus comentários bíblicos ou seus sermões – sejam totalmente apagados pelas
Institutas. Tampouco significa subestimar as incríveis habilidades de Calvino como
comentarista bíblico ou pregador. Certamente é verdade que, ao me-nos em alguns casos, é
possível construir os principais esboços de suas doutrinas a partir de uma pesquisa em seus
1
comentários bíblicos. Além do mais, os comentários geralmente não possuem o tom
irritadiço e petulante, ocasionalmente beirando o desagradável, que é característico de
certos trechos das Institutas de 1559. A figura nada atraente de Calvino como autor,
provavelmente um reflexo das progressivas debilidades que o desgastavam, relacionadas
tanto ao seu envelhecimento quanto à sua enfermidade, é considerada, geralmente, como
uma das principais deficiências de sua obra. O tratamento que ele dispensava a seus
oponentes, particularmente a Andréas Osiander, é agressivo e arrogante, com uma
lamentável tendência de combinar o criticismo de idéias ao criticismo da pessoa daqueles
que as defendiam. O contraste com Tomás de Aquino é particularmente acentuado: sua
obra Summa Theologiae se caracteriza pela considerável moderação, mesmo naqueles
pontos em que Aquino está claramente expondo idéias que ele considera equivocadas. Por
outro lado, os comentários de Calvino constituem uma leitura muito mais agradável. No
entanto, devem ser observados dois potenciais perigos, no fato de se priorizar os
comentários.
Em primeiro lugar, a rigorosa concepção de Calvino sobre o papel do comentarista em
relação ao texto, evidenciada desde o comentário de Sêneca, coloca severas restrições à sua
liberdade para proceder à transição hermenêutica crucial entre a exposição das Escrituras e
a afirmação teológica. Calvino não concebe o termo “teologia” como algo que signifique
apenas uma “explicação da Bíblia”, embora ele não possua a menor intenção de
O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: A MENSAGEM

2
separar a teologia da explicação das Escrituras. Ainda que ele considere a teologia como
3
“um eco do texto bíblico”, esta não representa, estritamente falando, um comentário sobre
o texto, mas uma estrutura de interpretação através da qual o texto pudesse ser
compreendido. Fica claro que, ao comentar os textos, Calvino freqüentemente sente que
não é adequado fornecer uma explicação detalhada sobre todas as implicações doutrinárias
presentes em uma dada passagem. Em parte, isso reflete sua consciência da necessidade de
lidar com os aspectos históricos, lingüísticos e literários, levantados por aquela passagem.
Contudo, isso também se baseia na sua clara pressuposição de que seus leitores iriam se
referir às Institutas como a fonte principal de toda a sua teologia – e, conseqüentemente, de
seu método de interpretação das Escrituras. Os comentários podem esclarecer aspectos
particulares dos textos bíblicos; as Institutas fornecem uma estrutura através da qual a
essência da proclamação bíblica pode ser percebida e compreendida. Calvino claramente
considerava seus comentários bíblicos como subordinados às Institutas, em alguns
aspectos; estes não pretendiam ser um substituto independente e não podem ser tratados
como se assim o fossem. Se é que existe um único auxilio à leitura das Escrituras, que
supera todos os demais dentre suas obras e que foi idealizado como tal pelo próprio
Calvino, este são as próprias Institutas, mais do que qualquer comentário sobre uma
passagem bíblica especifica.
Em segundo lugar, as exposições teológicas de Calvino freqüentemente se baseavam em
uma análise detalhada da relação das diversas partes que constituíam seu sistema, incluindo
a exploração de possíveis dificuldades e a avaliação de alternativas contrárias. Esse esforço
é real no contexto das Institutas, especialmente na edição de 1559. A plenitude das
nuances, ênfases e sutilezas do pensamento de Calvino pode ser, dessa forma, identificada e
avaliada. Ao tratar de qualquer tópico em particular, na edição de 1559, o leitor pode estar
seguro de que ele ou ela encontrará tudo
o que Calvino considerava como essencial para compreender seu posicionamento em
relação àquele tópico. Essa extensão não será encontrada pelo leitor dos comentários
bíblicos que tentar determinar a posição de Calvino através do estudo de sua explicação
sobre passagens bíblicas potencialmente relevantes. A pessoa é, efetivamente, forçada a
consultar as Institutas para determinar se houve omissão de algum componente essencial do
pensamento de Calvino em um dado tema, admitindo, portanto, a prioridade daquela obra.

A ESTRUTURA DO PENSAMENTO DE CALVINO


Calvino é considerado, de um modo geral, como um sistematizador frio e impassível, um
cérebro, em vez de uma pessoa, uma figura introspectiva e socialmente isolada que se
sentia mais à vontade no mundo das idéias do que no mundo real de carne e osso, o mundo
4
das relações humanas. A concepção popular sobre o pensamento religioso de Calvino é a
de um sistema rigorosamente lógico, centrado na doutrina da predestinação. Embora essa
crença popular possa representar um pensamento de grande influência, ela guarda pouca
relação com a realidade; ainda que a doutrina da predestinação possa ser importante para o
posterior movimento Calvinista, isso não está refletido na exposição de Calvino sobre essa
idéia. Porém, essa crença popular levanta um importante questionamento. Alguém pode
falar a respeito do pensamento de Calvino como sendo, acima de tudo, um sistema? A
5
palavra “sistema” implica pressupostos acerca de unidade. Ela requer coerência. Contudo,
Calvino compartilhava do profundo desgosto característico da república humanista das le-
tras pelos teólogos escolásticos, cujos lemas parecem haver sido “sistematização” e
“coerência”. Referir-se a Calvino como um sistematizador teológico implica um grau de
afinidade com o escolasticismo medieval, o que contradiz suas próprias atitudes. Isso
também sugere uma significativa descontextualização entre Calvino e sua cultura, a qual
não possuía os recursos intelectuais nem percebia qualquer razão em particular para
6
produzir obras de “teologia siste-mática” – um gênero literário que era, de qualquer forma,
reconhecido como uma reserva do tão desprezado Escolasticismo. Apenas através de uma
postura que considera as Institutas como sendo consistentes com o Humanismo bíblico da
época de Calvino, em vez de uma radical exceção a ele, torna-se possível apreciar o pleno
7
significado da obra.
Certamente é fato que as Institutas de 1559 têm sido, freqüentemente, comparadas à
Summa Theologiae de Tomás de Aquino – com suas 512 questões, 2.669 artigos e mais de
10.000 críticas e réplicas – em termos de sua abrangência e influência. Contudo, isso
significa confundir, evidentemente, o volume literário e a influência histórica com a
afinidade teológica. Como indica um estudo do desenvolvimento das Institutas,
originalmente Calvino concebeu a obra em termos modestos, sem quaisquer pretensões de
uma abrangência metodológica. A reorganização do material entre uma edição e outra, no
período de 1536 a 1559, reflete uma preocupação pedagógica, e não metodológica; o
interesse de Calvino é humanista, em vez de escolástico
O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: A MENSAGEM

– ou seja, o de auxiliar seus leitores, e não o de impor um método a seu próprio


pensamento. As Institutas de 1559 combinam as virtudes cardeais do educador humanista –
clareza e compreensão – permitindo a seus leitores
o acesso a uma apresentação clara e abrangente dos principais pontos da fé cristã, da
maneira como Calvino desejava que fossem entendidos. Em ponto algum há qualquer
evidência que sugira que um princípio dominante, um axioma ou uma doutrina – exceto o
da clareza da apresentação – tenham controlado a forma ou a substância da obra. Esta é
uma expressão da eloquentia, tão valorizada pela Renascença, tanto em sua estrutura
quanto em sua prosa.
O estudioso que, por quaisquer motivos, pressupõe a existência de um princípio
unificador no pensamento de Calvino está, naturalmente, predisposto a encontrá-lo. As
pesquisas acadêmicas sobre Calvino apresentam uma série de estudos que, presumindo a
existência de um princípio unificador no pensamento de Calvino, procederam à
8
identificação deste princípio em suas doutrinas da predestinação, do conhecimento de Deus
9 10
ou em sua eclesiologia. Um enfoque mais modesto (e, deve-se dizer, mais realista)
consiste em admitir o óbvio e em aceitar que não há qualquer doutrina central no
11
pensamento de Calvino. A própria idéia de um “dogma central” tem suas origens no
12
monismo dedutivo do Iluminismo, e não na teologia do século 16. Alguém pode
identificar, com certeza, certos temas de importância central, certas metáforas essenciais
que permitem alguma compreensão acerca do pensamento de Calvino – porém, a noção de
uma doutrina central ou de um axioma que o controle não pode ser sustentada. Não existe
algo como “o cerne”, “o princípio básico”, “a premissa central” ou “a essência” do pensa-
mento religioso de Calvino.
Contudo, é evidente que, em toda a sua discussão sobre o relacionamento de Deus com a
humanidade, Calvino considera um único paradigma como normativo. O paradigma em
questão é aquele que foi obtido através da encarnação, mais especificamente através da
união, sem a fusão, da divindade e da humanidade na pessoa de Jesus Cristo.
Repetidamente Calvino ape-la para a fórmula baseada na cristologia, distinctio sed non
13
separatio, significando que as duas idéias podem ser distinguidas, mas não separadas.
Assim, o “conhecimento de Deus” e o “conhecimento de nós mesmos” podem ser
diferenciados, mas não podem ser alcançados de forma isolada, um em relação ao outro. Da
mesma maneira que a encarnação representa uma manifestação paradigmática dessa
complexio oppositorum, o mesmo padrão é, assim, repetido e deve ser percebido através
das várias manifestações do relacionamento entre Deus e a humanidade. Pelo fato de
enfatizar que a teologia é centrada no “conhecimento de Deus e no conhecimento de nós
mesmos” (Institutas I.i.l), esse paradigma é, obviamente, relevante. Em todas as suas obras,
Calvino demonstra uma forte tendência de distinguir, de forma radical, as dimensões divina
e humana – insistindo, contudo, em sua unidade. Não há qualquer possibilidade de se
separar Deus e o mundo ou Deus e os seres humanos.
14
Pode-se perceber esse princípio em ação do início ao fim das Institutas: a relação entre a
Palavra de Deus e as palavras dos seres humanos, na pregação; entre o símbolo e
significado da eucaristia; entre o fiel e Cristo, na justificação, onde existe uma real
comunhão de pessoas, ainda que não haja a fusão dos seres; entre o poder secular e o
espiritual. O pensamento de Calvino é dominatemente cristocêntrico, não apenas pelo fato
de que ele se centraliza na revelação de Deus em Jesus Cristo, mas também porque essa
revelação desvenda um paradigma que governa outras áreas centrais do pensamento cristão.
Onde quer que Deus e a humanidade entrem em contacto, o paradigma da encarnação
ilumina esse relacionamento. Se existe um ponto central no pensamento religioso de
15
Calvino, este pode, perfeitamente, ser identificado como sendo o próprio Jesus Cristo.
Sugerir que não é inteiramente apropriado designar o pensamento religioso de Calvino
como um “sistema” não significa, de forma alguma, que este não possua coerência ou
consistência interna. Ao contrário, significa ressaltar a habilidade com que Calvino, agindo
aparentemente mais como um teólogo bíblico do que filosófico, foi capaz de integrar uma
série de elementos na estrutura global de seu pensamento. Ele pode não ter desenvolvido
um “sistema teológico”, no sentido estrito do termo; entretanto ele foi, indubitavelmente,
um pensador sistemático, que reconheceu plenamente a necessidade de assegurar a
consistência interna, entre os vários componentes de seu pensamento.
À medida que Calvino envelhecia, surgia uma nova preocupação com o método.
Ocorreu uma alteração significativa no clima intelectual, conforme se desenvolvia um novo
interesse humanista por questões metodológicas, com o efeito essencial de que a
sistematização não era mais considerada a reserva exclusiva dos tão abominados teólogos
escolásticos. Em parte, isso se deve à crescente influência da escola humanista de Pádua,
cuja ênfase sobre a importância do método (e das contribuições de Aristóteles a essa
ciência) alcançou uma audiência progressivamente favorável, ao final da Re

O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: A MENSAGEM

nascença. Se pretendesse manter a respeitabilidade e a credibilidade intelectual, o


Calvinismo tinha que se adequar ao novo molde sistemático. Os sucessores de Calvino, ao
final do século 16, confrontados com a necessidade de impor um método ao seu
pensamento, descobriram que sua teologia era eminentemente adequada a uma readaptação,
dentro das estruturas lógicas mais rigorosas sugeridas pela metodologia aristotélica, a qual
era privilegiada ao final da Renascença italiana. Isso, talvez, tenha conduzido à conclusão
precipitada de que o próprio pensamento de Calvino possuía a forma sistemática e o rigor
lógico da ortodoxia reformada do período posterior e tenha permitido que a preocupação da
ortodoxia, sobre a doutrina da predestinação, fosse imposta às Institutas de 1559. Como
devemos sugerir, há uma sutil diferença entre Calvino e o Calvinismo nesse aspecto,
assinalando e refletindo uma reviravolta relevante na história intelectual em geral. Se os
discípulos de Calvino desenvolveram suas idéias, isso ocorreu em resposta a um novo
espírito da época, o qual considerava a sistematização e a preocupação com
o método como intelectualmente respeitáveis e desejáveis. O Luteranismo falhou em
reconhecer a importância dessa decisiva mudança no contexto intelectual; na época em que
os escritores luteranos adotaram os novos métodos, praticamente uma geração inteira havia
se passado e a superioridade do Calvinismo parecia certa.
Antes de considerar as principais características do pensamento de Calvino, pode ser útil
identificar pelo menos algumas das influências mais relevantes sobre as suas idéias. Em
primeiro lugar, deve-se ressaltar que Calvino é um teólogo bíblico. A primeira e mais
relevante fonte de suas idéias religiosas era a Bíblia. A obra de Calvino, como comentarista
bíblico, serve para reforçar a impressão geral que alguém adquire, a partir de uma leitura
mais cuidadosa das Institutas: a de que ele considerava a si mesmo como um obediente
expositor da Bíblia. Textos, contudo, demandam interpretação. Calvino tinha acesso às
principais técnicas da teoria literária, do criticismo textual e da análise filológica que a
Renascença havia colocado à sua disposição e não teve dúvidas em usá-las. Ele era um
humanista e empregava as técnicas do mundo das letras a seu serviço, como expositor
bíblico.
Embora a principal preocupação de Calvino fosse a interpretação das Escrituras, sua
16
leitura desse texto era informada e enriquecida pela tradição cristã. Ele não hesitava em desenvolver a tese que
havia, originalmente, defendido na Disputa de Lausanne – a tese de que a Reforma representava a restauração dos autênticos ensinamentos da Igreja primitiva, com a

ção das distorções e das adições ilegítimas do período medieval. Sobretudo, Calvino
elimina

considerava seu pensamento como uma exposição fiel das principais idéias de Agostinho de
17 18 19
Hipona: “Agostinho é totalmente nosso!”. Ele tinha em alta conta alguns dos anteriores escritores medievais, tais como Bernard de Clairvaux. Embora tivesse
a tendência de considerar a antiga teologia medieval como algo irrelevante, é evidente que Calvino incorporou em seu pensamento pelo menos alguns de seus métodos e
20
pressupostos. Seu voluntarismo e o apelo sutil ao método lógico-crítico são exemplos de uma
afinidade ligada não necessariamente a algum escritor ou escola de pensamento em
particular, mas ao acervo intelectual característico da teologia contemporânea. Por fim, sua
dívida frente à primeira geração de Reformadores é em tudo evidente – a Lutero, a seu
amigo Bucero, de Estrasburgo, e ao erudito Filipe Melanchthon, para mencionar apenas três
21
deles.
Obviamente, é impossível fornecer uma análise detalhada do pensamento de Calvino no
espaço do qual dispomos. Nossa proposta é, portanto, apresentar um resumo do
Cristianismo segundo Calvino, da forma como é apresentado nas Institutas.

AS INSTITUTAS DE 1559: UM RESUMO


O material que Calvino apresenta nas Institutas é repartido em quatro livros, conforme
segue. O Livro I trata da doutrina de Deus, especialmente das idéias da criação e da
providência. O Livro II trata dos fundamentos da doutrina da redenção, incluindo uma
discussão sobre o pecado e uma extensa análise da pessoa e obra do Redentor, Jesus Cristo.
O Livro III trata do uso da redenção em relação ao indivíduo, incluindo a análise das
doutrinas da fé, da regeneração, da justificação e da predestinação. O Livro IV trata da vida
da comunidade redimida, considerando várias questões de direta relevância para a Igreja
– seu ministério, seus sacramentos e sua relação com o Estado.
O tamanho das Institutas torna bem-vinda qualquer tentativa de simplificar sua estrutura.
Assim, é de grande auxílio considerar a obra sob a ótica de uma estrutura Trinitária: O
Livro I trata de Deus Pai; O Livro II, de Deus Filho; o Livro III, de Deus Espírito Santo e o
Livro IV, da Igreja. Embora tal resumo facilite a localização do material dentro da obra,
não se deve considerar que este tenha estado na mente de Calvino à medida que ele
organizava o material. O próprio Calvino deixou, por exemplo, de se referir ao Espírito
Santo, em seu sumário do conteúdo do Livro III.
O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: A MENSAGEM

Livro I
O primeiro livro das Institutas inicia com a discussão de um dos problemas
fundamentais da teologia cristã: como sabermos algo sobre Deus? Mesmo antes de nos
voltarmos à discussão dessa questão, porém, Calvino ressalta que “o conhecimento de Deus
e o conhecimento de nós mesmos são interligados” (I.i.1). Sem um conhecimento de Deus,
não podemos nos conhecer verdadeiramente; sem nos conhecermos, não podemos conhecer
a Deus. As duas for-mas de conhecimento estão “unidas por muitos vínculos”; embora
sejam distintas, não podem ser separadas. É impossível alcançar qualquer uma delas isola-
damente. Esse princípio é de fundamental importância para uma compreensão da teologia
de Calvino, que apresenta uma característica intensamente afirmativa em relação ao mundo:
o conhecimento de Deus não pode ser separado nem absorvido pelo conhecimento da
natureza humana ou do mundo. Uma dialética é construída, baseando-se na interação
cuidadosamente equilibrada entre Deus e o mundo, entre o Criador e sua criação.
Ao tratar do nosso conhecimento de Deus como o “Criador e soberano governante do
mundo”, Calvino afirma que um conhecimento genérico de Deus pode ser discernido por
meio de toda a sua criação – na humanidade, na ordem natural e no próprio processo
histórico. Dois motivos principais para tal conhecimento são identificados, sendo um deles
subjetivo e o outro objetivo. O primeiro motivo é um “senso de divindade” (sensus
divinitatis) ou uma “semente de religião” (sêmen religionis) infundida por Deus em cada
ser humano (I.iii.1; I.v.1). O próprio Deus dotou os seres humanos de um senso ou
pressentimento inato sobre sua existência. É como se algo sobre Deus tivesse sido gravado
no coração de cada ser humano (I.x.3). Calvino identifica três conseqüências dessa
percepção inerente da divindade: a universalidade da religião (a qual, quando não
informada pela revelação cristã, degenera-se em idolatria: I.iii.1), uma consciência
perturbada (I.iii.2) e um temor servil a Deus (I.iv.4). Calvino sugere que todas elas podem
servir como ponto de contato para a proclamação cristã.
O segundo motivo se encontra na experimentação e reflexão sobre a ordem natural,
sobre o mundo. O fato de que Deus é o Criador, juntamente com o reconhecimento de sua
sabedoria e justiça, pode ser obtido por meio de uma cuidadosa observação da criação,
culminando na própria humanidade (I.v.1-15). “De tal maneira Deus revelou a si mesmo na
criação do céu e da terra, uma obra tão bela e elaborada, por meio da qual ele se revela
todos os dias, que os seres humanos não são capazes de abrir seus olhos sem que o notem”
(I.v.1). É difícil ler esse trecho das Institutas sem relembrar o deísmo dos escritores
posteriores, tais como Herbert de Cherbury ou Isaac Newton – um fato significativo, ao
qual devemos retornar posteriormente, quando considerarmos o impacto de Calvino em
relação às ciências naturais.
É importante enfatizar que Calvino não fez absolutamente qualquer sugestão de que esse
conhecimento de Deus, a partir da criação, seja peculiar ou restrito aos cristãos. Calvino
está argumentando que qualquer pessoa, através de uma reflexão racional e inteligente a
respeito da criação, deve ser capaz de alcançar o conceito de Deus. A criação é um “teatro”
(I.v.5) ou um “espelho” (I.v.11) através do qual se demonstra a presença de Deus, sua
natureza e seus atributos. Embora o próprio Deus seja invisível e incompreensível, ele se
faz conhecer pelo fato de vestir a roupagem da criação (I.v.1).
Assim, Calvino aprova as ciências naturais (tal como a astronomia) em razão de sua
capacidade para ilustrar, com maior profundidade, a maravilhosa ordem da criação e a
sabedoria divina que isso aponta (I.v.2). De modo significativo, porém, ele não faz qualquer
apelo a fontes de revelação especificamente cristãs. Seu argumento baseia-se na observação
empírica e no raciocínio. Se Calvino utiliza citações bíblicas, isso é feito com o propósito
de consolidar um conhecimento de Deus que é natural e genérico, e não para estabelecer,
primeiramente, esse conhecimento. Ele enfatiza que existe uma maneira de se discernir
Deus, a qual é comum tanto aos que estão fora quanto aos que pertencem à comunidade
cristã (exteris et domesticis communem: I.v.6).
Havendo, pois, lançado as fundações para um conhecimento geral de Deus, Calvino
enfatiza suas deficiências; aqui ele dialoga com Cícero, cuja de natura deorum representa,
22
talvez, uma das teorias clássicas mais influentes sobre o conhecimento natural de Deus. A
distância epistemológica entre Deus e a humanidade, embora já seja de uma magnitude
tremenda, é ainda mais aumentada devido ao pecado humano. Nosso conhecimento natural
de Deus é imperfeito e confuso, até mesmo a ponto de se contradizer, por vezes. Um
conhecimento natural de Deus serve para privar a humanidade de qualquer desculpa para
ignorá-lo; no entanto, este é inadequado como base para uma imagem plena da natureza, do
caráter e dos propósitos de Deus. Assim, Calvino introduz o conceito da revelação bíblica;
as Escrituras reiteram aquilo que se pode conhecer sobre Deus através da natureza, ao
mesmo tempo em que esclarecem e aprofundam essa revelação geral (I.x.1). “O
conhecimento de Deus, o qual é claramente revelado na ordem do universo e em todas as
criaturas, é explicado, de forma ainda mais clara e familiar, atra
O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: A MENSAGEM

vés da Palavra” (I.x.1). É somente através das Escrituras que o fiel tem aces-so ao
conhecimento das ações redentoras de Deus na história, as quais culminam com a vida,
morte e ressurreição de Jesus Cristo (I.vi.1-4). Para Calvino, a revelação focaliza-se na
pessoa de Jesus Cristo; nosso conhecimento de Deus é mediado através dele (I.vi.1).
Pelo fato de Jesus Cristo ser conhecido somente através dos registros bíblicos, assegura-
se a centralidade e a indispensabilidade das Escrituras tanto para teólogos quanto para fiéis.
Calvino adiciona, contudo, que as Escrituras somente podem ser lidas e compreendidas de
forma adequada através da inspiração do Espírito Santo (I.vii.1). No entanto, ele não
desenvolve um entendimento mecânico ou literal sobre a inspiração das Escrituras. É
verdade que ele, ocasionalmente, utiliza imagens que podem sugerir uma visão mecânica
acerca da inspiração – por exemplo, quando se refere aos autores bíblicos como
“assistentes” ou “escribas”, ou quando fala que o Espírito Santo “dita” as Escrituras.
Contudo, essas imagens certamente devem ser entendidas metaforicamente, como
acomodações ou figuras visuais. O conteúdo das Escrituras é, de fato, divino – porém, a
forma como este é materializado é humana. As Escrituras são o verbum Dei, e não o verba
Dei. Elas representam o registro da Palavra, e não a própria Palavra. Indubitavelmente, há
um paralelo implícito em relação à encarnação nesse aspecto, como em muitos outros, no
pensamento de Calvino: o divino e o humano coexistem, sem que comprometam ou
destruam um ao outro. As Escrituras representam a palavra de Deus mediada na forma de
palavras humanas, sobre as quais pesam a autoridade divina, devido à sua origem.
Portanto, Deus só pode ser plenamente conhecido por meio de Jesus Cristo que, por sua
vez, só o pode ser através das Escrituras; a criação, contudo, fornece importantes pontos de
contacto e ecos parciais dessa revelação. Assim, havendo identificado a maneira pela qual
Deus pode ser conhecido, Calvino prossegue na consideração do que pode ser conhecido
em relação a Deus. Nesse ponto, a natureza é deixada de lado. A doutrina da Trindade, que
é o primeiro aspecto importante a ser exposto sobre seu entendimento acerca da natureza de
Deus, é tratada como uma doutrina bíblica que se baseia na revelação especial, em vez de
uma percepção que pode ser alcançada por meio da revelação geral ou da natureza. Vários
Reformadores acharam que essa doutrina oferecia algumas dificuldades, ao menos em ra-
zão de sua terminologia hermética (em particular, os termos “pessoa” e “substância”).
Martinho Bucero ficou, a princípio, hesitante a respeito do uso de termos não-bíblicos para
explicar qualquer aspecto que fosse da doutrina de Deus. O próprio Calvino propusera o
princípio de “nunca tentar buscar a Deus em qualquer lugar que não for a sua santa Palavra,
ou falar ou pensar a seu respeito além daquilo que a Bíblia, como nosso guia, nos
apresenta” (I.xiii.21); como poderia se justificar, então, a doutrina da Trindade, a qual não
é, na verdade, articulada sobre algo que sequer se aproxime de um preceito plenamente
desenvolvido nas Escrituras? A resposta básica de Calvino é no sentido de que “enquanto
Deus afirma sua unidade, ele claramente a define, perante nós, como algo que existe em
três pessoas” (I.xiii.2). As três pessoas devem ser entendidas como algo que surge de uma
distinção, e não de uma divisão, em relação à Trindade (I.xiii.17).
Ortodoxa, precisamente em razão de sua falta de originalidade, a versão de Calvino
acerca da Trindade assume a função de uma doutrina defensiva, que resguarda, sobretudo, a
divindade de Cristo (I.xiii.22-28). Sua ênfase, acerca da mediação epistemológica e
soterológica de Jesus Cristo, requer que ele estabeleça a divindade de Cristo o mais cedo
possível em sua explanação. Tanto a salvação quanto o conhecimento de Deus e de nós
mesmos são canalizados através desse Mediador: tamanho é o monumento que Calvino
constrói sobre esse fundamento, que se deve demonstrar que o mesmo repousa em solo
seguro.
Calvino inicia as Institutas com a declaração de que “nossa sabedoria . . . consiste, quase
plenamente, em duas partes: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós
mesmos”(I.i.1). Havendo tratado das características básicas da doutrina de Deus, ele se
volta, nesse momento, à consideração de uma série de questões relacionadas à natureza
humana. Após uma impressionante e extensa digressão sobre a natureza e os hábitos dos
anjos (I.xiv. 319), Calvino passa à discussão a respeito da natureza humana como sendo “a
melhor e mais nobre ilustração da justiça, da sabedoria e da bondade de Deus” (I.xv.1). Os
seres humanos são criados à imagem e semelhança de Deus e dotados de livre arbítrio, o
qual foi prejudicado pela queda. Os seres humanos são revestidos de uma certa dignidade, o
que os distingue de outros animais. Pelo fato de haverem sido criados à imagem e
semlhança de Deus, pode-se dizer que os seres humanos são “espelhos da glória divina”
(I.xv. 4). Contudo, a natureza humana, da forma como a conhecemos no momento, reflete
essa glória de uma maneira imperfeita; é somente em Cristo que vemos essa glória
plenamente revelada. Mesmo nesse estágio inicial, o caráter acentuadamente cristocêntrico
da teologia de Calvino se torna evidente: a

O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: A MENSAGEM

verdadeira natureza humana é revelada na pessoa de Jesus Cristo. Há, simultaneamente,


uma continuidade e uma descontinuidade entre nossa natureza humana e a natureza de
Jesus Cristo, revelando tanto a possibilidade quanto a necessidade de nossa renovação, se
desejamos ser restaurados a uma plena comunhão com Deus.
A discussão de Calvino sobre Deus, o Criador, termina com uma explicação do conceito
de providência divina. Não se dedicou um capítulo à parte para essa doutrina, na edição de
1536; a edição de 1539, porém, discutiu-a em conjunto com a doutrina da predestinação.
Ela surge nesse momento, separada da predestinação, como um aspecto da doutrina da
criação. Por quê? Parece que Calvino quer afirmar que a providência de Deus é uma
extensão de sua criação. Havendo criado o mundo, Deus continua a cuidar dele, dirigindo-o
e sustentando-o (I.xvii.1). Tudo o que há na criação está sujeito à sábia e benéfica
influência de seu Criador.

Livro II
O segundo livro trata do conhecimento de Deus “na proporção em que ele se revelou
como nosso Redentor em Jesus Cristo”. Embora o conhecimento de Deus como Criador
possa ser extraído a partir da própria criação, ainda que de forma parcial e fragmentada, o
conhecimento de Deus como Redentor só pode ser alcançado por meio de Jesus Cristo,
conforme é testemunhado pelas Escrituras. Calvino inicia sua discussão sobre a redenção
através de Cristo com uma análise de seus pressupostos – a queda e suas conseqüências, a
relação entre a lei e o evangelho e a relação entre o Antigo e o Novo Testamento, diante das
próprias Escrituras.
Provavelmente, há uma pequena repetição do Livro I à medida que Calvino expõe seu
entendimento sobre a natureza do pecado e das respectivas conseqüências para a natureza
humana. A humanidade, conforme originalmente criada por Deus, era boa em todos os
aspectos. Em razão da queda (cujas conseqüências Calvino considera terem sido
catastróficas), as naturais faculdades e dons humanos foram radicalmente prejudicados. A
noção da solidariedade da raça humana está fundamentada no fato de que toda a humanida-
de compartilha, agora, da queda de Adão (II.i.7). O livre arbítrio humano, embora não
destruído, torna-se impotente para resistir ao pecado. Nós “não fomos privados do livre
arbítrio, mas de um arbítrio são” (II.iii.5). Como conseqüência, tanto a razão quanto a
vontade humanas são contaminadas pelo pecado. A incredulidade é, portanto, vista tanto
como um ato tanto da vontade quanto da razão; esta não representa, simplesmente, uma
falha em discernir a mão de Deus em meio à criação, mas uma decisão deliberada de não
discerni-la e de não obedecer a Deus.
Calvino expõe as conseqüências desse fato em dois níveis distintos, em-bora
relacionados. No nível epistemológico, os seres humanos não possuem os necessários
recursos racionais e volitivos para discernir Deus, de forma plena, em meio à criação. No
nível soterológico, os seres humanos não possuem aquilo que é necessário para serem
salvos; eles não desejam ser salvos (em razão da debilitação de sua mente e vontade pelo
pecado) e são incapazes de salvarem a si mesmos (pelo fato de que a salvação pressupõe
obediência a Deus, agora impossibilitada em razão do pecado). O autêntico conhecimento
de Deus e a salvação devem, portanto, partir de algo exterior à condição humana. Dessa
forma, Calvino lança os fundamentos de sua doutrina sobre a mediação de Jesus Cristo.
Ele se volta, então, à preparação histórica para a vinda do Mediador. A concessão da lei
a Abraão e seus sucessores é vista, por Calvino, como o primeiro passo da estratégia divina
para a redenção da condição humana. Ele deixa claro que, segundo seu entendimento, a
palavra “lei” designa “o sistema religioso entregue nas mãos de Moisés”, e não apenas os
Dez Mandamentos (II.vii.1). A lei foi uma graça concedida ao povo judeu, que apontava
adiante, para a futura vinda de Jesus Cristo como sendo o cumprimento dos sinais e das
promessas da lei. Calvino dedica um escasso respeito a grande parte da lei, considerando-a
nada mais do que ultrapassadas tradições ou supertições do povo judeu, cujas origens
remontam a uma economia rural do antigo Oriente Próximo:
O que poderia ser mais insensato ou estúpido do que a idéia de que você pode se
reconciliar com Deus por meio da oferta de gordura e de entranhas fétidas de animais?
Ou livrar-se das manchas em sua alma com alguns respingos de sangue ou água? Em
suma, se esse é todo o bem que a lei fazia (assumindo-se que esta não apontasse além,
para algo mais, ou simbolizasse alguma verdade correspondente), ela parece ser algum
tipo de piada.

Todo o propósito da religião judaica, segundo Calvino, era apontar adiante, apontar
para Jesus Cristo. Desenvolvendo esse aspecto, ele formula uma série de princípios que
permitem aos leitores do Antigo Testamento com
O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: A MENSAGEM

preender algumas das mais peculiares (e, francamente, primitivas) práticas e idéias
descritas naquelas páginas. Pode-se traçar uma distinção entre os aspectos moral,
cerimonial e judicial da lei: os dois primeiros – os quais incluíam instruções detalhadas
sobre os métodos corretos para a matança ritual de animais, para os ritos de purificação e
várias proibições relacionadas a alimentos – deveriam ser considerados obsoletos. Usando
uma linguagem característica de um período anterior, eles deveriam ser considerados como
radicalmente condicionados tanto em termos históricos quanto culturais (Calvino
casualmente fará, mais tarde, uma observação semelhante relacionada à proibição de
empréstimo de dinheiro a juros, que havia no Antigo Testamento). Por vezes, ele soa como
um racionalista do Iluminismo, que desprezava o caráter primitivo da religião do Antigo
Testamento; no entanto, ele insiste no fato de que, sob os rituais e estipulações culturais,
podiam-se discernir padrões de comportamento e de conduta que são relevantes para os
cristãos atuais. Essas regras morais, da maneira como estão expostas, por exemplo, nos Dez
Mandamentos, permanecem obrigatórias para os cristãos.
Quais as funções que essa lei moral pode ter hoje? Em comum com outros
Reformadores, tais como Bucero e Melanchthon, Calvino identifica três funções. Em
primeiro lugar, a lei possui um aspecto educacional ou pedagógico (o usus theologicus
legis), uma capacidade de trazer à tona a realidade do pecado e, assim, preparar o terreno
para a redenção (II.vii.6-7). Segundo, a lei tem uma função política (o usus civilis legis):
impedir que aqueles não regenerados ou não convertidos se degenerem no sentido de um
caos moral (um aspecto importante para as cidades européias, ansiosas ante a ameaça de
surgimento de uma instabilidade interna). Por fim, a lei possui uma terceira aplicação, o
denominado tertius usus legis, através do qual ela encoraja os fieis a se submeterem mais
plenamente à vontade de Deus, da mesma forma com que um chicote pode encorajar um
jumento preguiçoso (II.vii.12). Para muitos dos críticos de Calvino, particularmente aqueles
de raízes luteranas, isso parece confundir a lei com o evangelho e haver, com freqüência,
exposto Calvino à acusação de encorajar uma espécie de legalismo cristão.
Isso pode parecer colocar o Antigo Testamento no mesmo nível do Novo. Assim,
Calvino é forçado a definir com maior precisão o relacionamento entre ambos,
identificando tanto suas semelhanças quanto suas diferenças. Ele argumenta que existe uma
semelhança e uma continuidade fundamentais entre o Antigo e o Novo Testamento, que se
baseiam em três aspectos. Primeiro, ele enfatiza a imutabilidade da vontade divina. Deus
não pode ter um tipo de procedimento no Antigo Testamento e, a seguir, adotar um outro
procedimento totalmente diverso no Novo Testamento. Deve haver uma continuidade
fundamental de ação e intenção entre os dois Testamentos. Segundo, ambos celebram e
proclamam a graça de Deus, manifestada em Jesus Cristo. Pode ser que o Antigo
Testamento seja capaz de testemunhar sobre Jesus Cristo somente “à distância e de maneira
obscura”; no entanto, esse testemunho da vinda de Cristo é real, verdadeiro. Em terceiro
lugar, ambos os Testamentos apresentam os “mesmos sinais e sacramentos” (II.x.5), que
dão testemunho da graça de Deus.
Em termos de substância e conteúdo, Calvino argumenta, portanto, que os Testamentos
são efetivamente idênticos. Não há qualquer descontinuidade radical entre eles. Ocorre que
o Antigo Testamento ocupa uma posição cronológica diversa do Novo, no plano de
salvação divino; contudo, seu conteúdo (se corretamente interpretado) é o mesmo. Calvino
prossegue na identificação de cinco pontos de diferença entre o Antigo e o Novo
Testamento, relacionados à forma, em vez da essência.

I. O Novo Testamento apresenta maior clareza do que o Antigo (II.xi.1),


particularmente em relação às coisa invisíveis. O Antigo Testamento apresenta uma
tendência a ser impregnado por certas preocupações referentes a coisas visíveis e
tangíveis, às quais podem obscurecer os objetivos, esperanças e valores invisíveis
que se encontram por trás disso. Calvino exemplifica esse aspecto, tomando por base
a terra de Canaã; o Antigo Testamento tende a tratar essa propriedade terrena como
um fim em si mesma, enquanto o Novo Testamento a considera como um sinal da
herança futura, que está reservada no céu, para aqueles que crerem. Aos judeus foi,
assim, concedida a esperança da imortalidade por meio da analogia com as
conquistas e sucesso terre-nos; esse método inferior foi, agora, posto de lado.
II. O Antigo e o Novo Testamento adotam enfoques significativamente diversos em
relação a imagens (II.xi.4). O Antigo Testamento emprega um modo de
representação da realidade o qual, sugere Calvino, leva a um encontro indireto com a
verdade, através de várias figuras de linguagem e imagens visuais; O Novo
Testamento, no entanto, per-mite uma experiência imediata da verdade. O Antigo
Testamento apresenta “somente a imagem da verdade, ... a sombra, em vez da essên-
cia”, proporcionando “a antecipação do conhecimento que será, um

O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: A MENSAGEM

dia, claramente revelado” (I.xi.5); o Novo Testamento apresenta a verdade de forma


direta, em sua plenitude.
III. A terceira diferença entre os dois Testamentos concentra-se na distinção entre a lei e
o Evangelho, ou entre a letra e o Espírito (II.xi.7). O Antigo Testamento aponta para
a atividade capacitadora do Espírito Santo (mas não é capaz de aplicá-la), enquanto o
Novo Testamento é capaz de liberar esse poder. Portanto, a lei é capaz de ordenar,
proibir e prometer, não possuindo, porém, os recursos necessários para operar
qualquer transformação fundamental na natureza humana, a qual vem a ser a causa
primordial da necessidade desses mandamentos. O Evangelho tem poder para
“transformar e corrigir a perversidade, que é inerente a todos os seres humanos”. É
interessante observar que a antítese radical entre a lei e o Evangelho, tão
característica de Lutero (e, anteriormente, de Márcion), não se encontra aqui. A lei e
o evangelho são reciprocamente contínuos e não se encontram em oposição.
.IV. Prosseguindo nesse sentido, Calvino argumenta que uma quarta distinção pode ser
observada em relação às emoções divergentes, que são evocadas pela lei e pelo Evangelho.
O Antigo Testamento evoca o medo e o temor, mantendo a consciência cativa, enquanto o
Novo Testamento evoca uma resposta baseada na liberdade e na alegria (II.xi.9).
.V. A revelação do Antigo Testamento se restringia à nação de Israel; a revelação do
Novo Testamento é universal em seu propósito (II.xi.11). Calvino limita a esfera da antiga
aliança a Israel; com a vinda de Cristo, essa separação foi quebrada à medida que foi
abolida a diferença entre judeus e gregos, entre circuncisos e incircuncisos. O chamado dos
gentios distingue, dessa forma, o Novo Testamento do Antigo (II.xi.12).

Por toda essa discussão a respeito das diferenças entre o Antigo e o Novo Testamento e
da superioridade do último em relação ao primeiro, Calvino é cuidadoso em permitir que
certos indivíduos, pertencentes à antiga aliança – os patriarcas, por exemplo – sejam
capazes de discernir sinais da nova aliança. Em momento algum Deus mudou de idéia ou
alterou, de forma radical, seus propósitos; Ele simplesmente os tornou mais claros, de
acordo com as limitações impostas à compreensão humana. Assim, para dar apenas um
exemplo, não se deve pensar que Deus estava, originalmente, determinado a limitar sua
graça somente à nação de Israel e, então, mudou de idéia, resolvendo torná-la disponível,
também, aos demais povos; ao contrário, o que ocorreu foi o avanço progressivo do plano
divino, que somente se tornou claro com a vinda de Jesus Cristo (II.xi.12). Calvino sintetiza
esse princípio geral com a afirmação de que “no que se refere à lei, o evangelho difere desta
apenas em relação à clareza de apresentação” (II.ix.4). Cristo é revelado e a graça do
Espírito Santo é oferecida tanto no Antigo quanto no Novo Testamento – porém, de forma
mais clara e plena neste último (IV.xiv. 26).
Havendo dado ênfase ao testemunho comum, embora desigual, de ambos os
Testamentos em relação à vinda de Jesus Cristo, Calvino julga apropriado voltar-se à
discussão sobre a identidade e a importância da figura de Jesus. No entanto, ficará claro que
sua ênfase sobre a unidade dos dois Testamentos dá origem a uma séria dificuldade: parece
não haver qualquer diferença fundamental entre a velha e a nova aliança, exceto quanto à
clareza de expressão. Isso pareceria sugerir que nenhuma transformação fundamental
resultou da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, exceto a de esclarecer alguns
enigmas presentes no Antigo Testamento. Esse ponto recebe um peso adicional através de
uma consideração da soterologia da via moderna, a qual também professava reconhecer
uma diferença fundamental entre a velha e a nova aliança e, assim, encontrava-se forçada a
23
explicar a importância de Jesus Cristo em termos de refinamento explanatório.
Contudo, Calvino, na verdade, insistia em que o caso era justamente o oposto. A pessoa
e a obra de Jesus Cristo são de importância central para o plano de salvação divino. Sem
aquilo que foi conquistado por Jesus Cristo, não poderia haver redenção e,
conseqüentemente, não haveria a aliança da graça. A conquista que nos é apresentada, de
diferentes maneiras, em ambos os Testamentos, depende daquilo que Deus conquistou
através de Cristo. Em outras palavras, não é o Novo Testamento, mas são ambos, o Antigo
e o Novo Testamento, considerados em conjunto, que refletem sua presença e obra. O Novo
Testamento não deve ser contrastado com o Antigo nesse aspecto; antes, o Antigo e o Novo
Testamento, tomados em conjunto, devem ser colocados em contraste com a ordem não
redimida.
A análise de Calvino acerca do conhecimento de Deus e do pecado do homem representa
os fundamentos de sua cristologia. Jesus Cristo é o Mediador entre Deus e a humanidade.
Para que aja como tal, Jesus Cristo deve ser tanto divino quanto humano (II.xii.1). Pelo fato
de que nos era impossível alcançar Deus, em razão do nosso pecado, Deus, optou por
descer até nós. A menos que o próprio Jesus Cristo fosse um ser humano (nós evitamos
utilizar o termo “homem”, pois Calvino não dedica impor

O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: A MENSAGEM

tância alguma à masculinidade de Cristo, mas coloca toda sua ênfase sobre sua
humanidade), outros seres humanos não poderiam se beneficiar da sua presença ou
atividade. “O Filho de Deus tornou-se o Filho do Homem, recebendo o que é nosso, de tal
forma que transferiu para nós o que era seu, fazendo com que aquilo que por natureza lhe
pertence se torne nosso, por meio da graça” (II.xii.2).
Para que Cristo nos redimisse do pecado era necessário, argumenta Calvino, que a
original desobediência humana, diante de Deus, fosse superada por um ato de obediência
humana. Por meio de sua obediência a Deus, como um ser humano, Cristo apresentou a seu
Pai um sacrifício que remiu todo o pecado, anulando toda a dívida e pagando qualquer
sanção que pudesse ser devida por esse motivo (II.xii.3). Por meio de seu sofrimento, ele
pagou a dívida do pecado; através de sua vitória sobre a morte, ele liberou a raça humana
do poder da morte. Curiosamente, Calvino é relutante em admitir que a humanidade de
Cristo participa de cada aspecto de sua divindade
– uma doutrina particularmente associada a Lutero. Escritores posterioresdesignavam esse
aspecto do pensamento de Calvino como o extra Calvinisticum: embora o Filho de Deus
tenha assumido a natureza humana na encarnação, ele não se tornou um prisioneiro de
nossas paixões humanas. Deus se encarnou, contudo ainda se pode dizer que ele
permaneceu no céu (II.xii.4). Não se pode dizer que Deus, em toda a sua plenitude, estava
concentrado na singular existência histórica de Jesus Cristo. As palavras de um famoso
hino de Natal, da autoria de St Germanus, expressam com perfeição esse aspecto acentuado
por Calvino:

O Verbo se fez carne,


E, contudo, permanece nas alturas!

Havendo tratado de questões relacionadas à pessoa de Cristo, Calvino se volta a uma


série de assuntos que giram em torno da obra de Cristo. Tomando por base uma tradição
que remonta a Eusébio de Cesaréia, Calvino argumenta que a obra de Cristo pode ser
resumida em três funções ou ministérios (o munus triplex Christi) – profeta, sacerdote e rei
(II.xv. 2). O argumento básico é que Jesus Cristo reúne, em sua pessoa, os três grandes pa-
péis do Antigo Testamento. Em sua função profética, Cristo é mensageiro e testemunha da
graça de Deus. Ele é o mestre dotado de autoridade e sabedoria divinas. Em sua função
real, Cristo inaugurou um reinado que é celeste, não pertence a este mundo; que é
espiritual, e não carnal (II.xv. 3-4). Esse reinado é exercido sobre aqueles que crêem,
através da ação do Espírito Santo. Ele também se estende sobre os maus, cuja revolta é
frustrada pelo exercício de sua autoridade (II.xv. 5). Finalmente, em sua função sacerdotal,
Cristo é capaz de nos trazer de volta ao favor divino por meio do oferecimento de sua morte
como redenção pelo nosso pecado (II.xv. 6). Em todas elas, Cristo assume e realiza
diversos ministérios do Antigo Testamento, permitindo que estes sejam vistos sob uma luz
nova e mais clara.
Calvino detalha, então, o modo pelo qual a obediência de Cristo, especial-mente em sua
morte, está ligada à obtenção da redenção (II.xvi.1-19). Ele insiste em que a salvação
ocorre somente através de Jesus Cristo. Isso levanta a questão do fundamento da obra
meritória de Cristo (II.xvii.1-5). Por que razão se considerava a morte de Jesus Cristo como
tendo valor suficiente, de forma a ter se tornado merecedora da redenção de toda a
humanidade pecadora? Há algo de intrinsicamente valioso na morte de Cristo? Esta era,
certamente, a posição de Lutero, que argumentava que a divindade de Jesus Cristo foi o
motivo do singular valor de seu sofrimento e morte. Calvino, no entanto, não adota essa
solução. Ele se alinha, por outro lado, à tradição voluntarista medieval, já notória nos
escritos de Duns Scotus, expressa, porém, de forma mais madura nas obras da via moderna
e da schola Augustiniana moderna, ambas associadas à Universidade de Paris. O mérito da
morte de Cristo dependia do valor que Deus resolveu lhe atribuir, e não de seu valor
intrínseco. Essa representa, provavelmente, uma das afinidades mais importantes entre o
24
pensamento de Calvino e o pensamento do período medieval posterior.

Livro III
Havendo demonstrado como a redenção se relaciona com a pessoa e a obra de Jesus
Cristo, Calvino prossegue na discussão “da maneira de se obter a graça de Cristo, os
benefícios conferidos por ela e os efeitos dela resultantes”. A seqüência lógica é a de um
deslocamento da discussão dos motivos da redenção para sua efetiva ocorrência. A ordem
dos tópicos que se seguem tem sido uma fonte de perplexidade contínua para os
pesquisadores de Calvino. Calvino discute uma série de temas na seguinte ordem: fé;
regeneração; vida cristã; justificação; predestinação. Com base em sua discussão sobre a
relação dessas idéias na economia da salvação, era possível que se esperasse uma
organização um tanto diferente; particularmente, era de se supor que a predestinação
precedesse a discussão da justificação e que a regeneração se
O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: A MENSAGEM

seguisse a essa discussão. A organização dada por Calvino parece refletir considerações de
ordem educacional, em vez de precisão teológica.
Ele abre sua discussão da apropriação dos benefícios de Cristo, observando que os
mesmos permanecem exteriores a nós a menos que ocorra algo por meio do qual estes
possam ser internalizados. Enquanto estivermos separados de Cristo, tudo o que ele
conquistou na cruz nada representa (III.i.1). É mediante a fé que aquele que crê toma posse
desses benefícios. Portanto, a primeira questão relevante a ser discutida é sobre a natureza
da própria fé. Calvino assim a define: “um conhecimento estável e específico da vontade
divina em relação a nós, o qual, estando baseado na verdade da graciosa promessa em
Cristo é, ao mesmo tempo, revelado a nossas mentes e selado em nossos corações pelo
Espírito Santo” (III.ii.7). Essa definição de fé, cuidadosamente arquitetada, requer
explicação sobre vários aspectos.
A fé não é dirigida a Deus, como se ele fosse um objeto da fé, mas dirigese à sua
vontade e à sua obra em relação a nós, segundo está revelado nas Escrituras (III.ii.6).
“Nossa preocupação não é tanto a de descobrir quem é Deus em si mesmo, mas o que ele
deseja ser, em relação a nós... acreditamos que a fé é um conhecimento da vontade de Deus
em relação a nós, alcançado por intermédio de sua Palavra” (III.ii.6). Também não é a
própria Escritura o objeto da fé; embora a fé acredite em cada palavra de Deus (III.ii.7), seu
objeto específico são as promessas divinas de misericórdia.

Uma vez que nem toda palavra que vem de Deus desperta o coração humano para a fé,
devemos ir além, na busca daquilo que há na Palavra, que está relacionado à fé. A
declaração de Deus a Adão foi: “Você certamente morrerá”, e a Caim: “A voz do san-
gue de seu irmão clama a mim desde a terra.”. Estas declarações, contudo, estão mais
propensas a atrapalhar a fé, em lugar de consolidá-la! Isso não significa negar que seja
legítimo que a fé aceite a existência da verdade divina quando quer, o que quer e como
quer que Deus possa falar; ao contrário, significa questionar aquilo que a fé encontra
na Palavra, sobre o qual possa se apoiar e descansar. (III.ii.7)

O alicerce da fé é a graciosa promessa de misericórdia em relação a nós, até mesmo ao


ponto em que a fé e o evangelho possam ser considerados como termos equivalentes
(III.ii.29).
O valor da fé, no entanto, encontra-se naquilo que esta concilia. A fé é um meio, e não
um fim, que dá origem à presença do Cristo vivo e real na vida daquele que crê. Por
intermédio da fé, Cristo “nos implanta em seu corpo e nos torna participantes não somente
de todos os seus benefícios, mas também de si mesmo” (III.ii.24). Não são apenas algumas
qualidades abstratas ou algumas características impessoais de Jesus Cristo que se tornam
nossas, por intermédio da fé: é um relacionamento pessoal com o próprio Cristo vivo.
Calvino dispensa algum tempo à diferenciação entre a sua compreensão acerca da natureza
desse relacionamento e a compreensão de Andréas Osiander, a qual ele considera nada mais
25
do que uma confusão grosseira de Cristo com a natureza humana. As promessas, das quais
a fé depende e gratamente se apropria, fornecem a nós mais do que uma mera visão ou
conhecimento de Cristo; elas nos proporcionam uma comunicação, na pessoa dele
(III.xvii.1). A fé, portanto, canaliza a presença de Jesus Cristo na vida daquele que crê,
transformando-a. “Recebemos e gozamos da presença de Jesus Cristo à medida que ele nos
é entregue pela bondade de Deus e, através da participação nele, alcançamos graça em
dobro. Primeiro, somos reconciliados com Deus por intermédio de sua inocência...
Segundo, somos santificados por seu Espírito” (III.xi.1). Assim, Calvino prossegue identifi-
cando as conseqüências de nossa união com Cristo por meio da fé e se volta à consideração
das doutrinas da justificação e da santificação.
A doutrina da justificação pela fé é amplamente considerada como a doutrina central da
Reforma, a “tese pela qual a Igreja se mantém ou perece”. Esta foi central para as origens
da teologia reformadora de Lutero e permaneceu de crucial importância, por toda a sua
26
vida. Ainda que possa ter sido importante para a primeira geração de Reformadores, a
doutrina tornou-se de menor relevância para a segunda geração. Embora Calvino se refira à
justificação pela fé como “a principal tese da religião cristã” (III.xi.1), parece que ele está
reconhecendo sua importância para uma geração anterior. Ela não é central para a sua
concepção da fé cristã. A primeira onda da Reforma deve, de fato, ter feito um apelo
persistente à doutrina da justificação e à sua relevância para as consciências individuais,
confusas em meio à devoção católica orientada para as obras; no entanto, a segunda onda
da Reforma assistiu a uma alteração da discussão para questões adequadas às necessidades
27
das sociedades urbanas, tais como as estruturas e as disciplinas eclesiais. A concepção do
Cristianismo individualista de Lutero, condicionada por seu contexto territorial e
exemplificada por sua doutrina da justificação, perma

O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: A MENSAGEM

nece em contraste com relação a uma concepção mais coletiva de Cristianismo, associada
aos Reformadores urbanos do Sudoeste, tais como Zwínglio, Bucero e Calvino.
Contudo, os temas originados pela doutrina da justificação permaneciam vivos, mesmo
na época de Calvino. Dois desses temas destacam-se como sendo de particular relevância.
O primeiro se refere ao modo pelo qual Jesus Cristo está envolvido na justificação. Felipe
Melanchthon desenvolveu um conceito legalista de justificação, pelo qual esta era vista
como “declaração de direito, por meio da imputação da justiça de Cristo”. Embora essa
evolução tenha atingido um grau significativo de clareza terminológica, isso se deu a custo
de um envolvimento puramente extrínseco e impessoal de Cristo. A justificação envolve a
imputação de um atributo de Cristo ou de uma qualidade ou beneficio provenientes dele,
em relação àquele que crê – mas não envolve um encontro pessoal entre Cristo e o
convertido, um elemento central do conceito de justificação de Lutero. Haveria algum
modo pelo qual a doutrina legalista de justificação de Melanchthon pudesse ser mantida,
restaurando-se, ao mesmo tempo, a ênfase de Lutero sobre a real presença do próprio Cristo
– no lugar de uma mera imputação de algum atributo impessoal?
O segundo tema refere-se à relação entre a iniciativa divina e a resposta humana. De que
forma se poderia conciliar a justificação totalmente gratuita do pecador perante Deus com a
exigência de obediência subseqüentemente posta sobre ele ou ela? Lutero parecia sugerir
que as obras não tinham espaço na vida cristã em razão do dom da graça divina, que era
absolutamente incondicional – uma percepção incorreta, como se sabe, mas uma interpreta-
ção compreensível de sua ênfase sobre a gratuidade da justificação. Zwínglio solucionou
esse problema tornando a justificação dependente da regeneração moral; na justificação,
Deus sela ou confirma o status moral alcançado pelo fiel. Lutero parecia negar qualquer
espaço para a obediência na vida cristã; Zwínglio, por sua vez, parecia torná-la
28
condicionada a tal obediência. Era evidente que se fazia necessário um esclarecimento.
Credita-se a Calvino a solução de ambas as dificuldades. A primeira delas ele solucionou
através de seu conceito de “inserção do fiel em Cristo” (insitio in Christum). Por intermédio
da fé, aquele que crê se une a Jesus Cristo em uma união espiritual, de tal forma que nós
não somos “somente participantes de todos os seus benefícios, mas também do próprio
Cristo” (III.ii.24). Tudo aquilo que Cristo representa se torna nosso por meio da fé. Por
intermédio da participação em Cristo, compartilhamos de seus benefícios. A real presença
de Cristo em meio aos fieis (que representa a ênfase particular de Lutero) é, portanto,
mostrada como sendo consistente e simultaneamente mantida com a participação nos
benefícios de Cristo, tal como a sua justiça (que representa a ênfase de Melanchthon).
A segunda solução prossegue imediatamente desse ponto. A aceitação diante de Deus
(justificação) não depende de uma regeneração ou melhoria moral (santificação); nem,
tampouco, a justificação torna supérflua a santificação. Para Calvino, a justificação e a
santificação são ambas conseqüências diretas da união do fiel a Cristo. Se o fiel permanece
unido a Cristo, pela fé, ele ou ela torna-se aceitável aos olhos de Deus (justificação) e é, ao
mesmo tempo, lançado no caminho do aperfeiçoamento moral (santificação). Ao tratar
esses dois elementos, os quais, até então, haviam sido considerados entidades
independentes que requeriam correlação, como subordinados à união do fiel com Cristo,
Calvino é capaz de sustentar tanto a total gratuidade de nossa aceitação perante Deus
quanto as subseqüentes exigências de obediência postas sobre nós.
Se a justificação não é central para o pensamento de Calvino, o mesmo então pode ser
dito em relação à predestinação. Assim como alguns escritores, familiarizados com a
considerável ênfase dada por Lutero à doutrina da justificação, projetaram essa ênfase sobre
Calvino, outros impuseram a seus escritos a preocupação específica da ortodoxia reformada
posterior sobre a predestinação. O próprio Calvino, porém, adota um enfoque distintamente
modesto em relação a essa doutrina, devotando apenas quatro capítulos à sua exposição
(III.xxi-xxiv). A predestinação é definida como “o eterno decreto de Deus pelo qual ele
determinou o que desejou fazer de cada homem. Pois ele não cria todos com a mesma
condição, mas ordena a vida eterna para alguns e a condenação eterna para outros”
(III.xxi.5). A predestinação é algo que deveria induzir um senso de temor em nós. O
decretum horribile
(III.xxiii.7) não significa um “horrível decreto”, como uma tradução grossei-ra, insensível
às nuances do latim, poderia sugerir; antes, significa um decreto que “inspira temor” ou
“terror”.
A própria localização da discussão de Calvino sobre a predestinação, na edição de 1559
das Institutas, é significativa. Ela segue sua exposição sobre a doutrina da graça. Somente
após os grandes temas dessa doutrina – tais como a justificação pela fé – haverem sido
expostos, Calvino volta-se à consideração da misteriosa e intrincada questão da
predestinação. Sob o aspecto da lógica, a predestinação deveria preceder tal análise; a
predestinação,

O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: A MENSAGEM

antes de tudo, estabelece os motivos da eleição de um indivíduo e, conseqüentemente, de


sua justificação e santificação. Contudo, Calvino deixa de se submeter aos cânones da
lógica. Por quê?
Para Calvino, a predestinação deve ser considerada dentro de seu contexto apropriado.
Ela não representa o produto da especulação humana, mas um mistério da revelação divina
(I.ii.2; III.xxi.1-2). Contudo, a predestinação foi revelada em um contexto específico e de
uma maneira específica. Essa maneira está relacionada ao próprio Jesus Cristo, que é o
29
“espelho no qual podemos vislumbrar o fato da nossa eleição” (III.xxiv. 5). O contexto se
relaciona com a eficácia da proclamação do evangelho. Por que alguns indivíduos
respondem ao evangelho e outros não? Esta falha de alguns em responder deve ser
creditada a alguma falta de eficácia, a alguma inadequação inerente na proclamação do
30
evangelho? Ou há alguma outra razão para tal divergência nas respostas?
Longe de ser uma especulação teológica árida e abstrata, a análise de Calvino sobre a
predestinação se inicia a partir de fatos empíricos. Alguns acreditam no evangelho, e outros
não. A função primordial da doutrina da predestinação é explicar porque alguns indivíduos
respondem ao evangelho, enquanto outros não o fazem. Isso representa uma explicação ex
post facto a respeito das particularidades das respostas humanas perante a graça. A doutrina
da predestinação de Calvino deve ser considerada como uma reflexão a posteriori sobre os
dados da experiência humana, interpretados à luz das Escrituras, em vez de algo que é
deduzido a priori, com base em idéias preconcebidas a respeito da onipotência divina. A
crença na predestinação não é uma questão de fé em si mesma, mas representa o resultado
final de uma reflexão, informada pelas Escrituras, a respeito dos efeitos da graça sobre os
indivíduos, à luz dos enigmas da experiência. A experiência ensina que Deus não toca todo
coração humano (III.xxiv.15). Por que não? Isso se deve a alguma falha ou omissão da
parte de Deus? À luz das Escrituras, Calvino sente-se capaz de negar a possibilidade de
qualquer deficiência ou inadequação por parte de Deus ou do evangelho: o padrão de
resposta ao evangelho que se observa reflete um mistério, pelo qual alguns são
predestinados a responder afirmativamente às promessas de Deus e, outros, a rejeitá-las.
“Alguns foram destinados à vida eterna, outros, à condenação eterna” (III.xxi.5).
Deve-se enfatizar que isso não representa uma inovação teológica. Calvino não está
introduzindo, na esfera da teologia cristã, uma noção até então desconhecida. A “moderna
escola agostiniana” (schola Augustiniana moderna), representada por teólogos medievais
proeminentes, tais como Gregório de Rimini e Hugolino de Orvieto, também havia
ensinado uma doutrina de dupla predestinação absoluta – segundo a qual Deus destina
alguns para a vida eterna e a outros para a condenação eterna, sem que se faça qualquer
referência a seus méritos ou deméritos. Seus destinos repousam totalmente sobre a vontade
31
de Deus, em vez de repousar em suas individualidades. Na verdade, é provável que Calvino tenha incorporado esse
aspecto do Agostinianismo medieval posterior, o qual guarda, certamente, uma misteriosa semelhança com seus próprios ensinamentos.

A salvação, assim, encontra-se fora do controle do indivíduo, que é impotente para


modificar a situação. Calvino ressalta que essa seletividade não é de forma alguma peculiar
à questão da salvação. Ele argumenta que em todas as áreas da vida somos obrigados a lidar
com o mistério do inexplicável. Por que alguns são mais afortunados do que outros na
vida? Por que uma pessoa possui dons intelectuais que são negados a outra? Mesmo a partir
do momento do nascimento, duas crianças podem se encontrar em circunstâncias
totalmente diferentes, sem que haja qualquer culpa de sua parte: uma delas pode ter um seio
repleto de leite para amamentá-la e, assim, ser nutrida, enquanto a outra pode sofrer de
32
subnutrição, pelo fato ter a seu dispor um seio praticamente seco para alimentá-la. Para
Calvino, a predestinação é apenas um exemplo adicional do mistério da existência humana,
por meio do qual alguns são inexplicavelmente favorecidos por dons materiais e intelectu-
ais, os quais são negados a outros. A predestinação não levanta qualquer dificuldade que já
não esteja presente em outras áreas da existência humana.
Essa idéia de predestinação não sugere que Deus esteja isento das noções comuns de
bondade, justiça e racionalidade? Embora Calvino repudie especificamente o conceito de
Deus como um poder absoluto e arbitrário, sua discussão sobre a predestinação deu origem
ao espectro de um Deus cujo relacionamento com sua criação é imprevisível e caprichoso e
cuja concepção e exercício do poder não estão ligados a qualquer lei ou ordem. Nesse
aspecto, Calvino se alinha com a discussão medieval posterior, particularmente em meio à
via moderna e à schola Augustiniana moderna, sobre esse tema controvertido que se refere
à relação de Deus com a ordem moral estabelecida. Deus não está, absolutamente,
submetido à lei, pois isso colocaria a lei acima de Deus, isto é, a criação – ou mesmo algo
externo a Deus, anterior à criação – acima do Criador. A vontade de Deus não é arbitrária,
de forma que alguém pudesse dizer que Deus está fora da lei;

O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: A MENSAGEM

antes, sua vontade é o alicerce das concepções de moralidade existentes (III.xxiii.2). Esses
enunciados concisos representam uma das afinidades mais óbvias de Calvino em relação à
posterior tradição voluntarista medieval.
Ao final, Calvino argumenta que se deve reconhecer que a predestinação é algo que se
encontra entre os inescrutáveis julgamentos de Deus (III.xxi.1). Nós não somos capazes de
saber o motivo pelo qual ele elege alguns e condena outros. Alguns acadêmicos sugeriram
que essa atitude pode revelar a influência de discussões medievais posteriores a respeito do
“poder absoluto de Deus” (potentia Dei absoluta), nas quais um Deus caprichoso e
arbitrário é perfeitamente livre para fazer o que lhe aprouver, sem ser obrigado a justificar
33
suas ações. Essa sugestão, porém, resulta de um grave equívoco sobre o papel da dialética
entre os dois poderes de Deus – o absoluto e o ordenado – no pensamento medieval
34
posterior. Deus deve ser livre para escolher quem ele desejar, do contrário sua liberdade
estaria comprometida por considerações externas, isto é, o Criador se tornaria submisso à
sua criação. No entanto, as decisões de Deus retratam sua sabedoria e justiça, as quais são
sustentadas, e não refutadas, pelo evento da predestinação (III.xxii.4; xxiii, 2).
Longe de representar uma premissa central do “sistema” teológico de Calvino (sendo o
termo “sistema”, de qualquer modo, um tanto inadequado), a predestinação é, portanto,
uma doutrina secundária voltada à explicação de um aspecto complexo, a respeito das
conseqüências da proclamação do evangelho da graça. Contudo, à medida que os
seguidores de Calvino buscaram estender e remodelar seu pensamento, à luz de novos
avanços intelectuais, talvez fosse inevitável (deve-se perdoar se isso se enquadra em uma
forma de falar potencialmente predestinatória) que pudessem ocorrer alterações em sua
estruturação da teologia cristã.

Livro IV
O último livro das Institutas se concentra em uma série de temas relacionados à Igreja.
Ao tratar dos “meios e subsídios externos pelos quais Deus nos chama à comunhão com
Cristo, seu Filho, e nela nos mantém,” Calvino é capaz de escrever tanto da perspectiva de
sua significativa experiência prática como organizador, como a partir de sua substancial
análise teórica sobre a natureza da Igreja, seus ministérios e sacramentos. Por toda essa
análise, a sombra da abstração é evitada. Calvino se mostra disposto a entrar em detalhes
concretos e a evitar a tentação de cair em abstrações generalizadas. Na essência, as
Institutas são um manual voltado à plantação, crescimento, organização e disciplina da
Igreja. As Institutas começam com uma vigorosa análise teológica e terminam com a
aplicação dessa análise às realidades do dia-a-dia do ser humano.
Por que uma Igreja é necessária – entenda-se Igreja como instituição e, não como o
templo – em primeiro lugar? Da mesma forma que Deus redimiu os seres humanos em
meio ao processo histórico, através da encarnação, assim ele os santifica, em meio a esse
mesmo processo, através do estabelecimento de uma instituição dedicada a essa finalidade.
Deus utiliza certos meios materiais determinados para alcançar a salvação de seus eleitos;
embora ele não esteja, de forma alguma, vinculado a esses meios, ele normalmente trabalha
através deles. A igreja é, portanto, identificada como uma organização de origem divina por
meio da qual Deus efetiva a santificação de seu povo. Calvino confirma essa doutrina
suprema da Igreja através da citação de duas grandes máximas eclesiológicas de Cipriano
de Cartago: “Você não pode ter Deus como Pai, a menos que tenha a igreja como mãe”;
“fora da Igreja não há salvação, nem qualquer esperança de perdão dos pecados” (IV.i.4).
Calvino prossegue, então, delineando uma importante distinção. De um lado, a Igreja
representa a comunidade dos cristãos, um grupo concreto. Por outro lado, ela também
representa a comunhão dos santos e a companhia dos eleitos – uma entidade invisível.
Nesse aspecto invisível, a Igreja é a assembléia dos eleitos, conhecida apenas por Deus; em
seu lado visível, ela é a comunidade dos fiéis nesse mundo (IV.i.7). A primeira é formada
apenas pelos eleitos; a última inclui tanto bons quanto maus, tanto os eleitos quanto os
reprovados. A primeira é objeto de fé e esperança; a última, de experiência atual. Calvino
ressalta que todo cristão é obrigado a honrar e a permanecer comprometido com a Igreja
visível, apesar das deficiências que esta pos-sua, por causa da Igreja invisível, o verdadeiro
corpo de Cristo. Ainda assim, há somente uma Igreja, uma única entidade que tem Jesus
como cabeça.
A distinção entre a Igreja visível e a invisível apresenta duas conseqüências importantes.
Em primeiro lugar, presume-se que a Igreja visível inclua tanto os eleitos quanto os
reprovados. Agostinho de Hipona defendia este ponto contra os donatistas, baseando-se na
parábola do joio e do grão de mostarda (Mateus 13:24-31). Encontra-se além da
competência humana discernir a diferença entre os eleitos e os reprovados, comparando as
qualidades humanas ao favor divino (de qualquer maneira, a doutrina da predestinação de
Calvino impede tais razões para a eleição). Em segundo lugar, porém, é necessário
questionarmos quais das várias Igrejas visíveis correspondem à Igreja invisível. Calvino
O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: A MENSAGEM

reconhece, portanto, a necessidade de articulação de critérios objetivos, pelos quais a


autenticidade de uma determinada Igreja possa ser julgada. Dois desses critérios são
estipulados: “Onde quer que vejamos a Palavra de Deus sen-do pregada de forma plena e
ouvida e os sacramentos ministrados segundo o modelo de Cristo, não podemos duvidar
que exista uma Igreja” (IV.i.9). Portanto, não é a qualidade de seus membros, mas a
presença dos meios autorizados de graça, que constitui a verdadeira Igreja. Curiosamente,
Calvino não segue Bucero no sentido de tornar a disciplina um sinal da Igreja verdadeira;
embora intensamente preocupado em relação à necessidade da disciplina amorosa dos
membros da Igreja (IV.xii.1), Calvino não a considera como algo essencial para a definição
ou avaliação das credenciais de uma Igreja.
Enquanto Lutero considerava a organização da Igreja como uma questão de contingência
histórica, não necessitando de tratamento teológico, Calvino sustentava que um padrão
específico de organização eclesiástica era prescrito pelas Escrituras. Curiosamente, a lista
de funções eclesiásticas (IV.iii.3; IV.iii.4; IV.iv. 1) apresentadas por Calvino nas Institutas
não é coincidente e deixa em dúvida tanto o status dos anciãos (ou presbíteros) quanto o
número de ministérios.
A Igreja é dotada de “poder espiritual” (IV.viii.1), embora Calvino seja cauteloso para
não explicar isso de uma forma que possa sugerir uma comparação com o direito canônico
da Igreja medieval. Além disso, sua autoridade espiritual não interfere na autoridade civil.
Observe que o magistrado nunca é submisso à Igreja, um aspecto importante em refutar a
sugestão bizarra de que Calvino desenvolveu o alicerce teórico para uma ditadura
teocrática. Os dois poderes – o secular e o religioso – devem ser considerados como
teoricamente complementares. Na prática, no entanto, seu relacionamento era um tanto
mais turbulento.
Havendo definido anteriormente a ministração dos sacramentos como sendo um dos
“sinais da Igreja” (notae ecclesiae), Calvino volta-se, agora, à consideração dos mesmos
(IV.xiv-xix). A igreja medieval havia definido sete sacramentos: batismo, eucaristia,
ordenação, penitência, crisma, casamento e extrema unção. Os Reformadores os reduziram
a dois – batismo e eucaristia – insistindo em que os verdadeiros sacramentos do evangelho
eram aqueles ordenados pelo próprio Cristo (embora os próprios Reformadores tivessem a
tendência de se referir ao sacramento da eucaristia como “ação de graças”, “a ceia do
Senhor” ou, simplesmente “a ceia”, devemos seguir a tendência moderna geral nesse
aspecto e empregar o termo “eucaristia”, – que significa, literalmente, “ação de graças”.
Não há qualquer aspecto teoló
gico nessa opção, a qual pretende alcançar uma maior clareza e felicidade de expressão do
que seria, de outra forma, possível).
Calvino oferece duas definições de sacramento, como sendo “um símbolo exterior
através do qual o Senhor sela, em nossa consciência, as suas promessas de boa vontade em
relação a nós, para sustentar a fraqueza de nossa fé” e como sendo “um sinal visível de algo
sagrado, ou a forma visível de uma graça invisível” (IV.xiv.1). A primeira definição
pertence ao próprio Calvino; a segunda é creditada a Agostinho (embora Calvino sugira que
a sua concisão conduza à obscuridade). Insistindo no aspecto de que o sacramento deve se
basear em “uma promessa e um mandamento do Senhor” (IV.xix.5), ele rejeitou cinco dos
sete sacramentos tradicionalmente aceitos pela Igreja Católica (IV.xix.I). Somente o
batismo e a eucaristia foram mantidos.
A década de 1520 assistiu a uma grave controvérsia entre Lutero e Zwínglio a respeito
35
da natureza dos sacramentos. Lutero defendia que o pão e o vinho da eucaristia eram,
realmente, o corpo e o sangue de Jesus Cristo; Zwínglio, por outro lado, dizia que estes
eram somente símbolos do corpo e sangue de Cristo. Assim, Lutero alegava que o
sacramento em si era equivalente àquilo que ele representava, enquanto Zwínglio defendia
que o sacramento em si e o que este representava eram duas coisas totalmente distintas.
Essas duas posições irreconciliáveis podem ser tidas como aquelas que marcaram os limites
dos debates da Reforma a respeito da natureza dos sacramentos.
Pode-se considerar que Calvino ocupava uma posição praticamente intermediária entre
esses dois extremos. Nos sacramentos, ele argumentava, há uma conexão tão próxima entre
o símbolo sacramental e o dom espiritual que este simboliza, que podemos “com facilidade
passar de um para o outro”. O sacramento é visível e concreto, enquanto aquilo que ele
representa é invisível e espiritual – contudo, a conexão entre o sinal e seu significado é tão
íntima que se admite aplicar um ao outro (IV.xvii.21). Aquilo que o sacramento significa é
afetado por seu sinal (IV.xvii.3). A insistência de Calvino acerca do paralelismo ou da
coincidência – mas não da identidade, que ele considera ser uma idéia católica
insustentável – em relação ao sinal e seu efeito repousa, em parte, em uma análise do poder
dos símbolos e, em parte, em sua visão da sabedoria divina: Iria Deus nos oferecer um
símbolo sem substância (IV.xvii.10)? O símbolo e aquilo que este significa são coisas
distintas (IV.xvii.34). Contudo, po-demos perceber em ação, novamente, nesse ponto, a
fórmula cristologicamente centrada de Calvino distincto sed non separatio; o sinal e aquilo
que este significa devem ser distinguidos, embora não devam ser separados.

O CRISTIANISMO SEGUNDO CALVINO: A MENSAGEM

É possível considerar a posição de Calvino como uma tentativa de reconciliar as visões


de Zwínglio e Lutero, um exercício de diplomacia eclesiástica, em um momento oportuno
na história da Reforma. Na realidade, há pouca evidência para embasar essa sugestão; a
teologia de Calvino sobre os sacramentos é consistente com sua perspectiva geral e não
pode ser considerada como um acordo alcançado por razões políticas.
Sua visão sobre o batismo pode ser vista como uma combinação de elementos de
Zwínglio e Lutero. Acenando na direção de Zwínglio, Calvino alega que o batismo é uma
demonstração pública de nossa aliança com Deus (IV.xv.1). Da mesma forma que Zwínglio
havia declarado que os sacramentos eram, primordialmente, eventos eclesiásticos que
serviam para demonstrar a lealdade dos fiéis perante a Igreja e a sociedade, Calvino
também enfatiza a função declaratória do sacramento. No entanto, ele incorpora a ênfase
tipicamente luterana a respeito do batismo, como um sinal da remissão dos pecados e da
nova vida do fiel em Jesus Cristo (IV.xv. 5).
Em comum com todos os magistrais Reformadores, Calvino sustenta a adequação do
batismo infantil. Calvino argumenta que a prática é uma autêntica tradição da Igreja
primitiva, e não uma evolução medieval posterior (IV.xvi.8). Zwínglio havia justificado a
prática através do apelo ao rito judaico da circuncisão. Zwínglio argumentou que, por meio
desse rito e através de seu sinal exterior, demonstrava-se que os meninos eram membros da
comunidade da aliança. De forma semelhante, o batismo representa uma marca de que a
36
criança pertence à Igreja, à comunidade da nova aliança. A crescente influência dos
anabatistas, que Calvino havia experimentado em primeira mão durante seu período em
Estrasburgo, demonstrava a importância de se justificar a prática do batismo infantil, a qual
era veementemente rejeitada pelos anabatistas. Assim, Calvino reitera e amplia a tese de
Zwínglio sobre a justificação do batismo infantil, com base no conceito da aliança: se as
crianças cristãs não puderem ser batizadas, elas ficarão em desvantagem em relação às
crianças judias, as quais eram pública e externamente seladas e introduzidas na comunidade
da aliança através da circuncisão (IV.xvi.6). Portanto, Calvino argumenta que as crianças
deveriam ser batizadas, não lhes sendo negados os benefícios daí decorrentes.
Na sua discussão sobre a eucaristia, Calvino distingue três aspectos da verdade espiritual
que é apresentada (monstretur) e oferecida por meio dos elementos visíveis do pão e do
vinho. O sentido ou significado são as promessas divinas que estão incorporadas ou
incluídas no próprio sinal; os fiéis são certificados, particularmente através das palavras do
sacramento, de que o corpo e o sangue de Jesus Cristo foram partido e vertido por sua
causa. O sacramento “confirma a promessa na qual Jesus Cristo declara que a sua carne é,
na verdade, alimento e que seu sangue é, de fato, bebida e que eles irão nos nutrir com a
37
vida eterna” (IV.xvii.4). A substância ou a matéria da eucaristia diz respeito à nossa
aceitação do corpo de Cristo: Deus nos comunica aquilo que ele nos prometeu. Ao receber
o sinal do corpo de Cristo (em outras palavras, o pão), estamos, simultaneamente,
recebendo o próprio corpo de Cristo (IV.xvii.10). Mais uma vez, encontramos o princípio
distinctio sed non separatio em operação; o sinal e aquilo que este significa podem ser
coisas diferentes – mas são inseparáveis. Por fim, a virtude ou efeito da eucaristia encontra-
se nos beneficia Christi – os benefícios conquistados para o cristão, por Cristo, através de
sua obediência. O cristão participa pela fé de todos os benefícios de Cristo, tais como a
redenção, a justiça e a vida eterna (IV.xvii.11).
Isto representa, de uma forma bastante sintética, o conteúdo da mais relevante obra da
teologia cristã surgida durante a Reforma do século 16. Sua característica lucidez, aliada à
sua abrangência, concedeu-lhe uma enorme vantagem em relação a suas oponentes, tanto
luteranas quanto católicas. Ela continua sendo, para a teologia cristã moderna, um recurso
valioso e um parceiro para diálogo. Pelo fato da importância histórica de Calvino deverse,
em parte, às suas idéias e ao modo como ele as apresentou e difundiu, pode-se sugerir
também que estas idéias sejam relevantes para os historiadores. Isso pode ser exemplificado
ao se considerar a ocorrência de uma das grandes invasões de idéias, que se verificou à
medida que o pensamento religioso de Calvino começou a exercer uma enorme influência
sobre sua terra natal – a França.

A INVASÃO DE IDÉIAS: CALVINO E A FRANÇA


Após seu retorno quase triunfante a Genebra, em 1541, Calvino parece nunca haver
retornado do exílio à sua terra natal, a França. Embora, como vimos anteriormente, um
certo Jean Cauvin tenha sido processado, em Noyon, no período de 1551 a 1552, por
1
comportamento imoral (ele manteve, em sua casa, une femme de mauvaise gouvernement),
é óbvio que o Calvino a respeito do qual a nossa narrativa trata estava, por outro lado,
envolvido com a crise política de Genebra e com o desgaste da posição que ocupava na
cidade, naquela época. Contudo, a derrota total da facção perrinista – célebre, diga-se de
passagem, por suas atitudes contrárias à França – na revolução de abril de 1555 concedeu a
Calvino e a seus companheiros uma nova liberdade de ação. Havendo conquistado Genebra
em prol da causa da Reforma, seus olhos voltaram-se em direção à França. Em abril de
1555, sob circunstâncias altamente confidenciais, a Venerável Companhia de Pastores deu
início a um processo deliberado e sistemático de infiltração de seus membros na França. As
2
sementes das Guerras de religião da França haviam sido lançadas.
O presente capítulo trata das origens e da evolução da influência de Calvino sobre a
Igreja francesa. Essa é, sob muitos aspectos, uma história incrível, que fortalece a tese dos
que comparariam Genebra a Moscou como símbolos de uma ideologia revolucionária.
Nossa história deve começar, porém, com os acontecimentos que representaram os
alicerces da influência de Calvino em sua terra natal.

A EXPANSÃO DA INFLUÊNCIA DE CALVINO NA FRANÇA


Na introdução dessa obra, fizemos um breve esboço sobre a situação da vida religiosa na
França, às vésperas da Reforma. A necessidade de uma re-forma era evidente. Essa
reforma, porém, não devia ser concebida somente em termos espirituais ou religiosos.
Fatores econômicos e sociais conspiraram para a necessidade de mudança, criando
circunstâncias propícias ao surgimento de qualquer movimento revolucionário que se
mostrasse capaz de oferecer uma mudança tanto social e econômica quanto religiosa. Os
acontecimentos ocorridos na diocese de Meaux, nas décadas de 1520 e 1530, apontam para
3
uma ligação entre a espiritualidade evangélica e uma reforma sócio-econômi-ca à medida
que o clero católico se distanciava, progressivamente, das necessidades e dos interesses da
população rural. A Igreja Católica era vista como uma instituição excessivamente envolvida
com as preocupações da elite para que pudesse contribuir com os programas de educação,
assistência social e sanitária que eram, em larga escala, tidos como essenciais pela
população leiga esclarecida – a qual apresentava cada vez mais uma tendência a incorporar
perspectivas religiosas heterodoxas. Aqueles que fundaram faculdades municipais na
cidade de Paris (as quais competiam, frente a frente, com as escolas católicas) e hospitais
para a assistência da população carente eram normalmente oriundos desse novo núcleo de
4
ativismo leigo.
Como indicam sucessivas pesquisas sobre a vida urbana na França nas décadas de 1520
e 1530, um sentimento fundamental de inquietação pode ser detectado em meio à
5
emergente classe da bourgeoisie letrada. O interesse parisiense, tanto em relação ao
Humanismo quanto ao “Luteranismo” – um termo que, da maneira como era empregado
pelas autoridades parisienses, tornara-se muito amplo para designar apenas as perspectivas
de Lutero – aponta para o surgimento de uma cultura urbana voltada à classe leiga alfa-
betizada, a qual se baseava amplamente em livros impressos. Surgiu uma combinação de
forças, informada pelos novos ensinamentos do Humanismo e pelo questionamento
religioso de Lutero. Em Paris e em outros centros intelectuais da França havia uma
crescente tendência a se adotar uma atitude ao mesmo tempo cética e crítica tanto em
relação às declarações doutrinárias quanto às manifestações institucionais da Igreja
Católica.
A INVASÃO DE IDÉIAS: CALVINO E A FRANÇA 205

Seria difícil que Calvino não tivesse consciência de mudanças tão fundamentais na
sociedade francesa. Ele não apenas havia vivido em Paris e em várias outras cidades
francesas; ele havia construído uma rede de contatos pessoais em cidades como
Angoulême, Bourges, Orleans, Paris e Poitiers. Sua fase como pastor de uma congregação
de refugiados franceses em Estrasburgo (1538-41) teria mantido Calvino a par do que
ocorria na França e em seus assuntos políticos. A própria cidade de Genebra funcionou
como um observatório a partir do qual ele pôde acompanhar o desenrolar dos
acontecimentos na França com a ajuda de correspondentes, através de uma crescente
6
multidão de imigrantes franceses que buscaram refúgio em Genebra, na década de 1550 e
também por meio de contatos pessoais com mercadores franceses que se aproveitavam das
crescentes ligações comerciais entre Genebra e importantes cidades francesas, tais como
7
Lion, a partir da década de 1540 em diante.
É importante observar que o movimento evangélico, o qual alcançou a princípio uma
considerável adesão na França, é anterior a Calvino e foi mais influenciado por Lutero e
Zwínglio. L’oraison de Jésuchrist (1525), um manual devocional associado ao grupo
reformista de Meaux, inclui o prefácio de Lutero à epístola aos Romanos e representa uma
das exposições mais claras de seu programa de reforma e suas implicações. Le livre de
vraye et parfaicte oraison (1528), um manual devocional que é, de forma evidente,
inofensivamente católico em sua espiritualidade, incluía uma série de escritos de Lutero. O
panfleto devocional de Claude d’Epences, Consolation en adversité (1547), dedicado a
Marguerite da França, revelou-se, a um olhar mais atento, uma tradução de uma das obras
de Lutero. Ainda que generalizações sejam perigosas, é razoável sugerir que o movimento
evangélico francês, até cerca de 1541, não viu qualquer contradição irreconciliável entre o
Luteranismo e o Catolicismo. Mesmo rejeitando a autoridade papal, esse movimento não
via qualquer necessidade de romper com a Igreja Católica de seus dias. Calvino ainda teria
8
que deixar sua marca no movimento evangélico francês.
A extensão do envolvimento de Calvino nas questões francesas pode ser julgada por
suas iniciativas diplomáticas na década de 1530 e início da década de 1540. Tirando o
maior proveito possível da aliança entre Genebra e Berna, Calvino pressionou a cidade
suíça a lançar mão da influência que pudesse em relação às
9

autoridades francesas para que estas fossem tolerantes para com os évangéliques.Embora
Francisco I estivesse praticamente isolado do protestantismo nessa fase, de uma forma
permanente, necessitava, contudo, da simpatia política da parte de certos cantões suíços,
especialmente de Berna. A tensão aparentemente permanente entre a França e Sabóia, por
um lado, e entre Francisco I e Carlos V, Imperador do Sacro Império Romano, do outro,
tornaram imperativo que a França adquirisse o apoio político dos cantões do Noroeste da
10
Suíça. A estratégia de Calvino era, portanto, realista, mesmo que seus resultados não fossem impressionantes. Entretanto, suas atividades diplomáticas são
totalmente encobertas pela sua influência sobre a França, através de suas obras.
A contribuição mais importante de Calvino para a Reforma na França deu-se ao nível
das idéias e de sua aplicação. Sem Calvino, o Protestantismo francês não teria passado de
uma seita incipiente com tendência a se subdividir em várias facções e inclinada à
introspecção e à dissensão interna, a qual não possuiria qualquer poder político de fato. A
princípio, Calvino foi capaz de proporcionar ao movimento aconselhamento, um senso de
direção e, sobretudo, inspiração. Podemos encontrá-lo escrevendo aos évangéliques em
Rouen, para aconselhálos, no ano de 1540; para os entusiasmar, em Poitiers, naquele
11
mesmo ano; estabelecendo contato com os Vaudois de Dauphiné e de Provença, em 1541;
12
advertindo os évangéliques de Lion acerca de uma provável ameaça, em 1542.
Uma reviravolta crucial é assinalada pela publicação da edição francesa das Institutas,
em 1541. De súbito, doutrinas reformistas radicais, coerentemente expressas e
detalhadamente justificadas, estavam disponíveis na França, na própria língua nacional. É
como se alguém houvesse tocado o alarme de emergência. Em 1º de julho de 1542, o
parlement parisiense determinou que todas as obras que contivessem doutrinas
heterodoxas, em especial as Institutas de Calvino, deveriam ser submetidas às autoridades
13
em um prazo de três dias. No mesmo ano, um mártir morreu em Rouen, citando um trecho
14
do prefácio da edição de 1541 das Institutas. A fiscalização das livrarias tornou-se um
ponto importante na tentativa oficial de suprimir o crescente movimento heterodoxo. No
ano seguinte, o corpo docente da faculdade de teologia, após as investigações devidas,
elaborou uma lista de sessenta e cinco títulos, vinte e dois deles em latim e quarenta e três
em francês (embora dois desses ítens sejam equivocadamente duplicados, resultando em
um total de quarenta e um títulos), os quais deviam ser imediatamente censurados. Dos
trinta e seis textos que são passíveis de serem identificados e datados com alguma
15
probabilidade, vinte e três foram impressos em Gene-bra. As Institutas de Calvino eram
vistas como a força motriz do ataque de Genebra à Igreja da França, que se deu por meio de
livros. Em 23 de junho de 1545, uma lista ampliada de obras censuradas foi publicada, com
a plena autorização do parlement. Dos seus 121 títulos em francês, quase a metade
A INVASÃO DE IDÉIAS: CALVINO E A FRANÇA
Figura 9.1 – Livros publicados em Genebra, 1536-65, demonstrados pelo número de novos títulos
lançados por ano.

foi impressa em Genebra. A reação dos livreiros de Paris foi imediata: eles protestavam,
dizendo que ficariam arruinados se fossem proibidos de vender tais livros. Parece que havia
um mercado bastante expressivo para as obras que eram consideradas heréticas, pelo corpo
docente da faculdade de teologia – uma evidência adicional da importância de uma classe
leiga próspera e culta, para a promoção das idéias da Reforma calvinista.
Contudo, Paris continuava a ser inundada pela literatura vinda de Gene-bra. Uma lista
ampliada de obras censuradas surgiu em 1551, adicionando dezoito novos títulos (treze dos
quais eram provenientes de Genebra). No entanto, a produção total das gráficas genebrinas
excedia, em grande escala,
o número de obras que eram censuradas. Sem ter acesso aos catálogos dos editores de
Genebra, tais como Girard ou Crespin, as autoridades francesas eram incapazes de conter a
inundação de material escrito em francês, que propagava os ideais da Reforma de Calvino.
Durante o período de 1546 a 1551, por exemplo, surgiram, no mínimo, doze obras em
francês da autoria de Calvino que não constam da lista de obras censuradas de 1551. Além
do mais, a tentativa de regulamentar a venda de livros, excluindo os que eram provenientes
de Genebra, somente forçou o mercado negro. Até que as Guerras de Religião finalmente
interrompessem a expansão da indústria editorial
Figura 9.2 – Número de pessoas acusadas de heresia conduzidas ao parlament de Toulouse, 1500-
60

de Genebra no mercado religioso francês, nos anos de 1565 a 1580, não era difícil de se
16
adquirir tais obras em Paris. Laurent de Normandie, livreiro e amigo de Calvino, descobriu
que o comércio de livros contrabandeados era tão lucrativo que imigrou para Genebra para
que pudesse publicar tais livros, em vez de apenas vendê-los. Sua edição da obra Saltério,
de Beza, foi uma de suas produções mais famosas. Em 1559, um membro do parlement
parisiense foi submetido a julgamento por heresia; ele admitiu que suas idéias religiosas
não ortodoxas derivavam de leitura “de obras de Calvino e de outros autores, trazidas por
mascates que iam e viam, de um país ao outro”. As Guerras de Religião tornaram esse
tráfico problemático a partir de 1565; porém, àquela altura, Calvino já havia falecido e o
estrago já estava feito.
Para ilustrar a crescente infiltração das idéias calvinistas, pode-se verificar os registros
do parlement de Toulouse, responsável pela região de Languedoc. Dos 1.074 casos de
heresia trazidos perante esse órgão durante o período de 1500 a 1560, uma análise feita
17
década por década revela o padrão demonstrado na Figura 9.2. O pico foi atingido em
1554, com 208 indivíduos acusados por heresia. O rápido crescimento, evidente na década
final, aponta para a influência calvinista que alcançava novas projeções, um modelo que se
repetiu por toda a França.

A INVASÃO DE IDÉIAS: CALVINO E A FRANÇA

Quais setores da sociedade francesa foram afetados pelas idéias e valores de Calvino, no
período de 1540 a 1555? É evidente que seu apoio era consistentemente maior entre os
artesãos. Oitocentos e dezessete indivíduos foram acusados por heresia em Montpelier, em
1560, dos quais quinhentos e sessenta e um forneceram detalhes acerca de suas profissões.
Trezentos e oitenta e sete deles (sessenta e nove por cento) eram artesãos. O mesmo padrão
18
surge em Bézier, em 1568. Dos refugiados franceses que buscavam asilo em Genebra no
19
período de 1549 a 1560, 68,5 por cento eram artesãos. O calvinismo era, a princípio, a
religion des petits gens (Henri Hauser). Por que o calvinismo possuía tamanho apelo para
alguns dos setores da classe média francesa? Em parte, a resposta se encontra no fato do
Calvinismo conferir dignidade religiosa a valores sociais e atividades produtivas que eram
profundamente relacionadas com os setores mais dinâmicos da classe média pertencentes à
sociedade francesa.
Em contraste, a influência de Calvino entre a aristocracia era, a princípio, limitada. A
potencial tendência antiaristocrática da ética de sua obra, aliada à antipatia de Genebra em
20
relação à aristocracia em geral, foi, provavelmente, um fator que contribuiu para essa
polarização social. Adicionalmente, fatores como tradição, lealdade e ligações familiares (a
maioria dos bispos franceses eram membros da aristocracia) e um desprezo comum por les
petits gens combinaram-se para reforçar o preconceito inicial da aristocracia contra o
Calvinismo. Da mesma forma que a Revolução Francesa teria seus heróis dentre a
aristocracia e a Revolução Bolchevique teria seus adeptos dentre a burguesia, também
Calvino não se encontrava totalmente sem o apoio da aristocracia; até 1555, porém, esse
apoio não foi significativo em sua abrangência.
Finalmente, deve-se observar que o Calvinismo parece não ter tido praticamente
influência alguma sobre a classe camponesa. A despeito da tendência potencialmente
antiaristocrática do movimento, o movimento falhou em obter um progresso significativo
entre les paysans. Pode-se adiantar uma série de motivos para explicar essa observação. O
Calvinismo possuía exigências intelectuais as quais, ainda que modestas, estavam além do
alcance da classe camponesa analfabeta. O movimento apoiava idéias e valores que eram
estranhos a esse grupo social. Representava, até certo ponto, uma “religião de livros”, o que
reduzia seu apelo diante de uma classe camponesa iletrada, que não tinha condições de
adquirir livros e, muito menos, de lê-los. De qualquer forma, a população rural conhecia
pouco o francês, a língua que
era usada pelos calvinistas em seus esforços evangelísticos; dialetos locais ainda
dominavam o mapa lingüístico da França.
Porém, há um outro aspecto que merece atenção. A religião popular da classe
camponesa da França era firmemente baseada nos ritmos, hábitos e preocupações da vida
21
rural. Um certo grau de flexibilidade, por parte da espiritualidade católica, permitiu que os
ensinamentos da Igreja se acomodassem a tudo isso, com cerimônias voltadas para os
cuidados e preocupações peculiares a uma população de camponeses. O Calvinismo não
dispunha de tempo para essas generosas acomodações, as quais o movimento considerava
como uma espécie de mistura de superstição e idolatria. Seu rigor religioso em relação a
essas questões tornou o movimento destituído de apelo espiritual em relação à classe
camponesa. Essa parcela da população manteria sua aliança tradicional à Igreja Católica e a
suas crenças.
A influência de Calvino sobre a França nos anos de 1536 a 1555 é facilmente exagerada;
não há dúvidas de que ele possuía muitos admiradores, porém era capaz de exercer pouca
influência nos corredores do poder. Por exemplo, até a década de 1550 seu círculo de
correspondentes na França não incluía membro algum que pertencesse aos detentores de
poder da aristocracia. A potencial influência do movimento evangélico foi mitigada pelo
fenômeno do Nicodemitismo, denunciado por Calvino em 1543 e 1544. Embora o
movimento evangélico fosse amplamente difundido, especialmente entre as cidades do Sul,
havia, entre aqueles simpatizantes do movimento, uma acentuada tendência de se
comportar segundo as práticas católicas. Temendo a reação das autoridades católicas, as
reuniões evangélicas se davam de forma clandestina, nas casas, freqüentemente à noite
(dando margem, conseqüentemente, à comparação com Nicodemus, que visitou Jesus à
22
noite por temor do que poderiam dizer os representantes da antiga religião: João 3:1-2).
Contudo, como torna evidente a reação oficial à edição de 1541 das Institutas, mais e mais
adeptos da Reforma procuravam por Calvino para receber orientação e liderança. Os grupos
evangélicos franceses não poderiam esperar continuar indefinidamente sem pastores,
sacramentos ou estruturas eclesiais. O massacre dos Vaudois (Valdenses), em 1545, e o
martírio de cinco estudantes evangélicos, em Lion (1551), reforçados pelo surgimento da
obra de Jean Crespin, Livre des Martyrs (Genebra, 1554), deixaram claro o custo e as
dificuldades de ser um evangélico em uma França progressivamente hostil. Com a
consolidação da base do poder de Calvino em

A INVASÃO DE IDÉIAS: CALVINO E A FRANÇA

Genebra, no ano de 1555, estava aberto o caminho para uma maneira mais ambiciosa de se
conquistar uma influência adicional, sobre a Igreja francesa: a infiltração de agentes para
apoiar as igrejas existentes e para plantar novas igrejas. A invasão de idéias estava para ser
complementada por uma invasão de homens, vindos de Genebra.

OS HOMENS VINDOS DE GENEBRA


Em abril de 1555, os registros da Venerável Companhia de Pastores, pela primeira vez,
continham referências a agentes que foram enviados de Genebra para evangelizar territórios
estrangeiros. A anotação de 22 de abril registra que Jehan Vernou e Jehan Lauvergeat
haviam sido enviados ao Piemonte, uma área certa vez associada aos hereges Valdenses e
23
que apresentava possibilidades de ser um solo fértil para o Calvinismo. Rapidamente
outros se seguiram, em resposta aos pedidos de ajuda provenientes das congregações
calvinistas francesas. O primeiro agente despachado para a França foi enviado à Poitiers,
em resposta a um apelo vindo da congregação daquela cidade.
O segredo era essencial para toda aquela operação, tanto em Genebra quanto na França.
Abrigos, providos de esconderijos, foram instalados nos vales profundos dos Alpes
Dauphinoises, distantes um do outro um dia de jornada. Uma rede secreta, semelhante
àquela utilizada pela Resistência Francesa durante a II Guerra Mundial, permitia que os
homens vindos de Gene-bra cruzassem a obscura fronteira com a França. A Companhia de
Pastores empenhou-se ao máximo para manter segredo absoluto, até mesmo a ponto de
encobrir suas operações do conhecimento do Conselho municipal, que era, em tese,
onisciente. Até 1557, porém, a Companhia de Pastores conscientizou-se de que não poderia
esperar manter suas atividades no exterior indefinidamente clandestinas; posteriormente,
naquele mesmo ano, Calvino compareceu perante o Conselho municipal para explicar a
situação e requerer permissão para enviar outros agentes. Evidentemente, o conselho estava
ciente do sério risco que essas atividades representavam para a cidade: se existisse a
suposição de que o próprio governo de Genebra estava organizando a infiltração de
ativistas religiosos, este poderia ser acusado de atividade subversiva contra seu maior
vizinho, com conseqüências imprevisíveis (embora, provavelmente, desagradáveis).
Contudo, o conselho concordou com a manutenção clandestina daquela política, desde que
ele não fosse, de forma alguma, associado à mesma.
A prudência dessa decisão tornou-se evidente em janeiro de 1561. Chegou a Genebra um
mensageiro, vindo da corte de Carlos IX, o novo rei da França. O conteúdo de sua
mensagem para o Conselho municipal dizia que o rei havia descoberto que os recentes
distúrbios, ocorridos na França, tinham ligações com pregadores enviados de Genebra.
Parecia que os genebrinos haviam adotado uma sistemática política de subversão da
autoridade na França. Ele exigia que os agentes de Genebra fossem removidos e que não
24
fos-sem mais enviados, sob condição alguma. O conselho respondeu que eles não haviam
enviado tais indivíduos para a França; na verdade, havia sido a Companhia de Pastores que
tinha feito tal coisa, porém o Conselho municipal não poderia aceitar a responsabilidade
pelas ações de uma organização eclesiástica privada. Uma séria ruptura entre Genebra e
França foi, desse modo, evitada, através de algo que não passava de uma ficção.
Genebra pode haver fornecido pastores para a França; no entanto, espe-rava-se que as
igrejas locais providenciassem o restante do aparato eclesial estabelecido por Genebra, tal
como o Consistório. Em 1555 uma igreja calvinista foi instituída em Paris, provida de um
Consistório de diáconos e presbíteros. As églises plantées – que não passavam de grupos de
estudos religiosos, os quais se reuniam para oração, louvor e leitura da Bíblia – foram
sendo gradualmente substituídas pelas mais estruturadas églises dressées, durante os anos
de 1555 a 1562. Os pequenos grupos que haviam brotado por toda a França, encontrando-se
regularmente para oração e mútua edificação, foram gradualmente transformados em
organizações disciplinadas, com estruturas eclesiásticas regulares. A estrutura do
Consistório tor-nou-se obrigatória em 1557 por exigência da Companhia de Pastores.
Poitiers instituiu um Consistório em 1555; Orleans, em 1557; La Rochelle, em 1558 e
Nimes, em 1561. No início do célebre ano de 1562, a quantidade de Consistórios na França
25
havia subido para 1785. Genebra estava preparada para fornecer pastores para tais
congregações, mas os presbíteros e diáconos deveriam ser providenciados localmente.
Por fim, Genebra provou-se incapaz de fornecer o vasto número de pastores requisitados
pelas florescentes igrejas calvinistas da França. As normas de Calvino para a escolha de
pastores faziam pesadas exigências educacionais, o que restringia seriamente o número dos
qualificados para ocuparem tais posições. Na prática, os pastores tendiam a ser burgueses,
de língua francesa, provenientes de locais fora de Genebra – um fato que os levava a serem
vistos como estrangeiros por parte daqueles que eram nascidos em
A INVASÃO DE IDÉIAS: CALVINO E A FRANÇA
Genebra. Em 1564, o ano da morte de Calvino, a própria Genebra possuía apenas vinte e
dois desses pastores. A Academia de Genebra, fundada para
26
o treinamento de pastores segundo os altos padrões exigidos por Calvino, foi
inaugurada em 5 de junho de 1559, muito tarde para atender à escalada da demanda por
pastores treinados e aprovados por Genebra. Na verdade, Calvino havia criado uma
demanda que ele era incapaz de suprir.
Um estudo sobre oitenta e oito agentes enviados em 105 missões durante
b. o período de 1555 a 1563 fornece importantes impressões a respeito dos sucessos
iniciais do Calvinismo, confirmando a idéia de que o movimento possuía um apelo especial
em relação à classe média urbana. Seis deles fo-ram enviados a Poitiers, cinco a Paris e
Lion e três a Bergerac, Dieppe (um importante ponto de partida para a Inglaterra e a
27
Escócia), Issoudun e Orleans. Curiosamente, todas essas cidades se localizavam nas
principais rotas comerciais, confirmando que o Calvinismo – assim como o Islamismo – era
freqüentemente difundido por meio de contatos comerciais, demonstrando uma vez mais
seu apelo para com aqueles envolvidos em tais esferas de atividade, como os artesãos e
mercadores. Henri Hauser certa vez reconheceu o papel fundamental para a propagação da
nova religião que foi desempenhado por humildes mascates, os quais levavam panfletos
calvinistas escondidos em meio a seus alfinetes e pentes.

AS DIMENSÕES POLÍTICAS DO CALVINISMO FRANCÊS


O apelo do Calvinismo se encontra parcialmente na percepção de sua importância
econômica; como devemos posteriormente apontar, surgiu une adaptation française du
calvinisme, a qual misturava certas perspectivas religiosas de Calvino com políticas
econômicas protocapitalistas adotadas pela própria cidade de Genebra. O apelo dessas
perspectivas econômicas liberais em relação a uma terceira classe, que emergia como um
grupo social de importância substancial na França, parece ter sido considerável. Embora
o apelo econômico do Calvinismo – sendo o termo Calvinismo, neste caso, entendido como
algo que designa aquilo que Calvino e seus agentes pareciam representar, em lugar daquilo
que eles, de fato, representavam – em relação à terceira classe francesa não deva ser
subestimado, também havia nele um significativo apelo político. Para exemplificar esse
aspecto devemos nos voltar à consideração de uma evolução semelhante ocorrida no
Sudeste da Ásia, mais de dois mil anos antes.
Por que o Budismo surgiu como uma nova religião? Suas origens, no século 6 a.C., são
provavelmente melhor explicadas como um movimento de protesto contra o sistema de
classes ou castas do Hinduísmo védico, bastante rigoroso e intensamente restritivo. O
surgimento do Budismo corresponde a um período da civilização hindu no qual a
urbanização tornou-se de grande importância social. A emergência de uma classe urbana
relativamente próspera levou ao desenvolvimento de consideráveis tensões frente a rigidez
do sistema de castas hindu, que posicionava os indivíduos em uma casta segundo as
circunstâncias de seu nascimento. O sistema de castas era justificado religiosamente,
através do védico “Hino do Homem Cósmico”, o qual sugeria que essa organização social
era baseada em fundamentos cósmicos. Com o surgimento de grupos sociais que possuíam
recursos para moldar seu próprio destino, surgiu uma certa impaciência em relação à
tradicional organização social do Hinduísmo védico. A ênfase de Buda sobre a
responsabilidade pessoal e a capacidade individual de influenciar seu próprio destino
parece ter exercido um apelo considerável em relação a esses habitantes urbanos
marginalizados (há alguma evidência que sugere que seus primeiros seguidores eram
provenientes de lares urbanos). A ordem social e, especificamente, a posição ocupada por
um indivíduo dentro dessa ordem vieram a ser entendidas como algo passível de mudança,
em lugar de algo que era estabelecido como inviolável, como se fizesse parte da
constituição do próprio universo. A frustração ante a rigidez das estruturas sociais
existentes, particularmente em relação a um opressivo sistema de classes ligado à tradição,
parece ter sido um fator de alguma importância religiosa nesse período da civilização
humana, tornando as virtudes do Budismo desejáveis para indivíduos até então satisfeitos
em permanecerem hindus.
Desde o início do século 19 tem havido uma tendência, por parte de alguns historiadores,
de sugerir que a Reforma Protestante e, especificamente, a calvinista, pode ser considerada
28
como a base do pensamento político progressista moderno. Em parte, essa tendência se
baseia em uma visão romântica liberal sobre a Reforma, segundo a qual esta teria sido um
movimento que lutava pela liberdade pessoal em uma época de opressão eclesial. O que
quer que a Genebra de Calvino possa ter sido, ela certamente jamais alcançou uma
reputação internacional, em sua época, por seu liberalismo religioso ou de qualquer outro
tipo que fosse, sendo vista, antes, como um símbolo de disciplina civil e eclesiástica. O
próprio pensamento político de Calvino é geralmente considerado sem originalidade e
29
desinteressante. Contudo, à medida que o Calvinismo se expandiu a partir de Genebra, em
busca de novas
A INVASÃO DE IDÉIAS: CALVINO E A FRANÇA

pastagens, ele provou-se capaz de desenvolver e de adaptar sua constituição original,


adotando e modificando idéias que não estavam nele incluídas ou que não haviam sido,
necessariamente, sugeridas por seu fundador.
30
Uma dessas idéias refere-se à “produção” das estruturas sociais existen-tes. Tem-se
argumentado que o Calvinismo foi instrumental para a efetivação da mudança de uma
noção medieval da organização do mundo, baseada em “uma ordem imaginada como
natural e eterna”, para uma organização mo-derna “baseada na mudança”. Em outras
palavras, a visão de mundo medieval era estática: atribuía-se a uma pessoa uma posição
social com base no nascimento e na tradição e não era possível modificar essa situação. O
Calvinismo, por outro lado, proporcionava uma “ideologia de transição”, segundo a qual se
declarava que a posição de um indivíduo no mundo base-ava-se, ao menos em parte, em
31
seus próprios esforços. A atração desse tipo de sugestão para a terceira classe francesa –
ou, na verdade, para a burguesia, por toda a Europa – se tornará evidente. Para uma classe
social frustrada devido à sua incapacidade em alcançar um progresso significativo dentro de
uma sociedade dominada pela tradição e pelos laços familiares, a doutrina da mutabilidade
fundamental das organizações sociais existentes teria, obviamente, exercido um apelo
considerável. A utilização desse princípio pelos calvinistas ingleses John Ponet e
Christopher Goodman que, com base nele, criaram teorias de regicídio justificável (em
direta oposição à recusa de Calvino em admitir tal fato), demonstra uma ruptura
fundamental com a noção medieval de que as estruturas de poder existentes são, de alguma
32
maneira, ordenadas por Deus, sendo assim invioláveis e inalteráveis. As implicações dessa
doutrina para a Reforma na Escócia serão evidentes.
Idéias semelhantes floresceram na França, em conseqüência dos massacres do dia de São
Bartolomeu. A princípio, o Calvinismo francês havia limitado suas reflexões políticas à
33
área geral da liberdade de consciência. Durante a década de 1550, à medida que a
influência calvinista na França se expandia continuamente, a principal função da agitação
política calvinista era voltada à tolerância religiosa. Sugeriu-se que não havia nenhuma
contradição fundamental entre ser um calvinista e ser francês; ser um francês e um
calvinista (ou um huguenote, pois os termos têm significados semelhantes) não implicava
em deslealdade à coroa francesa. A lógica precisa e a persuasão dessa posição, o que a
atribuía a Calvino, entre outros, foi aniquilada em maio de 1560, por meio da conjuration
d’Amboise, na qual o aristocrata Godefroi de La Renaudie, aparentemente auxiliado e
encorajado por vários pastores calvinistas (para desgosto de Calvino), tentou seqüestrar
34
Francisco II. Contudo, foi o massacre de São Bartolomeu (1572) o que motivou a mudança radical no pensamento político do Calvinismo francês.
O surgimento dos monarcômacos – aqueles que desejavam impor severas restrições aos
direitos dos reis e defender o dever (não meramente o direito) do povo de resistir aos
monarcas tirânicos – foi uma reação direta à atmosfera de choque que persistia, como
35
conseqüência de São Bartolomeu. Em 1559, Calvino – talvez começando a reconhecer a
relevância prática e política da questão – admitiu que um governante poderia exceder os
limites de sua autoridade, pela sua oposição a Deus; ao fazer isto, sugeriu Calvino, tal
governante havia anulado seu próprio poder. Os magistrados (mas não os próprios
indivíduos) estariam, dessa forma, em posição para tomar algumas atitudes (não
36
especificadas) contra o governante. Estas idéias foram desenvolvidas e ampliadas pelos
seguidores franceses de Calvino, em conseqüência dos eventos de 1572. François Hotman
produziu a célebre obra Franco-Gallia, Teodoro de Beza, seu livro Droits des Magistrats,
Philippe Duplessis-Mornay, sua obra Vindiciae contra tyrannos e outros autores menos co-
nhecidos produziram diversos panfletos, todos defendendo a mesma posição: os tiranos
devem ser contestados. O dever de obedecer a Deus deve ser colocado acima de qualquer
obrigação de obedecer a um governante.
Essas novas teorias radicais, forjadas em meio às tribulações do Calvinismo francês
(mesmo que em oposição aos próprios ensinamentos de Calvino), devem ser vistas como
um importante ponto de transição do feudalismo para a democracia moderna, com o
conceito dos direitos humanos naturais sendo articulado e defendido teologicamente.
Embora a maioria dos calvinistas franceses abandonasse a oposição aberta à monarquia,
durante o reinado de Henrique IV, particularmente após a promulgação do Edito de Nantes,
novas teorias importantes foram liberadas na arena política francesa. Admite-se que elas
ressurgiriam, em formas puramente seculares, durante o Iluminismo francês. O conceito
dos direitos humanos naturais, destituído de seus adornos teológicos, combinou-se com o
republicanismo da Genebra de Calvino, na thèse républicaine de Jean-Jacques Rousseau, a
qual – em oposição à modernizada thèse royale de Voltaire e à thèse nobilaire de
Montesquieu – declarava que a Genebra do século 16 era uma república modelo, repleta de
possibilidades de assimilação que possuíam relevância direta e potencial para a situação da
França do século 18. Portanto, foi essa a Genebra de Calvino que se tornou um ideal
vibrante e poderoso, o qual se apoderou da imagina
A INVASÃO DE IDÉIAS: CALVINO E A FRANÇA

ção da França pré-revolucionária. A Revolução Francesa, de 1789, nasceu da revolução de


Genebra, de 1535? Isto, porém, é propor questões que pertencem a outra parte desse estudo.
Devemos retornar às realidades da França nos anos de 1550 e considerar uma vez mais o
apelo do Calvinismo em face de seus habitantes.

O PERFIL SOCIAL DO CALVINISMO FRANCÊS


O Calvinismo apresentava, portanto, um complexo conjunto de idéias e valores –
políticos, religiosos e econômicos – de potencial apelo para a classe média da França e,
provavelmente, não seja surpreendente o fato de que
a. o movimento a princípio tenha conquistado adeptos pertencentes a essa classe
social. Em parte, isso também reflete o perfil social dos agentes de Genebra enviados à
França, que eram quase todos pertencentes à classe média de língua francesa, tendo sido,
talvez, tipicamente adequados às necessidades das classes médias urbanas.
Especificamente, isso foi o que ocorreu no Sul,
b. o qual sempre esteve consciente – orgulhoso, na verdade – de suas históricas
ligações lingüísticas com o francês. Contudo, o francês era pouco compreendido na área
rural, onde os dialetos ainda imperavam. Em Languedoc – a região ao redor de Toulouse,
na qual a langue d’oc era falada – o francês era visto quase como uma língua estrangeira.
Os agentes de Genebra pertenciam a um mundo diferente – social e lingüisticamente –
daquele em que vivia a população rural da França. Porém, não havia praticamente nada que
a Companhia de Pastores pudesse fazer quanto a isso. Eles apenas poderiam enviar os
homens que tinham à sua disposição, vindos das camadas sociais alta e média e que tinham
o francês como sua primeira língua. Um estudo do perfil de quarenta e dois desses agentes
37
demonstrou que nenhum deles possuía qualquer ligação com a classe camponesa. Desde
seu início, o grande processo evangelístico de Genebra estava, portanto, confinado em uma
espiral social da qual a classe camponesa estava excluída.

Esse aspecto, porém, não foi considerado de grande importância pela Venerável
Companhia de Pastores, que se considerava como se estivesse na crista da onda. Em 1561,
a Companhia encontrava-se atolada em requisições de pastores, vindas da França. Nicolas
Colladon registrou que 151 indivíduos foram enviados em missões para a França durante
38
aquele ano. Os pastores de Genebra tinham a tendência de desaparecer simplesmente, sem qualquer aviso, para reaparecer posteriormente, em algum canto
remoto da França. As paróquias locais de Genebra foram privadas de seus pastores para suprir

a crescente demanda das igrejas francesas. Até mesmo a cidade de Lausanne ficou sem
pastores, por um período, à medida que o clero local atendia à convocação de voluntários
para auxiliar na grande obra de evangelização na França. A decisão da regente Catarina de
Médici, que adotava uma atitude tolerante em relação aos protestantes, facilitou
imensamente essa penetração: a política de segredo absoluto foi relaxada e os refugiados de
Genebra começaram a retornar à sua terra natal, a França, aparentemente para alívio da
população nativa de Genebra.
Ao menos superficialmente, parecia que a política de Genebra para a evangelização da
França estava produzindo resultados impressionantes. Congregações evangélicas estavam
brotando por todo o país e requisitando de Genebra apoio, orientação e conselhos. Porém,
uma importante mudança havia ocorrido na própria França. O Calvinismo havia
conquistado importantes convertidos dentre a aristocracia francesa. Uma religião cujo apelo
primordial era, a princípio, feito a les petits gens, havia se tornado aceitável
39

e até mesmo atrativa aos Seigneurie.


Segundo Lucien Romier, o perfil do Calvinismo francês foi irreversivelmente alterado
40
durante os anos de 1558 a 1562 devido a conversões em massa dentre a aristocracia. A
economia da França, há muito necessitada de uma revitalização radical, começou, por fim,
a entrar em colapso. Estudos sobre os sistemas de patronagem e de tributos revelam uma
41
economia em crise até 1557 e, praticamente, em ruínas até 1559. Um declínio na renda
eclesial acompanhou essa recessão econômica, à medida que os recursos provenientes de
ritos católicos tradicionais, como as orações e missas para os mortos, começaram a
42
encolher. A aristocracia não estava mais protegida contra os eventos cruéis da economia.
As desvantagens econômicas que havia em relação à conversão ao Calvinismo já não
possuíam a mesma força de antes. A deterioração dos padrões tradicionais de patrocínio e
financiamento levou efetivamente ao surgimento de um setor, dentre a aristocracia,
encurralado pela tensão entre supostos padrões tradicionais e novas forças, cujos padrões
ainda haveriam de surgir. As tradicionais alianças e lealdades da aristocracia começaram a
falhar.
A progressiva aliança entre a segunda e terceira classes sociais, em oposição à primeira
(isto é, entre a nobreza e a burguesia, contra o clero), no período de 1559 a 1561, deve ser
43
vista à luz dessa situação econômica em declínio. Elementos pertencentes à elite urbana,
até então publicamente hostis ou indife

A INVASÃO DE IDÉIAS: CALVINO E A FRANÇA

44
rentes ao Calvinismo, passaram a se associar abertamente a este movimento. A crítica à
Igreja e à sua riqueza se torna cada vez mais estridente em meio à segunda classe: o
encontro de Etats-géneraux, em Orleans, no ano de 1560, testemunhou uma aliança aberta
entre a nobreza e a burguesia no que parece ter sido um ataque de influência calvinista
sobre os privilégios e a riqueza da Igreja. A formação dessa aliança entre a segunda e a
terceira classes é de importância considerável: seu advento significou que as Guerras de
Religião não se constituiriam, predominantemente, em um conflito de classes, mas, antes,
no choque de duas facções lideradas pela aristocracia.
A morte de Henrique II deu início a um período de incerteza. O reino a princípio ficou
nas mãos de Francisco II, que na época tinha quinze anos de idade; ele foi sucedido por seu
irmão mais novo, Carlos IX, em dezembro de 1560. Como ele ainda tinha que alcançar a
maioridade (quatorze anos, segundo a lei francesa), Catarina de Médici foi capaz de tomar
o poder, pro-clamando-se regente. A fragilidade do poder central, durante esse período,
tornou impossível a continuação da política de Henrique II de perseguição ao Calvinismo,
na França. O Edito de Amboise (março de 1560) pode ser entendido como um tácito
45
reconhecimento desse aspecto, da mesma forma que as lettres de cachet, decretadas por
46
Catarina, em 28 de janeiro de 1561, libertando os que estavam presos por motivos de
crença e suspendendo os processos por heresia. Finalmente, o Edito de St-Germain-em-
Laye, decretado em 17 de janeiro de 1562, permitiu que os calvinistas se reunissem em
47
culto público, embora sob condições restritas.
Por todo esse tempo, Calvino e seus colegas estiveram tentando controlar os
acontecimentos da melhor forma possível. Contudo, há ampla evidência de que eles
falharam em tirar plena vantagem da situação francesa. Em parte, isso pode ser um reflexo
da falta de um planejamento adequado; contudo, também pode ser devido ao fato de
Calvino e seu grupo haverem sido pegos de surpresa pelo próprio sucesso de sua
empreitada. Eles não haviam pensado grande o suficiente, tendo usado de cautela onde a
audácia era necessária. O período de 1555 a 1562 proporcionou à igreja de Genebra a
oportunidade de se aproveitar, ao máximo, das mudanças que ocorriam no mundo secular; a
Igreja, no entanto, provou-se incapaz de fazê-lo. O próprio Calvino permaneceu preso a um
enfoque politicamente utópico em relação à situação francesa, procurando agradar à corte
francesa, ao Eleitor palatino, ao Duque de Württemburg e à divina providência ao mesmo
48
tempo. Há ampla evidência de que Calvino, supondo que o rei da França poderia ser persuadido a promover a Reforma da
Igreja, segundo padrões aceitáveis, restringiu deliberadamente o crescimento e o
49
surgimento das igrejas evangé-licas. A decisão de impor às congregações uma estrutura
equivalente à do Consistório pode ser entendida como uma tentativa de limitar o
crescimento das églises plantées, por motivos políticos. Se esse foi o motivo verdadeiro, ele
deve ser considerado um grave equívoco que teve por base um otimismo infundado em
relação às intenções do monarca francês.
Essa mesma perspectiva é evidente nas atitudes de Calvino com relação à publicação de
uma confissão de fé por parte da Igreja francesa reformada. Parece que a necessidade de
consolidar a posição da Igreja Reformada na França por meio da convocação de uma
assembléia de todos seus representantes foi primeiro discutida por volta do final de 1558,
em Poitiers, sendo Antoine de La Roche-Chandieu convocado para tomar as providências
necessárias. Assim, o pastor parisiense François de Morel escreveu a Calvino pedindo sua
opinião acerca de como deveriam proceder. É evidente que Calvino jamais recebeu essa
50
carta. É notória sua hostilidade ante a idéia de tal assembléia publicar uma declaração de fé
e, sem dúvida, reflete sua posição cautelosa em face da situação na França. Proferir uma
declaração de fé pública era provocar uma perseguição. Temos uma carta de um
embaixador inglês na França, Nicholas Throckmorton, datada de 15 de maio de 1559, que
identifica abertamente essa possibilidade:

Eu soube que cerca de 15.000 pessoas das províncias de Gascognne, Guyenne, Anjou,
Poitou, Normandy e Maine assinaram uma confissão semelhante àquela de Genebra.
Eles pretendem apresentála, em breve, ao rei. Dentre eles há muitas pessoas
importantes. Em alguns círculos comenta-se que, assim que eles apresentarem essa
confissão ao rei, a Igreja será forçada a receber dele a certeza de que eles serão
51
completamente aniquilados.

A vontade de Calvino, porém, foi ignorada. O primeiro sínodo nacional da igreja


Reformada na França foi feito em sigilo, na cidade de Paris, no período de 25 a 29 de maio
52
de 1559 e elaborou uma confissão de fé com trinta e cinco artigos. Essa confissão foi
publicada como Confession de foy faicte d’un commun accord par les églises qui sont
dispersées en France e apresentada a Francisco II no ano seguinte. A perseguição temida,
porém, não se concretizou.
A INVASÃO DE IDÉIAS: CALVINO E A FRANÇA

Figura 9.3 – Igrejas Calvinistas na França, 1562

Apesar de sua prudência excessiva, a influência de Calvino sobre a França atingiu seu
ápice até 1562. Ocorreu uma explosão do crescimento e da influência das congregações
calvinistas; a completa Reforma da França parecia uma possibilidade concreta.
Provavelmente, um terço da nobreza havia demonstrado a aceitação de suas idéias
religiosas. Segundo uma lista preparada pelo Almirante de Coligny em março de 1562,
havia na França, àquela altura, 2.150 igrejas de huguenotes. È complicado confirmar esses
números; porém, seria razoável sugerir que havia, pelo menos, 1.250 dessas igrejas, com
uma membresia total de mais de dois milhões, dentre uma população nacional de 20
53
milhões de habitantes. A distribuição das igrejas protestantes conhecidas pela França é desigual, refletindo somente a compreensão parcial de
aspectos político-geográficos, de patrocínio local e cultural e fatores lingüísticos. Particularmente interessante é o denominado “crescente huguenote”, que se estendia de
La Rochelle, na costa do Atlântico, até o Dauphiné, no Leste, com uma concentração especialmente intensa no Midi (Sul da França).

Essa era, portanto, a extensão da influência de Calvino, na iminência das Guerras de


Religião. Se ele algum dia cogitou sobre a idéia de que a França se uniria em torno de sua
versão do Cristianismo, tal visão pareceria em confronto com a realidade, à medida que a
guerra eclodiu em torno da “questão religiosa” na cidade de Orleans, em abril de 1562. As
Guerras de Religião (1562-1568) tornaram evidente que a França estava dividida –
regional, social e politicamente – pelo Calvinismo. As rupturas existentes na sociedade
francesa eram tão profundas que se mostraram incapazes de serem restauradas pelos meios
tradicionais da diplomacia pragmática. São as lembranças brutais e deprimentes das
54
Guerras de Religião e, especialmente, dos massacres de São Bartolomeu – um prenúncio
sinistro dos excessos a serem, mais tarde, liberados no revolucionário Reino do Terror –
que tornam tão ambígua a reputação de Calvino em sua terra natal. Embora outros fatores
tenham, inquestionavelmente, contribuído para o início das Guerras de Religião, elas
foram, sobretudo, guerras que se concentravam em torno de questões religiosas –
principalmente sobre a agenda estipulada por Calvino, em Genebra. Por uma geração, a luta
c'alvinista por supremacia, na França, se tornaria uma causa perdida; sua posição era, na
melhor das hipóteses, a de um tolerado imperium in império, de um estado dentro de um
estado, con-forme os termos conciliadores do Edito de Nantes (1598). Contudo, a essa
altura, suas perdas, na França, teriam sido compensadas por ganhos em outros locais. O
Calvinismo havia se tornado um movimento internacional.

10
A GÊNESE DE UM MOVIMENTO

No início da primavera de 1564 era evidente que Calvino estava grave-mente enfermo.
Sua freqüência às reuniões semanais do Consistório havia se tornado progressivamente
1
inconstante no inverno de 1563-4, refletindo o declínio de sua saúde. A partir de uma lista
de sintomas descritos por Calvino a uma junta médica, em Montpellier, naquele ano, é
possível inferir que ele sofria de sintomas consistentes com enxaqueca, gota, tuberculose,
verminose, hemorróidas e síndrome de irritação intestinal. Ele pregou, pela última vez, no
púlpito de Saint Pierre, na manhã de domingo do dia 6 de fevereiro. Até abril, era evidente
2
que ele não viveria muito. Ele tinha dificuldades respiratórias e sofria de falta de ar. Apesar
disso, ele fez um esforço para se despedir dos pastores de Genebra, na sexta-feira do dia 28
3
de abril.
O Discours d’adieu aux ministres é um documento comovente, às vezes beirando o
lamentável. Calvino confessou que ele era e sempre havia sido nada mais do que um pobre
4
e tímido acadêmico que havia sido levado ao serviço do evangelho cristão. Uma parte do documento é de interesse peculiar; no que podem parecer, à
primeira vista, meras divagações, ele relata algumas das várias adversidades que o surpreenderam durante o período em que esteve em Genebra. Pessoas haviam

ficado dessa parte do Discours


disparado suas espingardas na frente de sua porta e ordenado a seus cachorros que o atacassem. O signi

d’adieu ainda não foi de todo estimado; Calvino é claramente influenciado pelos “registros
5
de sofrimentos” encontrados nos escritos do período clássico. Ele deve ter conhecido esse
gênero literário por meio de duas fontes: as cartas aos Coríntios, no Novo Testamento –
Rudolf Bultmann classificou 1 Coríntios 4:9-13 e 2 Coríntios 4:8-9, 6:4-10 como
Peristasenkatalogen (registros de circunstâncias difíceis) – e os escritos dos moralistas
clássicos, tal como Sêneca. O sofrimento parece ter sido um elemento integrante do
conceito de Calvino sobre vocação.
Calvino morreu às oito horas, na noite de 27 de maio. A seu pedido, ele foi enterrado em
uma cova comum, sem uma lápide na qual constasse o seu nome. Não deveria haver
qualquer culto pessoal baseado em sua figura, em Genebra. Na morte, como em vida,
Calvino mostrou-se modesto. Contudo, com a sua morte, sua influência sobre o mundo
demonstrou estar apenas começando.

URBI ET ORBI: A EXPANSÃO DA INFLUÊNCIA


DE CALVINO
Ao final de três quartos do século 16, o Calvinismo estava consolidado como uma
religião internacional, segura de sua capacidade e do direito de dar uma nova forma à
6
sociedade. Seus adeptos não viam necessidade de fazer concessões por intermédio da
adaptação de seus princípios às realidades sociais; na teoria – e, freqüentemente, na prática,
pode-se dizer, à luz da experiência americana – a sociedade pode ser alterada, a fim de
corresponder às exigências de uma nova religião. Há um fundo de verdade na sugestão de
Emile G. Leonard de que a maior contribuição de Calvino foi a criação de uma nova
7
espécie de ser humano – o calvinista, com uma atitude confiante e destemida diante da
vida, baseada no senso de chamado e capacitação divinos.
A situação da Europa, na década de 1530 e início da década de 1540, não dava qualquer
sinal de que o pensamento de Calvino iria receber tamanha atenção e alcançar tal influência
no restante do século. Havia sido a versão de Lutero sobre a Reforma que havia feito
conquistas por toda a Europa, na primeira metade do século: suas idéias atraíram muitos
comentários após
o Debate de Leipzig com Johann Eck (junho-julho de 1519) e, por conseqüência, Lutero era
geralmente visto como um defensor de valores liberais humanistas. As origens de sua
influência em Paris podem ser datadas do final de 1519, quando os professores de teologia
foram convocados a considerar suas propostas de Leipzig: até a metade da década de 1520
sua influência havia se espalhado por toda a cidade, envolvendo acadêmicos, clérigos e
cidadãos comuns. O primeiro luterano foi queimado em praça pública em 1524. No ano
seguinte, durante a prisão de Francisco I em Madri, após sua derrota na batalha de Pávia, a
rainha-mãe ordenou a eliminação total da “diabólica e maldita seita herege de Lutero” do
reino de seu filho. Tão a leste quanto Viena, Lutero recebeu atenção: como conseqüência
imediata do Debate de Leipzig, professores de teologia de Viena elaboraram um plano con-
8
tendo seis pontos para minimizar sua escandalosa influência nessa universi-dade. Contudo, apesar
de tais medidas, a influência de Lutero sobre a religião da Europa ocidental aumentou intensamente durante a década de 1520 e o início da década de 1530. Parte da

literatura devocional em circulação na França, na década de 1530, até mesmo empenhou-se em combinar a espiritualidade católica com elementos da teologia de Lutero.

Na Inglaterra, os escritos de Lutero circulavam extensamente a partir de 1520 havendo


Reformadores ingleses, como William Tyndale e Robert Barnes, que se aliavam
publicamente ao saxão (até mesmo a ponto de freqüentar sua Universidade em
9
Wittenberg). As idéias de Lutero eram influentes em meio aos movimentos evangélicos,
10
nos Países Baixos, durante a década de 1520, a um grau que somente hoje se percebe.
Apesar de um início desfavorável,
o Luteranismo gradualmente alcançou influência na Escócia durante as décadas de
11
1520 e 1530, vindo a alcançar posteriormente seu clímax (abortivo) em 1543. Padrões
semelhantes podem ser percebidos na Espanha e França. O Concílio de Trento, que se
reuniu na década de 1540 com o objetivo de se opor à Reforma, dirigiu sua pesada
artilharia teológica na direção de Lutero e seu grupo; ninguém mais parecia merecer sua
preocupação. A Paz Religiosa de Augsburgo (1555), que almejava pacificar a questão
religiosa na Alemanha pela adoção do princípio cuius regio eius religio – “sua região
define sua religião” – nem mesmo considerou necessário reconhecer a existência de
Calvino ou de seu movimento; o Luteranismo e o Catolicismo Romano representavam as
alternativas válidas na disputa pela lealdade cristã. Resumindo, Lutero era amplamente
identificado com a causa da Reforma. Ser um Reformador era ser um Luterano.
Com a morte de Lutero (1546) e a derrota da Liga de Esmalcalda (1547),
b. o movimento Luterano tornou-se intelectualmente moribundo, progressivamente
enfraquecido por graves conflitos internos e confinado aos territórios alemães. O modesto
sistema de Lutero já tivera sua época e o dina

mismo inicial da Reforma Luterana parecia haver acabado. A primeira onda da Reforma
havia se chocado contra a costa e se exaurido; Agora, uma segunda onda se seguia. A
estrela de Calvino começou a brilhar e, logo, estava em ascensão. Uma série de fatores
parecem ter sido úteis à estruturação desse desenvolvimento.
As Institutas de Calvino eram lidas e apreciadas por toda parte, freqüentemente a ponto
de serem citadas extensamente em outras obras. O anônimo tratado italiano Il Beneficio di
Cristo, de 1541 – que atingiu rapidamente o status de um best-seller religioso, antes de ser
12
censurado pela Inquisição – recorre bastante à edição de 1539 das Institutas, sem se
importar em atrair a atenção por isso. A obra de Calvino era, evidentemente, familiar aos
13
teólogos protestantes de vanguarda nos Países Baixos, ao final da década de 1550. A obra
rapidamente se consolidou como uma pura e refinada introdução às idéias da segunda onda
da Reforma, pois era definitiva e independente. Como vimos, a tradução para o francês da
edição de 1541 foi reeditada por diversas vezes, para satisfazer as demandas de público.
Isso representou apenas um pequeno passo no processo da aceitação de suas idéias até se
chegar ao clamor por uma ação adequada.
Como já observamos, Genebra propagou ativamente o programa de re-forma defendido
pelas Institutas, por intermédio do envio de pastores de língua francesa cuja influência logo
mostrou estender-se além da própria França: as origens da influência de Calvino, dentre as
províncias de língua france-sa dos Países Baixos, deve ser datada por volta de 1550. Outros
intelectuais de mentalidade calvinista viajaram para o exterior para propagar suas idéias,
provavelmente, com maior êxito na Inglaterra. Sob o reinado de Eduardo VI, importantes
teólogos calvinistas ou simpatizantes do Calvinismo eram encorajados a se estabelecer na
Inglaterra, dando um senso de direção teológica à incipiente Igreja Reformada. Indivíduos
como Martin Bucero, Pietro Martire Vermigli (provavelmente mais conhecido como Peter
Martyr) e John à Lasco deram à Igreja da Inglaterra um novo ímpeto, que a desviou de seus
flertes iniciais com o Luteranismo, movendo-a em direção de pelo menos algumas das
idéias associadas à Genebra de Calvino. Em maio de 1559, John Knox retornou à sua terra
natal, a Escócia, após um período de exílio em Genebra; dias após sua chegada,
14
desencadearam-se revoltas em Perth, precipitando a crise da Reforma.
O fenômeno dos refugiados e seu local de refúgio desempenharam um papel importante
na propagação do Calvinismo. Genebra era apenas um
dos vários centros europeus (tais como Frankfurt, Emden e Estrasburgo) que receberam os
exilados protestantes. Para irritação dos nativos de Genebra, que não apreciavam a presença
de estrangeiros (e demonstraram esse fato através de seu apoio ao grupo perrinista, no
início da década de 1550), Calvino assegurou que Genebra fosse um local de refúgio para
aqueles que possuíam idéias reformistas. Durante seu período de exílio, esses refugiados
freqüentemente absorviam a perspectiva de Calvino e, ao retornarem a seus países de
origem, continuavam a propagar o Calvinismo. Os exilados franceses eram de longe os
mais numerosos, mas eles eram integrados por outros, como os protestantes ingleses, que
buscavam proteção contra as perseguições da rainha Maria (doze dos dezoito bispos
indicados por Elizabeth I, em conseqüência das renúncias em massa de 1559, buscaram
refúgio na Europa, durante o reinado de Maria). Outros países, pelo fato de acolherem
refugiados calvinistas, desenvolveram centros de atividades calvinistas que possuíam
15
potencial para estender sua influência além de suas congregações.
A isso deve-se adicionar uma série de outros fatores sociais, políticos e econômicos, os
quais refletem a própria natureza do pensamento de Calvino em lugar dos meios históricos
por meio dos quais esse pensamento foi difundido. Deveremos considerar esse aspecto no
seu devido tempo; porém, vale a pena ressaltar que, a essa altura, o Calvinismo era
freqüentemente considerado como um movimento progressista, associado por muitos a uma
ruptura definitiva com as instituições, costumes e práticas ultrapassadas que acorrentavam
as pessoas à herança de um passado feudal. Enquanto Lutero parecia cauteloso e
conservador, Calvino aparentava ser audacioso e progressista (uma impressão
aparentemente proporcionada, ao menos em parte, pelos programas e estruturas políticas
progressistas da cidade de Genebra). O futuro parecia lhe pertencer. A adoção do
Calvinismo pelo Palatinato, juntamente com a elaboração do extrema-mente influente
16
Catecismo de Heidelberg (1563), parecia simbolizar a nova ascendência do Reformador
francês sobre o alemão, até mesmo na própria terra natal deste último.
Até 1591 o Calvinismo parecia ter feito conquistas irreversíveis por toda a Europa. O
calvinista alemão Abraham Scultetus (1566-1624) assim escreveu sobre esse senso de êxito
e até mesmo de destino (a respeito do qual os escritores calvinistas eram cautelosos em
descrever apenas em termos de providência divina), que impregnava o movimento:
Não posso deixar de recordar o sentimento otimista que eu e muitos outros tínhamos
quando considerávamos a situação das igrejas Reformadas, em 1591. Então,
governava, na França, o valente Rei Henrique VI; na Inglaterra, a poderosa Rainha
Elizabeth; na Escócia, o sábio Rei James; no Palatinato, o audacioso herói John
Casimir; na Saxônia, o corajoso e poderoso Eleitor Christian I; em Hesse, o vivo e
prudente Landgrave William, e eram todos favoráveis à religião Reformada. Nos
Países Baixos, tudo corria segundo o desejo do Príncipe Maurice de Orange, quando
ele conquistou Breda, Zutphen, Hulst e Nijmegen... Nós achávamos que um aureum
17
seculum, uma era de ouro, havia começado.

Essa rápida expansão internacional do Calvinismo, na segunda metade do século, que


seria completada por suas notáveis conquistas no Novo Mundo, na outra metade do século
seguinte, deveria ser entendida no contexto de destruição de sua base de poder originária, a
18 19
cidade de Gene-bra. Já em 1575, circulavam rumores consistentes acerca de seu declínio.
Em parte, isso retrata a grave situação econômica enfrentada pela cidade:
o florim de Genebra estava se depreciando rapidamente, frente ao écu d’or francês. Em um
estudo de 1934, o historiador suíço Charles Gilliard sugere que parece ter ocorrido um sério
colapso da moeda corrente, na área oeste da Suíça, na segunda metade do século 16. Isso
foi confirmado, atualmente, por estudos detalhados sobre as flutuações da moeda na região,
20
que revelaram padrões de depreciação diretamente correspondentes à geografia política.
As moedas das cidades do leste suíço e do vale do Reno (tais como St Gallen e Basiléia)
permaneceram relativamente estáveis durante o período, enquanto aquelas pertencentes às
cidades do centro da Suíça (tais como Zurique, Schaffhausen, Lucerna e Berna) sofreram
uma ligeira depreciação. As cidades do oeste suíço, porém, testemunharam uma profunda
depreciação de suas moedas. Friburgo e Lausanne foram seriamente afetadas enquanto
Genebra, a cidade mais a oeste dentre todas, foi, de longe, a que sofreu o pior impacto.
Enquanto o valor do florim de St Gallen permaneceu praticamente constante, frente ao écu
d’or francês, durante o período crítico de 1550 a 1590, o florim de Genebra sofreu uma
queda em seu valor, em torno de 30 por cento, somente no período de 1570 a 1577.
Figura 10.1 – A depreciação dos florins de Genebra e de St Gallen diante do écu d’or ´francês,
1530-77

Essa situação econômica decadente foi acompanhada por um declínio no destino da


igreja de Genebra. Sem a oposição da considerável autoridade pessoal de Calvino, o
Conselho municipal foi, pouco a pouco, conquistando o controle sobre áreas da vida
municipal que, até então, eram consideradas como sendo da competência dos pastores. O
processo de secularização, iniciado em 1535 e redirecionado (em vez de sufocado) através
da influência de Calvino era, agora, ampliado, à medida que os poderes seculares
aumentavam sua esfera de autoridade, destruindo a posição dos pastores perante a cidade.
Embora a Companhia de Pastores, sob a liderança de Teodoro de Beza, fosse capaz de
exercer ao menos algum grau de influência, ainda que limitado, sobre as questões públicas
da cidade, isso praticamente acabou quando Beza renunciou à função de mediador, em
1580. Pouco a pouco, tornou-se óbvio que os pastores possuíam uma autoridade puramente
moral, não tendo acesso a qualquer autoridade estatutária ou constitucional perante a
cidade. A partir de 1580, eles não tinham um representante que sequer se aproximasse da
autoridade pessoal de Beza e, muito menos, da do próprio Calvino.
A reputação internacional de Genebra se baseava parcialmente em sua Academia,
fundada por Calvino em 1559. Contudo, mesmo essa ilustre Academia logo perdeu seu
apelo; à medida que o Calvinismo se transformou em um movimento internacional, um
número crescente de universidades se tornou favorável em relação à nova religião. As
Universidades de Leiden e de Heidelberg rapidamente alcançaram uma reputação
internacional, tanto como centros de aprendizagem quanto como santuários do Calvinismo,
encobrindo a reputação mais modesta da Academia fundada por Calvino. Esses novos
núcleos de ensino foram integrados pelas novas academias calvinistas, situadas de forma
21
estratégica em cidades como Herborn, em Hanau (o local das famosas editoras Wechsel) e,
especialmente, por aquelas fundadas na França, após o Edito de Nantes - em Die,
Montauban, Saumur e Sedan. A fundação da Faculdade de Harvard (1636) consolidou a
hegemonia intelectual do Calvinismo na Nova Inglaterra, assegurando a sobrevivência, no
Novo Mundo, dessa fé já não tão recente.
Com a destruição de seu monopólio relativo à educação clerical, a estrela de Genebra
entrou em declínio. Pastores calvinistas consideravam instituições cosmopolitas em locais
como Heidelberg, Saumur e Sedan, mais atrativas do que as de Genebra, apesar de ainda
22
persistirem, nessa cidade, as fortes e nostálgicas ligações com Calvino. Embora Genebra
continuasse a ser importante na iconografia do Calvinismo, progressivamente isso veio a se
23
basear em mitos ou lendas. A sedutora (e, diga-se de passagem, não inteiramente precisa)
memória de uma “era de ouro” sob a liderança de Calvino superou a dura realidade da
situação religiosa da cidade. Até 1585, Genebra havia se tornado pouco mais do que um
símbolo para a nova religião, quando já havia sido, um dia, sua fonte.
É perigosamente fácil apontar um único acontecimento como sendo o momento decisivo
para a evolução de um movimento. O risco, porém, é válido. A morte de Calvino, em 1564,
pode ser identificada como um marco na história do Calvinismo. Pode-se sugerir que, com
a morte de seu fundador, o Calvinismo foi capaz de romper com seus vínculos iniciais – e
bastante restritivos – com uma pequena cidade e assumir seu lugar na arena internacional.
Seus vínculos institucionais com Genebra iriam permanecer, ainda que em um nível
intelectual, na prática; contudo, os vínculos pessoais com Calvino estavam definitivamente
rompidos. A morte de Calvino fez com que um vínculo tênue e desnecessário entre um
movimento internacional e sua cidade de origem fosse posto de lado. Porém, talvez de
maior importância seja o fato de que ela também permitiu que o movimento se
desenvolvesse de forma independente de seu fundador. Com a morte de Calvino, o
Calvinismo começou a estabelecer seu próprio caráter. Essa transição é tão relevante que
merece maior atenção.

DE CALVINO AO CALVINISMO
Na sexta década do século 16, uma nova expressão foi introduzida na polêmica literatura
das igrejas da Reforma. O termo “Calvinismo” parece haver sido introduzido pelo
controversista luterano alemão Joaquim Westphal para se referir às perspectivas teológicas
e, especificamente, àquelas relacionadas aos sacramentos, que eram em geral defendidas
24
pelos Reformadores suíços e, particularmente, por Calvino. Uma vez introduzido, o termo rapidamente passou a ter

ampla aplicação em meio à Igreja luterana alemã. Em parte, essa rápida aceitação do novo termo retratava intensa inquietação por parte da facção luterana a respeito da
25
crescente influência da teologia reformada sobre regiões da Alemanha que, até então, eram historicamente consideradas como luteranas. Sob os termos da Paz Religiosa

de Augsburgo (setembro de 1555), a forma particular de Protestantismo reconhecida nos territórios alemães foi definida como Luteranismo. A expansão da influência de

Calvino no Palatinato, especialmente evidente na introdução feita pelo Eleitor Frederico III ao famoso Catecismo de Heidelberg, em 1563, foi motivo de especial

preocupação. A deserção do Eleitor, que passou do Luteranismo à adoção da forma de Protestantismo associado a Calvino, foi considerada em larga escala como uma

transgressão evidente à Paz de Augusburgo e uma influência que ameaçava a harmonia na região. A introdução do termo “calvinista” aparenta ter sido uma tentativa, da

parte dos alarmados luteranos alemães, no sentido de estigmatizar e desacreditar as idéias de Calvino como sendo uma influência estrangeira na Alemanha. O próprio

Calvino ficou alarmado com o uso do termo, o qual ele apropriadamente interpretou como sendo uma frágil tentativa velada de desacreditar a adoção da fé Reformada
26
A esse ponto, porém, Calvino tinha poucos meses de vida e seu protesto não surtiu
pelo Eleitor.

efeito. O termo “Calvinismo” foi, assim, introduzido por seus adversários para se referir à
perspectiva religiosa dos seguidores de Calvino. Os estudiosos modernos do período da
Reforma se descobrem, involuntariamente, herdeiros desse ambíguo legado da destrutiva
política Protestante primitiva. A relação precisa entre Calvino, de um lado, e o pensamento
reformado com sua respectiva organização, de outro, particularmente no período posterior à
sua morte, é bem mais complexa do que se possa esperar e a utilização do termo
“Calvinismo” com referência a essa teologia está carregada de potencial risco. No entanto,
a história não se conduz em um vazio psicológico, no qual as palavras e as memórias
associadas a elas são postas de lado. O “Calvinismo” permanece firmemente gravado no
vocabulário dos historiadores.
Mesmo assim, ele representa um termo impreciso e vago. É possível se emprestar rigor e
precisão a essa noção, definindo-a nos termos da ortodoxia religiosa estipulada pelo Sínodo
de Dort (1618-19) ou pelo Consensus Helveticus (1675). Tais aprimoramentos, ainda que
desejáveis do ponto de vista da meticulosidade teológica, nos obrigariam a limitar de forma
assustadora o número de calvinistas, forçando uma separação entre um “calvinista” ideal e
muitos daqueles que, por razões históricas, optaram por se considerar como calvinistas. Por
exemplo, aqueles pastores huguenotes que optaram por buscar refúgio na Suíça após a
revogação do Edito de Nantes (outubro de 1685) tinham pouca lealdade para com as
estipulações supostamente calvinistas do Consensus Helveticus. Os calvinistas da história
não eram – apesar de todo o empenho dos pregadores, confissões de fé e catecismos –
necessariamente leais ou adeptos inflexíveis aos estritos sistemas de doutrina, mas eram,
antes, indivíduos que se enquadravam em uma categoria social ampla. Seu caráter, embora
moldado e informado pelas grandes crenças e valores de Calvino e seus herdeiros, estava,
em última análise, separado de suas raízes teológicas. Ao entender o Calvinismo enquanto
uma força histórica que tanto fez pela formação das culturas da Europa ocidental e da
América, faz-se necessário considerar o depósito moral e social de fé o qual, em-bora
originariamente moldado pela fé, iria permanecer, após seu término. O ambiente cultural da
América atual está repleto de tais depósitos, à medida que o Calvinismo secular – destituído
de sua vitalidade religiosa original, mas retendo muito de sua ideologia moral e social –
começou a surgir para, posteriormente, alcançar ascendência.
Nossa atenção se focaliza, a princípio, na relação entre Calvino e o Calvinismo. O
estudo da relação entre os homens e seus movimentos tem se mostrado um dos aspectos
mais estimulantes da história intelectual. Ainda que certas objeções possam ser levantadas
contra a sugestão de que “a história do mundo nada mais é do que a biografia de grandes
homens” (Thomas Carlyle), é indiscutível que certos indivíduos deram ao processo
histórico um impulso que se mostrou essencial, proporcionando um foco e um alicerce para
um movimento de maior ou menor coerência. Jesus de Nazaré e Karl Marx servem como
exemplos desse fenômeno. Esses dois personagens históricos também destacam uma
questão essencial, com a qual o historiador do Calvinismo é forçado a tratar. De que forma
o movimento, que se origina a partir de um ser humano em particular, relaciona-se com
essa pessoa?
Pode ser que uma resposta preliminar a essa pergunta se desse da seguinte forma. O
Calvinismo é o sistema de idéias historicamente associado a João Calvino. Na verdade, essa
presunção é potencialmente vulnerável. O ponto em discussão pode ser ilustrado e
desenvolvido a partir de algumas observações de J. L. Austin relacionadas ao termo
27
“Facismo”, em seu ensaio “The Meaning of a Word”. Freqüentemente, entende-se que o
termo “Facismo” significa uma forma de governo historicamente derivada da inspiração
nas idéias e atividades políticas de Mussolini. Contudo, certas idéias políticas em
circulação, anteriores a Mussolini (por exemplo, as de Charles Maurras e a action
28
française) podem ser legitimamente denominadas como “Facistas”, apesar da ausência
desse padrão histórico de causalidade, pelo fato de que correspondem ao paradigma do
movimento de Mussolini. Assim como o termo “Facista” não pode, portanto, significar
apenas “derivado historicamente de Mussolini”, também o termo “calvinista” poderia, em
tese, referir-se a pessoas e idéias historicamente anteriores a Calvino. Por exemplo, os
sobreviventes mais radicais do movimento hussita, na Boêmia, o Jednota bratrská, veio a
29
ser conhecido como Calviniani ante Calvinum justamente por essas razões. Na prática,
porém, é de certa forma evidente que o Calvinismo designa um sistema de crenças cuja
inspiração deriva, em última análise, ao menos em parte, do próprio Calvino. Apesar de
evidentes paralelos entre certos aspectos de seu pensamento e o de escritores anteriores, o
sistema de Calvino (nós empregamos esse termo de forma genérica) como um todo
representa uma síntese criativa e original. Há um evidente paradigma de causalidade
histórica que liga Calvino àqueles escritores normalmente designados como “calvinistas” e
ao movimento conhecido como “Calvinismo”.
“Ser grande é ser compreendido” (Ralph Waldo Emerson). Ao considerar a relação
existente entre o criador e o movimento criado, deve-se dar especial importância ao relato
da transição do indivíduo para o movimento. Uma consideração inicial é sugerida por
algumas observações do crítico literário de Oxford, C. S. Lewis:
Toda teologia do tipo liberal contém parcialmente – e, normalmente,
contém de forma plena – a alegação de que o comportamento, o
propósito e o ensinamento verdadeiros de Cristo vieram, de manei
ra precipitada, a ser mal compreendidos e distorcidos por seus se
guidores e que somente foram recuperados ou desenterrados pelos
estudiosos modernos. Ora, muito antes de me interessar por teolo
gia, eu tive contato com esse tipo de teoria em outro lugar. A tradi
ção de Jowett ainda dominava o estudo da filosofia antiga quando
eu estava lendo Greats. O indivíduo era instruído a acreditar que o
verdadeiro sentido de Platão havia sido mal compreendido por
Aristóteles e desvairadamente distorcido pelos neoplatonistas, para
somente ser recuperado pelos modernistas. Quando recuperado,
provava-se (felizmente) que Platão havia sido, na verdade, desde o
30
início um hegeliano inglês, muito semelhante a T. H. Green.
“Greats” é uma expressão coloquial de Oxford, que designa o estudo de literae
humaniores, geralmente chamado de “estudos clássicos”, em outros locais. A questão que
Lewis nos faz considerar é a da possibilidade de Calvino ter sido mal compreendido ou
distorcido por seus seguidores.
Talvez seja inevitável que um aglomerado de idéias tão delicadamente harmonizado e
complexo como o que foi desenvolvido por Calvino seja vulnerável à tensão e distorção, ao
menos em certo grau, à medida que vai sendo difundido por futuros adeptos. O rápido
desenvolvimento de alas de esquerda e de direita no movimento hegeliano, nos anos de
1830, exemplifica particularmente bem esse fenômeno; aquilo que Hegel havia mantido em
união, seus seguidores partiram em fragmentos. Talvez Calvino tenha percebido esse perigo
31
quando estava morrendo: “Ne changer rien, ne innover!” Porém, a menos que os herdeiros de Calvino apenas
reiterassem passivamente o que fora dito por seu mestre, algumas alterações eram inevitáveis, à medida que eles respondiam a necessidades, situações e oportunidades

específicas. Muitos estudiosos de Calvino parecem relutantes em admitir essas alterações, aparentemente com base na suspeita de que qualquer desvio das idéias

originais de Calvino representa uma forma de degeneração. Contudo, deve-se ressaltar que o desenvolvimento é um conceito histórico desprovido de juízo de valor.

Nenhum movimento do calibre e com o dinamismo do Calvinismo internacional poderia sobreviver e, muito menos prosperar, sem que se modificasse ao menos em certo

tava. É tarefa do historiador identificar essas alterações, e do


nível, diante das situações específicas que enfren

teólogo verificar seu significado. A negação nua e crua dessas alterações é, porém, histo-
ricamente insustentável.
A relevância da questão sobre a maneira e a extensão com que um movimento se
apropria das idéias de seu fundador pode ser ilustrada ao analisarmos a relação do
32
Marxismo com Marx. O “Marxismo” designa um movimento amplo, o qual, embora
baseado nos escritos de Marx, representa, no entanto, uma elaboração e um aprimoramento
consideráveis de suas idéias. O Marxismo não pode ser adequadamente definido como
sendo “as idéias de Karl Marx”, como se Marx tivesse sido incorporado por seus seguidores
de uma forma rústica, sem adaptações; antes, o termo designa o amplo espectro de modos
pelos quais Marx tem sido incorporado, reaprendido e aplicado, à luz das necessidades e
33
oportunidades de determinadas situações sócio-econômicas. Para relatar a gênese e o
desenvolvimento, os êxitos e fracassos do Marxismo, é necessário considerar as origens do
ideário marxista e a maneira pela qual se considerou essa herança aplicável a situações que
não eram, necessariamente, idênticas àquelas visualizadas pelo próprio Marx. O debate
entre Karl Kautsky e Edward Bernstein retrata a percepção de que o Marxismo poderia se
tornar irrelevante às necessidades das sociedades ocidentais em conseqüência do
34
desenvolvimento econômico devido a uma ênfase excessiva que há no Marxismo a
respeito da específica situação sócio-econômica discutida por Marx. Com a erosão dessa
situação originária, por meio do desenvolvimento histórico, o Marxismo poderia, na visão
de Bernstein, tornar-se irrelevante, a menos que se adaptasse à nova situação.
Da mesma forma, para relatar as origens e o desenvolvimento do Calvinismo, incluindo
seus sucessos e fracassos, é necessário perguntar de que maneira e em que extensão as
idéias de Calvino foram incorporadas por seus seguidores. Como se percebeu que essas
idéias eram aplicáveis às situações sociais, políticas e econômicas, as quais tinham pouca
relação com aquela do século 16, em Genebra, em meio à qual elas foram originariamente
formuladas? Sutis alterações de equilíbrio e ênfase podem retratar percepções, por parte dos
agentes de Calvino e de seus seguidores, em relação à necessidade de serem seletivos
quanto às suas idéias, para lidarem com as novas situações e suas oportunidades. Por
exemplo, o próprio Calvino era irredutível em sua oposição à revolução armada contra os
governos legalmente constituídos (por exemplo, Institutas IV.xx.25); muitos Calvinistas
franceses, porém, optaram por ignorar ou negligenciar esse ponto e apoiar, abertamente, a
conjuration d’Amboise (1560), uma tentativa frustrada de levar adiante a causa da Reforma
35 36
na França pela remoção de certos oponentes por meio da força. Em particular na esfera política, o Calvinismo
desenvolveu idéias e perspectivas que foram muito além das modestas recomendações provenientes de Genebra, mesmo que, em última instância, fossem inspiradas nas

propostas de Calvino. O sucesso extraordinário do Calvinismo sugere que a herança de Calvino foi incrivelmente frutífera nesse aspecto.

Uma complicação adicional surge por intermédio da influência de indivíduos que,


embora claramente associados a sistemas teológicos que possuíam alguma relação com o
pensamento de Calvino, não podiam ser considerados como “calvinistas”, no sentido estrito
do termo. Exemplos desses indivíduos incluiriam Pietro Martire Vermigli e Giralmo
Zanchi, cujas origens ita-lianas os levaram a adotar uma abordagem em relação ao método
37
teológico bastante diversa daquela adotada por Calvino. Embora suas idéias fossem, de
muitas maneiras, semelhantes às de Calvino, resultavam da aplicação de um método
teológico bastante diferente. O Calvinismo posterior parece ter apreciado e se inspirado nos
escritos desses dois indivíduos, aparentemente sem perceber a extensão ou a natureza das
sutis diferenças entre eles e Calvino. O “Calvinismo”, portanto, veio a incluir uma série de
elementos, principal-mente quanto ao método teológico, que eram tidos como
autenticamente calvinistas – ainda que, paradoxalmente, não devessem ao próprio Calvino
suas origens. As plenas implicações desse processo de assimilação talvez sejam melhor
percebidas na posterior discussão calvinista sobre a predestinação, onde as influências de
Vermigli e Zanchi parecem superar a do próprio Calvino.
O termo “calvinista” é, portanto, potencialmente enganoso no sentido de sugerir um
movimento primordialmente voltado à apropriação da herança intelectual de Calvino.
Contudo, pode-se demonstrar que teólogos historicamente tidos como “calvinistas”em suas
perspectivas consideravam-se livres para se inspirar em recursos teológicos e
metodológicos diversos dos escritos do próprio Calvino. Calvino pode ser visto como a
estrela mais importante do firmamento calvinista; existiram, no entanto, outras estrelas,
cujas idéias e métodos modificaram as de Calvino em certos pontos. É por esse motivo que
o termo “Reformado” é preferível ao termo “Calvinista”, pelo fato de que o primeiro não
implica em uma dependência exclusiva, em relação ao próprio Calvino.
O Calvinismo internacional não foi uma abstração intelectual, mas – como qualquer
outro movimento internacional – tomou formas locais bastante específicas, as quais
estavam sujeitas a uma série de contingências históricas. Ele foi situado em meio a forças
regionais e, assim, modelado por estas em uma série de sociedades bastante diversas. Cada
uma dessas sociedades possuía sua própria história, seus interesses e costumes particulares,
38
suas próprias tensões e necessidades internas. Já vimos como, em resposta a circunstâncias
locais, o Calvinismo francês veio a desenvolver idéias políticas, na década de1570, que
guardam pouca semelhança com aquelas que são associadas a Calvino. Portanto, o
“Calvinismo” veio a significar algo diverso em cada uma de suas manifestações locais,
retratando fatores locais que se combinaram para lhe dar uma forma diferente, uma
identidade diversa, em suas várias localidades. As colônias americanas, cidades-estado, tais
como Genebra e La Rochelle, potências européias, tais como os Países Baixos, principados
como
o Palatinato: todos podem ser descritos, em uma generalização bastante fácil, como
“calvinistas” – porém, o “Calvinismo” em questão era específico, em cada situação. O
historiador é obrigado a levar em conta essa diversidade em meio ao movimento e a avaliar
sua importância.

UM SISTEMA RELIGIOSO
O Calvinismo possuiu um incessante e inerente impulso por sistematização, nutrido pela
perspicácia sobre a necessidade de se defender, a princípio, em face da oposição católica
39
romana e estimulado ainda mais por importantes mudanças, no clima intelectual da Europa ocidental. À medida que a influência do Renascimento começou a
diminuir, a hostilidade em relação à sistematização decresceu. As novas idéias dos humanistas aristotélicos de Pádua começaram a conquistar uma audiência mais atenta

e favorável, à medida que surgiu uma nova consciência sobre a importância da possibilidade do desenvolvimento de um método universal, aplicável a todas as ciências –

inclusive à teologia. Escritores calvinistas, sempre mais sensíveis ao seu contexto intelectual do que muitos dos seus adversários, reagiram por intermédio da criação de

sofisticados sistemas teológicos, capazes de explorar os recursos e as atitudes do novo clima acadêmico; nisso eles estavam, provavelmente, uma geração à frente do

Luteranismo, contribuindo posteriormente para que esse último fosse relativamente ofuscado fora de seus territórios alemães. Até a metade do século 17, o

Calvinismo estava firmemente consolidado como um movimento acadêmico de vanguarda


em muitas universidades européias, assim como na Faculdade de Harvard, em
40
Massachusetts. A questão sobre como se desenvolveu essa forma acadêmica do Calvinismo, comumente designada como “escolasticismo Calvinista”, é da
maior importância.

Mesmo até a época da morte de Calvino (1564), o Calvinismo tinha se consolidado


como a melhor alternativa ao Catolicismo Romano na Europa ocidental, auxiliado
grandemente pelo brilhantismo de Calvino ao reconhecer a importância da organização e da
estrutura eclesiástica para a sobrevivência de um movimento. Seus sucessores
reconheceram a importância de estender esse processo ao seu pensamento religioso, a fim
de complementar as instituições eclesiásticas calvinistas com estruturas intelectuais
igualmente resistentes. Nesse processo, uma nova ênfase veio a ser colocada sobre a
doutrina da predestinação. A extensão e a intensidade dos debates sobre essa doutrina, em
meio ao Calvinismo posterior (ilustrada, particularmente, pela controvérsia arminiana),
indicam sua grande importância para os seguidores de Calvino. O Calvinismo põe uma
ênfase sobre essa doutrina, que é geralmente ausente no pensamento de Calvino. Duas
razões principais podem ser dadas para essa evolução, uma sociológica e a outra teológica.

A FUNÇÃO SOCIAL DA DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO


Análises recentes sobre as origens, natureza e função de doutrinas cristãs têm chamado a
41
atenção para a maneira pela qual as doutrinas funcionam como demarcadores sociais. Há
uma necessidade óbvia de que um grupo religioso se defina em face de outros grupos
religiosos e do mundo, em geral. O fenômeno geral da “doutrina” – embora não as
doutrinas específicas – é ligado à necessidade de uma definição social, especialmente
quando outros fatores não definem, de forma adequada, o grupo. Uma ideologia que
legitime a existência desse grupo se faz necessária. Portanto, Niklas Luhmann, talvez o
mais eminente escritor da atualidade a tratar da questão da função social da doutrina cristã,
ressalta que a doutrina surge, em parte, em resposta às supostas ameaças à identidade
religiosa distinta de um grupo, as quais podem ocorrer através de encontros ou conflitos
com outros sistemas religiosos. A doutrina é, segundo Luhmann, o auto-reflexo de uma
comunidade religiosa, pela qual esta mantém sua identidade e regula suas relações com
outras comunidades do mesmo tipo e com todo o sistema social, em geral. A função social
da doutrina é particularmente evidente e significativa, nos casos em que um grupo religioso
se origina a partir da ruptura com um grupo anterior (por exemplo, no caso do surgimento
do Cristianismo, a partir da matriz do Judaísmo, ou da emergência das igrejas da Reforma,
a partir da Igreja Católica medieval).
Nas primeiras fases da Reforma, o reconhecimento da importância social da doutrina é
especialmente associado a Martinho Lutero. A facção luterana, em Wittenberg, optou por
se definir em relação a um critério explicitamente doutrinário: a doutrina da justificação
apenas pela fé. Foi com base nessa doutrina que a facção luterana, a qual em breve se
tornaria a Igreja Luterana, se posicionaria frente ao mundo e ao papado. Uma vez que a
Igreja Luterana consolidou-se como uma alternativa séria e de potencial credibilidade
perante a Igreja medieval, a auto-definição, por meio de formulações doutrinárias, tornou-
se, mais uma vez, de importância crucial para a Igreja Católica. A importância do Concílio
de Trento se encontra em sua percepção da necessidade da Igreja Católica em definir a si
mesma – no lugar de definir os hereges – em um nível doutrinário. Os primeiros concílios
medievais tenderam, simplesmente, a condenar opiniões heréticas, definindo, assim, as
perspectivas daqueles que as cogitavam (ou estavam dispostos a admitir cogitálas) como
hereges e, portanto, fora dos limites da Igreja. Em outras palavras, eles definiram o que
estava fora dos limites da Igreja, pressupondo que os demais, cujas perspectivas não
necessitavam de definição, estivessem dentro desses limites. O Concílio de Trento, ao
discutir a doutrina da justificação, sentiu-se na obrigação de fazer mais do que meramente
censurar as idéias luteranas: forneceu uma definição explícita dos limites intelectuais (e,
conseqüentemente, sociais) da Igreja.
Essa evolução retrata a necessidade crescente de separar os católicos dos evangélicos, na
Europa do século 16, especialmente em regiões disputadas, como a Alemanha. A Igreja
Católica foi obrigada a fornecer um critério de auto-identidade, para que seus limites
pudessem ser definidos em face da ameaça advinda do Protestantismo. Pode-se considerar
que a Reforma, portanto, precipitou a restauração da doutrina como um critério de
demarcação social, uma função que não havia sido de importância decisiva durante o
período medieval.
É evidente a importância da doutrina como um critério de demarcação social em certas
regiões geopolíticas da Europa, durante o século 16, a partir
42
dos acontecimentos na Alemanha, durante o período da chamada “Segunda Reforma”, à
medida que as comunidades luteranas e reformadas adentraram em um período de grande
tensão, nas décadas de 1560 e 1570, devido à expansão da Igreja Reformada onde, até
então, era considerado território exclusivamente luterano. O princípio cuius regio eius
religio – “sua região define sua religião” – estipulado pela Paz Religiosa de Augsburgo
(1555) parece ter permitido que a geografia política funcionasse como um critério de
demarcação religiosa: essa possibilidade foi eliminada com o surgimento do Calvinismo
(não previsto pela Paz), forçando a demarcação social a se fundamentar, novamente, em
critérios doutrinários.
O fenômeno do final do século 16, a “confissionalização”, pelo qual as comunidades
luteranas e reformadas, semelhantemente, definiam a si mesmas por intermédio de
formulações doutrinárias expressas e extensas, representa o resultado inevitável de uma
busca por autodefinição, por parte de duas organizações eclesiásticas, dentro da mesma
região geográfica, ambas alegando serem produtos legítimos da Reforma. Nos âmbitos
social e político, as comunidades eram difíceis de se diferenciar; portanto, a doutrina
proporcionou o meio mais garantido pelo qual elas pudessem se definir, uma em relação à
outra.
Contudo, o Luteranismo e o Calvinismo eram, em muitos aspectos, incrivelmente
semelhantes no âmbito doutrinário. Ambos colocavam uma grande ênfase na prioridade das
Escrituras, da adoração na língua local e da função positiva da pregação; ambos rejeitavam
a autoridade papal, a comunhão em um só elemento (isto é, a que permitia que os leigos
recebessem apenas o pão na comunhão, e não também o vinho) e as estruturas ministeriais
da Igreja Católica Romana. Em termos de suas práticas, os dois grupos eram bastante
semelhantes. É verdade que havia diferenças doutrinárias entre eles; porém, a maioria das
diferenças entre o Luteranismo e o Calvinismo eram tão sutis que era difícil, para alguém
que não fosse um teólogo, compreendê-las plenamente. A doutrina da predestinação, dessa
forma, fornecia uma diferença teológica expressiva (e fácil de compreender) entre os dois
43
grupos. E assim, a necessidade de diferenciá-los como entidades sociais levou,
naturalmente, a que se atribuísse um certo grau de prioridade a essa doutrina, não
necessariamente em razão de qualquer ênfase particular nela posta pelos calvinistas, mas
devido à sua utilidade como um meio que permitia que dois grupos, sob outros aspectos
semelhantes, pudessem ser diferenciados.

A função teológica da doutrina da predestinação


Como observado anteriormente, é incorreto dizer que Calvino tenha criado um “sistema”
no sentido estrito do termo. Suas idéias religiosas, da maneira como apresentadas na edição
de 1559 das Institutas, estão dispostas sistematicamente, de acordo com razões
pedagógicas; elas não são, contudo, derivadas de uma sistematização segundo um princípio
44
especulativo determinante. Calvino nada sabe a respeito de qualquer diferenciação
metodológica fundamental entre exegese bíblica e teologia sistemática que viria a se tornar
característica do pensamento Reformado posterior.
No período posterior à sua morte, porém, um novo interesse pelo método ganhou
impulso. Os teólogos reformados, herdeiros das idéias religiosas de Calvino, encontraram-
se sob uma crescente pressão para defender suas idéias frente a seus oponentes luteranos e
católico romanos. Esse esforço foi tão significativo que teólogos como Teodoro de Beza,
Lambert Daneau, Pietro Martire Vermigli e Giralmo Zanchi estavam dispostos a usar toda
arma que possuíssem para assegurar, ao menos, sua sobrevivência, se não uma vitória
completa, em face de tamanha oposição. A razão,vista por Calvino com certa reserva, era
45
agora acatada como uma aliada. Tornou-se cada vez mais importante demonstrar a
coerência e consistência internas do Calvinismo. Como conseqüência, muitos escritores
calvinistas voltaram-se para a litera-tura sobre métodos do final do Renascimento, na
esperança de que isso pudesse oferecer-lhes sugestões, acerca de como sua teologia poderia
ser estabelecida sobre uma base racional mais sólida.
46
Quatro características desse novo enfoque em relação à teologia podem ser percebidas.
Primeiro, a teologia cristã é apresentada como um sistema logicamente coerente e
racionalmente defensável, que era derivado de deduções silogísticas, baseadas em axiomas
conhecidos. Segundo, a razão humana recebe um papel importante na investigação e defesa
da teologia cristã. Terceiro, a teologia é vista como algo baseado na filosofia aristotélica e,
particular-mente, nas idéias aristotélicas sobre a natureza do método; escritores reformados
posteriores são descritos mais adequadamente como teólogos filosóficos do que bíblicos.
Quarto, a teologia se preocupa com questões metafísicas e especulativas, especialmente as
relacionadas à natureza de Deus, seu propósito para a humanidade e a criação e, sobretudo,
à doutrina da predestinação.
Mas como isso se deu? Como um movimento, a princípio, contrário ao Escolasticismo,
em geral, e à doutrina aristotélica, em particular, veio a
desenvolver um Escolasticismo aristotélico, pouco tempo após da morte de seu fundador? E
por que tal ênfase veio a ser colocada sobre a doutrina da predestinação? Para investigar
essas questões, faz-se necessário considerar as teorias sobre método, elaboradas por
escritores calvinistas como de Beza e Zanchi.
Por todo o período final do Renascimento a Universidade de Pádua des-tacou-se, dentre
o remanescente do Humanismo, como uma fortaleza do Aristotelismo; este não era, porém,
o Aristóteles dos escolásticos medievais, interessado principalmente em questões
47
metafísicas, mas um Aristóteles interessado em questões metodológicas. Para os escritores
da escola de Pádua, principalmente Giacomo Zabarella (1532-1589), era possível
desenvolver um método universal, em princípio aplicável a toda ciência; esse método devia,
48
em tese, identificar-se com a lógica. Era inevitável que a lógica Aristotélica, com sua
ênfase acentuada sobre a função dos silogismos, viesse a se tornar, portanto, de
fundamental importância. Se a teologia era uma ciência, como acreditava a maioria dos
teólogos ao final do século 16, ela deveria, em tese, ser capaz de se enquadrar às normas
metodológicas gerais, elaboradas para todas as disciplinas pela escola de Pádua. Assim, em
sua aula inaugural em Heidelberg, Zanchi ressaltou que a teologia deveria ser capaz de
construir seus fundamentos e elaborar seus princípios com cuidado semelhante ao da lógica
49
ou da matemática, se não maior.
Até a década de 1560, o Aristotelismo estava amplamente consolidado por todas as
universidades da Europa, inclusive em muitos centros importantes até então vinculados à
Reforma. Filipe Melanchthon havia introduzido Aristóteles no currículo, em Wittenberg,
50
assim como fez Beza, em Gene-bra. Possíveis rivais – como o sistema de Pierre Ramus –
haviam sido eliminados. As universidades luteranas, porém, eram geralmente relutantes em
readmitir Aristóteles; foi apenas por volta da segunda década do século 17 que o
Aristotelismo foi aceito nesses centros.
O impacto de Aristóteles sobre a teologia Reformada do final do século 16 é evidente:
silogismos dedutivos formais são encontrados por toda parte, especialmente nos escritos de
Zanchi. O ponto de partida da teologia são princípios gerais, e não um acontecimento
51
histórico específico. Contudo, deve-se ressaltar que esses princípios gerais não devem ser
entendidos como puramente racionais; eles são, ao contrário, uma concessão da revelação
divina. É esse desenvolvimento que nos permite entender a nova importância que veio a ser
atribuída à doutrina da predestinação.
Enquanto Calvino adota um enfoque teológico indutivo e analítico, con-centrando-se no
evento histórico especifico de Jesus Cristo e prosseguindo na investigação de suas
52
implicações, Beza adota um enfoque dedutivo e sintético, partindo de princípios gerais e
53
prosseguindo na dedução de suas conseqüências para a teologia cristã. É possível que essas
idéias de Beza tenham derivado diretamente dos escritos do aristoteliano de Pádua, Pietro
54
Pomponazzi; entretanto, permanece em aberto a possibilidade de que essa metodologia de
Pádua possa ter sido mediada através de Vermigli e Zanchi. Esses princípios gerais – os
decretos divinos – são determinados com relação à doutrina da predestinação, que assume,
dessa forma, um status de princípio determinante, afetando o posicionamento e a discussão
das mais diversas doutrinas, como a da Trindade, a das duas naturezas de Cristo, a da
55
justificação pela fé e a da natureza dos sacramentos. A existência da predestinação é tida
como algo que implica em um decreto ou decisão divina de predestinar, e é esse decreto
divino de predestinação que assume uma posição predominante dentro do contexto da
doutrina de Deus, de Teodoro de Beza. É interessante notar que Calvino trata a
predestinação como um aspecto secundário da doutrina da salvação, enquanto Beza segue
Tomás de Aquino ao torná-la um aspecto da doutrina de Deus. Beza enfatiza que os
decretos divinos não são especulações construídas pela imaginação humana, mas devem ser
derivados das Escrituras, porém a maneira como eles devem derivar implica em tratar as
Escrituras como um conjunto de proposições, a partir das quais os decretos divinos possam
ser deduzidos, e não como um testemunho ao evento central de Jesus Cristo, a partir do
qual a natureza da predestinação possa ser inferida.
A centralidade da doutrina da predestinação pode ser apreciada através da análise da
célebre ordo rerum decretarum, da autoria de Teodoro de Beza, que dispõe, na forma de
um fluxograma, sua visão sobre a natureza e a execução dos decretos divinos de eleição
(Figura 10.2). Na história da salvação, tudo é mostrado como sendo a execução lógica, no
tempo do “eterno e imutável propósito de Deus” (propositum eius aeternum et immutabile).
Uma importante conseqüência dessa elaboração pode ser observada. Por quem Cristo
morreu? A questão foi levantada na célebre controvérsia do século 9 sobre a predestinação,
na qual o monge Beneditino Godescalc de Orbais desenvolveu a doutrina da dupla
predestinação, semelhante àquela que seria, mais tarde, associada a Calvino e seus
56
seguidores. Perseguindo, com uma lógica obstinada, as implicações de sua afirmação de que Deus havia predestinado alguns para
a condenação eterna, Godescalc mencionou que era, portanto, bastante impróprio falar que
Cristo tivesse morrido por esses indivíduos; se ele assim tivesse feito, teria morrido em vão,
pois o destino deles permaneceria inalterado. Hesitante quanto às implicações de sua
afirmação, Godescalc propôs que Cristo morreu somente em favor dos eleitos. O propósito
de sua obra redentora se limitava àqueles que estavam predestinados a se beneficiar de sua
morte. Muitos escritores do século 9 reagiram com descrédito a essa afirmação. Ela deveria,
contudo, ressurgir, ao final do Calvinismo.
Um exame da “descrição e distribuição das causas de salvação dos eleitos e da
destruição dos não aprovados”, de Teodoro de Beza, demonstra o ponto em discussão.
Somente os eleitos é que são beneficiados pela morte de Cristo. Na verdade, Cristo só
aparece no lado esquerdo do gráfico, tratando do destino dos eleitos; ele não é mencionado
na porção direita do gráfico, que delineia o avanço dos condenados em direção à morte
eterna. Embora Vermigli e Zanchi não tenham proporcionado a seus leitores diagramas
com os quais eles pudessem traçar sua rota para a salvação, suas obras publicadas trazem
abundantes ilustrações desse mesmo ponto: somente os eleitos podem esperar ser
57
beneficiados pela encarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Deve-se ressaltar que
em momento algum o próprio Calvino sugere que Cristo morreu apenas pelos eleitos; a
doutrina calvinista da reconciliação limitada parece ter resultado, ao menos em parte, da
influência desses dois escritores italianos e da crescente percepção acerca da necessidade de
se reatarem os fios desconexos da teologia. Isso serve para nos lembrar a variedade de
fontes sobre as quais o Calvinismo se sentiu capaz de se inspirar e a sutileza de sua relação
com o próprio Calvino.
A doutrina da dupla predestinação absoluta e sua conseqüência lógica, a reconciliação
limitada, dividiu o Calvinismo em duas facções em conflito, particularmente nos Países
Baixos. Armínio argumentava com veemência, a partir de fundamentos pastorais e
metodológicos, em prol da modificação da visão de Beza sobre a natureza e a função da
predestinação. Suas observações são particularmente relevantes, pelo fato de que indicam
seu reconhecimento sobre o papel das considerações metodológicas na formação das
atitudes em relação à predestinação. Para Armínio, o enfoque teológico de Beza, via
predestinação, é o resultado da aplicação de um método dedutivo e sintético; o método
teológico correto, argumenta ele, é
o indutivo e analítico:
Figura 10.2 – Diagrama de Teodoro de Beza, representando a sequência lógica da redenção
humana, mostrando os decretos divinos de eleição.
Há uma antiga máxima, entre aqueles filósofos que são os mestres do método e da
ordem, a qual diz que as ciências teóricas devem ser elaboradas por uma ordem
sintética (ordine compositivo); as ciências práticas, porém, por meio de uma ordem
analítica (vero resolutivo); por esse motivo e porque a teologia é uma ciência prática,
esta deve, conseqüentemente, ser tratada segundo o método analítico (methodo
58
resolutiva).

Para Armínio, tratar a teologia como uma ciência teórica – o que faz Beza, seguindo
Zabarella – é extremamente inapropriado.
Uma reação semelhante, contrária à doutrina da predestinação de Beza, pode ser vista
em meio a Academia Protestante Francesa de Saumur, no século 17, novamente por razões
metodológicas. Sob a influência de Beza, a lógica aristotélica silogística se tornou um
59
componente essencial do currículo da Academia de Genebra. A recusa de Beza em admitir
Pierre Ramus como professor na Academia era baseada em sua hostilidade em relação ao
pro-grama antiaristotélico de Ramus, evidenciado em sua lógica. Embora o modelo
aristotélico de Genebra fosse adotado por muitas academias Reformadas, em toda a Europa,
a lógica de Ramus era ensinada na Academia Protestante de Saumur – e com base nessa
lógica, que se recusava a deduzir o particular a partir do geral, os posteriores acadêmicos de
Saumur, tal como Moses Amyraut, desafiaram a base da doutrina ortodoxa da
60
predestinação. Sob ambas as contestações a essa doutrina, conforme havia sido desenvolvi-
da por Beza, estava uma crítica aos pressupostos metodológicos herdados da escola de
Pádua, nos quais se considerava que ela se baseasse.
Os remonstrantes, grupo simpatizante às idéias de Armínio, alegavam que Cristo havia
morrido por todos e que todos mereciam a salvação; contudo, apenas aqueles que nele
61
crêem recebem o beneficio da salvação. Em outras palavras, Cristo morreu por todos, de
tal forma que sua morte era suficiente e eficaz para qualquer um que optasse por responder
a Cristo pela fé. A doutrina da predestinação foi reinterpretada com referência a um
princípio geral de fidelidade; Deus havia predestinado qualquer um, que se volte a Cristo
pela fé, para receber a salvação. Para a maioria, porém, a predestinação tinha uma
referência especificamente individual; ela representava a decisão divina de eleger uma
62
determinada pessoa para a vida ou para a morte.
O Sínodo de Dort (1618-19) reuniu-se para solucionar as divisões em meio à Igreja
reformada nos Países Baixos, que surgiram de conflitos em torno da
A GÊNESE DE UM MOVIMENTO 247

63
doutrina da predestinação e da reconciliação limitada. O resultado é geralmente
considerado como uma vitória para o grupo de Beza. Embora os Países Baixos ainda
tivessem que estabelecer sua reputação como um centro de cultivo de tulipas, o mundo de
língua inglesa pode ter antecipado essa evolução. Os “Cinco Pontos” do Sínodo podem ser
assim resumidos, por meio da fórmula mnemônica formada com a palavra tulipa (TULIP,
em inglês):

T– Total depravação da natureza humana.


U – Incondicional (Uncondicional, em inglês) eleição do indivíduo.
L– Limitada reconciliação: Cristo morreu somente pelos eleitos.
I– Irresistível graça: Deus é capaz de realizar seus propósitos.
P– Perseverança dos santos: aqueles a quem Deus elegeu não abando
narão seu chamado.

Ao observar que essas perspectivas não são idênticas às de Calvino, não estamos
sugerindo que o Calvinismo posterior tenha distorcido as perspectivas de seu fundador.
Antes, estamos chamando a atenção para a variedade de fontes sobre as quais o Calvinismo
posterior foi capaz de se inspirar. Historicamente, é inapropriado sugerir que o Calvinismo
foi simplesmente a apropriação da herança de Calvino; outros escritores, tais como
Vermigli e Zanchi, também foram incorporados a ele. O Calvinismo posterior é um com-
plexo amálgama de elementos derivados de uma série de fontes, das quais Calvino
representa apenas uma. Pode ser que a visão transmitida em relação ao Calvinismo seja a de
um movimento que se inspirou exclusivamente em Calvino, contentando-se com a
repetição de suas doutrinas; o historiador, porém, sabe da existência de um fenômeno muito
diferente – um movimento dinâmico e criativo, sensível aos recentes avanços nos círculos
intelectuais, que se inspirou na doutrina de outros escritores reformados, além de Calvino, e
incorporou (não está claro se de forma direta, através de escritores como Pomponazzi ou
indireta, através de escritores como Zanchi) noções de sistema, método e raciocínio,
aparentemente ignoradas por Calvino, com a finalidade de desenvolver um sistema coerente
64
de doutrina cristã.
O vasto tema da predestinação, que recebeu tamanha ênfase no Calvinismo posterior,
pode parecer, em ultima análise, irrelevante para os problemas e a realidade do mundo
atual. Como – seria admissível que se perguntasse – um conceito tão abstrato e intangível
poderia ter alguma relação com os problemas mundanos? Tamanha obsessão com a
predestinação pode parecer levar a uma falta de interesse e de engajamento com o mundo
atual, em favor de uma obsessão em relação ao misterioso mecanismo da eternidade. Na
verdade, porém, a noção calvinista de predestinação serviu para modelar atitudes em
relação à vida cotidiana que parecem ter sido de grande importância social e econômica. É
possível que a doutrina da predestinação de Calvino, modificada por seus sucessores, seja
responsável, ao menos em parte, pela geração de perspectivas em relação ao trabalho que
são de importância decisiva para uma compreensão da natureza e do propósito do trabalho
humano, as quais podem perfeitamente ter alguma implicação com a gênese do Capitalismo
moderno. Essa sutil interação entre as atitudes religiosa, social e econômica representa o
objeto do capítulo seguinte.

11

COMPROMISSO COM O MUNDO:


O CALVINISMO, O TRABALHO
E O CAPITALISMO

O acadêmico do século 16, Roland H. Bainton, disse que o Cristianismo, quando é


1
levado a sério, deve renunciar ao mundo ou dominá-lo. Ambos os casos podem ser
ilustrados a partir da grande revolução que foi a Reforma na Europa. Muitos dos
Reformadores radicais rejeitaram as estruturas coercitivas da sociedade de sua época,
recusando-se a fazer juramentos, a ocupar qualquer cargo oficial, a servir em qualquer
2
função militar ou, até mesmo, a pegar em armas Essa atitude apolítica e de renúncia ao
mundo requeria, inevitavelmente, um afastamento do mundo. Talvez, baseando-se no
modelo da Igreja anterior a Constantino – a qual existiu no Império Romano, mas não como
parte deste – os radicais comumente concebiam suas comunidades como sen-do uma
“sociedade alternativa” em meio à sociedade maior que os rodeava, mas não como sendo
parte integrante dessa última.
O contraste com o Calvinismo não poderia ser mais pronunciado. Se houve qualquer
movimento religioso, no século 16, que tenha tido uma atitude afirmativa em relação ao
mundo, esse foi o Calvinismo. Contudo, o Calvinismo validava o mundo com a finalidade
de dominá-lo, dirigindo-se às suas situações específicas, em vez de se deliciar em
especulações abstratas. Reiteradamente, tanto em sua teologia quanto em sua
espiritualidade, Calvino se recusava a consentir em generalizações ou abstrações fáceis. Em
uma comparação altamente esclarecedora entre Church Dogmatics, de Karl Barth, e Doctor
Wortle’s School, de Anthony Trollope, Stanley Hauerwas aponta o caráter peculiarmente
abstrato da ética de Barth, o qual confere uma aura irreal à sua descrição da vida moral;
essa abstração se torna ainda mais evidente por meio da comparação com a concretude de
Trollope, pelo fato de sua descrição da moralidade ser firmada em pessoas e sociedades
3
específicas, em lugar de princípios impessoais. Resumindo, o pensamento de Barth sobre a ética não se baseia, de forma
adequada, nas realidades da existência humana.

Essa fragilidade é marcantemente ausente em Calvino. Por todos os seus escritos,


encontramos uma determinação de se engajar na objetiva existência social dos seres
humanos, juntamente com os problemas e as possibilidades que daí derivem. Parece que
Calvino aprendeu em Estrasburgo as mesmas lições que Reinhold Niebuhr aprendeu, no
centro de Detroit, durante a década de 1920. Em seu livro Leaves from the Notebook of a
Tamed Cynic (1929), Niebuhr escreveu:

Se um pastor pretende ser diferenciado, ele precisa apenas deixar de cultivar uma
devoção por ideais abstratos, que todos aceitam na teoria, mas negam na prática, e
preocupar-se com sua validade e praticidade em relação às questões sociais que ele e
outros enfrentam em nossa civilização atual. Isso automaticamente concede a seu
ministério um toque de realidade e poder.

Justamente esse padrão é que se destaca nos escritos de Calvino sobre espiritualidade e
em sua homilética. Calvino discute situações humanas reais e específicas – sociais, políticas
e econômicas – com todos os riscos que essa especificidade possa envolver. Mesmo a sua
análise sobre a ansiedade
4
– um elemento significativo, no pensamento do século 16 – leva seus seguidores a
considerar a superação da ansiedade como sendo uma atividade especificamente terrena,
5
em vez de espiritual. É perfeitamente justo que se descreva o pensamento de Calvino como
6
uma “teologia antiteológica”, des-de que se entenda isso não como uma ausência de
teologia, mas como uma ênfase à trajetória distintamente afirmativa em relação ao mundo e
antiespeculativa de suas idéias. A “secularização do sagrado” (Henri Hauser), encontrada
em Calvino, envolvia trazer toda a esfera da existência humana para dentro do âmbito da
santificação divina e da dedicação humana. Foi
O CALVINISMO, O TRABALHO E O CAPITALISMO

essa santificação da vida, da qual a santificação do trabalho representa o pilar principal, que
impressionou os seguidores de Calvino.
Como veremos, seus herdeiros compartilharam e se beneficiaram dessa obstinada
motivação em relacionar a teoria à prática. Freqüentemente, temse observado que uma
extrema preocupação com as coisas desse mundo domina os escritos de Teodoro de Beza,
conferindo-lhes um tom curiosa-mente não religioso; contudo, é fácil demonstrar que essa
7
preocupação brota diretamente de sua teologia, que é afirmativa em relação ao mundo. O
filósofo político Leo Strauss sugeriu que o envolvimento do Calvinismo posterior nas
questões mundanas representou um subseqüente desenvolvimento do pensamento de
8
Calvino, uma “interpretação carnal de um ensinamento espi-ritual”. Isso é insustentável; a
9
própria teologia de Calvino é radicalmente voltada à ação secular, uma tendência que foi
desenvolvida e firmada em uma base ideológica mais rigorosa por seus sucessores. A
propensão calvinista por uma ação resoluta no âmbito secular é nutrida e informada por
fontes teológicas profundas, facilmente desconsideradas pelo historiador.
Contudo, deve-se registrar uma nota de cautela. Aqueles que parecem dominar o mundo
são, comumente, aqueles que têm sido por ele dominados. Aqueles cristãos que são
considerados bem-sucedidos no mundo são, com bastante freqüência, aqueles que se
renderam aos padrões do mundo. A atitude intensamente afirmativa, que sustenta a
perspectiva calvinista em relação à vida, é constantemente vulnerável; o delicado equilíbrio
entre a Igreja e
o mundo pode ser facilmente perturbado, levando à sua separação radical, de um lado, ou –
e aqui se encontra o maior perigo – à sua fusão, de outro. Está latente no Calvinismo um
enfoque puramente profano quanto à vida, pelo qual a falha em se manter uma dialética
apropriada entre Deus e o mundo leva ao colapso do divino, em relação ao secular. As
estruturas e valores morais, econômicos, sociais e políticos do Calvinismo, embora
firmemente fundamentados na teologia, podem com facilidade se separar dessas raízes
teológicas e manter uma existência independente. A emancipação dessas estruturas e
valores com relação à própria fé, por intermédio de um processo de erosão cultural, é um
dos aspectos mais significativos da recepção e assimilação ocidental do Calvinismo,
especialmente na América do Norte.
O próprio Calvino construiu uma sofisticada dialética entre a fé e o mundo, a qual
permitiu um espaço para a ação positiva no mundo, ao mesmo tempo em que identificava e
10
prevenia os riscos que isso envolvia. A forma de vida que é mais louvável aos olhos de Deus é aquela que é útil à sociedade:
“ainda que possamos ter uma grande admiração pelo celibato e a vida filosófica, alienados
da vida cotidiana”, as pessoas mais adequadas para liderar tanto a Igreja quanto a sociedade
11
são aquelas que estão imersas na experiência e na prática da vida cotidiana. Os cristãos são
encorajados e até mesmo compelidos a se dedicarem ao mundo e a se comprometerem com
ele. Não há espaço, no pensamento de Calvino, para a atitude monástica medieval em
relação à sociedade, que levava à situação na qual os indivíduos renunciavam ao mundo,
enquanto as instituições, às quais eles serviam, afirmavam-no (Institutas III.xi.3-4). Porém,
o cristão, ainda que se envolva nas questões e ansiedades do mundo, deve aprender a se
manter a uma distância crítica. A dedicação e o compromisso exterior em relação ao mundo
devem ser acompanhados de um distanciamento interior e do incentivo a uma atitude crítica
quanto ao secular. Os cristãos devem envolver-se ativamente na esfera secular sem que
permitam, passivamente, serem por ela subjugados. “Nós devemos aprender a passar por
este mundo como se ele fosse um país estrangeiro, tratando superficialmente as coisas
12
terrenas e deixando de colocar nelas o nosso coração.”
Com essa atitude, era de se esperar que o Calvinismo viesse a desenvolver teorias sobre
a sociedade, o capital e a autoridade política que tivessem, potencialmente, o mesmo calibre
e amplitude de seu sistema religioso. Nossa atenção é, assim, atraída pelo vasto tema
“Calvinismo e Capitalismo”, que sintetiza, de forma precisa, a importância econômica
perceptível desse movimento. O Calvinismo, segundo muitos acreditam, é favorável ao
Capitalismo. Antes de iniciar uma análise substancial das origens e do caráter específico
das atitudes de Calvino e seus herdeiros em relação ao Capitalismo, é conveniente
apresentar a teoria que tem dominado a discussão acadêmica sobre esse tema – a tese de
Weber.
A TESE DE WEBER
Em Das Kapital, Karl Marx declarou que as origens do Capitalismo devem ser situadas
no século 16. Amintoni Fanfani, dando vazão à sua antipatia intensa tanto em relação ao
Protestantismo quanto ao Capitalismo, argumentava que o Catolicismo medieval era radical
13
e definitivamente anticapitalista. Um enfoque historicamente mais informado nega essas
afirmações. As operações de instituições financeiras medievais, tais como as dos Médici ou
dos Függer, são uma clara evidência de premissas e métodos capitalistas, no perí

O CALVINISMO, O TRABALHO E O CAPITALISMO

odo anterior à Reforma. Às vésperas da Reforma, cidades como Antuérpia, Augsburgo,


Liège, Lisboa, Lucca e Milão eram todas representantes do Capitalismo, em sua forma
medieval. Da mesma forma, não se pode ignorar a importância religiosa do Capitalismo
antes da Reforma: a capacidade da família Médici de comprar, abertamente, o papado, e a
dos Függer de controlar praticamente cada indicação episcopal importante na Alemanha,
Polônia e Hungria (ao mesmo tempo em que financiava a eleição de Carlos V, como
imperador) aponta para a importância do Capitalismo como uma força religiosa, na
iminência da Reforma. O Papa (Leão X), que havia excomungado Lutero, em 1520, era um
Médici que havia liquidado seu banco para conquistar o papado. Os estudos pioneiros de
Raymond de Roover – um contador que se tornou um historiador medieval – demonstraram
que as premissas e métodos capitalistas estavam profundamente arraigados em meio à
14
sociedade medieval como um todo, e não apenas em relação à compra de indicações
eclesiásticas. Estudos mais recentes confirmaram que o Capitalismo era uma parte
15
integrante da vida medieval, tanto social quanto intelectual. No entanto, sugerir que o
Capitalismo tenha sido uma invenção do Protestantismo ou que seja, de alguma forma,
devido a esse último é, evidentemente, absurdo.
Weber não sugeriu isso. A versão popular da tese de Weber – a de que o Capitalismo
seja uma conseqüência direta da Reforma Protestante – é tanto insustentável historicamente
quanto estranha aos objetivos declarados de Weber. Weber enfatizou que ele “não tinha
qualquer intenção de manter uma tese tão tola e dogmática quanto a de que o espírito do
Capitalismo... so-mente poderia ter surgido como um resultado de certos efeitos da
Reforma. Por si mesmo, o fato de se saber que certas formas importantes de organizações
empresariais capitalistas são mais antigas do que a Reforma é uma refutação suficiente
16
dessa alegação.”. A tese de Weber é muito mais sutil e merece maior atenção.
17
Weber alegou que o Capitalismo existia muito antes da Reforma. O desejo por riquezas
e propriedades é tão característico dos príncipes mercadores da Idade Média quanto das
tradicionais sociedades camponesas. O que necessita explicação é um novo “espírito do
Capitalismo”, o qual Weber verificou ter surgido no início do período moderno. Não foi
tanto o Capitalismo, tido como o Capitalismo moderno, que Weber achou que precisava de
explicação. Ele identificou as características do “Capitalismo moderno” por meio de sua
comparação com o que ele chamou de “Capitalismo predador”, do período medieval. O
Capitalismo predador, dizia ele, era oportunista e inescrupuloso; ele tendia a consumir o
capital que havia adquirido em estilos de vida decadentes e dados à ostentação. O
Capitalismo moderno, porém, era racional e possuía uma base fortemente ética; ele
praticava o ascetismo com relação ao uso dos bens materiais. O Capitalismo moderno –
argumentava ele – (embora a evidência indicada como base de suas afirmações seja
18
perigosamente frágil), era destituído de hedonismo quase ao ponto de evitar, de forma deliberada, o gozo direto da vida. Como – perguntava Weber –
poderia ser explicada essa dramática inversão?

Uma explicação religiosa parecia implícita. Weber observou que, embora a sociedade
medieval tolerasse atividades geradoras de capital, estas eram, contudo, geralmente
consideradas sem ética. Tomando como base de sua análise a Florença dos séculos 14 e 15,
com apelos ocasionais à história do banco dos Függer, em Augsburgo, Weber observou
uma tensão perceptível entre a acumulação de capital, por um lado, e a salvação das almas
daqueles que o acumulavam, de outro. Jacob Függer, por exemplo, estava consciente da
séria divergência que havia entre suas atividades como banqueiro e aquelas atividades que
eram tradicionalmente consideradas pela Igreja Católica como as que conduziam à
obtenção da salvação.
Porém, com o surgimento do Protestantismo asceta, desenvolveu-se uma nova atitude
em relação à acumulação de capital. Weber percebeu essa atitude, particularmente bem
ilustrada por uma série de escritores calvinistas dos séculos 17 e 18, tais como Benjamin
Franklin, cujos escritos a aprovam da acumulação de capital por meio de um envolvimento
com o mundo ao mesmo tempo em que criticava seu consumo. O capital deveria ser
aumentado, e não consumido. Christopher Hill sintetiza, dessa forma, a diferença entre as
atitudes católica e protestante: “Empresários medievais bem-sucedi-dos morreram com
sentimento de culpa e deixaram dinheiro para a Igreja, para ser empregado em finalidades
improdutivas. Empresários protestantes de sucesso não mais se envergonhavam de suas
atividades produtivas em vida e, ao morrer, deixaram dinheiro para ajudar outros a que os
19
imitassem.”. Assim, o Protestantismo criou os pré-requisitos psicológicos essenciais ao
desenvolvimento do Capitalismo moderno. Na verdade, é justo sugerir que Weber tenha
situado a contribuição fundamental do Calvinismo como sendo a sua geração de impulsos
psicológicos, em razão de seu sistema de crenças. Ele colocou especial ênfase sobre a
20
noção de “chamado”, a qual ele vinculou à idéia calvinista da predestinação. O calvinista
poderia alcançar a certeza de sua salvação de uma forma impossível para seus con

O CALVINISMO, O TRABALHO E O CAPITALISMO

temporâneos católicos, embora estivesse envolvido em atividades seculares. Desde que o


capital não fosse obtido por meios escusos nem consumido de maneira pródiga, sua geração
e acúmulo não apresentavam quaisquer objeções de ordem moral.
Tão grande é a relevância do surgimento do Capitalismo moderno para a formação da
civilização ocidental que, se um vínculo com João Calvino puder ser estabelecido, pode-se
creditar ao Reformador – de forma positiva ou negativa – a motivação de um impulso
fundamental do mundo moderno.
Mas será que pode ter sido ele? Existe esse vínculo? A análise de Weber está
relacionada, principalmente, ao século 17. As principais testemunhas da tese de Weber –
John Bunyan e Richard Baxter – eram calvinistas ingleses, que escreveram um século após
21
a morte de Calvino, em meio a um contexto social completamente diferente. Pode-se traçar
uma continuidade entre Calvino e as atitudes dos calvinistas posteriores, a qual – se Weber
estiver certo – justifica as origens do Capitalismo moderno? Essa pergunta nos leva a
investigar a atitude de Calvino em face do Capitalismo e a traçar a sua transformação nos
escritos de seus posteriores adeptos.

O CAPITALISMO PRIMITIVO DE GENEBRA


Diversas cidades do início do século 16 assistiram a graves divisões internas, que
surgiram das tensões entre o patriciado dominante, cuja posição social se baseava em um
entrosamento de fatores como tradição, inércia, riqueza herdada e estruturas políticas que
favoreciam o status quo e as emergentes classes mercantil e artesã, que sentiam que era
chegada a sua hora. Para citar apenas um exemplo, o esforço reformista em Zurique pode
ser observado à luz dessa tensão entre as forças do patriciado, ligadas à tradição, e o novo
22
poder dos artesãos, que ascendiam econômica e politicamen-te. Essa observação levanta
uma importante questão: não seria o caso de sugerir que a Reforma e o Capitalismo tinham
um apelo comum frente às elites urbanas emergentes?
Se esse fosse o caso, torna-se inútil dizer que o Protestantismo tenha “causado” um novo
espírito de Capitalismo. Pode-se considerar que um estrato social específico, predisposto
em relação à forma de dinamismo econômico que Weber designa como “Capitalismo
moderno”, tenha adotado a Reforma como um meio de promover seus propósitos políticos
e econômicos. Em outras palavras, pode ter havido uma associação, historicamente
contingente, entre Capitalismo e Protestantismo, de tal natureza que não se pode falar do
último ter dado causa ao primeiro, mas que ambos podem ter sido associados a alterações
em meio às estruturas de poder da sociedade urbana, no início do período moderno. Parece
haver sido considerado que o Capitalismo e o Protestantismo possuíam afinidades
religiosas e econômicas com as classes mercantil e artesã urbanas, permitindo-lhes um
certo grau de expressão e de realização até então inatingível em meio à matriz das restritas
crenças e práticas econômicas e religiosas do fim do período medieval.
Ao nos voltarmos à consideração do caso de Genebra, podemos observar que a tensão
entre os mamelucos, favoráveis a Sabóia, e os huguenotes, favoráveis à Suíça, pode ser, a
grosso modo, interpretada como um conflito entre a tradição e o progresso. Os mamelucos,
que possuíam vínculos duradouros, familiares e de tradição em relação à Sabóia, eram
favoráveis à manutenção da dependência de Genebra perante o ducado; os huguenotes re-
presentavam, geralmente, a facção mais progressista, que via seu futuro político e
econômico vinculado às liberdades, a essa altura associadas à aliança com as cidades
23
suíças. Os integrantes economicamente ativos da cidade viam como eminentemente
desejáveis, portanto, o desenvolvimento desses vínculos com Berna e Friburgo, durante a
década de 1520. Esse ponto, porém, não havia indício de qualquer associação ao
Protestantismo; Berna e Friburgo ainda eram, ambas, cidades católicas. O apelo em relação
a elas estava no fato de serem suíças, com os benefícios econômicos e políticos que uma
aliança parecia oferecer. Quando Berna adotou a Reforma de Zwínglio,
o Protestantismo se tornou um fator religioso – mas não necessariamente, um fator
integrante – em uma equação política e econômica já complicada.
Como observamos anteriormente, no ano de 1535 Genebra finalmente conquistou sua
independência política do ducado vizinho de Sabóia para vir a se tornar uma cidade-estado
protestante independente. As independências religiosa e política foram alcançadas,
praticamente, de forma simultânea e, por meio de uma série de contingências históricas
essenciais, foram vistas como sendo inter-relacionadas. Para Genebra conservar sua
independência, conquistada a duras penas, era necessário que esta alcançasse um certo nível
de independência econômica. Desde o século 13 sua economia havia sido dependente de
24
suas feiras comerciais, que lhe haviam trazido fama interna-cional. Situada na junção de
várias rotas comerciais importantes, Genebra pôde se estabelecer como o principal centro
comercial da Europa ocidental até o início do século 15. Importantes famílias de banqueiros
italianos – inclu

O CALVINISMO, O TRABALHO E O CAPITALISMO

25
sive os Médici – acharam que valia a pena abrir filiais na cidade. Até a metade do século,
Genebra era um importante centro do que Weber chamaria de “Capitalismo tradicional”.
À medida que o século avançava, a situação de Genebra tornou-se me-nos favorável.
Durante os anos de 1464 a 1466, mercadores italianos começaram a deixar de freqüentar
26
suas feiras, em troca daquelas situadas nos arredores de Lion. Na verdade, uma “guerra
fria econômica” (Bruno Caizzi) se estabeleceu entre as duas cidades. Os banqueiros
italianos, sentindo a mudança dos ventos, fecharam suas filiais em Genebra. Embora os
mercadores italianos ainda freqüentassem Genebra, a perda dos bancos e a crescente
instabilidade política na cidade durante o período de 1520 a 1535 causou a perda de seu
27
status privilegiado como um centro comercial. Paradoxalmente, foi o afluxo de
negociantes que contribuiu para essa instabilidade: mercadores alemães, que negociavam
na cidade, trouxeram consigo publicações de Lutero, que parecem ter encontrado um
28
mercado tão propício quanto suas mercadorias mais comuns. Embora um período de
considerável avanço econômico possa ser detectado, nos anos de 1518 a 1523, isso logo
veio a ser revertido pela instabilidade política. De 1524 a 1534, a recessão econômica se
29
instalou. Embora composta por problemas locais, a situação de Genebra se comparava a
30
problemas econômicos semelhantes nas cidades suíças em geral.
Destituída de grande parte de seu tradicional papel econômico como um centro
comercial, a cidade teve que enfrentar o desafio significativo de sua sobrevivência, no ano
de sua independência (1535). Uma cidade empobrecida, presa em um círculo de estagnação
e recessão econômica, não poderia se sustentar, menos ainda fortalecer suas defesas (a um
custo considerável) contra a ameaça de invasão por parte das predatórias cidades vizinhas.
Embora no período de 1535 a 1540 tenha-se assistido ao início da recessão econômica em
31
várias cidades suíças, Genebra testemunhou uma recuperação admirável. Isso foi
consolidado, de forma mais intensa, durante os anos de 1540 a 1559, quando a atividade
32
econômica, que se expandia por toda a região, auxiliou ainda mais sua recuperação. A que
se deve atribuir isso?
Em parte, a determinação da cidade em assegurar sua independência contribuiu para seu
33
sucesso econômico. Havia um desejo coletivo de manter as liberdades conquistadas na luta pela independência. Recentemente, porém, a atenção havia
se concentrado em uma importante contribuição para a viabilidade econômica da república de Genebra em seu período de risco – as alianças financeiras
34
protestantes suíças. As origens do sistema bancário suíço, particularmente seu intenso
envolvimento em empreendimentos financeiros corporativos internacionais, podem ser
traçadas até o início da quarta década do século 16. Como vimos anteriormente, uma
importante contribuição para esse desenvolvimento foi o estabelecimento de
combourgeoisies entre as cidades da Confederação Helvética e outras cidades: a
combourgeoisie de 1519, entre Lausanne e Berna, e a de 1526, entre Genebra e Berna, são
exemplos especialmente importantes dessa tendência.
A princípio, parece que o objetivo principal dessas combourgeoisies era proporcionar
um apoio político e militar às cidades aliadas em tempos de necessidade. Nos anos de 1530
e 1531, porém, isso se ampliou, vindo a incluir o apoio financeiro. Zurique enfrentava uma
crise política e econômica em conseqüência da Primeira Paz de Cappel. Para garantir a
integridade de sua aliada protestante, em face de seus oponentes católicos, a cidade da
Basiléia ofereceu um empréstimo de 14.300 écus para auxiliar Zurique a superar seus pro-
blemas. Após inversões adicionais na sorte dos protestantes dentre a Confederação
Helvética, por volta do fim de 1531 e início de 1532, a cidade de Berna conseguiu levantar
35
um empréstimo de 12.750 écus por intermédio da Basi-léia. As Guerras de Religião suíças,
no início da década de 1530, podem, dessa forma, ser consideradas como um marco tanto
do surgimento de um sistema financeiro capaz de sustentar as cidades protestantes em
tempos difíceis quanto da consolidação da Basiléia como o centro desse sistema.
Até que Genebra aceitasse a Reforma, ela não estava em posição de contar com esses
recursos financeiros. De 1536 em diante, porém, Genebra podia recorrer aos fundos
financeiros, na Basiléia, para fins de fortificação, defesa e assim por diante. O trésor de
l’Arche foi instituído em conseqüência da revolução de 1536 para coordenar empréstimos
36
confederados. Genebra começaria a recorrer extensamente a outras fontes de capital
estrangeiro a partir de 1567; até 1590, a cidade havia recebido em torno de 211.000 écus de
várias fontes financeiras protestantes da Inglaterra, França, Alemanha, Hungria, Países
37
Baixos e cidades suíças. Tendo acesso a tais fundos, Genebra foi capaz de manter sua
independência econômica diante de seus vizinhos católicos. A criação de novas instituições
38
financeiras na própria Genebra – tal como a instituição do change public, em 1567 –
consolidou ainda mais o potencial da cidade para sobreviver como uma entidade
independente.
No entanto, havia uma crescente consciência em Genebra sobre a necessidade do
desenvolvimento de fontes de capital independentes. Um registro de

O CALVINISMO, O TRABALHO E O CAPITALISMO

1551, nos arquivos financeiros municipais, fala da necessidade de Genebra “reduzir sua
dependência em relação a Basiléia” (se débasler). Uma das mai-ores contribuições para
esse processo foi a criação de indústrias manufatureiras, na própria cidade, como uma fonte
de capital estrangeiro. Embora traços des-sa tendência possam ser percebidos no início da
década de 1540, o período mais significativo de sua evolução parece coincidir com o afluxo
maciço de refugiados estrangeiros. Durante os anos de 1549 a 1560, cerca de 4.776
refugiados chegaram a Genebra, provenientes da França; destes, sabe-se que 1.536 eram
39
artesãos, sem dúvida motivados pela atitude geralmente antiaristocrática das autoridades
40
genebrinas. A maioria dos refugiados havia estado envolvida com a produção manual em
pequena escala, o artesanato ou o comércio, em sua terra natal, a França, e muitos tiveram
41
pouca dificuldade em retomar suas atividades, uma vez estabelecidos em Genebra.
Alguns exemplos podem servir para ilustrar o crescimento das indústrias manufatureiras
na cidade. Em um curto lapso de tempo Genebra se tornou um centro de produção de
relógios de parede e de bolso em razão da chegada de refugiados franceses, cujas
42
especialidades se concentravam nessa área. Uma substancial indústria editorial se
desenvolveu, juntamente com indústrias acessórias, tais como a de produção de papel e de
43
tipos de impressão. A imigração de famílias ligadas ao comércio de tecidos e cortinas –
44
como os Bordiers e os Mallets – levou ao crescimento dessas indústrias em Gene-bra. A
indústria da seda desenvolveu-se como uma importante indústria de exportação, com base
na experiência de habilidosos refugiados franceses e italianos e no capital, fornecido por
45
astutos banqueiros comerciais italianos. A abolição do antigo sistema senhorial eclesiástico
de guildas – na essência,
o último obstáculo secular ao “Capitalismo moderno” – significava que os recém-chegados
poderiam estabelecer seus negócios e começar a produzir e a negociar sem graves
restrições.
Em conseqüência, uma quantidade excepcionalmente elevada de aptidões se concentrou
na cidade, a qual, ligada à disponibilidade de capital, levou a cidade a se tornar um
importante centro do tipo de dinamismo econômico que Weber chama de “Capitalismo
moderno”. As feiras de Genebra, que já haviam sido ponto de distribuição para as
mercadorias italianas, na Europa ocidental, tornaram-se, nesse momento, o centro de uma
rede de distribuição para os ítens produzidos em Genebra. Como menciona o historiador
econômico suíço Jean-François Bergier, três fatores essenciais ao desenvolvimento de uma
sociedade capitalista moderna – capital, habilidades e capacidade de produção e uma rede
46
de distribuição – surgiram de forma praticamente simultânea em Genebra nesse período.
Contudo, deve-se enfatizar que não é estritamente correto retratar Gene-bra como uma
sociedade capitalista no sentido moderno do termo. Se o Capitalismo deve ser identificado
com o sistema de relações econômicas que se desenvolveu na esteira da Revolução
47
Industrial, é difícil falar de Gene-bra como capitalista. Por exemplo, a principal máxima
capitalista do laissezfaire era contestada, com vigor, pelo Conselho municipal de Genebra.
Nenhuma atividade econômica na cidade era imune ao escrutínio e à intervenção central.
Isso pode ser ilustrado pelas consideráveis restrições, impostas em todos os níveis, sobre os
48
editores Henri e François Estienne. As transações econômicas eram examinadas pelo
Conselho municipal e sujeitas a uma série de severas restrições. O rigoroso controle que o
Conselho municipal exercia sobre cada aspecto da vida de Genebra – moral, econômico e
político – inibia, severamente, o desenvolvimento de uma sociedade plenamente capitalista.
O Capitalismo do século 16 veio a ser bastante diferente de seu descendente do século 19;
ainda assim, é o Capitalismo.
Qual, então, pode ter sido a influência de Calvino sobre esses acontecimentos? Em certo
sentido, eles parecem ser acidentais, uma simples concatenação de circunstâncias históricas
favoráveis à evolução do dinâmico Capitalismo. O Capitalismo de Genebra surgiu e se
desenvolveu em resposta a fatores, os quais, em geral, deviam-se indiretamente às idéias
religiosas de Calvino. Por exemplo, a presença de um grande número de imigrantes
economicamente ativos, em Genebra, nas décadas de 1540 e 1550, deve-se, claramente, às
idéias religiosas de Calvino, pelo fato de que essas idéias eram, em primeiro lugar, a causa
de sua aparente necessidade de emigrarem de sua terra natal, a França, e, em segundo lugar,
de se estabelecerem em Genebra. A importância desses imigrantes a despeito de sua
lealdade religiosa para a promoção do Capitalismo europeu, na época da Reforma, tem sido
49
destacada por Hugh Trevor-Roper; portanto, a importância de Calvino pode se situar, ao
menos em parte, no fato de ter sido uma causa motivadora da migração dentre um estrato
economicamente dinâmico da sociedade francesa.
Da mesma forma, o desenvolvimento das alianças religiosas e financeiras suíças
antecede Calvino; as organizações e estratégias financeiras que iriam contribuir de forma
significativa para a concentração de capital na cidade durante o período de Calvino nada
deviam a ele. Também não se pode atribuir a Calvino a decisão de Genebra em aceitar a
Reforma, permitindo assim

O CALVINISMO, O TRABALHO E O CAPITALISMO

seu acesso a esse capital. Há, portanto, excelentes razões para sugerir que a associação
inicial entre Capitalismo e Calvinismo se concentrava na própria cidade de Genebra, que se
tornou um foco de ativismo tanto econômico quanto religioso, aproximadamente ao mesmo
tempo. Deve-se enfatizar que essa associação é, em larga escala, acidental; não há,
necessariamente, uma conexão histórica ou ideológica entre ambos.
Além disso, é razoável sugerir que o desenvolvimento de uma economia capitalista em
Genebra tenha sido principalmente uma conseqüência de sua necessidade de manter sua
independência política, a princípio, em relação a Sabóia e, posteriormente, a Berna, do que
de sua decisão em aceitar a Re-forma. Pelo fato de que a evolução histórica da república de
Genebra se deu de tal forma a entrelaçar os processos religioso e político, os dois não
podem ser totalmente desconectados. No entanto, é razoável sugerir que foi a aparente
necessidade de manter a autonomia econômica e, conseqüentemente, política de Genebra,
que estimulou a adoção, pela cidade, de estratégias abertamente capitalistas,
particularmente durante a década de 1550. A religião, embora inevitavelmente envolvida
nesse processo, era, em grande parte, de importância secundária.
No entanto, deve-se admitir que uma das circunstâncias pelas quais o Capitalismo de
Genebra floresceu foi a atitude favorável de Calvino em relação à sua evolução. Uma
comparação com Lutero irá demonstrar um aspecto da discussão. A perspectiva econômica
de Lutero – como seu pensamento em relação à sociedade, em geral – é fortemente
influenciada pelas realidades sociais da rústica área rural alemã, que ele se propôs reformar.
Era um mundo preocupado com os problemas perenes da vida rural do final do feudalismo,
tal como as tensões entre os camponeses e a nobreza. Embora Lutero fosse claramente
consciente de algumas questões econômicas de seu tempo – tal como se o dinheiro deveria
50
ser emprestado a juros – ele pare-cia não ter consciência das questões que dominavam as
finanças urbanas. Ele não tinha qualquer noção acerca das forças econômicas que estavam
começando a transformar a Alemanha de uma nação feudal camponesa em uma sociedade
com uma economia capitalista emergente. Em seu tratado Von Kaufshandlung und Wucher,
“Sobre o Comércio e a Usura”, escrito no verão de 1524, ele tende a adotar uma atitude
intensamente crítica em relação àqueles envolvidos em algum tipo de atividade econômica.
Para Lutero,
o termo alemão fynanzte, longe de ter um sentido neutro, estava plenamente carregado de
nuances negativas de fraude, trapaça e lucro excessivo. O fato de que o pensamento
econômico de Lutero – se é que podemos chamá-lo dessa forma – era hostil a qualquer
forma de Capitalismo reflete, em larga escala, seu desconhecimento acerca do sofisticado
mundo das finanças, então em ascensão nas grandes cidades livres.
Calvino, no entanto, estava perfeitamente consciente das realidades financeiras de
51
Genebra e de suas implicações. Embora ele não desenvolva uma “teoria econômica” em
nenhum sentido, ele parece ter tido plena ciência dos princípios básicos do capital. A
52
natureza produtiva tanto do capital quanto do trabalho humano é totalmente reconhecida.
A divisão do trabalho é elogiada tanto por seus benefícios econômicos quanto por seus
méritos como um meio de enfatizar a interdependência humana e a importância da
existência social. O direito individual de propriedade, negado pela ala radical da Reforma, é
apoiado. Passagens do livro de Deuteronômio relacionadas à ética nos negócios são
reconhecidas como algo situado em um contexto social de uma época passada: Calvino se
recusa a permitir que certas normas, relativas a uma sociedade judaica agrária e primitiva,
tenham força coercitiva sobre uma sociedade urbana moderna e progressista, como a de
53
Genebra, no século 16. Por exemplo, a proibição absoluta acerca do empréstimo de
dinheiro a juros (conhecida como usura) é descartada como uma adequação às necessidades
específicas da sociedade judaica primitiva; não há qualquer semelhança entre esta
54
sociedade e Genebra. Os juros são apenas um aluguel pago sobre o capital. A disposição
de Calvino em admitir uma taxa variável de juros demonstra uma consciência das pressões
sobre o capital em um mercado relativamente livre. Os interesses éticos sustentados por
esse tipo de proibição poderiam, de qualquer maneira, ser assegurados por outros meios.
Além dis-so, ele estava ciente da importância da geração de novas indústrias através do
investimento de capital, como fica evidente por sua argumentação favorável a uma
55
indústria têxtil subsidiada pelo Estado, na década de 1540.
A eliminação dessas barreiras religiosas ao Capitalismo, por parte de Calvino, é
complementada pela articulação de uma ética do trabalho, que encoraja intensamente seu
desenvolvimento. O fiel é chamado a servir a Deus no mundo. A ênfase de Calvino no fato
de que o fiel poderia ser chamado por Deus para servi-lo em todas as esferas da existência
secular concedeu ao trabalho uma nova dignidade e significado. O mundo deve ser tratado
com desprendimento, na medida em que ele não é Deus e é facilmente confundido com
este; porém, pelo fato de que o mundo é uma criação de Deus, ele deve ser afirmado.
“Deixem que os fiéis se habituem ao desprendimento em relação à vida presen

O CALVINISMO, O TRABALHO E O CAPITALISMO

te, que não dê margem ao ódio para com ela ou à ingratidão em relação a Deus” (Institutas
III.xi.3). “Algo que não seja abençoado ou desejável, por si mesmo, pode se tornar algo
bom para o devoto” (Institutas III.xi.4). Os cristãos devem, portanto, viver no mundo com
alegria e gratidão, sem se tornar presa dele. Empregando categorias existenciais modernas,
o mundo deve ser visto como nosso Spielraum. Um certo distanciamento crítico deve
acompanhar a afirmação cristã do mundo como criação e dádiva de Deus. Os cristãos
devem viver no mundo, ao mesmo tempo evitando se ligarem a esse mundo, para que não
sejam imersos nele e tragados por ele.
Portanto, Calvino trata a noção de “vida contemplativa” com um certo grau de cinismo,
insistindo em que a meditação e a oração cristãs devem acontecer em meio aos cuidados e
preocupações da vida secular cotidiana, em vez de separadas destes (IV.xii.10,16). O fiel
não é chamado a deixar o mundo e a ingressar em um monastério, mas a ingressar
plenamente na vida do mundo e, assim, transformá-lo. Em certo sentido, essa doutrina deve
ser considerada como antiaristocrática pelo fato haver censurado, de forma implícita,
56
aqueles que se consideravam acima do trabalho manual. Calvino cita, com aprovação, o dito de Paulo: “Se alguém não
quer trabalhar, também não coma” (2 Tessalonicenses 3:10). Comentaristas de sua ética do trabalho, talvez tendo em mente a situação de desemprego da década de 1920,

viram nisso uma falta de consideração para com as circunstâncias dos desempregados. Na verdade, as observações de Calvino eram dirigidas, de forma específica, contra
57
Os alvos da
a aristocracia, inclusive os aristocratas franceses exilados em Genebra que, tradicionalmente, consideravam-se acima do trabalho manual.

ênfase de Calvino sobre a dignidade do trabalho humano e sua crítica à indolência são as
majestosas cortes e propriedades dos príncipes da Igreja e o formidável peso morto da
aristocracia. Apesar do fato do companheiro de Calvino, Teodoro de Beza, ser oriundo de
uma nobre família francesa, a sociedade de Genebra tinha pouca paciência com a
ultrapassada perspectiva social de sua classe. Possuímos um curioso registro daquela época
sobre as reações dos aristocratas franceses diante do fato de que antigos aristocratas que
haviam buscado asilo em Genebra estavam sen-do forçados a trabalhar. O aristocrata
francês Pierre de Bourdeille Brantôme registrou seu choque ao visitar Genebra e ver o
antigo nobre François d’Aubeterre trabalhando para seu sustento como faiseur de boutons.
Por que – perguntava ele – deveria alguém de uma família tão nobre ter que se humilhar,
fazendo botões? O relato ilustra, de forma vívida, as atitudes radicalmente diferentes em
relação ao trabalho em geral e ao trabalho manual, em particular, que eram associadas à
58
antiga aristocracia da França e aos novos empresários de Genebra. O trabalho, aparentemente, era o grande
nivelador social de Genebra.

Ainda que reconhecendo a impossibilidade de resumir, em uma sentença, a complexa


ética de Calvino sobre o trabalho, vale a pena observar que a ordem de Paulo aos cristãos
de Coríntios encerra muito de sua essência: “Ande cada um segundo o Senhor lhe tem
distribuído, cada um conforme Deus o tem chamado” (1 Coríntios 7:17). Cada fiel é
59
chamado a une vocation juste et approuvée (Institutas IV.xii.10,16). O trabalho secular se
60
tornou uma parte integrante da espiritualidade de Calvino, conferindo um novo sentido à
61
máxima monástica medieval laborare est orare, “trabalhar é orar”. O trabalho manual não
era somente regra em Genebra; era o ideal religiosamente sancionado. Pela primeira vez
atribuía-se um significado religioso à atividade comum cotidiana do mais humilde produtor.
A ação no mundo era dignificada e santificada. Talvez o poeta inglês George Herbert possa
expressar o pensamento de Calvino com maior eloqüência do que o próprio Reformador
genebrino tenha alcançado:

Ensina-me, meu Deus e meu Rei,


A ver-te em todas as coisas;
E o que quer que eu faça
Que o faça como se fosse para ti.
Um servo com esse preceito
Faz da labuta algo divino;
Quem varre uma sala, segundo as tuas leis,
Enobrece a mesma e a sua atividade.

Essas posturas, embora não sejam em si mesmas abertamente capitalistas, quando


tomadas em conjunto podem ser consideradas como algo que favorece o Capitalismo,
particularmente no que tange à forma historicamente associada a Genebra. A contribuição
de Calvino pode ser considerada como efetiva em dois níveis: em um deles, foram retirados
os desestímulos (tal como o opróbrio social e religioso de que era investida a geração de
capital no período medieval); no outro, estímulos positivos encorajaram a adoção de
posturas e práticas favoráveis à emergência do Capitalismo. Valores burgueses –
frugalidade, diligência, perseverança, trabalho árduo e dedicação –

O CALVINISMO, O TRABALHO E O CAPITALISMO

eram todos religiosamente sancionados pelas teorias de Calvino. O Capitalismo é, porém,


um subproduto de sua perspectiva religiosa, em vez de um produto almejado. Deve-se
destacar, ocasionalmente, que o próprio Weber, em momento nenhum, sugeriu que o
Calvinismo tenha encorajado abertamente a acumulação e o reinvestimento do capital; ao
contrário, ele argumentou que essas práticas foram adotadas de forma não intencional,
como uma conseqüência da ênfase calvinista sobre a diligência com relação ao chamado
pessoal e do ascetismo em relação ao mundo.
Contudo, essa sanção religiosa de uma série de posturas que conduziam ao Capitalismo é
de importância um tanto limitada no que tange à explicação do surgimento desse fenômeno
na república de Genebra. O Capitalismo de Genebra nasceu da necessidade econômica, e
não do estímulo religioso. A própria sobrevivência da cidade era percebida como algo que
dependia da sua economia. A autonomia política se baseava na auto-suficiência econômica.
O desenvolvimento da economia de Genebra deve-se, sobretudo, a um impulso mais
fundamental até mesmo do que o poderoso dinamismo religioso de Calvino – o primitivo e
perene instinto humano de sobrevivência. Calvino pode ter estado envolvido na adoção de
posturas religiosas e sociais geralmente instrumentais ao desenvolvimento de algum tipo de
Capitalismo, porém foi a própria cidade de Genebra que deu estrutura e especificidade à
forma que o Capitalismo iria assumir, revestindo o esqueleto de posturas um tanto
indeterminadas de Calvino com propostas, políticas e instituições bastante definidas. Na
verdade, Calvino parece ter santificado as posturas e instituições existentes e emergentes
em Genebra, demonstrando, mais uma vez, a importância desta cidade na formação dos
contornos do Calvinismo internacional.
As posturas econômicas recomendadas por Calvino não eram, porém, meramente
favoráveis ao Capitalismo; elas eram, também, radicalmente antifeudais. É este aspecto do
pensamento de Calvino que avança, consideravelmente, em direção à explicação de sua
influência na França – para a qual nos voltamos nesse momento.
CALVINISMO E CAPITALISMO: O CASO DA FRANÇA
As fortalezas do Calvinismo na França, na década de 1550, situam-se nas cidades e,
sobretudo, entre os habilidosos artesãos e mercadores das populações urbanas. Certamente
é verdade que havia apoio ao programa calvinista de Reforma, entre os membros da
aristocracia francesa; no entanto, em um exame mais minucioso, esses aristocratas
revelaram-se mercadores que haviam adquirido os títulos e o estilo de vida da nobreza ao
final de suas carreiras. Os barões de Anduze e Barroux, por exemplo, ambos importantes
adeptos da Reforma de Calvino, haviam sido mercadores até 1535 e 1545, respecti-
62
vamente. Portanto, a aristocracia que era favorável à causa da Reforma tendia a ser a “nova” nobreza, em vez da “velha” (embora essa sutil diferenciação seja,
manifestamente, vulnerável). Eles eram, freqüentemente, homens que haviam surgido dos escalões da burguesia. Contudo, a maioria do apoio a Calvino vinha dos

artesãos – uma classe social variada e heterogênea que incluía artífices, lojistas, aprendizes, fabricantes e artesãos rurais. Florimond de Raemond, um católico que se

converteu ao Calvinismo e, posteriormente, voltou à sua antiga religião, escreveu com sarcasmo sobre “os ourives, pedreiros, carpinteiros e outros assalariados

miseráveis que se tornaram excelentes teólogo da noite para o dia”. Uma análise detalhada dos acusados por heresia, na França, durante o período de 1540 a 1560,
63
demonstrou que a vasta maioria – talvez 70 por cento – era, freqüentemente, oriunda desse estrato social. Em parte, isso retrata a percepção difundida de que a Igreja

Católica francesa era aristocrática no que tange à sua liderança e interesses, sem qualquer ligação real ou interesse pelas agitadas classes mais baixas. Muitos membros

do terceiro estado, nesse período, eram contrários ao clero em suas perspectivas, contudo recusavam-se a expressar esse fato através da adesão ao Calvinismo. Suas

esperanças parecem ter pairado sobre a reforma da Igreja francesa. Os grupos calvinistas, nas cidades da França, podem ser considerados a ponta de um grande iceberg

contrário ao clero.

De forma mais significativa, porém, os artesãos representavam uma classe média


embrionária, a cujos valores e aspirações foram atribuídos dignidade e valor religioso por
meio das idéias religiosas de Calvino e cujo futuro econômico parecia repousar na adoção
de estratégias economicamente dinâmicas, tais como aquelas então associadas à cidade de
Genebra. Em uma cidade ainda influenciada pelo feudalismo, dominada por uma Igreja
cuja visão social repousava, firmemente, no passado, as novas idéias que emanavam de
Genebra eram vistas como progressistas e libertadoras. O Capitalismo parecia possuir a
chave para a liberação da economia francesa e, junta-mente com ela, da emancipação das
petits gens, para quem o Calvinismo exercia uma grande atração.
O apelo contemporâneo dessas estratégias, na França, pode ser visto em Recepte
véritable, de Bernard Palissy, que estipulou estratégias que iriam

O CALVINISMO, O TRABALHO E O CAPITALISMO

transformar a agricultura francesa e evitar as crises de falta de comida semelhantes àquelas


64
que haviam assolado a França, anteriormente, no século 16. Um estudo dos preços do trigo
em Paris entre 1560 e 1580 indica a freqüência com que as crises ocorreram durante o
período. Além de defender os méritos científicos da adubação, Palissy identificou um
problema central na base da inércia econômica da França, em geral, e de sua agricultura,
em particular: a agricultura era tão subdesenvolvida e sem recursos que não poderia
sustentar uma expansão do setor secundário. Era somente por intermédio da capitalização
65
da agricultura que a situação poderia ser revertida. Investimentos na agricultura e aumentos
na produtividade eram as soluções para um problema que surgiu da falha no uso apropriado
da terra e de seus recursos. A terra era considerada como uma conveniente fonte de
arrendamento, em vez de um bem que fosse suscetível à intensa exploração. Existia capital
na França; ele era, porém, empregado em fins improdutivos. Além disso, uma nova postura
com relação ao trabalho na terra era necessária. O trabalho não era algo a ser deixado para
os camponeses; trabalhar era o papel destinado à burguesia e, também, aos proprietários de
terra.
A importância da obra de Palissy se encontra em sua evidente legitimação das medidas
financeiras e de uma ética do trabalho já associadas a Genebra. Ela também aponta para um
elemento econômico, assim como religioso e social, bastante específico, dentre o apelo do
Calvinismo em relação aos artesãos franceses. O Calvinismo não era somente visto como
antiaristocrático e hostil ao sistema eclesiástico francês; era visto como algo que continha
estratégias, as quais, se implementadas na França, poderiam transformar a economia
francesa.
Os artesãos franceses – um grupo extenso e indefinido que poderia ser descrito como os
“empreendedores” da França do século 16 – parecem, portanto, ter percebido no
Calvinismo um sistema de crenças que apoiava e legitimava os valores e aspirações das
classes produtivas da sociedade francesa. Sua situação presente e suas perspectivas futuras
eram radicalmente limitadas pelo sistema senhorial-eclesiástico francês, que opunha
obstáculos ao seu progresso econômico e social.Genebra havia desmantelado esse sis-tema
na revolução de 1535 e aberto o caminho para a emancipação dessa classe social. O papel
de Calvino nessa evolução foi periférico; no entanto, os sistemas religioso, político e
econômico de Genebra, nas décadas de 1550 e 1560, eram, de modo geral, considerados
como um todo único por aqueles que o observavam da França com inveja e, não estando
dispostos a sair buscar asilo em Genebra, procuravam implantar seus valores na sua própria
esfera de influência. O apelo do Calvinismo para a França é, sem dúvida, em parte devido
às idéias religiosas de Calvino; mas é também devido à nova ordem política e econômica
introduzida pela revolução de 1535, em Gene-bra – uma ordem que, deve-se observar,
absolutamente nada devia às idéias e ações de Calvino, ainda que fosse geralmente
considerada como uma parte integrante do Calvinismo, por aqueles que o observavam à
distância. È razoável sugerir que o tema “Calvinismo e Capitalismo” seja, na verdade, uma
combinação historicamente contingente das posturas religiosas de Calvino e das instituições
e estratégias econômicas existentes em Genebra. Calvino e Genebra tendiam a se fundir, na
imaginação do povo, com o “Calvinismo”, incluindo, dessa forma, importantes elementos
econômicos (sem mencionar os políticos) os quais eram, em sua origem, genebrinos, e não
Calvinistas.

A ÉTICA CALVINISTA DO TRABALHO E O CAPITALISMO


O Capitalismo e o Calvinismo eram praticamente coincidentes até a metade do século
17. É este fenômeno que tem atraído tanta atenção da parte de cientistas sociais. Para citar
apenas um exemplo: Flandres – até então culturalmente homogênea – foi dividida pela
revolta protestante e pela reconquista católica espanhola. Por duzentos anos, a zona
protestante foi efervescente e próspera, e a área católica, estagnada e improdutiva. Mesmo
nos países católicos – como a França e a Áustria – foram os calvinistas que desenvolveram
seu potencial industrial e financeiro. Não foram os protestantes, em geral, mas os
calvinistas, em particular, que desenvolveram o Capitalismo. Quando os dois grandes
campeões do Luteranismo, do começo do século 17, Christian IV, da Dinamarca, e
Gustavus Adolphus, da Suécia, aspiraram impulsionar os recursos financeiros e industriais
de seus respectivos países, eles se voltaram para os calvinistas da Holanda em busca de
auxílio; o resultado foi tão bem sucedido que uma aristocracia capitalista, formada por
66
calvinistas holandeses, logo se estabeleceu na Escandinávia. Outros inúmeros exemplos
podem ser fornecidos: entre a Europa setentrional e meridional, entre o Norte e o Sul da
Irlanda, ou entre as duas Américas. Onde floresceu o Calvinismo, floresceu também o
Capitalismo.
Em parte, o apelo da tese de Weber se encontra em sua compatibilidade óbvia com o que
se observava. A demonstrável afinidade entre o Calvinismo e
o Capitalismo funciona como uma premissa na análise de Weber, em vez de

O CALVINISMO, O TRABALHO E O CAPITALISMO

uma conclusão. É algo que necessita ser explicado, em vez de demonstrado. Há pouca
dúvida de que a elite econômica da Europa, no início do século 17
– tanto nos países católicos quanto nos protestantes – fosse calvinista. Parecia que o
Calvinismo isoladamente era capaz de movimentar a indústria e as finanças e de injetar um
impulso vital na vida comercial das cidades e nações. A sugestão de que o Calvinismo de
alguma forma causou – ainda que remota-mente – o desenvolvimento de condições sob as
quais o Capitalismo pudesse florescer é obviamente bastante plausível. Porém, é a
explicação religiosa dessa tendência que levanta algumas dificuldades para o teólogo.
Deliberadamente falando, é difícil para um teólogo cristão, familiarizado com o
pensamento religioso do período, discernir a ligação íntima entre a espiritualidade
calvinista e o “espírito do Capitalismo moderno” que Weber detecta.
Se há alguma crítica grave que possa ser feita à vasta coletânea literária que trata da
relação do Calvinismo com o Capitalismo, é a de que esta representa, de modo geral, o
trabalho de escritores que não possuíam os instrumentos teológicos necessários para avaliar
as implicações de certas posturas e doutrinas teológicas. O próprio Weber exemplifica esse
problema: ao longo de seus escritos, ele tende a passar em sua discussão, de forma
indiscriminada, da “mentalidade capitalista” para a doutrina calvinista da “vocação”. A
ligação entre as duas idéias é freqüentemente subentendida, raramente esclarecida e jamais
justificada a um nível teórico. A nova ênfase colocada pelos seguidores de Calvino sobre a
predestinação divina tem sido freqüentemente mal compreendida, como se fosse uma nova
doutrina em si mesma, como se a idéia da eleição divina fosse uma inovação teológica
ignorada antes da Reforma – e, mesmo então, aceita somente entre uma parcela do
Protestantismo. Como vimos, a centralidade dada às questões relacionadas à “vocação” –
tais como predestinação, eleição e providência – em meio ao pensamento calvinista
posterior retrata tanto uma nova preocupação com a sistematização e o método teológicos
(que permitia o desenvolvimento de um sistema pelo menos tão hermético quanto aquele de
teólogos católicoromanos, como Tomás de Aquino) quanto o reconhecimento da
necessidade de distinguir o Calvinismo, como entidade social, do Luteranismo (que havia
adotado uma posição bastante diferente nesse tema específico) em razão da rivalidade entre
os dois movimentos, na Alemanha.
Herbert Lüthy tem se queixado, com razão, da tendência dos historiadores de
“mergulharem de cabeça em tentativas grosseiras de analisar psicologicamente o conceito
67
calvinista de predestinação como um caminho para o sucesso”, isolando a noção especificamente calvinista de sua
matriz teológica ao final da Idade Média e início da Reforma. A doutrina da dupla predestinação de Calvino tem suas origens no Renascimento agostiniano, do século
68
14, e não pode ser considerada como uma inovação teológica de alguma maneira ligada ao desenvolvimento do “espírito do Capitalismo moderno”. Gregório de Rimini

e Hugolino de Orvieto – para citar somente dois teólogos do século 14 que defenderam com vigor a doutrina da dupla predestinação de forma tão veemente quanto

Calvino – não demonstram qualquer inclinação evidente ao ativismo econômico ou a posturas protocapitalistas como conseqüência de sua adesão a essa doutrina.

Além disso, Weber falha na distinção dos diferentes níveis do compromisso calvinista
quanto à doutrina da dupla predestinação absoluta. Os arminianos praticamente
abandonaram a idéia, enquanto o Calvinismo ortodoxo a conservou, mesmo a ponto de
reforçá-la. Contudo, foi a Amsterdã arminiana que gerou a notável riqueza das Províncias
Unidas, enquanto
o ducado de Gelderland, calvinista, permaneceu economicamente ultrapassado. A teoria de
Weber sugere, de forma clara, que deveria ter ocorrido o contrário.
É relevante examinar mais detalhadamente a noção de “ética do trabalho” sobre a qual
Weber coloca tamanho peso interpretativo. As origens da ética do trabalho calvinista são,
simultaneamente, pastorais e teológicas. Uma das questões centrais, debatidas no início da
Reforma, referia-se à relação entre a graça divina e a atitude moral humana. A graça de
Deus era condicionada à anterior ação humana ou ao mérito? E se a graça fosse anterior às
ações humanas, como se poderia evitar a ameaça do “antinomianismo” – ou do anarquismo
espiritual, na busca de um melhor termo? Como se poderia sustentar o caráter de dádiva
que a graça possuía, sem romper a ligação vital entre a graça e a reação moral humana?
O período inicial da Reforma assistiu à geração de um consenso sobre esse ponto, do
69
qual Calvino foi sucessor. A graça de Deus era um dom incondicional, anterior e
independente de qualquer obra humana ou mérito. No entanto, a graça possuía uma
dimensão transformacional, uma capacidade de operar no interior de seu receptor. Receber
a graça é ser renovado por ela. Uma parte essencial desse processo de renovação e
regeneração (o qual, até a época de Calvino, tornou-se conhecido como “santificação”) era
o estímulo e a capacitação do fiel para realizar boas obras. As boas obras eram vistas como
o sinal exterior e visível da presença e da ação da graça no interior do fiel.

O CALVINISMO, O TRABALHO E O CAPITALISMO

Calvino, como Lutero antes dele, enfatiza a absoluta gratuidade da graça. A graça é um
dom, não uma recompensa. Ela não é algo que Deus seja forçado a conceder. Sua oferta
reflete sua generosidade, em vez de uma obrigação de sua parte. A graça somente é
concedida a alguns, não a todos. A doutrina da predestinação, segundo Calvino, serve para
enfatizar o caráter de dádiva que a graça possuía (Institutas III.xxi.1):

Nunca nos convenceremos com clareza (da forma como deveríamos) de que a nossa
salvação brota da fonte da misericórdia de Deus, até que venhamos a conhecer sua
eleição eterna. Isso lança luz sobre a graça de Deus, pela comparação do fato de que
ele não adota a todos, de forma indiscriminada, na esperança da salvação, mas concede
a alguns o que nega a outros.
A graça, em outras palavras, somente é concedida aos eleitos. Sendo esse o caso, surge
uma questão óbvia. Como alguém pode saber se está entre os eleitos? Admitindo-se que a
graça é invisível e além da percepção humana, pode sua presença ser discernida através de
seus efeitos?
Embora Weber alegue que Calvino não considerava essa questão problemática, a
evidência sugere exatamente o contrário. Uma luta contra a incredulidade – sugeria Calvino
– era uma característica constante da vida cristã (Institutas III.ii.17-18). Embora ele
apontasse certos meios teológicos e espirituais pelos quais tais dúvidas poderiam ser
respondidas – por exemplo, olhando para as promessas de Deus, como são reveladas e
firmadas em Jesus Cristo
(III.xxiv.24) – ele também apelava para considerações mais práticas: as boasobras. Apesar
de Calvino destacar que as obras não são a causa da salvação, ele, porém, permitiu que se
entendesse que elas são a causa da sua garantia. As obras podem ser consideradas como
“as evidências de que Deus habita e reina em nós” (III,xiv.18). Os fiéis não são salvos pelas
obras (III.xiv.6-11); antes, sua salvação é demonstrada pelas obras (III.xiv.18). “A graça
das boas obras... demonstra que o Espírito de adoção nos foi concedido” (III.xiv.18). Essa
tendência de considerar as obras como evidência da eleição pode ser vista como a primeira
fase, na articulação de uma ética do trabalho, com importantes nuances pastorais: é pelo
ativismo no mundo que o fiel pode garantir à sua consciência conturbada de que ele ou ela
está entre os eleitos.
A ansiedade sobre essa questão da eleição é, posteriormente, uma característica
penetrante da espiritualidade calvinista e é, geralmente, tratada com alguma extensão pelos
pregadores e escritores calvinistas. A resposta básica que é dada, porém, permanece
substancialmente a mesma: o fiel que realiza boas obras foi, de fato, escolhido. Teodoro de
Beza assim argumenta:

Por esse motivo, São Pedro nos adverte para que tornemos nossa vocação e eleição
seguras por intermédio das boas obras. Não que elas sejam a causa de nossa vocação
ou eleição... Mas porque as boas obras trazem a evidência, para nossa consciência, de
que Jesus Cristo habita em nós e, conseqüentemente, não podemos perecer, sendo
70
eleitos para a salvação.

Novamente, encontramos a mesma alegação sendo feita: as obras atestam a salvação,


mas não a causam; elas são a conseqüência da salvação, e não seu pré-requisito. Por um
processo de raciocínio a posteriori, o fiel pode inferir sua eleição por meio de suas
conseqüências (boas obras). Além de glorificar a Deus e demonstrar a gratidão do cristão
para com Ele, essa ação humana moral desempenha um papel psicológico vital para a
conturbada consciência cristã, assegurando ao fiel de que ele ou ela está, de fato, entre os
eleitos.
Essa idéia era normalmente expressa nos moldes de um “silogismo prático”, que se
baseava em um argumento construído de acordo com o seguinte estilo:

Todos os que são eleitos exibem certos sinais, como uma conse
qüência dessa eleição;
Eu exibo esses sinais;
Logo, eu estou entre os eleitos.

Esse syllogismus practicus, portanto, situa os motivos da certeza da eleição na presença


71
de certos sinais (signa posteriora) na vida do cristão. Havia, assim, uma significativa
pressão psicológica para se demonstrar a eleição de uma pessoa a si mesma e ao mundo em
geral pela exibição de certos sinais – entre os quais se encontrava o compromisso
incondicional de servir e glorificar a Deus em seu mundo por intermédio do trabalho.
Essa idéia foi posta sobre um alicerce mais firme por meio da introdução de uma
72
“teologia da aliança”. Esse conceito, carregado de considerável significado político,
colocou a espiritualidade e a teologia pastoral calvinistas sobre uma fundamentação teórica
mais segura. O escritor de Cambridge,

O CALVINISMO, O TRABALHO E O CAPITALISMO

William Perkins (1558-1602), alegou, especialmente em sua importante obra intitulada A


treatise tending unto a declaration whether a man may be in the state of damnation or in
the state of grace (1589), que os eleitos estavam unidos em aliança com Deus:

A aliança de Deus é o seu contrato com o homem que trata da


obtenção da vida eterna sob uma certa condição. Essa aliança
consiste de duas partes: a promessa de Deus ao homem e a pro
messa do homem a Deus. A promessa de Deus ao homem é aquela
pela qual ele faz um pacto com o homem de ser o seu Deus, se o
homem realizar a condição. A promessa do homem a Deus é aquela
pela qual ele jura fidelidade a seu Senhor e promete realizar a
73
condição estabelecida entre eles.

Deus realizou um contrato com os cristãos, pelo qual eles são assegurados da salvação,
sob a condição de que eles realizem certas ações morais. Ao realizar essas ações, o cristão
pode ficar seguro de que ele ou ela está incluído entre os eleitos.
A primitiva propensão calvinista em relação ao ativismo moral, econômico e político
pode, assim, ser vista como algo que repousa sobre importantes fundamentos teológicos.
Por intermédio de um envolvimento ativo nas questões seculares, sob a orientação das
Escrituras, o cristão poderia firmar sua vocação e alcançar a paz de espírito (sempre um
artigo precioso e obscuro, em meio aos círculos puritanos) a respeito de sua eleição. A
noção de “vocação” (vocatio) deve ser interpretada nessa perspectiva: a ordem para realizar
boas obras não está ligada, necessariamente, a uma vocação secular em especial (por
exemplo, ser um açougueiro, um padeiro ou um artesão que produz castiçais), mas à
necessidade de demonstrar a vocação divina de uma pessoa a si mesmo e ao mundo à sua
volta. Os fundamentos dessa ética do trabalho podem ser ilustrados a partir dos escritos do
teólogo escocês John Davidson (1549-1603), cujo Catechisme faz a seguinte declaração:

Mestre: Quais são os efeitos pelos quais nós devemos demonstrar


que somos realmente salvos? Discípulo: A glorificação de
Deus e a edificação de nós mesmos e de nosso próximo, pela revelação
74
dos frutos do nosso novo nascimento, em santificação.
Até a metade do século 17 tinha-se tornado claro que havia um consenso geral, entre as
igrejas católicas e protestantes da Europa, na área da ética cotidiana. Quaisquer que
pudessem ser suas diferenças no que tange à doutrina e à política eclesial, as principais
Igrejas – a católica romana, a luterana e a calvinista – enfatizavam, todas, as mesmas
75
qualidades básicas necessárias à vida cotidiana: sobriedade moral, dedicação e probidade.
Nessa conjuntura, o que parece distinguir o Calvinismo não é tanto sua sobriedade moral,
mas a função teológica e espiritual que se entendia que a mesma desempenhava. A noção
de uma “vocação” permaneceu característica do Calvinismo e sua importância existencial
peculiar estava ligada às ansiedades provocadas pela doutrina calvinista da predestinação.
Não há dúvidas da verdade de que essa doutrina continha as sementes do ativismo secular.
Em teoria, a predestinação pode parecer encorajar a contemplação passiva: se alguém é
eleito, por que deveria se incomodar em fazer algo? Na verdade, porém, seu efeito foi
justamente o oposto: para assegurar que alguém é eleito, essa pessoa deve se engajar,
incondicionalmente, em uma ação apropriada no mundo.
No século 16 essa postura dinâmica e afirmativa em relação ao trabalho levou os
calvinistas à vanguarda do progresso. Contudo, até a metade do século 17, essa
singularidade por parte do Calvinismo parece ter sido submetida a um considerável
processo histórico de erosão. Outros grupos protestantes desse período – como os
arminianos, os menonitas, os independentes, os pietistas e os quakers – que não
compartilhavam do entendimento calvinista ortodoxo sobre a predestinação e das
ansiedades,que se reputava que isso gerava, também podem ser vistos como tendo se
engajado incondicionalmente em atividades seculares. Não possuindo qualquer arcabouço
teórico que sugerisse a necessidade de se confirmar a eleição de alguém por meio do
trabalho, eles, no entanto, parecem ter adotado padrões de atividade social que eram
semelhantes ao do Calvinismo. É como se o comprometimento característico do
Calvinismo em relação à atividade e ao investimento no mundo tivesse sido destacado de
sua base teológica e sido absorvido, em meio à sociedade da Europa ocidental,
independentemente de suas originais raízes teológicas. O que pode ter sido singular ao
Calvinismo, no século 16 ou no início do século 17, parece ter se tornado de cunho comum
na burguesia do Norte da Europa, por volta de 1650.
Essa erosão da base teológica pertencente à ética calvinista do trabalho recebe
credibilidade pela observação de Trevor-Roper de que muitos dos

O CALVINISMO, O TRABALHO E O CAPITALISMO

grandes empreendedores calvinistas da metade do século 17 estavam, na verdade, longe de


76
serem ortodoxos em suas perspectivas religiosas. Seu “Calvinismo” raramente estaria de
acordo com os rígidos critérios doutrinários que levaram à ênfase sobre a doutrina da
predestinação e às ansiedades existenciais que isso gerava, os quais Weber percebeu como
os pressupostos de seu compromisso com a atividade secular. Foi esse compromisso que
restou para esses indivíduos, enquanto que as considerações religiosas que, ori-
ginariamente, causaram seu aparecimento, haviam se evaporado, em sua maioria. As
atitudes seculares persistiram, ao mesmo tempo em que seus fundamentos religiosos foram
rejeitados, esquecidos ou deixados de lado. Pode-se alegar, de forma convincente, que a
atitude geral em relação ao trabalho e ao ativismo secular, no final do século 17 – sobre a
qual o Calvinismo, a essa altura, havia perdido seu monopólio – é o resquício da angst
(angústia) de um período anterior sobre a questão da eleição divina. O modo pelo qual essa
angústia poderia ser solucionada pode ter, a princípio, lançado o Calvinismo na vanguarda
da atividade econômica da Europa ocidental; outros, porém, iriam alcançá-lo, à medida que
o século 17 progredisse, sentindo-se capazes de adotar posturas e métodos do Calvinismo
sem se submeterem às pressões religiosas que haviam, originariamente, gerado esses
últimos.
Uma dificuldade fundamental em relação à tese de Weber está no fato de que esta não
consegue construir a ligação específica entre a ética do trabalho, de um lado, e a
acumulação e o reinvestimento do capital, de outro; na verdade, não há qualquer conexão
específica com a atividade econômica em geral. Na medida estritamente limitada em que
haja qualquer aplicação peculiarmente econômica da ética calvinista do trabalho, essa
pode, na verdade, se fundamentar, como sugere Weber, no ascetismo, que é, a princípio,
uma característica tão contundente e distintiva da espiritualidade calvinista ortodoxa. Se o
fiel é proibido de gozar das recompensas financeiras de seu trabalho (sendo que os
controles sociais postos sobre esse gozo, nas sociedades calvinistas primitivas, eram
normalmente consideráveis), ele ou ela tem poucas opções além de acumular ou reinvestir o
77
capital ganho.
Contudo, embora o Calvinismo possa ter trazido consigo o imperativo de se assegurar a
eleição do indivíduo e de se demonstrar isso ao próprio indivíduo e ao mundo por
intermédio da atividade secular apropriada, a forma específica que essa atividade pudesse
assumir era deixada em aberto. A análise histórica sugere que essas formas eram uma
questão de contingência histórica, variando de uma época e um contexto histórico para
outros. Por exemplo, o Calvinismo inglês (ou o Puritanismo, como é geralmente conheci-
do), durante o período de 1603 a 1640, foi caracterizado por um tumultuado ativismo
político, culminando na Guerra Civil, a derrota de Charles I e o início da comunidade
78
Puritana. Como observa Michael Walzer, a política “tornou-se uma espécie de trabalho”.
Após a ruína da comunidade e a restauração de Charles II, em 1660, os puritanos se encontraram na periferia da vida política inglesa e, então, concentraram-se no

trabalho árduo e na dedicação em quaisquer campos que, porventura, lhes estivessem abertos. Essa decisão deliberada de se retirar da arena política levou a um período

de dinamismo econômico entre o Puritanismo. É significativo o fato de que o argumento de Weber, para a ligação entre o Calvinismo e o ativismo econômico, baseia-se,
79
em grande escala, nos puritanos ingleses Richard Baxter e John Bunyan, ambos escrevendo no período posterior a 1660. Isso pode parecer sugerir que Weber tenha

edificado uma construção teórica substancial sobre uma mera contingência histórica.

Porém, parece inevitável uma conexão entre a teologia de Calvino, afirmativa em


relação ao mundo e o Capitalismo. Tal conexão é pressuposta pelo pregador e teólogo
inglês do século 18, John Wesley, que escreveu: “Eu não vejo como seja possível, pela
natureza das coisas, que qualquer avivamento religioso possa continuar por muito tempo.
Porque a religião deve, necessariamente, produzir tanto a atividade quanto a frugalidade, e
ambas nada podem produzir senão riquezas. Porém, à medida que as riquezas aumentam,
da mesma forma aumentará o orgulho, o ódio e o amor pelo mundo, com todas as suas
ramificações.” Enquanto Wesley considera a prosperidade como algo que traz problemas
religiosos em seu rastro, é evidente que ele acredita que o Cristianismo evangélico “deve,
necessariamente, produzir tanto a atividade quanto a frugalidade”, um alicerce do
Capitalismo.
Qualquer que seja a relação precisa que se possa provar existir entre Calvinismo e
Capitalismo, deve ser dito que um dos maiores legados do Calvinismo à cultura ocidental é
80
uma nova atitude em relação ao trabalho e, sobretudo, ao trabalho manual. O trabalho,
longe de ser meramente um meio inevitável e um tanto tedioso de se obterem as
necessidades básicas da existência, é, talvez, a mais louvável de todas as atividades
humanas, superando todas as demais nesse aspecto. Ser “chamado” por Deus não implica
em se afastar do mundo, mas exige engajamento crítico em cada esfera da vida secular.
Falar de uma “ética protestante do trabalho” não é depreciar os que não podem trabalhar,
mas censurar aqueles – como os aristocratas franceses, que

O CALVINISMO, O TRABALHO E O CAPITALISMO

buscavam exílio em Genebra – que não trabalharão. O “trabalho”, além dis-so, não é
entendido como “emprego assalariado”, mas como o uso produtivo e diligente de quaisquer
recursos e talentos que alguém possa possuir.
O trabalho, portanto, é entendido como uma atividade profundamente espiritual, uma
forma de oração produtiva e socialmente benéfica. As atividades física e espiritual estão
combinadas nessa ação única, por meio da qual funções socialmente úteis podem ser
executadas e a certeza pessoal da salvação pode ser alcançada. Pode ser, na verdade, que
essa nova atitude em relação ao trabalho tenha conduzido ao desenvolvimento do
Capitalismo. Porém, ela também fornece um novo significado às atividades seculares co-
tidianas das petits gens. As diferenças sociais (às quais o Calvinismo tinha uma aversão
inerente) são niveladas por meio da ordem comum para “remir
o tempo” (Richard Baxter).
A transformação do status do trabalho de uma atividade desagradável e degradante a ser
evitada, se possível, para um meio honrado e glorioso de afirmar a Deus e ao mundo que
ele criou, é uma das mais importantes contribuições do Calvinismo à cultura ocidental e
devemos explorá-la mais extensamente no capítulo final. Porém, quais são os demais
aspectos da cultura ocidental moderna que podem ser razoavelmente mencionados como
parte do legado de Calvino e de sua cidade? Em que extensão o Calvinismo modelou ou
contribuiu para a formação de atitudes e perspectivas do mundo moderno? Para concluir
esse estudo, devemos considerar alguns aspectos do impacto de Calvino sobre a cultura
ocidental moderna.

12
CALVINO E A FORMAÇÃO DA CULTURA
OCIDENTAL MODERNA
Nessa obra tivemos por objetivo esboçar as linhas gerais da carreira e do pensamento de
Calvino, bem como traçar a evolução do movimento, que deve suas origens e muito da sua
forma à inspiração dele e, ainda, tentar demonstrar o apelo que esse movimento possuiu no
final do século 16 e posteriormente. Esse apelo se encontra em parte na sua inovação,
parcialmente no seu rigor intelectual e em parte na sua atração evidente em relação àqueles
que sentiam que sua criatividade e potencial estavam sendo abafados pelas restrições de
uma sociedade semifeudal. Com o advento do Calvinismo como um movimento
internacional, parecia a muitos que a mudança estava no ar. O movimento parecia
carregado de potencial para libertar a Europa ocidental das cadeias que restaram da Idade
Média. C. S. Lewis ressalta este aspecto e insiste sobre a necessidade de apreender “o
1
frescor, a audácia e (logo) o requinte do Calvinismo” para o século 16. Como temos
enfatizado ao longo do estudo, o Calvinismo era bem mais do que uma teologia; ele era
visto como uma ideologia progressista que parecia capaz de atingir o mundo como uma
tempestade e de ter um impacto profundo sobre a cultura da época.
À primeira vista, pode ser que pareça bastante inadequado sugerir que o Calvinismo
afetou a cultura ocidental, exceto em um sentido puramente negativo. O Calvinismo não é
contrário à cultura? Por exemplo, ele tem sido comumente retratado como o inimigo das
artes. Em um certo nível, há evidência considerável para sustentar essa sugestão. Se há um
ponto em que a teologia de Calvino se aproxima do Islamismo é na sua postura em relação
à decoração dos prédios destinados à adoração pública. Nenhuma representação de Deus,
em forma humana, deveria ser permitida nas igrejas. Era – sugeria ele – muito fácil que
2
algo criado fosse confundido com o Criador. Isso significava abrir caminho para a idolatria , “imaginar ou possuir algo, no qual
3
alguém depositaria sua confiança, no lugar ou em adição ao Deus único e verdadeiro, que se revelou em sua palavra.”

Implícito nessa proibição, porém, estava um ponto mais importante: não é que Deus não
4
deva ser retratado; ele é, em essência, incapaz de ser retrata-do. No período imediatamente
posterior ao Concílio de Trento, as igrejas católicas – logo seguidas pelas Luteranas –
adotaram um estilo barroco de ornamentação, com extenso uso de auxílios visuais à
espiritualidade na forma de imagens e pinturas religiosas. Essas eram, porém,
rigorosamente excluídas dos templos calvinistas. Há provavelmente mais do que um traço
de superioridade intelectual no Catecismo de Heidelberg (1563): os calvinistas não
precisam de imagens visuais de Deus, sendo perfeitamente capazes de compreender e de
fazer pleno uso da extensa gama de imagens verbais transmitidas nas Escrituras:

P: Porém, não se pode permitir pinturas nas igrejas, em vez de livros, para os leigos?
R: Não. Nós não devemos tentar ser mais criativos do que Deus, que não quer que seu
povo seja ensinado por intermédio de ídolos inanimados, mas pela pregação viva de
5
sua palavra.

No entanto, não foram impostas quaisquer restrições significativas sobre as atividades


dos artistas calvinistas, fora da esfera específica da ornamentação das igrejas: na verdade, a
riqueza progressiva das comunidades calvinistas, que não eram totalmente desligadas de
sua associação com o Capitalismo, levou ao surgimento de modelos de patrocínio
semelhantes àqueles relacionados ao Renascimento italiano. Os ricos burgueses calvinistas
de Flandres parecem ter sido tão conscientes da importância da decoração de prédios e
casas quanto seus antecessores renascentistas. Além disso, a hostilidade calvinista, no que
tange às representações de imagens de Deus, era essen
CALVINO E A FORMAÇÃO DA CULTURA OCIDENTAL MODERNA 281

cialmente teológica em seu fundamento e não se estendia às demais áreas. Os pintores


calvinistas eram proibidos de retratar Deus em suas pinturas, mas não de pintar (e deve-se
recordar, nesse contexto, que os artistas estavam entre os primeiros adeptos da Reforma
6
Calvinista nos Países Baixos); felizmente, essa proibição de forma alguma exauriu as
possibilidades em aberto para eles, como deixa claro o novo interesse em paisagens, cenas
urbanas, cenas domésticas e porta-retratos característicos da arte flamenga do século 17. De
forma semelhante, “o registro de fatos das providências divinas, em biografias e histórias,
7
ou do ambiente natural acerca delas” levou esses temas a se tornarem o material ideal para
artistas calvinistas. Eles não podiam retratar Deus; mas, como Deus poderia ser conhecido
por intermédio de sua criação, uma nova motivação religiosa foi atribuída à retratação da
natureza e da história. Esse impulso fundamental de representar a natureza também está
ligado ao interesse calvinista pelas ciências naturais, ao qual devemos retornar em breve.
Mesmo nos países católicos, os artistas calvinistas eram ativos e bem recebidos. Na
França, a monarquia de Bourbon deu início a um ambicioso programa de desenvolvimento
urbano em estilo renascentista em Paris e outros locais. Um sistema fiscal favorável, sob a
liderança de Richelieu, gerou as fortunas dos investidores financeiros, que buscaram meios
socialmente aceitáveis de gastar a riqueza que acumularam. Os grandes hôtels da Ile Saint-
Louis e um extenso programa de patrocínio das artes eram expressões concretas dessa nova
8
riqueza. Embora o Edito de Nantes (1598) houvesse qualificado o Calvinismo como uma
religião tolerada, este era, no entanto, geralmente considerado como discrepante em seus
padrões de comportamento e uma espécie de ameaça à segurança nacional – uma percepção
que se fortaleceu durante a Guerra Civil inglesa e que convenceu Mazarin e seus conse-
9
lheiros de que os calvinistas eram revolucionários em potencial. Porém, mesmo durante
esse período, arquitetos e pintores calvinistas gozavam de status e sucesso muito maior do
que os outros, um fato que indica tanto um certo grau de tolerância religiosa por parte das
instituições francesas quanto o compromisso artístico e o talento genuíno dos calvinistas.
Seu sucesso pode ser demonstrado pelo fato de que dos vinte e três membros fundadores
10
daAcademie royale de peinture, fundada em 1648, sete (30,5 por cento) eram calvinistas.
Louis Testelin, o primeiro secretário da Academia, era abertamente reconhecido como um
calvinista, embora – conforme afirmou um discurso posterior – “ele não fosse tão
obstinado, como é costume daqueles que são contaminados por esses enganos, e evitasse
controvérsias subversivas.”
A “cultura”, porém, designa uma entidade mais abrangente do que as artes. Em seu
sentido mais amplo, ela engloba uma série de posturas, perspectivas, práticas e crenças que
dão forma a padrões de existência humana em conjunturas específicas da história. Ao lidar
com o impacto do legado de Calvino sobre a cultura ocidental, estamos interessados em sua
contribuição para a formação e produção de uma ideologia. Em seu estudo sobre atitudes
contemporâneas na América moderna, Robert Bellah e seus colegas realizaram entrevistas
com mais de duzentas pessoas. Ao comentar essas entrevistas, eles observaram: “Ao falar
com nossos contemporâneos, também estamos falando com nossos antepassados. Em
nossos diálogos, nós ouvimos não somente as vozes do presente, mas também as vozes do
11
passado. Nas palavras daqueles com quem conversamos, ouvimos João Calvino.”.
Contudo, nenhum desses indivíduos parece haver mencionado Calvino especificamente ou
ter reconhecido a sua influência sobre eles. Essa influência é sutil, anônima e até mesmo
não reconhecida. Ao concluir essa obra, parece apropriado destacar algumas áreas da
cultura ocidental mo-derna às quais Calvino parece ter dado uma grande contribuição, quer
isso seja ou não reconhecido explicitamente. Nós não estamos tão interessados na avaliação
dessas contribuições quanto na sua identificação, antes de tudo.
Três temas gerais se sobressaem como centrais para uma compreensão do impacto do
legado de Calvino sobre o Ocidente:

1. 1. O caráter internacional do Calvinismo que, rapidamente, se empenhou em se


livrar de quaisquer características que o ligassem, de forma específica, ao seu contexto
original de Genebra. O Calvinismo se provou incrivelmente apto em se adaptar às situações
locais, uma característica que tem sido identificada como essencial, pelos teóricos das
12
missões cristãs, para a implantação de formas do Cristianismo em culturas estrangeiras. O
Calvinismo foi capaz de se estabelecer em contextos variados, europeus e americanos,
demonstrando pouca relação com o contexto da Genebra do século 16 e se dirigindo
diretamente a questões específicas – políticas, econômicas e religiosas – no seio dessas
sociedades.
2. 2. O caráter fortemente afirmativo do pensamento de Calvino em relação ao mundo,
especialmente da maneira como foi desenvolvido por seus seguidores posteriores. Não se
deve pensar no Calvinismo como um conjunto de princípios religiosos abstratos e
irrelevantes, mas como uma religião firmemente arraigada em meio às realidades concretas
da existência humana (especificamente, deve-se acrescentar, da existên

CALVINO E A FORMAÇÃO DA CULTURA OCIDENTAL MODERNA 283

cia urbana). Mesmo a doutrina da predestinação, talvez a mais abstrata de todas as


idéias calvinistas, mostrou-se orientada no sentido de um envolvimento com o mundo
cotidiano. O Calvinismo se provou capaz de um engajamento na cultura ocidental a
ponto de, talvez mais do que qualquer outra versão moderna do Cristianismo, ter sido
capaz de transformá-la a partir de seu interior. O calvinista era encorajado a se
engajar diretamente no mundo, em vez de se retirar dele.
3. O Calvinismo provou-se vulnerável à secularização: com a evaporação de seu núcleo
religioso, um resquício bastante concreto de valores políticos, sociais e econômicos
permaneceu. Hugh Trevor-Roper sugeriu que uma das características distintivas do
13
Calvinismo é o fato de que este é mais facilmente descartado do que o Catolicismo;
uma vez descartado, porém, ele demonstra haver formado as posturas e perspectivas
daqueles que o adotavam anteriormente. Onde o poder original do Calvinismo se
deteriorou, ele deixou, ainda assim, uma marca característica sobre a perspectiva do
Ocidente.

Conta-se uma história sobre um inglês que foi abordado por um grupo de jovens, nas
ruas da Irlanda do Norte, célebre por seu conflito religioso entre católicos e protestantes.
“Você é católico ou protestante?”, eles lhe perguntaram, de um modo ameaçador. Ele
hesitou antes de responder: “Eu sou ateu”. Os jovens imediatamente replicaram: “Sim, mas
você é um ateu protestante ou um ateu católico? Há muita verdade nessa pergunta. O
ateísmo surge quando o cerne religioso de um movimento como o Calvinismo se evapora,
deixando um resquício perceptível. Esse resquício assume a forma de um conjunto de
posturas sociais, políticas, morais e econômicas, originariamente relacionadas à religião,
mas que, aparentemente, demonstram-se capazes de continuar em sua ausência. Embora, à
primeira vista, possa parecer absurdo se falar em “ateísmo calvinista”, a expressão capta
uma percepção crucial no que tange ao impacto do Calvinismo sobre o cultura ocidental: a
permanência de uma cratera na paisagem cultural, quando já está extinta a força original de
sua explosão vulcânica.
Com esses aspectos em mente, nós nos voltamos à análise de várias áreas, nas quais
pode-se alegar que o Calvinismo tenha moldado alguns setores significativos da cultura
moderna ocidental, especialmente na América do Norte. Os aspectos escolhidos são
exemplificativos, e não exaustivos; traçar a totalidade do impacto do legado de Calvino
sobre o Ocidente iria requerer um livro à parte.

A LEGITIMAÇÃO RELIGIOSA DO ATIVISMO ECONÔMICO


O capítulo anterior demonstrou a emergência, em meio ao Calvinismo, de posturas
economicamente dinâmicas, heterodoxas e ortodoxas, sobretudo durante o século 17. A
ética calvinista do trabalho havia sido, nesse momento, bastante secularizada; a postura
permanece, enquanto suas causas religiosas intrínsecas são esquecidas. As origens dessa
tendência voltada a uma ética secular do trabalho talvez possam ser notadas no Calvinismo,
durante o período de 1550 a 1680. Para os primeiros escritores calvinistas, inclusive para o
próprio Calvino, “vocação” exprime principalmente o fato de que uma pessoa foi eleita por
Deus e, apenas de forma secundária, a vocação secular (une vocation juste et approuvée)
por intermédio da qual essa vocação se expressa. Na Inglaterra, no período de Restauração
da monarquia constitucional, a ênfase é posta principalmente sobre a vocação da pessoa no
mundo, não no chamado eterno da pessoa, por parte de Deus; embora esse último elemento
permaneça essencial, há, no entanto, uma nítida tendência de se priorizar a ação no mundo,
em detrimento de suas bases teológicas. Nesse fato podem ser vistas as origens da
tendência moderna de secularização da noção de “chamado” ou “vocação”: para a maioria
dos indivíduos, na cultura ocidental moderna, não é Deus quem os chama para uma esfera
de atividade em particular; a pessoa é chamada pela sociedade, ou por um sen-so de
propósito interior, a ingressar em um determinado campo de atuação. A predisposição de
14
muitos, no Ocidente, de se engajarem em uma ou outra forma de ativismo pode ser
traçada, em parte, até as atitudes de seus antepassados puritanos. Dessa forma, Stephen
Foster aponta quantas das posturas econômicas dos puritanos, que proporcionaram a
expansão da Nova Inglaterra durante seu primeiro século de estabelecimento, devem ser
15
atribuídas à ética calvinista do trabalho. E Robert Bellah, em sua pesquisa sobre
o individualismo e o compromisso na vida moderna americana, sugere que uma
16
“reapropriação da idéia de vocação ou chamado” pode ser a chave para a reestruturação da
cultura americana. A idéia calvinista de chamado fornece toda a evidência de haver
sobrevivido, mesmo que sob uma nova roupagem secular. Ela também subsiste sob uma
forma provavelmente irreconhecível para o próprio Calvino, que são as “teologias da
prosperidade” norte-americanas, sobre as quais faremos uma breve consideração.
O impacto da ética calvinista do trabalho sobre a cultura norte-americana parece ter sido
imenso. Em 1831, Aléxis de Tocqueville observou que era

CALVINO E A FORMAÇÃO DA CULTURA OCIDENTAL MODERNA 285

normalmente bastante difícil dizer se os pregadores americanos estavam interessados em


“alcançar a felicidade eterna no outro mundo ou a prosperidade neste”. Em seu brilhante
estudo sobre a história religiosa dos Estados Unidos, Sidney Ahlstrom mencionou o
surgimento de uma nítida tendência, no século 19, que se tornou mais pronunciada no
17
século 20 – a riqueza ser considerada um sinal da eleição divina. Dessa forma, para citar
apenas dois dos indivíduos que dominavam o cenário financeiro americano, ao final do
século 19, John
D. Rockefeller Sr considerava sua riqueza como alguma espécie de recom-pensa divina por
sua fé, enquanto Andrew Carnegie falava do “Evangelho da Riqueza”. A riqueza pessoal e
a nacional vieram a ser vistas como sinais de um especial favor divino. O surgimento da
“teologia da prosperidade”, na década de 1970, nos Estados Unidos, pode ser tido como
uma conseqüência inevitável dessa versão distorcida da ética calvinista do trabalho.
Frederick Price é porta-voz desse movimento quando afirma que “nós precisamos perceber
que a prosperidade é a vontade de Deus. É a vontade perfeita de Deus que todos prosperem,
em todas as áreas da vida. Fundamentalmente, estamos tratando da prosperidade material e
18
financeira.”. O mesmo tema ecoa nas obras de Glória Copeland e Norval Hayes,
sugestivamente intituladas, God’s Will is Prosperity (1978) e Prosperity Now! (1986),
respectivamente. A ligação íntima que se pressupõe entre a prosperidade individual e a
nacional é, de modo geral, tida como a base de uma aliança entre “a teologia da prospe-
ridade” e um nacionalismo americano que ressurge. Ainda que seja discutível a extensão da
influência do Calvinismo sobre esse desenvolvimento importante e difundido dentro da
moderna cultura religiosa americana, existem pontos de contato suficientes para permitir
uma defesa prima facie a favor de uma influência indireta de Calvino. Pode-se defender
que Calvino tenha eliminado os estigmas religioso e social que eram aliados à riqueza.
Porém, para alguns, o monumento mais importante à ética calvinista do trabalho ainda se
encontra, talvez, na própria Genebra de Calvino. O turista ocasional dificilmente deixará de
notar o modo como o centro da cidade é dominado por bancos e outras instituições
financeiras. Como sugerimos, a ligação entre Calvino e o Capitalismo talvez seja mais sutil
e historicamente condicionada do que se possa pensar e deva-se mais às necessidades,
instituições e políticas da república de Genebra do que ao próprio Calvino. Pode ser que ele
não tenha se proposto a promover o Capitalismo e que tenha feito pouco mais do que
santificar as posturas, políticas e instituições econômicas existentes ou em
desenvolvimento, em Genebra; porém, pode-se razoavelmente sugerir que o novo ímpeto
dado ao Capitalismo e uma cultura empreendedora foram resultados significativos de seu
pensamento – mesmo que não pretendidos – e representam a percepção popular sobre o que
era o Calvinismo e aquilo que ele demandava. Se for assim, a cultura moderna ocidental
tem sido indelevelmente marcada e decisivamente moldada – quer direta ou indiretamente,
quer para melhor ou para pior – por esse intelectual religioso.

CALVINO E AS CIÊNCIAS NATURAIS


As origens da moderna ciência natural são complexas e controvertidas. Por exemplo,
Lewis S. Feuer alegou veementemente que a ciência moderna foi o resultado direto de um
19
“espírito hedonista-libertário”. Teorias que ten-tam explicar o incrível desenvolvimento
das ciências naturais em termos de um único fator determinante são, porém, ambiciosas e
geralmente não convincentes. É evidente que estão envolvidos uma série de fatores que
contribuíram para isso; um destes é indiscutivelmente religioso e relacionado a João
Calvino.
Há um vasto conjunto de pesquisas sociológicas, que remonta a mais de um século, o
qual demonstra que existem diferenças consistentes entre as tradições protestante e católica
dentro do Cristianismo, no que se refere à capacidade de produzir cientistas naturais de
primeira linha. Essas diferenças, que se estendem a uma vasta escala de países, podem ser
assim sintetizadas: os protestantes parecem ser muito melhores em promover as ciências
naturais do que os católicos. Em seu importante estudo sobre a participação de membros
estrangeiros na Academie des Sciences parisiense, durante o período de 1666 a 1883,
Alphonse de Candolle verificou que os protestantes excediam em muito a quantidade de
católicos. Tomando como base a população, de Candolle estimou que 60 por cento dos
membros deveriam ter sido católicos, e 40 por cento, protestantes; as quantias reais
20
acabaram por ser de 18,2 por cento e 81,8 por cento, respectivamente. Embora os
calvinistas fossem consideravelmente uma minoria, na parte sul dos Países Baixos, durante
o século 16, a vasta maioria dos cientistas naturais dessa região foi proveniente desse
21
grupo. A composição primitiva da Royal Society de Londres era dominada por puritanos.
Como indicam sucessivas pesquisas, tanto as ciências físicas quanto as biológicas eram
controladas por calvinistas durante os séculos 16 e 17. Essa impressionante constatação re-
quer, obviamente, algum tipo de explicação.

CALVINO E A FORMAÇÃO DA CULTURA OCIDENTAL MODERNA 287

Pode-se considerar que Calvino tenha feito duas importantes contribuições a esse debate.
Por um lado, ele encorajou, de forma positiva, o estudo científico da natureza; de outro, ele
removeu um imenso obstáculo que havia ao desenvolvimento desse estudo. Sua primeira
contribuição está ligada, especificamente, à sua ênfase sobre a organização da criação; tanto
o mundo físico quanto o corpo humano dão provas da sabedoria e do caráter de Deus.

Para que ninguém pudesse ser excluído do modo de se alcançar a


felicidade, Deus tem se regozijado não somente em plantar em
nossa mente as sementes da religião, sobre as quais já falamos,
mas em tornar conhecida a sua perfeição em toda a estrutura do
universo e em se colocar diante de nossos olhos diariamente, de
tal forma que não possamos abrir os olhos sem que sejamos obri
gados a observá-lo... Assim, o autor da carta aos Hebreus ele
gantemente descreve o mundo visível como imagens do invisível,
a sofisticada estrutura do mundo servindo como uma espécie de
espelho, no qual podemos ver Deus, que é, de outro modo, invisí
vel... Para provar sua incrível sabedoria, tanto os céus quanto a
terra nos apresentam provas incontáveis – não apenas aquelas
provas mais elaboradas, que a astronomia, a medicina e todas as
demais ciências naturais se destinam a ilustrar, mas aquelas pro-
vas que se impõem à atenção do mais inculto camponês, o qual
não pode abrir seus olhos sem que as veja. (Institutas I.v.1-2).

Calvino, dessa forma, louva tanto a astronomia quanto a medicina – na verdade, ele até
mesmo confessa ser um pouco invejoso delas – pelo fato delas serem capazes de uma
investigação mais profunda sobre o mundo natural e, assim, revelar em evidências mais
detalhadas a ordem da criação e a sabedoria de seu Criador. A idéia de que Calvino
menosprezava Copérnico é um absoluto mito, como observamos anteriormente.
Dessa forma, pode-se alegar que Calvino deu um fundamental impulso religioso à
investigação científica da natureza, pelo fato de que esta era vista como um modo de
discernir a sábia mão de Deus na criação, aumentando, assim, tanto a crença em sua
existência quanto o respeito que lhe era dedicado. A Confessio Belgica (1561), uma
declaração calvinista de fé que exerceu particular influência nos Países Baixos (que vieram
a ser particularmente notórios por seus botânicos e físicos), dizia que a natureza é “diante
de nossos olhos como um livro muito belo, no qual todas as coisas criadas, quer grandes ou
22
pequenas, são como letras que revelam as coisas invisíveis de Deus para nós”. Deus pode, assim, ser
discernido por meio do estudo detalhado de sua criação. Perry Miller chamou a atenção para a maneira pela qual a natureza poderia se tornar o “altar de Deus”, uma
23
Uma ética que claramente retrata perspectivas
revelação empírica do divino no “vasto oceano e na imensa floresta”.
24
semelhantes estava infiltrada na Royal Society, no século 17. Assim, Richard Bentley
(1662-1742) proferiu uma série de palestras, em 1692, baseadas nos Principia Mathematica
de Newton (1687), nas quais a regularidade do universo, segundo estabelecida por Newton,
é interpretada como prova de um propósito. Em uma carta escrita para Bentley, quando este
preparava suas palestras, Newton declarou que “quando escrevi meu tratado sobre nosso
sistema, eu tinha em vista que esses princípios pudessem funcionar como algo que levasse
os homens a considerar a crença em um Deus, e nada pode me dar mais alegria do que
descobri-los úteis a esse propósito.”. Aqui há traços inconfundíveis da referência de
Calvino ao universo como sendo um “teatro da glória de Deus”, no qual os seres humanos
são uma audiência agradecida (Institutas I.vi.2).
Em segundo lugar, Calvino pode ser tido como aquele que eliminou um importante
obstáculo ao desenvolvimento das ciências naturais – o literalismo bíblico. Essa
emancipação da observação e da teoria científicas em relação às interpretações
grosseiramente literalistas das Escrituras ocorreu em dois níveis distintos: primeiro, na
declaração de que o objeto natural das Escrituras não é a organização do mundo, mas a
revelação de Deus e a redenção, centralizadas em Jesus Cristo; segundo, na insistência
sobre o caráter adaptado da linguagem bíblica. Devemos analisar esses dois aspectos
isoladamente.
Calvino aponta (embora ele não seja totalmente consistente a esse respeito) que se deve
considerar a Bíblia como sendo voltada principalmente ao conhecimento de Jesus Cristo.
Ela não deve ser tratada como um manual de astronomia, geografia ou biologia. Talvez a
declaração mais clara desse princípio possa ser encontrada em um parágrafo adicionado,
em 1543, ao prefácio de Calvino feito para a versão do Novo Testamento, da autoria de
Pierre Olivetan (1534): todo o objetivo das Escrituras é nos levar ao conhecimento de Jesus
Cristo – e tendo vindo a conhecê-lo (e a tudo que isso implica), devemos cessar e não
25
esperar aprender mais. As Escrituras nos fornecem os óculos por intermédio dos quais nós
podemos enxergar o mundo como a criação e a expressão de Deus; elas não nos fornecem
um

CALVINO E A FORMAÇÃO DA CULTURA OCIDENTAL MODERNA 289

acervo infalível de informações astronômicas e médicas, nem nunca pretenderam fazê-lo.


As ciências naturais são, dessa forma, efetivamente emancipadas das restrições teológicas.
Em 4 de junho de 1539, Lutero fez um comentário cáustico sobre a teoria de Copérnico
– a ser publicada em 1543 – de que a Terra girava em torno do Sol: as Escrituras não
enfatizavam justamente o contrário? E assim a teoria heliocêntrica do sistema solar foi
descartada um tanto precocemente. Esse grosseiro literalismo bíblico parece ter sido típico
do Reformador alemão. Em sua controvérsia com Zwínglio a respeito das célebres palavras
ditas por Jesus sobre o pão, na última ceia – “este é o meu corpo” (Mateus 26:26) – Lutero
insistiu em que o verbo “é” só poderia ser interpretado como “é literalmente idêntico a”.
Isso atingiu Zwínglio como um absurdo religioso e lingüístico, totalmente insensível aos
diversos níveis dentro dos quais a lingua-gem operava. Nesse caso, “é” quer dizer
26
“representa”.
Calvino, como vimos, desenvolve uma sofisticada teoria da “acomodação”. Deus, ao se
revelar a nós, adaptou-se aos nossos níveis de compreensão e à nossa inerente preferência
pelos meios pictóricos de concebê-lo. Deus se revela não da forma como ele é em si
mesmo, mas por intermédio de formas adaptadas à nossa capacidade humana. Assim, as
Escrituras falam de Deus possuindo braços, boca e assim por diante – porém, essas são
apenas metáforas vívidas e memoráveis, tipicamente apropriadas às nossas capacidades
intelectuais. Deus se revela sob formas apropriadas às capacidades e situações daqueles a
quem a revelação foi feita originariamente. Portanto, as histórias bíblicas da criação e da
queda (Gênesis 1-3) são adaptadas à capacidade e aos horizontes de um povo relativamente
27
simples e rude; elas não pretendem ser tomadas por representações literais da realidade.
O impacto dessas idéias sobre a investigação científica inglesa, especial-mente durante o
século 17, foi considerável. Por exemplo, Edward Wright defendeu a teoria heliocêntrica de
Copérnico sobre o sistema solar contra os literalistas bíblicos ao argumentar que, em
primeiro lugar, as Escrituras não estavam interessadas na física e, em segundo lugar, que
sua forma de expressão havia sido “adaptada” à compreensão e ao modo de falar das
28
pessoas comuns, como as babás fazem com as crianças pequenas”. Ambos os argumentos
derivam diretamente de Calvino.
Desde o século 19, a religião e a ciência freqüentemente parecem estar presas a um
combate mortal, na cultura ocidental. Alguns escritores sugeriram que isso retrata uma
influência excessiva de Calvino sobre o Cristianismo ocidental. Contudo, de forma
paradoxal, isto se dá precisamente em razão de Calvino ter tido uma influência muito
pequena sobre seus seguidores posteriores. O infame julgamento de Scopes (1925),
centrado na questão do caráter supostamente não-bíblico da teoria da evolução, dá testemu-
nho das impropriedades de uma interpretação grosseiramente literal do relato da criação de
Gênesis. Contudo, para Calvino, mesmo a idéia dos “seis dias da criação” foi uma
29
adaptação divina às capacidades cognitivas huma-nas; ela não deve ser tomada como uma verdade ao pé da letra. Se
Calvino tivesse tido uma influência maior sobre seus seguidores contemporâneos, talvez um dos aspectos centrais da moderna cultura ocidental – o conceito de uma

tensão entre religião e ciência – tivesse sido evitado. Todo o debate sobre a evolução teria tomado um curso radicalmente diferente, se ele tivesse tido uma influência

maior sobre seus seguidores posteriores.

Isso, porém, é especular sobre o que poderia ter acontecido; nosso interesse é analisar o
que de fato aconteceu. É evidente que há um impulso religioso fundamental à rápida
expansão das ciências naturais, no século 16 e posteriormente, e que isso pode ser
atribuído, ao menos em parte, às idéias e à influência de João Calvino.

O FENÔMENO DA RELIGIÃO CIVIL AMERICANA


A ênfase calvinista sobre a predestinação é ligada especificamente à idéia da “eleição” –
ser escolhido por Deus. Ao mesmo tempo em que seu principal rival protestante, o
Luteranismo, retirou a ênfase da noção de predestinação, reduzindo-a, efetivamente, a
pouco mais do que uma afirmação da constância e da fidelidade de Deus, o Calvinismo
considerava que a doutrina fornecia inspiração religiosa e legitimação moral e social à
expansão internacional do movimento. A eleição não era entendida como algo relacionado
meramente aos indivíduos, mas às comunidades às quais eles pertenciam. As comunidades
calvinistas haviam sido escolhidas por Deus, separadas para alcançar os propósitos de
Deus. Era, portanto, natural que os calvinistas devessem perceber e explorar os evidentes
paralelos entre a sua própria situação e aquela do antigo Israel. Enquanto Israel foi o povo
escolhido de Deus, no antigo Oriente próximo, os calvinistas eram seus sucessores, no
início do período moderno. E, da mesma forma que seus antecedentes israelitas, eles
aguardavam a triunfante entrada na nova terra prometida. Menna Prestwich observa essa
evolução e seu potencial significado:
CALVINO E A FORMAÇÃO DA CULTURA OCIDENTAL MODERNA 291

A doutrina da predestinação, que assumiu a vanguarda quando Beza (de Bèze) sucedeu
Calvino, levou os calvinistas a se identificarem com os eleitos e filhos de Israel. O
Antigo Testamento era para eles um espelho e um guia, no qual eles encontravam
inspiração para suas vitórias sobre as forças da Babilônia e consolo para suas
tribulações no deserto ou no descampado, em seu caminho rumo à Terra Prometida. A
providência e as dispensações de Deus tinham imediatidade e realidade para eles.
Quando Coligny atravessou a parte rasa do Loire, em 1568, isso foi logo comparado à
30
travessia do Mar Vermelho.

Com a ascensão de Elizabeth I ao trono, muitos escritores calvinistas consideravam que


a Inglaterra havia alcançado o status de “nação mais favorecida” diante de Deus. Essa
percepção, porém, durou relativamente pouco. Isso não foi muito antes dos escritores
puritanos voltarem seus olhos e imaginações em direção à América.
O início da história da colonização da América do Norte, quer escrita por ingleses ou
holandeses calvinistas, foi amplamente considerado como a entrada do povo exilado de
Deus em uma nova terra prometida. Como Perry Miller demonstrou, a primeira e
inquestionável premissa dos primeiros colonizadores ingleses era a de que eles haviam
31
entrado em aliança com Deus para formar comunidades consagradas a Deus. A verdadeira
América era um protótipo da nova Jerusalém, a “cidade sobre o monte” predestinada desde
a eternidade, ainda em processo de realização na Nova Inglaterra. Essa percepção foi inten-
sificada por intermédio dos avivamentos religiosos do Grande Avivamento e por meio do
Tratado de Paris (1763), que devolveu às mãos dos protestantes os vastos territórios
católicos da França e da Espanha, na América do Norte. Talvez de forma mais significativa,
a Revolução Americana testemunhou o fortalecimento ainda maior da ligação entre a
independência da América e seu chamado divino; a declaração da Pensilvânia, de Robert
Smith – “a causa da América é a causa de Jesus Cristo” – parece retratar uma percepção
difundida entre a sociedade americana, nessa época. O Ministro congregacional John
Devotion disse que Deus havia escolhido a América como sua nação eleita: “Todas as
nações ouçam o desejo do grande Jeová; a América, de hoje em diante escolhida, deve se
colocar como rainha entre as nações.”.
Como observou Sidney Ahlstrom, um tema recorrente de grande parte da historiografia
americana, a partir desse ponto, volta-se para a orientação di-vina e o fortalecimento da
América:
Somente um americano eventualmente muito excêntrico alguma vez duvidou de que a
bandeira americana tremulasse sobre a Nação Eleita do Senhor. Para muitos, o
americano fori concebido como um novo Adão em um novo Éden, e a nação
americana, como a grande segunda chance da humanidade. Nada ilustra melhor a
continuidade dessa tradição do que os hinos patrióticos, que foram registrados no livro
nacional do Salmos – desde America, produzido em um momento de inspiração por
um seminarista de Andover, para uma celebração de 4 de julho, em 1832, passando por
The Battle Hymn of the Republic, composto por Julia Ward Howe, como se tivesse
sido pela mão de Deus, em 1861, até America the Beautiful, publicado no
Congregationalist, em 1893. Esse tema mítico da América como uma candeia sobre o
monte e um exemplo para o mundo se tornou um elemento constitutivo das
32
interpretações históricas da vida religiosa da nação.

A noção de predestinação é facilmente secularizada para a noção de “sor-te” ou


“destino”. A proximidade das noções de providência e predestinação foi apontada pelo
próprio Calvino, que tratou em conjunto do dois temas em um único capítulo de uma
primeira edição das Institutas. À medida que o núcleo religioso do Calvinismo começou a
se evaporar em meio aos setores da sociedade americana no final do século 19 e no século
20, uma noção secular de providência ou destino começou a substituir a idéia mais especifi-
camente religiosa de predestinação. Uma América secularizada ainda era capaz de pensar
em si mesma como eleita entre as nações, com suas instituições (por exemplo, a
Presidência) e símbolos (por exemplo, a bandeira) dotados de um significado quase divino
ou sagrado. As origens dessa noção de destino nacional remontam ao passado puritano da
América, o qual – para alguns, pelo menos – ainda é presente.

O CALVINISMO E OS DIREITOS HUMANOS NATURAIS


A participação do Calvinismo no desenvolvimento dos conceitos de direitos humanos
33
naturais, na Europa e América do Norte, tem sido enfatizada em alguns estudos recentes.
A atitude hostil dos monarcas franceses do século 16 em relação a seus súditos calvinistas
gerou, com força penetrante, questões sobre a possibilidade de existirem limites para a
autoridade real e a

CALVINO E A FORMAÇÃO DA CULTURA OCIDENTAL MODERNA 293

obrigação dos súditos em obedecê-la. Os massacres de São Bartolomeu (1572) podem ser
considerados como o evento que precipitou, entre os círculos calvinistas, um intenso debate
sobre o uso apropriado da violência,
a. o lugar da obediência e os limites da autoridade civil. O sucesso da Reforma
calvinista na Escócia gerou praticamente as mesmas questões, particular-mente no período
34
posterior à deposição de Mary, Rainha dos Escoceses (1567). Deu-se uma fusão dos
conceitos bíblicos de justiça e fidelidade (os quais o Antigo Testamento ligava ao conceito
de uma aliança entre Deus e o seu povo) com as idéias de posteriores escritores
contratualistas medievais, centralizadas na noção de governo por meio da justiça, no lugar
da opressão. Se essas idéias se originaram na Europa, ao final do século 16, elas foram
apropriadas com vigor pelos revolucionários americanos, determinados a romper com o que
eles consideravam como a tirania da monarquia britânica sobre a sua existência. Jonathan
Mayhew (1720-66) associou sua política à sua religião quando declarou que “o direito real
hereditário que é injustificável e divino e a doutrina da não-resistência, que é construída so-
bre a suposição desse direito, são absolutamente tão legendários e fantasiosos quanto a
transubstanciação.”. O resultado desse debate norte-americano foi
b. o surgimento de um entendimento sobre os direitos humanos que era baseado na
idéia da aliança, o qual, quando associado ao apelo de Calvino ao Direito Natural, gerou a
noção de que todos os seres humanos haviam sido criados como iguais, com certos direitos
35
humanos inalienáveis à vida, à liberdade e à busca da felicidade.
Se essa noção de direitos humanos caracterizou a Revolução Americana e suas
conseqüências, ela não era compartilhada por todos os escritores calvinistas. Duas
importantes exceções podem ser observadas, as quais compartilhavam um enfoque
alternativo comum em relação aos direitos humanos. Enquanto os escritores calvinistas dos
estados americanos do Norte insistiam que toda humanidade fôra criada com os mesmos
direitos, alguns dos escritores calvinistas do Sul – tais como Robert Lewis Dabney, Benja-
min Morgan Palmer e James Henley Thornwell – alegavam que Deus criara as pessoas com
uma diversidade de status étnicos e sociais. Enquanto os teólogos do Norte apelavam para
uma noção de Direito Natural, seus cole-gas do Sul apelavam para outra bastante diferente
36
em sua origem e ênfase. Em conseqüência, esses escritores calvinistas sulistas se sentiram capazes de justificar tanto a doutrina de uma evolução
racial separada para brancos e negros quanto a continuidade da prática existente da escravidão. Na iminência da Guerra Civil Americana,
duas concepções calvinistas radicalmente opostas sobre os direitos humanos se
encontraram, assim, presas a um combate mortal. Os sulistas iriam perder essa batalha em
particular, mas suas idéias sobreviveram em outros locais; até recentemente, as Igrejas
Reformadas Holandesas, na África do Sul, apelavam a uma noção semelhante na defesa da
doutrina do apartheid, da mesma forma que alguns protestantes de Ulster defendem, com os
mesmos argumentos, a existência de uma divisa entre o Norte da Irlanda,
predominantemente protestante, e o Sul, predominantemente católico. A diversidade em
meio ao Calvinismo é aqui manipulada por intermédio de importantes controvérsias
políticas, que são parte integrante das controvérsias da história moderna.

A história completa do impacto do Calvinismo sobre a cultura ocidental ainda está para
ser escrita; os pontos acima observados são meramente um indicador experimental de sua
extensão e importância potencial. No entanto, as modestas descobertas desse último
capítulo permitem que uma relevante conclusão seja traçada: estudar Calvino não significa
meramente estudar o passado – também significa alcançar uma compreensão mais profunda
do presente. A cultura ocidental moderna continua a ser moldada pelas memórias do
passado. Embora Calvino esteja enterrado em uma cova não identificada, em algum ponto
de Genebra, suas idéias e sua influência sobrevivem nas perspectivas da cultura que ele
ajudou a criar.

Apêndice I

GLOSSÁRIO DE TERMOS

TEOLÓGICOS E HISTÓRICOS

A utilização, ainda que mínima, de alguns termos teológicos e históricos potencialmente


obscuros, em uma obra dessa natureza, é inevitável. Como grande parte dessa terminologia
pode ser desconhecida para o leitor co-mum, o presente Apêndice é voltado a proporcionar
um certo nível de esclarecimento, sem sacrifício da precisão, no corpo da própria obra.
ACOMODAÇÃO
Princípio, associado especialmente a Calvino, de que Deus se revela em palavras e
imagens que são apropriadas à capacidade humana para visualizar e compreender. As
Escrituras, portanto, não devem ser tomadas literalmente, em todos os pontos; elas
freqüentemente empregam idéias e imagens não literais. O princípio é de extrema
importância para a compreensão de como o Calvinismo veio a ser tão favorável com
relação às novas ciências naturais, em especial a astronomia; o literalismo bíblico foi
removido, como um obstáculo, desse novo campo da investigação humana.

ADIÁFORA
Literalmente, “questões de indiferença”. Crenças e práticas que os Reformadores
consideravam toleráveis, pelo fato de não serem explicitamente rejeitadas ou estipuladas
pelas Escrituras. Por exemplo, os trajes que os ministros usavam nos cultos religiosos eram
comumente considerados uma “questão indiferente”, sobre a qual variações poderiam ser
toleradas sem que se comprometessem as crenças essenciais. O conceito é relevante por ter
permitido que os Reformadores adotassem um enfoque pragmático em relação a diversas
crenças e práticas, evitando, assim, uma confrontação desnecessária. Por exemplo, Calvino
tendia a adotar essa atitude em relação aos bispos.

AGOSTINIANISMO
Um termo empregado em dois sentidos abrangentes. Primeiro, ele se refere às
perspectivas de Agostinho de Hipona relacionadas à doutrina da salvação, na qual é
enfatizada a necessidade da graça divina. Nesse sentido,
o termo é a antítese do Pelagianismo. Segundo, ele é empregado para se referir ao conjunto
de doutrinas da Ordem agostiniana, durante a Idade Média, independente do fato dessas
perspectivas derivarem ou não de Agostinho. O primeiro sentido do termo domina o
presente estudo.

AMIRALDISMO
Uma heresia calvinista, baseada nos ensinamentos de Moïse Amyraut, professor da
Academia Protestante de Saumur, designada como um place de sûreté, nos termos do Edito
de Nantes. Como o Arminianismo, o Amiraldismo envolvia a crítica da noção calvinista de
predestinação, argumentando pelo retorno de um conceito mais análogo àquele associado a
Calvino do que aquele associado a seus intérpretes posteriores.

ANABATISMO
Literalmente, “re-batismo”. Um termo usado para se referir à ala radical da Reforma,
baseada em intelectuais como Menno Simons e Baltazar Hubmaier. Os radicais geralmente
defendiam o direito de cada indivíduo
GLOSSÁRIO DE TERMOS TEOLÓGICOS E HISTÓRICOS

interpretar as Escrituras por si mesmo, rejeitavam a interferência da autoridade civil no


campo da religião e adotavam uma atitude crítica em relação à maioria das instituições
sociais, religiosas e políticas existentes.

ARMINIANISMO
Uma heresia calvinista associada a Jacob Arminius. Contrastando com Teodoro de
Beza, que afirmava que todos são individualmente destinados à vida ou à morte eterna,
Arminius ensinava que a predestinação se refere ao decreto divino genérico, de forma que
todos os que crêem devem ser salvos. O Arminianismo foi explicitamente condenado pelo
Sínodo de Dort (1618-19).

ARTICULANTES
A facção contrária a Guilherme Farel, em Genebra, especialmente durante o período de
1535 a 1538. Também conhecidos como Artichauds.

CALVINISMO
Um termo ambíguo empregado em dois sentidos completamente distintos. Primeiro, ele
se refere às idéias religiosas de instituições religiosas (tal como a Igreja Reformada) e de
indivíduos (tal como Teodoro de Beza) que foram profundamente influenciados por João
Calvino ou por documentos escritos por ele. Pelo fato do “Calvinismo” ter se inspirado em
outras fontes teológicas diferentes de Calvino, o uso do termo é ligeiramente confuso; o
termo “teologia Reformada” é preferido por muitos escritores. Segundo, ele se refere às
idéias religiosas do próprio João Calvino. O termo “calviniano”, mais estranho, é
empregado, com freqüência, para designar preferencialmente esse último sentido.

CATECISMO
Um manual popular de doutrina cristã, comumente na forma de pergunta e resposta,
voltado à instrução religiosa. Com sua ênfase considerável sobre a educação religiosa, a
Reforma assistiu ao aparecimento de alguns impor
tantes catecismos, especialmente O Catecismo Menor de Lutero (1529), O Catecismo de
Genebra, de Calvino (1545) e o célebre Catecismo de Heidelberg (1563).

CISMA
Um rompimento deliberado com a unidade da Igreja, vigorosamente condenado por
escritores influentes da Igreja primitiva, como Cipriano e Agostinho. A controvérsia
donatista se concentrou em torno da questão da existência ou não de legitimidade, em
relação a um grupo insatisfeito com o comportamento da Igreja ou de seus líderes, para que
rompesse com a Igreja e fundasse a sua própria. Os Reformadores foram taxados de
“cismáticos” ou “sectários” pelos seus oponentes e, assim, acharam-se na difícil situação de
sustentar as perspectivas de Agostinho sobre a graça, mas de desconsiderar aquelas
relacionadas à unidade da Igreja.

CONFISSÃO DE FÉ, CONFESSIONALISMO


Embora o termo se refira, principalmente, à admissão de pecados, ele adquiriu um
sentido técnico bastante diferente no século 16 – o de um documento que incorporava os
princípios da fé de uma Igreja protestante. Dessa forma, A Confissão de Augsburgo (1530)
incorpora as idéias do início do Luteranismo, e a Primeira Confissão Helvética (1536), as
idéias da Igreja Reformada primitiva. O termo “Confessionalismo” é empregado, freqüen-
temente, para se referir ao endurecimento das atitudes religiosas, ao final do século 16,
durante a chamada “Segunda Reforma”, quando as Igrejas Luterana e Reformada se
envolveram em uma luta pelo poder, na Alemanha.

CONSELHO DOS DUZENTOS (CONSEIL DES DEUX CENTS)


O conselho de Genebra inspirado em instituições análogas de Berna e Zurique, que
constituía o colégio eleitoral para o Petit Conseil.

CONSELHO GERAL (CONSEIL GÉNÉRAL)


O maior conselho de Genebra, que foi originariamente o colégio eleitoral da cidade
medieval. Até a época de Calvino, essa função havia sido assumi
GLOSSÁRIO DE TERMOS TEOLÓGICOS E HISTÓRICOS

da pelo Conseil des Deux Cents; o Conseil Général, então, reunia-se ordinariamente apenas
duas vezes por ano, para dois propósitos estritamente limitados: a eleição dos síndicos, em
fevereiro, e a fixação dos preços do milho e do vinho, em novembro.
CONSISTÓRIO
A instituição genebrina criada por Calvino em suas Ordonnances, de 1541,
aparentemente baseadas em cortes conjugais da Idade Média, que era responsável pela
disciplina eclesiástica em Genebra. O propósito da autoridade dessa instituição era tema de
intenso debate em Genebra, no início da década de 1540 e na década de 1550.

CRISTOLOGIA
A parte da teologia cristã que trata da identidade de Jesus Cristo, particularmente da
questão da relação entre suas naturezas humana e divina. Exceto por ter sido tema de um
desentendimento entre Lutero e Zwínglio, na cidade de Marburgo, em 1529, a cristologia,
da mesma forma que a doutrina da Trindade, era considerada de pouca importância para a
Reforma, pelo fato de não ser tida como central para a causa da mesma.

DONATISMO
Um movimento sectário do Norte da África, do final do período clássico, combatido por
Agostinho de Hipona, que fazia a seus membros exigências particularmente rigorosas,
inclusive a de que eles fossem novamente batizados.

ECLESIOLOGIA
A parte da teologia cristã que trata da doutrina da Igreja (do grego: ekklesia, “igreja”).
Na época da Reforma, a controvérsia se concentrava sobre a seguin-te questão: as Igrejas
protestantes poderiam ser consideradas uma continuação da corrente principal do
Cristianismo? Em outras palavras, eram elas uma versão reformada do Cristianismo ou algo
completamente novo, que possuía pou
ca ou nenhuma conexão com os 1.500 anos anteriores da história cristã?

ÉGLISE DRESSÉE, ÉGLISE PLANTÉE


As duas formas principais de congregações calvinistas existentes na França dos anos de
1550. Uma église plantée era pouco mais do que uma reunião de grupo informal e
clandestina, para estudo bíblico e oração. Uma église dressée possuía uma estrutura como a
do Consistório, com anciãos e diáconos (obrigatória a partir de 1555).

EIGUENOTES
O partido favorável a Berna, em Genebra, antes da revolução de 1536. O termo é uma
alteração da palavra suíço-alemã Eidgnoss, “confederado”.

ERA APOSTÓLICA
Tanto para os humanistas quanto para os Reformadores, o período específico da Igreja
cristã delimitado pela ressurreição de Jesus Cristo (35 d.C) e a morte do último apóstolo (90
d.C?). As idéias e práticas desse período eram tidas, em larga escala, como normativas, nos
círculos humanistas e reformistas.

ESCRITOS ANTIPELAGIANOS
Os escritos de Agostinho, referentes à controvérsia pelagiana, na qual ele defendeu suas
perspectivas a respeito da graça e da justificação. Ver “Pelagianismo”.

ESTADOS
Uma forma de se referir aos estratos superiores da sociedade francesa: o primeiro estado
(o clero), o segundo estado (a nobreza) e o terceiro estado (a burguesia). Representantes dos
três estados se encontravam nos Etatsgénéraux (Estados Gerais).

EVANGÉLICO
Um termo usado para se referir aos movimentos reformistas nascentes, especialmente na
Alemanha e na Suíça, nas décadas de 1510 e 1520. Ele foi posteriormente substituído pelo
termo “protestante”, em conseqüência da
GLOSSÁRIO DE TERMOS TEOLÓGICOS E HISTÓRICOS

Dieta de Speyer (1529), embora este último tivesse conotações especificamente associadas
à situação alemã, naquele período.

ÉVANGÉLIQUES
Um termo freqüentemente usado para se referir ao movimento reformista francês,
especialmente nas décadas de 1520 e1530, concentrando-se em figuras como Margaret de
Navarre e Guilherme Briçonet, comprometidos com um programa de reforma moderado, de
inspiração fabrisiana.
EXEGESE
A ciência da interpretação textual, comumente relacionada à Bíblia de forma específica.
O termo “exegese bíblica” significa basicamente “o processo de interpretação da Bíblia”.
As técnicas específicas empregadas na exegese das Escrituras são comumente designadas
como “hermenêutica”.

FABRISIANO
As perspectivas reformistas associadas a Jacques Lefèvre d’Etaples, que assumiram
particular relevância em Paris e outros locais da França, na década de 1520. Embora
gerasse perspectivas que antecipavam as dos Reformadores, particularmente no que se
refere à autoridade e à interpretação das Escrituras, Lefévre não as considerava como se
demandassem ou implicassem em uma ruptura com a Igreja Católica. Foi um movimento
de reforma dentro da igreja (interna).

GUILHERMINOS
A facção em Genebra, especialmente durante o período de 1535 a 1538, que se
concentrava em torno de Guilherme Farel.

HÁBITOS DE GRAÇA ADQUIRIDOS


Um conceito introduzido por escritores do século 13, como Tomás de Aquino, como
uma ponte entre Deus e a natureza humana, no processo da salvação. Argumentava-se que,
como Deus não podia lidar diretamente com a natureza humana pecadora, havia
necessidade de se estabelecer um estado de mediação entre divindade e humanidade, como
uma espécie de “território conquistado” a partir do qual o processo de salvação poderia
avançar. Esse estado intermediário era conhecido como um “hábito de graça cultivado”.

HERESIA
Uma negação formal de qualquer doutrina central específica da fé cristã. Em termos
históricos, porém, as heresias não eram meramente intelectuais em sua origem; elas eram,
freqüentemente, uma reação a certas pressões sociais e políticas. Assim, o Donatismo era,
em parte, uma reação dos nativos Berbers, do Norte da África, aos colonizadores católicos,
enquanto o Hussianismo era intimamente ligado ao surgimento do nacionalismo boêmio.
HERMENÊUTICA
Os princípios que embasam a interpretação ou exegese de um texto, particularmente
daqueles pertencentes às Escrituras. A primeira fase da Reforma assistiu ao
desenvolvimento de algumas formas de interpretação bíblica, derivadas tanto do
Humanismo quanto do Escolasticismo. Zwínglio, a princípio, utilizou um modelo
hermenêutico derivado do Humanismo de Erasmo e Lutero, um modelo derivado da
teologia escolástica.

HUGUENOTE
Um termo usado para se referir aos calvinistas franceses, particularmente durante as
Guerras de Religião.

HUMANISMO
A tendência genérica, associada especialmente à Renascença, de se considerar o estilo
clássico como normativo e o estudo da literatura clássica como um meio de promover esse
estilo, no momento presente. O Humanismo renascentista não foi um movimento secular ou
ateu, como o uso moderno do termo possa sugerir.
GLOSSÁRIO DE TERMOS TEOLÓGICOS E HISTÓRICOS

INTELECTUALISMO
Dentro do pensamento medieval, a crença de que o intelecto divino tinha precedência
sobre a vontade divina. Um enfoque intelectualista ao mérito humano se baseia na crença
de que o intelecto divino reconhece o valor moral inerente a um ato humano e, assim,
atribui-lhe, proporcionalmente, o valor que mereçe. Esse enfoque deve ser contrastado com
o voluntarismo, que concedia prioridade à vontade divina.

JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ, DOUTRINA DA


A parte da teologia cristã que trata do tema sobre como o pecador é capaz de entrar em
comunhão com Deus. Embora de extrema importância para Martinho Lutero e seus colegas
de Wittenberg, a doutrina tinha, na verdade, interesse relativamente pequeno para os
Reformadores suíços, como Zwínglio e, posteriormente, Calvino. Enquanto a primeira onda
da Reforma (derivada, em larga escala, de Lutero) se concentraria em torno dessa doutrina,
a segunda (associada especialmente a Calvino) focalizou, principal-mente, os temas
relacionados à organização e à disciplina eclesiais.

LITURGIA
O texto escrito das cerimônias religiosas públicas, especialmente da eucaristia. Como na
Reforma a liturgia era predeterminada pela teologia, a reforma da liturgia era considerada
de particular relevância.

LUTERANISMO
As idéias religiosas associadas a Martinho Lutero, particularmente da maneira como
estão expressas no Catecismo Menor (1529) e na Confissão de Augsburgo (1530). Uma
série de desavenças internas no Luteranismo, após a morte de Lutero (1546), entre os
radicais (os chamados “gnésioluteranos” ou “flacianistas”) e os moderados (“felipistas”)
levaram à sua resolução por meio da Fórmula de Concórdia (1577), que é comumente con-
siderada como a declaração oficial da teologia Luterana.

MAMELUCOS
O partido favorável a Sabóia, em Genebra, antes da revolução de 1536.

MESSIEURS DE GENÈVE
Um termo utilizado para designar o Petit Conseil e os síndicos da cidade de Genebra –
em outras palavras, a estrutura que governava a cidade.

NICODEMISMO
Um termo pejorativo que se referia àqueles evangélicos em contextos católicos,
especialmente na França, que relutavam em atrair a atenção para sua fé publicamente, por
medo das conseqüências.

NOMINALISMO
Estritamente falando, a doutrina do conhecimento oposta ao realismo. O termo, porém, é
utilizado ainda, ocasionalmente, para se referir à via moderna.
PAIS
Um termo alternativo para “escritores patrísticos”.

PATRÍSTICO
Um adjetivo utilizado para se referir aos primeiros séculos da história da Igreja,
posteriores à escrita do Novo Testamento (o “período patrístico”), ou aos intelectuais que
escreveram durante esse período (os “escritores patrísticos”). Para os Reformadores, o
período assim designado parece ser de 100 a 451 (em outras palavras, o período entre a
conclusão do Novo Testamento e o Concílio da Calcedônia). Os Reformadores tendiam a
considerar o Novo Testamento e, em menor proporção, o período patrístico, como
normativos para a fé e prática cristãs.

PELAGIANISMO
Uma visão sobre como os seres humanos são capazes de merecer sua salvação, a qual é
diametralmente oposta à visão de Agostinho de Hipona,
GLOSSÁRIO DE TERMOS TEOLÓGICOS E HISTÓRICOS

colocando uma ênfase considerável sobre o papel e o valor das obras e minimizando a
importância do conceito da graça divina.

PETIT CONSEIL
O Pequeno Conselho da cidade de Genebra, freqüentemente chamado apenas de “o
conselho”, que era responsável, praticamente, por todos os aspectos da vida de Genebra.

PREDESTINAÇÃO
A doutrina de que Deus, de alguma forma, predeterminou o destino dos indivíduos. A
forma mais comum da doutrina – praedestinatio ad vitam ou “predestinação para a vida” –
tratava a predestinação como um mistério, por intermédio do qual Deus estava ativamente
envolvido na salvação dos crentes, mesmo antes deles virem a crer nele. A forma mais
radical da doutrina, associada à schola Augustiniana moderna, a Calvino e ao Calvinismo
posterior era conhecida como praedestinatio gemina, “dupla predestinação”. De acordo
com essa doutrina, Deus havia predeterminado o destino de to-dos, quer crentes ou não, em
um ato soberano de sua vontade. Era vista por muitos escritores calvinistas como uma
declaração enfática da soberania di-vina sobre a sua criação.

PRINCÍPIO ESCRITURAL
A teoria, associada especialmente a teólogos Reformados, como Calvino, de que as
práticas e crenças da Igreja deveriam se basear nas Escrituras. Tudo o que fosse incapaz de
ser demonstrado, com base nas Escrituras, não deveria ser considerado de observância
obrigatória para o fiel. A frase “sola scriptura”, “somente pela Escritura”, sintetiza esse
princípio.

PROTESTANTISMO
Um termo utilizado em conseqüência da Dieta de Speyer (1529) para designar aqueles
que “protestaram” contra as práticas e crenças da Igreja Católica Romana. Antes de 1529,
esses indivíduos e grupos chamavam a si mesmos de “evangélicos”.

PURITANISMO
Um termo um tanto vago, geralmente usado em referência à forma de Calvinismo
associada especificamente à Inglaterra e, posteriormente, à América, ao final do século 16 e
início do século 17.

REFORMA MAGISTRAL
Um termo empregado para distinguir as alas Reformada e Luterana da Reforma, da ala
radical (Anabatismo). O termo denota a atitude positiva em relação à autoridade dos
magistrados (ou conselhos municipais), características de Lutero, Zwínglio, Bucero e
Calvino.

REFORMA RADICAL
Um termo empregado com crescente intensidade para se referir ao movimento
Anabatista – em outras palavras, a ala da Reforma que adotava um enfoque geralmente
negativo com relação à autoridade secular e um enfoque radical com relação à propriedade
coletiva. Era visto, em larga escala, como uma influência subversiva, pelos conselhos
municipais, especialmente em Zurique e Estrasburgo.

SACRAMENTO
Em termos puramente históricos, uma cerimônia ou ritual da Igreja que se considerava
haver sido instituído pelo próprio Jesus Cristo. Embora a teologia e a prática da Igreja
medieval reconhecessem a existência de sete desses sacramentos, os Reformadores
alegavam que apenas dois deles (o batismo e a eucaristia) encontravam-se no Novo
Testamento em si. A doutrina dos sacramentos veio a ser bastante divisiva, com Lutero e
Zwínglio demonstran-do-se incapazes de alcançar um acordo entre si sobre o alcance dos
sacramentos. A teologia de Calvino em relação aos sacramentos é considerada
conciliatória, intermediária entre essas duas posições.

SCHOLA AUGUSTINIANA MODERNA


Uma forma do Escolasticismo medieval posterior, que colocava ênfase na doutrina da
graça de Agostinho, adotando, ao mesmo tempo, uma posição nominalista sobre a questão
dos universais.
GLOSSÁRIO DE TERMOS TEOLÓGICOS E HISTÓRICOS

SCOTISMO
A filosofia escolástica associada a Duns Scotus.

SEPTUAGINTA
A versão do Antigo Testamento para o grego, datada do terceiro século a.C.

SÍNDICOS
Os quatro membros que lideravam o Petit Conseil de Genebra.

SORBONNE
Em sentido estrito, o termo se refere ao Collège de la Sorbonne, uma das mais
importantes e antigas faculdades da Universidade de Paris. No século 16, o termo era
comumente empregado em um sentido pejorativo, significando o corpo docente da
faculdade de teologia da Universidade de Paris.

SOTEROLOGIA
A parte da teologia cristã que trata da doutrina da salvação (soteria, em grego).
TERMINISMO
Uma maneira mais precisa de se designar o “nominalismo”.

TOMISMO, VIA THOMAE


A filosofia escolástica associada a Tomás de Aquino.

TRANSUBSTANCIAÇÃO
A doutrina medieval segundo a qual o pão e o vinho se transformam no corpo e sangue
de Cristo, na eucaristia, conservando, ao mesmo tempo, sua aparência exterior.

UNIVERSAIS
Um conceito abstrato ou geral (e.g. “brancura”) que se considera possuir uma existência
real ou mental (cf. o realismo). Uma das doutrinas centrais do Terminismo ou Nominalismo
é a negação desses universais.

VIA ANTIQUA
Um termo utilizado para designar formas de filosofia escolástica, como o Tomismo e o
Scotismo, que adotavam uma posição realista na questão dos universais.

VIA MODERNA
Um termo empregado em dois sentidos amplos. Primeiro, as formas de filosofia
escolástica que adotavam uma posição nominalista na questão dos universais, em oposição
ao realismo da via antiqua. Segundo, e mais importante, a forma de Escolasticismo
(anteriormente conhecida como “nominalismo”) baseada nos escritos de William de
Ockham e seus seguidores, tais como Pierre d’Ailly e Gabriel Biel.

VOLUNTARISMO
A doutrina medieval pela qual a vontade divina tem precedência sobre o intelecto divino.
Um enfoque voluntarista ao mérito humano alega que Deus determina, por um ato de sua
vontade, qual será o valor que merece uma determinada ação humana. Alega-se que o valor
moral intrínseco dessa ação é irrelevante; aquilo que Deus deseja que a ação valha é que
tem importância central. Esse enfoque deve ser contrastado com o intelectualismo, que
dava prioridade ao intelecto divino. Calvino, de acordo com a maioria de sua geração,
inclinava-se na direção do voluntarismo.

VULGATA
A versão da Bíblia para o latim, em grande parte derivada de Jerônimo, sobre a qual a
teologia medieval se baseava de maneira predominante. Estritamente falando, a “Vulgata”
designa a tradução do Antigo Testamento feita
GLOSSÁRIO DE TERMOS TEOLÓGICOS E HISTÓRICOS

por Jerônimo (exceto os Salmos, que foram extraídos do Saltério Gaélico); os livros
apócrifos (exceto Provérbios, Eclesiastes, 1 e 2 Macabeus e Baruque, que foram extraídos
da Antiga Versão Latina), e todo o Novo Testamento. O reconhecimento de suas muitas
imprecisões foi de importância fundamental para a Reforma.

ZWINGLIANISMO
O termo é empregado geralmente com referência ao pensamento de Huldrych Zwínglio,
mas é utilizado com freqüência para se referir especificamente às suas perspectivas quanto
aos sacramentos, particularmente sobre a “presença verdadeira” (a qual, para Zwínglio, era
mais uma “ausência verdadeira”).

Apêndice II

REFERÊNCIAS A OBRAS DE CALVINO

Duas fontes primárias principais foram extensamente mencionadas ao longo da presente


obra: a edição de 1559 das Institutas e a edição do Corpus Reformatorum das obras de
Calvino. Essa última é especialmente valiosa como uma fonte para seus comentários
bíblicos, sermões e correspondência, bem como para os documentos referentes ao
relacionamento de Calvino com as autoridades de Genebra. O presente apêndice tem por
objetivo explicar as formas de referência a essas obras mais comumente encontradas.

AS INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ


As referências às Institutas da Religião Cristã, de Calvino, relacionamse, quase que
invariavelmente, à edição de 1559. Essa edição se divide em quatro livros principais, cada
um deles tratando de um amplo tema geral. Cada livro é, então, dividido em capítulos, cada
um dos quais é, posterior-mente, subdividido em seções. Uma referência à edição de 1559
dessa obra incluirá, portanto, três números, que identificam o livro, o capítulo e a seção. O
número do livro é comumente fornecido em numerais romanos maiúsculos, o do capítulo,
em numerais romanos minúsculos e o da seção. As-sim, o livro dois, capítulo doze, seção
um é geralmente referido como II.xii.1,
embora possa haver referência feita como II, 12, 1 ou 2.12.1. O primeiro sistema é o que foi
utilizado na presente obra.
Adicionalmente, pode ser fornecida referência a uma edição (por exemplo, o Corpus
Reformatorum ou Opera Selecta) ou a uma versão para o inglês. Por exemplo, a referência
Institutas III.xi.1; OS 4.193.2-5 é uma referência ao livro três, capítulo onze, seção um da
edição de 1559 das Institutas, especificamente a seção que se encontra nas linhas 2 a 5, da
página 193, do quarto volume da Opera Selecta.

A EDIÇÃO DO CORPUS REFORMATORUM DAS OBRAS DE CALVINO


As referências aos comentários e sermões de Calvino normalmente envolvem a edição
do Corpus Reformatorum, a qual recebe referência so-mente pelo volume e número da
página. Assim, OC 50.437 é uma referência à página 437 do volume 50. O número do
volume estará na escala de 1 a 59. Onde exista um volume com várias partes, estas são
designadas por letras minúsculas – assim, OC 10a.160-5 é uma referência às paginas 160 a
165, da primeira parte do volume 10.
Algumas vezes, infelizmente, pode ocorrer confusão devido a uma prática irritante,
geralmente restrita aos estudos mais antigos de Calvino. A edição do Corpus Reformatorum
é formada pelas obras de Melanchthon (vols. 128), de Calvino (vols. 29-87) e de Zwínglio
(vols. 88- ). O volume um de Calvino é, portanto, o volume vinte e nove da série – e obras
mais antigas, algumas vezes, referem-se às obras de Calvino utilizando esse número de
volume maior. Se você encontrar uma referência a essa edição de Calvino, com um número
de volume em torno de 60 a 87, você deve subtrair 28, para obter o número correto do
volume. Se você encontrar uma referência isolada a Calvino, especialmente em uma obra
mais antiga, que pareça não ter sentido, você deve subtrair 28 e tentar novamente.
Annales ESC ARG BSHPF

BHR HThR JHI NAK OC

RHR RHPhR RthAM SCJ SJTh WA Z


ABREVIATURAS

Annales économies, societés et civilisations Archiv für Reformationsgeschichte Bulletin de


la societé d’histoire du protestantisme française Bibliothéque d’histoire de la Renaissance
Harvard Theological Review Journal of the History of Ideas Nederlands Archief voor Kerk
Geschiedenis Ioannis Calvini opera quae supersunt omnia (Corpus Reformatorum) Revue
d’Humanisme et Renaissance Revue d’Histoire et Philosophie religieuse Recherches de
théologie ancienne et médiévale Sixteenth-Century Journal Scottish Journal of Theology
D. Martin Luthers Werke: Kritische GesamtausgabeHuldreich Zwinglis sämtliche Werke
(Corpus Reformatorum)
NOTAS

Prefácio
1 2
Dufour, “Le mythe de Genève au temps de Calvin”. Morgan, The Puritan Family, 16. O estereótipo
puritano convencional é “amplamente uma criação pós-Restauração”: C. Hill, The Intellectual Origins
3
of the English Revolution, 293. Rosen, A Calvins Attitude Towards Copernicus.

Capítulo 1
1
Sobre a história primitiva de Genebra, ver Martin, “Les origines de la civitas et del’évêché de Genève”; idem,
Histoire de Genève des origines à 1798; Broise, Genève et son territoire dans l’antiquité. Sobre a história da diocese de
Genebra, ver Baud, Le diocese de Genève-Annecy.
2 3
D. Hay, Europe: The Emergence of an Idea (Edinburgh, segunda edição, 1968). E.g., ver J. Toussaert, Le sentiment
4
religieux en Flandre à la fin du Moyen Age (Paris, 1963). Ver P. Saenger, “Silent Reading: Its Impact on Late
Medieval Script”, Viator 13 (1982), 367
5
414, especialmente 408-13. P. Impart de la Tour, Origines de la Réforme (4 vols: Melun, segunda edição, 1946), vol. 3,
6 7
127, 324, 335-6. A. Labarre, Le livre dans la vie amiénoise au XVIe siècle (Paris, 1971). Ver R. Stupperich, “Das
Enchiridion Militis Christiani des Erasmus von Rotterdam”, ARG
8
69 (1978), 5-23. Por exemplo, ver G. Strauss, Manifestations of Discontent in
9
Germany on the Eve of the Reformation (Bloomington, Ind., 1971). Ver B.
Moeller, “Piety in Germany around 1500”, em S. Ozment (ed.), The Reformation in
Medieval Perspective (Chicago, 1971), 50-75.
10
A esse respeito ver K. Stendhal, “The Apostle Paul and the Introspective Conscience of the
11
West”, em Paul among Jews and Gentiles (Philadelphia, 1976), 78-96. B. Collett, Italian Benedictine Scholars and the
12
Reformation (Oxford, 1985), 1-76. R. Lecotte, Recherches sur les cultes populaires dans l’actuel diocèse de Meaux
(Paris,
13
1953), 260. Sobre as práticas na França, ver S. Lebecq, “Sur la mort em France et dans les contrées
14
voisines à la fin du Moyen Age”, Information Historique 40 (1978), 21-32. A. E. McGrath, Reformation Thought
15 16
(Oxford/Nova York, 1988), 78-82. Clerval, Registre des procès-verbaux, 237. D. Hay, The Italian Renaissance
17
(Cambridge, segunda edição, 1977), 49-57. M. Venard, “Pour une sociologie du clergé du XVIe siècle: recherches
sur le recrutement
18
sacerdotal dans la province d’Avignon”, Annales Esc 23 (1968), 987-1016. H. Heller, The Conquest of Poverty: The
Calvinist Revolt in Sixteenth-Century France
19 20
(Leiden, 1986), 11-12, 53-4. E. Le Roy Ladurie, Les paysans de Languedoc (2 vols:Paris, 1966), vol. I, 320-6. T.
Boutiot, Etudes historiques: recherches sur les anciennes pestes de Troyes (Troyes,
1857), 15-23; A. Croix, Nantes et pays nantais au XVIe siècle (Paris, 1974), 109-10; H. Heller, “Famine,
21
Revolt and Heresy at Meaux, 1521-25”, ARG 68 (1977), 133-57. M. M. Edelstein, “Les origines sociales
de l’épiscopat sous Louis XII et François Ier”, Revue d’histoire moderne et contemporaine 24 (1977), 239-
22
47. E. Marcel, Le Cardinal de Givry, évêque de Langres , 1529-1561 (2 vols: Dijon, 1926), vol.
23 24 25
I, 69-109. P. Benedict, Rouen during the Wars of Religion (Cambridge, 1981), 10. Lefranc, Jeunesse de Calvin, 34.
Acredita-se que as origens da Reforma em Estrasburgo reflitam essa tensão: F. Rapp,
26
Reformes et réformation à Strasbourg (Paris, 1979). A. E. McGrath, The Intellectual Origins of the European
Reformation (Oxford/Nova York,
27 28
1987), 12-28. A. E. McGrath, Luther’s theology of the Cross (Oxford/Nova York, 1985), 8-12. E. Droz, “Fausses
29
adresses typographiques”, BHR 23 (1961), 380-6, 572-4. Desmay, “Remarques sur la vie de Jean Calvin”, 388
(1621). Outras tradições locais, todas
datadas do início do século 17, estão preservadas em Le Vasseur, Annales (1633), e Masson,
30 31
Elogia varia (1638). Walzer, Revolution of the Saints, 310, 313-14. G. Berthoud, Antoine Marcourt, réformateur et
pamphlétaire du “Livre des Marchands”
aux placards de 1534 (Genebra, 1973), 157-222. Sobre o texto dos panfletos, ver 287-9.
32
Ver Ordonnance du Roy François contre les imitateurs de la secte Luthérienne (1º de fevereiro de 1535),
Bibliothèque Nationale F. 35149, citada Recueil general des anciennes lois françaises , ed. F. Isambert, A. Jourdain e A.
Recosy (20 vols: Paris, 1827-33), vol. 12, 50-75.
33
Ver o relato de Colladon, OC 21.56. Cf. Doumergue, Jean Calvin, vol. I, 354.
34
Ibid., Vol. I, 127.
35
Ver McGrath, Luther’s Theology of the Cross, 95-181.
36
OC 5.411-13.
37
OC 31.21-4.
38
Stauffer, “Le discours à la premiére personne dans les sermons de Calvin”.
39
Como demonstrou Pfeilschifter, no caso dos escritos católicos modernos franceses relaci-
40 41
onados a Calvino: Pfeilschifter, Das Calvinbild bei Bolsec. OC 31.26. Calvino observou que um de seus principais
objetivos quando jovem havia sido viver uma
vida em isolamento, escapando da atenção pública: OC 31.19-34.
NOTAS 317

42
Ver Hall, “The Calvin Legend”; idem, “Calvin against the Calvinists”; Stauffer, L’humanité de Calvin, 9-17.

Capítulo 2
1
Wendel, Calvin, 17-18; Stauffer, “Calvino”, 16.
2
Desmay, “Remarques sur la vie de Jean Calvin”, 388.
3
Thurot, Organisation de l’enseignement dans l’université de Paris , 94; Dupon-Ferrier, “Faculte des arts dans
l’université de Paris”, 70-1. Outras fontes, contudo, sugerem que quinze anos teria sido a idade normal, para se iniciar um
curso de humanidades: Farge, Orthodoxy and Reform, 11.
4
Lefranc, Jeunesse de Calvin, 195. Relata-se que Calvino tinha, então, doze anos de idade, quando ele teria, na
verdade, onze anos. Lefranc fornece uma série útil de relevantes excertos dos registros de Noyon, relacionados a Calvino:
193-201.
6
Ménager, “Théodore de Bèze, biographe de Calvin”.
7
OC 21.54.
8
OC 21.56.
9
OC 21.121: “. . . In Gymnasio Marchiano Mathurinun Corderium”.
10
Ver C. E. Delormeau, Un maître de Calvin: Mathurin Cordier, l’un dês créateurs de l’enseignement secondaire
moderne (Neuchâtel, 1976), 24-9. Uma lista das faculdades parisienses com as quais Cordier era associado pode ser
encontrada em Colloquia, , de seis de fevereiro de 1564, reedição de Delormeau, 122-6, especialmente 122.
11
E.g., Quicherat, Histoire de Sainte-Barbe, vol. I, 206.
12
Farge, Orthodoxy and Reform, 88.
13
Bibliothèque Nationale MS Lat 5657A. Rashdall, Universities of Europe, vol. I, 528-9.
14
Arquivos de l’Université MSS Reg 89 fol.41v; Reg 90 fols 33v, 43r. Também há algum material relevante na
Bibliothèque Nationale MS Lat 12846 (e.g., fol. 161r-v) comprovando que uma série de indivíduos, cujos nomes foram
citados, lecionavam teologia em várias faculdades, além de Sorbonne e Navarre, nos anos de 1520. Este documento data
do século 17, reconstituindo os originais do século 16, hoje perdidos. É evidente que a informação fornecida é puramente
uma ilustração do material do arquivo original,sugerindo que a teologia era mais amplamente ensinada nas universidades
do que até mesmo esta importante fonte indica.
15
Para dados sobre o currículo teológico em Paris, ver Farge, Orthodoxy and Reform, 16-28.
16
Uma terceira razão, a qual deu origem à sugestão de que Calvino possa ter sido vinculado a mais de uma faculdade,
em Paris, pode ser registrada, mas não é de qualquer relevância para Calvino. Não era incomum, para os professores das
universidades, tais como os regentes, possuirem vínculos múltiplos com as faculdades, retratando seu envolvimento no
ensino em uma série de faculdades.
17
Godet, Congrégation de Montaigu; Féret, Faculté de théologie, vol. I, 3-5.
18
Ver A. Renaudet, “Jean Standonck un réformateur catholique avant la Réforme”,Humanisme et Renaissance,
Travaux 30 (1958),114-61 para maiores detalhes. Os estatutos introduzidos são registrados por Godet, Congrégation de
Montaigu, 143-70.
19
E.g., A. Renaudet , Préréforme et l’humanisme à Paris pendant les premières guerres de l’Italie (1436-1517),
(Paris, edição rev., 1953) 26; Wendel, Calvin et l’humanisme, 13.
20
Ver R. R. Post, The Modern Devotion (Leiden, 1968), 13-15.
21
Renaudet, “L’humanisme et l’enseignement de l’université”, 153; Garcia Villoslada, Universidad de París durante
los estudios de Francisco de Vitorio, 87, 106-26.
22
OC 21.54.
23
Baseado em Thurot, Organisation de l’enseignement dans l’université de Paris , apêndices 3-5. Para uma seleção
sobre as estimativas do número de estudantes no período d 1500-50, ver Matos, Les Portugais à l’université de Paris, III
n. I.
24
Nota de referência de Goulet ao “cingulum super vestem”: Quicherat, Histoire de Sainte-Barbe, 331. Sugestões para
reforma são registradas em 1539: Du Boulay, Historia Universitatis Parisiensis , vol. 6, 334-5.
25
Berty, Topographie historique du vieux Paris: région centrale de l’université, passim,
26
complementado pelas coleções dos Archives Nationales S 6211, S 6482-3. Ver Godet, Congrégation de Montaigu, 34.
27
Godet, Congrégation de Montaigu, 33 n. 5. Detalhes completos a respeito da fundação e
dos títulos que a faculdade possuía encontram-se nos manuscritos dos Archives Nationales S
28 29
6211 e S 6482-3. J. Verger, “Le rôle social de l’université d’Avignon au XVe siècle”, BHR 33 (1971), 489-504. Le
30
Goff, “La conception française de l’université à l’époque de la Renaissance”, 94-100. Observe as memórias
posteriores de Calvino: OC 31.22. Cf. o comentário de de Bèze, “son
31 32
coeur tendit entièrement à la Théologie” (OC 21.29). Ganoczy, The Young Calvin, 174. Thurot, Organisation de
l’enseignement dans l’université de Paris; Cobban, Medieval
33
Universities. Uma lista comentada pode ser encontrada em J. M. Prat, Maldonet et l’université de Paris
34 35 36
(Paris, 1856), 527-537. OC 21.121. Sobre as mesmas, ver Kibre, Nations in the Medieval Universities. Farge,
Orthodoxy and Reform, 60, 72-5, 81. Esses números referem-se a estudantes que
estavam se formando em artes e que, posteriormente, estudariam teologia, cujas filiações institucionais são conhecidas. As
filiações de em torno da metade desses estudantes eram desconhecidas.
37
Goulet, Compendium. Nós usamos um segmento encontrado em Quicherat, Histoire de
38 39
Sainte-Barbe, vol. I, 325-31. Thurot, Organisation de l’enseignement dans l’université de Paris, 101. Quicherat,
40
Histoire de Sainte-Barbe, vol. I, 330. Com respeito ao apreço dedicado a Aristóteles, ver o comentário de Goulet,
“in lógica summe
colatur Aristóteles”: Quicherat, Histoire de Sainte-Barbe, vol. I, 330. Para os detalhes completos das obras especificadas
para estudo, pelo estatuto, ver Garcia Villoslada, Universidad de París, 74-5.
41
Garcia Villoslada, Universidad de París,133. Isso não deve, contudo, ser tomado como prova de que Mair era
totalmente aristoteliano em seu posicionamento: por exemplo, ele era um expoente líder, em Paris, de idéias anti-
aristotélicas, tais como a existência de um vazio extra-cósmico e de uma infinidade de planetas: Kaiser, “A Visão de
Calvino sobre a Filosofia Natural Aristoteliana”, 87.
42
E.g., ver C. B. Schmidt, Aristotle and theRenaissance (Cambridge, Mass., 1983); E. F. Rice, “Humanist
Aristotelianism in France: Jacques Lefrève d’Etaples and His Circle”, em A. H. T. Levi (ed), Humanism in France at the
End of the Middle Ages and in the Early Renaissance (Manchester 1970), 132-49.
43
Paris, Bibliothèque Nationale MS Lat 6535 fol. 228v.
44
Kaiser, “Calvin’s Understanding of Aristotelian Natural Philosophy”.
45
Quicherat, Histoire de Sainte-Barbe, Vol. I, 330.
46
Colladon menciona dois espanhóis (OC 21.54) e de Bèze, um, que lhe ensinou dialética

(OC 21.121): “translatus deinde in Gymnasium ab Acuto Monte cognominatum Hispanum habuit doctorem non
indoctum: a quo exculto ipsius ingenio, quod ei iam tum erat acerrimum, ita profecit ut... ad dialectices et aliarum quas
vocant artium studium , promoveretur.”
47
Reuter, Grundverständnis der Theologie Calvins, 20-1, 28. Para um resumo, ver A. E. McGrath, Reformation
Thought, (Oxford/New York, 1988) 63-4. Esta tese é ligeiramente modificada em um estudo mais recente de Reuter, Vom
Scholaren bis zum jungen Reformator. Sua posição anterior é aceita, de forma indiscriminada, por McDonnell, John
Calvin, 7-13.
NOTAS 319

48
Torrance, “Intuitive and Abstractive Knowledge”. Cf. seu estudo anterior, “La philosophie et la théologie de Jean
Mair ou Major”. Semelhanças epistemológicas também foram detectadas por Richard, Spirituality of John Calvin, 181.
49
Wendel, Calvin, 19.
50
Dankbaar, Calvin, 5.
51
Ganoczy, Young Calvin, 168-78. Para uma análise detalhada, a respeito do uso de Pedro

Lombardo e Gratian, por Calvino, nas edições das Institutas de 1536, 1539,1543 e 1559, ver
52 53
Smits, Saint Augustin dans l’oeuvre de Jean Calvin, 210. Reuter, Vom Scholaren bis zum jungen Reformator, 6-12.
54
Goumaz, Doctrine du salut, 92. C. G. Nauert, “The Clash of Humanists ans Scholastics: An Approach to Pré-
Reformation
Controversies”, SCJ 4 (1973), 1-18; J. Overfield, “Scholastic Opposition to Humanism in Pre-Reformation Germany” ,
Viator 7 (1976), 391-420; A. H. T. Levi, “The Breakdown of Scholasticism and the Significance of Evangelical
Humanism”, in G. R. Hughes (ed.), The Philosophical Assessment of Theology (Georgetown, 1987), 101-28.
55
Erasmus, Opera Omnia, Vol. 6, 962D-967C.
56
Havia! Se Deus poderia tornar-se um pepino (ou um asno, ou uma pedra, neste ponto) era uma questão concernente
à personificação na encarnação: A. E. McGrath, “Homo Assumptus?A Study in the Christology of the Via Moderna, with
Special Reference to William of Ockham”, Ephemerides Theologicae Lovanienses 60 (1985), 283-97. Se Ele poderia
desfazer o passado era uma questão concernente ao problema das contigências futuras: W. J. Courtenay, “John of
Mirecourt and Gregory of Rimini on whether God can undo the past”, Recherches de Théologie ancienne et médiévale 39
(1972), 244-56; 40 (1973), 147-74.
57
Para um introdução básica, ver McGrath, Reformation Thoght, 50-66, especialmente 53
61. Para uma análise mais detalhada, ver A. E. McGrath, Intellectual Origins of the European
58
Reformation (Oxford/Nova York, 1987), 69-121, especialmente 70-93. Ver E. Gilson, History of the Christian
59
Philosophy in the Middle Ages (Londres, 1978), 489-98. A. L. Gabriel, “Via Moderna” and “Via Antiqua” and the
Migration of Paris Students and
Masters to the German Universities in the fifteenth Century”, in A. Zimmermann, (ed.), Antiqui und Moderni:
Traditionsbewusstsein und Fortchrittsbewusstsein im späten Mittelalter (Berlim/ Nova York, 1974), 439-83.
60
Reuter identifica seis pontos principais de contato entre Calvino e o terminismo de John
61
Mair: Reuter, Vom Scholarem bis zum jungen Reformator, 6-12. Essa possibilidade foi pela
62
primeira vez delineada em McGrath, “John Calvin and Late Medieval Thought”. Para a
evolução histórica da controvérsia de Pelágio e as questões envolvidas, ver P. Brown, Augustine of
63
Hippo (Londres, 1975), 340-407. A. E. McGrath, Iustitia Dei: A History of the Christian
Doctrine of Justification (2 vols: Cambridge, 1986), vl. 1, 163-79.
64
Scotus, Opus Oxoniense III dist. xix q.I n.7: “dico, quod omne aliud a Deo, ideo est bonum, quia a Deo volitum, et
non est converso: sic meritum illud tantum bonum erat, pro quanto acceptabatur”.
65
Responsio ad aliquot Laelii Socini Senensis quaestiones: OC 10a.160-5. A edição das Institutas,
66 67
de 1554, traz apenas uma análise puramente superficial da questão (vii, 18: OC 1523-4). Institutas, II.xvii.1. Ver, e.g.,
68
A. Gordon, “The Sozzini and their School”, Theological Review 16 (1879), 293-322. Reuter, Grundverständnis der
69
Theologie Calvins, 21. Mair, In I Sent., prefácio (Paris, 1530).
70
Uma cópia dessa obra (embora não necessariamente uma cópia pessoal de Calvino) foi incluída na biblioteca da
Academia de Genebra, em 1572: ver Ganoczy, La bibliothèque de l’Académie de Calvin, 102-5.
71
Sobre o estatuto da universidade, que identifica William de Ockham e Gregório de Rimini
72 73
como os doutores da via nominalium, ver Garcia Villoslada, Universidad de París, 118. Dankbaar, Calvin, 26.
74
Clerval, Registre dês procès-verbaux, 370. Paris, Archives Nationales X 1530, fols 33v-34r; carta do rei ao
75 76
Parlement de Paris. Ver Cristiani, “Luther et la faculté de théologie de Paris”, para maiores detalhes. E.g., aquela
de 14 de agosto: os registros mostram que “in materia de Leuter [sic] de qua
fuerat articulus, non fuit conclusio pacifica.” Clerval, Registre des procès-verbaux, 273.
77
Texto encontrado em Du Boulay, Historia Universitatis Parisiensis, vol. 6, 116-27. Este documento não representa,
realmente, uma resposta às teses de Leipzig, como observado por Hempsall, “Luther and the Sorbonne”.
78
Cf. A. E. McGrath, “Forerunners of the Reformation? A Critical Examination of the Evidence for Precursors of the
Reformation Doctrines of Justification”, HThR 75 (1982), 221.
79
Para a completa documentação, ver F. M. Higman, Censorship and the Sorbonne: A Bibliographical Study of Books
in French Censured by the Faculty of Theology of the University of Paris, 1520-1551 (Genebra, 1979); Farge, Orthodoxy
and Reform, 169-208.

Capítulo 3
1
A frase é de de Bèze: OC 21.121-2. Sobre a discussão da controvertida data da mudança para
2 3
Orleans, ver Parker, John Calvin, 189-91. OC 21.29, 54, 121. A. E. McGrath, Intellectual Origins of the European
Reformation (Oxford/Nova York,
4
1987), 125-7. Para um sumário de estudos recentes sobre a natureza do Humanismo renascentista, ver
5
McGrath, Intellectual Origins of the European Reformation, 32-68. P. O. Kristeller, La tradizione aristotelica nel
6
Rinascimento (Pádua, 1972). Idem, “The European Diffusion of Italian Humanism”, em Renaissance Thought II:
7
Humanism and the Arts (Nova York, 1965), 69-88. P. Bietenholz, Der
italienische Humanismus und die Blütezeit dês Buchdrucks in Basel
8
(Basiléia, 1959). R. Stupperich, “Das Enchiridion Militis Christiani des
Erasmus von Rotterdam”, ARG 69
9 10
(1978), 5-23. Para o que se segue, ver McGrath, Intellectual Origins of the European Reformation, 122-39. Hall,
11
“Calvin, the Jurisconsults and the Ius Civile”. G. Kisch, Humanismus und Jurisprudenz: Der Kampf zwischen mos
italicus und mos
12
gallicus na der Universität Basel (Basiléia, 1955), 9-76. Para possíveis linhas de influência, ver R. Abbondanza,
“Premières considérations sur la
13 14
methodologie d’Alciat”, em Pédagogues et Juristes (Paris, 1963), 107-18. Para os esboços, ver OC 10a.125-46.
15 16
Grilis, “Calvin’s Use of Cicero in the Institutes I:1-5”. Cf. OC Iob.16-17, 19-20. OC Iob.19-20, 20-1. Cf. Battles e
17 18
Hugo, Commentary on Seneca, 387-91. Observe a presunçosa sugestão (OC 5.32): “errat tamen Erasmus”. J.
Boisset, Sagesse et sainteté das la pensée de Calvin (Paris, 1959), 248.
NOTAS 321

19
É possível que Calvino tenha usado coleções de citações patrísticas, basicamente dessa mesma maneira,
posteriormente, em sua carreira. Por exemplo, a obra de Hermann Bodius, Unio Dissidentium, foi impressa várias vezes,
entre 1527 e 1602, e é possível que Calvino tenha retirado dela, ou de alguma obra semelhante, algumas de suas
referências patrísticas,
20
Doinel, “Jean Calvin à Orléans”.
21
Lefranc, La jeunesse de Calvin, 200.
22
Para o que se segue, ver Bourrilly e Weiss, “Jean du Bellay, les protestants et la Sorbonne,
23 24
1529-1535”. Duplessis d’Argentré, Collectio judiciorum 2/1, 78. Duplessis d’Argentré, Collectio judiciorum 2/1, 96-
7. “Fofocar” (broder) também pode
25
levar o significado igualmente pertinente de “exagerar/aumentar” (embroider). Paris, BN MS N Acq Lat 1782 fols
26
259v-260r. Paris, BN MS N Acq Lat 1782 fols 265v-269r, que indica a insistência da faculdade de que
esta não teria, ativamente, condenado o poema; a censura aconteceu ipso facto, eles argumentavam, pela falha do editor
dela em seguir as regras vigentes. Para uma interpretação diversa desses eventos, ver F. M. Higman, Censorship and the
Sorbonne: A Bibliographical Study of Books in French Censured by the Faculty of Theology of the University of Paris,
1520-1551 (Genebra, 1979).
27
OC 10b.25-6. A referência a “pridie Simonis” deve ser interpretada como “a noite da festa de São Simão” – i.e, 27
de outubro. Uma referência posterior, na bibliografia de Colladon (OC 21.123), sugere que Calvino morou no Collège de
Fortet (Gymnasium quod Fortretum vocant) durante esse período.
28 29
Ganoczy, The Young Calvin, 77-8. A. Renaudet, Préréforme et l’humanisme à
Paris pendant lês premières guerres de l’Italie 1496-1517 (Paris, ed. rev.,1953),
30
210. De acordo com Du Boulay, Historia Universitatis Parisienses vol. 6, 238,
ele assumiu seu
31 32
cargo em 10 de outubro. E.g., Wendel, Calvin, 40. H. de Vocht, Monumenta humanística Lovaniensia (Louvain,
33 34
1934), 434-41, esp. 438. Sobre o texto, ver Rott, “Documents strasbourgeois”, 43-9. De Vocht, Monumenta, 430-
35
58, sobre o texto completo da carta e abundantes notas. Isso é extraído de uma carta datada de 11 de dezembro, de
Jacques Colin para Jean du
36
Bellay; cf. Bourrilly e Weiss, “Jean du Bellay, les protestants et la Sorbonne”, 218-19 n.º 3. Nossa fonte aqui é
37
Manrique: De Vocht, Monumenta, 440. Paris, Archives Nationales MS X 1537 fol. 29r (é possível que o rei possa
ter confundido
Cop com Pierre Cornu e que “Recteur” deva ser lido como “docteur”: cf. Rott, “Documents strasbourgeois”, 35 n. 39).
Observe também as instruções anteriores ao parlement para processar, com vigor, a “condenável seita luterana” (fols 28v-
29r); Cop é claramente associado a esse grupo, na visão do rei.
38 39
Para os detalhes, ver Rott, “Documents strasbourgeois”. Isso parece estar implícito em sua carta
a François Daniel, a ser datada de 18 de janeiro de 1534:OC Iob.15-16 (a data publicada, 1532, é
40
claramente incorreta). Comprove na carta para Daniel, datada de 27 de dezembro de 1533: OC
Iob.11-12.

Capítulo 4
1
Ver Fredriksen, “Paul na Augustine: Conversion Narratives, Orthodox Traditions and the Retrospective
2
Self”, Journal of Theological Studies 37 (1986), 3-34. Essa atitude difundida, deve-se enfatizar, baseia-se em
interpretações incorretas das visões, tanto do período final do Judaísmo quanto do Catolicismo, ao final da Idade
Média, a respeito da
justificação: cf. A. E. McGrath, Iustitia Dei: A History of the Christian Doctrine of Justification (2 vols., Cambridge,
1986), vol. I, 70-91; E. P. Sanders, Paul, the Law and the Jewish People (Philadelphia, 1983).
3
Ocasionalmente, sugere-se que Reply to Sadoleto possa incluir pistas referentes à conversão de Calvino. Nessa obra,
dois evangélicos – um pastor e um homem leigo – descrevem suas “conversões”. Para alguns escritores, essas descrições
não são esteriótipos ou modelos, mas refletem a experiência pessoal de Calvino: Doumergue, Jean Calvin, vol. I, 347;
Wendel, Calvin,38-
9. Em resposta, deve-se ressaltar que o gênero literário dessa obra é o da ficção dramática. Omodelo literário de Calvino
lhe é imposto pelo original de Sadoleto, no qual um sacerdote e um “homem comum” queixam-se das excentricidades e
das contradições do evangelicalismo. Nenhuma referência autobiográfica é insinuada e nenhuma é imediatamente
evidente com base no que sabemos da carreira de Calvino: Ganoczy, Young Calvin, 254-9.
4
Aqui, fazemos um sumário de OC 31.21-4.
5
Parker, John Calvin, sugere que subita deveria ser traduzido como “inesperada”, com base no comentário de Calvino
sobre Sêneca. Nesse comentário, Calvino faz o seguinte comentário: “subita – não apenas repentina (repentina) mas
também inesperada (inconsiderata)”. Cf. Battles e Hugo, Commentary on Seneca, 55-6; Parker, John Calvin, 193-4.
Porém, nesse ponto Calvino parece estar meramente esclarecendo um significado pouco comum do termo subita, em
relação ao qual Sêneca permite que o sentido de “não premeditada” assuma prioridade sobre o sentido normal de “súbita”.
Alguém pode razoavelmente assumir que muitas das conversões são inesperadas e não premeditadas, o que parece render
à subita conversio de Calvino a uma redundância; no entanto, conversões não são necessariamente súbitas,pelo fato de
que elas podem se dar em um período prolongado de tempo.
6 7
A. Rich, Die Anfänge der Theologie Huldrych Zwinglis (Zurich, 1949), 104-19. Ver a excelente
análise de Ganoczy a respeito da consciência de Calvino sobre um chamado divino: Young Calvin,
8
287-307. Identificado e analisado por Sprenger, Das Rätsel um die Bekehrung Calvins, 36-41. Para
os textos, ver OC 31.21 e 48.199-202.
9
McGrath, Luther’s Theology of the Cross (Oxford/Nova York, 1985). As memórias de Lutero datam de 1545, o ano
anterior a sua morte; os eventos descritos datam de 1513 a 1519, provavelmente concentrando-se em 1515.
10
Ganoczy, Young Calvin, 252-66.
11
De Raemond, Histoire, 883-5.
12
OC 13.681. De Raemond cita vários indivíduos com os quais Calvino fez amizade durante

esse período (embora ele, erroneamente, declare que Calvino residiu em Angoulême por um
13 14
período de vários anos): Histoire, 883-5. De Raemond, Histoire, 889. O documento é citado em Lefranc, Jeunesse de
15 16 17
Calvin, 201. Ibid., 201. Cf. Doumergue, Jean Calvin, vol. 7, 575. OC 12.68. A sugestão de que Calvino foi
preso pela Inquisição, em abril de 1536, quando
ele cruzava o Val d’Aoste, em seu regresso à Itália (e.g., Dankbaar, Calvin, 42-3), não é confirma
18 19
da por qualquer fonte contemporânea. OC 21.57. Calvino faz referência a esse encontro frustrado, em 1554: OC
20
8.481. G. Berthoud, Antoine Marcourt, réformateur et pamphlétaire du “Lire des Marchands”
21
aux placards de 1534 (Genebra, 1973), 157-222. Para réplicas dos panfletos, ver 287-9. D. R. Kelley, The
Beginning of Ideology: Consciousness and Formation in the French Reformation (Cambridge, 1981), 13-19.
NOTAS 323

22
Para a diferença, ver R. O. Allen e B. Spilka, “Committed and Consensual Religion”, Jounal
23
for the Scientific Study of Religion 6 (1967), 191-206. Cf. H.R. Guggisberg, Basel in the Sixteenth Century (St Louis,
24
1982), para os detalhes. P. Wernle, Calvin und Basel bis zum Tode des Myconius (Tübingen, 1909), 4; algum
25
material adicional em Plath, Calvin und Basel in den Jahren 1552-1556. A lembrança desse acontecimento ainda estava
26
viva em sua memória, em 1557: OC 31.24. Ver, especificamente, a carta de Francisco I aos príncipes protestantes
alemães, datada de
27
1º de fevereiro de 1535: Herminjard, Correspondance des réformateurs, Vol. 3, 250-4. OC 31.24 (o texto em francês é
28
mais expressivo do que o seu correspondente em latim). A “prefatory letter” é datada de “10 Cal. Septembris”. Os
responsáveis pela impressão,
Thomas Platter e Balthasar Lasius, de Basiléia, trabalhando com a assistência editorial de Jean
29 30
Oporin, demoraram para produzir a obra: ela não seria publicada até março do ano seguinte. OC 21.58. N. M.
31
Sutherland, Huguenot Struggle for Recognition (New Haven/Londres, 1980), 30-1, 336. Lefranc, La jeunesse de
Calvin, 205.

Capítulo 5
1
OC 8.416.
2
OC 48.117-18.
3
Kingdon, “Deacons of the Reformed Church”.
4
Ver Kingdon, “Social Welfare in Calvin’s Geneva”.
5
B. Moeller, Imperial Cities and the Reformation (Filadelfia, 1972).
6
T. A Brady, Ruling Class, Regime and Reformation at Strasbourg, 1520-1555 (Leiden,
7
1977). S. E. Ozment, The Reformation in the Cities: The Appeal of
Protestantism to Sixteenth-Century Germany and Switzerland (New
Haven, 1975).
8
P. Broadhead, “Popular Pressure for Reform in Augsburg, 1524-1534”, em W. J. Mommsen (ed.), Stadtbürgertum
und Adel in der Reformation (Stuttgard, 1979), 80-7; H. Von Greyerz, The Late City Reformation in Germany: The Case
of Colmar (Wiesbaden, 1980); W. Ehbrecht, “Verlaufsformen innerstädtischer Konflicte in nord- und Westdeutschen
Städten im Reformationszeitalter”, em B. Moeller (ed.), Stadt und Kirche im 16. Jahrhundert (Gütersloh, 1978), 27-47;
idem, “Köln, Osnabrück, Stralsund: Rat und Bürgerschaft hansischer Städte zwischen religiöser Erneuerung und
Bauernkrieg”, em F. Petri (ed.), Kirche und gesellschaftlicher Wandel (Cologne, 1980), 23-64; Guggisberg, Basel in the
Sixteenth Century; S. Jahns, Frankfurt, Reformation und schmalkaldischer Bund (Frankfurt, 1976); E. Naujoks,
Obrigkeitsgedanke, Zunftverfassung und Reformation: Studien zur Verfassungsgeschichte von Ulm, Esslingen und
schwäbische Gmünd (Stuttgart, 1958); H. –C. Rublack, Die Einführung der Reformation in Konstanz (Güterslosh, 1971);
idem, “Forschungsbericht Stadt und Reformation”, em B. Moeller (ed.), Stadt und Kirche im 16. Jahrhundert (Gütersloh,
1978), 9-26; R. W. Scribner, “Civic Unity and the Reformation in Erfurt”, Past and Present 66 (1975), 29-60; idem,
“Why was there no Reformation at Cologne?”, Bulletin of the Institute of Historical Research 49 (1976), 217-41; H.
Stratenwerth, Die Reformation in der Stadt Osnabrück(Wiesbaden, 1971); G. Strauss, Nuremberg in the Sixteenth Century
(Nova York, 1966); W. Wettges, Reformation und Propaganda: Studien zur Kommunikation des Aufruhrs in
süddeutschen Reichstädten (Stuttgart, 1978).
9
A. E. McGrath, “Justification and the Reformation: The Significance of the Doctrine of Justification by Faith to
Sixteenth-Century Urban Communities”, ARG 81 (1990), disponível em breve.
10
Um ponto enfatizado por W. Becker, Reformation and Revolution (Münster, 1974).
11
Ainda que de forma irrealista, as cidades suíças eram freqüentemente vistas como modelos de liberdade civil, pelas
oprimidas cidades alemãs: T. A. Brady, Turning Swiss: Cities and Empire, 1450-1550 (Cambridge, 1985).
12
H. C. Peyer, Leinwandgewerbe und Fernhandel der Stadt St Gallen von den Anfängen bis
13 14
1520 (2 vols:St Gallen, 1959-60). Scribner, “Civic Unity and the Reformation in Erfurt”. N. Birnbaum, “The
15
Zwinglian Reformation in Zurique”, Past and Presents 15 (1959), 27-47. Borel, Les foires de Gèneve au XVe siècle.
16 17
Bergier, Die Wirtschaftgeschichte der Schweiz, 293-9. Muitas informações úteis podem ser encontradas em
Monter, Calvin’s Geneva, 29-63, e
18
nas referências a esse respeito. Cf. W. Richard, Untersuchungen zur Genesis der
reformierten Kirchenterminologie des Westschweiz und Frankreichs (Berna, 1959),
41-53.
19
Azevinho (ou azevim) aquela plantinha de Natal com folhas verdes de arestas pontudas. É popular em Portugal e, de
tanto ser utilizada e colhida em sua versão silvestre, está quase extinta (nos EUA usa-se muito, no Natal). Então, os
mamelucos o usavam (literalmente seria “vestiam-se” ou “se enfeitavam de”) como os galeses usam o alho-poró! O alho-
poró é o símbolo do País de Gales desde o sexto século d.C. Um equivalente seria “os mamelucos usavam azevinho como
os baianos usam galhos de arruda”. A arruda é utilizada no Ceará para fazer chá e, na Bahia, é colocado um galhinho
detrás da orelha para espantar os mau-olhados (N. do E., com a colaboração erudita de Solano Portela).
20
Ammann, “Oberdeutsche Kaufleute und die Anfänge der Reformation in Genf”.
21
van Berchem, “Une prédication dans um jardin”.
22
Herminjard, Correspondance des réformateurs, vol. 3, 125-6.
23
Para detalhes sobre as campanhas militares, ver Histoire militaire de la Suisse (4 vols:
24 25
Berna, 1913-17), passim. F.J.C. Gingins la Sarra, Histoire de la ville d’Orbe et son château (Lausanne, 1855). M. H.
26 27
Körner, Solidarités financières suisses au XVIe siécle (Lucerne, 1980). Monter, Genevan Government, 11-14. OC
28
21.200-2 para os detalhes. OC 31.24 (seguindo a versão francesa mais extensa do texto). O texto em latim, mais
breve,
29
sugere que os “estudos” em questão eram um tanto quanto incomuns. OC 21.30.
30
La Dispute de Lausanne 1536: La théologie rpeformée après Zwingli et avant Calvin
31 32 33
(Lausanne, 1988). OC 9.701-2. OC 9.877-84. Ele também interveio, brevemente, em 7 de outubro: OC 9.884-6.
34
OC 9.879, 890. Ver a carta de Calvino para François Daniel, escrita em Lausanne e datada de 13 de outubro
35 36
de 1536: OC 10b.64. Dankbaar, Calvin, 49. Um aspecto enfatizado por Kingdon, “Calvin and the Government of
37 38 39 40
Geneva”, 58. OC 1.369-70. OC 1.372-3. OC 21.222. Os ritos de Berna envolviam a manutenção das pias
batismais, das cerimônias de casamento
e do pão asmo, assim como de várias festas religiosas (Natal, Páscoa e Pentecostes)
41
que haviam sido abolidas por Farel. OC Iob.185-6.
NOTAS 325

42
As cartas dirigidas a du Tillet, datadas de 10 de julho e de 20 de outubro de 1538, são
43 44
bastante reveladoras nesse aspecto: OC Iob.201, 221. Carta datada de 7 de setembro de 1538: OC Iob.242-4. Observe
a carta dirigida a Farel, de setembro de 1538, que se refere à sua própria
“inexperiência, falta de cuidado, negligência e erros”: OC Iob.246. Ele chega a muitas dessas mesmas conclusões em uma
carta enviada às “pessoas leais de Genebra”, datada de 1º de outubro: OC Iob.253.
45
OC Iob.270-2.
46
Para detalhes, ver Brady, Ruling Class, Regime abd Reformation at Strasbourg; M. U. Chrisman, Strasbourg and
the Reform: A Study in the Process of Change (New Haven/Londres, 1967); idem, Lay Culture, Learned Culture: Books
and Social Change in Strasbourg, 1480-1599 (New Haven/Londres, 1982).
47
Observe a carta enviada a Farel, que data da primeira fase de seu novo ministério: OC
48 49 50
Iob.247. Pannier, Calvin à Strasbourg, 39-40. OC 6.336. Höpfl, Christian
Polity of John Calvin, 129-31.

Capítulo 6
1
Hall, “The Calvin Legend”, identifica e invalida os mais influentes desses mitos. Contudo, a pesquisa acadêmica
ainda tem um longo caminho pela frente, antes que a influência dessas invenções possa ser exorcizada do conceito popular
a respeito do Reformador.
2
A. Huxley, Proper Studies (Londres, 1949), 287.
3
Chenevière, La pensée politique de Calvin, 178. Cf. Mercier, “L’esprit de Calvin”, 32-7;
4 5
Choisy, La théocratie à Genéve. Um aspecto enfatizado por Chenevière, La pensée politique de Calvin, 244.
Posteriormente, Calvino foi ocasionalmente ridicularizado por seus adversários pelo fato de
não ter filhos. Ao que ele respondia que, conquanto isso fosse verdade, ele tinha, no entanto, inúmeros filhos por todo o
mundo cristão: OC 9.576.
6
As reflexões de Calvino sobre a morte de sua esposa, que figuram em um sermão sobre uma passagem em 1
Timóteo, representam uma das raras ocasiões em que o reformador revela detalhes de seus sentimentos pessoais em
público: OC 53.254.
7
R. Doucet, Les institutions de la France au XVIe siècle (Paris, 1948), 37-56.
8
Monter, Studies in Genevan Government, 85-9.
9
Le livre dês bourgeois, 266.
10
N. Z. Davis, “The Sacred and the Body Social in the Sixteenth-Century Lyon”, Past and
11 12 13
Present 90 (1981), 40-70, esp. 62. OC 21.547. Höpfl, Christian Polity of John Calvin, 90-102. A respeito da
sugestão de que a Reforma de Genebra pode ser considerada como uma
14
revolução, veja Kingdon, “Was the Protestant Reformation a Revolution?” W. Köhler, Zürcher Ehegericht und Genfer
15 16
Konsistorium (2 Vols: Leipzig, 1932-42). Höpfl, Christian Polity of John Calvin, 94-5. H. Morf, “Obrigkeit und
Kirche in Zürich bis zu Beginn der Reformation”, Zwingliana 13
(1970), 164-71; R. C. Walton, “The Institutionalization of the Reformation at Zurich”,
17
Zwingliana 13 (1972), 497-515. Para uma discussão abrangente, ver J. W. Baker, Heinrich
Bullinger and the Covenant: The Other Reformed Tradition (Atenas, Ohio, 1980), 55-140.
Contudo, em 1553, as autoridades de
Zurique sugeriram que a forma de disciplina eclesiástica adotada por Genebra não era, talvez, totalmente inadequada,
dada a situação que havia naquela cidade: OC 14.699-700. Uma carta anterior, enviada por Bullinger a Calvino, sugere,
porém, que o primeiro pressionou o Conselho municipal a adotar um enfoque acrítico ao sistema de Genebra: OC 14.697-
8.
18
Ver a carta de Sulzer para o clero em Genebra: OC 14.711-13.
19
Ver a carta de 1553, dos Messieurs de Berna: OC 14.691.
20
Para maiores detalhes, ver J. W. Baker, “Church Discipline or Civil Punishment: On the

Origins of the Reformed Schism, 1528-1531”, Andrews University Seminary Bulletin 23 (1985),
21 22 23
3-18. Z II.199. Ver K. Deppermann, Melchior Hoffmann (Edinburgh, 1987), 279-81. Chrisman, Strasbourg and the
Reform, 220-6, 229-32; Deppermann, Melchior Hoffmann,
24 25
296-311. Courvoisier, La notion d’église chez Bucer , 137-9. A idéia dos “anciãos” também está ausente: para essa
idéia, em relação a Bucero, ver H.
Strohl, “La théorie et la pratique des quatre ministères à Strasbourg avant l’arrivée de Calvin”,
26 27
BSHPF 84 (1935), 123-40. Monter, “Consistório de Genebra”, 479. Um importante testemunho contemporâneo em
relação a essa controvérsia é a carta de
Johann Haller para Bullinger (de setembro de 1553), que registra a hostilidade em relação à disciplina eclesiástica, que
28
havia entre proeminentes cidadãos de Genebra: OC 14.625. O século 16 assistiu à destruição de tal autoridade
judicial entre as cidades francesas, à medida que o absolutismo ganhava força. Ver Doucet, Institutions de la France,
45-55.
29
É dessa época o cargo de Procureur-Général, cujas responsabilidades eram, a grosso modo, equivalentes às de um
promotor americano. Pode-se alegar que a estrutura geral da justiça de Genebra foi estabelecida em 28 de novembro de
1529, a qual – apesar de modificações mínimas, em 1563 – permaneceu como a base do sistema judicial da cidade até o
final do século 18. Ver Monter, Studies in Genevan Government, 61-7.
30
Isso é melhor analisado no maravilhoso estudo, feito por Giggisberg, sobre o modo como Sebastião Castellón – que
criticou a atuação de Calvino no episódio de Serveto – era visto, especialmente durante o Iluminismo: H. Guggisberg,
Sebastian Castellio im Urteil seiner Nachwelt vom Späthumanismus bis zur Aufklärung (Basiléia, 1956).
31
R. Mentzer, Heresy Proceedings in Languedoc, 1500-1560 (Nova Yorque, 1984), 100-1.
32
Summa Theologiae IIaIIae q. II a.3.
33
Ver P.E. Sigmund, St Thomas Aquinas on Politics and Ethics (Nova York, 1988), xxvi.
34
Ver W. H. F. Frend, “Heresy and Schism as Social and National Movements”, Studies in
35
Church History 9 (1972), 37-56. J. M. Stayer, “Christianity in One City: Anabaptist Münster, 1534-35”, em H. J.
Hillerbrand
36
(ed.), Radical Tendencies in the Reformation (Kirksville, Mo., 1988), 117-34. Deppermann, Melchior Hoffmann, 296-
37
311. Bullinger sugeriu que foi devido à providência divina ou que Genebra reconquistou sua
38 39
reputação pela ortodoxia: OC 14.624. Ver Stayer, “Anabaptist Münster”, 130-1. O modo pelo qual o Conselho
municipal processava os indivíduos que eles consideravam
nocivos pode ser ilustrado pelo julgamento fraudulento de George Battonat (1552). Isto foi
40 41
amplamente documentado, a partir de arquivos, por Naef, “Un alchimiste au XVIe siècle”. OC 14.628. OC 8.761,
783, 789-90.
NOTAS 327

42
OC 8.789.
43
OC 8.808-23.
44
OC 36.830.
45
OC 14.656-7. Observe a conclusão de Höpfl, Christian polity of John Calvin, 136: “não há absolutamente o que
quer que seja que sugira que Calvino, em algum momento, favorecesse algo que não fossem execuções rápidas e
eficientes.”.
46
Monter, Genevan Government, 57.
47
A progressiva alienação de Basiléia em relação a Genebra foi traçada por Plath, Calvin und Basel in den Jahren
1552-1556.
48
Kingdon, “The First Expression of Theodore Beza’s political Ideas”.
49
OC 21.560.
50
Perrenaud, La population de Genève, 37.
51
O número de refugiados é incerto. Para maiores detalhes a respeito da sugestão de que as estimativas da população
necessitavam ser revistas, com um aumento considerável do número de refugiados como resultado, ver Monter,
“Historical Demography and Religious History in Sixteenth-Century Geneva”.
52
Mandrou, “Les français hors de France”, 665.
53
OC 7.362.
54
Para detalhes a respeito dos conflitos que esses refugiados provocaram entre Calvino e os nacionalistas de Genebra
(que se opunham à sua residência na cidade), ver Biéler, La pensée économique et sociale de Calvin, 107-9.
55
Livre des bourgeois , 240.
56
Ibid., 241-4.
57
Sobre St Gallen, ver W. Ehrenzeller, St Gallischer Geschichte im spätmittelalter und in der Reformantionszeit (3
vols: St Gallen, 1931-47).
58
K. Spillmann, Zwingli und die zürcherische Politik gegenüber der Abtei St Gallen (St Gallen, 1965).
59
Ver C. Bonorand, “Joachim Vadian und Johannes Dantiscus: Ein Beitrag zu den schweizerisch-polnischen
Beziehungen im I6. Jahrhundert”, Zeitschrift für die Geschichte und Altertumskunde Ermlands 35 (1971), 150-70; idem,
“Joachim Vadians Beziehungen zu Ungarn”, Zwingliana 13 (1969), 97-131.
60
C. Bonorand, Vadians Weg vom Humanismus zur Reformation (St Gallen, 1962).
61
Ver W. Naef, Die Familie von Watt. Geschichte eines St Gallischen Bürgergeschlechtes (St Gallen, 1936).
62
E. Rüsch, “Glücklich der Stadt, die einem solchen Bürgermeister hat.” Die Gratulationen zur Wahl Vadians als
Bürgermeister von St Gallen”, em Vadian, 1484-1984: Drei Vorträge (St Gallen, 1985), 63-76.
63
Vide os protestos de Dezembro de 1537:E. Rüsch, “Politische Opposition in St Gallen zur Zeit Vadians”, Schriften
dês Vereins für Geschichte des Bodensees und seiner Umgebung 104 (1986), 67-113.
64
Em conformidade com a maior parte dos Reformadores suíços orientais: E. Ziegler, “Zur Reformation als
Reformation des Lebens und der Sitten”, Rorschacher Neujahrblatt (1984), 53-71.
65
A excessão é MS 138, conservado em Burgerbibliothek, Berna. Não está totalmente claro como o MS 138 – escrito
em 1548, sobre a ordem religiosa da Reforma – migrou de St Gallen para Berna.
66
C. Bonorand, “Dolfin Landolfi von Poschiano: Der erste Bündner Buchdrucker der Reformationzeist”, em Festgabe
Leonhart von Muralt (Zurique, 1970), 228-44.
Capítulo 7
1
Holl, “Johannes Calvin”, 267 (grifo nosso).
2
Para maiores detalhes, ver G. P. Norton, “Translation Theory in Renaissance France: Etienne Dolet and the
Rhetorical Tradition”, Renaissance and Reformation I0 (1974), I-13; L. A. Sonnino, A Handbook to Sixteenth-Century
Rhetoric (Londres, 1968).
3
Para uma análise brilhante, ver Girardin, Rhétorique et théologique.
4
Para o que se segue, ver Battles, “God was accommodating Himself to Human Capacity”.
5
A. N. Wilder, Early Christian Rhetoric: The Language of the Gospel (Londres, 1964).
6
OC 26.387-8: “Dieu s’est fait quase semblable à une nourrice, qui ne parlera point à un petit

enfant selon qu’elle feroit à un homme... nostre Seigneur s’est ainsi familièrement accommodé à
7 8 9 10
nous.” OC 29.70, 356; 36.134; 43.161. OC 23.17, 20-3, 40. OC 32.364-5. Battles, “God was accommodating
11 12
Himself to Human Capacity”, 20-1. Institutes , I.xiii.I. Balke, “The Word of God and Experientia according to
13
Calvin”. Nesse ponto, desenvolvemos idéias encontradas em F. M. Higman, “The Reformation and
the French Language”, L’Esprit créateur I6 (1976), 20-36; idem, “Theologie in French: Religious Pamphlets from the
Counter-Reformation”, Renaissance and Modern Studies 23 (1979), 128-46; idem, “De Calvin à Descartes: la création de
la langue classique”, RHR 15 (1986), 5-18.
15
Ibid., 138.
14
Higman, “Theology in French”, 130.
16
Ver maiores detalhes em Higman, Style of John Calvin.
17
Marmelstein, Etude comparative, passim.
18
Observe os comentários contemporâneos de Pasquier, Recherches, 1067: “Car aussi estoit

il homme bien escrivant tant en Latin que François, & auquel nostre langue Française est grandement
19 20
redevable pour l’avoir enrichie d’une infinité de beaux traicts.”. Vadianische Briefsammlung, Carta no. 884. Para uma
21
análise completa, ver Ganoczy, Young Calvin, 137-68. Para detalhes completos das várias edições e sobre a maneira
como o material é trasnposto
de uma para outra, ver Autin, L’Institution chrétienne de Calvin. Para uma comparação das várias
22 23
edições latinas e francesas, ver Marmelstein, Etude comparative. OC 1.255. E.g., Pannier, “Une première Institution
24
française dès 1537”. W. Maurer, “Melanchthons “Loci Communes” von 1521 als wissenschaftliche
25
Prorammschrift”, Luther Jahrbuch 27 (1960), 1-50. Fatio, “Présence de Calvin à
26
l’époque de l’orthodoxie réformée”, para inestimável material bibliográfico.
Parker, Calvin’s New Testament Commentaries ; idem, Calvin’s Old Testament
27
Commentaries. McGrath, The Intellectual Origins of the European
28
Reformation (Oxford/Nova York, 1987), 37-8. Heller, The Conquest of
Poverty:The Calvinist Revolt in Sixteenth-Century France, (Leiden, 1986), 121-
5.
NOTAS 329

Capítulo 8
1
Por exemplo, no caso das doutrinas da justificação, antropologia e eclesiologia: Santmire, “Justification in Calvin’s
1540 Romans Commentary”; Torrance, Calvin’s Doctrine of Man; Milner, Calvin’s Doctrine of the Church. Em seu
estudo sobre os sermões de Calvino, Stauffer indicou a maneira através da qual as pregações de Calvino se relacionam
com sua teologia, com reflexos sobre as conseqüências: Stauffer, Dieu, la création et la providence dans la prédication de
Calvin.
2
Fatio, Méthode et théologie,150-3. As origens da tendência posterior do Calvinismo em tratar a teologia e a exegese
bíblica como assuntos não relacionados pode ser atribuída à definição de teologia de Lambert Daneau, apresentada em sua
obra Compendium.
3
Rist, Méthode théologique de Calvin”, 21.
4
Para uma discussão proveitosa, ver Selinger, Calvin against Himself, 72-84.
5
Sobre esse problema, visto de modo geral na história intelectual (e não somente na teologia

histórica), ver H. Kellner, “Triangular Anxieties: The Present State of European Intellectual History”, em D. LaCapra e S.
L. Kaplan (eds.), Modern European Intellectual History (Ithaca, N.Y., 1982), pp. 116-31.
6
Um ponto muito enfatizado por Bouwsma, John Calvin, 4-6.
7
Adicionalmente, ver Willis, “Rhethoric and Responsability in Calvin’s Theology”.
8
Schweizer, Die protestantischen Centraldogmen, 1-18, 150-79. Para uma perspectiva mais
9
genérica, ver L. Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination (Grand Rapids, 1968). Dowey, Knowledge of God in
10 11
Calvin’s Theology, 41-9. Milner, Calvin’s Doctrine of the Church, 1-5. Partee, “Calvin’s Central Dogma Again”.
12 13
Um aspecto enfatizado por Bauke, Die Probleme der Theologie Calvins, 22, 30-1. Milner, Calvin’s Doctrine of
14 15
the Church, 2-3. Ver Niesel, Theology of Calvin, 247-50; Milner, Calvin’s Doctrine of the Church, 191. A
sugestão dos escritores anteriores, tais como Ernst Troeltsch, de que Calvino seja menos
cristocêntrico do que Lutero, baseia-se nas pressuposições, então dominantes, da pesquisa acadêmica sobre Calvino –
especialmente em relação à centralidade da predestinação – hoje há muito abandonadas.
16
Lane, “Calvin’s Use of the Fathers and Medievals”, fornece uma esplêndida análise.
17
Ver a análise de Smits, Saint Augustin dans l’oeuvre de Jean Calvin.
18
OC 8.266.
19
Lane, “Calvin’s Sources of St Bernard”.
20
Reuter, Vom Scholaren bis zum jungen Reformator, 6-12; McGrath, “John Calvin and Late
21 22
Medieval Thought”. Ganoczy, The Young Calvin, 137-51, 158-68. Grilis, “Calvin’s Use of Cícero in the Institutes I:I-
23
5”. A. E. McGrath, “Some Observations concerning the Soteriology of the Schola Moderna”,
RthAM 52 (1985), 182-93.
24 25
McGrath, “John Calvin and Late Medieval Thought”. Niesel, “Calvin wider Osianders
Rechtfertigungslehre”; Zimmermann, “Calvins Auseinandersetzung mit Osianders Rechtfertigungslehre”.
26
McGrath, Luther’s Theology of the Cross (Oxford/Nova York, 1985); idem, Iustitia Dei: A History of the
27
Christian Doctrine of Justification (2 vols: Cambridge, 1986), vol. 2, 3-20. A.E. McGrath, “Justification
and the Reformation: The Significance of the Doctrine of Justification by Faith to Sixteenth-Century Urban
Communities”, ARG 81 (1990), a ser publicado.
28 29
McGrath, Iustitia Dei, vol. 2, 3-39. Os aspectos cristológicos da doutrina de Calvino
sobre a predestinação foram enfatizados por Jacobs, Prädestination und Verantwortlichkeit
30
bei Calvin. OC 14.417 é de especial importância nesse aspecto, especialmente a
colocação explícita da questão do motivo pelo qual as promessas de Deus não são
31
igualmente eficazes na vida de todas as pessoas. Cf. McGrath, Iustitia Dei, vol. I, 128-45,
para uma análise das perspectivas medievais
32 33 34
sobre a predestinação. I.v.5; III.xxi.5; xxii.1, 5; xxiv.17. Ver Wendel, Calvin, 127. McGrath, Iustitia Dei, vol. I,
119-28, para uma análise dos conceitos e suas implicações
teológicas. Deve-se ressaltar que o último século testemunhou uma revisão quase absoluta de
35 36
nosso entendimento sobre essas idéias. McGrath, Reformation Thought (Oxford/Nova York, 1988), 117-30. W. P.
37
Stephens, The Theology of Huldrych Zwingli (Oxford, 1986), 206-11. Deve-se enfatizar que Calvino não emprega o
termo substantia em um sentido aristotélico,
tal como o que embasa a teoria medieval da transubstanciação. A respeito de sua refutação dessa teoria, ver as Institutas
IV.xvii.12-18.

Capítulo 9
1
Desmay, “Remarques sur la vie de Jean Calvin”, 390.
2
Os dois excelentes estudos a respeito da influência de Genebra sobre o movimento protestante francês, da autoria de
Kingdon, constituem uma leitura essencial: Kingdon, Geneva and the Coming of the Wars of Religion in France 1555-
1563; idem, Geneva and the Consolidation of the French Protestant Movement 1564-1572.
3 4
Ver H. Heller, “Famine, Revolt and Heresy at Meaux, 1521-25”, ARG 68 (1977), 133-57. E.g., ver
N.Z.Davis, Society and Culture in Early Modern France (Londres, 1975); G. Huppert, Public Schools in
5
Renaissance France (Chicago, 1984). Um levantamento bastante útil sobre literatura recente pode ser
6
encontrado em M. Greengrass, The French Reformation (Oxford, 1987), 1-20. A respeito, ver
Geisendorf, “Métiers et conditions sociales du premier refuge à Genève,
7 8
1549-87). Geisendorf, “Lyon et Genève du XVIe siècle au XVIIIe siècle”. Aproximadamente a mesma situação ocorria
na Inglaterra, onde o Luteranismo parece haver,
de início, conquistado uma certa vantagem: B. Hall, “The Early Rise and Gradual Decline of Lutheranism in England”,
em D. Baker (ed.), Reform and Reformation: England and the Continent (Oxford, 1979), 103-31.
9
E.g., OC 4.70-3; E. Rott, Histoire de la représentation diplomatique de la France auprès des
10 11
cantons suisses I (Berna, 1900), 456. Rott, Représentation diplomatique de la France, 318-21. Ver G. Audisio, Les
vaudois du luberon: une minorité en Provence (1460-1560) (Luberon,
1984), para maiores detalhes sobre tais comunidades e sua aceitação das idéias e
12
estruturas de Calvino. H. Heller, The Conquest of Poverty: The Calvinist Revolt
13
in Sixteenth-Century France (Leiden, 1986), 123. Para o texto, ver N. Weiss,
“Un arrêt inédit du parlement contre l’Institution chréstienne”, BSHPF 33 (1884),
14
16-21. Heller, Conquest of Poverty, 116, 127.
NOTAS 331

15
F. Higman, “Genevan Printing and French Censorship”, em J. D. Candaux e B. Lescaze (eds.), Cinq siècles
d’imprimerie genevoise (Genebra,1980), 31-53, esp. 36-7. Três títulos adicionais podem ter sido impressos em Genebra,
embora Neuchâtel também seja uma possibilidade.
16 17
Bremme, Buchdrucker und Buchhänndler zur Zeit der Glaubenskämpfe. R. Mentzer, Heresy Proceedings in
Languedoc, 1500-1560 (Nova York, 1984), 163.
18 19
Sessenta e dois desses indivíduos foram queimados como resultado desses processos contra eles. Ibid., 152-3.
Mandrou, “Lês français hors de France”, 665. Essa quantia é baseada em uma análise
20
daqueles 2.247 indivíduos cuja profissão é conhecida. Cf. Dufour, “De la bourgeoisie de Genève à la noblesse de
21
Savoie”. Ver R. Lecotte, Recherches sur les cultes populaires dans l’actuel diocése de Meaux (Paris,
1953); R. Muchembled, Culture populaire et culture des élites dans la France moderne, XVe-XVIIIe siècles (Paris, 1978).
22
Ver Eire, “Calvin and Nicodemitism”. Para uma abordagem mais completa, ver A. Autin, La crise du nicodémisme
1535-1545 (Toulon, 1917); P. Fraenkel, “Bucer’s Memorandum of 1541 and a “littera nicodemitica” of Capito’s”, BHR
36 (1974), 575-87; C. Ginzburg, Il Nicodemismo: simulazione e dissimulazione religiosa nell’Europa del’500 (Turim,
1970). O fenômeno não foi, de forma alguma, restrito à França.
23
Kingdon, Geneva and the Coming of the Wars of Religion, 2.
24
Ibid., 34-5.
25
Prestwich, “Calvinism in France, 1559-1629”, 84-5.
26
Acerca de seu desenvolvimento, a partir da haute école de Ordenanças Eclesiásticas, de
27
1541, ver Courvoisier, “La haute école de Genève au XVIe siècle”. Para maiores detalhes, ver Kingdon, Geneva and the
Coming of the Wars of Religion, 54-5,
28
Appendix VI. Vários indivíduos foram enviados em mais de uma missão, durante esse período. Cf. Hancock, Calvin
29
and the Foundations of Modern Politics, 1-20. E.g., Q. Skinner, Foundations of Modern political Thought (2 vols:
Cambridge, 1978), vol.
30 31
2, 219-40. Um aspecto enfatizado por Walzer, Revolution of the Saints. Observe a ênfase sobre a “capacidade do
Calvinismo em despertar adeptos e mudar o
32 33
mundo”: Walzer, Revolution of the Saints, 27. Cf. Skinner, Foundations of Modern political Thought, vol. 2, 227.
E.g., ver R. M. Kingdon, “Problems of Religious Choice for Sixteenth-Century Frenchmen”,
34
Journal of Religious History 4 (1966), 105-12. Observe as perspectivas expressas em Histoire du tumulte d’Amboise
35
(1560). Yardeni, “French Calvinist Political Thought”, 320-4; R. E. Giesey, “The Monarchomach
Triumvirs: Hotman, Beza and Mornay”, BHR 32 (1970), 41-56.
36
Institutes IV.xx.31. Em sua Homily on the First Book of Samuel, a intervenção de magistrados inferiores é
identificada como uma verificação sobre os monarcas: ver Skinner, Foundations of Modern political Thought, 214.
37
Kingdon, Geneva and the Coming the Wars of Religion, 7-9.
38
Ibid., 79-92.
39
Cf. Prestwich, “Calvinism in France, 1555-1629”.
40
L. Romier, Royaume de Catherine de Médicis: la France à la veille des guerres de religion

(2 vols: Paris, 1925), vol. 2, 255-62.


41
E.g., M. Wolfe, The Fiscal System of Renaissance France (New Haven/Londres,1972), esp. 112-13; R. R. Harding,
Anatomy of a Power Elite: The Provincial Governors of Early Modern France (New Haven/Londres, 1978), 46-9.
42
D. J. Nicholls, “Inertia and Reform in the pre-Tridentine French Church: The Response to Protestantism in the
Diocese of Rouen, 1520-62”, Journal of Ecclesiastical History 32 (1981), 185-97.
43 44
Heller, Conquest of Poverty, 234-46. D. Richet, “Aspects sócio-culturels des
conflicts religieux à Paris dans la seconde moitié du XVIe siècle”, Annales ESC 32
45
(1977), 764-83. N. M. Sutherland, The Huguenot Struggle for Recognition (New
Haven/Londres, 1980),
46 47 48 49
347-8. Ibid., 351-2. Ibid., 354-6. Prestwich, “Calvinism in France”, 85-8. E. Trocmé, “Une révolution mal
50
conduite”, RHPhR 39 (1959), 160-8. Isso fica evidente em sua carta de 17 de maio de 1559: OC 17.525. Cf. J.
Pannier, Les origines
51
de la confession de foi et la discipline des églises réformées de France (Paris, 1936), 86-7. Citado em J. Poujol,
“L’ambassadeur d’Angleterre et la confession de foi du synode de
52 53
1559”, BSHPF 105 (1959), 49-53. Amyon, Les synodes nationaux, vol. I, 98. J. Garrison-Estèbe, Les Protestants du
Midi (Toulouse, 1980), 64-7; cf. Kingdon, Geneva
54
and the Coming of the Wars of Religion, 79-80. Usamos o plural deliberadamente, em vista da
cadeia de eventos provocados pelas execuções em Paris: ver J. Garrison-Estèbe, Tocsin pour
un massacre (Paris, 1973).

Capítulo 10
1
Monter, “Consistory of Geneva”, 470.
2
OC 8.837.
3
OC 9.891-4.
4
OC 9.892: “. . . un pauvre escholier timide comme ie suis, et comme ie l’ay tousiors esté. . .”.
5
A respeito, ver J. T. Fitzgerald, Cracks in an Earthen Vessel: An Examination of the
6
Catalogues of Hardships in the Corinthian Correspondence (Atlanta, Ga., 1989). Para um relato genérico sobre essa
7
expansão, ver McNeill,History and Character of Calvinism. E. G. Léonard, Histoire générale du protestantisme (2
8
vols.: Paris, 1961), vol. I, 307. Vienna, Universitätsarchiv, microfilme 75 Th3, fol 64v; 65v-66r (a transcrição dos
procedi
9
mentos é praticamente ilegível). B. Hall, “The Early Rise and Gradual Decline of
Lutheranism in England”, em D. Baker (ed.), Reform and Reformation: England and
the Continent (Oxford, 1979), 103-31. Ver também
E. G. Rupp, Studies in the Making of the English Protestant Tradition (Cambridge, segunda edição, 1966); W. A.
Clebsch, England’s Earliest Protestants 1520-35 (new Haven/Londres, 1964).
10
Duke, “Calvinism in the Netherlands, 1561-1618”, 113.
11
Lynch, “Calvinism in Scotland, 1559-1638”, 225.
12
T. Bozza, Il Beneficio di Cristo e la Istituzione della religione christiana (Roma, 1961), 4-5.
13
Duke, “Calvinism in the Netherlands, 1561-1618”, 120.
14
Lynch, “Calvinism in Scotland”, 227.
15
Collinson, “Calvinism with an Anglican Face”.
16
A respeito, ver Neuser, “Die Väter des Heidelberger Katechismus”.
17
Citação de Cohn, “Territorial Princes”, 135.
18
Ver Lewis, “Calvinism in Geneva”.
19
Fatio, Méthode et théologie, 6, especialmente n. 53.

NOTAS 333

20
Körner, Solidarités financières suisses au XVIe siècle (Lucerna, 1980), 58-63, com
21
dados completos de 468-9. Evans, The Wechsel Presses, fornece informações inestimáveis
22
acerca da relação entre Humanismo e Calvinismo, associados a esse desenvolvimento. e.g.,
ver Meylan, “Collèges et académies protestantes”; Stauffer, “Calvinisme et les
23 24
universités”. Dufour, “Le mythe de Genève”. Por exemplo, seu Farrago confusanearum et inter se dissidentium
opinionun de coena
Domini ex sacramentariorum libris congesta (Magdeburg, 1552). Ver E. Bizer, Studien zur Geschichte des
Abendmahlstreits im 16. Jahrhundert (Gütersloh, 1940); J. Cadier, La doctrine calviniste de la sainte cène (Montpellier,
1951). Para termos relacionados a Calvino em uso na literatura polêmica francesa, nas décadas de 1560 e 1570, ver W.
Richard, Untersuchungen zur Genesis der reformierten Kirchenterminologie des Westschweiz und Frankreichs (Berna,
1959), 37-40.
25
Para maiores detalhes, ver H. Leube, Kalvinusmus und Luthertum in Zeitalter der Orthodoxie
I: Der Kampf um die Herrschaft im protestantischen Deutschland (Leipzig, 1928); H. Schilling (ed.), Die reformierte
Konfessionalisierung in Deutschland: Das Problem der “Zweiten Reformation” (Gütersloh, 1986).
26
Ver a epístola de dedicatória ao comentário de Jeremias, datada de 23 de julho de 1563, OC
20.73: “Dum ergo Calvinismum obiciendo aliqua infamiae nota tua, Celsitudinem aspergere conantur, nihil aliud quam
suam privitatem cum stultitia frustra et magno suo cum dedecore produnt.”
27
J. L. Austin, “The Meaning of a Word”, em Philosophical Papers, (Oxford, segunda edição,
28 29
1970), 23-43. P. C. Capitan, Charles Maurras et l’idéologie d’Action Française (Paris, 1972). Evans, “Calvinism in
30
East Central Europe, 1540-1700”, 169. C. S. Lewis, “Fern-seed and Elephants”, em Christian Reflections (Londres,
1981), 191
31 32 33
208, esp. 197. OC 9.893-4. D. McLellan, Marxism after Marx (Londres, 1980). Cf. L. Kolakowski, Main Currents
of Marxism (3 vols: Oxford, 1978), para uma análise
34
histórica completa. Ver P. Gay, The Dilemma of Democratic Socialism: Edward Bernstein’s Challenge to Marx
35 36
(Nova York, 1962), para uma boa análise. Kingdon, Geneva and the Coming of the Wars of Religion, 68-78. Yardeni,
37 38
“French Calvinist Political Thought”. Donnelly, “Italian Influences on Calvinist Scholasticism”. Um ponto
enfatizado por H. R. Trevor-Roper, “Religious Origins of the Enlightenment”,
39
em Religion, the Reformation and Social Change, 193-236, 204-5. Muller, “Scholasticism Protestant and Catholic”,
194. O surgimento do Calvinismo, na
40
Alemanha, nas décadas de 1560 e 1570, também precisou de envolvimento com o Luteranismo. Costello, Scholastic
41
Curriculum in Early Seventeenth-Century Cambridge. E.g., A. E. McGrath, The Genesis of Doctrine
(Oxford/Cambridge, Mass., 1990), 37-52. O
42
que se segue sintetiza a análise mais detalhada, apresentada nessa obra. Ver Schilling (ed.), Die reformierte
43
Konfessionalisierung in Deutschland. Para um resumo de suas diferenças com relação a essa doutrina, ver A. E.
McGrath, Iustitia
44
Dei: A History of the Christian Doctrine of Justification (2 vols, Cambridge, 1986), vol. 2, 39-50. Bauke, Probleme der
45
Theologie Calvins, 22, 30-1. Uma evolução documentada com rigor por Platt, Reformed Thought and Scholasticism,
com particular referência aos argumentos a favor da existência de Deus.
46
Nós seguimos Armstrong, Calvinism and the Amyraut Heresy, 32.
47
P. O. Kristeller, La tradizione aristotelica nel Rinascimento (Padua, 1972); idem, Aristotelismo e sincretismo nel
pensiero di Pietro Pomponazzi (Pádua, 1983). B. Nardi, Saggi sull’Aristotelismo padovana dal secolo XIV al XVI
(Florença, 1958) é útil, ainda. A respeito da importância do método aristotélico em relação às questões éticas, ver A.
Poppi, “Il problema della filosofia morale nella scuola padovana Del Rinascimento: Platonismo e Aristotelismo nella
definizione del metodo dell’ethica”, em Platon et Aristote à la Renaissance (XVIe Colloque Internationale de Tours:
Paris, 1976), 105-46.
48
J. H. Randall, “The Development of Scientific Method in the School of Padua”, em
49
Renaissance Essays, ed. P. O. Kristeller e P. P. Wiener (Nova York, 1968), 217-51. Donnelly, “Italian Influences on
50
Calvinist Scholasticism”, 90. P. Petersen, Geschichte der aristotelischen Philosophie im protestantischen
Deutschland
(Leipzig, 1921), 19-108; G. Spini, “Riforma italiana e mediazioni ginevine nella nuova Inghilterra”,
51
em D. Cantimori (ed.), Ginevra e l’Italia (Florença, 1959), 451-89. Donnelly, “Italian Influences on Calvinist
52 53
Scholasticism”, 90-9. Jacobs, Prädestination und Verantwortlichkeit bei Calvin. Kickel, Vernunft und
Offenbarung bei Beza. Essa atitude é também característica de Vermigli
e Zanchi: Donnelly, “Italian Influences on Calvinist Scholasticism”, 89-90; Gründler, Die Gotteslehre Giralmo Zanchis.
54
Note sua solicitação a Grataroli, datado de 11 de agosto de 1563, por uma cópia de De naturalium effectuum causis,
de pomponazzi, publicado por Grataroli, em Basiléia, 1556: Correspondance de Théodore de Bèze, vol. 4, carta no. 282,
pp. 182-3. Esse registro é interpretado pelos editores como evidência das tendências escolásticas de Beza:
Correspondance, vol. 4,
p. 9, 183 n.5. Cf. P. Bietenholz, Der italienische Humanismus und die Blütezeit des Buchdrucks
55 56
in Basel (Basiléia, 1959), 131-2. Kickel, Vernunft und Offenbarung bei Beza, 167-9. Ver McGrath, Iustitia Dei, vol. I,
57 58
130-1. Donnelly, “Italian Influences on Calvinist Scholasticism”, 98. Arminius, “Private Disputation II”, em
59
Works vol. 2, 319. Ver, e.g., Kingdon, Geneva and the Consolidation of the French Protestant Movement, 18, 120.
60
Moltmann, “Prädestination und Heilsgeschichte bei Moyse Amyraut”; Laplanche,
61 62
Orthodoxie et prédication; Armstrong, Calvinism and the Amyraut Heresy. McComish, The Epigones, 86. Sobre as
63
perspectivas dos escritores Puritanos, ver McGrath, Iustitia Dei, vol. 2, 111-21. Para um levantamento da literatura
relacionada a esse Sínodo, ver McComish, The Epigones,
64
46-125. Cf. Muller, “Vera philosophia cum sacra theologia nunquam
pugnat”; idem, “Scholasticism Protestant and Catholic”.

Capítulo 11
1
R. H. Bainton, The Medieval Church (Princeton, NJ, 1962), 42.
2
R. Friedmann, “Das Täuferische Glaubensgut”, ARG 55 (1964), 145-61.
3
S. Hauerwas, “On Honour: By Way of a Comparison of Barth and Trollope”, em N. Biggar
4 5
(ed.), Reckoning with Barth (London, 1988), 145-69. Ver Bouwsma, John Calvin, 32-65. Um ponto enfatizado por
6 7
Walzer, Revolution of the Saints, 25. Ibid., 24. Ibid., 80.
NOTAS 335

8
L. Strauss, Natural Right and History (Chicago, 1950), 59.
9
Um ponto enfatizado por Hancock, Calvin and the Foundations of Modern Politics.
10
Essa dialética foi bem sintetizada por Hancock: “Calvino distingue radicalmente política e

religião, com a finalidade de unificá-las nas atividades seculares”: Hancock, Calvin and the Foundations of Modern
Politics, 163.
11
OC 46.570.
12
Geneva Catechism (1545), q. 107; E.F.K. Müller (ed.), Die Bekenntnisschriften der
13
reformierten Kirche (Leipzig, 1903), 126, linhas 38-40. A. Fanfani, Catholicism, Protestantism and Capitalism
14
(Londres, 1935). E.g., ver R. De Roover, The Rise and Decline of the Médici Bank(Cambridge, Mass., 1963);
idem, La pensée économique des scolastiques: doctrines et méthodes (Montreal/Paris, 1971); idem, “The Scholastic
Attitude towards Trade and Entrepreneurship”, Explorations in Entrepreneurial History I (1963), 76-87.
15
E.g., ver M. Grice-Hutchinson, The School of Salamanca: Readings in Spanish Monetary
16 17
History, 1544-1605 (Oxford, 1952). Weber, Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, 91. Aqui seguimos
18
Marshall, In Search of the Spirit of Capitalism. Trevor-Roper aponta para os extravagantes estilos de vida de muitos
empresários financei
ros calvinistas, em sua crítica dos fundamentos históricos da hipótese de de Weber: H. R. Trevor-Roper, “Religion, the
Reformation and Social Change”, em Religion, the Reformation and Social Change (Londres, 1967), 1-45.
19
C. Hill, “Protestantism and the Rise of Capitalism”, em F. J. Fisher (ed.), Essays on the
20
Economic and Social History of Tudor and Stuart England (Cambridge, 1961), 19. Marshall, In Search of the Spirit of
21
Capitalism, 97-100. Quanto aos problemas levantados pelo “Calvinismo da diáspora” para a tese de Weber, ver
Trevor-Roper, “Religion, the Reformation and Social Change”, 20. Há excelentes motivos para se sugerir que o fenômeno
da imigração seletiva, por parte de empresários, seja tão importante quanto suas filiações religiosas.
22
Birnbaum, “The Zwinglian Reformation in Zurich”, Past and Present 15 (1959), 27-47. Observe a referência à
23
“frente unida de artesãos e mercadores por trás de Zwínglio”: p. 24. Um tema explorado por T. A. Brady, Turning
Swiss: Cities and Empire, 1450-1550
24 25
(Cambridge, 1985). Borel, Les foires de Genève. A respeito das filiais do banco dos Médici, ver de Roover, Rise and
Decline of the Médici
26
Bank, 279-89. As feiras migraram, posteriormente, para Chambéry e, então, para Montluel, em Sabóia e,
27
finalmente, para Besançon, a partir de 1535: Gioffré, Gênes et les foires de change. Bergier, “Marchands italiens à
28 29
Genève”. Ammann, “Oberdeutsche Kaufleute und die Anfänge der Reformation in Genf”. Veja a análise
elaborada de M. H. Körner, Solidarités financières suisses au XVIe siècle.
30 31 32 33
(Lucerna, 1980), 79. Ibid., 105. Ibid., 105-6. Ibid., 81-2. Bergier, “Zu den Anfängen des Kapitalismus – Das
34 35 36 37
Beispiel Genf”, 18. Ver Körner, Solidarités financières suisses au XVIe siècle. Ibid., 388. Ibid., 135. Ibid.,
390.
38
Monter, “Le change public à Genève, 1568-1581”.
39
Mandrou, “Les français hors de France”, 665. As ocupações de 2.247 desses 4.776 são conhecidas; se essa parcela
conhecida for típica, pode-se estimar que 3.265 artesãos chegaram a Genebra, nesse período.
40
A esse respeito, veja Dufour, “De la bourgeoisie de Genève à la noblesse de Savoie”.
41
Para uma análise excelente, veja Bürgli, Kapitalismus und Calvinismus, 108-22. O fenômeno se repetiu, embora
talvez não na mesma proporção, em cidades protestantes por toda a Confederação Helvética: W. Bodmer, Der Einflub der
Refugiantenwanderung von 1550-1700 auf die schweizerisch Wirtschaft. Ein Beitrag zur Geschichte dês Frûhkapitalismus
und der Têxtil-Industrie (Zurique, 1946).
42
Babel, Histoire corporative de l’horlogerie.
43
Chaix, Recherches sur l’imprimerie à Genève de 1550 à 1564.
44
Bürgli, Kapitalismus und Calvinismus, 189-94.
45
Bodmer, Der Einflub der Refugiantenwanderung von 1550-1700 auf die schweizerisch
46 47
Wirtschaf, 22-3. Bergier, “Zu den Anfängen des Kapitalismus – Das Beispiel Genf”, 21. Uma observação feita por G.
V. Taylor, “Types of Capitalism in Eighteenth-Century
France”, English Historical Review 79 (1964), ressalta as dificuldades em se interpretar o capita
48
lismo do ancien regime, à luz desses pressupostos. Kingdon, “The Business Activities of Printers Henri e François
49 50
Estienne”, 271-4. Trevor-Roper, “Religion, the Reformation and Social Change”, 14-21. T. Strohm, “Luthers
Wirtschafts und Sozialethik”, em H. Junghans (ed.), Leben und Werk
51
Martin Luthers von 1526 bis 1546 (2 vols:Berlim, Segunda edição, 1985), vol. I, 205-23, 214-19. Ver Bürgli,
52 53
Kapitalismus und Calvinismus, 194-215. Ibid., 201. Ibid., 201-5, para uma análise dos textos relevantes. Uma
análise mais detalhada pode ser
54
encontrada em Biéler, La pensée économique et sociale de Calvin. Para as
perspectivas de Calvino sobre as taxas de juros, ver Martin, “Calvin et le prêt à
55
intérêt à Genève”. Bodmer, Der EinfluB der Refugiantenwanderung von
1550-1700 auf die schweizerisch
56 57
Wirtschaft, 19. Dufour, “De la bourgeoisie de Genève à la noblesse de Savoie”. Sobre assistência social na cidade,
naquela época, ver Kingdon, “Social Welfare in Calvin’s
58
Geneva”. Heller, The Conquest of Poverty: The Calvinist
Revolt in Sixteenth-Century France (Leiden, 1986), 240-2.
59
Sobre essa noção no Calvinismo posterior, ver Miegge,
Vocation et travail, 11-30. Há uma
60
útil coletânea de textos relevantes em Bouwsma, John Calvin, 198-201. Biéler, La pensée économique et sociale de
61
Calvin, 399-402. Sobre o significado dessa máxima no contexto monástico, ver E. Delaruelle, “Le travail dans
les règles monastiques occidentales”, Journal de psychologie normale et pathologique 41 (1948),
62 63
51-62. Heller, Conquest of Poverty, 242. R. Mentzer, Heresy Proceedings in Languedoc, 1500-1560 (Nova York,
64
1988), 152-3. Detalhes da obra e uma análise de sua importância podem ser encontrados em Heller,
Conquest of Poverty, 247-51.
65
Os problemas provenientes do legado feudal podem ser vistos em G. Bois, La crise du féodalisme: économie rurale
et démographie em Normandie orientale du début du XIVe siècle au milieu du XVIe siècle (Paris, 1976).
NOTAS 337

66
Trevor-Roper, “Religion, the Reformation and Social Change”, 7-8. Esse artigo inclui
67 68
material inestimável, relacionado à teoria de Weber. Lüthy, “Variations on a Theme”, 377. McGrath, “John Calvin
69
and Late Medieval Thought”. Para referências, ver A. E. McGrath, Iustitia Dei: A History of the Christian Doctrine
of
70 71
Justification (2 vols, Cambridge, 1986), vol. 2, 1-39. de Bèze, Brief and Pithie Summe, 37-8. Sobre esse instrumento,
nas obras de William Perkins, ver Kendall, Calvin and English
Calvinism, 69-72.
72
Para detalhes, ver McGrath, Iustitia Dei, vol.2, 111-21 e referências a esse respeito. Um estudo mais detalhado pode
ser encontrado em D.A. Weir, The Origins of the Federal Theology in Sixteenth-Century Reformed Thought (Oxford,
1989).
73
Perkins, Workes, Vol. 1, 32.
74
Para uma excelente discussão das posturas calvinistas escocesas em relação ao trabalho, nos séculos 16 e 17, ver
Marshall, Presbyteries and Profits: Calvinism and the Development of Capitalism in Scotland, 1560-1707, 39-112.
Citação na página 52.
75
Ver Lehmann, Zeitalter des Absolutismus, 114-23; Zeller, Theologie und Frömmigkeit,
76 77
vol. I, 85-116. Trevor-Roper, “Religion, the Reformation and Social Change”, 14. Embora as origens do fenômeno
possam repousar sobre as expectativas milenistas, em vez
da doutrina da predestinação: Lehmann, Zeitalter des Absolutismus, 123-35. Sobre esse fenôme
78 79
no no Puritanismo inglês, ver Ball, Great Expectation. Walzer, Revolution of the Saints, 318. Miegge, Vocation et
travail, 115-53, sugere que Baxter possa ter alterado as posturas
80
puritanas tradicionais em relação ao chamado e ao trabalho. Há muito material útil sobre esse tema
em Tranquilli, Il concetto di lavoro da Aristotele a Calvino.

Capítulo 12
1 2
C. S. Lewis, English Literature in the Sixteenth Century (Oxford, 1954), 43. Ver C. M.
N. Eire, War against the Idols: The Reformation of Worship from Erasmus to Calvin
3
(Cambridge, 1986). Heidelberg Catechism, q. 95. E. F. K. Müller (ed.), Die
Bekenntnisschriften der reformierten
4 5
Kirche (Leipzig, 1903), 709-10. Heidelberg Catechism, q. 97. Ibid., 710, linhas 15-19. Heidelberg Catechism, q. 98.
6 7
Ibid., 710, linhas 23-7. Ver Freeberg, Iconoclasm and Painting in the Netherlands, 1566-1609. P. Miller, Nature’s
8 9
Nation (Cambridge, Mass., 1967), 22. Prestwich, “Le mécénat et les protestants”. Labrousse, “Calvinism in France,
10
1598-1685”, 304-5. Prestwich, “Le mécénat et les protestants”, 82.
11
R. Bellah et al., Habits of the Heart: Individualism and Commitment in American Life
(Berkeley, 1985), 306. Dois outros intelectuais foram identificados como havendo exercido uma comparável
12
influência camuflada sobre os americanos modernos: Thomas Hobbes e John Locke. Ver H. M. Conn,
Eternal Word and Changing Worlds: Theology, Anthropology and Mission in Dialogue (Grand Rapids, Mich.,
13
1984). Trevor-Roper, “Religious Origins of the Enlightenment”em Religion, the Reformation and Social
Change (Londres, 1967), 236.
14
Explorado em H. Arendt, The Human Condition (Chicago, 1958).
15
Foster, Their Solitary Way, 99-126.
16
Bellah et al., Habits of the Heart, 287-300.
17
Ahlstrom, Religious History of the American People, 789-90.
18
F. K. C. Price, High Finance: God’s Financial Plan (Nova York, 1984), 12.
19
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ÍNDICE
Acomodação, princípio da, 154-6, 295 Accursius, 70, 76 Academie Royale de Peinture, 281
Academias, protestantes, 230, 246 Agostinho de Hipona, 178, 198, 297, 299, 304 Agostinianismo,
62-3, 196, 297 Alciati, Andrea, 77 Aldine, Editora, 73 Alumbrados, 23 Amadeus VIII, Duque de
Sabóia, 107 Amboise, Conspiração de, 32, 93, 215, 236, 334, 344 Amboise, Edito de, 219
Amerbach, Bonifácio, 28, 74 Amyraut, Mose, 246, 296, 337 Anabatismo, 141, 296, 303
Anticlericalismo, 25 Antipapalismo, 28-30 Aquino ver Tomás de Aquino, Aristóteles, 51-3, 57, 71-
2, 163, 176, 234, 242, 319 Arminianismo, 296-7
Armínio, Jacob, 244, 246
arte, posturas calvinistas em relação à
Articulantes (facção em Genebra), 119, 124-5, 297
Augsburgo, Paz Religiosa de (1555), 103, 225, 240, 253, 254, 298, 303, 352
Autoridade, crise de, na Igreja, ao final da Idade Média 19, 27, 28, 29, 30, 35, 66, 70
Avignon, Universidade de 28,77, 316, 318

Bancário, sistema e a consolidação da Reforma Suíça, 257-9 em Genebra 109, 256


Barnes, Robert, 225
Barth, Karl, 154, 250, 338
Bartholus, 70
Basiléia, Cidade de, 73, 84, 94, 96, 101, 103, 105, 12-2, 135, 142-4, 150, 161, 165, 228, 258, 259, 322, 324, 328,
329, 337, 341, 346, 352
Basiléia, Universidade da, 58
Baune, Pierre de la, Bispo de Genebra, 107, 110, 112, 137
Baxter, Richard, 255, 276-7, 341 Beda ver Bédier, Bédier, Nöel, 42, 44, 82 Bentley, Richard, 288 Bernardo de
Clairvaux,178 Berna, 10, 101, 103-6, 109-13, 117, 121, 124
5, 130, 132, 135, 143, 147, 178, 205, 228, 256, 258, 261, 266, 326, 328, 332-3, 336, 345, 349, 351-2, 355
Bersius, Marcus, 161 Berthelier, Philibert, 144 Beza ver Bèze, de Bèze, Théodore de, 10, 34, 39-40, 43, 50,
83, 85, 144, 208, 216, 229, 241-2, 243-4, 246-7, 251, 263, 272, 291, 297, 317, 329, 334, 337, 344, 345, 348, 349
Biel, Gabriel, 44, 308 Bolonha, Acordo de, 29-30 Bolsec, Jerome, 33-4, 317, 352 Bonivard, François,108, 129 de
Bourdeille Brantôme, Pierre, 263 bourgeois, como status de habitante de
Genebra, 129-32, 144-5 Bourges, Universidade de, 36, 50, 68-9, 76
8, 205 Bourgoin, François, pastor de Jussy, 133 Bouvot, Phillipe, 42 Briçonet, Guilherme, Bispo de Meaux, 300
Bucero, Martinho, 84, 102, 105, 110, 122,
123, 124, 135, 136, 141, 161, 162, 178,
181, 185, 193, 199, 226, 303, 328 Budé, Guilherme, 76-9, 81 Bullinger, Heinrich, 135, 141, 328-9, 344, 350
Bunny, Edmund, 167, 344 Bunyan, John, 255, 276 Bure, Idelette de, esposa de João Calvino,
124, 129 Buridan, Jean, 58, 347

Caen, 159, 165 Chamado (vocatio), como base da ética protestante do trabalho, 249-277 Calvino, João,
carreira de (em ordem cronológica),
comparado a Lênin, 11-2, 31 batizado como Jehan Cauvin, 30 relutância em projetar sua personalidade,
31-6 conforme retratado por Jerome Bolsec,
33-4 primeiras biografias de, 40 histórico familiar, 30-1, 40 relação com a família de Hangest, 40 mudança para
Paris, 38-9 incertezas sobre o período em Paris,
37-56 provavelmente não freqüentou o
Collège de la Marche, 39-43 no Collège de Montaigu, 39-57 provável linha de estudos,51-57 provavelmente não
estudou teologia em
Paris, 42-3
mudança para Orleans, 42-9, 68-9, 71, 74, 76-8, 81, 92, 101, 161, 168, 205, 212,-3, 219, 222, 321
influenciado pelo Humanismo jurídico
francês, 70-78 publicação do comentário de Sêneca,78-81 deixa Paris após o discurso de Cop, 81-3 provável
autor do discurso de Cop, 85 encontra refúgio em Saintonge, 90-2 a “conversão”, 87-93 deixa a capelania de La
Gésine, 92 busca refúgio na Basiléia, 93-97 escreve a primeira edição dasInstitutas,
95-6 viaja para Ferrara, 96- 7 chegada em Genebra (1536), 118-21 e Debate de Lausanne, 117-8 relações com
Genebra (1536-8), 118-21 expulsão de Genebra (1538), 120-1 exílio em Estrasburgo (1538-41) ,121-4 casamento,
124 regresso a Genebra (1541), 124-5 oposição no segundo período em Genebra, 132-3 morte de sua esposa, 129 e
de Miguel Serveto, 137-44
ÍNDICE 353

consolidação do poder em Genebra,


144-6
comparado a Vadian, 146-152
e a língua francesa, 157-60, 206-7
apelo à retórica, 79- 80, 154-7
como intelectual sistemático, 174-8, 240
idéias religiosas de, 171-202
enfermidade final e morte, 223-4
como correspondente, 168-9
como comentarista bíblico, 172-3
expansão da influência na França, 150,

203-222, 265-8
expansão mundial da influência, 224-31
caráter afirmativo de seu pensamento
religioso em relação ao mundo, 249-52,

282

Calvino, João, idéias religiosas em relação a,


acomodação, divina, 154-7, 287-90
batismo, 200-2
a Bíblia, 156-7
chamado, 34-5, 83, 88-90, 121-2, 187, 224,

247, 254, 262-5, 276, 284, 291


certeza da eleição, 269-71
Cristologia,175, 188, 298
organização e ministério da Igreja, 197-

200
disciplina eclesial, 197-200
eclesiologia, 56, 197-200
eleição, 88-9, 121-2, 193-7
eucaristia,199
fé, 190-3
Deus, 179-83
natureza humana, 182-4
inspiração das Escrituras, 181-2
justificação, 56, 193-6
conhecimento de Deus, 21, 156, 162, 164,

175-6, 179-80, 82, 183, 188


lei, os três usos da, 185
lei e Evangelho, 184-7
mérito de Cristo, 63-4, 189-90
munus triplex Christi, 78-9, 179-182
teologia natural, 184-7
Antigo e Novo Testamentos, relação
ordens de ministério, 198-9

predestinação, 174-75, 183, 190, 194-8,

244, 269-71
regeneração, 192-4
sacramentos, 199-202
santificação, 192-4
Escrituras, 156-7, 177-8
soterologia, 188-90
Trindade, 182
usura, 188-90
trabalho, 250-2

Calvinismo,
ausência de influência sobre a classe
camponesa da França, 208-10, 217-8
aceitação pela aristocracia francesa,

218-9
apelo às classes médias francesas, 208-10
ciências naturais, em relação ao Calvinismo,

286-90
posturas em relação à arte e à cultura,
279-81
posturas em relação ao Capitalismo,
268-77, 284-6
posturas em relação às ciências natu-
rais, 286-90
posturas em relação ao trabalho, 250-

52, 268-277, 284-86


e religião civil, 290-92
definição de, 231-37
dinamismo econômico do, 268-77, 284-6
e os direitos humanos, 292-4
influência do Aristotelismo de Pádua

sobre, 177
influência de Vermigli e Zanchi sobre,

231-44
expansão internacional do 231-37
e Luteranismo, 56, 65, 67, 83, 134, 164,

177, 204-5, 225, 226, 231, 237, 240,


268-9, 290, 290, 303, 333, 336
nova postura em relação ao Aristo-

telismo, 234-45
nova ênfase sobre a predestinação, 237-48
origens do, 231-37
em relação ao pensamento de Calvino,
177, 231-48

vulnerabilidade em relação à seculari-


zação, 251-55, 282-3, 290-309
Capitalismo
primitivo de Genebra, 255-62
em relação ao Calvinismo, 249-77
ao final da Idade Média, 252-53
e predestinação, 254-5
e a ética Protestante do trabalho,
268-77, 284-6
Capito, Wolfgang, 110, 122, 334
Caroli, Pierre, 94
Cartago, Concílio de, 61
Castelio, Sébastien, 144
Catherine de Médicis, Regente da França,
334
Evangelicalismo católico, 23
Cauvin, Antoine, irmão de João Calvino, 97
Cauvin, Gérard, pai de João Calvino, 30,
38, 49
Carlos I, Rei da Inglaterra, 276
Carlos V, Imperador, 96, 206, 253
Carlos IX, Rei da França, 212, 219
Du Chemin, Nicolas, 79
conselhos municipais, papel na propaga-
ção da Reforma da Europa, 102-7
Religião civil americana moderna, 209-2
Coligny, Gaspard de, Almirante da França,
10, 221, 291
Colladon, Germain, 145, 348
Colladon, Nicolas, 34, 39-40, 43, 45-6,
92, 96, 167, 217, 317, 319, 322
Collège de Bourgougne, Universidade
de Paris, 40
Collège de Fortet, Universidade de
Paris, 46, 322
Collège de Harcourt, Universidade de
Paris, 46
Collège de Lisieux, Universidade de
Paris, 40, 46
Collège de La Marche, Universidade de
Paris, 37, 39, 43
Collège de Montaigu, Universidade de
Paris, 37, 39, 43-4, 47, 50, 59, 346
Collège de Navarre, Universidade de
Paris, 40, 50, 59, 82

Collège de Reims, Universidade de


Paris, 46,

Collège de Royale, Universidade de


Paris, 81

Collège de Sainte-Barbe, Universidade


de Paris, 39, 48, 50

Collège de la Sorbonne, Universidade


de Paris, 41, 46, 307

Collège de Tréguier, Universidade de


Paris, 40

Colet, John, 23

Cologne, Universidade de, 59

Companhia de Pastores, Venerável, de


Genebra, 132, 133-5, 211-6

Complutense, Poliglota (versão da


Bíblia), 21

Confessio Belgica (1561), 287

Confissionalização, 239-40

Consistório de Genebra, 132-8, 144, 212

Cop, Guilherme, 78

Cop, Nicolas, Reitor da Universidade


de Paris, 32, 78, 81, 83-5, 94, 345

Copérnico, Nicolau, 14-5, 287, 289, 315

Cordier, Mathurin, 39-40, 43, 53, 317

Coronel, Antonio, 53

Coucy, Edito de (16 de julho de 1535), 96

Coulogone, Daniel de, 167

Couraud, Elie, 94

Courtin, Michel, capelão de Gésine por


certo período,38, 358

Teologia da aliança, 272-4

Crespin, Jean, 165, 207, 210

Cypriano de Cartago, 38, 118, 198, 306


Dada, Etienne, 13, 111

D’Ailly, Pierre, 51, 58, 308

D’Aubeterre, François, 263

Daneau, Lambert, 241, 331

Danès, Pierre, 81

Dauphiné, 206, 222

Davidson, John, 273

Diáconos, ordem de ministério em Gene-


bra, 100

Delaune, Guilherme, 167

ÍNDICE 355

Desmay, Jacques, 38, 316-7


Devotio moderna, 44-5
Die, Academia Protestante de, 230
Dort, Sínodo de, 232, 246, 297
Du Bellay, Guilherme, embaixador francês,

Du Bellay, Jean, bispo de Paris, 81, 322, 346


Du Perron, Jacques, 159
Duplessis-Mornay, Phillipe de, 216, 322,
346

Eck, Johann, 65, 224


Eduardo VI, Rei da Inglaterra, 226
églises dressées,212
églises plantées, 212, 220
Eiguenotes (facção em Genebra), 103, 299
Elizabeth I, Rainha da Inglaterra, 227, 291
D’Epence, Claude, escritor devocional
francês, 205
Erasmo de Rotterdam, 73-4, 79, 94, 151, 316,
321
Erfurt, Universidade de, 58, 66, 103-4, 105
Escócia, 213, 215, 225, 226, 228, 293
Estienne, François, 260, 339, 348
Estienne, Henri, 260, 339, 348
Estienne, Robert, 145, 165
Estoile, Pierre de l’, 69
Ética Protestante do trabalho, 249-77
Europa, conceito de, 18
Feiras, de comércio, em Genebra, 107-8,
133, 256-9
Farel, Guilherme, 10, 94, 106, 111, 112, 115-
21, 124-5, 136, 160, 297, 301, 326-7
Feray, Claude de, 94
Ferrara, Renée de France, duquesa de, 96
Financeiras, alianças, 258
Forge, Etienne de la, 95
França
apelo de Calvino para o desenvolvi-
mento do Calvinismo na, 100-1, 150,
203-222, 265-268
Francisco I, Rei da França, 9, 25, 29, 30, 32,
67, 76, 81, 84, 93, 97, 205, 225

Francisco II, Rei da França, 216, 219, 220


Frederico III, Eleitor, 231
Friburgo, 108, 109, 110, 111, 112, 133, 114,
228, 256
Fugger, Jacob, 253
Furbity, Guy, 112

Gaillard, Província de, 114


Galicanismo, 66
Genebra,
Academia de, 151, 213, 246, 321
antes da Reforma, 107-16
e o capitalismo, 255-62
combourgeoisies com Berna e
Friburgo, 109-116
declínio da influência de, 227-30
história primitiva de, 17
situação financeira de, 114-15, 146-7,
227-30, 255-260
luta pela independência de, 94-5, 107-
116
afluxo de refugiados, importância polí-
tica de, 144-6
instituições de:
Companhia de Pastores, Venerável ,
131-2, 133-5,211-6, 217-8
Conselho dos Sessenta, 130
Conselho dos Duzentos, 130-1
Conselho Geral (conseil général),
130-1

Hôpital-Général, 112

Carrasco público, 143


Pequeno Conselho (Petit Conseil),
115, 118, 121, 304
Os síndicos, 108, 119, 133, 303

Trésor de l’Arche, 258

lema de, 113


estatísticas populacionais, 144-5
revolução de, 144-6
e Sabóia, Ducado de, 107-16
e a Confederação Suíça, 107-16
status dos habitantes, 129-32, 144-6
como uma teocracia?, 128-9
George de Bruxelas, 51
Gex, Pays de, 114

Gillain, Jean, 42 Goodman, Christopher, 215 Gótica, escrita, 20 Goulet, Robert, 51, 52, 318, 319,
346 De Gouveia, Andréas, 84 De Gouveia, Diogo, 41 Graciano, 54, 56 Gregório de Rimini, 54,
56, 58, 62, 64, 196, 270, 321 Guilherminos (Facção em Genebra), 301

Habitante, como status de habitante de Genebra 129-132 De Hangest, família, de Noyon 26, 49
Harvard, Faculdade, Massachussets 238 Heidelberg, Universidade de 58, 230, 242 Heidelberg,
Catecismo 227, 231, 280, 298 Helvética, Confissão, Segunda 103, 131, 147, 258, 298 Henrique II,
Rei da França, 219 Henrique IV, Rei da França, 216 Henrique VII, Rei da Inglaterra, 81 Herbert,
George, 264 Herborn em Hanau, Academia Protestante de, 230 Hotman, François, 216 Huguenote,
Crescente, área geo-política, 221-2 termo, origem do,109-10 ver também França, desenvolvimento
do Calvinismo na, Hugolino de Orvieto, 196, 270 Humanismo, influência do, 20-2, 72-6
Humanismo, natureza do, 70-6

individualismo, Renascença, 22-5 indulgências, controvérsia, 24-5, 31


Institutas da Religião Cristã, comparada à Summa Theologiae de Aquino, 161-3, 172, 174-5 primeira
edição das, 94-6, 160-1 princípios de organização das, 174- 178 prioridade das, 163, 171-3 edições
posteriores das, 159-169
sumários das, 164 superioridade em relação aLoci Communes de Melanchthon, 163-4 quadro de edições e
traduções, 165-6
Irmãos da Vida Comum, 44-5

Jussy, Jeanne de, 112, 348


Justificação, doutrina da, 28, 35, 55, 60, 89, 102, 192-4, 239

Knox, John, 10, 226

L’Anglois, Jacques,
Languedoc, 26, 168, 208, 217, 316, 328, 333, 340
La Renaudie, Godefroi de Barri, senhor de, 25
La Roche-Chandieu, Antoine de, 220
Lasco, John à, 226
Lasius, Balthasar, editor da Basiléia, 161, 324
Laurent de Normandie, 145, 208
Lausanne, 109, 114, 117, 118, 121, 166, 177, 218, 228, 258, 326, 345, 349
Lauvergeat, Jehan, 211
Lawne, Williame ver Delaune, Guilherme, 167, 344
Le Court, Etienne, 81, 143
Lefèvre d’Etaples, Jacques, 83, 300, 344
Leiden, Universidade de, 230
Leipzig, Debate, 31, 65-6, 224-5, 321, 327, 336-8, 341, 350
Leão X, papa, 25, 253
Leyden, Jan van, 95
libertinos (facção em Genebra), 129, 132, 137
Alfabetização de leigos, importância da, 202
Loré, Philip, agente editorial em Orleans, 79
Luís XI, Rei da França, 107
Lucerna, 228, 336, 339
Lullin, Jean, 124
Lutero, Martinho, 9, 10, 23, 24, 25, 27, 28, 30, 34, 54-5, 58, 60, 62, 65-7, 81, 84, 8990, 101-2, 111, 123, 134, 141,
158, 161-2,
ÍNDICE 357

164, 178, 187, 189-90, 192-4, 199-201, 204-5, 224-5, 227, 239, 253, 257, 261-2, 271, 289, 298, 302-3,
305, 324, 332 Luteranismo, influência na França, 65-7 relação com o Calvinismo, 134, 231, 237, 240,
268-9 Lion, 101, 107, 133, 159, 165, 168, 205-6, 210, 213, 257, 344

Mair (Major), John, 42, 51, 53-5, 58, 63-4, 319-21, 345, 353 mamelucos (facção em Genebra), 103,
110, 256, 303, 326 Manrique, Roderigo, 83, 84, 323 Marcourt, Antoine, 32, 93, 316, 324
Marguerite d’Angoulême, duquesa de Alençon e rainha de Navarra, 82-4, 96, 157 Marignano,
Batalha de, 29 Marlorat, Augustin, 167 Marot, Clément, 96 Marsilius de Inghen, 58 Martyr, Pedro
ver Vermigli, 226 Mayhew, Jonathan, 293 Mazarin, Cardeal, 281 Meaux, Diocese de, 21, 23, 24,
26, 204, 205, 316, 333, Médici, banco, 107, 218, 253, 257, 338, 339 Melanchthon, Filipe, 21, 164,
178, 185, 193, 194, 242, 312 Monarcomaquia, teorias da, 215-6 Montauban, Academia Protestante
de, 230 Montmor, família, de Noyon, 49 Morel, François de, 220 Muète, Garin, 111 Münster, 95,
135-6, 138, 141-2, 329 Musculus, Wolfgang, 142 Myconius, Oswald, 84, 324

Nantes, Edito de (1598), 216, 230, 232, 281, 296, 316 revogação do (1685), Nebrija, Antonio, 76
Newton, Isaque, 180, 288 Nicodemitismo, 210 Nominalismo, 58, 59, 62, 304, 307 Noyon, Picardy (terra
natal de João Calvino), 26, 30, 34, 38, 49, 50, 81, 91, 97, 203, 317, 345 Ockham ver William de Ockham,
Oecolampadius, Johann, 135, 161 Olevianus, Gaspar, 167, 345 Olivétan, Pierre, 69 Ordonnances
ecclésiastiques (1541), 133-6 Orleans, Cidade de, 42, 49, 69, 74, 77, 81-2, 92, 101, 161, 205, 212-3, 219,
222, 321 Orleans, Universidade de, 36, 68, 76-7 Osiander, Andréas, 56, 172, 192, 332, 3512, 353

Palissy, Bernard, 266-7 Paris, cidade de, 101 crescimento do Calvinismo organizado em, 101, 211-3,
219, 222 proibição de literatura Calvinista em, 204-7 proibição do Luteranismo em, 62-8, 81-4 Paris,
Universidade de, 37-8, 40, 48-9, 57, 66-8, 83, 157-8, 190, 307 estrutura colegiada da, 49-50 quatro
faculdades da, 41-2, 49-50 Faculdade de Teologia, 24-5, 64-8, 81-4, Quartier Latin, descrição, 44-8
Luteranismo, preocupação com o, 648, 81-4, 158-160 “Nações” da, 49-51 relações com o parlement
parisiense, 82-3 Escolasticismo na, 57-65 Incertezas referentes ao período de Calvino na, 37-56
Paris, Universidade de, faculdades pertencentes a, Collège de Bourgougne, 40 Collège de Fortet, 46,
322 Collège de Harcourt, 46 Collège de Lisieux, 40, 46
Collège de La Marche, 37, 39, 43 Collège de Montaigu, 37, 39, 43-4, 47, 50, 59, 346 Collège de Navarre,
40, 50, 59, 82 Collège de Reims, 46 Collège Royale, 81 Collège de Sainte-Barbe, 39, 48, 50 Collège de
la Sorbonne, 41, 46, 307 Collège de Tréguier, 40
Parlements, 208
Pávia, Batalha de (1525), 225 Pelagianismo, 28, 53, 61, 62, 296-7, 304 Pelagius, 60-1 Perkins,
William, 273, 340, 345 Perrin, Ami, primeiro síndico de Genebra, 129, 132, 137 perrinistas (facção de
Genebra), 137, 139, 146 Religião pessoal, fenômeno da , 22-5 Pertemps, Claude, 114 Pedro
Lombardo, 53-4, 56, 164, 226, 319, 352 Pedro da Espanha, 51 Philippe, Jean, comandante da milícia
de Genebra, 119, 124-5 Piscator, Johannes, 167, 345 Panfletos, Incidente dos (1534), 32, 67, 93, 96
Place, Pierre de la, 91 Platter, Thomas, editor da Basiléia, 161, 165, 324 Poitiers, 101, 168, 205-6, 211,
213, 220 Pomponazzi, Pietro, 51, 243, 247, 337 Ponet, John, 215 Predestinação, 62, 162, 174-5, 177-8,
183, 190, 194, 198, 236, 238, 240-4, 246-8, 254, 269-71, 274-5, 283, 290-2, 296-7, 304-5, 332, 341
Puritanismo ver Calvinismo, 14, 276, 305, 341

Rabelais, 25, 37, 76, 157, 346 Raemond, Florimond de, 91, 266, 324, 345 Ramus (de la Ramée), Pierre, 242, 246
Rantilly, Alexis de, 40
Regnard, Jacques, secretário do Bispo de Noyon, 38 Remonstrantes, 246 Richelieu, Cardeal, 281
Roche-Chandieu, Antoine de la, 220 Rouen, 26, 44, 101, 144, 168, 206 Rousseau, Jean-Jacques,
131, 216 Roussel, Gérard, 82-4

Sadoleto, 33, 123 Dia de São Bartolomeu, massacres do 91, 215, 361 St Gallen, 101, 103, 104, 147,
148, 150, 161, 228, 325, 329-30 Saint-Germain-em-Laye, Edito de, 219 Saintonge, 89-92, 117
Saumur, Academia Protestante de, 230, 246, 296 Sabóia, Ducado de, 103, 110, 112-5, 137, 206, 256,
261, 303, 339 Schaffhausen, 143, 228
Schola Augustiniana moderna,
Escolasticismo, na Universidade de Paris, 25, 52, 56, 57, 60, 81, 174, 241, 242, 302, 306, 308 Ciências
naturais e Calvinismo, 304-9 Scopes, Julgamento de (1925), 290 Scotus, Johannes Duns, 55, 57-8, 62-
4, 190, 306, 320, 353 Scultetus, Abraham, calvinista alemão, 227 Secularização do Calvinismo, 251-
2, 282-3, 290-2 Sedan, Academia Protestante de, 230 Sêneca, 32, 39, 52, 78-9, 154, 172, 224, 323,
344 Sept, Michael 45-6, 47, 119 Serveto, Miguel, 92-3, 133, 138-44, 147, 328 Socinus, Laelius, 63-4
Sorbonne ver Collège de la Sorbonne, Standonck, Jan, 44, 318 Steinbach, Wendelin, 44 Estrasburgo,
55, 56, 94, 97, 102, 105, 110, 116, 121-4, 129, 133-4, 136, 142, 150-1, 165, 178, 201, 205, 217, 250,
305, 316
ÍNDICE 359

Sturm, Johann, 122-3 Syllogismus practicus, 272

Terminismo, 58-9, 307, 320 Ternier, Província de, 114 Testelin, Louis, primeiro secretário da
Academie Royale de Peinture, 281
Tetzel, Johann, 24 Tomás de Aquino, 12, 58, 62, 140, 162, 172, 174, 243, 269, 301, 307, sobre a
execução de hereges, 137-9 Thockmorton, Nicholas, embaixador inglês na França, 220 Tillet, Louis du,
91, 94, 122, 326, 345 Toqueville, Alexis de, 284 Toussaint, Pierre, 94 Trento, Concílio de, 225, 239,
280 Tyndale, William, 225

Vadian (Joachim von Watt), 147, 148, 149, 151, 161, 329-30 comparado a Calvino, Vallière, Jean,
65 Vatable, François, 81 Vaud, Pays de, 109-10, 114 Vaudois ver Valdenses, Vautrollier,
Thomas, 166-7 Vermigli, Pietro Martire, 226, 236, 241, 243, 247, 337 Vernou, Jehan, 211
Via antiqua, 58, 308
Via moderna, 44, 55, 58-60, 62-3, 188, 190, 196, 304, 308, 320
Viena, Universidade de, 50, 148
Viret, Pierre, 94, 111-2, 114, 116-8, 160
Vivés, Louis, 362
Voltaire, 216
Vulgata, versão da Bíblia, 74-5, 308, 344

Valdenses, 28, 211


Weber, Max, sobre o tema “Protestantis-mo e Capitalismo”, 252-5, 257, 259, 265, 268, 269-71, 275-76, 340
Wesley, John, 276
William de Ockham, 53-4, 56, 58, 64, 308, 320-1
Wittenberg, Universidade de, 31, 55, 58, 225, 239, 242, 302
Wolmar, Melchior, 74
Wright, Edward, 289
Zabarella, Giacomo, 242, 246
Zanchi, Girolamo, 236, 241-4, 337
Zurique, 73, 89, 103, 105, 110, 112, 130, 134-5, 141-4, 177, 228, 225, 258, 291, 305, 325, 328
Zweig, Stephan, 13, 132
Zwínglio, Huldrych, 55, 89, 102-3, 105, 110, 135, 141, 147, 164, 193, 200, 201, 205, 256, 289, 298, 302-3, 305,
309

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