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A noção de cuidado em Paul Ricoeur

Constança Marcondes Cesar


(Puc Campinas)

Associada às idéias de respeito, estima, solicitude e reconhecimento, a noção de

cuidado acolhe, nas obras de Ricoeur, um denominador comum a essas noções: a

afirmação do amor como atenção a si e ao outro, e a valorização da justiça.

Partindo do tema da simpatia, em artigo intitulado “Simpatia e Respeito”,

publicado originalmente em 1954 na Revue de Métaphysique et de Morale 1 e reeditado

em “Na escola de Fenomenologia”2 , Ricoeur mostra que é preciso fundar a simpatia,

previamente, em uma ética do respeito, sem a qual a mera descrição fenomenológica do

outro se torna decepcionante.

Promessa que não se mantém, a fenomenologia do outro, enquanto apenas

descrevesse seu aparecer, seria incapaz de captar a riqueza da presença da pessoa, dado

que a mera descrição não a distingue do aparecer das coisas.

É preciso fazer um duplo movimento, que parte da ética do respeito e vai à

fenomenologia da simpatia, retornando depois à ética, coordenando ambas, para

alcançar o outro como sujeito, estranho a nós, mas também um semelhante.

Presença no mundo, o outro contempla as mesmas coisas, no mesmo mundo no

qual se trabalha e se habita, qualificando-o e fazendo essa qualificação impregnar a

nossa existência, o meio ambiente vital no qual nos encontramos e testemunhamos.

Criticando Husserl, para quem a existência do outro a um tempo como existente

diverso de nós e semelhante a nós se revela na abordagem analógica da alteridade, que

faz dele um outro eu, através da experiência da intropatia – nosso filósofo assinala a

1
Paul Ricoeur, Sy mpathie et respect. Revue de Métaphysique et de morale. Paris, (1954), pp. 380-397.
2
Idem, À l’école de la phénoménologie. Paris: Vrin , 4° ed. 1998, pp 280-263.
2

dificuldade de se superar a leitura subjetivista do vivido de outrem, assim como de

reconhecê- lo como pessoa, distinto das coisas.

Indagando sobre a noção de simpatia e considerando a contribuição de Scheler,

o pensador francês examina a experiência afetiva da abertura, da revelação da dimensão

pessoal do outro, que o distinguiria do mundo das coisas.

É fazendo a crítica da ética scheleriana, que confunde simpatia e fusão afetiva

assim como da ingenuidade que incapacitaria a Scheler – e também a Husserl – de

perceber a negatividade inscrita no coração das relações inter-humanas, que nosso autor

aprofunda a discussão.

Na vida diária, diz Ricoeur, a atitude mais comum não é a da simpatia ou da

compaixão, mas a do conflito. Nesse, o que se expressa não é a analogia, mas a

oposição das consciências, a radical alteridade dos sujeitos.

O recurso para a superação da atitude meramente afetiva que caracteriza a idéia

de simpatia, em Husserl e Scheler, é, para Ricoeur, o retorno à meditação kantiana sobre

a noção de pessoa, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes. A consideração

pelo outro, o cuidado com o outro, é originalmente respeito à pessoa do outro, porque

sua natureza o põe como fim em si, querer que limita o nosso querer, alguém que não é

simplesmente meio de realização de desejos, utilidade à disposição de um querer

individual.

Recuperando a simpatia como cuidado e afeto no âmbito do respeito ao outro,

Ricoeur mostra que esta última noção coordena e integra não apenas os afetos que

apontam a benevolência em relação ao diverso de sí, mas também a dramaticidade dos

conflitos possíveis entre os sujeitos, e os afetos atinentes a essa dramaticidade: ódio,

ciúme, vontade de dominação, etc.


3

A importância de Kant é a de ter posto em evidência a temática da alteridade

associada às de pessoa, de dever, de reconhecimento, na vida ética.

Na dimensão ética, “a existência do outro é uma existência-valor” 3 , que

constitui sua dignidade.

Assim, a lei que rege a relação entre sujeitos é a do respeito recíproco,

superador tanto da simpatia meramente afetiva, quanto do ódio ilimitado. Tal respeito é

um postulado da razão prática e expõe a ética do dever que caracteriza a reflexão

kantiana.

Inspirando-se em Kant, mas buscando ultrapassar o caráter formal da obrigação

e do dever, implicados em sua ética, nosso autor evidencia a exigência de se conciliar,

no plano da vida efetiva, da vida histórica, a simpatia e o conflito.

Trata-se de arrancar “a simpatia de sua tendência romântica, quer de se perder

no outro, quer de absorver o outro em sí (...) é pelo respeito que partilho a alegria e o

sofrimento do outro como seus e não como meus (...)” 4

O primeiro sentido do cuidado aparece, assim, ligado à noção de respeito, na

qual se entrelaçam as de simpatia, e reconhecimento, enquanto superação de conflitos.

Invertendo o movimento de redução fenomenológica que expõe, no mundo das

coisas, o seu ser através do seu aparecer, a fenomenologia voltada para a descoberta da

pessoa recoloca o aparecer no ser. Isso significa que a posição do outro implica

descoberta do amor como respeito e deste como amor prático, na meditação sobre o

dom, que anuncia a existência ética.

É nos escritos Sí-mesmo como um outro e Percurso do reconhecimento que a

complexificação da noção de cuidado se faz, na obra de nosso autor.

3
id., ibid. Paris: Vrin, p. 276.
4
Id., ib id., p. 391.
4

A vida ética pode ser sintetizada na fórmula: “Viver a vida boa, com e para os

outros, em instituições justas”, diz Ricoeur no capítulo 7 da obra Sí- mesmo como um

outro 5 .

É na análise do tema da alteridade que aí emerge o segundo sentido de cuidado,

para nosso filósofo: a solicitude.

A solicitude expressa, no plano das relações interpessoais, a estima do outro,

enquanto distinto de nós.

Cuidado é estima de si e estima do outro, reconhecimento e atenção ao outro.

A estima de si é o fundamento da busca da vida boa, do bem-viver; a estima do

outro, da busca da justiça, da amizade, da reciprocidade, da superação da violência. É

reconhecimento do caráter insubstituível do outro enquanto pessoa.

A solicitude enquanto cuidado consigo e com o outro, está vinculada à similitude

entre si e o outro “que não é só apanágio da amizade (...) mas de todos as formas

inicialmente desiguais do laço entre sí mesmo e o outro. A similitude é o fruto do

intercâmbio entre estima de si e solicitude em relação ao outro” e expõe o paradoxo e a

equivalência de “estima do outro como um sí-mesmo e a estima de si-mesmo como um

outro” 6 .

A solicitude em relação ao outro se expressa, no plano da vida social como

igualdade e eqüidade, pois a justiça a pressupõe, quando o campo de aplicação daquela

se torna a humanidade como um todo.

Os laços entre solicitude e respeito, solicitude e norma, são explicitados pelo

filósofo, quando este põe em relêvo o caráter dialogal da vida ética. No plano

interpessoal, diz ele, justiça é respeito; no plano coletivo, é norma, expressão

institucional do querer viver junto.

5
Id., Soi-même co mme u m autre. Paris: Seuil, 1990, p. 119 e segs.
6
id., ib id., p. 226.
5

Reconhecendo, no entanto, o caráter intencional-conflitivo da vida em

sociedade, e o trágico do viver, expresso na possibilidade do ser-com fazer surgir

antagonismos que ameacem o respeito, o cuidado, a solicitude, o filósofo trata de

compreender em profundidade, visando encontrar modos de superá- lo, o paradoxo do

existir com os outros: a possibilidade de violência.


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Partindo da “oposição bipolar entre a pessoa e a coisa” , nosso autor

fundamenta o cuidado com o outro na afirmação da na tureza racional como valor em sí,

fim em sí, já postulada por Kant.

No âmbito das questões da bioética, brevemente mencionadas pelo filósofo neste

texto, o critério do respeito ao embrião humano serve de exemplo. Cuidar é não

instrumentalizar a pessoa humana. Focaliza, assim, o problema de se poder discernir ou

não nesse estágio da vida, a existência do embrião como existência de uma pessoa

humana.

O cuidado com a vida representaria o respeito à finalidade do embrião e do feto,


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que é “o de viver e de se desenvolver” como “pessoa humana potencial” que

representam.

A solicitude, o cuidado, que dessa forma se expressa é uma “solicitude crítica”


10
, que passou pelas provas das contradições entre respeito e conflito.

O terceiro sentido de cuidado explicita-se, em Ricoeur, no exame da noção de

reconhecimento11 . Assim como a estima, que se desdobra em estima de sí e estima do

outro, também o reconhecimento é reconhecimento de sí e reconhecimento do outro.

Reconhecimento de si é o desvendamento das próprias capacidades; é memória e

promessa de permanecer sí mesmo, fidelidade a sí, atestação de sí, cuidado consigo.

7
id., ib id., p. 314.
8
id., ib id., p. 316.
9
id., ib id.
10
id., Parcours de la reconnaissance. Paris: Stock, 2004.
11
id., ib id.
6

Assim como o respeito, a estima e a solicitude, também o reconhecimento pode

esbarrar no trágico do existir, uma vez que está sempre ameaçado pela possibilidade do

não-conhecimento, do desconhecimento, em virtude da assimetria, da pluralidade dos

sujeitos humanos.

Reconhecimento do outro é, assim, superação da radical dissimetria entre sí e o

outro, é percorrer o caminho que conduz da dissimetria à reciprocidade.

Presumindo a dissimetria originária na relação com o outro, dois autores

derivam desta a reciprocidade: Husserl, nas Meditações Cartesianas e Lévinas em

Totalidade e Infinito e Outramente. O primeiro aborda o tema no âmbito de uma

ontologia do sujeito; o segundo, numa perspectiva ética.

Considerando a alteridade a partir do “eu”, Husserl fundamenta a possibilidade

de uma comunidade de sujeitos na compreensão do outro como um “outro eu”. Introduz

a noção de analogia entre o eu e o outro apoiando nela a possibilidade da reciprocidade

(Quinta Meditação).

Para Lévinas, é a exterioridade do outro que se impõe a nós como condição de

revelação da transcendência: face, palavra que nos interpela e solicita nossa resposta e

nossa responsabilidade.

Considerando que o reconhecimento está sempre ameaçado pela violência e pela

guerra, Lévinas invoca a “resistência ética”, que se apresenta como obrigação do

diálogo e da não- violência, realizando a relação entre o “eu” e o outro sob a forma da

descoberta do nós.

Trata-se, para ele, de tornar possível a reciprocidade entre desiguais, de

estabelecer a igualdade, afirmando a dimensão ética das relações inter- humanas: a

justiça.
7

Ricoeur, por sua vez, passa em revista os obstáculos apontados por Hobbes à

realização da reciprocidade, na teoria do desconhecimento e do conflito postos como

originários e expressos, na vida humana, pela procura: do benefício próprio, exposto na

competição; da segurança, à custa da desconfiança permanente em relação ao outro; da

glória, pela afirmação da própria reputação.

Ricoeur trata de encontrar um caminho para a firmação da reciprocidade,

buscando, na noção de pessoa, em Grotius e Leibniz, a invenção do sujeito de direito.

Dessa forma, garante-se a reciprocidade e a paz, torna-se possível a intersubjetividade,

pois o reconhecimento mútuo aproxima “ipseidade e alteridade na idéia mesma do

direito”12

O reconhecimento está associado às lutas pelo amor, pela afirmação de sí e do

outro no plano jurídico, pela estima social.

Aquilo que a mutualidade representa no plano das vidas individuais, enquanto

troca de bens, a reciprocidade expressa, no plano social.

O cuidado com o(s) outro(s) traduz-se, assim, como busca da paz: é filia, eros,

ágape, mutualidade, dom: dialética entre o amor e a justiça, presença ao outro.

Em suma, é desdobrando através dos três textos escritos entre 1954 13 e 2004 14 as

relações entre as idéias de respeito, estima, solicitude, reconhecimento que, a nosso ver,

o filósofo estabelece seu denominador comum: a noção de cuidado.

Cuidar é respeitar, estimar, ter solicitude, reconhecer o valor da pessoa humana

em sí e no outro, superando o ódio, o conflito, o desconhecimento, pela afirmação do

amor e da justiça como condições de realização de nossa humanidade.

12
id., ib id., p. 251.
13
id., Sy mpathie et Respect, 1954.
14
id., Soi-même comme un autre, 1990; id., Parcours de la reconnaissance, 2004.
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Se no artigo da Revue de Métaphysique et de Morale a ênfase é posta na reflexão

sobre o respeito, no Sí-mesmo como um outro a ênfase acha-se na meditação sobre a

estima e a solicitude.

Por sua vez, no Percurso do Reconhecimento , a ênfase é posta no exame da

noção mesma que da título ao livro, a de reconhecimento.

Em todos os escritos, embora a ênfase de cada um recaia sobre diferentes

aspectos do cuidado, o entrelaçamento das noções é sempre anunciado ou ao menos

sugerido. Desse modo, ao longo do tempo, a reflexão se desdobra e se aprofunda, na

recorrência, a cada vez sob nova luz, dos temas multifacetados.

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