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FAMÍLIA E CIDADANIA - O NOVO CCB E A VACATIO LEGIS

ANAIS DO III CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA


Coordenador: RODRIGO DA CUNHA PEREIRA
FAMÍLIA E CIDADANIA
O NOVO CCB E A
VACATIO LEGIS
ANAIS DO III CONGRESSO BRASILEIRO
DE DIREITO DE FAMÍLIA
Belo Horizonte -2002
Copyright © 2002 by
iNSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMILIA (IBDFAM)
Pereira, Rodrigo da Cunha.
Família e cidadania - o novo CCB e a vacatio
legis / coordenação de Rodrigo da Cunha Pereira.
Belo Horizonte: IBDFAM/Del Rey, 2002
578p. - 15,5 x 22,5 cm.
ISBN 85-7308-571-1
Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de
Família
1. Direito de família - Brasil. I. Titulo.
CDD: 342.1681
CDU: 347.61 (81)
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Diagramação: Know-how Editoração Eletrônica
Revisão: Cláudia Rodrigues
Ilustração/Capa: Marcus Venuto
"Avós, mãe e tio" - Exposição Diverso Adverso
Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, sejam quais forem os meios
empregados, sem a permissão, por escrito, do IBDFAM.
Impresso no Brasil
Printed in Brazil

Os promotores do III Congresso Brasileiro de


Direito de Família agradecem a todos os que
participaram direta ou indiretamente do evento.
Além do público, dos palestrantes,
dos diretores do IBDFAM e da OAB-MG,
merecem menção os membros da comissão
organizadora e da comissão científica.
Uma referência especial deve ser feita às
instituições e empresas que investiram na
iniciativa. São elas: o Banco do Brasil, as
editoras Mandamentos, Síntese e DeL Rey e,
especialmente, a Faculdade
Mineira de Direito CPUC-MG).

Apresentação

A cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais, berço dos inconfidentes,


sediou mais um momento histórico - pelo menos para aqueles que
atuam direta ou indiretamente na área do Direito de Família. Em outubro
de 2001, entre os dias 24 e 27, cerca de mil profissionais de todo o país
reuniram-se para participar do III Congresso Brasileiro de Direito de
Família.
Nesta terceira edição, o Instituto Brasileiro de Direito de Família
(IBDFAM) e a Ordem dos Advogados do Brasil (Seção Minas Gerais)
cumpriram suas funções institucionais ao elegerem o tema central:
"Família e Cidadania".
A escolha é justificável. Casamentos, uniões estáveis, uniões
homoafetivas, famílias de rua e na rua, famílias monoparentais, decinio de
autoridade paterna, crescimento de famílias chefiadas por mulheres,
paternidade biológica e socioafetiva... Os diversos arranjos familiares
das sociedades atuais obrigam os operadores do Direito de Família a
pensar a organização jurídica com a palavra de ordem da contemporaneidade:
cidadania.
Cidadania significa não-exclusão. É, portanto, a inserção das
várias representações da família na sociedade, é a valorização do sujeito
de Direito em seu sentido mais profundo e ético. E a inclusão e a
consideração das diferenças como imperativo da democracia.
Para estarmos mais próximos do ideal de Justiça, é preciso pensar
uma organização jurídica sobre a família com todos esses ingredientes,
inclusive quebrando conceitos estigmatizantes.
É preciso romper fronteiras, instalar a pluralidade e buscar em
outros campos do conhecimento a compreensão de uma ordenação

jurídica sobre a família que seja libertadora e que assente suas bases no amor
e no afeto. O Direito deve proteger a essência muito mais que a forma.
Com essa perspectiva, o III Congresso Brasileiro de Direito de
Família trabalhou temas polêmicos, tendo como propósito contribuir,
decisiva e objetivamente, com os principais textos normativos sobre a
família. Para tanto, buscou contribuições de outros campos do conhecimento
e de profissionais de outros países, entre eles membros da Sociedade
Internacional de Direito de Família.
Um dos pontos altos do evento foi a promoção de uma histórica
mesa-redonda, na qual se discutiu o novo Código Civil brasileiro, três
meses depois de sua aprovação pelo Congresso Nacional e dois meses
antes da sanção presidencial. Tais discussões provocaram a criação de uma
Comissão de Acompanhamento ao Novo Código Civil brasileiro, pelo
IBDFAM, que tem como função apresentar propostas de mudanças na
legislação pertinente ao Direito de Família no Brasil. Aliás, várias sugestões
do IBDFAM apresentadas entre novembro e dezembro de 2001, período
de Redação Final, foram acatadas e constam do novo texto.
Através da ação politico-institucional, da promoção de eventos do
porte do III Congresso Brasileiro de Direito de Família e com a publicação
destes Anais, acreditamos estar cumprindo nosso papel social.
Nesta publicação, reunimos a produção teórica da maioria dos
palestrantes do evento. Gostaríamos de ressaltar que nem todos puderam
entregar os textos de suas palestras, o que nos obrigou a publicar os Anais
sem algumas contribuições.
De todo modo, esta edição reúne um diversificado material teórico,
que poderá subsidiar tanto os que exercem a profissão quanto aqueles que
desejam se aprofundar no estudo do Direito de Família.
Junto com a sociedade, queremos discutir e propor novos paradigmas
para que o Direito de Família seja uma designação a mais para a Justiça.

Marcelo Leonardo
Presidente da OAB/MG

Rodrigo da Cunha Pereira


Coordenador do III Congresso Brasileiro de Direito de Família

Sumário

Abertura
FAMÍLIA, DIREITOS E UMA NOVA CIDADANIA
Lui~ Ea’son Fachin/PR 15
Ternário 1
DIREITO DE FAMÍLIA SEM FRONTEIRAS
E AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA FAMÍLIA
1 QUESTÕES DE FAMÍLIA: A IMPORTÂNCIA
DA ESTRUTURA FAMILIAR E DA INTEGRIDADE
FAMILIAR
Ljnn D. Wardle/EUA 25
2 EM BUSCA DA FAMÍLIA DO NOVO MILÊNIO
Rosana Fachin/PR 59
3 ART. 1.601
João Baptista Vilela/MG 71
4 LIBERDADE SEXUAL E DIREITOS HUMANOS
Maria Berenice Dias/RS 85
5 ENTIDADES FAMILIARES CONSTITUCIONALIZADAS:
PARA ALÉM DO NUMERUS CLAUSUS
Paulo Luís Netto Lobo/AL 89
6 A NATUREZA JURIDICA DA RELAÇÃO HOMOERÔTICA
José Carlos Teixeira Giorgis/RS 109
7 FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS E CONCUBINATO
ADULTERINO
Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho/AL 143

8 MULTICULTURALISMO E DIREITO DE FAMÍLIA


NAS NORMAS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
Carlos Bouçault/SP 163
9 IMPEDIMENTOS MATRIMONiAIS NA UNIÃO ESTÁVEL
Euclides Benedito de Oliveira/SP 173
Ternário II
FAMÍLIA, DIREITOS HUMANOS
E OS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE HUMANA
1 PENSÃO ALIMENTÍCIA ENTRE CÔNJUGES
E O CONCEITO DE NECESSIDADE
Maria Ara~y Meneses da Costa/RS 195
2 PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA DE ALIMENTOS
Alvaro Vilaça Azevedo/SP 227
3 A PRESUNÇÃO ABSOLUTA E RELATIVA NO ESFORÇO
COMUM PARA AQUISIÇÃO PATRIMONIAL NA UNIÃO
ESTÁVEL
António Carlos Mathias Coltro/SP 247
4 DIREITO SUCESSÓRIO DOS COMPANHEIROS
Zeno Veloso/PA 267
5 DO NOME DA MULHER CASADA: DIREITO DE FAMÍLIA
E DIREITOS DA PERSONALIDADE
Silmara Junj de A. Chine/ato e Almeida/SP 293
6 A ESTATIZAÇÃO DAS RELAÇÕES AFETIVAS
E A IMPOSIÇÃO DE DIREITOS E DEVERES
NO CASAMENTO E NA UNIÃO ESTÁVEL
Maria Berenice Dias/ES 301
7 A PRÁTICA DA MEDIAÇÃO
Eliana Riberti Nazareth/SP 309
8 A POLÍTICA PÚBLICA DA MEDIAÇÃO
E A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA
Aguida Arruda Barbosa/SP 317
9 RÉQUIEM PARA UMA CERTA DIGNIDADE
DA PESSOA HUMANA
Antonio Junqueira de Azevedo/SP 329

10. O CASAMENTO COMO CONTRATO DE ADESÃO


E O REGIME LEGAL DA SEPARAÇÃO DE BENS
Paulo Uns e Silva/ RJ 353
Ternário III
O ESTADO E OS ESTADOS DE FILIAÇÃO
1 A PRESUNÇÃO DA PARTENIDADE NO CASAMENTO
E NA UNIÃO ESTÁVEL
Luís Paulo Cotrim Guimarães/MS 363
2 DIREITO Á IDENTIDADE GENÉTICA
Heloisa Helena Barbosa/RJ 379
3 FILHOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA
Jussara Maria Leal de Meirelles/PR 391
4 RESPONSABILIDADE CIVIL NA RELAÇÃO
PATERNO-FILIAL
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironalea/SP 403
5 IMPASSES NA CONDIÇÃO DA GUARDA
E DA VISITAÇÃO - O PALCO DA DISCÓRDIA
Leila Maria Torraca de Brito/RJ 433
6 PATERNIDADE BIOLOGICA, SOCIOAFETIVA,
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E DNA
Maria Christina de Almeida/PR 449
7 POSSE DO ESTADO DE FILHO
Denise Duarte Bruno/ES 461
Ternário IV
INTERFACES E CONEXÕES DO DIREITO DE FAMILIA
1 O ESTRESSE NO EXERCÍCIO DO DIREITO DE FAMÍLIA
Giselle Groeninga/SP 475
2 AS FAMÍLIAS DO BIOCAPITAL
Betch Cleinman/RJ 489
3 PENSÕES SECURITÁRIAS NO DIREITO DE FAMÍLIA
Guilherme Calmon Nogueira da Gama/RJ 505

4 A TUTELA COMINATÓRIA NO DIREITO DE FAMÍLIA


RolfMadaleno/RS 533
5 TUTELAS ANTECIPADAS E PROVAS PRÉ-CONSTITUÍDAS
NA UNIÃO ESTÁVEL
Newton Teixeira Carvalho/MG 565

Abertura

FAMÍLIA, DIREITOS E UMA NOVA CIDADANIA1

Luiz Edson Fachin


Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Paraná. Doutor em "Direito das
Relações Sociais" pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo. Diretor da Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Paraná. Membro da Internatíonal Society of
Family Law e do IBDFAM.

"Amor era a incerteza".


(Nélida Pinon, A casa da paixão)

_________________ Sumário __________________

1. Introdução. 2. Cidadania e realidade social. 3. Cidadania e


subjetividade. 4. Cidadania e codificação. 5. Conclusão.

1 INTRODUÇÃO

A família constitui um corpo que se reconhece no tempo. Uma


agregação histórica e cultural como espaço de poder, de laços e de liberdade.
Uma aliança composta para representar harmonia e paradoxos. Uma agre-
miação destinatária de projetos e de discursos, especialmente da alocução
normativa, junção que encarna o elo entre o Direito, a família e a sociedade.
Por isso, “a família cuida, como uma das componentes educativas
mais importantes, da reprodução dos caracteres humanos tal como os
exige a vida social”, como escreveu Hor/eheimer3
É uma arena na qual tudo está sempre para ser dito, o que recons-
trói, no presente, os limites do passado sob as vestes da modernidade e pro-
1 Conferência de abertura do III CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA.
‘Duro Preto (MG), 24 de outubro de 2001.

2 Autoridade e família. ln: HORKHEIMER, Max (Coord.). Teoria crítica: uma


documentaçlo.
Trad. de Hilde Cohn. SIo Paulo: Perspectiva/Edusp, 1990, p. 214.

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LUIZ EDSON FACHIN

jeta para o futuro as interrogações próprias do destino que se quer ver


prometido. Nela repousam a vida e a morte, o ser e o não-ser, a ambigüi-
dade e a ambivalência que escrevem sobre os viventes todos os fatos, as
coisas e os mitos.
Migramos, entre hiatos e contradições, a fim de compreender o
mundo da família e a família no mundo.
Duas miradas por meio do conceito de cidadania podem explicitar
o que junta o corpo à família e a linhagem que planta os semblantes da
família na sociedade.

2 CIDADANIA E REALIDADE SOCIAL

O domicílio da cidadania da família brasileira ainda não foi fixado.


Sobre a mesa da contemporaneidade está o que se relegou sob os véus da
formação histórica e cultural do Brasil. O legado histórico é o da lei de
exclusão, presente na permanência de valores cravados num tempo e num
espaço.
Cinco séculos elaboraram, no campo e nas cidades, um conceito de
não-cidadania ou quando menos de uma cidadania atrofiada. Ingressamos
no século XXI com os pés atolados no fim da Baixa Idade Média.
Da alienação oriunda da cultura religiosa do período medieval
encontramos, agora, um novo ópio3 que, embora distinto, também toma
ares de religião. Na moda corrente do insulamento, projeta o consumo
como o espaço sem cidadãos. No mercado espelha-se a cultura desterrito-
rializada, e da pessoa solidária emerge um ser solitário. O coletivo abre
espaço para a cena do espetáculo e o individual cede lugar ao valor.
Há mais de 35 milhões de famílias no Brasil. Nelas, quantos
habitantes são efetivamente cidadãos? “E quantos nem sequer sabe que
não o são?”4
Sabe-se que o indivíduo, na concepção clássica do direito, adquire
com o nascimento uma gama abstrata de direitos subjetivos pessoais e

3 O moleiro do qual tratou Carlo Ginsbourg na obra O quefjo e os vei~nes traduz


um perfil de
interlocuçao com a cultura dominante, modificando-a e não a recebendo
paeientemente. Nem
todos os “moleiros” da contemporaneidade estão embriagados pelo ópio do qual
este texto trata.
4 É o que indagou, com acerto e lucidez, Milton Santos à página 7 da sua obra O
e.~a~o do cidadão.
3. cd. São Paulo: Nobel, 1996.

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FAMÍLIA, DIREITOS E UMA NOVA CIDADANIA

inalienáveis. Entre nascer e viver há, nada obstante, uma sensível distân-
cia. Basta perguntar o quanto realizam em suas prerrogativas sociais,
como direito à educação, à saúde, ao trabalho, à justiça, à liberdade,
enfim, a uma vida digna.
O indivíduo insular compõe o tempo em que cidadão era apenas
considerado membro da sociedade nacional, como se afirmava no século
XVII, ou aquele que tinha o direito de associação, como se reconheceu
no século XVIII. O século pretérito chegou à proclamação formal dos
direitos sociais, num belo ensaio que principia nos direitos politicos
individuais, passa pelo reconhecimento dos direitos coletivos até alcan-
çar os direitos sociais, aptos a garantir uma proteção mínima e um padrão
de vida decente. No entanto, a ponte entre o sujeito virtual de direitos e
o sujeito-cidadão está para ser erguida.
A mesma reflexão pode, por analogia, dirigir-se à família no terreno
da cidadania. Progressivamente, com o surgimento do desenho de afeto
no plano dos fatos, ela se inscreve numa trajetória de direitos subjetivos.
Do espaço do poder abre-se para o terreno da liberdade: o direito de ser
ou de estar, e como se quer ser ou estar.
Entre tornar-se conceitualmente família e realizar-se como tal, há
uma fenomenal distância. O desenlace do conceito de família-poder para
a família-cidadã trata também de um programa a construir.
A compreensão do texto constitucional vigente vai dando espaço
para que a família, nessa concepção contemporânea do Direito, se inclua
como ente aberto e plural.
É desse degrau de efetivação da cidadania que reclama a
pluralidade constitucional da família, não exclusivamente matrimoniali-
zada, diárquica, eudemonista e igualitária. Este é um modo de ver. Não
somente dessa percepção se abrem os horizontes da contemporaneidade.

3 CIDADANIA E SUBJETIVIDADE

Outro olhar sobre a vida e a família atual pode revelar que ela
felizmente ainda teima em ser um conto de fadas. Nele, a condição
humana e o desejo da vida eterna projetam dentro da família, em seus
múltiplos desenhos, uma perplexidade que merece exame. O ferrão dos

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LUIZ EDSON FACHIN

limites relativamente reduzidos do tempo que cada indivíduo frui na sua


existência coabita com o anseio da permanência, do duradouro.
E les foram felizes para sempre era o dístico que encimava o brasão dos
enlaces. Mais tarde aprende-se que seja infinito enquanto dure. E nos dias
correntes assume-se que vweram felizes por um certo tempo.
Esse é o desconcertante presente que pode ser visto oscilando entre
o princípio da realidade e o princípio do prazer. A bondade, a beleza e a
harmonia freqüentam a mesma residência da inconsideração, da maldade e
do desequili’brio. Almeja-se a fábula da felicidade povoando todos os dias,
e o cotidiano maduro bate à porta. Pretende-se uma vida que realize ao
menos um pequeno punhado de singelos sonhos, e a realidade assombra
como se fosse uma madrasta malvada, como nos contos de fadas.
Sustenta-se uma concepção plural e aberta de família que, de
algum modo, conforte, agasalhe e dê abrigo durante o trânsito da jornada
de cada um e de todos coletivamente. Nela se ambiciona todo o desfrute
possível sem perder a percepção poética da própria existência. Anda-se,
pois, no equilibrio da corda bamba do impossível.
Vejamos um exemplo. Os Irmãos Grimm contaram, na versão mais
conhecida, que é a de 181 2,~ a história de Chapeuzinho Vermelho, dando,
no final, o castigo merecido ao lobo. Nela, a imagem da menina en-
cantadora esvairia-se, caso fosse realmente morta ao ser engolida pelo
lobo; por isso, sendo uma história admonitória, feita de ameaça delibe-
rada, abre espaço, ao término, para o consolo e a recuperação.
A ameaça de acabar sendo devorada está no núcleo de Chapeu-
zinho Vermelho. O lobo é o sedutor que acaba morto. Eis o terreno das
contradições, uma fascinação quase mortal pela vida e pelos seus arrojos.
Chapeuzinho Vermelho deixa o lar por sua conta e risco, não teme
o mundo externo. E nele pode encontrar a vivência ou o perecimento.
Diz o lobo a Chapeuzinho: veja como são lindas as flores ao seu redor;
por que não dá uma olhada? Ela vê os limites de urna estrada estreita,
quer parar para ouvir o canto dos pássaros, quer se encantar com a
floresta, sem lembrar da avó que dissera para caminhar de modo
conveniente e não sair da estrada.

5 Ver, a propósito, BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fada. Rio de


Janeiro: Paz e
Terra, 1980, p. 206.

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PtJC MIMAS POÇOS

FAMÍLIA, DIREITOS E UMA NOVA CIDADANIA

Eis a colisão e o desacordo, próprias da vida em família, também


presentes quando o lobo se defronta com o caçador. A tendência asso-
cial, egoística e potencialmente destrutiva se vê, frente a frente, com
propensões altruísticas, sociais e protetoras. Paradoxos que se acasalam
no domínio do ser e no círculo da própria família,
Se a vida e a família teimam, por felicidade ainda, em ser um conto
de fadas, é dos riscos que se renasce e é na crise que se frutifica. Rom-
pimentos explicitam a caminhada: ao dar as informações detalhadas para
o lobo encontrar a casa da avó, Chapeuzinho Vermelho contribui metafo-
rtcamente para a morte da avó. O amor e o desate juntos na superação da
genealogia e da descendência.
Nas rupturas, lembra-se a ação violenta do caçador em abrir o
estômago do lobo para salvar a avó e Chapeuzinho Vermelho. Ser
engolida pelo lobo não é o fim da história, mas vem daí o receio de se
expor ao outro lado da margem.
Um modelo de família metaforicamente morre quando o lobo se
revela e a engole, mas quando aquele modelo sai do estômago do lobo,
renasce num plano superior, diferente, não mais como entrou e sim para
uma nova marcha que se reconstrói todos os dias.
Essa odisséia reclama chancela no espaço social e no discurso
jurídico. Não raro, o campo normativo mostra-se apto a organizar os
conceitos e a própria vida nas asas dogmáticas da codificação.

4 CIDADANIA E CODIFICAÇÃO

No tempo das fragmentações legislativas e da despatrimonializa-


ção do Direito Privado, da constitucionalização do Direito de Família e
da defesa principiológica e valorativa das relações de afeto, o que se viu
produzir, no campo das representações políticas do Estado, foi o novo
Código Civil brasileiro.
A pergunta que não quer calar é aquela que resposta afirmativa não
vai encontrar: qual é a contribuição da nova codificação para a superação
dos dilemas que enfrenta a realização da cidadania no Brasil?
Pode-se dizer que debater por 25 anos um novo Código Civil faz
parte do legado brasileiro, pois o projeto Beviláqua teve 16 anos de

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LUIZ EDSON FACHIN

debate no Congresso. Mas a questão fundamental, no plano da cidadania,


é indagar para quem se dirige o novo Código.6
Tal interrogação compete ao exercício da cidadania como a define
o Código: todos aqueles capazes de adquirir direitos e contrair obriga-
ções, como comprar, vender, trabalhar, constituir família, testar, herdar,
possuir e ser proprietário, e assim por diante. Eles, os portadores de
direitos civis, enfim, os cidadãos.
Todavia, o novo Código Civil nasce desatualizado e excludente,
como em relação ao debate sobre a biogenética, as uniões estáveis em
sentido amplo, a família fraterna (entre irmãos ou irmãs), a filiação socioa-
fetiva, para dar alguns exemplos.
Os fora dessa lei não estãofora da lei quando é de outra lei que se
trata.
A esperança é a alavanca que nos sustenta contra as adversidades. Não
será precisamente de códigos que esse porvir reclama e sim da superação dos
algoritmos que querem, preventivamente, explicar e conter a vida.
Superar uma percepção fundamentalista da família na estrutura
que simplifica o bem e o mal. A família é mais que essa dualidade, é
ambivalente, é complexa e sem polarizações.

5 CONCLUSAO

Não haverá cidadania na família sem a plena cidadania social. A


violência dá-se em diversos planos, notadamente na exclusão social.
Impende resistir à transformação do cidadão em consumidor, com a
supressão de direitos elementares.
Advogamos a formação de conceitos sempre a posteriori, especial-
mente para não enjaular, em numerus clausus, a arquitetura que, com base
no afeto, pode fazer emergir a família. A jurisprudência deve se abrir para
compreender e empreender os novos desafios, sem preconceitos ou
visões preconcebidas.
Resistir ao triunfo de uma superficial filosofia de vida que “en-
troniza o egoísmo como lei superior, porque é o instrumento da buscada

6 Essa foi a interrogaçio pertinente que se fez. GRINBERG, Keila. Código Civil e
cidadania. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 11.

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FAMÍLIA, DIREITOS E UMA NOVA CIDADANIA

ascensão social”, e que “privilegia os meios materiais e se despreocupa


com os aspectos finalistas da existência”, como escreveu Milton Santos.7
Compreendemo-nos como integrantes da cidade que forma a
cidadania, mas sabemos que dessa urbe politica há os que foram banidos
e os que não foram incluídos. Aqueles que entre o princípio do prazer e o
princípio da realidade foram remetidos ao desterro. Não apenas estão
fora do Código, mas estão em outros códigos, e nesses mares continuarão
se enfrentando a ordem da lei e o horizonte do desejo.
O antagonismo que se apresenta não é novo. Basta ver dois
exemplos que trazem à cena o poder que o casamento monógamo repre-
senta na história humana. No Renascimento, conta Horkheimer,8

“surgiram duas lendas, que encontraram sua expressão imortal


em obras de arte: Romeu e Julieta e Don Juan. Ambas glorificam a
rebelião do elemento erótico contra a autoridade da família:
Don Juan contra a moral aprisionadora da fidelidade e da
exclusividade, Romeu e Julieta em nome dessa moral. A mesma
relação se manifesta nestas figuras apesar de seu contraste; no
fundo, elas se encontram na mesma situação. O abraço de
Romeu traz para Julieta a felicidade que somente Don Juan
proporciona à mulher, e este vê em toda moça uma Julieta.
Ambas deveriam renovar a força criativa que é ao mesmo tempo
física e psíquica e desistir de todos os princípios masculinos, se
quiserem se subordinar. Tais figuras da lenda exprimem o
abismo entre o direito do indivíduo à felicidade e a exigência
soberana da família. É um dos antagonismos entre as formas de
sociedade e as forças vivas, que estas criações artísticas refle-
tem. Contudo, nas exceções se confirma a regra”.

Para isso, a todos se apresenta uma tarefa educativa. “O verbo


educar significa exatamente conduzir a algum lugar para o exterior, para
fora deste mundo: aparelhar. Aqui, eu adormeço, neste mundo eu

7 SANTOS, Milton. O eipaço do cidadão. 3. ed. SIlo Paulo: Nobel, 1996, p. 13.

8 Autoridade e família, lo: HORKHEIMER, Max (Coord.). Teoria crítica: uma


documentação.

Trad. de Hilde Cohn. São Paulo: Perspeetiva/Edusp, 1990, p. 234.

21
LUIZ EDSON FACHIN

repouso. Aqui jaz”, escreveu Michel Serres para afirmar que “às vezes, a
,, 9

separação é uma boa solução do amor


Nessa direção, cumpre decifrar que o corpo da família, sem deixar
de ser o que é, vive a paixão de ser outro. Sobrevive, pois, na razão jurídica
e no espaço social, prefaciando o futuro com a afirmação de sua história
em contínua reconstruçao.
Uma das propostas é edificar a família da amizade como vínculo.
Propomos a família cidadã pela ternura e pelo afeto. Abrir espaço para o
reconhecimento da inclusão na cidadania da amizade, que é, quem sabe,
o que mais nos resta no tempo da intolerância.
Quiçá na família se veja o que Cícero1~~ viu na amizade: “Quem olha
para um amigo verdadeiro vê nele, por assim dizer, uma imagem (exemp la)
de si mesmo. É por isso que os amigos, ainda que ausentes, estão pre-
sentes; ainda que pobres, tem abundância, ainda que fracos, são fortes, e,
o que é mais difícil de dizer, ainda que modos, estão vivos
Estamos, como escreveu EdgarMorin,11 no começo do conhecimento.
Partir para essa travessia mesmo com a consciência da incerteza e do acaso é
a fonte que nos ilumina a matar a sede do que não tem nome e a saciar a fome
da utopia que escreve o amanhã.

9 SERRES, Michel. O contrato natural. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p.


123.

10 Apud ORTEGA, Francisco. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida,


Foucault. Rio de
Janeiro: Relumc Demurá, 2000, citada à p. 69 da obra.

11 MORIN, Edgar. O paradigma perdido: a natureza humana. 4. cd. Mira-Sinta — Mcm


Matins:

Publicaçôes Europa-América, (s.d.), p. 212.

22

Ternário 1

DIREITO DE FAMÍLIA SEM FRONTEIRAS


E AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
DA FAMÍLIA
1

QUESTÕES DE FAMÍLIA:
A IMPORTÂNCIA DA ESTRUTURA FAMILIAR
E DA INTEGRIDADE FAMILIAR*

Lynn D. Wardle
Professor de Direito, J. Reuben Clark Law School, Brigham
Young University, Provo, UT 84602, USA.
Presidente da International Society of Family Law — ISFL.

__________________ Sumário __________________

1. Introdução. 2. O porquê da importância da forma ou


estrutura familiar. 3. O porquê da importância da integri-
dade familiar. 4. Por que as famílias importam para a socie-
dade. 5. Conclusão. 6. Apêndices.

1 INTRODUÇÃO

Vivemos em uma aldeia global. A televisão, os satélites, a internet,


os telefones celulares e muitas outras mídias nos conectam através dos
tios, oceanos, montanhas, fronteiras e ravinas culturais por meios que
nossos avós nunca poderiam imaginar. Há aproximadamente trinta anos,
em um discurso na Sociedade Americana para o Avanço da Ciência, em
Washington, d. C., em 29 de Dezembro de 1972, o grande cientista
Edward N Loren~ sugeriu conexões globais ao perguntar: “O bater das
asas de uma borboleta no Brasil desencadeia um tornado no Texas?”1
Estudantes de direito comparado sabem que as interconexões globais

* Partes deste trabalho foram publicadas anteriormente.

1 LORENZ, Edward N. The essence ofchaos, 181 (1993).

25

LYNN O. WARDLE

não são apenas ecológicas; elas também são convergências sociais,


econômicas e legais.2 Portanto, ao falar hoje da importância das famílias e
da estrutura familiar na sociedade, estamos falando a respeito de
questões globais e de preocupações internacionais. O que acontece em
Vermont, EUA, ou Amsterdã, Holanda, afeta as famílias no Brasil.
Examinarei, no presente trabalho, três questões: (1) As famílias
importam à sociedade, (2) A estrutura familiar importa à sociedade? e (3)
A integridade familiar importa à sociedade? O grande escritor russo Leon
To/stqy sugeriu a resposta a estas perguntas no parágrafo inicial de Anna
Karenina: “As famílias felizes são todas iguais; toda família infeliz é infeliz
à sua própria maneira.” Tolstqv não quis dizer que as famílias precisam ser
idênticas para ser felizes, mas que certos princípios são necessários para a
felicidade e o sucesso na vida familiar, como em outras áreas do empre-
endimento humano; aqueles que vivem segundo esses princípios são
geralmente felizes e aqueles que não, eventualmente não o são. As famílias
importam, e a forma e integridade das famílias (essencialmente a definição
e função das famílias) trazem conseqüências tremendas para a sociedade e
para os indivíduos.3

2 O PORQUÊ DA IMPORTÂNCIA DA FORMA


OU ESTRUTURA FAMILIAR

A sabedoria convencional sustenta que a estrutura e a forma da


família, na realidade, não importam, que a forma não tem um efeito
significativo na substância ou na qualidade do relacionamento e nem

2 Como disse um grande estudioso de direito comparado: “O direito


consuetudinário e o direito
civil est5o caminhando por estradas paralelas, em direçlo a um destino comum.”
MEI{RYMAN,
John Henry. On the corn’ergence (and divetgence) of/he dvii iaw and the common
law, 17 Stan. J. Int’l
L., 357, 388 (1981).

3 Ver de modo geral WARDLE, Lynn D. The fundamental importance of laws


protecting the
marriage-based family. In: Liber Amicorum, Marie-Thérése-Muelders- Klein, Droit
cornparé dei-
personnes et de lafamilie, 639-659 (Bruylant Bruxelles, 1998); WARDLE, Lynn D.
Sarne-sex
marriage and the lirnits of legal pluralism. In: The changing fami~y 381-396
(Oxford, Hart
Publishing, 1998); WARDLE, Lynn D. Legal claims for sarne-sex rnarriage: efforts
tu legitirnate
a retreat from rnarriage by redefining marriage, 39 So. Tex. L. Rev. 735-768
(1998);
WARDLE, Lynn D. Liberty equality & the quest for farnily justice in the United
States. In:
Farnilles & justice 208-229 (Brussels: Bruyiant, 1997).

26

QUESTÕES DE FAMÍLIA: A IMPORTÂNCIA DA ESTRUTURA FAMILIAR .. -

conseqüências significativas para a sociedade. A sobrevivência desse


mito é surpreendente porque atualmente se tem irrefutável evidência
empírica de que a estrutura ou forma da família é de grande importância
para a felicidade individual e para a estabilidade social. Todos os relacio-
namentos não são iguais na vida real. A família baseada no casamento é
singularmente benéfica para o bem estar dos indivíduos e das sociedades.
Por exemplo: a coabitação não marital, ter e criar filhos fora do laço
matrimonial e uniões do mesmo sexo têm aumentado dramaticamente
em multas nações. No entanto, a evidência é esmagadora de que essas
“formas familiares” alternativas são arautos de grande sofrimento para os
indivíduos e causas de substancial desastre social e econômico para as
naçoes.

2.1 As conseqüências da coabitação não marital

A coabitação não marital aumentou nos EUA, especialmente entre


os jovens. Como demonstra o apêndice A, entre 1970 e 1999, a coabitação
não marital aumentou mais de 800 por cento nos EUA. De meio milhão
passou para aproximadamente 4,5 milhões; entre pessoas abaixo de 25
anos, o aumento foi de 1.600 por cento, de 55 mil subiu para 824 mil. O
número de casais não maritais, que têm crianças abaixo de 15 anos
morando com eles, sofreu elevação de quase 800 por cento, de 196 mil
para mais de 1,5 milhão de casais. Em 1997 aproximadamente metade das
mulheres não casadas entre a idade de 25 e 39 anos relataram que haviam
coabitado, e quase um quarto dessas mulheres ainda viviam com um
parceiro não marital.4
A coabitação não marital foi amplamente examinada por cientistas
sociais e descobriu-se que ela acarreta riscos significativos justamente no
que diz respeito à maioria das razões e metas da coabitação não marital.
Por exemplo, casais não casados que coabitam têm uma renda familiar de
7.200 dólares por adulto comparada à de 10.800 dólares por adulto para os
casais casados; e as crianças que moram com casais que coabitam têm
uma probabilidade até quatro vezes maior de viver abaixo do nível de

4 POPENOE, David; WHITEHEAD, Barbara Dafoe. Should we live together? What young
adults need tu know about cohabitation before marriage. A Cornprehensive Review
of Recent
Research, p. 3 (Thc National Marriage Project: The Next Generation Series,
1999).

27

LYNN D. WARDLE

pobreza do que as crianças que vivem com casais casados.5 “Enquanto


que em 1996 o índice de pobreza para crianças que vivem em lares de
casais casados era ao redor de 6%, para crianças morando em lares de
coabitantes era de 3l0/o ...“~
A coabitação não é tão estável ou de longa duração como o ca-
samento; menos de um terço de todo relacionamento de coabitação
sobrevive cinco anos, e a coabitação antes do casamento “atualmente
leva a casamentos cada vez menos estáveis~~ e “enfraquece a instituição
do casamento, minando ‘seu alicerce central de continuidade’.”7 Os
casamentos que se iniciam sem coabitação anterior tinham 45 a 55 por
cento menos probabilidade de serem dissolvidos do que aqueles que se
iniciaram com coabitação; e a probabilidade de dissolução, em qualquer
intervalo de seis meses, é de 63 a 71 por cento menor se o casamento não
foi precedido de coabitação.8
“Os casais coabitantes têm índices maiores de violência do que
casais casados. A violência grave [em um estudo] era quase cinco vezes
mais provável nas relações de coabitação [do que nos casamentos].”9 Da
mesma forma, um es tudo inglês de 1993 realizado pelo Family Education
Trust, utilizando dados de casos documentados de abuso e negligência de
crianças entre 1982 e 1988, encontrou um alto grau de correlação entre
abuso de crianças e o estado marital dos pais. Especificamente, o estudo
inglês encontrou que — comparado com uma família nuclear estável — a
incidência de abuso era 33 vezes maior quando a mãe estava vivendo
com um namorado não aparentado da criança. E mesmo quando o
namorado residente no lar era o pai biológico da criança, as chances de
abuso ainda eram 20 vezes mais prováveis.10
Em sua revisão exaustiva dos dados científicos a respeito de
coabitação não marital, Dr. Popenoe e Whitehead relataram que “os

5 MANNING, W. D.; LICHTER, D.T. Parental cohabitation and chi/dren’ir economic


well-being, 58 J.
Marr. & Fam. 998 (1996) como descrito em 29 Fam. Plng. Persp. 143 (1997).

6 Popenoe and Whitehead, supra.

7 WU, Zhcng; BALAKRISHNAN, T. R. Disso/ution ofpremaütal cohabitation in Canada,


32
Demography 521, 526, 529 (1995).

8 TEACHMAN, Ja)’ D.; THOMIAS, Jeffrey; PAASCH, IKathleen. Legal status and the
stabi/i~y of

coresidential nnions, 28 Demography 571, 579 (1991).

9 BUSBY, Dean M. Violence in the family. In: Fami/y research, a 60-year review,
1930-1990, p. 361

(Steven G. Bahr, cd., 1991).

10 Faith Abbot. No bomb, no book. The human 4fr rev., Winter 1998, p. 31, 43

28

QUESTÕES DE FAMÍLIA: A IMPORTÂNCIA DA ESTRUTURA FAMILIAR

relacionamentos de co abitação tendem a ser menos satisfatórios do que


os de casamento.”” Eles também observaram que: “Os índices anuais de
depressão entre casais coabitantes são mais do que três vezes o índice
entre os casais casados. E as mulheres, nos relacionamentos de coabita-
ção, têm mais probabilidade de sofrer abuso psíquico e sexual.”12
Homens que coabitam têm quatro vezes mais probabilidade, do que
maridos, de trair suas parceiras e as mulheres coabitantes têm oito vezes
mais probabilidade, do que as esposas, de serem infiéis a seus parceirosi’3
A coabitação é claramente uma forma de relacionamento que é instável,
perigosa, socialmente prejudicial.

2.2 As conseqüências da criação de filhos fora


do laço conjugal

O último quarto de século tem assistido, em vários países, a um


dramático aumento na criação de filhos por mulheres não casadas,
inclusive nos EUA. As pesquisas realizadas nos Estados Unidos da
América (apêndice B) mostram que o índice de crianças nascidas fora do
laço conjugal tem subido muito rapidamente, em mais de 600 por cento
nos últimos quarenta anos. Em 1960, cinco por cento de todos os
nascimentos ocorriam fora do laço conjugal; em 2000 um terço de todos
os nascimentos eram de crianças nascidas fora do laço conjugal. Entre
1980 e 1998, a proporção de crianças vivendo com um pai, nunca antes
casado, aumentou em 300 por cento.14 Em 2000, 1,346 milhão de crianças
nasceram em lares sem um
Crianças nascidas fora do laço conjugal ou criadas sem um dos pais
são semi-órfans, e a qualidade e as oportunidades de vida para elas são
substancialmente restringidas em comparação às crianças nascidas e
criadas com uma mãe e um pai. Por exemplo, o Apêndice C mostra que a
renda familiar, está diretamente ligada à estrutura familiar; famílias

11 ldem, p. 6.

12 ldem, p. 7.

13 The marriage rnovernent: A statement of principies,


<www.marriagemovement.org>, (29 de

junho dc 2000).

14 Anuário estatístico dos Estados Unidos, 1999, p. 67, tabela o. 83.

15 Anuário estatístico dos Estados Unidos, 1994, p. 80; idem, 1996, p. 79; idcm,
1997, p. 79;
idem, 2000, p. 70.

29

LYNN D. WARDLE

baseadas no casamento ganham muito mais do que as divorciadas ou as


não casadas. Conseqüentemente, não deve vir como surpresa o fato de que
a pobreza infantil é mais diretamente causada por pais que cuidam
sozinhos de seus filhos do que por qualquer outro fator, como mostra o
Apêndice D. Mais da metade do aumento na pobreza infantil, nos Estados
Unidos, entre 1980 e 1988 “pode ser atribuída às mudanças na estrutura
familiar, durante os anos 80.~~16 O governo dos EUA relata que crianças que
crescem sem um pai em casa tem cinco vezes mais probabilidade de viver
na pobreza, comparadas com crianças vivendo com ambos os pais.”’
Wi/Iiam Galston, que trabalhou como Consultor de Politica Doméstica
para o Presidente nos anos 90, disse simplesmente que “a fàmília com
ambos os pais é a melhor proteção da criança contra a pobreza.”18
A separação da criança de seus pais é “o motor que dirige nossos
mais urgentes problemas sociais, dos crimes à gravidez de adolescentes,
ao abuso de crianças, à violência doméstica contra mulheres.”19 Por
exemplo, o Apêndice E mostra que crianças criadas em famílias mono-
parentais têm um índice maior de atividade sexual, e o Apêndice F mostra
que em famílias com um só progenitor é mais comum a gravidez na
adolescência.20 Essas crianças encontram-se também sob risco maior de
uso abusivo de drogas na adolescência,21 como demonstra o Apêndice G.
O eminente pesquisador Dr. Une Bronfenbrenner relatou que mesmo
depois de controlados fatores como baixa renda, “crianças crescendo em

16 Eggeheen, DAVID J.; LICHTER, Daniel T. Race, Iarni!y sttav/wz, and changiqg
poveqy arnong
american children, 56 Am. Soe. Rev. 801, 806 (1991). Além do mais, o estudo
indicou que, “de
acordo com Wihiam Ga/ston, ... o índice de pobreza infantil hoje seria um terço
mais baixo se
a estrutura familiar ni~o houvesse mudado t~o dramaticamcnte desde 1960.
Cincoenta e um
por cento do crescimento na pobreza infantil observado durante os anos 80 pode
ser atribuido
a modificações na estrutura familiar neste período.” Idem.

17 U.S. Dept. Of Hcalth and Human Services, National Center for Health
Statistics sunp’ 011

Chi/d Hea/th (Washington D. C., U. S. Gov’t Printing Office, 1993).

18 GALSTON, William A.; KAMJXRCK, Elaine Ciulla. Patting childrenfirst. a


progressive family

policy for the 1990s 12 (1990).

19 BLANKENHORN, David. Father/essAmerica: confronting nor most urgent social


problem 1

(1995).

20 Vide também, p. 66.

21 E. DENTON, RHONDA; K.AMPFE, Charlene M. The relationship between family


variables

and adolescent substancc abuse. A Uterattíre Review, 114 Adolescence 475 (1994).

30

QUESTÕES DE FAMÍLIA: A IMPORTÂNCIA DA ESTRUTURA FAMILIAR

lares de um só pai encontram-se sob maior risco de experimentar uma


variedade de problemas comportamentais e educacionais, incluindo
fumar, beber, experiência sexual precoce e freqüente e, em casos extre-
mos, drogas, suicídio, vandalismo, violência e atos criminosos.”22
Várias pesquisas demonstram que crianças que vivem separadas de
seus pais estão muito mais propensas a serem expulsas ou suspensas da
escola, em manifestarem problemas emocionais ou comportamentais e a
terem dificuldade de relacionamento com seus companheiros e proble-
mas com a polícia. “Elas têm menos sucesso no desempenho de atividades
educadonais, [e] têm mais problemas de ajustamento social ,••“23 O Apêndice
H mostra que crianças criadas com os dois pais têm, como estudantes,
maiores índices de performance muito boa. O Apêndice 1 mostra que
elas têm uma probabilidade de até um terço menor de deixarem a escola e
de até dois terços menor de abandonarem a faculdade que as crianças criadas
em outra estrutura familiar.
A relação entre o comportamento criminal adolescente (especialmente
masculino) e a estrutura familiar é há muito conhecida. De acordo com um
estudo de 1990, autorizado pelo Progressive Policy Institute, a “relação entre
crime e famílias monoparentais é tão forte que o controle estatístico da
configuração familiar apaga a relação entre raça e crime e entre baixa renda e
crime.”24 A probabilidade de que um jovem rapaz “venha a se envolver em
atividade criminal dobra se ele for criado sem um pai e triplica se ele vive em
uma vizinhança com alta concentração de famílias monoparentais.”25 Uma
recente declaração de estudiosos da família apontou que: “Meninos criados
fora de casamentos intactos têm três vezes mais probabilidade de cometerem
crimes que levam à prisão, quando chegam a meados dos 30 anos, mesmo
depois de controladas estatisticamente as variáveis de raça, origem familiar,
qualidade da vizinhança e habilidade cognitiva.26

22 BRONFENBRENNER, Une. Discoveün,g whatfami/ies can do. lo: BLANKENHORN, David,


et

ai, eds., Rebuilding the Nest: A New Commitment tu the American Famiiy
(Milwaukce, 1990).

23 Ver também, p. 66.

24 BLANKENHORN, supra, p. 31.

25 HILL, M. Anne; O’NEILL, June. Underclass behaviors in the United State.c


measurement and

analysis of determinants (New York, City University of New York, 1993).

26 The mam~ige movernent: a statement of principies, <www.marriagemovement.org>,


(29 de

junho de 2000) citing Cynthia C. Harper and Sara 5. McLanahan, 1998, “Father
Absence and

31

LYNN D. WARDLE

A evidência é inegável. Crianças nascidas fora do casamento têm uma


desvantagem substancialmente maior na vida e são a fonte de problemas e
custos sociais desproporcionais. Evidentemente, a estrutura familiar faz uma
profunda diferença para as crianças e, portanto, para a sociedade.

2.3 As conseqüências das uniões do mesmo sexo

Relacionamento entre pessoas do mesmo sexo é uma outra forma de


família alternativa que se tornou popular em muitos círculos acadêmicos e
culturais. Casamentos assim nunca foram legais, em nenhum país em época
alguma na história, até este ano, quando a Holanda passou a ser a primeira
jurisdição a permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo. No entanto,
outros poucos países, principalmente na Europa, criaram uma relação quase-
casamento, chamada “parceria doméstica”, com alguns dos privilégios dados
ao casamento. Dinamarca, Islândia, Noruega, Suécia e os Países Baixos têm
leis de parceria doméstica, que são quase como casamentos, no que tange às
questões econômicas do relacionamento, enquanto que a Alemanha, a
França e algumas outras jurisdições têm leis de parceria doméstica menos
compreensivas. Nos EUA, por enquanto, somente um Estado adotou leis de
parceria doméstica comparáveis às dos países nórdicos. Depois que a
Suprema Corte de Vermont decidiu que negar aos casais do mesmo sexo o
direito ao casamento violava a constituição, o legislativo de Vermont decretou
uma lei criando as “Uniões Civis.”27 Ela provê um status legal para os casais
do mesmo sexo com direitos e obrigações similares ao casamento realizado
por autorização. No entanto, trinta e seis estados americanos adotaram leis
rejeitando expressamente as uniões do mesmo sexo e, em todo estado
americano em que a questão da legalização do casamento entre pessoas do
mesmo sexo foi colocada para os eleitores para aprovação, os votantes
rejitaram-na de modo esmagador: 69-29 no Havaí, 69-31 no Alaska, 61-39
na Califórnia, 70-30 em Nebraska e 70-30 em Nevada. Então, é provável
que somente poucos, se é que algum outro estado vai reconhecer as uniões
civis de Vermont.

Youth Incarceration,” trabalho apresentado no encontro anual da Ametican


Sociological

Association (San. Francisco, Aug. 1998).

27 15 V. 5. A. ~ 1201, entrou em vigência em 2000.

32

QUESTÕES DE FAMÍLIA: A IMPORTÂNCIA DA ESTRUTURA FAMILIAR

Há razões para preocupação com a legalização do casamento entre


pessoas do mesmo sexo. O grande escritor francês Alexis de Tocquevil/e
observou: “Quando a idéia de família torna-se vaga, indeterminada e
incerta, um homem pensa a respeito de sua conveniência atual; ele provê
para o estabelecimento da próxima geração que o sucede e não mais. “28
Um estudo de relações de violência, em uma amostra de 283 gays e
lébicas, revelou “que 47,5 por cento das lésbicas e 29,7 por cento dos gays
haviam sido vitimas do parceiro do mesmo sexo. E ainda: lésbicas relataram
um índice total de perpetração [de violência doméstica] de 38 por cento
comparado com 21,8 por cento para os homems gays.”29 Outros estudos
com índices de abuso variando de 30 a 75 por cento, dependendo da
definição de violência, espaço de tempo e técnicas de amosttagem.30 Um
estudo relatou que aproximadamente 31 por cento das lésbicas tinham
relação sexual contra sua vontade em comparação com 18 por cento das
mulheres heterosexuais.3’ Aproximadamente 12 por cento dos homens gays

28 TOCQUEVILLE, Alexis dc. Democra~y in America, ch. 3, p. 49-50 (Ncw


York: Aifred A.
lKnopf, 1945) (oniginalmentc publicado em. 1835).

29 WAI.DNER-HAUGRUD, Lisa K.; GRATCH, Linda Vaden; MAGRUDER, Brian.


Victimi.tation and petpetration rates aI vio/ence /11 ,qqy and lesbian
re/ationships: gender issues explored,
12 Violcnce & Victims 173 (1997). Ver tansbérn WALDNER-HAUGRUD, Lisa 1K.;
GRATCH, Linda Vadcn . Sexual coercion /11 gay/lesbian relationship~ descniptivc
and gender
differences, 12 Violcncc and Victims 87 (1997).
30 Idem, citando BRAND, P. A.; IKIDD, A. H. Frequençy
ofphjsica/ag,gression in heterosexualandlema/e
harnosexual dyads, 59 Psychological Reports 1307 (1986) (30% relataram ter
sofrido abuso em
relações lésbicas); BOLOGNA, M.J.; WATERMAN, C. 1K.; DAWSON, L.J.
Víolenceingqyrnale
and /eshian re/aÜonshe~j- implications for practitioner and policy makers,
Trabalho apresentado na
Third National Conference for Family Violence Researchers, Durham, NH íJuly
1987) (50~/o de
abuso em relacionamentos dc lésbicas); WATERMAN, C. 1K.; DAWSON, L.J.; BOLOGNA,
M.
J Sexual coercion iii gqy ~iale and leshian reIatianshipi-~ predictors and
implications for support
serviccs, 26J. Sex Res. 118 (1989) (310/o índice de abuso); SCHLIT, R.; LIE, G.;
MONTAGNE,
M.Substance use as a corre/ate of ão/ence iii intimate leshian re/ationships, 19
J. Homosexuality 51
(1990) (38/o dc abuso da parceira da lésbica); LIE, G.; GENTLEWARRJOR, 5.
Intirnate m~/ence
in /esbian re/ationshipn discussion of survcy findings and practice
implications, 15 J. Social Serv.
Res. 41 (1991) (520Á abuso por lésbicas). RF.NZETTI, C. Building a .tecond
closet: thirdpart’y
responses lo rnctims ojlesbtan partner abuse, 38 Fam. Relations 157 (1989) e
RENZEITI, C. Violent
he/rayal~ partncr abuse in lesbian relationships (Sage 1992) (7l’/o relataram
aumento na severida-
de e freqüência de abuso ao longo do tempo); LOCIKHART, L. L.; Whitc, 13. A.;
CAUSBY, V.;
ISAAAC, A. Letlint voa lhe secreC violence in lesbian relationships, 9J.
Interpersonal Violence 469
(1994) (25~/o em andamento; 75% em qualquer inst3.ncia).
31 DUN CAN, D. Prevalence of sexual assault victimiZation arnong heterosexua/
and gay//esbian universi~’
students, 66 Psychological Reps. 65 (1990).

33

LYNN D. WARDLE

foram forçados a ter sexo comparados com 4 por cento de homens hetero-
sexuais.32 “Este corpo de evidências sugere coletivamente que gays e lésbicas
têm um maior índice de coerção sexual do que o experimentado pelos seus
contrapartes ~
Uniões do mesmo sexo também minam o casamento enquanto
instituição. Visto que o casamento heterosexual é claramente a institui-
ção ideal para a criação de filhos, a erosão do casamento e o crescimento
de “alternativas” para este, incluindo casamento entre pessoas do mesmo
sexo, trazem uma séria preocupação.
A evidência é inegável de que essas três “etrututas alternativas”
para as relações familiares apresentam riscos severos e de longa duração
para as famílias, indivíduos e para a sociedade. A “forma” das relações
familiares está diretamente relacionada com a “qualidade” das relações
familiares e, conseqüentemente, com a qualidade da virtude cívica, da
cidadania, dos problemas sociais e da vida pública.

3 O PORQUÊ DA IMPORTÂNCIA DA INTEGRIDADE


FAMILIAR

“A integridade familiar” significa a preservação da fidelidade para


com a integridade e continuidade da família matrimonial. Atualmente,
duas formas de assalto à integridade da família são exuberantes —
divórcio e infidelidade. Os problemas causados pela perda da integridade
familiar são dolorosos e profundos.

3.1 As conseqüências do divórcio


Com a legalização do divórcio unilateral sem culpa (pedido de
divórcio) nos anos 70, o número de divórcios aumentou drasticamente
nos Estados Unidos e em muitas outras nações, como demonstra o

32 BAIER, J. L.; ROSENZWEIG, M.G.; WHIPPLE, E.G. Pattems of sexual behavior,


coercion, and

vict.imi~ation ofuniversi~y students, 32 J. College Student Development 310


(1991).

33 WISE, Amy J.; BOWMAN, Sharon L. Comparison of beginnin~g counselors’


responses lo lesbian vs.
hetervsexua/partner abuse, 12 Violence and Victims 127 (1997).

34

QUESTÕES DE FAMÍLIA: A IMPORTÂNCIA DA ESTRUTURA FAMILIAR

Apêncie J.34 A proporção de pessoas divorciadas, em relação às pessoas


casadas morando com esposos, quadruplicou entre 1960 e 1990.~~
Atualmente, nos Estados Unidos, há aproximadamente um divórcio para
cada dois casamentos todo ano,36 e apesar de o índice de nascimentos
diminuir, mais de um milhão de crianças experimentam o divórcio parental
a cada ano.37
Após trinta anos de experiência com o divórcio unilateral sem
culpa na América, uma coisa está clara: o estilo americano de divórcio
unilateral sem culpa é um desastre não diminuído para todos (adultos e
crianças) e para a sociedade (que paga o preço de recolher as peças
quebradas).
A Professora Linda J. Waite, uma renomada demógrafa, sumarizou
algumas das evidências sociais científicas dos substanciais benefícios
para os indivíduos em estar casado.38 O comportamento envolvendo
riscos significativos para a saúde (incluindo uso de maconha, beber e
dirigir, uso abusivo de drogas e incapacidade em manter um estilo de vida
ordenado), por exemplo, é significativamente maior para homens e
mulheres divorciados do que para homens e mulheres viúvos ou casa-
dos.39 Homens e mulheres casados enfrentam riscos menores de morrer,
em qualquer época, do que outras pessoas. O percentual de mulheres
americanas de 45 anos de idade divorciadas e nunca casadas que
sobrevivem até os 65 anos é ao redor de 63 por cento, enquanto que o
percentual de casadas que sobrevivem é ao redor de 85 por cento;
igualmente, ao redor de 63 por cento dos homens, divorciados e nunca
casados, sobrevivem dos 48 aos 65 anos, comparados com 85 por cento
dos homens casados.4~~ A taxa geral de morte por doença coronária e uma

34 WARDLE, Lynn D. No-fault divnrce and lhe divorce conundrum, 1991 B. Y. U. L.


Rev. 79, 141,
App. 4 (em 1965 havia 479 mil divórcios e o índice de divórcios por um mil na
popu1aç~o era

2,5; em 1985 houve 1,19 miIh~o de divórcios e o índice passou para 5,0).

35 BENOLKRAITIS, Nijole V. Marriages and families 19 (1993).

36 Em 1994 ocorreram 2.362.000 casamentos e 1.191.000 divórcios. The United


States Bureau
of the Censos, Statisticai Abstract of the United States: 1996, p. 74, tabela 90
(1996).

37 Por exemplo, em 1990 haviam 1.075.000 crianças envolvidas em divórcios.


Statistical Abstract

ofthe United States: 1996, Thc United States Bureau ofthe Census, p. 105, tabela
150.

38 WAITE. Linda J. Does marriage malter? 32 DEMOGRAPHY 483 (1995).

39 Idem, p. 486-488.

40 ídem, p. 488-489.

35

LYNN D. WARDLE

série de outras doenças físicas aflige os divorciados e separados muito


mais do que os casados, assim como tentativas de suicídio e acidentes.4’
“O risco de um paciente de hospital vir a requerer enfermagem no
domicílio é duas vezes e meia maior para pessoas não casadas [do que
para pessoas casadas], mesmo considerando a severidade da doença, o
diagnóstico, a idade, o gênero e a raça. “42 “Comparados às pessoas
casadas, os não casados têm maior taxa de mortalidade do que os casados:
ao redor de 50 por cento maior entre as mulheres e 250 por cento maior
entre os homens.”43
Homens e mulheres casados relatam taxas significativamente
maiores de satisfação emocional e física em seus relacionamentos
sexuais.44 Um estudo recente da relação entre o status manta/e a felicidade
individual relatou que a forte correlação postitiva entre o status maüta/e a
felicidade pessoal existe em 16 ou 17 nações estudadas.45 O relatório
demonstrou que estar casado aumenta a felicidade igualmente para ho-
mens e mulheres, e que o casamento estava mais do que três vezes
diretamente associado com a felicidade que a coabitação não marital.
Pessoas casadas na América usufruem relações sexuais com mais fre-
qüência e as acham mais satisfatórias do que divorciadas ou não casadas
(incluindo coabitantes). Índices de admissão em instituições de saúde
mental e registros de pacientes externos em serviços de saúde mental
também são menores entre pessoas casadas do que entre divorciadas ou
separadas.~ Pessoas casadas têm índices menores de depressão, suicídio, uso
de drogas e de alcolismo.47

41 LYNCH,James. The broken hearl the medical consequences ofloneliness 51, 152,
244 (1977).

42 The Mam~sge Movement: A Statement of Principies, <www.marriagemovcment.org>,


(29 de junho de

2000) citing Howard S. Gordon and Gary E. Rosenthai, 155 Arch. Internai Mcd.
2465-71 (1995).

43 The Marrüzge Movemenl: A Siatement of Principies, <www.marriagemovemcnt.org>,


(29 de
junho de 2000) citando Cathcrinc E. Ross, John Mirowsky, & IKaren Goldsteen, The
Irnpact ou

lhe Fami/y ou Heaith: Decade iii Reviuu, 52J. Marr. & Fam. 1059 (1990).

44 Waite, supra, p. 489-492.

45 Stevcn Stack & J. Ross Eshleman, Marital Status and Happiness: A 1 7-Natio,z
Study, 60 J. MARR.

& FÀNI. 527 (1998).

46 Bloom, Asher & White, Marital Disruption As A Stressor: A Retiew and Anabvis,
85 PsvcFlov.
Buii. 867, 869 (1978).

47 The mamage rnovernent a statement of principies, <www.marriagemovement.org>,


(29 dc
junho de 2000).

36

QUESTÕES DE FAMÍLIA: A IMPORTÂNCIA DA ESTRUTURA FAMILIAR

Homens e mulheres casados também têm mais prosperidade. A


riqueza média per capita, não por casal, por residência, para indivíduos
casados nos EUA é entre 65 e 70 mil dólares, enquanto que para
divorciados ela é de 33,6 mil, para nunca casados é de 35 mil e para
indivíduos viúvos é de 42,2 mil dólares.48
O casamento dos pais também provê benfícios substanciais para as
crianças, como dito anteriormente. O risco de abandonar o segundo grau,
para filhos de famílias monoparentais, é maior do que para filhos de
famílias com dois pais. Filhos que passaram parte de seus anos de
crescimento em famílias monoparentais relatam, quando adultos,
relações de qualidade significativamente pior com seus pais.49 E enquan-
to que a causa é sempre difícil de provar,i’o efeito positivo do casamento
no bem-estar é forte e consistente, e a seleção de psicologicamente
saudável no casamento ou psicologicamente infeliz fora do casamento [e
outras variáveis] não pode explicar o efeito.”5~’ Há extensa literatura
testemunhando as conseqüências geralmente negativas do rompimento
matrimonial para as crianças de uma família separada,” incluindo luto,
mágoa, raiva, abandono, agressão, regressão, auto-estima rebaixada etc.5’
A evidência é esmagadora: quando os pais não vivem com seus filhos,
contato, compromisso e contribuição do pai para a vida do filho
decrescem.52 Os efeitos da dor que os filhos do divórcio experimentam
perduram, às vezes, a vida toda. Uma pesquisadora relatou:

“Nenhum adulto em minha amostragem, em qualquer idade,


considerava a separação de seus pais como irrelevante para seu
bem-estar. A maioria descreveu o evento como o mais traumá-
tico de suas vidas (e, surpreendentemente para mim, a amostra-
gem incluia alguns homens e mulheres que suportaram o pior
que a Segunda Guerra Mundial ofereceu). Além do mais, para

48 Waite, supra, p. 492-93.

49 idcm, p. 493-95.
50 Idcm, p. 497-98.

51 Bloom, supra, p. 877. Ver de modo geral: WALLERSTEIN, Judith; KELLY, Joan
Surviving

lhe breakup: how childrcn and parents cope with divorce 55-95, 282 (1980).

52 FURSTENBERG JR., Frank F.; CHERLIN, Andrcw. Dinidedfamilies what happens to

chiidren when parcnts part (Harvard Univ. Prcss, 1991).

37

LYNN D. WARDLE

estes adultos, as memórias da separação e eventos subseqüentes


foram tão acentuadas, claras e dolorosas quanto a visita de
ontem ao dentista.”53

“Todos os adultos que entrevistei sentiram que o divórcio [de


seus pais] em suas infâncias havia alterado e atrofiado suas
perspectivas relações matrimoniais plenas e felizes. Muitos
disseram que em sua juventude estavam determinados a nunca
terem seus próprios filhos — haviam inclusive colocado isto
como condição para um casamento no futuro. Mesmo depois de
40 ou 50 anos, estes antes ‘crianças divorciadas’ tinham medo
do compromisso, incerteza quanto a sua habilidade em manter
relacionamentos duradouros. Alguns, eles mesmos divorciados,
culpavam especificamente seus pais pelas próprias falhas
matrimoniais ~

Assim, a integridade do casamento e a desintegração do casamento


pelo divórico importa à sociedade. G. K Chesterton fez a famosa declaração
que devemos “considerar um sistema que produz muitos divórcios como
fazemos com um sistema que leva os homens a afundarem ou a atirarem
em si mesmos.”55

3.2 As conseqüências da infidelidade matrimonial são


igualmente devastadoras

Incrivelmente, um dos maiores mitos que sobreviveu por séculos é o


de que a infidelidade de um dos pais somente fere o cônjuge adulto, mas
não afeta as crianças. No entanto, há evidência esmagadora de que os
filhos sofrem enormemente quando seus pais são infiéis um com o outro.
O efeito da infidelidade parental sobre os filhos é comparável ao
efeito do alcolismo parental ou da dependência de drogas sobre as

53 TROYER, Warner. Divorced küIs 146 (Hareourt Brace Javonovich 1979).

54 TROYER, 146.

55 Chesterton, G. 1K. The .oíperstition of diverce, Ch. ii (1920) at


<http://www.dur.ac.uk/

—des6mpw/gkc/books/divorce.txt>.
38

QUESTÕES DE FAMÍLIA: A IMPORTÂNCIA DA ESTRUTURA FAMILIAR

crianças.56 Todas as crianças “confiam na estabilidade do casamento e da


família.”57 A infidelidade abala o alicerce de seu mundo. Ela ameaça a
integridade dos relacionamentos essenciais de suas vidas. Ela destrói a
confiança sobre a qual a sua visão de mundo é contruída.
As crianças, freqüentemente, culpam a si mesmas pelos problemas
dos pais; as crianças pensam que foi por causa de algo que fizeram, ou
disseram, ou deixaram de fazer, ou talvez por causa de seus maus pensa-
mentos ou desejos diabólicos.58

“Crianças pequenas, cujos pais são infiéis um para com o outro,


freqüentemente desenvolvem sintomas de insegurança, regre-
dindo para um comportamento próprio de crianças menores.
Elas podem apresentar sintomas de ansiedade — como agarrar-
se, molhar a cama, chupar o dedo, pôr fogo em algo, fazer birra,
ter terrores noturnos — de fato, qualquer coisa que pareça uma
resposta apropriada para o medo de que sua família seja
destruída.”59

Em resposta à infidelidade parental, “dificuldades podem aparecer


sob a forma de desafio, recusa em comer, irritabilidade, disputabilidade,
palhaçadas, afastamento, enuresis, birra, ociosidade, sonhar acordada,
desatenção, sonambulismo ou baixo rendimento escolar.”6~~
Entre as crianças mais velhas, a atuação é uma resposta comum.
“Roubar lojas, fugir de casa e colocar fogo na casa são formas freqüente de
atuação. Estes comportamentos podem ter certa propriedade metafórica. “61
“Tentativas de suicídio entre crianças e adolescentes são uma resposta
freqüente ao adultério parental ... A criança está perguntando: ‘Quem é
mais importante? Seu filho ou seu caso?’ ... Se os sintomas ou subterfúgios
para chamar a necessária atenção não forem eficazes, a criança pode tentar

56 PITTMAN, Frank. Private hei, infidehi~y and the betrqyab of intima0, 268
(1989).

57 PITTMAN, p. 260.

58 BERGER, p. 134-35.

59 PITTMAN, p. 262.

60 BERGER, p. 131.

61 PITTMAN, p. 262.

39

LYNN D. WARDLE

se desligar de seus pais não confiáveis.”62 O rendimento escolar pode cair


dramaticamente.63 Um psiquiatra com vasta experiência no tratamento
dessas questões observa; “Os traumas de infidelidade e divórcio são
opressivos para crianças em qualquer idade, mesmo crianças que têm 50
anos de idade e são avós. Mas talvez sejam mais duros para os adoles-
centes.”64 “A inabilidade de um pai em manter controle sexual pode ser
amedrontadora, estimulante e permissiva para um filho adolescente
Classicamente, eles podem tanto se tornarem promíscuos ... ou podem eles
mesmos se tornarem sexualmente indesejáveis.”65 E, ainda, uma criança
pode se voltar para o comportamento homossexual.66 “Elas podem decidir
que ... infidelidades são normais e que o casamento é simplesmente im-
possível. E além do mais elas podem até desistir por completo do sexo
“67 pais
oposto. Os servem de fontes críticas do aprendizado dos papéis
sexuais para suas filhas e filhos. A infidelidade é uma doença inter-
geracional, na medida em que as crianças aprendem de seus pais a enganar
e serem infiéis no casamento; e, conforme as crianças se casam, elas fre-
qüentemente imitam a infidelidade aprendida.
“Mais comumente [crianças de um pai adulterino] também perdem
sua fé no casamento ... Elas podem decidir que ... as infidelidades são
normais e que o casamento é simplesmente impossível.”68 “Uma menina
crescendo com as infidelidades de ambos os pais provavelmente vai
desconfiar do casamento e será contra o casamento, atacando o dos outros.
Ela estará um tanto propensa a evitar casar-se e a ficar disponível como
parceira para um caso, em uma posição móvel e independente.”69 Como
Dr. Janis Abrahm Sptinger o descreve: “Muito depois da infidelidade ter sido
conhecida, ou colocada de lado, [crianças] podem ainda estar amedronta-

62 PITTMAN, p. 263. See also Dobson, p. 110 (ao descrever tentativa de


suicídio aos treze anos
após a infidelidade parental).

63 “Um menino de treze anos que era um estudante nível A, começou a ir


mal no segundo grau.
Um teste de inteligência, anterior, o colocava no grupo ‘superior’. O psicólogo
da escola fez
novo teste e seu indice decaiu para o nível ‘fraco normal’. Este menino amava
seu pai que havia
saído para viver com outra mulher ...“ BERGER, p. 131.
64 PITTMAN, p. 263.
65 PIITMAN, p. 263.
66 DOBSON, p. 124-125.
67 PITTMAN, p. 266-267.
68 PITTMAN, p. 266.
69 PYITMAN, p. 269.

40

QUESTÕES DE FAMÍLIA: A IMPORTÂNCIA DA ESTRUTURA FAMILIAR

das, podem estar ainda abrigando sentimentos negativos sobre [si mes-
mas] e carregando-os ... para [seus] relacionamentos mais íntimos. Criva-
das pela insegurança, [elas] podem ter problemas em perceber [a si
próprias] como valiosas, dignas de amor, seres humanos especiais. Não é
fácil de amar, ou ser amado, quando sentimentos de abandono, anula-
mento ou traição estão no centro do [próprio] sentido de si mesmo.”70 Ou
as crianças vítimas do adultério parental podem, “sem saber, ... buscar
alguém que trate [delas] de uma maneira que reproduza [suas] experiên-
cias anteriores ... Mesmo que o parceiro esteja comprometido com elas,
ainda assim [elas] provavelmente lerão no comportamento daquela
pessoa o que estão programadas para ver, e reagirão de formas que reforcem
[suas] preconcepções.”71
Portanto, a evidência vinda da ciência social indica que a infide-
lidade fere as crianças, de modo a lhes causar intensa dor e sofrimento
duradouro, e leva a problemas sociais.

4 POR QUE AS FAMÍLIAS IMPORTAM PARA A


SOCIEDADE

Nós vivemos na idade do individualismo. O Brasil, como os Esta-


dos Unidos, tem uma forte tradição em exaltar o individualista vigoroso,
que quer desafiar a convenção existente para encontrar um caminho
novo e melhor. Sociedades progressistas supervalorizam a inovação, a
experiência e a melhoria. Sociedades livres fomentam e encorajam o
exercício da liberdade pessoal e protegem aqueles que querem ser di-
ferentes, que querem tentar caminhos diferentes. Não é de se estranhar
que estruturas familiares alternativas apareçam em sociedades que são
livres e progressivas nesta época de individualismo.
No entanto, há uma diferença significativa entre maturidade e
imaturidade, na busca do individualismo, do progresso e da liberdade,
entre inteligência e impulsividade. Sociedades e indivíduos que têm
maturidade e força têm sabedoria e visão de longo alcance, favorecem
instituições e geram benefícios que podem levar anos, mesmo gerações,

70 SPRING, p. 125 (1996).

71 SPRING, p. 27.

41

LYNN D. WARDLE

para se desenvolverem. Imediatismo, impaciência e impulsividade são


sinais clássicos de imaturidade e fraqueza. Assim, os tipos de estruturas
familiares refletem, em certa medida, a maturidade e a força de uma
sociedade. O casamento e a criação de filhos no casamento requerem com-
promissos de longo termo, paciência e força para deixá-los crescer e florescer
vagarosamente.
A relação entre as famílias e o bem-estar dos indivíduos, e da
sociedade em geral, tornou-se obscura. A visão popular entre os autores
que fazem uma revisão crítica das leis americanas parece ser a de que o
governo deve aceitar como “casamento” ou “família” qualquer relacio-
namento cujos parceiros queiram chamar de “casamento” ou de “família”.
Alguns escritores, e mesmo juízes, asseveram que princípios de eqüidade
ou privacidade requerem que o Estado trate todas as relações como iguais,
sem dar qualquer preferência especial para os casamentos.
Contudo, nunca antes na história do mundo houve tanta evidência
de que as sociedades prosperam e florescem quando o casamento e a cria-
ção de filhos são fortes e seguros, e que os problemas sociais proliferam
com a desintegração do casamento e da família. O Professor Robert Putnam,
de Harvard, estudou os governos locais na Itália e verificou que a qualidade
destes governos locais refletia a virutde das pessoas que eram governadas.72
A teoria de governo de “virtude cívica” ou “humanismo cívico” ensina que
melhores pessoas fazem melhores cidadãos e que melhores cidadãos
produzem governos e sociedades melhores. Famílias melhores, é claro,
produzem melhores indivíduos que são melhores cidadãos. As famílias
podem existir sem a sociedade, mas nenhuma sociedade estável e dura-
doura pode existir por multo tempo sem a família.73
Realmente, “a família é a própria sementeira da democracia. O lar é o
lugar de onde tiramos as nossas primeiras idéias sobre nós mesmos, nossas
atitudes para com as outras pessoas e nossos hábitos de enfrentar e resol-
ver os problemas.”74 É no lar que as crianças aprendem lições a respeito de
cooperação e compromisso, do compartir e do sacrifício, lealdade e obe-
diência para com o não-obrigatório, que formam o alicerce para o auto-
72 PUTNAM, Robert D.; LEONARDI, Robert; NANETTI, Rafaeila Y. Making democraçy
work:
civic traditions in modern Itaiy (1993).

73 Verde forma geral DURANT, Will. The sto0, oJcitiIi~ation, Part 1, Our
Oriental Heritage 30 (1938).

74 BEASLEY, Christine. Democraçy in the borne 25 (1954).

42

QUESTÕES DE FAMÍLIA: A IMPORTÂNCIA DA ESTRUTURA FAMILIAR

governo. É de seus pais que as crianças aprendem a tirar o melhor das


deficiências, como se importar com outros, ser feliz, amar a liberdade,
cumprir os próprios deveres, e as habilidades cruciais de respeito mútuo e
cooperação.75 E no casamento e na criação de filhos que a maioria dos
adultos reaprende a importância e refinam o regozijo de sacrificar-se
pelos outros, como realmente preocupar-se com a próxima geração, em
ver além do presente, em cultivar o fundamental da vida e da comunidade.
A interconectividade de nossas vidas, a primeira lição de todo governo,
especialmente do auto-governo, é aprendida primeiramente e mais com-
pletamente em casa. A casa é a primeira e mais importante escola da
democracia. E em casa que a confiança nos outros e no futuro é nutrida — ou
obstruída — e este é o pré-requisito indispensável para a democracia.
A Suprema Corte dos Estados Unidos tem descrito repetidamente a
conexão entre a família e a ordem social. Em R~yno1ds v. United States,76 a
Corte
Sustentou: “Pode-se dizer que a sociedade se constrói no Lcasamento], e de
seus frutos nascem as relações sociais e obrigações sociais e deveres, com os
quais o governo tem necessariamente de lidar.” Em Murphj v. Rams~y, a Corte
declarou que “a família, como fundando-se e nascendo da união para a vida
de um homem e uma mulher no estado sagrado do matrimônio; a segura
fundação de tudo que é estável e nobre em nossa civilização; a melhor
garantia desta moralidade reverente que é a fonte de todo progresso benéfico
no movimento político e social.”77 Em Mqynard v. HiI/~ o Juiz Field observou
que “o [casamento, como criador da mais importante relação na vida, [tem]
mais a ver com a moral e a civilização de um povo do que qualquer outra
instituição, tendo sempre sido sujeito ao controle pela legislação.” No caso
de direitos civis, Loving v. Vitginia, que foi um marco, a Corte declarou: “O
casamento é um dos “direitos civis básicos do homem”, fundamental para a
nossa própria existência e sobrevivência.”78 Em Boddie v. Connecticut~,79 a
Corte
enfatizou que o casamento envolve interesses de importância básica em
75 Idcm, p. 12 (“O sentimento básico de respeito por todos os
indivíduos humanos, independen-
temente da idade ou status ou peculiaridades pessoais, é a
verdadeira pedra angular da
democracia.”)
76 98 U. S. 145, 165 (1878).
77 114 U. S. 15, 45 (1885).
78 388 li. 5. 1, 12 (1967).

79 401 U. 5. 371, 376 (1971) (invalidando o requerimento que partes indigentes


pagassem pelas
taxas de pedido de divórcio).
43

LYNN D. WARDLE

nossa sociedade, porque é relativo ao interesse do Estado na estabilidade


da ordem social, ... aos bons costumes de todos os cidadãos, e ... às
necessidades das crianças de lares desfeitos.”80 Se mesmo a materialista
Suprema Corte dos Estados Unidos pode ver isso, o nexo entre casa-
mento e bem-estar social deve ser aparente para todo o mundo.

5 CONCLUSÃO

Algumas vezes deixamos de ver o essencial. Percebemos o quão


alto o edifício está, mas deixamos de ver a fundação profundamente
enterrada; percebemos o bonito exterior e negligenciamos a estrutura
Interior. A família baseada no casamento, a criação dos filhos no casa-
mento e a integridade familiar são a infra-estrutura da civilização, os
fundamentos de qualquer sociedade bem-sucedida.
A sociedade tem interesse em promover estruturas familiares que
produzam os tipos de resultados positivos e socialmente benéficos que
advêm do casamento, da criação dos filhos no matrimônio e da integridade
marital (estabilidade e fidelidade). Desvios significativos desses funda-
mentos resultam em perda de produtividade, aumento de gastos públicos
com medicamentos, serviços de saúde, previdência social e assistência
social, maior peso na educação pública, em cortes juvenis e muitos outros
custos sociais do comportamento disfuncional de adolescentes em conflito
provenientes de lares desfeitos. Assim, a sociedade tem interesse men-
surável e direto em favorecer casamentos bons, felizes, e famílias amo-
rosas, estáveis.
Conseqüentemente, precisamos redescobrir o grande valor do
casamento e das famílias para os indivíduos e para a sociedade. Devemos
abertamente celebrar a maravilhosa instituição das famílias baseadas no
casamento. Os estudiosos devem pesquisar e escrever a respeito disso.
Devemos enfatizar que a família é a unidade primária de associação para os
indivíduos e a unidade fundamental da sociedade. O casamento tradicional
e a fundação das relações de companheirismo mais estáveis e seguras e o
ambiente mais promissor, e geralmente bem-sucedido, para a criação de
filhos. O casamento é o melhor protetor da felicidade das famílias e dos

80 401 U. 5., p. 389.

44
QUESTÕES DE FAMÍLIA: A IMPORTÂNCIA DA ESTRUTURA FAMILIAR

indivíduos e da estabilidade da sociedade. A família baseada no casa-


mento é a mais promissora forma de família, a ideal. Não é uma insti-
tuição perfeita (nenhuma instituição humana é), mas ela geralmente funciona
melhor do que qualquer outra forma ou estrutura para nutrir uma
associação humana íntima interdependente.
“É necessária uma aldeia” para ajudar o sucesso de muitos casa-
mentos; há épocas, em todos os casamentos, em que são necessários
sistemas sociais de apoio para ajudar as partes a superarem alguns
desafios e dificuldades. Nossos tempos são muito duros para os casamen-
tos; casais casados experimentam muito estresse. E cada vez mais difícil
para um homem e uma mulher, por si sós, fazerem um casamento dar
certo por causa das intensas pressões sociais que afastam esposos e
esposas. Portanto, é necessária uma aldeia para ajudar muitos casamen-
tos a perdurarem. A comunidade precisa encorajar os jovens a encontrar
a fé e a coragem para dar uma chance ao casamento, ajudá-los a se
prepararem para o casamento, levantar sua confiança no casamento,
ajudando-os a adquirir as habilidades que intensificarão seus casamentos,
e ajudá-los a elaborar o desapontamento que surge em todos os casamen-
tos, sem desistir e sem reagir de formas que causem danos irremediáveis
para a relação com aqueles que amamos.
Há indicativos de que se está iniciando um renascimento de respeito
renovado pelo casamento e pelas famílias baseadas no casamento. Sejamos
nos uma parte desse despertar e contribuamos para o aumento de literatura
acadêmica e profissional que reconhece o valor e a importância do
casamento e da criação de filhos no casamento para o nosso próprio bem, o
de nossas crianças e o de nosso país.

Tradução de Giselle Groeninga

45

LYNN D. WARDLE

6 APÊNDICES

APÊNDIcE A

CASAIS NÃO CASADOS POR IDADE x t~i~s (ou MORADIAS)’

1970
Total de casais 523.000
Abaixo de 25 55.000
25-44 103.000
45-64 186.000
65eacima 178.000

Total de lares 63.401.000


(ou moradias)

Percentual de
lares consti-
tuídos por
coabitantes
não casados
1980 1985 1990 1995 1999
1.589.000 1.983.000 2.856.000 3.668.000
4.486.000
411.000 425.000 596.000 742.000 824.000
837.000 1.203.000 1.775.000 2.188.000
2.554.000
221.000 239.000 358.000 558.000 888.000
119.000 116.000 127.000 180.000 220.000
,020 ,023 ,031 ,037 ,043
,008 0.20 ,023 ,031 ,037 ,043
Laresdecasais 44.728.000 49.112.000 50.350.000
52.317.000 53.858.000 54.770.000
casados
Percentualde 70,5 60,8 58 56 54,4
52,7
lares consti-
tuídos por
casais casados
Casaiscom 196 431 603 891 1.319
1.505
filhos abaixo
deiS
Casais sem 327 1.159 1.380 1.966
2.349 2.961
filhos abaixo
de 15

1 Statistical abstracts of the united states 1994 at 56 & 58 and


statistical abstracts of the united
states 1996 at 56, rabies 61 and 62 & 58, table 66. Statistical abstracts of the
united states

2000 at 52 & 54, tables 57 & 60.

46

QUESTÕES DE FAM1LIA: A IMPORTÂNCIA DA ESTRUTURA FAMILIAR

APÊNDICE B

CRIANÇAS NASCIDAS FORA DO LAÇO CONJUGAL 1940-2000 EUA


Todas Brancos Não
as raças Brancos2

Ano Número Razão/1.000 Número Razão/1.000 Número


nascidos vivos nascidos vivos
1940

1945

1950

1955

1960

1965

1970

1975

1980

1985

1990

1994

2000
89.500

117.400

141.600

183.300

224.300

291.200

398.700

447.900

665.747

828.174

1.165.400

1.290.000

1.346.000
37,9

42,9

39,8
45,3

52 7

77,4

106,9

142,5

184,3

220 2

280

326

331
40.300

56.400

53.500

64.200

82.500

123.700

175.100

186.400

320.063

432.969

647.400

794.000
19,5

23,6

17,5

18,6

22,9

39,5

56,6

73

110,4
144,7

200

254

271
49.200

60.900

88.100

119.200

141.800

167.500

223.600

261.600

345.684

395.205

472.700

448.000
Razão/1 .000
nascidos vivos

168,3

179,3

179,6

202,4

215,8

263,2

349,3

441,7

484,5

513,8

650

704

685
1 Sumários estatístico, dos Estados Unidos em 80, 1994, e sumários
estatístico, dos Estados
Unidos em 79, 1996, tabela 98, sumários estatistícos dos Estados Unidos em 79,
tabela 97. Id.,
1995 na 101. Antes de 1980, devido a estimativas aproximadas à próxima centena,
as figuras
podem não chegar aos totais. lndice por 1.000 de nascimentos vivos formam grupo
especifica-
do. A partir de 1970, foram excluídos os nascimentos de não residentes nos EUA.
2 Começando cm 1990, o número inclui somente afro-amer,canos.

47

LYNN D. WARDLE

APÊNDICE C

RENDA MEDIA DE ACORDO COM A ESTRUTURA FAMILIAR

$ 22.000

$16.000

$12.000

$ 9.000

$0
Nunca casada Divorciada Nunca casado Divorciado
$ 41.000
Família com

ambos os pais
Família de mães
solteiras ou
sozinhas
Famílias dc pais
solteiros ou
sozinhos

The State of Americans (Une Bronfenbrenner et aI. cdi., 1996) ar p. 108.

48
$ 50.000

$ 40.000

~ $ 30.000

es
‘ci

~ $ 20.000
es
e
ci

$10.000
QUESTÕES DE FAMÍLIA: A IMPORTÂNCIA DA ESTRUTURA FAMILIAR

APÊNDICE D

MONOPABENTAUDADE E POBREZA

Status Marital

lhe State of Americana (Une Bronfenbrenner et ai. eds., 1996) at p. 131.

49
o.
es
N
ci
-o
o
o.
es
e
es
ci’
e

ci

E
o
ci

es

ci
-o

e
e
ci
ci

ci
o.
0-
E Uma criança com menos de 6 anos
)0 ‘01 • Mais de uma criança com menos de 6 anos

ice
3C o-

iO o’

0’

-los
10 ‘o-
lO o-
0
Pais Mães
Divorciados Não casados

LYNN D. WARDLE

APÊNDICE E
ATIVIDADE SEXUAL E ADOLESCENTES

Atividade sexual dos adolescentes e estrutura familiar

50%

450/o

400/o

ci

ci

E 350/o

es

ci

300/o

ci
e

~ 25%

ci

ci

ci
~ 200/o

es

-~ 15%

e
~ 100/o

ci

o.

5%

0%

Dois pais Custódia Só mãe Família Com um Com mãe Só pai


família dividida substituta parente e um não-
biológica parente

The State of America (Une Bronfenbrenner et ai. eds., 1996) aI p. 117.

50

QUESTÕES DE FAMÍLIA: A IMPORTÂNCIA DA ESTRUTURA FAMILIAR

APÊNDICE F

Os RISCOS DE GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA ESTENDEM-SE ATRAVÉS DAS GERAÇÕES

Os antecedentes familiares da infs~ncia da mulher


ci
e
ci
ci
cl

-o
es
o

ci
E

es
e
E
O

E
o
ci

es

te

~
E
ci
IA

e
ci
ci lii
o
o.
Dois pais Recasado Divorciado! Divorciado! Mãe não
separado — separado — casada
custódia custódia
materna paterna

The Statc oF Amcrica (Une Bronfenbrenncr ct ai. eds., 1996) at p. 120.

51

LYNN D. WARDLE

APÊt’mIcE G
O NÃO USO DE DROGAS PELOS ADOLESCENTES ESTÁ RELACIONADO Á ESTRUTURA FAMIUAR —

Alunos do Ensino Médio nos EUA, 1990-1992


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~ 300/o
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0.)
0)
-e
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0.)

00

~- 10%

0%
Dois pais
Não mora com
parentes
Drogas incluídas são maconha, LSD e outros psicodélicos, cocaína, anfctaminas,

tranquiizantes, barbitúricos, heroína e outros narcoticos.

Média de 3 anos (1 990-1992) por estrutura familiar apresenta da.

The Statc ofAmerica (Une Bnonfenbrenncr et ai. eds., 1996) at p. 13.

52
Só mãe Só pai

LYNN O. WARDLE

PÊI’JDIoa G

O NÃO USO DE DROGAS PELOS ADOLESCENTES ESTÁ RELACIONADO Á ESTRUTURA FAMILIAR —

Alunos do Ensino Médio nos EUA, 1990-1992


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o
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o
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0)
o
~- 10%

0%
580/o
Dois pais Só mãe Só pai Não mora com
parentes

Drogas ineiuídas são maconha, LSD e outros psicodélicos, cocaína, anfctaminas,

tranquilizantes, barbitúnicos, heroína e outros narcoticos.

Média de 3 anos (1990-1992) por estrutura familiar apresentada.

The State ofAmcnica (Une Bronfcnbrenner et ai. eds., 1996) at p. 13.

52

I5
QUESTÕES DE FAMÍLIA: A IMPORTÂNCIA DA ESTRUTURA FAMILIAR

APÊNDICE H

OBTENDO MÉDIA “A”

Por estrutura familiar, estudantes do ensino médio dos EUA, 1990-1992


25~/o

200/o

00

E
o
o)
E
0)
00 10~
e
0)
o)
o

5)

no
Famílias com Famílias chefiadas Outras estruturas
dois pais pela mãe familiares

Média de três anos (1990-1992) apresentadas por estrutura familiar.

Thc Statc of Amcnica (Une Bronfenbrenner et ai. eds., 1996) at p. 11.

53

LYNN O. WARDLE

APÊNDICE 1

A ESTRUTURA FAMILIAR FAZ DIFERENÇA?

Abandono do ensino médio ou da faculdade


Rccasado
Divorciado! Divorciado!
separado separado
custódia custódia
materna paterna
Mae
não
casada
Thc State of Amcnica (Une Bronfenbrenncr et ai. eds., 1996).

54
De jovens ftequentando
m Ensino médio

• Faculdade
7C
6C

E
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o
-e
e
00
-c
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o)
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E
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0)
LO
2C
1c
O
Dois

pais
~1

QUESTÕES DE FAMÍLIA: A IMPORTÂNCIA DA ESTRUTURA FAMILIAR

APÊNDICEJ

INDICE DE CASAMENTOS E DIVÓRCIOS/1.000 — POPULAÇÃO NO BRASIL E NOS EUA

Ano

1950

1955

1960
1965

1970

1975

1980

1985

1990

1995
Brasil

casamento/divórcio

NA / NA*

NA / NA

NA / NA

NA / NA

1,2 / NA

NA / NA

7,89 / NA

7,0 / 0,26

5,4 / 0,53

NA / NA
Estados Unidos

casamento/divórcio

11,0 / 2,55

9,3 / 2,3

8,5 / 2,18

9,3 / 2,18

8,2 / 1,01

10 / 4,82
10,5 / 5,22

10,1 / 4,95

9,8 / 4,70

8,9 / 4,44
* NA — não disponível.
55

LYNN O. WARDLE

APÊNDICE L

A CONFIANÇA DOS ADOLESCENTES NOS OUTROS ESTÁ RELACIONADA Á ESTRUTURA FAMILIAR

Alunos do ensino médio nos EUA, 1990-1992

250/o

00
o 21~/o
4 ~ 200/o
4 4-,
00
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• e
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4.)
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o)
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o
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o)
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o
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E
00
e
4)
4)
o
0%

Média de três anos (1 990-1992) por estrutura familiar.

Thc State ofAmerica (Une Bronfenbrcnner ct a]. eds., 1996) at p. 16.


56
Dois pais Só mãe Outras estruturas
familiares

LYNN O. WAROLE

APÊNDICE L

A CONFIANÇA DOS ADOLESCENTES NOS OUTROS ESTÁ RELACIONADA Á ESTRUTURA FAMILIAR

Alunos do ensino médio nos EUA, 1990-1992

250/o
00
o
o)
$4-
00
~
00
LO
e
o
4.)
E
o)
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e
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o)
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o
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E
o) 5%
00
e
4)
4.)
o
0%
210/o
Dois pais Só mãe
Outras estruturas
familiares

Média de três anos (1990-1992) por estrutura familiar.

The State of America (Une Bronfenbrenner et ai. eds., 1996) at p. 16.

56

QUESTÕES DE FAMÍLIA: A IMPORTÂNCIA DA ESTRUTURA FAMILIAR


APÊNDICE M
A FAMÍLIA EM QUE A CRIANÇA CRESCE FORMA A FAMÍLIA QUE A CRIANÇA CRIA

O ANTECEDENTE FAMILIAR DA INFÂNCIA DOS PAIS

Estado marital para filhos adultos com filhos próprios

E Casados E Separados ou divorciados • Não casados

41)
-e
o
o.
•0
00
-o
00
LO
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o
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4.)
ti-
1
Dois

pais

The State of Amenica (Une Bronfenbrenner ct ai. cds., 1996) ar p. 104.


Recasados Pai
sozinho
57
Filhos adultos entre 27 e 35 anos de idade

EM BUSCA DA FAMÍLIA DO NOVO MILÊNIO

Rosana Fachin
Juíza do TAPR e doutoranda em Direito pela UFPR.

_________________ Sumário __________________

1. Introdução. 2. A paternidade dos laudos. 3. O direito à


convivência entre pais e filhos.

1 INTRODUÇÃO

A família e o Direito de Família estão na pauta das discussões contem-


porâneas. Mudanças, transformações e desafios: temas importantes para
a sociedade e para todos os aplicadores do Direito.
De um lado, os avanços da Constituição brasileira; de outro, a força
avassaladora dos fatos na engenharia genética e na bioética; de uma parte,
grandes progressos; de outra, incertezas. Num lado da margem, o século
XXI que bate às portas com instigantes problemas; noutro, o novo Código
Civil, recém-aprovado, mas com ares de ancianidade.
Enfim, cabe a pergunta: para onde vai o Direito de Família no Brasil?
Sabemos que a superação do modelo colonial de família — herança
histórica que nos foi legada pelo Código Civil de 1916 — sofre transfor-
mações operadas pela Constituição de 1988, “locus” da constituciona]i-
zação do Direito de Família.
Hoje, se evidencia no mundo jurídico a diversidade de composi-
ções familiais, reconhecendo nessas uniões um modelo plural de família a
ser protegido pelo Direito, como também o presente eleva o direito de
viver juntos à condição de direitos fundamentais, orientados pelo princí-
pio da dignidade humana.

59

ROSANA FACHIN

Agora, já no limiar desse novo século, passamos a vivenciar mais


uma experiência, com a aprovação pela Câmara dos Deputados do Novo
Código Civil. Um Código que já nasce velho, pois inspirado sob a égide
da Constituição anterior (Emenda 69), e alheio às transformações atuais,
como, por exemplo, as famílias monoparentais.
É certo que o novo Código compreende as filiações extramatrimo-
niais e adota o princípio da igualdade, entre outros aspectos. Todavia, a
realidade é mais desafiante. Em face da nova codificação, ou indepen-
dente dela, há um horizonte repleto de questionamentos.
O porvir reclama um repensar acerca da pessoa, de seu bem-estar,
que permita reconhecer o refúgio do afeto, a vida sob a comunhão da
afetividade e não apenas de laços formais.
As palavras que delineiam esta breve reflexão tentam dar algumas
indicações para examinar esse momento em que vivemos.
O debate revela um Direito em constante movimento, cujas
relações intersubjetivas denotam que a lei pura e simples não socorre a
todas as perguntas e questionamentos que surgem.
Sem embargo de partir dessas mesmas premissas, procura-se refletir
sobre tais circunstâncias a partir da práxit, a alavanca de reflexão.
Esse caminho pode passar pelo valor jurídico dos acordos homo-
logados em matéria de família, bem como das sentenças que homologam
ou decretam separações, fixam alimentos ou que estabelecem a guarda e
regulamentam as visitas.
Nessa via, buscam-se os problemas que se revelam na prática, no
âmbito da eficácia ou até mesmo da ineficácia de tais ajustes ou
decisões,
à luz do Direito Civil “constitucionalizado”.’
Aliás, a jurisprudência tem dado imensa colaboração, empregando
aos julgados os princípios constitucionais como fonte de interpretação.
A

1 Integra a doutrina o reconhecimento do Direito Civil


“constitucionalizado”: “O Direito
Constitucional penetra, hole, em todas as disciplinas e, via de conseqüência,
também, no
Direito Civil. Além da liberdade, constitucionalmente assegurada, e suas
repercussões no
direito à intimidade, trata a questão da igualdade no Direito Civil, dividindo-a
em momen-
tos básicos: igualdade como não discriminação no exercício, ou do gozo dos
direitos civis;
igualdade em matéria sucessorta.
“Essa perspectiva, em conjunto com as demais, permite vislumbrar a importáncia
da noção
de igualdade, que, como principio vinculante, infiltra-se na seara do Direito
Civil, e acaba
informando condutas legislativas diferenciadas.” (FACHIN, Luiz Edson. Teoria
crítica cio
direito civi/~ 2000, p. 301.)

60

EM BUSCA DA FAMÍLIA DO NOVO MILÉNIO

guisa de exemplo no âmbito do Direito Civil temos a prisão por dívida, nos
casos de ação de busca e apreensão convertida em depósito, na qual há a
primazia do princípio da dignidade humana em face do patrimônio. No
âmbito da família há o recente julgado no Rio Grande do Sul, reconhecendo
a união homossexual como entidade familiar. Esses são fatos que estão a
demonstrar um Poder Judiciário sensível e atilado com o seu tempo.
Na evolução dos direitos garantidos aos filhos, pode oscilar2 a
jurisprudência, mas este rumo aponta para a igualdade que, estando na
Constituição, não pode ser afrontada.
A partir daí se almeja ir além da questão que diz respeito meramente
à formalidade processual, para encontrar nos destinatários desses
comandos elementos para reavaliar essa complexidade.
Cabe então verificar o sentido e o alcance que os litígios de família
têm ou podem ter nessa perspectiva. Não se trata apenas da compreensão
meramente técnica, mas sim da dimensão plural, aberta a outros campos
do saber.

2 Não apenas no Brasil tais variações são sentidas, conforme infere: “Casación,
5 de octubre de

1908. Rev., t. 6, Sec. 1.’, o. 67. Doctrina. El estado civil de hijo natural
adquirido baju cl
impeiío de una ley y co conformidad a dIa, continúa subsistiendo baju cl imperio
de Outra que
exige condiciones diferentes para su adquisicion.

“Comcntario. La norma dei art. 30 de Ia Ley sobre cl Efecto Retroativo de las


leyes, asimila la
adquisición dei estado civil a la que opera, co lo patrimonial, tocante a los
dcrcchos adquiridos.
Es inalterable por la ley posterior co cuanto a su existência misma.
“En ei mismo sentido: Casación, 8 de mayo de 1908. Rev., t. 5, Sec. 1.~, p. 368.
Corte de

Temuco, 31) dc julio de 1937. Rev., t. 37, Sec. 2.0, p. 17.”

“Doctrina. El art. 32 de la Lcy 4.808, dcl aõo 1930, concedió a los hijos
ilegítimos 00 nucvo
derecho, como fue ei de invocar como prueba de la paternidad para demandar
alimentos cl
rcconocimiento hecho por cl padre co la inscripción de nacimiento.”

“(:om arreglo ai art.3.” mc. 1.’ de la Ley dc 7 dc octubre de 1861, dcbicndo


subordinarse ala
lcy posterior los derechos y obligaciones anexos a un estado civil, dicho art.
32 de la Ley 4.808
es aplicable a los hijos simplemente ilegítimos nacidos antes de entrar co
vigeneia este nuevo
precepto.,,

“Comcnrario. El estado civil se originó coo anterioridad a la nueva ley, peru cl


derecho
concedido por ia iey posterior es un cfceto atribuido ai mismo y co cuanto tal
se pucde hacer
valer dcspués dei cambio legislativo por ei hijo ilegítimo.” (RIOSEC() ENRIQUEZ,
Emilio.

EI derecho civi/y Ia constitación ante Iajurisprudenda, 1996, p. 99.)

61

ROSANA FACHIN

Em matéria de família, o julgador tem papel de relevo indiscutível.


Por ações ou omissões, os pronunciamentos do Judiciário acabam edifi-
cando, a seu modo, um conceito de família.3
O componente emocional4 integra uma perspectiva ineliminável
do conflito jurídico nas famílias. Essa subjetividade não pode ser dis-
sociada do fenômeno uma vez que compõe as crises familiais.

3 A intervenção ou não do Estado no estabelecimento de vínculos parentais


familiares suscita
debate e dúvida. Afinal, a paternidade é um direito ou reconhecê-la se tornou
compulsório?
Essa pergunta anima a doutrina nesse debate: “The process of establishing
paternity outside
marriage is still largeiy a voluntary une in the sense that neither the mother
nor the father is
under any automatie legal obiigation tu disciose or register paternity. Also,
therc is no pubiic
agency in England charged with the rcsponsabiiity cstabiishing thc parentage of
allchiidren.
Yet it is possibie tu identify certain features the existing legal process
which, whiie failing
short of compulsion, do exert pressure on individuais tu co-operate. The power
of the court tu
draw advcrsc inferences in the coursc of legal procccdings for non-compiiaoce
with a blood test
direction is une such fcature” (BAINHAM, Andrew. Children: the modero iaw, 1998,
p. 157).
Tradução livre da autora: O processo de estabelecimento de paternidade fora do
casamento
ainda é largamente voluntário no sentido que nem a mãe nem o pai estão sob
qualquer
obrigação legal automática de divulgar ou registrar a paternidade. Também, não
há qualquer
agência pública na Inglaterra que tenha a responsabilidade de estabelecer a
paternidade de
todas as crianças. Ainda, é possível identificar certas características do
processo legal existente
que, enquanto escasso de compuisào, exerce pressão sobre os indivíduos para
cooperarem. O
poder do tribunal atrai inferências adversas dos procedimentos legais, o não
consentimento
para o teste de sangue é uma dessa características.
4 A avaliação do componente emocional não é singela: “Essa avaliação e o
sistema de guarda
única lidam com a presunção implícita de que há um fim no conflito quando o
litígio termina,
porque os iigitantcs não continuarão um relacionamento no futuro. Os
profissionais envolvi-
dos procedem como se não continuasse a haver uma complexa interação entre as
partes por
muito tempo após o julgamento. Quando o juiz decide que a guarda irá para o pai,
contra a
vontade da mãe, ele não tem meios de acessar o ressentimento da mãe a respeito
da decisão
judicial ou a influência desse ressentimento na relação futura com seu filho e
com seu ex-
marido. Temos de considerar que, se o relacionamento mãe-filho muda, isso
repercutirá sobre
o relacionamento pai-filho, bem como sobre o relacionamento entre os irmaos. Em
realidade,
o julgamento por si só traz o risco de colocar novos, inesperados, e insolúveis
conflitos. Muitas
vezes essa forma serve ao desejo do progenitor ‘vencedor’ de remover o
progenitor ‘perdedor’
da vida da criança. Paradoxalmentc, os profissionais vêem tal curso como prova
da decisão
correta tomada. Se o progenitor sem a guarda luta para manter o relacionamento
com seus
filhos e para controlar os sentimentos dc ressentimento causados pela decisão,
esse curso
também é visto como prova de que a decisão foi correta.
“Apesar disso, é possível que, para alguns casais, esse sistema seja a única
forma de manejar suas
disputas. É o caso de comportamento sevcramcnte patológico, e cmocionalmente
abusivo.”(GEHLEN, Manha Kracmer. Estado atual da guarda no Brasil, 1999, p. 110-
111.)

62

EM BUSCA DA FAMILIA DO NOVO MILÉNIO

Por isso, da análise de cada caso emergente no Judiciário, fica claro


que para cada pretensão há sempre uma singularidade a ser decidida pelo
Juiz. Isto se explica pela diversidade de particularidades e também pelo
aspecto emocional que cada um desses processos carrega.
Resta saber se o Judiciário, da forma como está aparelhado, dará
conta de tantas demandas e perspectivas.
Na família5 contemporânea, a igualdade entre os cônjuges e a proibi-
ç~o de designação discriminatória dos filhos, a paternidade socioafetiva,
alcançam o interior das relações familiais, assumindo pais e filhos novos
papéis, segundo observa Ricardo Lira: “(...) não há poder dos pais sobre os
“ 6

filhos. Há deveres e há faculdades que são instrumentos desses deveres


Para levar adiante essa reflexão, vamos nos remeter à questão
atinente a paternidade dos laudos, em primeiro lugar, e à referente a
guarda e a visita, de modo subseqüente.

2 A PATERNIDADE DOS LAUDOS

Inicialmente ressalto a importância da engenharia genética no


auxílio das investigações de paternidade por meio do exame do DNA.
Sem embargo dessa importante contribuição, é preciso equilibrar a
verdade socioafetiva com a verdade de sangue, pois o filho é mais que um
descendente genético, devendo revelar uma relação construída no afeto
cotidiano.
Em determinados casos, a verdade biológica deve dar lugar a ver-
dade do coração; na construção de uma nova família, deve-se procurar
equilibrar estas duas vertentes: a relação biológica e a relação socioafetiva.

3 O DIREITO À CONVIVÊNCIA ENTRE PAIS E FILHOS

Os novos tempos redesenham diferentes papéis no âmbito da fa-


mília, gerando conseqüências sobre figuras jurídicas tradicionais, como,

5 Segundo a doutrina abalizada: “Essa é a família contemporánea, à luz do nosso


ordenamento,
assentado em princípios democráticos, de aperfeiçoamento e dignificação da
pessoa humana”.
(LIRA, Ricardo César Pereira. Breve estudo sobre as entidades familiares, 1999,
p. 81-85.)

6 Ibidem, p. 85.

63

ROSANA FACHIN

por exemplo, a guarda, instituto que se abre para acolher novas percep-
ções, dentre elas a guarda compartilhada.7
A guarda dos filhos, via de regra, é estabelecida na dissolução da
sociedade conjugal, seja por acordo ou por sentença.
Segundo afirmaram os professores José Lamartine Corrêa de Oliveira e
Francisco José Ferreira Muniz~,8 “quanto à atribuição da guarda dos filhos, a
lei estabeleceu uma série de diretivas ao magistrado. Esses critérios não
são, porém, absolutos (...)“.
Regulada pela Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977, em seus
artigos 9~O e seguintes, a guarda, expressão que não significa apenas guar-
dar, importa precisamente em assumir responsabilidade, no interesse da
criança.
Consoante adverte Edgar de Moura Bittencourt,9 “a guarda de
menores é direito condicionado ao interesse de menores. Interesses de
ordem sentimental, moral e material (...)“.
Atender aos interesses do filho menor é, portanto, o núcleo da
questão, de onde Lamaftbte Corré’a de Oliveira e Francisco Muni~0 afirmaram:
“tal interesse e não a autoridade paterna é o eixo do problema. Por isso
mesmo, é o interesse do filho que informa a noção de ‘motivos graves’ que,
segundo o artigo 13, autorizam o juiz a ‘regular de maneira diferente da
estabelecida nos artigos anteriores à situação deles com os pais’.”
Em fase anterior, o Código Civil11 definiu a guarda, dispondo que
compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores, tê-los em sua

7 “A guarda compartilhada, de possível aplicação em nosso direito, deve


ser compreendida como
aquela forma de custódia em que a criança tem uma residência principal (na casa
do pai ou na
casa da mãe) — única e não alternada —, próxima ao seu colégio, aos vizinhos,
amigos, clube,
pracinha, que define ambos os genitores, do ponto de vista legal, como os
detentores do
mesmo dever de guardar seus filhos. Ela é inovadora e benéfica para a maioria
dos pais
cooperativos e é também bem-sucedida mesmo quando o diálogo não é bom entre as
partes,
desde que essas sejam capazes de discriminar seus conflitos conjugais do
adequado exercício da
parentalidade.” (GRISARD FILHO, Waldyr. Guarda compartilhada, 1999, p. 443.)

8 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de; MUNIZ, Francisco José Ferreira.


Direito defiimília,
1990, p. 477.
9 BIITENCOURT, Edgar de Moura. Guarda de filhos, 1981, p. 13.

10 OLIVEIRA, José Lamartine Cortês de; MUNIZ, Francisco José Fcrreira. Op. cit.,
p. 478.
11 A cxegese dogmática da matéria tem síntese conhecida no que concerne à
guarda: “O art. 326 do

Código Civil traçava a seguinte rota: os filhos menores seriam entregues ao


cônjuge inocente, e,

se ambos fossem culpados, as filhas e os filhos varões ficariam sob a guarda da


mãe, sendo que os

64

EM BUSCA DA FAMÍLIA DO NOVO MILÊNIO

guarda e companhia. Tal preceito, bem como os contidos sobre a guarda


na Lei 6.515/77, devem hoje ser lidos à luz do texto constitucional.12
A máxima “no interesse da criança’,,13 preconizada pelo Estatuto
da Criança e do Adolescente’4 relativamente à guarda, é princípio
informador para que o juiz’5 confira a guarda àquele dos pais que efe-

últimos até que atingissem sete anos. A Lei 4.121 /62 alterou a segunda regra,
dispondo que os
filhos menores senam entregues à mãe, se ambos fossem culpados, facultando outra
decisão ao
juiz, se concluísse que haveria prejuízos morais pata os menores. E, ampliando o
que estava no
Decreto-lei 9.701/46, autorizou o juiz, caso os pais não reunissem condições de
ter a guarda
dos filhos menores, deferi-la à pessoa notoriamente idônea da famflia de
qualquer um dos
cônjuges, mesmo que não mantivessem relações sociais com o outro, assegurando-se
o direito
dc visita. A Lei 6.515/77 traçou o caminho que deverá ser atendido, tendo em
vista sempre o
bem do menor. Se a separação é consensual, o juiz homologará o que os cõnjuges
houverem
decidido, se conveniente aos interesses do menor e dos maiores inválidos. Se não
estiverem
preservados, poderá negar a separação (art. 34, § 2.’Q.
“Se o litígio se instala, observa-se o seguinte: a) se a causa é a conduta
desonrosa ou violação
dos deveres do casamento, a guarda é entregue ao inocente (att. 50, caput). Se
ambos forem
culpados, os filhos ficam com a mãe, salvo se o juiz verificar que a solução
trará prejuízos de
ordem moral à prole. Se resta provado que os pais não reúnem condições para o
encargo, ele
será deferido à pessoa notoriamcnte idónea da família de qualquer dos consortes;
li) se o
motivo é a ruptura da vida em comum, há mais de cinco anos (art. 5.~, § 1.0), a
prole fica com
aquele que a tinha em sua companhia. A solução se coaduna com a regra que
assegura o pátrio
poder aos pais, e que, com a igualdade jurídica, é exercido em pé dc igualdade;
e) se a separação
vem apt)iada em doença mental (art. 5.~, § 2.0), os filhos são entregues ao
cônjuge que reunir
melhores condições para assumir o encargo.” (VIANA, Marco Aurélio 5. Curso de
direito civil,
1993, v. 2, p. 130.)
12 Os fenômenos recentes da “constitucionalização” e da “publicização” do
Direito Civil provo-
cam relevantes transformações, nem todas assimiláveis a um mesmo sentido de
aferição
teórica: “(...) a publicizaçiio deve ser entendida como o processo de
intervenção legislativa
infraconstitucional, ao passo que a constitucionalização tem por fito submeter o
direito
positivo 50)5 fundamentos de validade constitucionalmente estabelecidos.
Enquanto o primei-
ro fenômeno é de discutível pettinência, o segundo é imprescindível para a
compreensão do
moderno direito civil.” (LOBO, Paulo Luiz Netto. c’onstitucionali~ação do
direito civi~Ç jan./mar.
1999, p. 101.)
13 “Esta condição especial deve garantir-lhes direitos e deveres
individuais e coletivos, bem como
todas as oportunidades e facilidades a fim de lhes facultar o bom
desenvolvimento fisico,
mental, moral, espiritual e social cm condições de liberdade e de dignidade.”
(PEREIRA,
Tània da Silva, O princípio do melhor interesse da criança, 2000, p. 222.)

14 Ver o artigo 22 da Lei 8.069 de 13 dc julho dc 1990.

15 Nesse sentido, colhe-se da doutrina: “A possibilidade da guarda ser


exercida por Outras pessoas
que não os pais revela uma profunda alteração no instituto do pátrio poder.
Deixa este de ser
discricionário, arbitrário e onipotente (como os romanos o concebiam) e
transforma-se num
poder-dever, um direito-função que desaparece quando os pais não o exercem como
um fator
dc proteção. (...).

65

HOSANA FACHIN

tivamente tenha melhores condições de realizar, dentro de padrões


mínimos, esses interesses.
Daí decorre a possibilidade de, se ausentes as qualificações dos pais,
de outras pessoas, os avós, por exemplo, virem a exercer este mister, caso
neles estejam presentes as condições necessárias. A deficiência apresen-
tada pelos pais poderá ensejar que o Estado-Juiz intervenha em favor do
melhor interesse da criança.
Sob a ótica da família, a guarda é parcela do “pátrio-poder”, con-
forme disposto no artigo 21 do referido Estatuto, atribuindo aos pais o
direito de ter os filhos em sua companhia, enquanto menores, sendo
simultaneamente um dever na medida em que os genitores não podem
abandonar seus filhos, devendo protegê-los, tanto física como moralmente.
Nesse passo, em relação à Constituição de 1988, assinala Lui~
Edson Fachin:
“... do desenho patriarcal da família, retira legitimidade não
apenas da expressão ‘pátrio-poder’, mas, de certo modo, também
de ‘pátrio-dever’, embora esta, bem mais adequada que aquela.
Ambas, porém, remetem para uma função que não toca mais
apenas ao pai e se encontra diluída aos pais, incluindo neces-
sariamente a mãe. Falar-se-ia um pouco melhor em poderes e
deveres parentais, expressão neutra, não discriminatória.”’6

Na expressão pretérita de Orlando Gomes, a guarda se manifesta a


partir da atividade dos pais: “dirigindo-lhes a educação e decidindo todas
as questões do interesse superior deles”;’7 a referência comporta não só a
guarda material, mas também a jurídica.
Por essa razão, aquele que não detém a guarda poderá visitar os
filhos, como enseja o artigo 15 da Lei 6.515/77. Esse direito-dever de
visitação, conseqüência natural do vínculo paterno-filial, corresponde à

“O papel do Juiz, diante das novas tendências ficou sobremaneira valorizado. E


ele que,
cercado de prudente arbítrio e máxima sensibilidade, respeitados os interesses e
os sentimentos
do menor, decidirá o futuro do mesmo, suas chances de uma vida normal e sadia,
longe dos
conflitos familiares, quase sempre insolúveis.” (LEITE, Eduardo de Oliveira.
Temas de direito
de família, 1994, p. 135.)

16 FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos de direito de família, 1999, p. 245-


246.

17 GOMES, Orlando. Direito de família, 1998, p. 129.

66

EM BUSCA DA FAMILIA DO NOVO MILÉNIO

ocasião em que os filhos poderão desfrutar da companhia daquele dos


pais que não detém a guarda. Simultaneamente, propiciará ao visitante
fiscalizar as deliberações daquele que está gerindo a guarda.
A defesa do melhor interesse da criança, no entanto, pode, por
vezes, ser equivocadamente confundida com preconceituoso juízo’8
sobre a conduta da mulher que, pelos papéis tradicionais, via de regra,
detém a guarda dos filhos menores.
Tais universos de considerações não se mesclam, embora even-
tuais conflitos sejam inevitáveis.’9
Uma vez que se trata de realidade dinâmica, seja ela provisória ou
deflriltiva, a guarda poderá ser modificada.20 Nesse campo nada há de absoluto.
A mesma solução se apresenta para os casos de modificação ou de
regulamentação de visitas.
A sanção para aquele que deixa de observar os critérios de fiel
responsável é a perda, por meio da revogação judicial, da guarda ou até
mesmo, eventualmente, do direito de visita.
Nestes casos, a decisão é precedida de um amplo contraditório21
relativo ao direito em jogo, em que se verifica a existência de motivos
graves, ofensivos aos direitos da criança.
18 Eis exemplo significativo dessa realidade: “Dado a comprovação da
conduta irregular da mãe,
com quem em princípio seria aconselhável a guarda e custódia dos filhos no
interesse dos
menores, e dado a circunstância de que com ela poderia advir aos filhos prejuízo
de ordem
moral e física, no confronto de interesse e do comportamento dos côo juges,
melhor ficarão eles
com o pai como decidido.” (Ementa: Apeiação cível Separação judicial. Guarda dos
filhos. Adultério.
Tribunal de Justiça do Paraná, Acórdão 4.842, Apelação Cível. Relator Dcs.
Adolpho Pereira,
Curitiba — 3.’ Vara de Família, Terceira Câmara Cível, Public. 17.09.1987.)
19 A jurisprudência, no tocante à guarda, tem se mostrado sensível à força
criadora dos fatos:
“Embargos infringentes. Guarda de menor à avó. Consentimento dos pais que
trabalham em período integral
em outro município. Acolhimento. E de ser eoncedida a guarda e responsabilidade
da menor à avó
para regularizar a posse de fato já exercida por ela.” (Emb. Infring. 26.029-
5/01 — Curitiba.
Embarg. Iraeema Alberton e outro. Embgo. Ministério Público. ReI. Des. J. Vidal
Coelho.
Ac. 2.629 — I Grupo de Código Civil).

20 A propósito: dispõe o artigo 13 da Lei 6.515/77 que “havendo motivos


graves poderá o juiz,
em qualquer caso, a bem dos filhos, regular de maneira diferente da estabelecida
nos artigos
anteriores a situação com os pais.”
21 Recolhe-se aqui o exemplo: “A decisão de guarda exige do Juiz
critérios de bom senso,
sensibilidade, discernimento no coo junto dc provas e trabalho apresentado por
equipe técnica,
não se colocando na balança a quantidade de amor deste ou daquele genitor, mas
exclusiva-
mente o interesse do menor.”

67

ROSANA FACHIN

Correlato ao tema, há previsão no Código de Processo Civil, artigos


839 e seguintes, segundo o qual, ‘b juiz pode decretar a busca e apreen-
são de pessoas ou de coisas
Esta medida judicial serve para reaver a criança daquele que
injustamente a detém, ou para as hipóteses em que corra algum risco
quanto à sua integridade física ou moral. Embora ideologicamente deva
atender aos direitos da criança, é, muitas vezes, fonte de traumas e de
soluções inadequadas.
A busca e apreensão executa-se pela tomada e entrega da criança a
quem for determinada, essa é a norma abstrata a ser concretizada como
medida satisfativa dos interesses, paradoxalmente, não necessariamente
da criança, mas os do requerente.
Daí as dificuldades enfrentadas diariamente na busca de uma
solução a essas questões, que nem sempre encontram respostas adequa-
das, no andamento forense.
Embora o princípio do “melhor interesse” deva ser a tônica das
decisões, na prática, assevera Tánia da Silva Pereira: “desafia-nos a
identificação no Direito brasileiro, deste princípio por meio das regras de
interpretação e das normas de Direito positivo.”22
Em verdade, a solução fica adstrita ao juiz, a quem cabe a inter-
pretação da regra por meio dos princípios constitucionais, adicionando
perspicácia e sensibilidade na busca da realização do efetivo interesse da
criança.
No texto codificado, a guarda era exercida e se constituía como um
dos direitos inerentes ao “pátrio-poder”. Porém, a moderna concepção
tem atribuído aos pais um complexo de direitos e deveres23 que devem
ser exercidos em relação aos filhos e no interesse desses.

“Apesar da ajuda indispensável do corpo técnico, o Juiz não poderá ficar


adstrito aos laudos,
pois às vezes uma pequena orientação ou mudança no procedimento adotado pelos
profissio-
nais traz resultados positivos.” (CAMARGO, Joecy Machado de. Guarda e
responsabilidade,
1999, p. 275.)

22 PEREIRA, Tânia da Silva, O princ(pio do melhor interesse da criança, 2000, p.


222.

23 A respeito: “A principal diferença entre o direito subjetivo e o poder-dever


é que, enquanto o
direito subjetivo destina-se a realização de um interesse do próprio titular, o
poder-dever é
sempre exercido no interesse alheio.

“Portanto, a guarda — como de resto todos os elementos integrantes do conteúdo


do pátrio-
poder — constitui um dever dos pais e não um direito desses em relação aos seus
filhos.

68

EM BUSCA DA FAMILIA DO NOVO MILENIO

Esse poder-dever a ser exercido pelos pais em proveito dos filhos


constitui uma nova concepção de guarda.24 Nessa tarefa, há que se levar
em consideração a mudança qualitativa esculpida nos valores constitu-
cionais que tutelam a família e a criança, agora tratada como sujeito de
direitos e não apenas repositório das desavenças dos pais.
Dentro dessa nova concepção25 de família, a criança tem merecido
a atenção não só da doutrina, mas também do Poder Judiciário, dando
relevo a questões referentes ao seu interesse e ao seu bem-estar.
Para concluir, esperamos ter trazido, nessa singela contribuição,
idéias sobre a evolução do Direito de Família, no começo deste novo
século, com os paradoxos e desafios que se apresentam.
Em suma, eis aqui o debate que revela a riqueza de um Direito
sempre em constante movimento, valorizando o papel construtivo da
jurisprudência, na qual as relações intersubjetivas denotam que na
aplicação da lei as perguntas e questionamentos que surgem demandam
sensibilidade na solução do caso concreto.
Consiste em ter consigo o menor, reger-lhe a conduta, protegê-lo, obrigando o
seu titular ao
dever de prestar assistencia material, moral e educacional (Estatuto da Criança
e do Adoles-
cente, art. 33). E dado que voltada unicamente para o interesse do menor,
sujeita-se a guarda
às restrições que não recomendam seu deferimento a pessoas inidôncas, imaturas,
ou portado-
ras de qualquer deficiência de natureza psíquica ou comportamental.” (BAPTISTA,
Silvio
Neves. Guarda e direito de visita, 2000, p. 39.)
24 Ensina Eduardo de Oliveira Leite que o “direito de guarda, exercido
pelos pais em relação aos
filhos, é antes um dever de assistência material e moral do que uma
prerrogativa. Acarreta
obrigação dos pais relativamente à sobrevivência física e psíquica dos filhos.
Embora o
Código Civil tenha privilegiado a noção de direito, o novo Estatuto da Criança e
do
Adolescente (Lei 8.069 de 13.07.1990) imprimiu nova característica ao instituto
favore-
cendo a idéia dc dever, em favor dos menores.” (LEITE, Eduardo de Oliveira.
Temas de
direito de família, 1994, p. 133.)
25 No conhecimento do tema, cuja importância merece destaque, a doutrina
revela: “O mundo
jurídico assiste, neste século, fundamental mudança de paradigmas no que
concerne à proteção
da infanto-adolescéncia. Destinatária de inúmeros documentos internacionais de
proteção de
Direitos Humanos, a população infanto-juvenil passa a representar destacada
preocupação das
autoridades públicas dos diversos países, que vêem nela a continuação de seus
projetos como
Nação.” (‘PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da criança e do adolescente, 1997, p.
639.)

69

ART. 1.601

João Baptista VilIeIa


Professor Titular na Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Minas Gerais
CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
Lei n. 10.406, de 10.01.2002
Art. 1.601 — Cabe ao marido o direito de contestar a
paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal
ação imprescritível.
Parágrafo único. Contestada a filiação, os herdeiros
do impugnante têm direito de prosseguir na ação.

NOTA INTRODUTÓRIA

Escrita para ser representada durante o III Congres-


so Brasileiro de Direito de Familia, que se realizou em Ouro
Preto, MG, entre os dias 24 e 27 de outubro de 2001, esta
peça, à falta de tempo para sua mise-en-scéne com um
grupo teatral, fo~ à ocasião, recitada, sob forma de monólo-
go, pela Professora Giselda Maria Fernandes Novaes
Hironaka, da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo. Dado o interesse que despertou, voltou a apresentá-la
a mesma Professora Giselda Maria Hironaka em outros
encontros sucessivos sobre direito de família, entre eles, a
XX Jornada Anual da Associação Teuto-Alemã de Juris-
tas, que se reuniu em Dresden, Alemanha, de 22 a 25 de
novembro de 2001.

71

JOÃO BAPTISTA VILLELA

PRÓLOGO

Esta é uma peça para teatro, sob forma


de monólogo, em ato único. Pode ser repre-
sentada, porém, com a participação de várias
personagens e segmentada em mais de um
ato ou em cenas. Quem a for recitar ou re-
presentar deve estar empenhado em descobrir
o perfil, o caráter, as virtudes e as fraquezas de
cada personagem no contexto da respectiva
atuação. Mas não é uma peça feita de heróis e
vilões. Nem de bruxas e princesas. Ou de prín-
cipes e tiranos. Também não abriga intenções
de criticar. Nem preocupações apostólicas ou
missionárias. Quer apenas mostrar um cená-
rio possível, caso seja sancionado o artigo 1.601
do texto aprovado pelo Congresso Nacional
para ser o novo Código Civil Brasileiro. Está
ambientada no ano de 2003. E o palco das
ações e das omissões, no essencial, é qual-
quer cidade do País. As personagens da peça
são fictícias, sem deixar de ser reais. Não são
melhores nem piores que o seu autor, quem a
estiver lendo, declamando ou interpretando,
vendo ou ouvindo. São apenas gente, como
todos nós.

Lisboa, 22 de outubro de 2001

72

ART. 1.601

ART. 1.601

Ninguém diria, a princípio, que Mafalda e Diogo foram feitos um para


o outro. Todo o contrário é o que se podia entrever, antes que começassem a
namorar. Por isso, quando passaram a ser vistos de mãos dadas nos
corredores da Faculdade, almoçando juntos na cantina ou trocando beijos
furtivos ao se encontrarem ou ao se despedirem, a estranheza era geral. “Isso
não vai longe”, diziam uns. “É fogo de palha”, acrescentavam outros.
De fato. Mafalda era sonhadora, romântica, perdia-se por vezes em
infinitos devaneios. Diogo, ao contrário, tinha o espírito pragmático. Pés
no chão e cabeça muito bem assentada. Era objetivo e determinado.
Daquelas pessoas de quem se costuma dizer “este sabe o que quer!”.
A sabedoria da experiência, por um lado, parecia avalizar a
percepção dos mais céticos. “Lé com lé, crê com cré”, dizia a mãe de
Diogo, ciosa, como toda a mãe, de que o filho caminhasse para uma
união sólida e duradoura.
Mas o que é, afinal, a sabedoria da experiência? Quantas vezes ela não
diz e se desdiz a si própria! Pois não é certo que também se apregoa “duro
com duro não faz bom muro”? Afinal, os contrários se repelem mesmo,
ou antes se atraem? Quantos já não terão dito que no amor cada um
busca o que não tem? Ou aquilo que falta para completar-se. E não havia
aquela expressão, quem sabe hoje meio cafona, que no casal denotava
um ser a metade do outro? “Minha cara metade” não significa ou já
significou o mesmo que “minha mulher” ou “meu marido”?
Como quer que seja, Mafalda e Diogo aprofundaram a convivên-
cia, se conheceram e se amaram. Foi natural que as coisas terminassem
em casamento.
Dizer que no começo tudo foi sonho e delirio soa a lugar-comum.
Mas o lugar-comum não é o lugar do falso. É o lugar da reiteração. E
reiterar a descrição do amor de Mafalda e Diogo equivale aqui a insistir
na paixão com que se entregaram um ao outro, nas suas esperanças e nas
suas vidas.
Ocorre que todo o começo tem também seu fim. Senão deixaria de
ser começo. Não foi preciso muito tempo para que o casamento de Diogo
e Mafalda revelasse sinais de fadiga. As juras foram se fazendo cada vez
mais escassas. Depois se deixaram substituir por diálogos ásperos e comen-
73

JOÃO BAPflSTA VILLELA

tários ferinos. Logo mais, instalou-se o silêncio. E a união de Mafalda e


Diogo, por fim, declarou-se, por todas as evidências, em estado de crise.
Foi a esse tempo que Mafalda reencontrou-se, por puro acaso, com
Miguel, um antigo colega de Faculdade, que sempre lhe tinha parecido
um tipo arrogante e pretensioso. Chovia muito e Mafalda se tinha re-
colhido a um canto no hallde um supermercado. Ali entrara à procura de
uns chocolates. Gostava deles quando tinha os seus 15 ou 16 anos. Mas
depois, os evitava, para manter a linha. Nos últimos meses já não ligava
muito ao corpo e entendeu que devia ceder um pouco aos prazeres da
comida. Ademais, lera recentemente em uma revista feminina que o
chocolate tem reconhecidos efeitos antidepressivos. E era disso mesmo
que ela andava precisando.
Miguel, que tinha saído há alguns meses de um divórcio traumáti-
co, estava no supermercado por motivos bem mais prosaicos. Ia fazer o
suprimento de víveres para a semana. Morava só, em um apartamento
das imediações, e habituara-se à vida de administrador de casa. Para ser
mais preciso, não morava propriamente só, pois que com ele ficava
também Sara, a filha de ano e meio que tivera com sua mulher.
Reconheceram-se de imediato, apesar das alterações que ambos
exibiam. Em Mafalda já não se viam aqueles olhos inquietos que mais
pareciam sorrir do que ver. E Miguel, de rosto, continuava o mesmo,
embora o cabelo, deixado crescer, lhe desse um ar algo menos austero.
Quanto ao vestuário e ao porte, nada fazia lembrar o mauricinho que fora
na Faculdade. Trajavajeans um tanto surrado, tênis e uma t-shirt mais para
o alternativo do que para as grzffes de antes.
Miguel teve a iniciativa de aproximar-se. A conversa, um pouco
reticente ao início, foi-se descontraindo e ganhando a confiança dos
interlocutores. Foi natural, assim, que acabassem por chegar à porta dos
assuntos mais pessoais.
— Então, acabaste por te casares com o Diogo? Quem diria...
— Pois é isso. Soube que tu também te casaste. Estás bem?
— Sim, é verdade. Casei-me e descasei-me. Mas estou feliz. Ou, se
não feliz, apaziguado. Sara, a filha que tive com Maria da Glória, ficou
comigo. Era multo agarrada a mim e a própria mãe não se opôs a que eu
tivesse a guarda. A Glória hoje é uma executiva muito bem-sucedida. Viaja
muito. Enquanto eu, que já gostava de traduções no tempo de faculdade,

74

ART. 1.601

me entreguei a elas de corpo inteiro. Na verdade, nunca fui muito chegado


a arquitetura. Mas meu pai achava que eu era um esteta inato. Imagine.
Acabou forçando um pouco a barra e fui parar na arquitetura. Mas gosto
mesmo é de letras. Especialmente traduções. E um serviço que faço em
casa. Assim, Sara e eu nos fazemos companhia. Não posso me queixar. A
Sara me dá muita alegria. No fundo, parece que é a única mulher com quem
me dei bem...
— Mas na faculdade tu eras muito cortejado. As meninas te
olhavam de tal jeito...
— Pode ser. Mas era coisa à distância. No téte-á-téte a
aproximação
empacava. Não rolava nada. Sabes, no fundo, acho que sempre fui muito
tímido. O papo secava logo. Até que apareceu a Maria da Glória, que tu
não conheceste. Foi também mais ou menos do nosso tempo de
faculdade. Só que, enquanto estávamos na Arquitetura, ela freqüentava
Economia. Tivemos uma paixão fulminante e, desta vez, eu pensava que
tudo tomaria outro rumo. De fato, tomou. Para pior. Mas não quero mais
falar disso... Nem devo te importunar com essas coisas, que, afinal, são
do meu foro íntimo e não fazem qualquer sentido para ti.
A chuva havia passado e Miguel se deu conta de que tinha de voltar
logo, já que deixara Sara com a vizinha e não lhe queria prolongar o
incômodo. Saíram juntos e, ao se despedirem, Miguel apontou com o dedo:
— Tás vendo aquele edifício rosa ali na esquina? Pois é lá que
vivo.
Não é propriamente uma cobertura, mas como fico no 18.0 andar. Acabo
por ter uma boa vista e um ar relativamente saudável. É bom para a Sara,
que, assim, fica um pouco menos exposta à poluição.
Mafalda voltou para casa. E, lá chegando, entregou-se ao que lhe
parecia ser a grande tarefa do dia: devorar a meia parte de sua ração de
chocolates. Mas não o fez com a voracidade que seu apetite antes estava
a pedir. Entregou-se a um ritual quase litúrgico, que retardava o prazer,
mas lhe dava um toque de sensualidade. Desembrulhava cada um dos
bombons com a delicadeza e a volúpia de quem tivesse nas mãos um
tesouro único, frágil e volátil ao menor descuido. Depois, não o comia
logo. Levava-o aos lábios, tocava-lhe com a ponta da língua. Em seguida,
aplicava-lhe suavemente os dentes e deixava que cada porção executasse
uma espécie de bailado sóbrio e con brü. no salão quente de sua boca. Só
depois o mastigava e deglutia.

75

JOÃO BAPTISTA VILLELA

Mafalda sentiu-se melhor ao longo do dia. “De fato”, dizia consigo


mesma, “o chocolate tem um inegável efeito antidepressivo”. O encontro
com Miguel veio-lhe muitas vezes ao pensamento. Achou-o tão humano,
tão seguro. Por que teria se separado? Como era essa tal de Maria da
Glória? E agora: teria alguma namorada?
Teve vontade de telefonar-lhe para continuar a conversa. Haviam
recordado tanto os tempos em que freqüentavam o mesmo curso e tinham
os mesmos colegas e professores. Chegaram a rir de velhas histórias
passadas naqueles corredores da Faculdade: eram tão familiares e, de
repente, pareciam tão distantes e quase dissolvidos no impressionismo
das recordações. Agora retomavam forma, cor e cheiro.
“Telefonar?” Sim, não era má idéia. Mas não lhe tinha o número.
Lembrou-se do prédio onde Miguel disse morar. E também que seu
apartamento ficava no 18.0. Daí ao número não era, contudo, um simples
passo. O prédio, lembrou-se, era de esquina. Em qual das ruas ficaria a
entrada?
Com estes pensamentos na cabeça e uma leve e gostosa sensação
de euforia que não experimentava havia tempos, Mafalda recolheu-se à
cama. Deu um beijo discreto, mas sincero, em Diogo e adormeceu.
Na manhã seguinte, já não havia chuva. Bem ao contrário. O céu
estava limpo e o sol secava suavemente as ruas, com o se lhes pensasse as
feridas que houvesse ele mesmo provocado. Mafalda foi à rua, passou
pelo escritório onde recebia as encomendas de projeto para executar em
casa. Conversou com o diretor. E voltou para casa. Só que, desta vez,
não pelo caminho habitual, senão com um leve desvio que lhe permitisse
certificar-se em que rua ficava o edifício de Miguel. Era, como tinha
pensado, a Rua Corrêa Sampaio. E o edifício ostentava, em placa de latão
polido, um sóbrio 48.
Não foi difícil chegar ao telefone de Miguel. Lá estava, na lista
telefónica, em letras miúdas, mas afirmativas: sob o apto. 1814 da Rua
Corrêa Sampaio, 48, Langdoc, Miguel da Gama.
Antes de ligar, estando só no seu pequeno ateliê, Mafalda teve um
momento de hesitação. Acabou por vencê-lo. Miguel disse-lhe que
também tivera a idéia de telefonar, mas que, do mesmo modo, não tinha
o número. Além disso, pensava que Diogo poderia estranhar, caso
estivesse em casa e fosse ele a atender. Não que visse mal na conversa,

76

ART. 1.601

mas não queria ser ou parecer indiscreto, permitindo-se um gesto que não
era habitual entre eles.
A conversa foi longa e, de novo, provocou em Mafalda uma euforia
suave e apaziguadora. Outros telefonemas se sucederam. Falavam sobre
tudo: cinema, teatro, trabalho, politica, inflação, comissões de inquérito.
De vez em quando, alguns mergulhos no interior dos sentimentos, da
visão de mundo, nas expectativas, esperanças, dúvidas e sonhos.
Dos telefonemas chegaram aos encontros. A princípio, nop/qyground
do edifício em que morava Miguel. Sempre que podia, levava até lá sua
pequena Sara para brincar, de modo que ver Mafalda e Miguel juntos não
suscitava, aparentemente, suspeitas ou fofocas. Até que um dia, Miguel a
convidou a ir até o apartamento para lá tomarem um café. Ao café seguiu-se
uma troca quase superposta de confidências. Simplesmente se tinham reco-
nhecidos apaixonados. Depois outros encontros. E mais outros. Diogo
mergulhara-se cada vez mais no trabalho e não suspeitava do que quer que
fosse. Fazia-lhe bem, contudo, sentir que a mulher estava mais solta e até
mais amigável no pouco que compartiam do dia-a-dia.
Mafalda, contudo, era suficientemente íntegra e lúcida para saber
que aquela situação ambígua, no limite, acabaria mal para todos. Resol-
veu pedir um encontro com Dom Vasco, do Mosteiro de São Bento. Ma-
falda ficara conhecendo Dom Vasco durante um tríduo preparatório da
Páscoa e lhe tinha imensa simpatia. Já havia recorrido aos seus conselhos
em outras situações difíceis. E sempre saíra de alma leve desses encontros.
A conversa com Dom Vasco foi longa, franca e, porque sem
concessões, às vezes penosa para ambos.
Dom Vasco cultivava um respeito extremo pela individualidade da
consciência e pela sua absoluta autonomia. Pensava e dizia que ninguém
pode decidir pelos outros, nem induzir a um comportamento qualquer, pois
este há de ser sempre a expressão da liberdade de cada um. Um ato
objetivamente mau e livre, dizia, valia mais que um ato induzido, ainda que
objetivamente bom. Entre outras coisas, observou a Mafalda, algo que lhe
causou estranheza, por mais que já conhecesse e admirasse a posição
libertária e autonomista de Dom Vasco. “Cada um tem o direito de procurar
a felicidade onde pensa que ela esteja”. Portanto, compreendia e não
censurava o comportamento de Mafalda. Mas suscitou-lhe o olhar para
outros valores. E fé-la compreender que a resposta eufórica do amor não

77

JOÃO BAPTISTA VILLELA

passa de uma concessão à nossa debilidade. É um dar que nada nos pede
ou nos cobra. Portanto, é algo que se situa na periferia de nossa humanida-
de e, por si só, não nos faz crescer. O verdadeiro amor só se acha enquanto
cada um se perde em favor do outro. “Veja isso, no próprio sexo. O
orgasmo, ao contrário do que se pode pensar, não gratifica sobretudo o
corpo de quem o sente, mas o coração de quem o proporciona”. Santa
Catarina de Siena dizia ‘não encontrarás repouso verdadeiro a não ser no
sangue’. Eu penso que isso se aplica plenamente ao repouso que os
parceiros buscam no amor. Sem sangue — isto é, renúncia, sacrifício, dom
de si mesmo — marido e mulher nunca encontrarão repouso. Poderão
encontrar o mesmo conforto efêmero da droga, da comida, do luxo, ou, em
outro nível, do elogio, do sucesso e do reconhecimento. Mas isso não é
repouso. É esquecimento momentâneo”.
Mafalda saiu meio aturdida do encontro com Dom Vasco. Não se
sentia uma mulher infiel, só por ter praticado sexo com outro homem que
não o marido. Não tinha a lembrança precisa das circunstâncias, nem sob
que forças estivera entregue, quando tudo aconteceu. Mas se sentia
imensamente infeliz por ter sonegado a Diogo o dom de si mesma, o
empenho em fazê-lo feliz. Em perceber que nunca esquecera de si
própria para lembrar-se do marido. Enfim, nunca se perdera para encontrar
Diogo. Reconheceu que, nisso, fora egoísta e leviana. Havia em Diogo,
percebeu Mafalda, um potencial exuberante de bondade, de dedicação,
que ela antes contribuíra para sufocar do que para eclodir-se e encontrar
a expansão a que estava preordenado.
A viagem para dentro de si mesma foi impactante e devastadora.
Mafalda sentia que se transubstanciava em outra pessoa. Não, não era
bem assim. Ao contrário: parecia que voltava a ser ela mesma. Percebera-se
integrada e harmônica. Não mais dividida entre sentimentos e projetos
contraditórios. Ganhava, de pouco em pouco, a posse de si mesma.
O encontro com Dom Vasco fora pela manhã. A noite. Mafalda se
achava plenamente reconciliada consigo própria. A hipótese de separar-se
de Diogo não ficava excluída. Mas já não lhe tocava o coração como
alivio. Ou como dor insuportável. Fosse o que fosse, propunha-se a ser
nobre e digna. Tinha-lhe subitamente voltado à memória aqueles versos
de Fernando Pessoa, tão de seu agrado:

78

ART. 1.601

“Para ser grande, sê inteiro: nada


Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive”.

Depois do lanche, dirigiu-se ao ateliê de Diogo. Assentou-se. E


ficou, por um momento, calada, enquanto Diogo lhe dirigia uma olhar de

espanto e mal contida curiosidade.


— Diogo, queria discutir contigo a nossa relação.

— Mafalda, por favor, não recomeça. Tu sabes o quanto detesto


esta coisa de discutir a relação. Será que vocês mulheres não são capazes de
algo mais do que discutir a relação? Basta. Estou farto disso tudo. Não
temos nada que discutir. Muito menos a tal de relação. Aliás, para além de
ser boboca e pedante, essa expressão não cabe aqui. E sabes por que não
cabe? Simplesmente porque não temos relação qualquer. Nem para ser
discutida, nem para deixar de ser discutida.
— Peço-te desculpa. Sabia que tu detestas essa forma de dizer. Mas
é sempre assim que se fala no círculo de minhas amigas. A expressao saiu-
me sem controle. Peço-te mais uma vez desculpar-me. O que quero é
falar sobre nossas vidas. Não podemos continuar como estamos. Não é
bom para ti. Não é bom para mim, tampouco. Não serve a ninguém.
Diogo permaneceu calado. Depois, foi-se-lhe desfazendo o cris-
pado do cenho.
A conversa tomou pé. Lenta e vacilante, ao princípio. Desenvolta
em seguida. Áspera depois, para voltar a ser, de novo, pontuada de
silêncios e hesitações. Nada escapara à sinceridade esquadrinhadora do
casal: o envolvimento com Miguel, os sentimentos de culpa, de solidão,
de abandono. As dores reciprocamente infligidas e suportadas.
Ao cabo de três horas estavam exaustos. Mas a atmosfera perdeu
muito do tom gris sob que há muito se mantinha.
Foi Diogo quem propôs:
— Vamos à cozinha comer qualquer coisa antes de dormir.

No dia seguinte, voltaram a conversar.

79

JOÃO BAPTISTA VILLELA

O degelo se desfez. Mafalda e Diogo se reeencontraram. Ou, quem


sabe, se dirá melhor: tiveram um encontro que até então não tinham
conhecido.
A crise estava superada e a vida adquiria para um e outro nova luz
e novas cores.
Superada? Sim, mas não por muito tempo.
Ao café da manhã de uma trivial quarta-feira, Mafalda está abatida
e mostra um rosto que reenviava seguramente para uma noite insone.
Não beija Diogo, como de hábito. E lhe diz em tom pouco menos que
maquinal:
— Estou grávida.
Mais não disse, nem era preciso. Ambos sabiam que o tratamento,
a que Diogo vinha se submetendo, não fazia progressos. Ainda na
véspera, o médico lhe havia dito que, em face dos resultados laborato-
riais, iria ensaiar uma nova terapia. Aquela era, definitivamente, uma
aspermia rebelde aos tratamentos convencionais.
Não havia espaço para dúvidas. Mafalda trazia no ventre um filho
gerado por Miguel.
Diogo ouviu calado. E calados tomaram o café. Um café cujo
amargo não vinha de seus grãos,½as de tudo o mais que povoava o
imaginário daquele casal apanhado no contrapé de seu afeto.
A cabeça de um e de outro não era mais que um torvelinho de
idéias recorrentes e mal cozidas. Por mais repugnante que em teoria lhes
parecesse, a hipótese de um aborto imediato pairava indelével no
horizonte. Ora se afastava como um cálice de veneno fétido, ora
retornava com o aroma inebriante de uma poção mágica.
De repente, “não mais que de repente”, como no soneto de Viní-
cius, Diogo salta da cadeira e precipita-se sobre Mafalda. Abraça-a com
tal veemência, que Mafalda, por um breve momento, chega a temer que
Diogo a quisesse sufocar. Diogo se entrega a um choro convulsivo, no
que é acompanhado por Mafalda. Depois diz:
— Serei o pai do teu filho.
E, se pronto disse, mais prontamente passou da palavra à ação. Em
toda a gravidez é um companheiro atento e dedicado. Dispensa a Mafal-
da um desvelo, de que ele próprio não se supunha capaz. Vê nascer a
criança. Devota-se a ela com extremos de afeto e auto-esquecimento.

80

ART. 1.601

É um menino, a quem chamaram de Marcelo. Diogo dá-lhe carinho, faz-


lhe companhia, educa-o e zela pelo seu bem-estar. Participa em tudo de
sua vida. De Marcelo também recebe amor, respeito, camaradagem e
companhia. Tornam-se, como é natural e previsível, “amigos para
sempre”, no seio de uma família harmoniosa e feliz. Entrementes, Diogo
está curado e sobrevém-lhes um novo filho. É Helena, que agora divide
com Marcelo a atenção dos pais. Divide? Ou, antes haveria de se dizer
multiplica? O grupo está completo e a vida segue seu curso.
Os anos passam. Mafalda nem mais se lembra do pequeno desvio
que cometera ao início do casamento, levada então, quem sabe, pela sua
imaturidade, insegurança ou mesmo pela sede de aventura — e qual o
jovem que não a tem? — enquanto Diogo, feliz com a mulher que
desposou e os filhos que esta lhe deu, relega o episódio ao destino que
merece: a dissolução misericordiosa e redentora no amor que dedica a
Mafalda.
A história de Diogo e Mafalda não é, entretanto, um conto de
fadas. Carrega as alegrias, mas também as dores do mundo.
Por volta dos sessenta anos de idade, Diogo está acometido de uma
grave disfunção renal, só passível de resolver-se mediante transplante.
Fazem-se os testes e cogita-se de doadores. Apura-se que Marcelo, que se
oferecera de pronto, é o que apresenta melhores indicações de compati-
bilidade. Não hesita em deixar que se lhe extraia um rim para ser trans-
plantado no pai. E, com isso, salva-lhe a vida. A união entre pai e filho
torna-se ainda mais forte.
Um belo dia, ou não tão belo assim, inicia-se na mente de Diogo um
complexo processo de revisão mental. Levado pelas mãos de um amigo,
embalado pelo seu espírito cartesiano e movido pelo gosto que sempre
tivera pelas ciências da natureza, esteve a freqüentar uma série de
seminários, propostos como atividade de extensão na mesma universi-
dade onde se formara arquiteto. Os seminários traziam o sugestivo nome
de Fronteiras da Ciéncia e da Vida.
As exposições e os debates haviam mostrado a Diogo o quanto
estivera desinformado sobre os progressos da biociência. Idéias de que
tinha uma vaga noção apareciam-lhe agora claras e definidas. Entendeu o
percurso insuspeitado que as coisas tinham tomado nos últimos anos.
Ficou sabendo melhor o que era o prqjeto genos.wa e como o DNA se

81

JOÃO BAPTISTA VILLELA

transmitia, como se fora o fio condutor da vida, de geração para geração


com suas seqüências precisas e caprichosas. Compreendia agora o que era
ser pai. Ser pai não era mais um conceito que se pudesse conter nas dobras
obscuras da tradição ou da sentimentalidade. Ganhara foros de categoria
científica. Começa a não se reconhecer pai de Marcelo. Quer estar em
compasso com o seu tempo que é o da pós-modernidade. Aí, na pós-
modernidade, não há lugar para crenças nem superstições. Até se
lembrou de haver visto exposta em uma banca de revista um número da
Newswee/e em que a matéria de capa era uma indagação inimaginável no
seu tempo de estudante. Dizia mais ou menos assim: O Progresso da Ciência
tornará desnecessária a Relz~iâo?
“Mas qual é a saída?”, indagou Diogo de si para si, “depois de tanto
tempo que minha mulher me traiu?” “E que tolo fui eu — aceitar como
filho quem traz a seqüência genética de outro homem, aquele Miguel...”.
“Está bem, que já morreu e não quero tripudiar sobre seu cadáver, mas
provavelmente não passava de um vulgar conquistador...”.
Torturado por este conflito, resolve Diogo procurar um advogado,
a quem relata o seu drama.
— “Ora, não se preocupe” — vai logo dizendo o advogado — “hoje
temos uma solução bem fácil para o seu problema”.
Ato contínuo, mostra-lhe o artigo 1.601 do moderno Código Civil
Brasileiro.
Diogo não tem intimidade com a palavra imprescritível. Volta-se,
ainda aflito, para o advogado:
— Mas Doutor, já faz tanto tempo... mais de trinta anos!
— Por favor, entenda! O que a lei está dizendo é que o seu direito de
excluir a paternidade é... digamos... — para tomar uma palavra do seu
metiê — granítico. Isso mesmo: granítico! E um direito pétreo! Ou ainda, se
quiser, um direito perpétuo! Dura tanto quanto a sua vida. Até mesmo
mais que a sua vida. Se o Sr. vier a faltar depois de aberto o processo — o
que só estou admitindo para efeito de raciocínio, já que o Sr., vê-se logo,
está vendendo saúde — se vier a faltar — por mera hipótese, volto a insistir
— a sua filha, que é, de fato, sua filha, e não filha de um vigarista
qualquer,
poderá continuar a ação até o fim e deixar sua memória de homem sério e
honrado absolutamente limpa e imaculada!
Animado e reconfortado com a entrevista, Diogo decide-se pela
contestação da paternidade. E pergunta:

82

ART. 1.601

— Então, Doutor, quando podemos começar com isso?


— “Amanhã mesmo. De momento bastam apenas algumas peque-
nas formalidades. Em primeiro lugar assine aqui”. E exibe-lhe o instru-
mento de mandato, sem lhe dar a menor chance de ler o que deve assinar.
Diogo hesita, fica um tanto embaraçado. Mas, afinal, toma
coragem e, com voz tímida e gestos algo trêmulos, comenta:
— Doutor, o Sr. não levará a mal, mas tenho um irmão que é
professor de ética e ele.., e ele.., me andou falando de um tal consentimento
informado... Diz que só devemos apor a nossa assinatura em documentos,
depois de bem seguros de quais vão ser as implicações..., as conseqüên-
cias... qualquer coisa assim... Que só nos devemos submeter a uma
cirurgia, por exemplo, se o médico nos explicar claramente quais são os
riscos, as chances de êxito, se há efeitos colaterais... Essas coisas. Deu
até um nome meio sofisticado para esse tal de consentimento. E..., é...,
ah, sim, lembro-me agora. É informed consent. Isso mesmo, informed consent.
Já ouviu falar disso, Doutor?
— Não o vou levar a mal, porque o Sr. manifestamente não sabe o
que é uma relação profissional advocatícia. É algo que se funda na
confiança. Na confiança, compreendeu bem? Ou o Sr. confia plenamente
no que vou fazer, nas minhas opções, na minha estratégia, ou não há
como representá-lo perante os tribunais. Se lhe disse que assinasse, ao Sr.
não cabe formular indagações. Não tergiverse nem inverta as posições.
Ou assina e mostra, com isso, que tem confiança nos meus serviços, ou,
com muito pesar, serei obrigado a sugerir-lhe que procure outro colega!
Vencido pelo tom grave e autoritário do advogado, Diogo assina o
que supõe ser a procuração. Em seguida faz um gesto de levantar-se para
se despedir.
— “Um momento, um momento”, diz o advogado, já agora em tom
brando e quase untuoso. “Há mais uma pequena formalidade. Não mais que
mera formalidade. E preciso que o Sr. deixe um cheque para as despesas
iniciais. Algo assim como cinqüenta ou oitenta mil reais. Quanto aos acertos
finais, ou seja, meus honorários, exames laboratoriais, taxas judiciárias, táxi
para a estagiária, despesas com despachantes e manobristas, gorjeta para isso
e para aquilo, destas coisas falaremos depois. O importante agora é que o Sr.
se sinta livre de seus tormentos e suas preocupações!”
Resumindo e concluindo:

83

JOÃO BAPTISTA VILLELA

Abre-se o processo. A família, antes estruturada e saudável, entra


em vertiginoso estado de decomposição. Para os testes de DNA, os
restos mortais do suposto pai são exumados. O inefável segredo de justiça
dos processos de família volatiza-se. O fugaz romance da mãe com o
estranho vem a público. Vira assunto de todas as rodas. “Então, a
Mafalda, hein... Ora, quem diria...”.
Já com a saúde debilitada, Diogo, o autor na ação, não resiste ao
estresse a que se vê entregue. Dá-se conta do caminho errático que seguiu.
Está cada vez mais deprimido. Não vê retorno. Desesperado, suicida-se.
Helena, já agora seduzida pela engorda de seu quinhão na herança do
pai, está de olho no parágrafo único do art. 1.601. Sucede ao pai no feito.
Afinal, sai-se vencedora. Lógico: que prova seria capaz de elidir a do DNA,
científica, absoluta, imperativa, rigorosamente inquestionável?!
Súmula dos resultados:
Marcelo é excluído da herança. Helena torna-se herdeira única. O
estado emocional de Marcelo está em frangalhos. Passa também a con-
viver com a idéia do suicídio. Já não fala com a irmã, sem, contudo, ter
perdido o afeto que sempre lhe devotou e que tinha sido cunhado em
longos anos de convivência. Comendo à mesma mesa. Dormindo sob o
mesmo teto. Praticando as mesmas travessuras. Seus sentimentos são
contraditórios. “Como pode”, pensa ele, “uma pessoa ser minha irmã
inteira, por tantos anos, e de uma hora para outra passar a ser apenas meia-
irmã? Pode alguém adormecer vinte, trinta, quarenta anos como filho e,
um dia qualquer, despertar como estranho?
Helena, a irmã, agora convertida em meia-irmã, também está
aturdida. Sente-se culpada, mesquinha, desprezível.
Quanto a Mafalda, já não gosta de sair à rua. Quando vai às
compras, por imposição da necessidade, percebe que todos a olham com
um misto de desdém e curiosidade malsã. Ou não passará tudo de
imaginação sua? Está assustada, insegura e, coisa estranha, sente vergo-
nha, mas não se reconhece culpada. Certo dia, ao cruzar com uma antiga
colega de ginásio, faz um gesto tímido de abraçá-la. Mas a colega se es-
quiva e segue seu trajeto. Não sem antes deixar que lhe escape, entre os
dentes, um cruel “Vagabunda!”
84

LIBERDADE SEXUAL E DIREITOS HUMANOS

Maria Berenice Dias


Desembargadora do Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul.
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM.

Indispensável que se reconheça que a sexualidade integra a própria


condição humana. Ninguém pode realizar-se como ser humano se não tiver
assegurado o respeito ao exercício da sexualidade, conceito que compreen-
de a liberdade sexual, albergando a liberdade da livre orientação sexual.
Ao serem visualizados os direitos de forma desdobrada em gera-
ções, é de se reconhecer que a sexualidade é um direito do primeiro
grupo, do mesmo modo que a liberdade e a igualdade, pois compreende o
direito à liberdade sexual, aliado ao direito de tratamento igualitário,
independentemente da tendência sexual. Trata-se assim de uma liberda-
de individual, um direito do indivíduo, sendo, como todos os direitos de
primeira geração, inalienável e imprescritível. E um direito natural, que
acompanha o ser humano desde o seu nascimento, pois decorre de sua
própria natureza.
Também não se pode deixar de considerar a livre orientação sexual
como um direito de segunda geração, por dar origem a uma categoria social
que deve ser protegida, sendo considerada hipossuficiente. A hipossufi-
ciência não deve ser identificada somente sob o viés econômico. E pressu-
posto e causa de um especial tratamento dispensado pelo Direito. Também
devem ser reconhecidos como hipossuficientes o idoso, a criança, o defi-
ciente, o negro, o judeu e também a mulher, porque ela, como as demais
categorias, sempre foi alvo da discriminação social.
Assim sendo, a hipossuficiência é social e, por reflexo, é jurídica.
Trata-se de deficiência de normação jurídica, deixando à margem ou à

85

MARIA BERENICE DIAS

míngua do Direito uma certa categoria social, tão-somente por algum


preconceito ou discriminação, cujo critério nem sempre é o economico.
Não se pode, portanto, deixar de incluir como hipossuficientes os
homossexuais. Pois, mesmo quando fruam de uma condição econômica
suficiente, eles são socialmente e, por reflexo preconceituoso, juridica-
mente hipossuficientes.
Igualmente o direito à sexualidade avança para ser inserido como
um direito de terceira geração. Esta compreende os direitos decorrentes
da natureza humana, mas não tomados individualmente, porém generica-
mente, solidariamente, a fim de realizar toda a humanidade, integralmen-
te, abrangendo todos os aspectos necessários à preservação da dignidade
humana. Entre eles não se pode deixar de incluir e enxergar a presença do
direito de todo ser humano de exigir o respeito ao livre exercício da sexua-
lidade. E um direito de todos e de cada um, que deve ser garantido a cada
individuo por todos os indivíduos, solidariamente. E um direito de solida-
riedade, sem cuja implementação a condição humana não se realiza, não
se integraliza.
A sexualidade é, assim, um elemento integrante da própria nature-
za humana, seja individualmente, seja genericamente considerada. Sem
liberdade sexual, sem o direito ao livre exercício da sexualidade, sem
opção sexual livre, o indivíduo humano — e, mais amplamente, o próprio
gênero humano — não se realiza, do mesmo modo quando lhe falta qualquer
outra das chamadas liberdades ou direitos fundamentais.
Por isso, é totalmente descabido continuar pensando a sexualidade
com preconceitos, isto é, “pré-conceito.?’, ou seja, com conceitos fixados
pelo conservadorismo do passado e engessados para o presente e o futuro.
As relações sociais são dinâmicas. Não compactuam com preconceitos
que ainda se encontram encharcados da ideologia machista e discrimina-
tória, própria de um tempo já totalmente ultrapassado pela história da
sociedade humana. Necessário é pensar com conceitos jurídicos atuais,
que estejam à altura de nosso tempo. Para isso, é imprescindível pensar
novos conceitos. Se não, o nosso pensamento já será velho, quando ainda
não deixamos de ser moços.
Daí o papel fundamental da doutrina e da própria jurisprudência.
Ambas necessitam desempenhar sua função de agente transformador dos
estagnados conceitos da sociedade. Veja-se o que ocorreu com o concu-
binato, antigo e discriminado modo de viver substituído pelo conceito

86

LIBERDADE SEXUAL E DIREITOS HUMANOS

moderno de união estável. A alteração do conceito das chamadas rela-


ções concubinárias foi provocada pelos operadores do Direito. Estes, ao
extraírem conseqüências jurídicas de ditos relacionamentos, fizeram com
que eles chegassem à sede constitucional, ao texto da própria Constitui-
ção, sendo reconhecidos como entidade familiar pelo artigo 226, § 3•o, da
Constituição Federal.
Não há dúvida de que da mesma responsabilidade não pode agora
abrir mão a Justiça com referência às uniões homossexuais. Tal qual as
relações heterossexuais, as homossexuais são relações afetivas, vínculos
em que há comprometimento mútuo, devendo-se reconhecer a união
estável como um gênero que comporta mais de uma espécie: a união
estável heterossexual e a união estável homossexual. Ambas fazem jus à
mesma proteção, e, enquanto não surgir legislação que trate especifica-
mente da união estável homossexual, é de aplicar-se a legislação perti-
nente aos vinculos familiares e, sobretudo, à união estável heterossexual,
que por analogia é perfeitamente aplicável a uniões homossexuais.
Nesse sentido, é mister que se ressalte o enorme significado da
recente positivação de tais direitos que acaba de ocorrer na esfera admi-
nistrativa. Em face da decisão do Supremo Tribunal Federal determi-
nando que se estendessem os benefícios previdenciários aos pares do
mesmo sexo, vem o INSS a normatizar a concessão de benefícios aos
parceiros homossexuais. Esse, com certeza, é o primeiro passo para
enlaçar tais relacionamentos na esfera da juridicidade e, especialmente,
do direito positivo.
Indispensável é reconhecer que os vínculos homoafetivos são mui-
to mais do que meras relações homossexuais. Em verdade, configuram
uma categoria social que não pode mais ser discriminada ou margina-
lizada pelo preconceito, mas deve ser cuidada pelos conceitos científicos
do Direito. Sob pena de o Direito falhar como Ciência e, o que é pior,
como Justiça.
Que entre o preconceito e a justiça, fique o Estado com a justiça e,
para tanto, albergue no direito legislado novos conceitos, derrotando
velhos preconceitos. Esses novos conceitos a doutrina já os está elabo-
rando, como o conceito de união estável homoafetiva como uma outra
espécie de união estável, ao lado da união estável heterossexual.

87

MARIA BERENICE DIAS

Está na hora de o Estado — que se quer democrático e que consagra


como princípio maior o respeito à dignidade da pessoa humana — deixar
de sonegar o timbre jurídico — a juridicidade — a tantos cidadãos que têm
direito individual à liberdade, direito social a uma proteção positiva do
Estado e, sobretudo, direito humano à felicidade.

88
5

ENTIDADES FAMILIARES
CONSTITUCIONALIZADAS:
PARA ALÉM DO NUMERUS CLAUSUS

Paulo Luiz Netto Lôbo


Doutor em Direito Civil (USP). Diretor do Instituto
Brasileiro de Direito de Família. Professor na UFPE
(Mestrado e Doutorado) e na UFAL.

Hominum causa omne ius constitutum sit


(Cícero)

_________________ Sumário __________________

1. Das entidades familiares. 2. Da demarcação jurídico-cons-


titucional do tema. 3. Das normas constitucionais de inclusão.
4. Do melhor interesse das pessoas humanas que integram as
entidades familiares. 5. Do fundamento comum no princípio
jurídico da afetividade. 6. Dos critérios de interpretação cons-
titucional aplicáveis. 7. Da inadequação da Súmula 380 — STF.
8. Da violação do princípio da dignidade humana como con-
seqüência da exclusão. 9. Da inclusão de entidades familiares
implicitas ou equiparadas, no STJ. 10. Da união homossexual
como entidade familiar. 11. Conclusão.

1 DAS ENTIDADES FAMILIARES

O pluralismo das entidades familiares, uma das mais importantes


inovações da Consutuição brasileira, relativamente ao Direito de Família,

89

PAULO LUIZ NETTO LÔBO

encontra-se ainda cercada de perplexidades quanto a dois pontos cen-


trais: a) há hierarquização axiológica entre elas?; b) constituem elas
numerus clausus?
Proponho-me a enfrentar preferencialmente a segunda questão,
gizando-a ao plano da Constituição brasileira, ou seja, extraindo sentido
das normas nela positivadas, utilizando critérios reconhecidos de inter-
pretação constitucional. Várias áreas do conhecimento que têm a família
ou as relações familiares como objeto de estudo e investigação iden-
tificam uma linha tendencial de expansão do que se considera entidade
ou unidade familiar. Na perspectiva da sociologia, da psicologia, da
psicanálise, da antropologia, dentre outros saberes, a família não se
resumia à constituída pelo casamento, ainda antes da Constituição,
porque não estavam delimitados pelo modelo legal, entendido como um
entre outros.
No campo da demografia e da estatística, por exemplo, as unidades
de vivência dos brasileiros são objeto de pesquisa anual e regular do IBGE,
intitulada Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD). Os
dados do PNAD têm revelado um perfil das relações familiares distanciado
dos modelos legais, como procurei demonstrar em trabalho pioneiro, logo
após o advento da Constituição de 1988.1 São unidades de vivência encon-
tradas na experiência brasileira atual, entre outras:2

a) par andrógino, sob regime de casamento, com filhos biológicos;


b) par andrógino, sob regime de casamento, com filhos biológicos
e filhos adotivos, ou somente com filhos adotivos, em que
sobrelevam os laços de afetividade;
e) par andrógino, sem casamento, com filhos biológicos (união
estável);

1 LC)BO, Paulo Luiz Netto. A repersona1izaç~o das relações de família. In:


BITTAR, Carlos
Alberto (Coord.). O direito de família e a Constituição de 7988. S~o Paulo:
Saraiva, 1989, p. 53-81.
2 A tipicidade é aberta, exemplificativa, enriquecida com a experiência
da vida. Orlando Gumes
(O novo direito de família. Porto Alegre: Fabris, 1984, p. 66) refere-se âs
famílias derivadas “da
m~e com os filhos de sucessivos pais, ausentes ou invisíveis, comuns nas camadas
mais baixas
da população”; às que reúnem crianças sem pais, criadas e educadas por
“genitores convencio-
nais”; às comunidades extensas e unificadas; au grupo composto de velhas amigas
aposentadas
que, refugando o pensionato, unem-se para proverem juntas suas necessidades.

90

ENTIDADES FAMILIARES CONSTITUCIONALIZADAS

d) par andrógino, sem casamento, com filhos biológicos e adotivos


ou apenas adotivos (união estável);
e) pai ou mãe e filhos biológicos (comunidade monoparental);
9 pai ou mãe e filhos biológicos e adotivos ou apenas adotivos
(comunidade monoparental);
g) união de parentes e pessoas que convivem em interdependência
afetiva, sem pai ou mãe que a chefie, como no caso de grupo de
irmãos, após falecimento ou abandono dos pais;
h) pessoas sem laços de parentesco que passam a conviver em
caráter permanente, com laços de afetividade e de ajuda mútua,
sem finalidade sexual ou econômica;
i) uniões homossexuais, de caráter afetivo e sexual;
j) uniões concubinárias, quando houver impedimento para casar
de um ou de ambos companheiros, com ou sem filhos;
1) comunidade afetiva formada com “filhos de criação”, segundo
generosa e solidária tradição brasileira, sem laços de filiação
natural ou adotiva regular.

Interessa saber se as hipóteses enunciadas nas alineas g, h, i,j e /


estão ou não tuteladas pela Constituição brasileira. E o que se pretende
investigar, a seguir, sendo certo que as hipóteses a atéf estão nela previstas,
nos três tipos de entidades familiares que explicitou, a saber, o casamen-
to, a união estável e a comunidade monoparental.
Em todos os tipos há características comuns, sem as quais não
configuram entidades familiares, a saber:

a) afetividade, como fundamento e finalidade da entidade, com


desconsideração do móvel econômico;
b) estabilidade, excluindo-se os relacionamentos casuais, episódi-
cos ou descomprometidos, sem comunhão de vida;
e) ostensibilidade, o que pressupõe uma unidade familiar que se
apresente assim publicamente.

O direito também atribui a certos grupos sociais a qualidade de


entidades familiares para determinados fins legais, a exemplo da Lei 8.009,
de 29.03.1990, sobre a impenhorabilidade do bem de família; da Lei

91

PAULO LUIZ NETTO LÔBO

8.425, de 18.10.1991, sobre locação de imóveis urbanos, relativamente à


proteção da família, que inclui todos os residentes que vivam na
dependência econômica do locatário; dos artigos 183 e 191 da Cons-
tituição, sobre a usucapião especial, em benefício do grupo familiar que
possua o imóvel urbano e rural como moradia.
A questão proposta encontra-se estreitamente correlacionada com
aqueloutra enunciada acima, quanto à possível hierarquização axiológica
das entidades familiares, tendo primazia a família constituída pelo
casamento. Parcela ponderável da doutrina assim entendeu, não apenas
por razões de tradição jurídica, mas em virtude das expressões contidas
no ~ 3~O do artigo 226 da Constituição, quando tratou do reconhecimento
da união estável.

2 DA DEMARCAÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL
DO TEMA

A interpretação dominante do art. 226 da Constituição, entre os


civilistas, é no sentido de tutelar apenas os três tipos de entidades fami-
liares, explicitamente previstos, configurando nwmerus c/ausus. Esse en-
tendimento é encontrado tanto entre os “antigos” civilistas quanto entre os
“novos” civilistas, ainda que estes deplorem a norma de clausura que teria
deixado de fora os demais tipos reais,3 o que tem gerado soluções jurídicas
inadequadas ou de total desconsideração deles.
Os que entendem que a Constituição não admite outros tipos além
dos previstos controvertem acerca da hierarquização entre eles, resul-
tando duas teses antagônicas:

1— Há primazia do casamento, concebido como o modelo de família,


o que afasta a igualdade entre os tipos, devendo os demais (união
estável e entidade monoparental) receberem tutela jurídica
limitada.

3 DIAS, Maria Berenice; SOUZA, Ivone M. C. Coelho de. Famílias modernas:


(inter)seções do
afeto e da lei. Revista Brasileira de Direito de Família, o. 8, jan./mar. 2001,
p. 68, entenderam
que a Constituição, “por absoluto preconceito de caráter ético, deixou de
regular certas
espécies de relacionamento”. Como será demonstrado, a Constituição brasileira
tutela as
entidades familiares de qualquer tipo.

92

ENTIDADES FAMILIARES CONSTITUCIONALIZADAS

II— Há igualdade entre os três tipos, não havendo primazia do


casamento, pois a Constituição assegura liberdade de escolha
das relações existenciais e afetivas que previu, com idêntica
dignidade.

O principal argumento da tese 1, da desigualdade, reside no


enunciado final do § 30 do art. 226, relativo à união estável: “devendo a
lei facilitar sua conversão em casamento”. A interpretação literal e estrita
enxerga regra de primazia do casamento, pois seria inútil, se de igualdade
se cuidasse. Todavia, o isolamento de expressões contidas em determinada
norma constitucional, para extrair o significado, não é a operação herme-
nêutica mais indicada. Impõe-se a harmonização da regra com o conjunto
de princípios e regras em que ela se insere.
Com efeito, a norma do ~ 3,0 do artigo 226 da Constituição não
contém determinação de qualquer espécie. Não impõe requisito para que
se considere existente união estável ou que subordine sua validade ou
eficácia à conversão em casamento. Configura muito mais comando ao
legislador infraconstitucional para que remova os obstáculos e dificul-
dades para os companheiros que desejem se casar, se quiserem, a exem-
pio da dispensa da solenidade de celebração. Em face dos companheiros,
apresenta-se como norma de indução. Contudo, para os que desejarem
permanecer em união estável, a tutela constitucional é completa, segun-
do o princípio de igualdade que se conferiu a todas as entidades familia-
res. Não pode o legislador infraconstitucional estabelecer dificuldades ou
requisitos onerosos para ser concebida a união estável, pois facilitar uma
situação não significa dificultar outra.
A tese II, da igualdade dos tipos de entidades, consulta melhor o
conjunto das disposições constitucionais. Além do princípio da igualdade
das entidades, como decorrência natural do pluralismo reconhecido pela
Constituição, há de se ter presente o princípio da liberdade de escolha,
como concretização do macroprincípio da dignidade da pessoa humana.
Consulta a dignidade da pessoa humana a liberdade de escolher e cons-
tituir a entidade familiar que melhor corresponda à sua realização exis-
tencial. Não pode o legislador definir qual a melhor e mais adequada.
C. Massimo Bianca, tendo em conta o sistema jurídico italiano,
ressalta o princípio da liberdade, pois a “necessidade da família como
interesse essencial da pessoa se especifica na liberdade e na solidariedade

93
PAULO LUIZ NETTO LOBO

do núcleo familiar”. A liberdade do núcleo familiar deve ser entendida


como “liberdade do sujeito de constituir a família segundo a própria
escolha e com liberdade de nela desenvolver a própria personalidade”.4
A tese II, inobstante seu avanço em relação á tese 1, ainda é
insuficiente. A questão que se impõe diz respeito à inclusão ou exclusão
dos demais tipos de entidades familiares. Já acompanhei a tese II. As
meditações e as investigações ulteriores da dimensão e do alcance das
normas e princípios contidas no art. 226 da Constituição, em face dos
critérios de interpretação constitucional — notadamente do princípio da
concretização constitucional —, levaram-me ao convenclmento da supe-
ração do numerus clausus, como demonstrarei.
A exclusão não está na Constituição, mas na interpretação.

3 DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS DE INCLUSÃO

Estabelece a Constituição três preceitos, de cuja interpretação


chega-se à inclusão das entidades familiares não referidas explicitamente.
São eles, chamando-se atenção para os termos em destaque:

a) “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção


do Estado”. (caput)
b) “Ç 40 Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade
formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.
e) “Ç 8.0 O Estado assegurará a assistência á família na pessoa de
cada um que a integram, criando mecanismos para coibir a
violência no âmbito de suas relações”.

No caput do art. 226 operou-se a mais radical transformação, no


tocante ao âmbito de vigência da tutela constitucional à família. Não há
qualquer referência a determinado tipo de família, como ocorreu com as
constituições brasileiras anteriores. Ao suprimir a locução “constituída
pelo casamento” (art. 175 da Constituição de 1967-1969), sem substituí-la
por qualquer outra, pôs sob a tutela constitucional “a família”, ou seja,
qualquer família. A cláusula de exclusão desapareceu. O fato de, em seus

4 BIANCA, C. Massimo. Diritto civile. Milano: Giuffrê, 1989, v. 2. p. 15.

94

ENTIDADES FAMILIARES CONSTITUCIONALIZADAS

paragrafos, referir a tipos determinados, para atribuir-lhes certas conse-


qüências jurídicas, não significa que reinstituiu a cláusula de exclusão,
como se ali estivesse a locução “a família, constituída pelo casamento, pela
união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus
filhos”. A interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus
efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos.
O objeto da norma não é a família, como valor autônomo, em
detrimento das pessoas humanas que a integram. Antes foi assim, pois a
finalidade era reprimir ou inibir as famílias “ilicitas”, desse modo consi-
deradas todas aquelas que não estivessem compreendidas no modelo
único (casamento), em torno do qual o Direito de Família se organizou.
“A regulamentação legal da família voltava-se, anteriormente, para a
máxima proteção da paz doméstica, considerando-se a família fundada
no casamento como um bem em si mesma, enaltecida como instituição
essencial”.5 O caput do art. 226 é, conseqüentemente, cláusula geral de
inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha
os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade.
A regra do § 4~0 do art. 226 integra-se à cláusula geral de inclusão,
sendo esse o sentido do termo “também” nela contido. “Também” tem o
significado de igualmente, da mesma forma, outrossim, de inclusão de
fato sem exclusão de outros. Se dois forem os sentidos possíveis (inclu-
s~o ou exclusão), deve ser prestigiado o que melhor responda à realização
da dignidade da pessoa humana, sem desconsideração das entidades
familiares reais não explicitadas no texto.
Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art.
226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de
serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa.
As demais entidades familiares são tipos implicitos incluídos no âmbito
de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família indicado
no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de concretização
dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada
de ductilidade e adaptabilidade.

5 TEPEDINO, Gustavo. In: BARRETO, Vicente (Coord.). A nova família:


problemas e pers-
pectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 56. No sentido coincidente do texto,
diz o autor,
ibidem, que hoje ‘nio se pode ter dúvida quanto à funcionalização da família
para o
desenvolvimento da personalidade de seus membros, devendo a comunidade familiar
ser
preservada (apenas) como instrumento de tutela da dignidade da pessoa humana”.

95

PAULO LUIZ NETTO LÔBO

4 DO MELHOR INTERESSE DAS PESSOAS HUMANAS


QUE INTEGRAM AS ENTIDADES FAMILIARES

Os diversos preceitos do art. 227 referem-se à família, em geral, sem


tipificá-la, ressaltando o interesse das pessoas que a integram, no mesmo
sentido empregado pelo § 8Y do art. 226. Para concretizar os interesses de
cada pessoa humana, especialmente dos mais débeis (criança e idoso), é
imputada à família o dever de assegurá-los (arts. 227, capul; e 230). Ao
contrário da longa tradição ocidental e das constituições brasileiras ante-
riores, de proteção preferencial à família, como base do próprio Estado e da
organização politica, social, religiosa e econômica, a Constituição de 1988
mudou o foco para as pessoas humanas que a integram, razão por que
comparece como sujeito de deveres mais que de direitos.
A proteção da família é proteção mediata, ou seja, no interesse da
realização existencial e afetiva das pessoas. Não é a família per se que e
constitucionalmente protegida, mas o Iocus indispensável de realização e
desenvolvimento da pessoa humana. Sob o ponto de vista do melhor
interesse da pessoa, não podem ser protegidas algumas entidades familiares
e desprotegidas outras, pois a exclusão refletiria nas pessoas que as
integram por opção ou por circunstâncias da vida, comprometendo a
realização do princípio da dignidade humana.

5 DO FUNDAMENTO COMUM NO PRINCÍPIO


JURÍDICO DA AFETIVIDADE

O princípio da efetividade tem fundamento constitucional; não é


petição de princípio, nem fato exclusivamente sociológico ou psicológico.
No que respeita aos filhos, a evolução dos valores da civilização ocidental
levou à progressiva superação dos fatores de discriminação entre eles.
Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da
família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afeti-
vidade, tendo em vista que consagra a família como unidade de relações de
afeto, após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava
funções procracionais, econômicas, religiosas e politicas. A Constituição
abriga princípios implicitos que decorrem naturalmente de seu sistema,
incluindo-se no controle da constitucionalidade das leis. Encontram-se na

96

ENTIDADES FAMILIARES CONSTITUCIONALIZADAS

Constituição Federal brasileira algumas referências, cuja interpretação


sistemática conduz ao princípio da afetividade, constitutivo dessa aguda
evolução social da família, especialmente:

a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem


(art. 227, § 6.0);
b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao
plano da igualdade de direitos (art. 227, §~ 5.~ e 6.0);
c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes,
incluindo-se os adotivos, e a união estável têm a mesma dignidade
de família constitucionalmente protegida (art. 226, §~ 30 e 4.0);
d) o casal é livre para extinguir o casamento ou a união estável,
sempre que a afetividade desapareça (art. 226, §~ 3» e 6.0).

Se todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem, é


porque a Constituição afastou qualquer interesse ou valor que não seja o da
comunhão de amor ou do interesse afetivo como fundamento da relação
entre pai e filho. ~A fortiori, se não há qualquer espécie de distinção entre
filhos biológicos e filhos adotivos, é porque a Constituição os concebe
como filhos do amor, do afeto construído no dia-a-dia, seja os que a
natureza deu, seja os que foram livremente escolhidos. Se a Constituição
abandonou o casamento como único tipo de família juridicamente tute-
lada, é porque abdicou dos valores que justificavam a norma de exclusão,
passando a privilegiar o fundamento comum a todas as entidades, ou seja,
a afetividade, necessário para a realização pessoal de seus integrantes. O
advento do divórcio direto (ou a livre dissolução na união estável) demons-
trou que apenas a afetividade, e não a lei, mantém unidas essas entidades
familiares.
A afetividade é construção cultural que se dá na convivência, sem
interesses materiais, que apenas secundariamente emergem quando
aquela se extingue. Revela-se em ambiente de solidariedade e respon-
sabilidade. Como todo princípio, ostenta fraca densidade semântica, que
se determina pela mediação concretizadora do intérprete, ante cada situa-
ção real. Pode ser assim traduzido: onde houver uma relação, ou comu-
nidade, mantida por laços de afetividade, sendo estes suas causas
originária e final, haverá família.

97

PAULO LUIZ NETTO LOBO

A afetividade é necessariamente presumida nas relações entre pais


e filhos, ainda que na realidade da vida seja malferida, porque esse tipo de
parentesco jamais se extingue.

6 DOS CRITÉRIOS DE INTERPRETAÇÃO


CONSTITUCIONAL APLICÁVEIS

Além dos argumentos já referidos, que apontam para a configuração


de cláusula de inclusão das entidades familiares implicitas, mediante inter-
pretação sistemática e teleológica dos preceitos constitucionais, outros
critérios podem reforçar essa linha de entendimento, de acordo com a
doutrina especializada. Antes, cumpre lembrar a advertência de Friea’rich
Mil/ler,6 forte em H. G. Gadamer, sobre o peso da pré-compreensão — que
precede e condiciona a interpretação — constituída pelos conteúdos,
modos de comportamento, preconceitos, possibilidades de expressão e
barreiras lingüísticas e a inserção do intérprete num contexto de tradição, o
que, certamente, tem contribuído para o predomínio do entendimento da
continuidade da cláusula de exclusão das demais entidades familiares.
Carlos Maximiliano7 aponta-nos três critérios hermenêuticos
compatíveis à hipótese em exame, da interpretação ampla:

a) cada disposição estende-se a todos os casos que, por paridade


de motivos, se devem considerar enquadrados no conceito;
b) quando a norma estatui sobre um assunto como princípio ou
origem, suas disposições aplicam-se a tudo o que do mesmo
assunto deriva lógica e necessariamente;
c) interpretam-se amplamente as normas feitas para “abolir ou
remediar males, dificuldades, injustiças, ônus, gravames”.

Aplicando esses critérios às normas constitucionais mencionadas


sobre as entidades familiares, tem-se: a) as entidades explicitas e impli-
6 MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de uma teoria
constitucional 1.
Trad. de Peter Naumann. Porto Alegre: Fabris, 1995, pAI

7 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenéut.íca e aplicação do direito. Rio de Janeiro:


Forense, 1980, p. 204.

98

ENTIDADES FAMILIARES CONSTITUCIONALIZADAS

citas
enquadram-se no conceito amplo de família, do caput do art. 226,
por paridade de motivos; b) a referência à família tem sentido de prin-
cípio ou origem, devendo aplicar-se a todos os tipos que dela derivam
lógica e necessariamente; c) o conceito de família, sem restrições, do art.
226, aboliu as discriminações e injustiças que as normas de exclusão
continham nas anteriores Constituições brasileiras.
Gomes Canotilhot refere o “princípio da máxima efetividade” ou
“princípio da interpretação efetiva”, que pode ser formulado da seguinte
maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que
maior eficácia lhe dê. Ou seja, na dúvida, deve preferir-se a interpretação
que reconheça maior eficácia à norma constitucional. Aplicando ao tema:
se dois forem os sentidos que possam ser extraídos dos preceitos do art.
226 da Constituição brasileira, deve ser preferido o que lhes atribui o
alcance de inclusão de todas as entidades familiares, pois confere maior
eficácia aos princípio de “especial proteção do Estado” (captíl) e de
realização da dignidade pessoal “de cada um dos que a integram” (~ 8.0).
Konrad Hesse9 diz que a interpretação constitucional é concreti-
zação. Precisamente “o que não aparece de forma clara como conteúdo
da Constituição é o que deve ser determinado mediante a incorporação
da ‘realidade’ de cuja ordenação se trata”. Conseqüentemente, o intérpre-
te encontra-se obrigado à inclusão em seu âmbito normativo dos elemen-
tos de concretização que permitam a solução do problema.
A discriminação é apenas admitida quando expressamente prevista
na Constituição. Se ela não discrimina, o intérprete ou o legislador
infraconstitucional não o podem fazer.

7 DA INADEQUAÇÃO DA SÚMULA 380 - STF

Há forte tendência da jurisprudência dos tribunais brasileiros em


buscar fundamento de decisão, que reputam justa, para solução de conflitos
decorrentes de entidades familiares não explicitadas na Constituição, na
Súmula 380 do STF, cujo conhecido enunciado estabelece:

8 CANOTILHO, Gumes. Direito constitucional Coimbra: Almedina, 1989, p. 162.

9 HESSE, Konrad. Escn~’os de derecho consticional. Trad. de Pedro Cruz Viliaion.


Madrid: Centro
de Estudios Constitucionales, 1992, p. 40.

99

PAULO LUIZ NETTO LÓBO

“Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concu-


binos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do
património adquirido pelo esforço comum

Sabe-se que a Súmula 380 foi uma engenhosa formulação


construída pela doutrina e pela jurisprudência, durante a vigência da
Constituição de 1946, consolidada no início da década de sessenta, para
tangenciar a vedação de tutela legal das famílias constituídas sem casa-
mento, de modo a encontrar-se alguma proteção patrimonial a, freqüen-
temente, mulheres abandonadas por seus companheiros, após anos de
convivência afetiva. Como não era possível encontrar fundamento no Di-
reito de Família, em virtude da vedação constitucional, socorreu-se do
Direito Obrigacional, segundo o modelo das sociedades mercantis ou
civis de constituição incompleta, ou seja, das “sociedades de fato”. Essa
construçao é típica do que certa escola italiana denominou “uso alter-
nativo do direito”. Os efeitos da Súmula limitam-se exclusivamente ao
plano econômico ou patrimonial.
Todavia, o que era um avanço, ante a regra de exclusão das
entidades familiares, fora do casamento, converteu-se em atraso quando
a Súmula continuou a ser utilizada após a Constituição de 1988. Note-se
que até mesmo para uma das entidades familiares por ela explicitadas, a
união estável, continuou sendo aplicada a Súmula, como se não fosse
família e devesse ser considerada uma relação patrimonial, até o advento
da Lei 8.971/94. Houve necessidade de a Lei 9.278/96 dizer o óbvio, a
saber, as questões relativas à união estável deveriam ser decididas nas
varas de família, pois tratavam-se de relações de família.
O equívoco da aplicação da Súmula 380 à união estável expandiu-se
às demais entidades familiares, em decisões consideradas ousadas e
avançadas. Com efeito, o fundamento na orientação contida na Súmula,
ainda quando ela não seja claramente indicada, contém um insuperável
defeito de origem, pois classifica as relações afetivas como relações
exclusivamente patrimoniais, não regidas pelo Direito de Família. Afinal,
que “sociedade de fato” mercantil ou civil é essa que se constitui e se
mantém por razões de afetividade, sem interesse de lucro?
Assim, a Súmula 380 perdeu sua função histórica de realização
alternativa de justiça, pois o impedimento que visava a superar (exclusão
das famílias fora do casamento) deixou de existir.

100

ENTIDADES FAMILIARES CONSTITUCIONALIZADAS

8 DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA

COMO CONSEQUENCIA DA EXCLUSÃO


Por que buscar solução estranha ao direito de família, que degrada e
amesquinha a dignidade humana? Lembre-se de que, segundo conhecida e
sempre lembrada lição de Immanue/ Kant,~~ dignidade é tudo aquilo que não
tem um preço, seja pecuniário seja estimativo, a saber, o que é inestimável,
indisponível, que não pode ser objeto de troca. Diz ele:

“No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade.


Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela
qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está
acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente,
então tem ela dignidade”.

Os conflitos decorrentes das entidades familiares explícitas ou


implicitas devem ser resolvidos à luz do Direito de Família e não do Direito
das Obrigações, tanto os direitos pessoais quanto os direitos patrimoniais
e os direitos tutelares. Não há necessidade de degradar a natureza pessoal
de família convertendo-a em fictícia sociedade de fato, como se seus
integrantes fossem sócios de empreendimento lucrativo, para a solução
da partilha dos bens adquiridos durante a constância da união afetiva,
pois o Direito de Família atual adota o modelo vigorante nos tipos de
casamento e união estável — que deve ser utilizado para os demais tipos —
da igual divisão deles, exceto os recebidos por herança ou adoção ou os
considerados particulares.
Em diversas passagens do capítulo dedicado à família, a Constitui-
ção demonstra sua atenção primordial com a dignidade das pessoas que a
integram, implicitamente, como acima já destaquei, ou explicitamente (Ç 7•o
do art. 226, art. 227, 230). Sujeitos dos deveres são o Estado, a família e
a sociedade, que devem propiciar os meios de realização da dignidade
pessoal, impondo-se-lhes o reconhecimento da natureza de família a
todas as entidades com fins afetivos. A exclusão de qualquer delas, sob
impulso de valores outros, viola o princípio da dignidade da pessoa

10 KANT, Lmmanucl. Fundamen/aíão da metafi’síca dos costumes. Trad. de Paulo


Quintela. Lisboa:

Ed. 70, 1986, p. 77.

101

PAULO LUIZ NETTO LOBO

humana. Para a Constituição (art. 226, ~ 8.0), a proteção à família dá-se


“nas pessoas de cada um dos que a integram”, tendo estes direitos opo-
níveis a ela e a todos (erga omnes). Se as pessoas vivem em comunidades
afetivas não explicitadas no art. 226, por livre escolha ou em virtude de
circunstâncias existenciais, dignidade humana dessas pessoas apenas
estará garantida com o reconhecimento delas como entidades familiares, sem
restrições ou discriminações.

9 DA INCLUSÃO DE ENTIDADES FAMILIARES


IMPLÍCITAS OU EQUIPARADAS, NO STJ

Na apreciação dos casos concretos, com a força dos conflitos


humanos que não podem ser desmerecidos por convicções ou teses jurí-
dicas inadequadas, o Superior Tribunal de Justiça tem sucessivamente
afirmado o conceito ampliado e inclusivo de entidade familiar, notadamen-
te no que concerne à aplicação de determinadas leis que tutelam interesses
pessoais decorrentes de relações familiares. Na consideração do que se
compreende como “entidade familiar” prevista na Lei 8.009/90, sobre
impenhorabilidade do bem de família, o Tribunal, para atender aos fins
sociais da lei, chegou a incluir os solitários (singles), até mesmo os
solteiros,
entre as entidades familiares.’1 Nessas decisões tem prevalecido a tutela
das pessoas, cuja moradia é imprescindível para a realização da dignidade
humana, sobre qualquer consideração restritiva de entidade familiar.
O Tribunal, na aplicação da lei, tem procurado conformá-la às
normas constitucionais, como se observa no seguinte julgado (REsp.
205.170-SP, DJ de 07.02.2000):

Civil Processual civil Locação. Bem de família. Móveis guarnecedores da


residência. Impenhorabilidade. Locatária/executada que mora sozjnha.
Entidade familiar. Caracterização. Interpretação teleoljgüa. Lei 8.009/90.
art~ 1.0 e Constituição Federa4 art. 226, ~‘ 4. ‘ Recurso conhecido e provido.

11 No Brasil, os singles já atingiam o impressionante percentuai de 8,60/o de


todos os domicílios,
em 1999, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios, do
IBGE.

102
ENTIDADES FAMILIARES CONSTITUCIONALIZADAS

1. O conceito de entidade familiar, deduzido dos arts. 1.0 da Lei


8.009/90 e 226, ~ 4?, da CF/88, agasalha, segundo a aplicação
da interpretação teleológica, a pessoa que, como na hipótese, é
separada e vive sozinha, devendo o manto da impenhorabili-
dade, dessarte, proteger os bens móveis guarnecedores de sua
residência.
2. Recurso especial conhecido e provido.

Dir-se-á que a inclusão da pessoa solitária no conceito de entidade


familiar é relativa, ou seja, para os fins da lei de impenhorabilidade do bem de
família, no que concordo, na medida em que tenho o princípio da afetividade
como fundamental para essa qualificação; afetividade somente pode ser
concebida em relação com outro. A situação do que vive só é de entidade
familiar equiparada, para os fins legais, o que não transforma sua natureza.
O maior número de decisões do STJ volta-se à situação de solitários que são
remanescentes de famílias, especialmente os viúvos, separados e divor-
ciados. Seja como for (entidade familiar completa ou equiparada), interessa
ressaltar o fundamento constitucional do julgado, ou seja, o § 4? do art. 226,
que, ao tratar da comunidade monoparental, enuncia: “Entende-se, também,
como entidade familiar ...“. Como acima demonstrado, o significado de
também é inclusivo, e não exclusivo, sendo certa a fundamentação do
Tribunal, ainda que para incluir entidade familiar equiparada.
Outro tipo de entidade familiar, apreciada pelo STJ, tutelada pelo
art. 226 da Constituição, é a comunidade constituída por parentes,
especialmente irmãos. Veja-se o seguinte julgado (REsp. 159.851-SP, DJ
de 22.06.1998):

Execução. Embargos de terceiro. Lei 8.009/90. Impenhorabilidade.


Moradia da família. Irmãos solteiros.
Os irmãos solteiros que residem no imóvel comum constituem
uma entidade familiar e por isso o apartamento onde moram
goza de proteção de impenhorabilidade, prevista na Lei 8.009/90,
não podendo ser penhorado na execução de dívida assumida por
um deles.

Sem embargo do fim proposto da impenhorabilidade, a decisão


cuida de entidade familiar que se insere totalmente no conceito de família

103

PAULO LUIZ NETTO LÔBO

do art. 226, pois dotada dos requisitos de afetividade, estabilidade e


ostensibilidade. Não há, nesse caso, “sociedade de fato” mercantil ou
civil, e não se poderá considerar como tal a comunidade familiar de
irmãos solteiros.
O STJ também enfrentou a controvertida situação da família
decorrente de união concubinária, em caso de seguro de vida realizado
em favor de concubina, por homem casado (REsp. 100.888-BA, DJ de
12.03.2001). O caso está bem retratado nos seguintes trechos da ementa:

Homem casado. Situação peculiar, de coexistência duradoura do de


cujus com duas famílias e prole concomitante advinda de ambas as
relações. Indicação da concubina como beneficiária do benjício. (...)
II — Inobstante a regra protetora da família, consubstanciada nos
arts. 1.474, 1.177 e 248, IV, da lei substantiva civil, impedindo
a concubina de ser instituída como beneficiária de seguro de
vida, porque casado o de cujus, a particular situação dos autos,
que demonstra espécie de “bigamia”, em que o extinto man-
tinha-se ligado à família legítima e à concubinária, tendo prole
concomitante com ambas, demanda solução isonômica, aten-
dendo-se à melhor aplicação do direito.
III — Recurso conhecido e provido em parte, para determinar o
fracionamento, por igual, da indenização securitária.

A decisão, por outros fundamentos, chega à conclusão que seria


idêntica à que tivesse utilizado a interpretação constitucional sustentada
nesta exposição, sem os equívocos que podem ser assim identificados: a) a
decisão entende que se trata de entidades familiares simultâneas (refere a
“duas famílias”), não podendo ter havido a fundamentação infraconstitu-
cional referida (Código Civil), como “regra protetora da família”, o que
supõe a exclusão de uma das duas; b) se são duas famílias, não pode uma
ser legítima e outra “concubinária”, pois ambas estariam sob proteção
constitucional, sobretudo pelo fato de haver afetividade, estabilidade
(“coexistência duradoura”) e ostensibilidade (“prole”); c) as normas infra-
constitucionais, que vedam o adultério — com tendência ao desapareci-
mento, conforme a evolução do Direito — devem ser interpretadas em
conformidade com as normas constitucionais, ou seja, não excluem essas
uniões como entidades familiares e têm finalidade distinta, no plano civil
(causa de separação judicial) e criminal (em forte desuso).

104

ENTIDADES FAMILIARES CONSTITUCIONALIZADAS

10 DA UNIÃO HOMOSSEXUAL COMO ENTIDADE FAMILIAR

As uniões homossexuais seriam entidades familiares constitucio-


nalmente protegidas? Sim, quando preencherem os requisitos de afetivi-
dade, estabilidade e ostensibilidade.’2 A norma de inclusão do art. 226 da
Constituição apenas poderia ser excepcionada se houvesse outra norma
de exclusão explicita de tutela dessas uniões. Entre as entidades fami-
liares explícitas há a comunidade monoparental, que dispensa a exis-
tência de par andrógino (homem e mulher).
A ausência de lei que regulamente essas uniões não é impedimento
para sua existência, porque as normas do art. 226 são auto-aplicáveis,
independentemente de regulamentação. Por outro lado, não vejo neces-
sidade de equipará-las à união estável, que é entidade familiar com-
pletamente distinta, somente admissível quando constituída por homem
e mulher (~ 30 do art. 226). Os argumentos que têm sido utilizados no
sentido da equiparação são dispensáveis, uma vez que as uniões homos-
sexuais são constitucionalmente protegidas enquanto tais, com sua natu-
reza própria.
O argumento da impossibilidade de filiação não se sustenta, pelas
seguintes razões: a) a família sem filhos é família tutelada constitucional-
mente; b) a procriação não é finalidade indeclinável da família constitu-
cionalizada; c) a adoção permitida a qualquer pessoa, independentemen-
te do estado civil (art. 42 do ECA), não impede que a criança se integre à
família, ainda que o parentesco civil seja apenas com um dos parceiros.
Os tribunais brasileiros demonstram maior receptividade para atri-
buição de efeitos às uniões homossexuais, ainda que sob a indevida
qualificação de “sociedade de fato”. O Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul julgou caso decorrente da relação homossexual de dois homens, que
viveram juntos durante trinta anos. Um deles, que adotou uma menina,
deixou património que foi disputado entre a filha e o outro companheiro. O
Tribunal reconheceu, com razão, a existência da entidade familiar; e,

12 As legislações infraconstitucionais estrangeiras que têm regulado as


uniões homossexuais
referem a “relação duradoura de afeição mútua”, como enuncia a Lei de União
Civil do Estado
de Vermont, Estados Unidos, de abril de 2000. Cf. WADLINGTON, Walter; O’BRIEN,
Raymond C. (Orgs.). Fami!y Iaw satutes, ínternational conventionsand un~form
Iaws. New York:
Foundation Press, 2000.

105

PAULO LUIZ NETTO LÔBO

segundo o modelo do Direito de Família, decidindo pela meação entre a


filha e o companheiro sobrevivente. A justiça federal do Rio Grande do Sul
tem decidido no sentido de determinar ao INSS a concessão aos parceiros
homossexuais dos mesmos benefícios previdenciários devidos aos cônju-
ges e companheiros de união estável.13
Além da invocação das normas da Constituição que tutelam
especificamente as relações familiares, preferidas nesta exposição, a
doutrina tem encontrado fundamento para as uniões homossexuais no
âmbito dos Direitos Fundamentais, sediados no art. 5,0, notadamente os
que garantem a liberdade, a igualdade sem distinção de qualquer natureza,
a inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Tais normas assegu-
rariam “a base jurídica para a construção do direito à orientação sexual
“ 14
como direito personalissimo, atributo inerente à pessoa humana

11 CONCLUSÃO

Os tipos de entidades familiares explicitamente referidos na Cons-


tituição brasileira não encerram numerus clausus. As entidades familiares,
assim entendidas as que preencham os requisitos de afetividade, estabili-
dade e ostensibilidade, estão constitucionalmente protegidas, como tipos
próprios, tutelando-se os efeitos jurídicos pelo Direito de Família e
jamais pelo Direito das Obrigações, cuja incidência degrada sua digni-
dade e das pessoas que as integram. A Constituição de 1988 suprimiu a
cláusula de exclusão, que apenas admitia a família constituída pelo
casamento, mantida nas Constituições anteriores, adotando um conceito
aberto, abrangente e de inclusão.
Violam o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana
as interpretações que (a) excluem as demais entidades familiares da tutela
constitucional ou (b) asseguram tutela dos efeitos jurídicos no âmbito do
direito das obrigações, como se os integrantes dessas entidades fossem
sócios de sociedade de fato mercantil ou civil.

13 As referências às decisões estão contidas cm artigo de Roldão Amida,


publicado no endereço
eletrõnico <estadao.com.br>, Seção Geral, de 9 de abril dc 2001.

14 FACHIN, Luiz Edson. Aspectos jurídicos da união de pessoas do mesmo


sexo. RT732/48.
No mesmo sentido: MORAES, Maria Celina Bodin de. A união entre pessoas do mesmo
sexo:
uma analise sob a perspectiva civil-constitucional. Revista Trimestral de
Din’ito Civil, v. 1, jan./mar.

2000, p. 89-112.

106

ENTIDADES FAMILIARES CONSTITUCIONALIZADAS

Cada entidade familiar submete-se a estatuto jurídico próprio, em


virtude dos requisitos de constituição e seus efeitos específicos, não
estando uma equiparada ou condicionada aos requisitos da outra. Quan-
do a legislação infraconstitucional não cuida de determinada entidade
familiar, ela é regida pelos princípios e regras constitucionais, pelas regras
e princípios gerais do Direito de Família aplicáveis e pela contemplação
de suas especificidades. Não pode haver, portanto, regras únicas, segun-
do modelos únicos ou preferenciais. O que as unifica é a função de /ocus
de afetividade e da tutela da realização da personalidade das pessoas que
as integram; em outras palavras, o lugar dos afetos, da formação social
onde se pode nascer, ser, amadurecer e desenvolver os valores da pessoa.
Não se pode enxergar na Constituição o que ela expressamente
repeliu, isto é, a proteção de tipo ou tipos exclusivos de família ou da
família como valor em si, com desconsideração das pessoas que a inte-
gram. Não há, pois, na Constituição, modelo preferencial de entidade
familiar, do mesmo modo que não há família de fato, pois contempla o
direito à diferença. Quando ela trata de família está a referir-se a qualquer
das entidades possíveis. Se há família, há tutela constitucional, com
idêntica atribuição de dignidade.

107
6

A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO


HOMOERÓTICA*

José Carlos Teixeira Giorgis


Desembargador-RS. Professor da PUC-RS,
das Escolas Superiores da Magistratura e do Ministério
Público-RS. Mestrando pela PUC-RS.

_________________ Sumário __________________

1. Notas iniciais. 2. O homoerotismo como vocabulário. 3. O


homoerotismo e a união estável. 4. A força ativa da Constitui-
ção. 5. A união homoerótica e o princípio da dignidade da
pessoa humana. 6. A união homoerótica e o princípio da igual-
dade. 7. A união homoerótica e a analogia. 8. A união homoeró-
tica e a jurisprudência. 9. Conclusão. 10. Bibliografia.

1 NOTAS INICIAIS

Já são significativas as refregas judiciais sobre questões que envol-


vam a homossexualidade e que, antes tímidas e quase sem registros nas
estatísticas forenses, desestimulavam a produção jurídica.
Algumas causas, como as resistências sociais e psicológicas, decorren-
tes dos preconceitos largamente difundidos, até a bibliografia praticamente
inexistente em português, impediram o desenvolvimento de discussões na
área, panorama que se alterou a partir do projeto da chamada parceria rim! e
com o fortalecimento de entidades e organizações não-governamentais que

* O trabalho inclui e acrescenta argumentos à posição adotada na APC


70001388992 (TJRS,
14.03.2001) e no artigo “A relação homoerótica e a partilha de bens”. Revista
Brasileira de
Direito de Família 9/138.

109

JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS

labutam pelos direitos civis e políticos de gays, lésbicas e travestis. Além


disso, a substituição do discurso tradicional dos movimentos de esquerda
(com bandeiras como a do socialismo) pelo discurso da Proteção da subje-
tividade e da liberdade comportamental e a transformação dos padrões
culturais acerca da masculinidade, da posição de homens e mulheres na
sociedade — processo profundo e de repercussões imprevisíveis, mas fru-
tíferas — abriram espaços à vida erótica dissonante dos monolíticos
referenciais da outrora intocada e inabalável visão do mundo heterossexual.1
Hoje são freqüentes as decisões sobre variados aspectos da homoafedvi-
dade, construindo-se repertórios que alimentam as demandas e que despertam
estudos, sendo numerosas as publicações em que especialistas se debruçam
sobre flagrantes dessas uniões, o que contribui para a mudança do paradigma
que sustentava o farisaísmo e a indiferença no manejo de tema relevante.
Uma das controvérsias diz com a partilha do patrimônio havido por
homossexuais de vida comum, ora solvida nas regras do Direito Obriga-
cional, como se fora uma sociedade de fato.
Na linha do entendimento dominante, o parceiro tem direito de
receber a metade do patrimônio adquirido pelo esforço comum, reconhe-
cida a existência de sociedade de fato com os requisitos do artigo 1.363 do
Código Civil, aceitando-se uma mútua obrigação de combinar ânimos
para lograr fim, eis que a negativa da incidência de dita regra tão ampla e
clara significa prevalecer princípio moral (respeitável) que recrimina o
desvio de preferência sexual, desconhecendo a realidade que esta união,
embora criticada, existe e produz efeito de natureza obrigacional e patri-
monial que o Direito Civil comum abarca e regula.
O Direito, segundo a decisão, não regula sentimentos, contudo
dispõe sobre os efeitos que a conduta determinada por esse afeto pode
representar como fonte de direitos e deveres, criadores de relações jurídicas
previstas nos diversos ramos do ordenamento, algumas ingressando no
Direito de Família, como o matrimônio e, hoje, a união estável, outras
ficando à margem dele, contempladas no Direito das Obrigações, das

1 RIOS, Roger Raupp. Direitos humanos, homossexualidade e uniões homossexuais.


In: Direitos
humanos, ética e direitos reprodutivos. Porto Alegre: Themis, 1998, p. 130.

110

A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO HOMOEROTICA

Coisas, das Sucessões, mesmo no Direito Penal, quando a crise da relação


chega ao paroxismo do crime, e assim por diante.2
A inclusão da discussão no Direito Obrigacional é iterativa, achan-
do-se que o concubinato de dois homens, como se casados fossem, é uma
relação esdrúxula que até contrasta com a alegada sociedade de fato,3 ou
mesmo não gera direitos, embora a coabitação.4
O objetivo desta meditação é discutir a relação homossexual como
entidade similar à união estável.

2 O HOMOEROTISMO COMO VOCABULÁRIO

E irrefutavel que a homossexualidade sempre existiu, podendo ser


encontrada nos povos primitivos, selvagens e nas civilizações mais anti-
gas, como a romana, a egípcia e a assíria, tanto que chegou a se relacionar
com a religião e a carreira militar, sendo a pederastia uma virtude castrense
entre os dórios, citas e normandos; os gregos atribuíam a ela predicados
como a intelectualidade, a estética corporal e a ética comportamental,
sendo considerada mais nobre que a relação heterossexual e prática reco-
mendável por sua utilidade.
Com o cristianismo, a homossexualidade passou a ser tida como uma
anomalia psicológica, um vício baixo, repugnante, já condenado em pas-
sagens bíblicas . com homem te deitarás como se
fosse mulher: é
(.. o não
abominação, Levítico, 18:22) e na destruição de Sodoma e Gomorra, tanto
que alguns teólogos modernos associam a concepção bíblica de homosse-
xualidade aos conceitos judaicos que procuravam preservar o grupo étnico,
e, nesta linha, toda a prática sexual entre os hebreus só se poderia admitir
com a finalidade de procriação, condenado-se qualquer ato sexual que
desperdiçasse o sêmen; já entre as mulheres, por não haver perda seminal, a
homossexualidade era reputada como mera lascivia.

2 STJ, 4.’ Turma, REsp. 148897/MG, Rei. Mi Ruy Rosado de Aguiar.

3 TJRJ, APC 7355/99, 14.’ Câmara Cível, j. 29.09.1998; APC 1813/93, 1.’ Câmara
Cível,

14.09.1993; APC 3.309/92, 8.’ Câmara Cível, j. 24.11.1992.


4 TAMG, APC 226.040-8, 2.’ Câmara Cível.

111

JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS

Os povos islâmicos têm a homossexualidade como um delito


contrário aos costumes religiosos.
A Idade Média registra o florescimento da homossexualidade em
mosteiros e acampamentos militares, sabendo-se que, na Renascença, artistas
como Miguel Ângelo e Francis Bacon cultivavam a homossexualidade.
Do ponto de vista psicológico e médico, a homossexualidade
configura a atração erótica por indivíduos do mesmo sexo, uma perversão
sexual que atinge os dois sexos — sendo considerado homossexual quem
pratica atos libidinosos com indivíduos do mesmo sexo ou exibe fantasias
eróticas a respeito (Delton Croce e Delton Croce Júnior) — ou tnversao
sexua4 que se caracteriza pela atração por pessoas do mesmo sexo (Gui-
lherme Oswaldo Arbenz), ou, ainda, por perversão sexual que leva os indi-
víduos a sentirem-se atraidos por outros do mesmo sexo (Hélio Gomes), com
repulsa absoluta ou relativa para os do sexo oposto.5
Teorias de cunhos psicanalítico, social e biológico explicam as
causas da homossexualidade sob diferentes pontos de vista, havendo se
alterado o conceito: eis que a homossexualidade deixou de ser tida como
uma patologia, tanto que, em 1985, o Código Internacional de Doenças
(CID) foi revisado, mudando-se o homossexualismo, então entre os
distúrbios mentais, para o capítulo os sintomas decorrentes de circunstáncias
psicossociais, ou seja, um desajustamento social decorrente da discrimi-
nação religiosa ou sexual.
Em 1995, na última revisão, o sufixo ismo que significa doença, foi
substituído pelo sufixo idade, que designa um modo de ser, concluindo os
cientistas que a atividade não podia mais ser sustentada enquanto diagnós-
tico médico, porque os transtornos derivam mais da discriminação e da
repressão social, oriundos de um preconceito do seu desvio sexual.
A proibição da homossexualidade é considerada uma violação aos
direitos humanos pela Anistia Internacional, desde 1991.6
A história genética da humanidade propugna uma moral sexual
mais liberal, na qual as práticas sexuais devem ser consideradas primeiro
mecanismos de união e apenas secundariamente meios de procriação, e
5 BRITO, Fernanda de Almeida. União afetiva entre homossexuais e seus aspectos
jurídicos. Sào Paulo:

LTr, 2000, p.46-48.


6 BRITO, Fernanda de Almeida. Op. eit., p. 43-46.

112

A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO HOMOERÔTICA

que o comportamento homossexual tem sido censurado pelas sentinelas da


moral ocidental judaica-cristã e tratado como doença na maioria dos países.7
Para DesmondMorris, todavia, a função primária do comportamento
sexual é a reprodução da espécie, a qual é manifestamente posta de lado
no acasalamento homossexual, ressaltando ele que nada existe biolo-
gicamente anormal num ato de pseudocoPula homossexual, o que muitas
espécies fazem, em variadíssimas circunstâncias, sendo a constituição de
casais homossexuais apenas despropositada sob o aspecto reprodutivo,
visto que não produz descendência e que desperdiça adultos potencial-
mente reprodutores.8
Não é negando direitos à união homossexual que se fará desaparecer
o homossexualismo, pois os fundamentos destas uniões se assemelham ao
casamento e à união estável, sendo o afeto o vínculo que une os parceiros,
à semelhança dos demais casais, e que gera efeitos jurídicos.
A homossexualidade é considerada um distúrbio de identidade e não
mais uma doença, não sendo hereditária nem uma opção consciente, eis que,
como ensina o psicólogo Roberto Graüà, a homossexualidade é fruto de um
pré-determinismo psíquico primitivo, também estudado a partir das con-
tribuições da etiologia sob a denominação de imprinting originado nas
relações parentais das crianças desde a concepção até os três ou quatro anos
de idade. Já aí, nesta tenra idade, constitui-se o núcleo da identidade sexual
na personalidade do indivíduo, que será mais ou menos corroborada de
acordo com o ambiente em que ela se desenvolva, o que posteriormente
determinará sua orientação sexual definitiva. Portanto, a homossexualidade
não é opção livre, é determinismo psicológico inconsciente.9
Esclarece Oswaldo Pataro que na etiologia do homossexualismo em
seres humanos apontam-se quatro possibilidades explicativas: anomalia
genética, perturbação endócrina, condição psicológica ou mistura de
duas ou mais dessas possibilidades.
Freud, um dos primeiros a idealizá-la, aceitava que a orientação era
uma anormalidade do desenvolvimento emocional, sendo fator essencial

7 WILSON, Edward. A na/ure~a humana. S~o Paulo: Edusp, 1981, p. 141.

8 MARTINS DA SILVA, Américo Luis. A evolução do direito e a realidade das nnióes


sexuais. Rio

de Janeiro: J,umen Juris, 1996, p. 305.

9 GUIMARÂES, Marilene Silveira. Reflexões acerca de questões patrimoniais


nas uniões forma-
lizadas. In: Dirrito de família, aspectos constitudonais, processuais e drís.
São Paulo: RT, p. 201-202.
113

JOSE CARLOS TEIXEIRA GIORGIS

a fixação do jovem à sua mãe e hostilidade ao pai, o que acabaria por


levá-lo a uma tendência de comportamento feminino; ou seja, as formas
de homossexualismo masculino e feminino representam uma espécie de
imaturidade emocional decorrente da falta de identificação com o papel
adulto em seu próprio sexo.
Após várias teorias, lembra Pataro que a psicanálise propôs que o
homossexualismo é um desvio adquirido do impulso sexual, que expressa
um fracasso do aparecimento edipiano e uma regressão a impulsos e
fantasmas pré-genitais, derivado de diversos fatores, uns constitucionais,
outros acidentais e, ainda, outros pertencentes à estrutura familiar e às
personalidades dos pais.
Anote-se que a tese de que o homossexualismo provém do estado
da natureza com origens biológicas e não culturais ganha corpo atualmente,
em vista de descobertas por cientistas canadenses de que a região do
cérebro ligada às funções de aprendizagem é l3~/o maior nos homosse-
xuais, restando sugerido que há um componente biológico na orientação
sexual. Sublinhe-se, também, que o corpo caloso do cérebro, ligado à
habilidade verbal e motora, é também maior naquele núcleo (Witelson,
1994) que gêmeas idênticas têm três vezes mais probabilidades de serem
lésbicas que gêmeas fraternas (Pillard e Bailey, 1993), que os homosse-
xuais têm mais microestrias em suas impressões digitais (Kimura, 1994) e
que o hipotálamo, parte do cérebro que regula o apetite, a temperatura do
corpo e o comportamento sexual, é menor nos homossexuais (Levay, 1994).
Para renomado psicanalista, toda a época produz crenças sobre a
natureza do bem e do mal, do sujeito e do mundo, que, aos olhos dos
contemporâneos, sempre aparecem como óbvias e indubitáveis.
Os séculos XIV, XV, XVII e XVIII criaram a feitiçaria. E, porque a
crença na bruxaria existia, existiam bruxas. As bruxas eram um efeito da
crença em bruxaria, e sem esta crença não haveria mulheres que sentissem,
agissem, se reconhecessem e fossem reconhecidas como bruxas.
Tampouco haveriam moralistas, religiosos, médicos etc. que se
debatessem em infindáveis querelas sobre as causas e as manifestações
do diabolismo ou sobre a competência dos que estavam autorizados a
distinguir as falsas das verdadeiras feiticeiras. Com o advento do imagi-
nário racionalista e cientificista dos séculos XVIII e XIX, pereceram as
crenças na feitiçaria e, com elas, as feiticeiras.

114

A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO HOMOERÓTICA

Outros tempos, outras crenças, outros sujeitos.


Acrescenta ele que as crenças a respeito da sexualidade, como as
crenças da feitiçaria, também são apresentadas como fundadas em fatos
evidentes por si mesmos.
Assim, desde o século XIX passou-se a crer na existência de uma
divisão natural dos sujeitos em heterossexuais, bissexuais e homossexuais,
crença que se impõe como um dado imediato da consciência, com o algo
intuitivo e, portanto, universalmente válido para todos os sujeitos em
qualquer circunstância espaço-temporal.
No entanto, com um pouco de imaginação, pode-se conjeturar um
futuro em que esta classificação fosse flexibilizada e enriquecida com
outros tipos sexuais, como os multzssexuats, assexuais e alien-sexuais, estes
últimos homens e mulheres que se sentiriam atraidos por seres extra-
terrestres. Neste universo remoto, ideologicamente copiado da cultura
moral, as novas gerações aprenderiam como se sente, sabendo que sente,
uma atração multissexual ou alien-sexual, daí surgindo livros, vídeos e
programas com informações sobre o assunto; encontros e conferências
seriam realizados para apurar as causas, as origens genéticas, psicológicas
ou históricas daquelas características sexuais, a parecendo movimentos em
defesa dos direitos civis dos alien-sexuais, outros acusando-os de terem
uma tendência sexual antinatural, posto que se todos fossem atraidos por
extraterrestres a reprodução da espécie terráquea estaria ameaçada...
Fora deste enfoque, toda a discussão sobre a chamada homossexua-
lidade corre o risco de tornar-se um exercício fútil para mentes acadê-
micas, e, na linha de Wittgenstein, Foucault ou Richard Ror~y, pensa-se que
todos são seres de linguagem, pois nada, nem a subjetividade ou a sexuali-
dade, escapa ao modo como se aprende a perceber, sentir, descrever,
definir ou avaliar moralmente o que se e.
Nossa subjetividade e nossa sexualidade são realidades lingüísti-
cas, não existindo uma coisa sexual objetiva que preexista à forma como
se conhece lingüisticamente. A palavra não é aquilo que se diz, falsa ou
verdadeiramente, o que a suposta coisa sexual é em si, mas aquilo que a
palavra diz que ela é.
Acredita-se que se é heterossexual, bissexual ou homossexual porque o
vocabulário sexual coage a identificar dessa maneira; vocabulário, no
entanto, que não surge do nada, nem representa, para a razão, a verdade sobre
a homossexualidade, ignorada pelo obscurantismo dos que vieram antes.

115

JOSÉ CARLOS TEIXEIRA G1ORGIS

Uma vez criados, os dispositivos Lingúísticos de crenças ou os


hábitos morais e intelectuais tornam-se quase absolutos na demarcação
do limite de possibilidades das identificações sexuais de cada indivíduo,
sem chance de se escolher as preferências sexuais, assim como não se
opta pela língua materna.
As inclinações sexuais, como disse Freud, são contingentes, arbitrá-
rias e casuais, o que não significa que sejam gratuitas, pois se está preso
ao repertório sexual da cultura, até que outras práticas lingüísticas
produzam novos modos de identificação moral dos indivíduos.
Entretanto, ninguém é senhor da morada sexual, ninguém pode se
tornar livre para reescrever moralmente a versão imposta à forma de amar
e desejar sexualmente, eis que ninguém pode escolher que tipo de desejo
ou atração sexual será a sua, mas qualquer um pode aprender a definir o
que sente conforme seus padrões éticos.
Assim, discutir homossexualidade, partindo da premissa que todos
são heterossexuais, bissexuais ou homossexuais, significa acumpliciar-se
com um jogo de linguagem que se mostrou violento, discriminador,
preconceituoso e intolerante; e que já levou a acreditar que certas pes-
soas humanas são moralmente inferiores, só pelo fato de sentirem atração
por outras do mesmo sexo biológico.
É possível abandonar o vocabulário no qual consta a idéia de homos-
sexualidade, assim como já se recusa a discutir sobre bruxas e bruxarias com
o glossário da Inquisição.
Nesta cidade ideal da ética humanitária e democrática, as pessoas
serão livres para amar sexualmente de tantas formas quantas possa
inventar, nela o único limite para a imaginação amorosa será o respeito
pela integridade física e moral do semelhante.
Heterossexuais, bissexuais e homossexuais serão, para Freire Costa,
figuras curiosas, nos museus de mentalidades antigas, e na vida terão
desaparecido,
como rostos de areia no limite do mar.’0
Propõe o autor, então, o termo homoerotismo para aludir ao que hoje se
chama homossexualidade, procurando evitar que o homem moderno, preso
aos hábitos, desse tal sentido a quaisquer práticas eróticas entre indivíduos
do mesmo sexo biológico, já que trocando o vocabulário também se mudam

10 COSTA,Jrandir Freire. A ética e o espelho da cultura. Rio de Janeiro: Rocco,


2000, p. 118-122.

116

A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO HOMOERÓTICA

as perguntas, encontrando-se respostas que não podem ser achadas quando


se utiliza a terminologia hetero ou homossexual.
Como diz Rotji, trocando-se o vocabulário, trocam-se os proble-
mas e, com isto, algumas realidades que pareciam absolutamente impor-
tantes passam a não ter qualquer importância.”
A homossexualidade não existe, nunca existiu, mas sim a sexua-
lidade, voltada para um objeto qualquer de desejo, que pode ou não ter
genitália igual, e isso é detalhe, mas não determina maior ou menor grau
de moral ou integridade.’2

3 O HOMOEROTISMO E A UNIÃO ESTÁVEL

Costuma-se objetar que a relação homoerótica não se constitui em


espécie de união estável, pois a regra constitucional e as Leis 8.971/94 e
9.278/96 exigem a diversidade de sexos.
Neste sentido, argumenta-se que a relação sexual entre duas pessoas
capazes do mesmo sexo é um irrelevante jurídico, pois a relação homossexual
voluntária, em si, não interessa ao Direito, em linha de princípio, já que a
opção e a prática são aspectos do exercício do direito à intimidade, garantia
constitucional de todo o indivíduo (art. 50 X), escolha que não deve gerar
qualquer discriminação, em vista do preceito da isonomia.
Todavia, por mais estável que seja a união sexual entre pessoas do
mesmo sexo, que morem juntas ou não, jamais se caracteriza como uma
entidade familiar, o que resulta não de uma realização afetiva e psicológica
dos parceiros, mas da constatação de que duas pessoas do mesmo sexo não
formam um núcleo de procriação humana e de educação de futuros cidadãos.
É que a união entre um homem e uma mulher pode, em potência,
ser uma família, porque o homem assume o papel de pai e a mulher o de
mãe, em face dos filhos; e dois parceiros do mesmo sexo, homens ou
mulheres, jamais conjugam a paternidade e a maternidade em sua
complexidade psicológica que os papéis exigem.
Como argumento secundário, arremata o mestre paranaense, a união
de duas pessoas do mesmo sexo não forma uma família porque, primei-
11 COSTA, Jrandir Freire. Op. cit., p. 113-116.

12 ABREU, Caio Fernando. Pequenas epfanias. Porto Alegre: Sulina, 1996, p. 49

117
JOSE CARLOS TEIXEIRA GIORGIS

ramente, é da essência do casamento, modo tradicional e jurídico de


constituir família, a dualidade de sexos e, depois, porque as uniões estáveis
previstas na Lei Fundamental como entidades familiares são neces-
sariamente formadas por um casal heterossexual (CF, art. 226, § 3.0)•
Nem porque a Constituição o diga, mas porque a concepção antro-
pológica de família supõe as figuras de pai e de mãe, o que as uniões
homossexuais não conseguem imitar.
E se numa família monoparental o ascendente que está na compa-
nhia do filho resolve ter uma relação com terceiro do mesmo sexo, ainda
que de forma continuada, isto não implica, juridicamente, em trazer este
terceiro para dentro da noção de família, mesmo que haja moradia
comum, pois família continua sendo, aí, o ascendente e seu filho,
excluído o parceiro do mesmo sexo daquele.
Não vinga o argumento de que nessas famílias monoparentais não
existe a figura de pai e mãe, pois falta a figura de outro ascendente. A
substituição só é admissível, juridicamente, para o parceiro integrar o
ente familiar, se houver respeito à dualidade de sexos que originaria-
mente se apresentava, o que só acontece com nova esposa ou compa-
nheira do pai, que substitui a mãe.
Portanto, é admissível o reconhecimento judicial de uma sociedade
de fato entre os parceiros homossexuais, se o patrimônio adquirido em
nome de um deles resultou da cooperação comprovada de ambos, sendo
a questão de Direito Obrigacional, nada tendo a ver com a família.’3
Não é a posição que se adotará, como adiante se justifica.
E que o amor e o afeto independem de sexo, cor ou raça, sendo
preciso que se enfrente o problema, deixando de fazer vistas grossas a
uma realidade que bate à porta da hodiernidade; e, mesmo que a situação
não se enquadre nos moldes da relação estável padronizada, não se
abdica de atribuir à união homossexual os efeitos e natureza dela.
Nas culturas ocidentais contemporâneas, a homossexualidade tem
sido, até então, a marca de um estigma, pois se relega à marginalidade
aqueles que não têm suas preferências sexuais de acordo com deter-
minados padrões de moralidade, o que acontece não apenas com a homo
e heterossexualidade, mas para qualquer comportamento sexual anormal,

13 CZAJKOWSK1, Rainer. Reflexos jurídicos das uniões homossexuais.


Jurisprudência brasileira.
Curitiba: Juruá, 1995, p. 97-107.

118

A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO HOMOEROTICA

como se isso pudesse ser controlado e colocado dentro de um padrão


no,mal.’4
É que o sistema jurídico pode ser um sistema de exclusão, já que a
atribuição de uma posição jurídica depende do ingresso da pessoa no
universo de titularidades que o sistema define, operando-se a exclusão
quando se negam às pessoas ou situações as portas de entrada da moldura
das titularidades de direitos e deveres.
Tal negativa, emergente de força preconceituosa dos valores culturais
dominantes em cada época, alicerçam-se em juízo de valor depreciativo,
historicamente atrasado e equivocado, mas este medievo jurídico deve
sucumbir à visão mais abrangente da realidade, examinando e debatendo
os diversos aspectos que emanam das parcerias de convívio e afeto.15
A questão dos direitos dos casais do mesmo sexo tem sido debatida
no mundo, e o argumento básico, em favor do tratamento igualitário, é no
sentido de que as uniões homoeróticas devem ter os mesmos direitos que
outros casais, ao demonstrarem compromisso público um para o outro,
ao desfrutarem uma vida de família, a qual pode ou não incluir crianças, o
que exige isonomia legal.
É verdade que ainda permanece a restrição da Convenção Euro-
péia e do Tribunal Europeu, que limita o casamento aos heterossexuais,
inadmitindo a existência de uma vida familiar aos parceiros homoafetivos.
Todavia, alguns países, como a Inglaterra, no caso Martin Fitz
Patrick e John Thompson — que viveram juntos até a morte prematura do
último, então inquilino de um imóvel; discutiu-se a possibilidade do
primeiro permanecer naquele local, como eYposo de Mr. Thompson ou como
membro de sua família; a primeira hipótese foi rechaçada, mas asseverou-se
que o parceiro remanescente poderia ser tido como integrante da família,
porque a relação homossexual comprometida tinha as características de
amor, afeto, apoio e companheirismo, normalmente presentes nas
relações familiares.
No Canadá, o Supremo Tribunal foi mais longe e defendeu que a
expressão cônjuge, quando utilizada em determinadas partes da legislação,
não deveria restringir-se aos formalmente casados, mas es tendida a casais
do mesmo sexo.

14 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem


psicanalítica. Belo Horizon-
te: Dcl Rey, 1997, p. 43.
15 FACHIN, Luiz Edson. Aspectos jurídicos da uniiio de pessoas do mesmo sexo.
lo: A nova

família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.ll4, passim.

119

JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS

Desenvolvimentos mais radicais ocorreram em alguns países da


Europa Setentrional, onde nações nórdicas (Dinamarca, Suécia, Noruega
e Islândia) adotam a concepção de parceria registrada, permitindo que
casais homossexuais comprometidos registrem seus relacionamentos,
sendo tratados como se consorciados fossem, apenas não lhes tocando
adotar crianças, o que foi já superado pelo parlamento holandês, com a
possibilidade de que tais pessoas se casem e adotem, cânone que passou
a vigir em 1.0 de abril de 2001.
Assevera Bainham que os movimentos europeus estão lastreados na
noção de igualdade e neutralidade como entre diferentes tipos de rela-
ções familiares, podendo tais reformas progressistas serem vistas como
reflexo de uma visão do compromisso com os direitos humanos.
No Canadá, a discriminação, com base na orientação sexual, viola
a garantia constitucional da igualdade, assim os benefícios da saúde foram
estendidos aos parceiros do mesmo sexo, também admitindo que pudes-
sem ser tratados como membros de uma união estável; o governo oferece
benefício médico, dentário e oftalmológico aos parceiros dos empregados
homossexuais.
Ali uma província reconheceu, em 1997, a possibilidade de tutela e
adoção por homossexuais.
Mas há também uma dimensão adicional para os debates que
dizem com o sexo e com os gêneros masculino e feminino, indagando-se
o cabimento, no mundo moderno, de agarrar-se à visão tradicional de que
o casamento deve envolver um homem e uma mulher ou que a paren-
talidade envolva necessariamente duas pessoas, um pai e uma mae.
Diz-se que o compromisso entre duas pessoas ou em relação à
criança não depende do sexo ou do gênero dessas pessoas, o que aceito
implicaria emergir o casamento ou a parentalidade, no futuro, como
conceitos neutros quanto ao gênero, em vez de específicos.’6
Agregue-se que na Hungria a Corte Constitucional considerou que,
existindo o instituto do common-law marriage, semelhante à união estável
brasileira, que reconhece aos casais heterossexuais os direitos econo-
16 BAINHAM, Andrcw. Dinitos hnmanos, crianças e dinirrio na Inglaterra.
Curitiba: Juruá, UFP/IBDFAM,

2001, p. 12-15.

120

A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO HOMOERÓTICA

micos do casamento, tal regra estende-se aos homossexuais, revisando,


para tanto, a Lei de Coabitação de 1996, excetuando-se, contudo, o
direito à adoção.
Nos Estados Unidos, embora o Congresso tenha aprovado a Lei de
Defesa do Casamento (Definse ofmarriageAct., 1997), pela qual os Estados
não precisam reconhecer o registro de casamentos homossexuais de
outros Estados, lei cuja constitucionalidade ainda se debate, o Estado do
Havaí aceitou benefícios recíprocos aos casais homossexuais do quadro
de seus servidores públicos, incluindo direito a pensão, saúde e inde-
nização em caso de morte (1997), no que foi secundado pelo Estado de
Oregon (1998).
Embora o campo ainda não se tenha dilatado, os Estados Unidos
concedem asilo político a homossexuais, desde que comprovada a
perseguição, além de atribuir indenização por abuso sexual entre pessoas
de mesmo sexo. Algumas empresas, como a Disney, Microsoft, IBM e
Kodak, por exemplo, reconhecem a parceria doméstica entre pessoas do
mesmo sexo, a fim de perceber benefícios médicos e pensão.
A França foi a primeira nação católica a reconhecer legalmente a
união homossexual, ao aprovar um Pacto Civil de Solidariedade entre
pessoas de mesmo sexo, garantindo direito à imigração, à sucessão e
declaração de renda conjunta, excetuada a adoção (1998).
Em Israel, a lei de Igual Oportunidade de Emprego (1992) proíbe a
discriminação contra empregados baseada em sua orientação sexual, o
que também acontece no Exército, tendo já acontecido decisão judicial
em favor de um homossexual quanto aos benefícios previdenciários
relativos ao seu parceiro enfermo.
Em Mendoza, província argentina, foi atribuído ao parceiro os
benefícios da saúde; na Espanha, foi rejeitada a lei de parceria registrada,
mas na Catalúnia foi aprovada a parceria doméstica para homossexuais e
heterossexuais, com garantia de direitos trabalhistas e pensão; na
Alemanha, em Portugal e na Finlândia estuda-se legislação sobre casa-
mento entre pessoas de mesmo sexo, reconhecimento de uniões homoe-
róticas e parceria registrada.’7
17 DAGNESE, Napoleáo. Cidadania no armário: uma abordagem sociojurídica
acerca da homos-
sexualidade. Sâo Paulo: LTr, 2000, p. 71-75.

121

JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS

4 A FORÇA ATIVA DA CONSTITUIÇÃO

Afastada a possibilidade de emoldurar a união homoerótica como


forma de casamento, o que não acha respaldo na doutrina e nos repertórios
dos tribunais, toca examiná-la como uma forma de comunidade familiar,
aparentada com a união estável, o que, como sublinhado, encontra reaçao
pela antinomia com a regra constitucional vigente (CF, art. 226, ~
Não se desconhece a posição que sustenta a inconstitucionalidade
da regra constitucional invocada, por violar os princípios da dignidade
humana e da igualdade, ao discriminar o conceito de homossexualidade,
o que cede, no entanto, à afirmação do Supremo Tribunal Federal de que
a existência de hierarquia entre as normas constitucionais originárias,
dando azo de uma em relação a outras, é incompossível com o sistema de
Constituição rígida,’t além de afrontar o princípio da unidade constitucional.
Todavia, a leitura do dispositivo deve mirar o espelho desse prin-
cípio, extraindo dele as seqüelas que acabem por abonar a intenção deste
trabalho.
A Constituição é a norma fundamental que dá unidade e coerência
à ordem jurídica, necessitando ela mesma ter tais características, com a
superação de contradições, não através de uma lógica de exclusão de uma
parte a favor da outra, mas de uma lógica dialética de síntese, através de
uma solução de compromisso.
Daí que a interpretação constitucional deve garantir uma visao
unitária e coerente do Estatuto Supremo e de toda a ordem jurídica.t9
Isso significa que o Direito Constitucional deve ser interpretado
evitando—se contradições entre suas normas , sendo insustentável uma
dualidade de constituições, cabendo ao intérprete procurar recíprocas
implicações, tanto de preceitos como de princípios, até chegar a uma
vontade unitária da grundnorm.
Como conseqüência desse princípio, as normas constitucionais devem
sempre ser consideradas coesas e mutuamente imbricadas, não se podendo
jamais tomar determinada regra isoladamente, pois a Constituição é o
documento supremo de uma nação, estando as normas em igualdade de

18 STF, ADIn n. 815/DF, Rei. Mm. Moreira Alves, DJtJ 10.05.1996.

19 MAGALHAES FILHO, Glauco Barreira. Hermeníutica e unidade axiológica da


Constituição. Belo

Horizonte: Mandamentos, 2001, p. 79.

122

A NATUREZA JURIDICA DA RELAÇÃO HOMOEROTICA


condições, nenhuma podendo se sobrepor à outra, para afastar seu cumpri-
mento, no que cada norma subsume-se e complementa-se com princípios
constitucionais, neles procurando encontrar seu perfil último.20
O princípio da unidade da ordem jurídica considera a Constituição
o contexto superior das demais normas, devendo as leis e normas secun-
dárias serem interpretadas em consonância com ela, configurando a
perspectiva uma subdivisão da chamada interpretação sistemática.2t
Como corolários desta unidade interna, mas também axiológica, a
Constituição é uma integração dos diversos valores aspirados pelos
diferentes segmentos da sociedade, através de uma fórmula politico-
ideológica de caráter democrático, devendo a inte?pretação ser aquela que mais
contribua para a integração social (princípio do efeito integrador), como ainda
que lhe confira maior eficácia, para prática e acatamento social (princípio
da máxima efetividade).
Ou seja, a interpretação da Constituição deve atualizá-la com a
vivência dos valores de parte da comunidade, de modo que os preceitos
constitucionais obriguem as consciências (princípio da força normativa
da Constituição) •22
A respeito, é preciso lembrar, como Hesse, que a Constituição não
configura apenas a expressão de um ser, mas também de um dever ser,
significando mais do que simples reflexo das condições fáticas de sua
vigência, particularmente as forças sociais e políticas; mas, graças à
pretensão de eficácia, ela procura imprimir ordem e conformação à
realidade política e social.
A norma constitucional somente logra atuar se procura construir o
futuro com base na natureza singular do presente, mostrando-se eficaz e
adquirindo poder e prestígio se for determinado pelo princípio da neces-
sidade, assentando-se na sua vinculação às forças espontâneas e às tendên-
cias dominantes do seu tempo, o que possibilita seu desenvolvimento e sua
ordenação objetiva, convertendo-se a Constituição, assim, na ordem geral
objetiva do complexo de relações de vida.

20 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenéutica e interpretação constitucional. São


Paulo: Celso Bastos

Edmtor, 1999, p. 102-104.

21 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998,


p. 223.

22 MAGALI-IÂES FILI-LO, Glauco Barreira. Op. cit., p. 79-80.

123

~JOSÉ CARLOS TEIXE(RA GIORG(S

Dessa forma, quanto mais o conteúdo de uma Constituição


corresponder à natureza singular do presente tanto mais seguro há de ser
o desenvolvimento de sua força normativa.23
Arremata o mestre de Freiburg que a interpretação da Constituição
está submetida ao princípio da ótima concretização da norma, postulado que
não deve ser aplicado apenas com base nos meios fornecidos pela
subsunção lógica e pela construção conceitual, mas há de contemplar os
fatos concretos da vida, relacionando-os com as proposições normativas
da Constituição.
Assim a interpretação adequada é a que consegue concretizar, de
forma excelente, o sentido da proposição normativa dentro das condições reais
dominantes numa determinada situação.
Ou seja, uma mudança das relações fáticas pode e deve provocar mudanças
na interpretação da Constituição.
Em síntese, pode-se afirmar que a Constituição jurídica está
condicionada pela realidade histórica, não podendo separar-se da verdade
concreta de seu tempo, operando-se sua eficácia somente tendo em conta
dita realidade.
A Carta não expressa apenas um dado momento, mas, ao contrário,
conforma e ordena a situação política e social, despertando a força que
reside na natureza das coisas, convertendo-se ela mesma em força ativa
que influi e determinada dita realidade, e que será tanto mais efetiva quan-
do mais ampla for a convicção sobre a inviolabilidade da Constituição.24
A norma constitucional é uma petição de princípios, e daí a pos-
sibilidade de sua atualização, cumprindo a interpretação, então mero
pressuposto de aplicação de um texto, importante elemento de constante
renovação da ordem jurídica, atenta às mudanças acontecidas na socie-
dade, tanto no sentido do desenvolvimento como em relação à existência
de novas ideologias.25
Quanto ao homoerotismo, recorde-se de que os temas da sexua-
lidade são envoltos em uma aura de silêncio, despertando sempre enorme
curiosidade e profundas inquietações, com lenta maturação por gravitarem

23 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituicào. Porto Alegre: Fabris, 1991,


p. 18, passim.

24 HESSE, IKonrad. Op. cit., p. 22-24.


25 BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit., p. 54.

124

A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO HOMOERÓTICA

na esfera comportamental, existindo tendência a conduzir e controlar seu


exercício, acabando por emitir-se um juízo moral voltado exclusivamente à
conduta sexual.
Por ser fato diferente dos estereótipos, o que não se encaixa nos
padrões, é tido como imoral ou amoral, sem que se busque a identificação
de suas origens orgânicas, sociais ou comportamentais.
Entretanto, as uniões homoafetivas são uma realidade que se impõe
e não pode ser negada, estando a reclamar tutela jurídica, cabendo ao
Judiciário solver os conflitos trazidos, sendo incabível que as convicções
subjetivas impeçam seu enfrentamento e vedem a atribuição de efeitos,
relegando à margem determinadas relações sociais, pois a mais cruel
conseqüência do agir omissivo é a perpetração de grandes injustiças.
Subtrair direitos de alguns e gerar o enriquecimento injustificado
de outros afronta o mais sagrado princípio constitucional, o da dignidade;
e,se as palavras de ordem são cidadania e inclusão, uma sociedade que se
deseja aberta, justa, pluralista, solidária, fraterna e democrática não pode
conviver com tal discriminação.26
Alinhadas tais premissas, de que as relações homoeróticas consti-
tuem realidade notória, a que o Direito deve atenção, e de que a inter-
pretação da Constituição deva ser ativa, relevando a vida concreta e
atual, sem perder de vista a unidade e a eficácia das normas constitucio-
nais, é que se pode reler a regra constitucional que trata da família, do
casamento, da união estável e das uniões monoparentais, cuidando de
sua vinculação com as uniões homossexuais.
Sublinhe-se que a Constituição, contendo princípios gerais, dota-
dos de alto grau de abstratividade, enunciados em linguagem vaga,
mantém aberta ao tempo e sob o compromisso da mudança democrática
de sentido.
Um princípio não é aplicado a uma situação de fato isoladamente,
mas, sim, em conjunto com outros, através de uma ponderação, em que o
predomínio de um ou outro dependerá das exigências do caso concreto, o
que ordena uma harmonização prática.

26 DIAS, Maria Berenice. União homossexual, o preconceito e a justiça. Porto


Alegre: Livraria do

Advogado, 2000, p. 17-21.

125

JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS

Dessa forma, o sentido de uma norma principiológica se completa na


situação fática, oportunidade em que afloram os valores da comunidade,
num ir e vir dialético entre o sentido lingüístico e a realidade concreta,
atualizando a norma em face das novas exigências sociais.
Essa visão autopoética, que aceita a influência indireta da socie-
dade sobre o Direito num sistema de fechamento auto-referencial,
sinaliza que a Constituição é um sistema aberto, trazendo um roteiro para as
decisões, mas não um sistema cerrado de soluções, o que possibilita
maior liberdade criadora do intérprete e não apenas extrai o sentido da
norma, mas o perfaz no caso concreto.27
O que corresponde a reputar o Direito, enquanto sistema aberto de
normas, a uma “incompletude completável”, já que ele mesmo traz

soluções para os casos que eventualmente deixa de regular.28

A Constituição afirma que a família, base da sociedade, tem especial


proteção do Estado e dispõe sobre a forma e gratuidade do casamento, os
efeitos do casamento religioso, para depois reconhecer a união estável
entre homem e mulher como entidade familiar, ainda assim tida a comu-
nidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (CF, art. 226,
e parágrafo s).
Ora, desde logo se impõe aceitar que o constituinte quis apontar a
existência de mais de um tipo de entidade familiar, não depositando apenas
na união matrimoniolizada e heterossexual a vassalagem de comunidade
familiar, já que assim ainda admite a união estável e a família monoparental.
Portanto, tendo prescrito que o casamento e a união estável seriam
constituídos por homem e mulher, deixou antever que a entidade familiar
ainda podia ser formada por um homem (ou mulher) e seus descendentes,
o que impele concluir que o texto não é taxativo ao conceituar como
entidade familiar apenas os modelos que descreve.
A Constituição não só possibilita como requer que o legislador e o
juiz, no procedimento hermenêutico resultante da interação entre o
programa da norma (texto) e seu âmbito (realidade), concretizem o
direito vigente, de molde a considerar os princípios democráticos e a

27 MAGALHAES FILHO, Glauco Barreira. Op. eit., p. 73-76.


28 BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit., p. 56.

126

A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO HOMOEROTICA

inegável pluralidade de formas de vida amorosa, abrindo espaço para


classificação das uniões homossexuais como comunidades familiares,
que não se caracterizam pelo vínculo matrimonial.29
Na ausência da proibição expressa ou de previsão positiva, pos-
tula-se a interpretação da Constituição de acordo com o cânone herme-
néutico da “unidade da Constituição”, segundo o qual uma interpretação
adequada do texto exige a consideração das demais normas, de modo que
sejam evitadas conclusões contraditórias, pois sob o ponto do Direito de
Família a norma do § 3~o, do artigo 226, da CF/88, não exclui a união
estável entre os homossexuais.

5 A UNIÃO HOMOERÕTICA E O PRINCÍPIO


DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A partida para a confirmação dos direitos dos casais homoeróticos


está, precipuamente, no texto constitucional brasileiro, que aponta como
valor fundante do Estado Democrático de Direito o princípio da digni-
dade da pessoa humana (CF, art. 1.0, III), a liberdade e a igualdade sem
distinção de qualquer natureza (CF, art. 5.0), a inviolabilidade da
intimidade e da vida privada (CF, art. 5~O, X), que, como assevera Lui~
Edson Fachin, formam a base jurídica para a construção do direito à
orientação sexual como direito personalissimo, atributo inerente e inegável da
pessoa e que, assim, como direito fundamental, é um prolongamento de
direitos da personalidade, imprescindíveis para a construção de uma
sociedade que se quer livre, justa e solidária.30
O princípio da dignidade da pessoa humana é prólogo de várias cartas
constitucionais modernas (Lei Fundamental da República Federal Alemã,
art. 10; Constituição de Portugal, art. 1 •0; Constituição da Espanha, art. 1 O;
Constituição Russa, art. 21; Constituição do Brasil, art. 1.0, III, etc.).
Alicerça-se na afirmação kantiana de que o homem existe como um
fim em si mesmo e não como mero meio (imperativo categórico), diver-
samente dos seres desprovidos de razão que têm valor relativo e condi-
cionado e se chamam coisas; os seres humanos são pessoas, pois sua natureza
já os designa com um fim, com valor absoluto.

29 RIOS, Roger Raupp. Op. cit., p. 134.

30 FACHIN, Luiz Edson. Op. rir., p. 114.

127

JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS

Reputa-se que o princípio da dignidade não é um conceito cons-


titucional, mas um dado apriorístico, preexistente a toda experiência,
verdadeiro fundamento da República brasileira, atraindo o conteúdo de
todos os direitos fundamentais; não é só um princípio da ordem jurídica,
mas também da ordem econômica, política, cultural, com densificação
constitucional.
E um valor supremo e acompanha o homem até sua morte, por ser
da essência da natureza humana. A dignidade não admite discriminação
alguma e não estará assegurada se o indivíduo é humilhado, perseguido
ou depreciado, sendo norma que subjaz a concepção de pessoa como um
ser ético-espiritual que aspira determinar-se e desenvolver-se em liberdade.
Não basta a liberdade formalmente reconhecida, pois a dignidade
da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Di-
reito, reclama condições mínimas de existência digna conforme os dita-
mes da justiça social como fim da ordem econômica.31
Assim, a idéia de dignidade humana não é algo puramente aprio-
rístico, mas que deve concretizar-se no plano histórico-cultural; e, pata
que não se desvaneça como mero apelo ético, impõe-se que seu conteúdo
seja determinado no contexto da situação concreta da conduta estatal e
do comportamento de cada pessoa.
Nesse sentido, assume particular relevância a constatação de que a
dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes
estatais e da comunidade em geral, de todos e de cada um, condição
dúplice que também aponta para uma simultânea dimensão defensiva e
protecional da dignidade.
Como limite da atividade dos poderes públicos, a dignidade é algo
que pertence necessariamente a cada um e que não pode ser perdido e
alienado, pois, se não existisse, não haveria fronteira a ser respeitada; e
como tarefa (prestação) imposta ao Estado, a dignidade da pessoa recla-
ma que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade
existente quanto objetivando a promoção da dignidade, especialmente
criando condiçães q e possibilitem o pleno exercício e fruição da di#nidade, que
é
dependente da ordem comunitária, já que é de perquirir até que ponto e

31 SILVA, José Afonso. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da


democracia.

Revista de Direito Administrativo, o. 212, p. 9 1-93.

128

A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO HOMOERÓTICA

possível o indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente, suas ne-


cessidades existenciais básicas ou se necessita para tanto do concurso do
Estado ou da comunidade.
Uma dimensão dúplice da dignidade manifesta-se enquanto simul-
taneamente expressão da autonomia da pessoa humana, vinculada à idéia
de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da
própria existência, bem como da necessidade de sua proteção (assistência)
por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou
até mesmo quando ausente a capacidade de autodeterminação.32
A contribuição da Igreja na afirmação da dignidade da pessoa
humana como princípio elementar sobre os fundamentos do ordenamen-
to constitucional brasileiro, antes da Assembléia Constituinte, efetivou-se
em declaração denominada Por uma Nova Ordem Constitucional, na qual os
cristãos foram instados a acompanhar e posicionarem-se quando se ten-
tasse introduzir na nova carta elementos incompatíveis com a dignidade e
a liberdade da pessoa.
Ali constou que todo ser humano, qualquer que seja sua idade, sexo,
raça, cor, língua, condição de saúde, confissão religiosa, posição social,
econômica, politica, cultural, é portador de uma dignidade inviolável e
sujeito de direitos e deveres que o dignificam, em sua relação com Deus,
como filho, com os outros, como irmão e com a natureza, como Senhor.33
Dessa forma, a consagração do princípio da dignidade humana
implica considerar o homem o centro do universo jurídico, reconheci-
mento que abrange todos os seres e que nao se dirige a determinados
indivíduos, mas a cada um individualmente considerado, de sorte que os
efeitos irradiados pela ordem jurídica não hão de manifestar-se, em
princípio, de modo diverso ante duas pessoas.
Daí segue que a igualdade entre os homens representa obrigação
imposta aos poderes públicos, tanto na elaboração da regra de Direito
quanto em relação à sua aplicação, já que a consideração da pessoa humana
é um conceito dotado de universalidade, que não admite distinções.34

32 SARLET, logo Wolfgang. Degnidade da pessoa humana e direitos fandamentais.


Porto Alegre:

Livraria do Advogado, 2001, p . 46-49.


33 ALVES, CLeber Francisco. O princeNo constitucional da dignidade da pessoa
humana: o enfoque da

doutrina social da Igreja. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 157-159.

34 NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira, O direito brasileiro e o princípio da


dignidade humana.
Revista dos T,ibnnaís, 777/475.

129

JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS

No exame do conteúdo do princípio da dignidade humana, no que


respeita à orientação sexual, aqui entendida como a identidade atribuída
a alguém em função da direção de seu desejo e/ou condutas sexuais para
outra pessoa do mesmo sexo (homossexualidade), do sexo oposto (hete-
rossexualidade) ou de ambos os sexos (bissexualidade), evidencia-se sua
pertinência no âmbito da proteção daquele postulado constitucional.
Com efeito, na construção da individualidade de uma pessoa, a
sexualidade consubstancia uma dimensão fundamental em sua subje-
dvidade, alicerce indispensável para o livre desenvolvimento da personalidade.
A relação entre a proteção da dignidade da pessoa humana e a
orientação homossexual é direta, pois o respeito aos traços constitutivos
de cada um, sem depender da orientação sexual, é previsto no artigo 1.0,
inciso 3•o, da Constituição, e o Estado Democrático de Direito promete
aos indivíduos, muito mais que a abstenção de invasões ilegítimas de
suas esferas pessoais, a promoção positiva de suas liberdades.
De fato, ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo de
alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento
indigno ao ser humano, não se podendo ignorar a condição pessoal do
indivíduo, legitimamente constitutiva de sua identidade pessoal, em que
aquela se inclui.
Nessa linha, pode-se afirmar que, assim como nas uniões heteros-
sexuais, o estabelecimento de relações homossexuais fundadas no afeto e
na sexualidade, de forma livre e autônoma, sem qualquer prejuízo a
terceiros, diz com a proteção da dignidade humana.35
A afirmação da dignidade humana no Direito brasileiro repele quais-
quer providências, diretas ou indiretas, que esvaziem a força normativa desta
noção fundamental, tanto pelo seu enfraquecimento na motivação das ati-
vidades estatais quanto por sua pura e simples desconsideração.
Diante desses elementos, conclui-se que o respeito à orientação
sexual é aspecto fundamental para afirmação da dignidade humana, não
sendo aceitável, juridicamente, que preconceitos legitimem restrições de
direitos, fortalecendo estigmas sociais e espezinhando um dos fundamen-
tos constitucionais do Estado Democrático de Direito.36

35 RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade.., cit., p. 89, passim.

36 RIOS, Roger Raupp. Dignidade da pessoa humana, homossexualidade efamília:


reflexões sobre as

uniões de pessoas do mesmo sexo. Trabalho de pós-graduação, inédito.

130

A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO HOMOEROTICA

6 A UNIÃO HOMOEROTICA E O PRINCÍPIO DA IGUALDADE

O alcance do princípio da igualdade não se restringe a nivelar os


cidadãos diante da norma legal posta, mas determina que a própria lei não
pode ser editada em desconformidade com a isonomia.
Ou seja, a lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições,
mas sim instrumento regulador da vida social que necessita tratar equita-
tivamente a todos, sendo este o conteúdo politico ideológico absorvido
pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em
geral.
Em suma, dúvida não padece que, ao se cumprir uma lei, todos os
abrangidos por ela hão de receber tratamento parificado, sendo certo,
ainda, que ao próprio ditame legal é interdito deferir disciplinas diversas
para situações equivalentes.37
A concretização da igualdade em matéria de sexo, exponencializada
pela proibição de discriminação, se examinada com cuidado, alcança o
âmbito da orientação sexual homossexual.
De fato, quando alguém atenta para a direção do envolvimento, por
mera atração ou por a conduta sexual de outrem, valoriza a direção do
desejo, isto é, o sexo da pessoa com que o sujeito deseja se relacionar ou
efetivamente se relaciona, mas esta definição (da direção desejada, de qual
seja a orientação sexual do sujeito, ou seja, pessoa do mesmo sexo ou de
sexo oposto) resulta tão-só da combinação dos sexos de duas pessoas.
Ora, se um for tratado de maneira diferente de uma terceira pessoa,
que tenha sua sexualidade direcionada para o sexo oposto, em razão do
sexo da pessoa escolhida, conclui-se que a escolha que o primeiro fez
suporta um tratamento discriminatório unicamente em função de seu sexo.
Fica claro, assim, que a discriminação fundada na orientação sexual
do sujeito esconde, na verdade, uma discriminação em virtude de seu
próprio sexo.
O sexo da pessoa escolhida, se homem ou mulher, em relação ao
sexo do sujeito, vai continuar qualificando a orientação sexual como causa
de tratamento diferenciado ou não, em relação àquele.

37 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Conteúdo jurídico da zgualdade. 3. ed. S~o
Paulo: Malheiros,
1999, p. 9-10.

131

JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS

Não se diga, outrossim, que inexiste discriminação sexual porque


prevalece tratamento igualitário para homens e mulheres diante de idên-
tica orientação sexual, pois o argumento peca duplamente, ao tentar jus-
tificar uma hipótese de discriminação (homossexualismo masculino) in-
vocando outra hipótese de discriminação (homossexualismo feminino).
O raciocínio desenvolvido acerca da relação entre o princípio da
igualdade e a orientação sexual é uma espécie de discriminação por
motivo de sexo, isso significando que, em linha de princípio, são vedados
no ordenamento jurídico pátrio os tratamentos discriminatórios fundados
na orientação sexual.
Tem-se de investigar, de um lado, aquilo que é adotado como
critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa
racional, isto é, fundamento lógico para, à vista do traço desigualador aco-
lhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da
desigualdade proclamada.
Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional
abstratamente existente é afinado, em concreto, com os valores prestigiados
no sistema normativo constitucional, se guarda harmonia com eles.38
A idéia da igualdade interessa particularmente ao Direito, pois ela
se liga à idéia de Justiça, que é a regra das regras de uma sociedade e que
dá o sentido ético de respeito a todas as outras regras.
Na esteira da igualdade dos gêneros e com a evolução dos costumes,
principalmente a partir da década de sessenta, desmontam-se privilégios e
a suposta superioridade do masculino sobre o feminino, e a sexualidade
legítima autorizada pelo Estado começa a deixar de existir unicamente por
meio do casamento, eis que, com a evolução do conhecimento científico,
torna-se possível a reprodução mesmo sem ato sexual.39

7 A UNIÃO HOMOEROTICA E A ANALOGIA

A analogia consiste em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a


disposição relativa a um caso semelhante, devendo os fatos semelhantes
ser regulados de modo idêntico.

38 RIOS, Roger Raupp. Direitos fundamentais e orientaçiio sexual: o direito


brasileiro e a
homossexualidade. Revista do Centro de Estados Judiciários Brasileiros,
Brasilia, v. 6, 1998, p. 29-30.

39 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A sexualidade vista pelos tribunais. 2. ed. Belo


Horizonte: Dei
Rey, 2000, p. 61-62.

132
A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO HOMOERÕTIOA

Funda-se a analogia em princípio de verdadeira justiça, de igualdade


jurídica, o qual exige que as espécies semelhantes sejam reguladas por
normas semelhantes.
Assim, pressupõe: a) uma hipótese não prevista; b) a relação con-
templada no texto, embora diversa da que se examina, deve ser seme-
lhante, ter com ela um elemento de identidade; c) e tal elemento não pode
ser qualquer, e sim essencial3 fundamental, isto é, o fato jurídico que deu
origem ao dispositivo.
Não bastam afinidades aparentes ou semelhança formal, mas se
exige a real, verdadeira, igualdade sob um ou mais aspectos, consistente no
fato de se encontrar, num e noutro caso, o mesmo princípio básico e de ser
uma só a idéia geradora tanto na regra existente como na que se busca.40
Por outro lado, a atividade interpretativa extensiva ou ampliativa
permanece sempre dentro da significação de uma palavra, embora se busque
atribuir-lhe um significado máximo, para chegar-se, na analogia, à cons-
trução de uma regra hipotética similar por identidade de razões entre o
caso regulamentado e aquele não disciplinado.
Em outras palavras, a utilização da analogia não pode ser definida
como pertencente à atividade interpretativa, já que não se extrai o
significado mais exato da norma, justamente por esta não existir para o
caso concreto.
Contudo, não deixa de ter o mesmo fim buscado pela interpretação,
na busca da solução para um caso concreto e, ademais, usar-se de uma regra
paradigma que, sem dúvida, terá de ser interpretada para se verificar a
identidade de razões entre o caso regulado e o não-regulado.41
A equiparação das uniões homossexuais à união estável, pela via
analógica, implica a atribuição de um regime normativo originariamente
destinado a situação diversa de tais relações, qual seja, a comunidade
familiar formada pela união estável entre um homem e uma mulher.
A semelhança autorizadora seria a ausência de vínculos formais e a
presença substancial de uma comunidade de vida afetiva, sexual, duradoura
e permanente entre companheiros do mesmo sexo, assim como ocorre
com pessoas de sexos diferentes, argumento que avança no sentido da

40 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenéutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro:


Forense, 1979, p.

206, passim.

41 BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit., p. 57-58.

133

JOSE CARLOS TEIXEIRA GIORGIS

concretização da Constituição, pois confere uma unidade diante da rea-


lidade histórica, fazendo concorrer com os princípios informativos do
Direito de Família, também presentes na Carta Federal, outros princípios
constitucionais, como o da isonomia e a proibição de discriminação por
motivo de sexo e orientação sexual, como também o da dignidade humana.42
Não há como fugir da analogia com as demais relações que têm o afeto
por causa e, assim, reconhecer a existência de uma entidade familiar à
semelhança do casamento e da união estável, pois o óbice constitucional,
estabelecendo a distinção de sexos ao definir a união estável, não impede o
uso de tal forma integrativa do sistema jurídico, eis que identidade sexual,
assim como a esterilidade do casal, não serve de justificativa para se buscar
qualquer outro ramo do Direito que não o Direito de Família.
Destarte, a solução dos relacionamentos homossexuais só pode
encontrar subsídios na instituição com que guarda semelhanças, que é a
família, calcada na solidariedade, enquadrando a que se forma pelo
casamento como a que se estrutura pela união estável.
Comprovada a existência de um relacionamento em que haja vida
comum, coabitação e laços afetivos, está-se em frente de uma entidade
familiar, que goza de proteção constitucional, nada se justificando que se
desqualifique o reconhecimento de sua existência, assegurando-se aos
conviventes do mesmo sexo os direitos garantidos aos heterossexuais.43
Dir-se-á, talvez, que a utilização da analogia apenas socorre para
preencher alguma lacuna (LICC, art. 4~O, e CPC, art. 126), mas, na verdade
o ordenamento jurídico, visto como um todo, encarrega determinados
órgãos, no caso os juízes, para atribuírem soluções aos casos concretos,
mesmo naquelas situações em que não existem regras legais específicas,
eis que, como asseveram Aftalión, Garcia y Vilanova,

“contra Ia opinión de algunos autores que hqy sostenido que en ei


ordenamiento jurídico exirten lagunas- o sea, casos o situaciones no previstas
— que serían necesario llenar o colmar a medida que las circunstancias
mostrasen la conveniencia de hacerlo3debemos hacer notar que ei

42 RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no direito. Porto Alegre: livraria do


Advogado, 2001,
p. 121-123.
43 DIAS, Maria Berenice. União homossexual..., cit., p. 87-88.

134

A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO HOMOERÓTICA

ordenamiento jurídico es pleno:todos os casos em que puedan presentarse se


encuentran previstos en él (..) No hajy lagunas, porque hqyjueces.”44

Se o juiz não pode, sob a alegação de que a aplicação do texto da lei


à hipótese não se harmoniza com seu sentimento de justiça ou eqüidade,
substituir-se ao legislador para formular, ele próprio, a regra de direito
aplicável,45 não é menos verdade que a hermenêutica não deve ser formal,
mas antes de tudo real, humana e socialmente útil; e se ele não pode tomar
liberdades inadmissíveis com a lei, decidindo contra ela, alude o Ministro
Sálvio de Figueiredo, pode e deve, por outro lado, optar intetpretaçào que mais
atenda ás aspiraçôes da Justiça e do bem comum,46 já que a proibição de decidir
pela eqüidade não há de ser entendida como vedando, a que se busque
alcançar a justiça no caso concreto, com atenção ao disposto no artigo 5•O
da Lei de Introdução.47
É imperioso que se passe a aplicar, através de uma interpretação
analógica, o mesmo regramento legal, pois inquestionável que se trata de
um relacionamento que tem base no amor.4t
Uma hermenêutica construtiva, baseada numa interpretação
atualizada e dialética, afirma que a partilha da metade dos bens havidos
durante a comunhão de vida mediante colaboração mútua é um exemplo de
vida que pode ser trilhada, expondo perante o probrio sistema jurídico suas
lacunas,
daí por que equivoca a base da formulação doutrbtária e juriiprudenc-ial acerca
da
diversidade dos sexos como pressuposto do casamento.
O mestre paranaense lembra que a técnica engessada das fórmulas
acabadas não transforma o tema em algo perdido no ar quando ensinar é
percorrer a geografia do construir, exigindo o estudo, em seu mapa carto-
gráfico do saber, o construído e não a indução ao dado.

44 TJRS, 8.’ Câmara Cível, AGI 599.075.496, Rei. Des. Breno Moreira Mussi, j.
17.06.1999,

quando se decidiu pela competência da Vara de Família para apreciar demandas que
envolves-
sem relações de afeto (homossexuais).

45 STF, RBDP 50/159.


46 XiT] 26/378.

47 R.S’TJ 83/168.

48 DIAS, Maria Berenice. Efeitos patrimoniais das relações de afeto. Repensando


o direito de família.
Belo Horizonte: IBDFAM, 1999, p. 57.

135

JOSE CARLOS TEIXEIRA GIORGIS

Não se deve, então, conviver com uma atitude de indiferença ou de


renúncia a uma posição avançada na inovação e mesmo na revisão e su-
peração dos conceitos, atribuindo, abertamente, para fomentar questio-
namentos e fazer brotar inquietude que estimule o estudo e a pesquisa
comprometidos com seu tempo e seus dilemas.49
Além disso, as uniões estáveis de natureza homossexual podem ter
relevância jurídica em outros planos e sob outras formas, não como
modalidade de casamento.50
E necessário, pois, qualificar a relação homoerótica como entidade
familiar, com uso analógico dos institutos jurídicos existentes e dos
princípios do Direito, timbrando-a como espécie de união estável.
A família não suporta mais a estreita concepção de núcleo formado
por pais e filhos, já que os laços biológicos, a heterossexualidade, a exis-
tência de, pelo menos, duas gerações, cederam lugar aos compromissos
dos vínculos afetivos, sendo um espaço privilegiado para que os opostos
possam vir a se tornar complementares.
Atualmente, a família, além da sua função de reprodução biológica,
produz também sua própria reprodução social, através da função
ideológica que exerce ao vincular a introjeção, por seus membros, de
valores, papéis, padrões de comportamento que serão repetidos pelas
sucessivas gerações, deixando a família nuclear de se constituir em
modelo prevalente.
A progressão do número de divórcios, filhos criados pelo pai ou
pela mãe, filhos criados em famílias reconstruídas por novos casamentos
aconchegam os novos arranjos cada vez mais freqüentes na sociedade,
não comportando mais a simples reprodução dos antigos modelos para o exercício
dos
papéis de mães e pais, experiência que vai além do fato biolo~gico natural e
adquire o
estatuto de uma experiência psicolo’gica, social, que pode ou não acontecer,
indepen-
dentemente da fecundação, gestação e do dar à iuz e amamentar.
Ressignificar a família na função balizadora do périplo existencial é
um imperativo de nossos dias, revitalizá-la com o aporte de novas e mais

49 FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos de direito de família. Rio de Janeiro:


Renovar, 1999, p. 2,
passim.

50 OLIVEIRA, José Lamartine Cortês de. Direito de família. Direito matrimonial


Porto Alegre:

Fabris, 1990, p. 215.

136

A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO HOMOEROTICA

sadsfatórias modalidades de relacionamento entre os seus membros é


indispensável para se aperfeiçoar a convivência humana. Repensá-la é tarefa
a ser por todos compartida por sua transcendência com a condição humana.51
A família contemporânea não corresponde àquela formatada pelo
Código Civil, constituída por pai e mãe, unidos por um casamento regulado
pelo Estado, a quem se conferiam filhos legítimos, eis que o grande número
de famílias não matrimonializadas, oriundas de uniões estáveis, ao lado de
famílias monoparentais, denota a abertura de possibilidade às pessoas, para
além de um único modelo.
Hoje, a nova família busca construir uma história em comum, não
mais a união formal, eventualmente sequer se cogita do casal, o que
existe é uma comunhão afetiva, cuja ausência implica a falência do projeto
de vida, já não se identifica o pai como marido, eis que papéis e funções
s~o diversos, e a procura de um outro desenho jurídico familiar passa pela
superação da herança colonial e do tradicional modo de ver os sujeitos
das relações familiares como entes abstratos.52
Flagra-se o descompasso entre o avanço constitucional do Direito
de Família e a existência de algumas famílias sociológicas ainda se
mantêm à margem da família jurídica, diante dos valores e princípios
constitucionais que norteiam o ordenamento brasileiro, tais como as
uniões sexuais entre parentes, pai e filha, e as famílias de fato, resultantes
da união de pessoas do mesmo sexo.
Embora aceitando que alguns valores e princípios tradicionais
ainda prevalecem em matéria de conjugalidade, o que obsta relações entre
pessoas do mesmo sexo, pois a sexualidade se vincula ainda à procriação,
impedindo outros modelos, reconhece o mestre carioca que a realidade
fática de ditas uniões, tal como ocorreu com a união livre, deve percorrer
caminho também difícil e tortuoso, mas vai atingir o status de família em
tempos não muito distantes.53

51 ZAMBERLAN, Cristina de Oliveira, Os novos paradigmas da família


contemporãnea: uma perspec-
tiva interdisdplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 201, p. 13-14 e 149-151.
52 FACHIN, Rosana Amara Girardi. Em busca da família do novo milínio. Uma
reflexão crítica sobre
as orzgens históricas e as perspectivas do Direito de Família brasileiro
contemporáneo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001, p. 7, passim.
53 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Família não- fundada no casamento.
Revista dos

Tribunais, n. 771, p. 62-68.

137

JOSE CARLOS TEIXEIRA GIORGIS

8 A UNIÃO HOMOEROTICA E A JURISPRUDÊNCIA

Para os tribunais,

é possível o processamento e o reconhecimento de união


estável entre os homossexuais, ante os princípios fundamentais
insculpidos na Constituição Federal que vedam qualquer
discriminação, inclusive quanto ao sexo, sendo descabida dis-
criminação quanto à união homossexual. E é justamente agora,
quando uma onda renovadora se estende pelo mundo, com
reflexos acentuados em nosso país, destruindo preconceitos
arcaicos, modificando conceitos e impondo a serenidade cien-
tífica da modernidade no trato das relações humanas, que as
posições devem ser marcadas e amadurecidas, para que os
avanços não sofram retrocesso e para que as individualidades e
as coletividades possam andar seguras na tão almejada busca da
felicidade, direito fundamental de todos.54

Posteriormente, ao dirimir a partição de bens entre homossexuais,


aludiu-se que não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência
de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos
derivados dessas relações homoafetivas, realidades ainda permeadas de
preconceitos, mas que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural
atividade retardatária, pois nelas remanescem conseqüências semelhantes
às que vigoram nas uniões de afeto, buscando-se sempre a aplicação da
analogia e dos princípios gerais do Direito, prestigiados os princípios da
dignidade humana e da igualdade.55
Em outro escólio diz-se que o Judiciário não deve se distanciar das
questões pulsantes, revestidas de preconceitos, só porque desprovidas de
norma legal, devendo a união homossexual ter a mesma atenção dispen-
sada às outras relações.

54 TJRS, 8.~ Câmara Cível, APC 598.362.655, Rei. Des. José Siqueira Trindade, j.
01.03.2000.

55 TJRS, 7.~ Câmara Cível, APC 70001388982, ReI. Des. José Carlos Teixeira
Giorgis,

j. 14.04.2001.

138

A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO HOMOERÕTICA


Portanto, a companheira tem direito assegurado de partilhar os
bens adquiridos durante a convivência, ainda que se trate de pessoas do
mesmo sexo, desde que dissolvida a união estável.56

9 CONCLUSÃO

Assim, não é desarrazoado, firme nos princípios constitucionais da


dignidade da pessoa humana e da igualdade, considerada a visão unitária e
coerente da Constituição, com o uso da analogia e suporte nos princípios
gerais do direito, ter-se a união homoerótica como forma de união estável,
desde que se divisem, na relação, os pressupostos da notoriedade, da publici-
dade, da coabitação, da fidelidade, de sinais explicitos de uma verdadeira
comunhão de afetos.

10 BIBLIOGRAFIA

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56 TJBA, 3.’ Câmara Cível, APC 16313-9/99, ReI. Des. Mário Albiani, j.
04.04.2001.

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JOSË CARLOS TEIXEIRA GIORGIS

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140

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141

FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS
E CONCUBINATO ADULTERINO

Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho


Juiz de Direito. Professor de Direito Civil da UFAL.
Professor do Curso de Pós-Graduação
em Direito Privado do CESMAC/BJ Maceió.
Mestrando em Direito pela UFPE.

_________________ Sumário _________________

1. Concepção de família e entidade familiar. 2. Compreensão


do concubinato adulterino e do adultério. 3. Intervenção do
Estado nas relações de família. 4. A crise do sistema mono-
gâmico. 5. O concubinato adulterino na jurisprudência. 6. A
doutrina e o concubinato adulterino. 7. Considerações finais.
8. Bibliografia.

O amor paira acima das convenções sociais, dizia Eça de ~Queiro~


Parafra-
seando o autor, diríamos: o amor paira acima das convenções legais.
Retomaremos a essas assertivas ao final deste artigo.
Fachin1 cita passagem do acórdão relatado pelo Ministro Ru~y Rosado
de A~ui ar, cXo aijet\o~ ‘~rÀ’o’~rna\ t3~e ~#.~úc,a (~T~5 rxn o~a\ co~x~a
~rx~tetes-
sante referência: “Ke/sen, reptado por Cossio, o criador da teoria egoló-
gica, perante a congregação da Universidade de Buenos Aires, a citar um
exemplo de relação intersubjetiva que estivesse fora do âmbito do Direi-
to, não demorou para responder: “Oui, monsieur, l’amour”2 ÍSim, senhor,

1 FACHIN, Luiz Edson, Elementos críticos do direito de família: curso de direito


civil. Rio de
Janeiro: Renovar, 1999, p. 93.

2 Trata-se do Recurso Especial 148.897/MG, julgado em 10.02.1998, por


unanimidade.
143

CARLOS CAVALCANTI DE ALBUQiJERQUE FILHO

o amor]”. Entendemos, com o devido respeito, tratar-se de um grande


equívoco. O amor, o afeto, no mais amplo sentido, é uma possibilidade
em todas as relações de família; portanto, importa, sim, para o Direito, de
sorte que, excluída essa perspectiva, teremos, apenas, uma visão parcial
do Direito de Família.

1 CONCEPÇÃO DE FAMÍLIA E ENTIDADE FAMILIAR

Importante precisar, inicialmente, a compreensão de família e entt-


dade familiar. A menção a entidade familiar é feita no sentido de núcleo
famili>ir; família no mais estrito sentido da palavra, abrangendo os mais
diversos arranjos familiares, dentro de uma perspectiva pluralista, de
respeito à dignidade da pessoa humana, com o significado, segundo o
nosso entendimento, de unidade integrada pela possibilidade de man~/i’stação de
afetos através da (con) vivência, publicidade e estabilidad& (grifo nosso).
As expressões família e entidade familiar não encontram definição na
Constituição Federal tampouco a legislação infraconstitucional cumpriu
esse desiderato, até porque não nos parece tarefa do legislador fazê-lo.
Cabe, portanto, à doutrina em abstrato e aos juizes e tribunais diante de
caso concreto definir a extensão de uma e outra expressão, a fim de
verificar qual a proteção que o Estado pretende oferecer e a qual família,
bem assim a exata compreensão da expressão entidade familiar.
A expressão entidade familiar somente foi incorporada a texto legis-
lativo com o advento da CF de 1988, que a ela se refere expressamente em
seu artigo 226, §~ 3•~~ e ~ A CF em vigor menciona a proteção do Estado
à família, que não se confunde com o instituto da entidade familiar
referido, igualmente, pelo texto constitucional.

3 O conceito proposto encontra-se inserido na dissertação de mestrado do


autor, a ser defendida
na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em fase de conclusão, que versa
sobre a
temática “Entidades familiares eonstituicionalizadas”, sob a orientação do Prof.
Dr. Pau/o Lui~
Netto Lôbo.

4 Os parágrafos terceiro e quarto do artigo 226, da CF, reconhecem a


união estável e a entidade
monoparental ou unilinear, respeetivamente: “Para efeito da proteção do Estado,
é reconhe-
cida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a
lei facilitar
sua conversão em casamento”. “Entende-se, também, como entidade familiar a
comunidade
formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.

144
FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS E CONCUBINATO ADULTERINO

O termo família é utilizado em sentido amplo, que pode ter o


amplis-
simo significado de família brasileira ou, por exemplo, de parentes unidos
segundo laços consangüíneos, que correspondem, segundo o Código Civil,
até o sexto grau, bem assim as denominações família natural e família
substituta adotadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente,5 que incluem,
portanto, as mais diversas acepções do termo, em sua acepção jurídica.6
A partir do estudo do conceito de entidade familiar, dentro de uma
abordagem dos princípios constitucionais de Direito de Família, tentare-
mos chegar à conclusão, preliminar, de que a menção expressamente feita
pela CF de 1988 ao casamento, a união estável e à entidade monoparen-
tal ou unilinear é apenas exemplificativa.
O texto constitucional consagrou, em matéria de Direito de Famí-
lia, os seguintes princípios: com acepção genérica, a liberdade e a igualda-
de; como princípios específicos, o pluralismo das entidades familiares e a
afetividade; todos informados e conformados ao atendimento do prin-
cípio maior, a dignidade da pessoa humana, considerado como primado.
Queremos destacar, neste relato, os princípios específicos do Di-

ii
reito de Família — quais sejam: o pluralismo das entidades familiares e a
afetividade — que serão abordados e pontuados a partir de uma inter- 1h
relação com os princípios genéricos, da liberdade e da igualdade, sempre
dentro de uma perspectiva de atendimento ao princípio maior, o da digni-
dade da pessoa humana.
O princípio do pluralismo das entidades familiares, encarado como
o reconhecimento pelo Estado da existência de várias possibilidades de
arranjos familiares, rompe com a orientação legal centenária, que vem
desde as Ordenações do Reino e que influenciou as Constituições brasi-
leiras do império e as republicanas, com exceção da CF em vigor, as quais
reconheciam, tão-somente, o casamento como exclusiva entidade fami-
liar e, como tal, a única idônea a receber a proteção do Estado.

5 V. Código Civil, artigos 330 e 331. O Projeto de Código Civil, Rel.


Dep. Ricardo Fiúza,
aprovado em 15.08.2001, em seu artigo 1.592, limita o parentesco ao quarto grau.
In: internei
www.camara.gov.br, pesquisado em 01.10.2001. V., também, Lei 8.069/90, ECA,
especial-
mente os artigos 25 a 52.
6 A respeito das várias acepções do termo família, v. LIRA, Ricardo
Pereira. Breve estudo sobre
as entidades familiares. In: BARRETO, Vicente (Org.). A nova família: problemas
e perspecti-
vas. Rio dc Janeiro: Renovar, 1997, p. 26-27.

145

CARLOS CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE FILHO

Atualmente, com o expresso reconhecimento da união estável e da


família monoparental, rompeu a CF de 1988, definitivamente, com o
aprisionamento da família nos moldes restritos do casamento. Em vez da
segurança imposta o pluralismo reconhecido como fato e valor social,
hoje incorporado ao ordenamento como princípio. No entanto, o legisla-
dor foi ainda muito tímido, pois deixou de reconhecer expressamente
outras formas de relações afetivas, com caráter de estabilidade ,~ como
entidade familiar, a exemplo do concubinato adulterino, vez que o dogma
da monogamia ainda supostamente prevalece, bem assim as uniões
afetivas entre pessoas do mesmo sexo, nas quais imperam os preconcei-
tos de uma falsa moral social e religiosa ditados não se sabe por quem.
Reconhece-se, porém, que uma interpretação à vista dos valores e princí-
pios constitucionais certamente superará os óbices de uma hermenêutica
fechada e estéril.
Dizemos, pois, unidade no sentido de núcleo, que pode compreender
a forma mais tradicional e ocorrente do casal casado, com ou sem filhos,
vivendo sob o mesmo teto, além da união estável e da entidade monopa-
rental ou unilinear, mencionadas expressamente pela CF. Dentro dessa
perspectiva incluem-se os arranjos menos usuais, no entanto, cada vez
mais ocorrentes, a exemplo das já citadas uniões afetivas entre pessoas
do mesmo sexo e as relações concubinárias adulterinas, bem assim a
situação das pessoas que, pelos mais diversos motivos, vivem sozinhas.
Quando mencionamos a possibilidade de manifestação de afeto, é
porque, a despeito de entendermos a afetividade como um princípio
implicito do Direito de Família — aplicável às entidades familiares, portan-
to, com força obrigatória, no sentido de se tratar de norma jurídica,
embora, repita-se, implicitamente posta — entendemos que ela, a afetivi-
dade, é uma possibilidade antevista pelo Estado nas relações dos
partícipes das mais diversas entidades familiares. Contudo, esse mesmo
Estado somente intervirá em ditas relações à medida que, de maneira
direta ou indireta, alguém manifeste a falta da afetividade em suas
conseqüências jurídicas, como, por exemplo, quando uma fática separa-
7 A respeito v. SILVA, Américo Luís Martins. A evolução do direito e a realidade
das munes sexna:s.

Rio de Janeiro: LumenJuris, 1996, p. 188, para quem “(...) onde houver
estabilidade na união

presume-se existir alguma organização familiar (...)“.

146

FAMÍLIAS SIMULTANEAS E CONCUBINATO ADULTERINO

ção por mais de dois anos comprovada enseja o divórcio direto, sem que
haja a necessidade de se manifestar o motivo, pois que, em casos como
este, entendemos que o legislador presume não mais haver o afeto.
A possibilidade de manifestação de afeto se dá através da convi-
vência, que está no sentido de familiaridade, com ou sem coabitação,
com ou sem relações íntimas, bastando a convivencia.
A publicidade e a estabilidade completam os requisitos para a possi-
bilidade de manifestação de afeto em uma entidade familiar, de sorte que
não se requer notoriedade, mas, sim, o conhecimento, ao menos por pessoas
mais íntimas, da existência da entidade familiar,t o que e facilitado através
da durabilidade da relação ou situação, o que não deverá ser determinado
com prazo aprioristicamente fixado por legislação, como aconteceu com a
Lei 8.971/94, especialmente em seu art. 1 •o~9
2 COMPREENSÃO DO CONCUBINATO ADULTERINO
E DO ADULTÉRIO

Ainda introdutoriamente precisamos delimitar a compreensão do


termo concubinato adulterino, a fim de que, realizadas essas precisões ter-
mtnológicas, possamos chegar à caracterização do concubinato adulterino
como entidade familiar.
Entendemos o concubinato adulterino como uma relação estável entre duas
pessoas de sexos d~/èrentes, constituída faticamente, com possibilidade de
man~/èstação
de afeto, presumidamente pública e de modo contínuo. O Projeto de Código Civil,

8 CZAJKOWSKI, Rainer. Unido Livre à luz da Lei 8.971/94 e da Lei


9.278/96. Curitiba:Juruá,
1996, p. 73-5. V., também, PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união
estável.
3. cd. Belo Horizonte: Dey Rey, 1996, p. 45-50.

9 A lei referida regula o direito dos companheiros a alimentos e à


sucessão, e em seu artigo 1.0
dispõe: “A companheira comprovada de um homem solteiro, separado judicialmente,
divor-
ciado ou viúvo, que com ele viva há mais de 5 (cinco) anos, ou dele tenha prole
(...)“.
Entendemos que o mencionado dispositivo é inconstitucional, vez que acrescenta
requisito
essencial não mencionado pela CF. Ademais, ainda que assim não se entendesse, a
regra
encontra-se revogada pelo artigo 1. da Lei 9.278/96, a qual não menciona
qualquer prazo de
convivência. O Projeto de Lei 2.686/96 encaminhado ao Congresso, à guisa de
solucionar a
regulamentação infraeonstitueional da união estável, retoma a questão da fixação
do prazo. O
projeto de Código Civil, relator dep. Ricardo Fiuza, aprovado em 15.08.2001. lo:
internet
www.camara.gov.br., pesquisado em 01.10.2001, em seu artigo 1.723, não faz
referencia a
prazo de convivencia.

147

CARLOS CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE FILHO

em seu artigo 1.727,10 refere ao concubinato como “as relações não even-
tuais ente o homem e a mulher, impedidos de casar
É importante esclarecer que, havendo separação de fato, pública, con-
tinua e duradoura, estaremos diante de união estável, e não de concubinato.1’
A questão do adultério diz respeito à ocorrência, simultânea, para ao
menos um dos participes do concubinato, o homem ou a mulher, de um
casamento, em que não há o rompimento jurídico ou fático da relação,
caracterizando, tecnicamente, o descumprimento do dever de fidelidade,
mencionado pelo Código Civil em vigor,12 ensejando a existência de
ilicitos na esfera penal e civil.
O adultério é tipificado como crime no âmbito criminal,13 embora
atualmente verifique-se nítida tendência à descriminalização, inclusive é
o que consta do recente Anteprojeto de Código Penal, parte especial.
Ademais, enquanto não ocorre a mudança legislativa, os penalistas pro-
põem a aplicação do direito penal mínimo ou do princípio da adequação
social14 de sorte que não se permita, em pleno século XXI, no mundo

10 Projeto de Código Civil, relator dep. Ricardo Fiuza, aprovado em


15.08.2001. lo: internei
www.camara.gov.br., pesquisado em 01.10.2001.
11 O Projeto de Código Civil, relator dep. Ricardo Fiuza, aprovado em
15.08.2001. lo: internei
www.camara.gov.br., pesquisado em 01.10.2001, cm seu artigo 1.723, § 1.,
menciona
expressamente a exclusão dos separados de fato da incidência do impedimento dc
pessoas
casadas, seguindo, por conseguinte, a tendência manifestada pela jurisprudência,
inclusive do
STJ, conforme se observa do Resp 86.302/RS, 4.’ Turma, ReI. Mio. Barros
Monteiro,
j. 17.06.1999. lo: internet www.stj.gov.br, pesquisado em 15.10.2001.
12 V. CC, artigo 231, inciso 1. O Projeto de Código Civil, relator dep.
Ricardo Fiuza, aprovado em
15.08.2001. lo: internei www.camara.gov.br., pesquisado em 01.10.2001, retoma a
menção
das hipóteses que podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida, com
a finalidade
de possibilitar a separação judicial litigiosa, incluindo entre as quais o
adultério (art. 1.573, mc. 1).
Trata-se de grave equivoco do legislador, porque retoma a tormentosa questão da
prova da
culpa nas relações de família.
13 V. CP, artigo 240. V. GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas
do Códzgo Civil brasileiro.
Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 87-88, ao citar a exposição de motivos
do projeto de
Código Civil de Coelho Rodrigues, declara que o autor do projeto referido teve a
idéia de
autorizar a dissolução do vínculo no caso dc adultério, mas recuou diante de
certas perspecti-
vas. Segundo essas perspectivas, acrescenta Orlando Gomes: Coelho Rodrigues
“tendo chega-
do à conclusão de que o adultério do homem, embora menos grave, deveria também
autorizar
o divórcio, pondera: ‘se não estou muito enganado, no dia da exeqüibilidade da
lei, que o fizer,
noventa por cento, pelo menos, das senhoras casadas da nossa sociedade poderão
propor a
dissolução de seu casamento, o que equivaleria à dissolução da própria
sociedade’.”

14 OLIVEIRA, Marcos Aurélio Costa Moreira de. O direito penal e a


intervenção mínima.
Revista Brasileira de Ctlncias Criminaiç, São Paulo, o. 17, ano 5, jan./mar.
1997, p. 145-152;

148

FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS E CONCUBINATO ADULTERINO


ocidental, a penalização de fato que importa tão-somente à esfera priva-
da, individual, dos envolvidos, descabendo a intervenção estatal mais

L séria, com privação da liberdade, em casos dessa natureza.


Na seara cível, o Código Civil em vigor, menciona entre os impedi-
mentos a\soXutos, a pt6x~6xç~ão ~o casamento ~o “cbt#’page a2t~’aXteto com o
co-réu, por tal condenado”.15 O projeto de Código Civil16 não impede o
cônjuge adúltero ao novo casamento, suprimindo “esse tolo impedimen-
to”, na expressão de Rodngues.’7
A tendência da doutrina, porém, é considerar, cada vez mais, a
questão atinente à esfera íntima dos envolvidos, de modo a abandonar a
petsve~a é~e urna se Ç’&o-s’è~xÇao ~ ~\o
conjugal de fidelidade, sistemática que deve prevalecer na hipótese de
rompimento de outras relações afetivas, como a união estável e as parcerias
entre pessoas do mesmo sexo. Como conseqüência, cabe desprezar qual-
quer efeito jurídico negativo ao adultério,’9 como em relação a guarda de
filhos, alimentos, entre outros, partindo-se para uma perspectiva de separa-
ção-ruptura fundada, apenas, na fática separação. No caso de separação
judicial litigiosa baseada no descumprimento do dever de fidelidade, em

v. também OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de e FONSECA, André Isola. Conversa


com um
abolicionista minimalista. Revista Brasileira de Ciências Crüninais, São Paulo,
o. 21, ano 6, jao./
mar. 1998, p. 13-21. BITENCOURT, César Roberto. Ltcões de direito penal: parte
geral. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1995, p. 31-9.

15 CC, artigo 183, inciso VII.


16 Trata-se do projeto de Código Civil, relator dep. Ricardo Fiuza,
aprovado cm 15.08.2001. lo:
internei www.camara.gov.br., pesquisado em 01.10.2001.

17 RODRIGUES, Sílvio. Direito de família. São Paulo: Saraiva, 1994, p.


43. v. 6.

18 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A culpa no desenlace conjugal. lo: Direito


de família e ciência
humanas, o. 3. São Paulo: Jurídica Brasileira, 2000, p. 133-151, especialmente
quando
menciona: “a tendência é, portanto, da substituição do malfadado princípio da
culpa, pela
instalação do simples princípio da ruptura, expressão, aliás, já incorporada em
nosso
ordenamento jurídico, inclusive no texto da Lei do Divórcio.”

19 V. Súmula 447, do STF, que mencionava: “E válida a disposição


testamentária em favor do
filho adulterino do testador com sua coneubina”. A referida súmula tinha por
objetivo
restringir a aplicação do dispositivo legal constante do artigo 1.719, do CC,
que proibe ao
testador casado dispor em favor de sua eoncubina. Entendemos que tal dispositivo
é
inconstitucional, por mencionar proibição somente ao homem. Ademais, contraria a
Consti-
tuição, porque, em se considerando o coocubinato adulterino como entidade
familiar, não há
sentido para a regra proibitiva, vez que a proteção estatal prevista no artigo
226, da CF,
também abrange o concuhinato adulterino.

149

CARLOS CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE FILHO

face da ocorrência do adultério, é possível mesmo sob a égide da Lei 6.515/77


alegar a parte ré que a infração não tornou a vida em comum insuportável,
pois a ofensa foi perdoada.it) O Brasil ainda adota, quanto à separação
judicial, um sistema misto, na qual se admite a discussão da culpa, no
entanto, facilita-se a separação e o divórcio por ruptura.2’

3 INTERVENÇÃO DO ESTADO NAS RELAÇÕES


DE FAMILIA

A questão supra tem relacionamento direto com a temática da


intervenção do Estado nas relações de família.22 Trata-se de tema que, no
entanto, ainda não encontrou um desenvolvimento doutrinário e juris-
prudencial satisfatório. Entendemos, no que concerne à intervenção
estatal no âmbito da família e das entidades familiares, que a intervenção
do Estado deve se dar apenas no sentido da proteção, nos precisos
termos da CF,23 e não numa perspectiva de exclusão. Portanto, não cabe
ao Estado predeterminar qual a entidade familiar que se pode constituir,
mas, apenas, declarar a sua formação, outorgando-lhe a proteção social,
por considerá-la base da sociedade.
Portanto, um Estado que se quer democrático, em que a dignidade
da pessoa humana é erigida à condição de fundamento da república,24 não
pode, sob pena de contrariar frontalmente o ordenamento constitucional,
partir de uma perspectiva de exclusão de arranjos familiares, entenda-se,
tecnicamente, entidades familiares não mencionadas expressamente pela
CF, a que denominamos entidades familiares implicitamente constitucionaliza-
das, como é a hipótese do concubinato adulterino.

20 RODRIGUES, Sílvio. Direito de família. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 217-218,


v. 6.

21 A posição encontra-se xnserida na própria CF, especialmente em seu artigo


226, § 6..

22 A respeito v. LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repcrsonalização das relações de


família. lo:

BI’ITAR, Carlos Alberto (Coord.). O direito de família e a Constituição de 1988.


São Paulo:
Saraiva, 1989, p. 58-59, ao tratar sobre os limites recíprocos da família e do
Estado, introduz
discussão sobre a temática.
23 V. CF, artigo 226, in verbin “A família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado”.

24 V. CF, artigo 1., inciso III.

150
FAMÍLIAS SIMULTÁNEAS E CONCUBINATO ADULTERINO

Dados estatísticos dos últimos censos do Instituto Brasileiro de


Geografia e Estatística (IBGE)25 mostram-nos que a entidade familiar
mais tradicional, o casamento, constituído do casal, com ou sem filhos,
vivendo sob o mesmo teto, passa a constituir situação em decinio, vez
que em termos percentuais aproxima-se daqueles que vivem em união
estável, enquanto aproximadamente 2O0/o (vinte por cento) das entidades
são monoparental, 5% (cinco por cento) constituem parcerias entre pes-
soas do mesmo sexo26 e 90/o (nove por cento) de pessoas vivem sozinhas.27
Quanto ao concubinato adulterino, não existem dados estatísticos
precisos a respeito da ocorrência fática da mencionada relação,28 no
entanto, é fato que desde a colonização, no contexto de casa grande e
II
senzala, tão bem retratado por Gilberto Freire,29 passando pelos movtmen-
tos de conquista do interior, cujo mais conhecido é o movimento bandei-
41
25 Internetwviw.ibge.gov.br, pesquisado em 15.10.2001. A respeito v. BERQUÔ,
Elza. Arranjos
familiares no Brasil: uma visão demográfica. lo: NOVAIS, Fernando A. (Coord.).

SCHWARCZ, Luis Moritz (Org.). História da vida privada no Brasii~ Contrastes da


intimidade
contemporânea. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, v. 4. p. 415, no qual a autora
ressalta que “o
comportamento matrimonial dos brasileiros nas últimas décadas alterou-se em
alguns aspec-
tos, mantendo-se em outros. Aumentou o número de separações e divórcios,
conservou-se o
da média das idades ao casar, e o papel das uniões não legalizadas cresceu na
preferência das E
pessoas”. V., também, SILVA, Américo Luís Martins, A evolução do direito e a
realidade das uniões
sexuais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1996, p. 163, que menciona “(...) a
significativa e
ininterrupta queda do número dc casamentos realizados anualmente (...)“.
26 Segundo o relatório de Alfred Kinsey, elaborado entre 1938 e 1947 e publicado
em 1948, dez

por cento da população norte-america eram formados por homossexuais. Utilizamos


o
percentual correspondente a 50/Ô devido à falta de dados cstatísticos mais
precisos sobre a
situação.
27 lnternet www.ibge.gov.br, pesquisado em 15.10.2001 ALBUQUERQUE, F.
Carlos Caval-
canti de. A situação jurídica de pessoas solitárias. 2001. No prelo. No referido
artigo, cola-
cionamos dados estatísricos a respeito dos singles em outros países, onde se
constata na Suécia
(4(1%), Dinamarca (361/o), Inglaterra (35%), Alemanha (300/o), França (30%) e
Estados
Unidos (26%), referente a unidades domiciliares ocupadas por uma só pessoa.
Sobre os
diversos arranjos familiares, numa perspectiva histórico-demográfica, v. BERQUÔ,
Elza.
Arranjos familiares no Brasil: uma visão demográfica. lo: NOVAIS, Fernando A.
(Coord.).
SCHWARCZ, Lilia Moritz (()rg.). História da vida privada no Brasil. contrastes
da intimidade
contemporáoea. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, v. 4, p. 432-435.
28 A instrução do IBGE para a realização dos questionários do censo 2000
não incluiu uma
perquirição sobre os novos arranjos familiares, daí por que não existem dados
estatísticos sobre
outras entidades familiares além do casamento, da união estável e da entidade
moooparental.
Internet www.ibge.gov.br, pesquisado cm 15.10.2001.
29 FREIRE, Gilberto. Casa grande e senr~ala. 8. cd. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1954.

151

CARLOS CAVALCANTI DE ALBUOUERQUE FILHO

30 ate os dias atu a realidade social ao longo da história insistiu


rante; ais,
em contrariar a determinação legal, de sorte que relações paralelas, durá-
veis, sempre ocorreram e continuam existindo. Resta a seguinte pergunta:
como o Direito vai encarar esta realidade? Antes de respondermos a
indagação, parece-nos pertinente a máxima de Ripert, que pontua: “quan-
do o direito ignora a realidade, a realidade se volta contra o direito,
ignorando
o direito”. Trata-se da consagração do princípio da primazia da realidade
social.

4 A CRISE DO SISTEMA MONOGÂMICO

A crise do sistema monogâmico apresenta-se patente. A legislação


vem acentuando a crise. Medidas legislativas, no âmbito constitucional e
infraconstitucional, como o reconhecimento expresso de outras entida-
des familiares, dentro de uma perspectiva pluralista; a possibilidade da
dissolução do vínculo de casamento, com o divórcio, e do reconhecimen-
to dos filhos havidos fora do casamento, entre outras, vem-nos mostran-
do que, paulatinamente, a situação de exclusividade do casamento e do
casamento exclusivo, monogâmico e indissolúvel, com filhos havidos na
relação de conjugalidade, mesmo no contexto jurídico, vem decrescendo.
Segundo Engels)1 o surgirmento da propriedade individual deu causa
ao nascimento e proliferação de vários institutos: o casamento monogâmino,
a prostituição, o adultério. Ainda, para o mesmo autor, a prostituição é um
dos pilares que dão base de sustentação ao sistema monogámüo de casamento.
Silva, seguindo o mesmo entendimento, assevera que “(...) a prostituta
sempre teve dois papéis importantíssimo na sociedade: acalmar o ânimo dos
celibatários, prolongar os casamentos instáveis e, até mesmo, os estáveis”. E
conclui: “(...) a prostituição funciona como um mecanismo estabilizador do
sistema monogâmico de casamento

30 VIANA, Rui Geraldo Camargo. Evoluçlo histórica da família brasileira. In:


PEREIRA,
Rodrigo da Cunha (Coord.). A família na travessia do milénio. Belo Horizonte:
IBDFAM/Del
Rey, 2000, p. 325-331.
31 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado.
12. ed. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 1991, p. 66-91.

32 SILVA, Américo Luís Martins. A evolução do direito e a realidade das unides


sexuais. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 1996, p. 192-193.

152

FAMÍLIAS SIMULTÁNEAS E CONCUBINATO ADULTERINO

A realidade social é bem diferente daquela vislumbrada por Engels$3


no entanto, os dias atuais vêm nos mostrando que estão desaparecendo os
elementos necessários para a predominância da monogamia delineada pelo
amor romântico. Assim, pois, verificamos um declínio da importância do
casamento oficial, aliada a um aumento significativo do número de separa-
ções e divórcios, com a experiência do casamento-rompimento-recasa-
mento. Além disso, é nítida uma maior preferência pelas uniões livres e
surgem no cenário outros arranjos familiares menos usuais.
Dados estatísticos do último censo, realizado em 2000, pelo IBGE,34
evidenciam para o total do país uma relação de 96,87 homens para cada
100 mulheres, como resultado de um excedente de 2.696.545 mulheres em
relação ao número de homens.
Levando em consideração a referida situação, ou seja, o excesso do
número de mulheres em relação ao número de homens no Brasil, que vem
se repetindo ao longo dos últimos censos, e considerando que a diferença
4
média de idade ao casar é de quatro anos, Berquó35 apresenta-nos interes-
sante estivamativa do número hipotético de mulheres para cada homem
no universo dos não-casados, por faixa etária, no que se comprova o
seguinte:

Idade (em anos) Número de mulheres para cada homem


20-24 2,1
25-29 5,0
30-34 11,3
35-39 21,6
40-44 33,3
45-49 48,0
50-54 56,7

33 ENGELS, Friedrich. A or~gem da família, da propriedade privada e do


Estado. 12. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1991, p. 66-91.

34 Sinopse preliminar do censo demografico 2000. Rio de Janeiro: IBGE, v.


7. p. 1-34.

35 BERQUO, Elza. Arranjos familiares no Brasil: uma visão demográfica. In:


NOVAIS,

Fernando A. (Coord.). SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da vida privada no


Brasii
contrastes da intimidade contemporánea. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, v. 4,
p. 436.

153

CARLOS CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE FILHO

5 O CONCUBINATO ADULTERINO NA JURISPRUDÊNCIA

E escassa a jurisprudência dos tribunais acerca do concubinato


adulterino. Antes da CF vigente, o Supremo Tribunal Federal, nas poucas
oportunidades em que se pronunciou sobre a temâtica, adotou negar
qualquer efeito, inclusive patrimonial, ao concubinato adulterino. Obser-
vemos julgado do STF assim ementado:

“Sociedade de fato em concubinato: resultando este de adulté-


rio, que a lei repele como crime, não pode ter efeitos de natureza
patrimonial e não provada a participação efetiva da mulher na
formação do patrimônio do concubino, casado e com filhos, não
tem a concubina direito à meação dos bens do companheiro,
pertencentes ao casal”.36

O voto que fundamentou a decisão, datada de 1975, do Ministro


Cordeiro Guerra, assevera que “(...) não é possível admitir-se a superpo-
sição simultânea da sociedade conjugal e do concubinato sob pena de
desmoronar a instituição do matrimónio (...)“. Outro integrante da Tur-
ma julgadora, o Ministro Moreira Alves, atestou que “(...) entendo que a
Súmula citada não abrange ligações adulterinas como na espécie” (grifo
no original). A súmula referida é a de n. 380.~~
Em decisão mais recente, datada de 1985, portanto dez anos após,
mas ainda anteriormente à CF em vigor, houve divergência no próprio
Tribunal que, desta feita, decidiu, por maioria, afirmando o entendimen-
to que “a ação de partilha patrimonial promovida pela concubina não
pode prosperar se o réu é casado, vista que tanto conduziria ao despropó-
sito da dupla meação “•38
O Relator sorteado, Ministro Aldir Passarinho, com voto vencido,
asseverou, citando o entendimento esposado pelo Desembargador Werter

36 STF: Rec. Ext. 81.707/RJ, Relator Mio. Cordeiro Guerra, à unanimidade, datado
de
12.09.1975. lo: RTJ o. 75, p. 965-8.

37 A Súmula o. 380, estabelece in verbis “comprovada a existência de sociedade


de fato entre os
concubinos, é cabível a sua dissolução Iudicial com a partilha do patrimônio
adquirido pelo
esforço comum

38 STF: Rec. Ext. 103.775/RS, Relator Mio. Aldir Passarinho, relator para o
Acórdão Ministro

Francisco Rezek, por maioria, datado de 17.09.1985. RTJ o. 117, p. 1.264-1.271.


154

FAMÍLIAS SIMULTANEAS E CONCUBINATO ADULTERINO

R. Faria, do TJ-RS, que não seria justo, em nome do repúdio moral ao


concubinato, favorecer a mulher legítima, atribuindo-lhe a quota da
concubina. E concluiu o Ministro Aldir Passarinho:

“(...) A mim parece, data venha, que não tem suporte em qualquer
princípio de moralidade é que venha a concubina a perder tudo
aquilo que reconhecidamente foi fruto do seu labor, empregado
na aquisição do imóvel juntamente com aquele que era seu
concubino, vindo este e sua esposa a ficar com tudo, mediante uma
manobra sobremodo ardilosa e condenável”.39

O condutor do voto vencedor, Ministro Francisco Rezek, assenta


em suas razões de decidir que “semelhante ação não pode prosperar quando
o réu seja casado, pesando sobre o seu patrimônio uma meação necessá-
ria”; além disso, não se refere a súmula 380 à relação adulterina.40
O outro integrante da Turma julgadora, o Ministro Cordeiro Guer-
ra, assevera:

“(...) Não é possível que a família seja entregue aos caprichos


sentimentais dos homens desatentos aos seus deveres conjugais
(...). Seria uma heresia jurídica, que atingiria os fundamentos da
moral constituída”.41

No STJ, a partir da vigência da CF de 1988, não houve mudança do


entendimento anteriormente esposado pelo STF. Vejamos a respeito o
seguinte julgado:

“Concubinato. Partilha de bens. Ação de indenização ajuizada


pela concubina.
Não enseja o recurso especial o reexame de matéria probatória
(Súmula 7 do STJ). Inviávei ademais, a pretensão reparatória por

39 STF: Rec. Ext. 103.775/RS, Relator Mio. Aldir Passarinho, relator para o
Acórdão Ministro
Francisco Rezek, por maioria, datado de 17.09.1985. RTJ o. 117, p. 1.269.

40 ibidem, p. 1.270.

41 Idem.

155

CP~P&OS CP~J I\LCM’4T1 DE P~LBUQUE~RQUE 11LH0

tratar-se, no caso, de concubinato aduterino. Inocorrência de afronta à


lei federal e dissídio pretorinao não configurado.
Recurso de que não se conhece”42 (grifo nosso).
O Relator do acórdão, Ministro Barros Monteiro, assenta no relató-
rio o que consta da sentença recorrida:

“(...) A jurisprudência hodierna, certamente diante das dificul-


dades aqui apontadas, optou pela não atribuição de efeitos
jurídicos à relação concubinária estabelecida ante impedimento
incontornável para o matrimônio entre os companheiros, ta-
chando a união natural, no caso, de concubinato impuro e adul-
terino (...)“.

As dificuldades apontadas dizem respeito à identificação da real


colaboração para construção do patrimônio que se pretende partilhar, o
que levaria à necessidade da dupla meação.
Em seu voto, o Ministro Relator assevera: “cuida-se de concubina-
to mantido simultaneamente com o casamento civil do réu. Já aí se
denota um óbice ao deferimento da patilha de bens pretendida (...)“.
Entendemos, no entanto, que o óbice citado não é jurídico, mas de
ordem fática, pois em se identificando qual a contribuição direta, com
capital ou com trabalho, de cada um, companheiro e companheira, deve
o patrimônio ser dividido entre ambos, não havendo qualquer direito
para o cônjuge, visto que interpretação diferente levaria ao enriqueci-
mento sem causa por parte deste.

6 A DOUTRINA E O CONCUBINATO ADULTERINO

A doutrina, em sua maioria, tem ignorado o concubinato adulte-


rino, a que não faz qualquer referência. Alguns compêndios de Direito de
Família se limitam a referir a impossibilidade do reconhecimento do
concubinato em que pelo menos um dos participes é casado, afirmando

42 STJ: Rec. Esp. 5.202/CE, Relator Mio. Barros Monteiro, por unanimidade,
datado de
11.12.1990. lo: internet www.stj.gov.br., pesquisado cm 15.10.2001.

156

FAMÍLIAS SIMULTÀNEAS E CONCUBINATO ADULTERINO

que qualquer consideração a respeito fere o sistema monogâmico de


família e de casamento, considerando-o como dogma, de sorte que nenhu-
ma consideração deve a mencionada relação ter no âmbito jurídico.
Outros autores enfrentam o tema de maneira direta, embora negan-
do o reconhecimento do concubinato adulterino como entidade familiar, como
família no mais estrito sentido. Pereira assevera o seguinte:

o Direito não protege o concubinato adulterino. A amante,


amásia, ou qualquer nomeação que se dê à pessoa que, paralela-
mente ao vínculo de casamento, mantém uma outra relação, uma
segunda ou terceira ... ela será sempre a outra, ou o outro, que não
tem lugar em uma sociedade monogâmica. Alguns autores prefe-
rem nomear essas relações como ‘concubinato impuro’, em opo-
sição a ‘concubinato puro’, ou ‘honesto’ (...) ou aqueles em que
não há impedimento legal para o estabelecimento da relação. E
impossível ao Direito proteger as duas situações concomitan-
temente, sob pena de contradizer todo o ordenamento jurídico”.43

Para C~aj/eows/ei, não se pode considerar o concubinato adulterino uma


entidade familiar. Diz o autor que “(...) é inviável no sentido de ser
juridicamente inaceitável (...)“. Eis as suas colocações:

“(...) Quando ocorrer tal situação, na prática, o mais correto é


indicar que o adúltero continua integrando tão-só a família
constituída pelo matrimônio.
Nesta ótica o casamento sempre deve prevalecer sobre as rela-
ções concubinárias adulterinas. Se é o varão o cônjuge adúltero
e tem fora do casamento, com a concubina, um filho, pode-se
somente considerar como uma entidade familiar à parte a
concubina e seu filho, nos termos do art. 226, § 42, da CF,
excluído o pai (...). O concubino devidamente não se insere em
nenhum contexto familiar, neste âmbito. Não forma com a
mulher adúltera uma entidade familiar porque esta mulher inte-
43 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concabinato e união estável 3. ed. Belo Horizonte:
Dei Rey,
1995, p. 74-75.

157

CARLOS CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE FILHO

gra, como esposa, a família constituída pelo casamento, coro


,‘ 44

seu marido

Existem os que reconhecem, apenas, efeitos patrimoniais às rela-


ções concubinárias adulterinas, no âmbito do Direito das Obrigações,
como sociedade de fato, fora, portanto, do contexto do Direito de
Família. Verifiquemos o posicionamento de Gama, para o qual “é imperioso
reconhecer que mesmo de tais uniões concubinárias advêm efeitos que o
Direito não pode desconhecer, por aplicação dos princípios tradicional-
mente reconhecidos (..•)~~.45
Interessante mencionar posicionamento de Silva, que entende ha-
ver uma “uniao estável adulterina”, considerando que a Lei 9.278, de
10.05.1996, não faz qualquer referência quanto ao estado civil dos
partícipes.46
Observamos, portanto, que os pronunctamentos judiciais e doutri-
nários admitem, quando muito, a partilha do patrimônio construído com
o esforço comum, mencionando haver entre os participes uma sociedade
de fato. Não se cogita da existência de uma entidade familias ressalvada a
posição acima referida.
Sobre a posição de Silva,47 concordamos que estamos diante de
uma entidade familiar; porém, de uma nova entidade familiar, que não se
confunde com a união estável, não sendo o concubinato adulterino espécie
desta, de sorte que deverá ser dispensado à situação um tratamento
jurídico próprio, sem desconsiderar que se trata de uma entidade familiar.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segundo a nossa concepção inicialmente proposta de entidade
familiar, como unidade integrada pela possibilidade de man~/èstação de afeto,

44 CZAJKOWSKI, Rainer. União livre à lu~ das leis o. 8.971/94 e o. 9.278/96.


Curitiba: Juruã,

1996, p. 49-50.
45 GAMA, Guilherme Pereira Nogueira da. O companheirismo: uma espécie de
família. S~o Paulo:
RT, 1998, p. 488.
46 SILVA, Américo Luís Martins. A evolução do direito e a realidade das uniôes
sexuais. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 1996, p. 383.

47 Idem.

158

FAMÍLIAS SIMULTANEAS E CONCUBINATO ADULTERINO

verificamos, a partir de uma abordagem interdisciplinar, que “a vida


afetiva é a dimensão que dá cor, brilho e calor a todas as vivências humanas
(...) experiência essa que afeta a totalidade individual e que, por isso
mesmo, recebe o qualificativo de afetiva ~
Segundo Dalgalarrondo, distinguem-se cinco tipos básicos de
vivências afetivas: 1. Humor ou estado de ânimo; 2. Emoções; 3. Senti-
mentos; 4. Afetos; 5. Paixões.49 A manifestação afetiva, pois, não é neces-
sariamente exclusiva. Ademais, não importa para o Direito impor tipos
padrões de comportamentos, pois enquanto houver desejo irão se mani-
festar relações familiares, entenda-se, entidades familiares divergentes da-
quelas estabelecidas aprioristicamente, de sorte que não há como aprisio-
nar o afeto, restringindo-o às relações de casamento, de união estável e a
entidade monoparental. O pluralismo das entidades familiares impõe o
reconhecimento de outros arranjos familiares além dos expressamente
previstos constitucionalmente.
Afinal, existindo a possibilidade de manifestação de afeto, através da
convivência, publicidade e estabilidade, estaremos diante de uma entidade
familiar. Indubitavelmente, em relações simultâneas estáveis, existe convi-
vência, vida em comum, e, também, um mínimo de publicidade, pois ao
menos algumas pessoas, parentes próximos, amigos íntimos, têm conheci-
mento daquela relação.
Negar essa perspectiva significa negar a própria realidade, pois o
concubinato adulterino importa, sim, para o Direito. As relações inter-
subjetivas estabelecidas repercutem no mundo jurídico, pois os concubi-
nos, que preferimos chamar de companheiros, convivem, às vezes têm
filhos, existe construção patrimonial em comum. Destratar mencionada
relação não lhe outorgando qualquer efeito atenta contra a dignidade dos
participes, companheiro(a), filhos porventura existentes. Além disso, reco-
nhecer apenas efeitos patrimoniais, como sociedade de fato, consiste em
uma mentira jurídica, porquanto os companheiros não se uniram para
constituir uma sociedade. Por fim, desconsiderar a participação do com-
panheiro(a) casado(a) na relação concubinária, a fim de entendê-la como
monoparental em havendo filho(s), ofende o princípio da livre escolha de
48 DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais.
Porto Alegre:

Artmed, 2000, p. 100.

49 Idem.

159

CARLOS CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE FILHO

entidade familiar, de família, pois que estaríamos diante de uma entidade


monoparental imposta.
Retornando, agora para concluir, verificamos que Freud colocou como
nossa estrutura de base o desejo. Não adianta aprisionar o ser humano,
homem ou mulher, estabelecer este ou aquele relacionamento, exclusivo ou
simultâneo; o amor, o afeto às vezes não se manifestam com exclusividade.
Aqueles sentimentos não se submetem a amarras. O poeta Djavan, alagoano
de boa cepa, com sensibilidade peculiar, pode definir a situação:

“(...) O amor é como um raio


Galopando em desafio
Abre fendas cobre vales
Revolta as águas dos rios
Quem tentar seguir seu rastro
Se perderá no caminho (...)“.

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161

MULTICULTURALISMO E DIREITO
DE FAMÍLIA NAS NORMAS DE DIREITO
INTERNACIONAL PRIVADO

Carlos Boucault
Professor de Direito Internacional Privado da Universidade
Estadual Júlio de Mesquita Filho — UNESP
(Campus de Franca-SP).
Membro da Comissão de Direito do Instituto Nacional
de Pesquisa e Estatística — INEP — Ministério
da Educação e Desporto.
Mestre pela Universidade de Brasília.
Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo.
Os segmentos acadêmicos e científicos vêm incorporando os con-
ceitos similares de globalização, mundialização, internacionalização, em
face da nova sistemática de escoamento da produção pelas empresas
internacionais, favorecendo o fluxo de capitais e de circulação de pessoas,
as quais, estimuladas por novas possibilidades de sobrevivência, que vão
desde a fuga de conflitos militares até o interesse em investimentos finan-
ceiros no exterior, intensificam os níveis migratórios pelos continentes.
Nessa ambientação, pessoas deslocam-se, unem-se umas às outras,
têm filhos, divorciam-se, adotam, requerem alimentos, desaparecem, mor-
rem, ensejando por parte dos países o redimensionamento das normas de
Direito Internacional Privado, visando à tutela dos direitos de família
relativos à condição dos estrangeiros que migram por variadas causas.
Um importante componente que deflui dessa realidade se traduz
pelo fenômeno do multiculturalismo representado pelos fatores de trans-
ferência cultural, os quais, a despeito do processo de “homogeneização da
sociedade industrial”, tipificado como “aldeia global” por Rqymond Aron e

163
1
CARLOS BOUCAULT

outros sociólogos norte-americanos, conservam as especificidades cultu-


rais das nacionalidades de origem de cidadãos que migram em busca de
novas perspectivas.’ Nesse sentido, o sistema normativo deve ser reestru-
turado para assimilar novas formas de institutos jurídicos, porquanto a
cultura não é produto de aculturação ou de “nacionalização” de regras
jurídicas.
O tema evoca a necessidade de se remodelar as normas de Direito
Internacional Privado, na medida em que os valores destinados à inter-
pretação das relações familiares apresentam sinais de rupturas com mo-
delos tradicionais de organização familiar, bem como, transformações
dos institutos do Direito de Família, aspecto que remete para o confronto
entre a perspectiva clássica de teoria dos conflitos de leis e de jurisdições
estrangeiras. Ademais, conforme observa Horatia Muir-Wat/,2 “a família
não escapa aos efeitos dessa vasta circulação de pessoas. Mesmo o interes-
se recente de União Européia para questões matrimoniais e responsabili-
dade parental demonstra a ausência de estancamento dos campos disci-
plinares: é o funcionamento eficiente do mercado interior que exige a
tutela de vida familiar do homo economicus. Aliás, os novos fenômenos
sociais transfronteiriços, os fluxos excepcionais de migração vinculados à
estratégia de firmas, já exercem uma certa influência sobre o conteúdo
dos direitos nacionais de família, cuja evolução passa agora por uma
sistemática de circulação de modelos jurídicos.
Ademais, convém salientar que a diversidade cultural que caracteriza
as relações jurídico-familiares suscita questões polêmicas a respeito das
competências jurisdicionais, aplicação do Direito Estrangeiro, sistemas de
Direito Religioso, que correspondem, em certa medida, a uma aplicação
tradicional dos institutos de Direito Internacional Privado. Entretanto, o
mundo contemporâneo requer a adequação do fenômeno de internacionali-
zação dos Direitos Humanos às normas de Direito Internacional Privado, no
ambito do Direito de Família. Assim, questões sobre inseminação artificial,
circulação internacional de gametas, o turismo da procriação, dentre outros
mecanismos que versam sobre temas relevantes no campo da biotecno-
1 CARDOSO, Fernando H. Pronunciamento do Presidente da República na Abertura do
Seminário Multiculturalismo e Racismo. in: SOUSA,Jessé (Org.). Multiculturalismo
e racismo.
Para/e/o 15, Brasília, 1997, p. 15.
2 WAIT, Horatia Muir. Les modelês familiaux à l’épreuve de la mondialisation.
lo: CARA VACA,
A. L. C.; IRIARTE,J. L. Angel (Orgs.). Miíndia/i~aciónyfami/ia. Madrid:
Colex, 2001, p. 12.

164

MULTICULTURALISMO E DIREITO DE FAMÍLIA NAS NORMAS...

logia, repercutem na concepção tradicional dos modelos familiares, pas-


sando a exigir um ambiente de reflexões princzbiológicas na estruturação
dos institutos do Direito de Família, no âmbito do Direito Internacional
Privado.
Sucede que a vida familiar, expressão de formas opressivas de estru-
turas sociais, afirma-se na temática contemporânea como sede de liberda-
de individual, de identidade cultural, e encontra nos grupos sociais
específicos e no pluralismo cultural as bases de internacionalização dos
Direitos Humanos para constituir aspirações alusivas à constituição de novos
direitos, em detrimento de atingir deveres. Dessa forma, estabelece-se o
direito a ter uma família, o direito à identidade familiar, os direitos da
criança e do adolescente, o direito à paternidade responsável, e não mais
a conotação do poder-dever decorrente das relações paternidade-filiação,
prestigiando-se a significação afetiva que deve nutrir as relações familia-
res, que superam a referência contextual dos vínculos da consangüinida-
de, em face das adoções no plano internacional.
Diante das generalidades de enfoques expostas nesse preâmbulo, é
de se ver que essa mesma situação se altera profundamente ao se examinar
as possibilidades e flagrantes limitações do Direito Internacional Privado,
inclusive dos próprios textos constitucionais no tratamento de questões
relativas à aplicação do Direito Estrangeiro e, fundamentalmente, no que
diz respeito à proteção do cidadão estrangeiro e sua condição jurídica.
Segundo Bernard Audit2 o Direito Internacional Privado é definido
por um paradoxo: há regras universais, elas existem em todos os ordena-
mentos estatais, porém as soluções que elas apresentam não são as mesmas
de um país a outro. Há ainda doutrinadores que evocam princípios do
Direito Internacional Comparado para aplicá-los a situações jurídicas com
conexão internacional, também de natureza paradoxal, fato que colide
com a concepção, segundo a qual, as normas de Direito Internacional
Privado de Direito Interno devem preservar sua hegemonia no reconheci-
mento do direito estrangeiro. Outras vertentes decifram-se pelo DIP
uniforme e não-uniforme: são os universalistas e os particularistas, os
quais consideram o universalismo das normas de DIP uma utopia, vez que
os Estados continuarão a legislar as situações de Direito Privado com
conexão internacional conforme seus próprios interesses. A conferência de

3 AUDIT, Bernatd. Droit int. privé. 3. cd. Paris: Econômica, 2000, p. 97.

165

CARLOS BOUCAULT
Haia, de 1993, contempla o movimento universalista, embora comporte
concepções divergentes dos Estados signatários. Uma nova tendência se
desenvolve na Alemanha, segundo a qual é preciso aproximar o DIP do
enquadramento conceitual do Direito Comparado, visando aos meios de
reduzir os conflitos de lei. Ainda quanto à unificação do direito material de
norma DIP, que é o objetivo maior das correntes universalistas, suas
convenções são tão numerosas que já resultam no fenômeno do conflito de
convenções internacionais.
Todavia, o que se verifica ainda é o fato de que os Estados têm a
última palavra em matéria de normas de DIP, segundo fatos doutrinários.
Tal constatação é questionada, em contrapartida, em face da existência
de sociedades internacionais não—estatais , comunidades não—religiosas,
sociedades internacionais comerciais etc. Deve ser considerado igual-
mente o fator da laicização do Direito Religioso em alguns segmentos
comunitário s.
Na verdade o Direito Internacional Privado se consolida na oposi-
ção entre os princípios do pluralismo e do territorialismo das leis, cujos
eflúvios emergem e recuam ao longo da evolução normativa dos institu-
tos do DIP. A função da lei e do juiz na determinação da lei aplicável ao
fato com conexão internacional tem papel preponderante na formação
histórica do Direito Internacional Privado como ciência: a ciência do
conflito de leis se desenvolve nos países de formação romanística, portanto,
de pensamento civilista, daí sua designação como conflito de leis; já o papel
do juiz sobreleva-se expressivamente em razão da universalização dos
conflitos, relembrando-se que o universalismo se consolida no ambiente
acadêmico do século XIX.
As considerações teóricas sobre as normas de DIP justificam-se
nesse trabalho, porquanto o Direito de Família é um dos tópicos vetores
de aplicação do Direito Estrangeiro e muitos de seus institutos se fundam
em princípios clássicos do DIP, como: doutrinas unilateralista e bilate-
ralista das regras de conflito, as quais não erradicam as contradições
quanto à vinculação com o Direito Estrangeiro originário da relação jurídi-
ca de Direito Privado. Quanto a esse último aspecto, tanto o personalis-
mo das leis, em voga no século XIX, tem caráter publicista, pois não se
desprende do conceito de soberania estatal, como o territorialismo apli-
cam Direito Estrangeiro mediante a adoção do critério da “localização”
da lei. A elasticidade do método de conflitos permitiu a classificação das

166

MULTICULTURALISMO E DIREITO DE FAMÍLIA NAS NORMAS...

relações de família ora como estatuto pessoal ora como estatuto real, ou seja,
a título de exemplo, se o regime matrimonial fosse considerado estatuto real,
deveria ser aplicado caso os cônjuges não tivessem manifestado sua opção de
regime para indicá-lo, como na hipótese do regime legal de bens. Ou, mais
modernamente, aplica-se a lei do domicílio onde os cônjuges encontram-se
estabelecidos, admitindo-se a escolha tácita dos cônjuges.
Certamente, questões como casamento e outros institutos de Di-
reito de Família têm a natureza de estatuto pessoal com aplicação
extraterritorialista, em matéria de Direito Internacional Privado. Outros
exemplos corroboram esse pendant entre personalismo e territorialismo
das normas de DIP: a nacionalidade do pai, da criança, o estatuto da
mulher casada, a diferença da nacionalidade entre cônjuges, as normas
para reger os bens, o patrimônio da família, a lei nacional aplicada para as
convenções matrimoniais, além das formas de dissolução da sociedade
conjugal. II
A partir dessas evidências, cumpre-se relevar que é evidente que os
problemas migratórios não são uma novidade em Direito Internacional 1k
Privado, mas as novas características (ou talvez antigas) manifestadas por
outros fluxos migratórios estão a desafiar as politicas legislativas dos
II
III
países, em seu conjunto, destinadas a regulamentação de situações familia-
II
res mistas, assim como novas estruturas familiares que alteraram profunda-
mente o conceito de família nuclear. Paloma Abarca Junco4 comenta a perple-
xidade que assoma a Europa, em nível de múltiplos debates e várias
discussões pronunciadas pela Comissão para a Proteção dos Direitos
Humanos de Estrasburgo, no plano da identidade cultural do cidadão
imigrante, em nome do princípio da proteção cultural da pessoa, isto é, as
diferenças culturais e a aspiração à aquisição de nacionalidade no país
receptor conduzem a um conflito quanto à manutenção da identidade
cultural de origem, problema vinculado pelos descendentes de imigrantes,
como: colônia turca na Alemanha, colônia portuguesa na Alemanha, ira-
nianos em França, mexicanos nos Estados Unidos da América. A autora
perpassa as dificuldades de se conseguirem os objetivos de uma integração
flexível, criticando as insuficiências dos elementos de conexão clássicos do
Direito Internacional Privado, os quais provêm da disciplina constitucional

4 ABARCA, PalomaJ. La regulación de la sociedad multicultural. CALVO, A. A.C.;


IRIARTE,

J. L. Angcl (Orgs.). Estatuto persona/J multiculturalidad de Iafamilia.


Madrid: Colex, 2000, p. 165.

167
1
CARLOS BOUCAULT

desses princípios, como nacionalidade (domicílio, residência). Na verdade,


a aquisição de nacionalidade, como em caso de atividade laboral, não
significa uma identidade cultural com outras comunidades, mesmo porque
as migrações tanto são temporárias como permanentes. Pondera a autora:5

“Temos de ter a consciência de que ou se defende uma conexão


étnica ou religiosa ou estaremos diante de uma patente desigual-
dade diante dos imigrantes. Mas essas propostas iriam converter
a sociedade européia em um acúmulo de grupos dotados de
estatutos os distintos, de difícil enquadramento numa Consti-
tuição marcada por princípios como a Laicidade ou a igualdade
perante a lei.”

Como exemplo, com relação ao conflito defragrado a partir do


atentado de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, que resultou na
Guerra entre os Estados Unidos e o Afeganistão, a diversidade cultural
no contexto Oriente-Ocidente evidenciou as diferenças dos institutos
jurídicos, particularmente, no campo do Direito de Família, tais como: o
crescimento poligâmico, adoção, promessa de núpcias, reconhecimento
de paternidade e sua eficácia, em sede de reconhecimento extraterritorial de
atos jurídicos e sentenças estrangeiras.
A dicotomia casamento monogâmico-poligâmico parece enfrentar
novos enquadramentos teóricos e assumir outras formas de organização
familiar que se distanciam dos conceitos tradicionais doutrinários e da
visão jurisprudencial plasmada no princípio de ordem pública como
mecanismo de limitações à eficácia do Direito Estrangeiro. Os critérios
tradicionais que se fundamentam na ordem pública parecem estar concen-
trados nos mecanismos da fraude à lei, para limitar a aplicação de normas
de Direito Estrangeiro, vez que situações de Direito de Família anterior-
mente inadmissíveis já comportam o reconhecimento por parte de
ordenamentos jurídicos, ou seja, verifica-se um tonus de amenização dos
rigores da ordem pública, atenuando-se-lhe os efeitos, porquanto muitos
direitos das relações familiares consubstanciam-se no teor dos Direitos
Humanos, na categoria dos Direitos Fundamentais, e sua violação deve ser
limitada pelas normas de ordem pública. Assim, os casamentos poligâmi-
5 Idem.

168

MULTICULTURALISMO E DIREITO DE FAMÍLIA NAS NORMAS...

cos foram admitidos na Inglaterra e na França como um direito à identida-


de cultural dos povos, não se assimilando, contudo, o repúdio, porque
viola o direito de igualdade entre os cônjuges.
No que tange ao regime matrimonial de bens, é de se ver que a
diferença de religiões e de nacionalidades pode até resultar em incapaci-
dade para o direito das sucessões hereditárias, sem, contudo, representar
um obstáculo à doação entre vivos, se se trata de muçulmanos e nao-mu-
çulmanos, na liquidação de comunhão parcial de fato ou de aqüestos, em
que afloram as diferenças sociojurídicas que caracterizam as famílias
orientais, porém, tais diferenças não se revelam tão intensas, à medida
que encontram formas similares nos institutos do Direito de Família dos
países ocidentais.
A heterogeneidade do fenômeno migratório promove uma crescen-
te internacionalização das relações familiares, com manifestos efeitos
universais. O grau distinto dessa heterogeneidade situa pessoas de dife-
rentes níveis sociais, que dão origem a movimentos internacionais de
povoamento, em contato com sistemas jurídicos estatais formados por
valores e princípios de diversos.
O Brasil, apesar dos emigrantes brasileiros que alteram as estatísticas
censitárias nas últimas décadas, constitui-se num exemplo eloqüente do
que se descreve nesse contexto, obviando-se as crises matrimoniais entre
estrangeiros, cabendo-se indagar como o legislador brasileiro pode optar,
para a regulação desses fatos, num amplo leque de possibilidades e adaptar
nosso ordenamento a esse contexto progressivamente multicultural.
Entre nós, o Prof. Jacob DoIingeø~ trata de temas contemporâneos sobre
as relações de família, examinando a questão do casamento potencialmente
poligâmico, pensão das viúvas de bígamos, casamento homossexual, invo-
cando a ordem pública como elemento contratado e repressivo do reconheci-
mento de situações que conflitam com os valores sociopoliticos dos Estados,
em seu âmbito interno.
Efetivamente, a legislação do DIP encontra-se anacrônica em face
do fenômeno do multiculturalismo e do respeito aos Direitos Humanos,
porquanto a Lei de Introdução em vigor é de 1942; os critérios do domicílio
e nacionalidade permanecem numa perspectiva clássica do conceito de
soberania territorial; a atitude dos tribunais em matéria do DIP revela-se

6 DOLINGER, Jacob. I)irrito civil internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 1997,


p. 55 e 99.

169
CARLOS BOUCAULT

conservadora, em infensa à aplicação do direito estrangeiro, numa ten-


dência de se evadir valores expressos nas convenções internacionais, e,
tampouco, o Projeto de Lei sobre a aplicação das Normas Jurídicas 4.905,
de 1994, procurou inovar nos critérios destinados à ampliação dos ele-
mentos de conexão, abrigando os obstáculos à eficácia do Direito Estran-
geiro no invólucro da ordem pública, do mesmo modo que o texto da
Constituição brasileira em vigor que protege os estrangeiros intervem de
autorização pública e reconhece o exercício dos atos da vida civil, desde
que estejam domiciliados e residindo no Brasil.
Jean-Ives Carliet2 estabelece a distinção conceitual entre puricultura-
lismo e multiculturalismo, consistindo a primeira modalidade no liame
consolidado entre várias culturas antigas e distintas existentes nos países
e, a segunda, em novas culturas oriundas de migrações recentes. Daí o
desafio para as normas de Direito Internacional Privado de buscar solu-
ções para a lei aplicável ao estatuto pessoal, diante do fenômeno da multi-
cultura]idade da família.
Os fluxos migratórios obedecem a causas diferenciadas, razão pela
qual nem sempre os elementos de conexão tradicionais corresponderão à
tutela dos direitos de família no âmbito do DIP, porquanto há migrações
temporárias que se fixam no país receptor. Assim, a aquisição de nacionali-
dade pelo imigrante, quando sua permanência é temporária, por necessida-
de laborativa, não parece corresponder a seus interesses. Veja-se que, a esse
respeito, o Direito brasileiro, após a entrada em vigor da Emenda Constitu-
cional 3/94, passou a admitir a aquisição de nacionalidade derivada, sem
prejuízo da manutenção do status de brasileiro nato aos nacionais que, por
exigência de naturalização em país estrangeiro, para fins de emprego,
venham requerer outra nacionalidade. Constatou-se que o mercado de
trabalho já não poderia absorver mão-de-obra dos brasileiros que, estatisti-
camente, avolumam o número de emígrantes, sem se considerar, ainda, os
que vivem na clandestinidade, no exterior. Nessa hipótese, os critérios da
residência ou domicílio parecem mais adequados à natureza da migração.
As soluções obviadas pelo Direito Internacional Privado podem
decorrer da uniformização do Direito Material, visando à erradicação de

7 CARLIER,Jean-Ives. Estatuto petsonal y sociedad multicultural: ei papel de ia


autonomia de

ia voiuntad. lo: CARAVACA, A. L. C.; IRIARTE, J. L. Angcl (Orgs.). Estatzeto


personal

multiculturalidad de lafamilia. Madrid: Coiex, 2000, p. 27 e 55.

170

MULTICULTURALISMO E DIREITO DE FAMÍLIA NAS NORMAS...

conflitos de Lei ou unificação de tais normas, prática já evidenciada nos


instrumentos internacionais convencionais.
No âmbito do DIP, em face da diversidade normativa para a indica-
ção de Lei aplicável ao estatuto de família, abrangendo casamento e suas
formas de dissolução, regime matrimonial de bens, adoção e situações de
filiação, pátrio-poder, depreende-se a existência de uma especificidade de
Direito Material, consubstanciada, inclusive, na Convenção de Haia e que,
resulta na variação de estatutos pessoais convergentes, por sua vez, com as
mobilidades migratórias. Se é certo que a variabilidade das migrações influi
na lei aplicável ao estatuto pessoal da família estrangeira, impõe-se a
indicação de mecanismos jurídicos destinados à fixação da lei aplicável às
situações jurídicas do DIP.
A doutrina e a prática convencional estabelecem algumas soluções
como: a construção jurisprudencial, em face da diversidade de estatutos,
julgando caso a caso; a especialização das normas de conflito, objetivan-
do uma regulação minuciosa das relações de família, conforme a escala
de Kegel,8 segundo a qual se ampliam os elementos de conexão para
abranger as várias hipóteses fáticas do estatuto pessoal familiar. A pri-
meira solução possibilita uma flexibilidade excessiva, enquanto a segun-
da impede uma adequação do Direito Estrangeiro e do Direito Nacional
a novas realidades da família. Outra hipótese deflui da celebração de
acordos e demais convenções, as quais pela sua natureza e desdobramen-
tos encerram limites de aplicação pelas divergências que suscitam em
face do Direito interno dos Estados, motivando o recurso à lexfori e à
ordem pública, critérios incompatíveis com os ideais de Justiça e de Direito
buscados pelas normas do DIP, enquanto garantia dos direitos do cida-
dão estrangeiro.
Não se trata de abolir a conexão da lexfori nem o princípio da ordem
pública, mas demonstrar a tendência tanto nos textos das Convenções
como nos das decisões jurisprudenciais de se impedir a aplicação de
princípios que favoreçam as peculiaridades do DIP, enquanto índices de
adequação dos elementos de conexão à realidade multicultural.
São várias as questões que merecem uma análise mais rigorosa,
porém a realidade evidente é a de que o mundo divide-se em Estados,
cujos ordenamentos são dotados de concepções jurídicas distintas sobre

8 KEGEL, Artigo 14 da Lei de Lntroduç~o ao Código Civil aiem~o. EGBGB.

171

CARLOS BOUCAULT

os mesmos fatos que refletem as relações de Direito de Família. E o Direito


Internacional Privado depara-se com fronteiras jurídicas e permite a recep-
ção de modelos jurídicos estrangeiros, com o fim de garantir direitos dos
estrangeiros. Assim, os elementos de conexão poderiam permitir uma
flexibilização, simplificando a técnica da opção de direito pelo imigrante,
conforme sua condição e a natureza da migração, adotando-se a solução
da autonomia da vontade limitada a uma opção de direito entre a lei nacional
ou a lei do domicílio, conforme o magistério de Bernard Audit2

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lizaciónjfamilia. Madrid: Colex, 2001, p. 12.

9 Op. cit., p. 133.

172

IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS
NA UNIÃO ESTÁVEL

Euclides Benedito de Oliveira


Advogado de Família e Sucessões. Membro da Diretoria
do IBDFAM em São Paulo. Doutorando em Direito Civil
pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

_________________ Sumário __________________

1. Família com e sem casamento. 2. União estável não é casa- 1k


mento. 3. Pressupostos constitucionais da união estável. 4. Re-
quisitos legais da união estável. 5. Impedimentos matrimo-
mais no Código Civil. 6. Impedimentos matrimoniais em face
da união estável. 7. Impedimentos matrimoniais no projeto
de nova lei da união estável e no novo Código Civil. 8. União
estável não acarreta impedimentos matrimoniais. 9. Con-
clusão. 10. Bibliografia.

1 FAMILIA COM E SEM CASAMENTO

Na formação da família, base da sociedade e merecedora de especial


proteção do Estado, não mais se revelam prioritários os laços formais da
união conjugal. Com ou sem casamento, pode se instituir o ente familiar,
com garantia de incondicional tutela jurídica.
Dispõe nesse sentido a vigente Constituição Federal, artigo 226, com
referências à família oriunda: a) do casamento civil ou religioso com efeitos
civis (mc. 1 e II), b) da união estável de homem e mulher (mc. III), c) da
comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (mc. IV).
Na mesma linha de indistinta proteção aos componentes da entida-
de familiar, a Constituição proclama a igualdade de direitos entre marido

173

EUCLIDES BENEDITO DE OLIVEIRA

e mulher (art. 226, mc. V) e a igualdade de direitos e qualificações dos


filhos, sejam ou não havidos do casamento (art. 227, § 6.0).
Caíram por terra, em boa hora, as antigas discriminações que nosso
vetusto ordenamento civil aplicava às uniões concubinárias e aos filhos
havidos fora do casamento.
Nesse altiplano de inovações jurídicas, põe-se em mesa de discus-
são a figura da união estável como espécie de entidade familiar. Trata-se
de neologismo introduzido pela Constituição para abranger, na verdade,
o mais antigo fenômeno social, que é o da união concubinária sem formali-
dade escrita ou compromisso oficial. Basta a convivência de um homem e
uma mulher com propósito de instituir uma comunhão de vida, sendo
que a existência de prole em comum é sinal indicativo dessa união, embora
não lhe seja essencial.
Resta ver se o ordenamento jurídico, embora não intervindo direta-
mente na formação da união estável, estabelece para seu reconhecimento
os mesmos requisitos prévios que valem para constituição da união
formal pelo casamento.

2 UNIÃO ESTÁVEL NÃO É CASAMENTO

Para logo se estabelece necessária e básica premissa: união estável,


conquanto entidade familiar protegida pelo Estado, não se equipara ao
casamento. Constitui união informal, a prescindir de preparativos carto-
rários ou judiciais. Sua regulamentação jurídica cinge-se aos requisitos
para reconhecimento de sua existência e aos efeitos que advêm desse tipo
de relacionamento humano.
Com efeito, revelam-se patentes as diferenças entre união estável e
casamento, bastando se comparem os seus modos de formação e de
dissolução.
Para a realização do casamento exigem-se: a) os requisitos formais
da habilitação no Cartório de Registro Civil para verificar se não há
impedimentos, b) a solenidade do casamento, com celebração pelo juiz
(ou por ministro religioso), com expressa e pública aceitação dos con-
traentes, c) a comprovação por documento público consistente no regis-
tro do casamento, d) procedimento judicial para dissolução por invalida-
de, separação judicial ou divórcio.

174

IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL

De seu turno, a união estável nasce do simples fato da convivência


entre homem e mulher, com intuito de constituir família. De início, um
simples fato jurídico, que evolui para constituição de ato jurídico em face
dos direitos que brotam dessa relação. Não há formalidade prévia nem
qualquer ato solene que marque o princípio dessa união. Tampouco subsis-
te instrumento probatório, oriundo de ótgão estatal, podendo haver, quan-
do muito e a critério das partes, documento escrito a respeito da comunica-
ção do patrimônio individual subseqüente ao tempo de vida em comum.
E o término, tal como se deu com a formação inicial da união estável,
também se dá por simples acerto ou vontade de cada um dos companhei-
ros, sem ser preciso reclamar providência jurisdicional, muito embora
não se afaste o direito à ação para dirimir eventual conflito. lei
Por isso é que a união estável é por alguns chamada de “família de
fato”, em contraponto ao casamento, que seria, na linguagem antiga, a
única espécie de “família de direito” ou “legítima”. Mas a distinção por
origem do ente familiar já não se admite, ante a ampliação conceptual
advinda com a atual Constituição. A união estável, em paralelo ao casa-
lii
mento, constitui família igualmente legítima. Ou, dispensando adjetivo
qualificador, simplesmente família, porque ao abrigo dos direitos assegura-
dos na mesma Carta e nas leis especiais regentes dessa forma de união.
Proteção jurídica garantida, sim, entidade familiar de igual nature-
za, também, eis aí os paralelos admitidos entre casamento e união estável.
Mas tanto se distanciam, como figuras jurídicas inconfundíveis, que já na
previsão constitucional repousam, o casamento e a união estável, em
incisos próprios, numerados de 1 a III no citado artigo 226 da Carta de 88.
E mais, ao reconhecer a entidade familiar formada pela união estável,
resguardando-lhe proteção jurídica, o mesmo preceito constitucional
adianta-se a dizer que a lei venha facilitar a sua conversão em casamento.
Com isso deixa claro que, embora entidade familiar, a união estável difere
do casamento, tanto que poderá vir a converter-se nele.
Sabido que existem duas formas distintas de entidade familiar, uma
originária do casamento e outra da união estável, e aceito que esta pode
converter-se naquela, vem a intrigante e tormentosa questão, ora trazida
à baila, da eventual subsistência, para os dois institutos, dos mesmos
requisitos de constituição válida, aí presentes, portanto, os impedimen-
tos matrimoniais de que trata a legislação civil no capítulo do casamento.

175

EUCLIDES BENEDITO DE OLIVEIRA

3 PRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS
DA UNIÃO ESTÁVEL

De retorno ao texto constitucional (art. 226, mc. III), nota-se que a


conceituação de união estável está assim delimitada para que seja reco-
nhecida como entidade familiar: a) união, isto é, vida em comum entre
homem e mulher, b) estabilidade, a significar união duradoura, com certa
permanência no tempo, c) interesse das partes em constituir família.
O requisito inicial diz com a qualificação das partes — homem e
mulher, de logo afastando a caracterização de união estável entre parcei-
ros do mesmo sexo. Uniões desta espécie, chamadas de parceria homos-
sexual ou união homoafetiva, colocam-se à parte da conceituação cons-
titucional de união estável, muito embora se lhes reconheçam determina-
dos efeitos no plano material, especialmente na divisão do patrimônio
havido por esforço comum e na esfera dos benefícios previdenciários.t
A estabilidade da união decorre de seu próprio nomenjuris. Diz com
certa duração temporal, que a princípio se fixou em cinco anos (Lei
8.971/94), mas hoje se admite indeterminada, ficando ao critério do juiz
sua apreciação em cada caso, atendidos os critérios da Lei 9.278/96.
Outro elemento caracterizador da união estável relaciona-se a
aspecto subjetivo, consistente na intenção de formar uma família, com
estabelecimento de uma comunhão de vida como se as partes fossem

1 Registre-se, não obstante a falta de previsão eonstitucional, a


existência do Projeto de Lei 1.551,
de 1995, autoria da deputada Marta Suplicy, disciplinando a união de pessoas do
mesmo sexo,
mediante contrato, seu registro no Cartório de Registro Civil, benefícios
previdenciários e
direito à sucessão entre os contratantes.

O assunto promete evoluir no sentido de maior proteção aos


relacionamentos homoafetivos
pelo Direito brasileiro, visando a seu enquadramento no conceito de entidade
familiar. Nessa
linha se posiciona a Desembatgadora Maria Berenice Dias, fundada em precedentes
jurisprudenciais, especialmente de juizes e tribunais gaúchos, questionando a
disposição
limitativa do artigo 226, § 3., da Constituição Federal, no ponto em que exige
presença de
homem e mulher para caracterizar união estável. A autora justifica: “com a
efetiva semelhança
entre relacionamentos heterossexuais e homossexuais, a aplicação a estes, por
analogia, das
normas de união estável e do casamento.” Para tanto, invoca princípios
constitucionais de
respeito à dignidade humana, de igualdade e de expressa proibição da
discriminação por
motivo de sexo, a demonstrar que “não existe qualquer óbice na Constituição ao
ingresso de
tais vínculos na esfera jurídica” (União homossexual, O preconceito & a justiça.
Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000, abertura e conclusões, p. 145).

176

IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL

casadas. Decorre da própria colocação da união estável como espécie de


entidade familiar, de sorte a excluir de sua incidência outros tipos de
união com propósitos diversos.
Ainda por leitura do preceito constitucional, tem-se que a lei haverá
de facilitar a conversão da união estável em casamento. Não se trata, aí, de
preceito cogente ou integrador da própria definição da união estável, no
sentido de que somente existiria como tal se apta à conversão em casamen-
to, Fosse assim e teríamos, como natural conseqüência, que a união estável
restaria desfigurada na hipótese de haver impedimentos matrimoniais. E
não se compreenderia, porque seria flagrantemente inconstitucional, o
dispositivo da Lei 8.971/94 que admite união estável de pessoas separadas
judicialmente, as quais se acham impedidas para novo casamento enquan-
‘II
to não extinto o anterior, por invalidade, por divórcio ou morte (art. 183,
VI, do CC).
Mas assim não é. Na verdade, cuida-se de mera possibilidade, a con-
versão da união estável em casamento, por opção das partes, quando 4~I
interessadas em sacramentar sua união com o aparato das núpcias pelo 1k
~I.
modelo oficial. Então, e se não houver impedimentos, será facilitado o ii
casamento por conversão da união estável preexistente. Direito subjetivo
dos conviventes, portanto, o dar esse passo a mais, optando por se casarem
II
desde que não estejam impedidos. Sem significar que o impedimento
para conversão signifique a desfiguração da união estável mantida em
seus regulares contornos jurídicos.
A certas pessoas que vivem em união estável pode não interessar
essa migração para o casamento. Mesmo sem impedimentos matrimo-
niais, ou porque ainda mantêm o vínculo conjugal, apesar de separadas
judicialmente, essas pessoas sentem-se mais livres com o aparente des-
compromisso da união estável. Por esse rumo de pensamento, há tam-
bém os que se descasam, divorciam-se, mas voltam à convivência, os
mesmos parceiros, passando a constituir, então, família agora sob o pálio
de uma união estável. Com isso fica ressaltado que subsiste, intocada e
intangível, a figura jurídica de união estável, quando preferida pelos
companheiros que não se interessam por casamento ou quando não seja
possível sua conversão em casamento por existência de determinados
impedimentos matrimoniais, ou quando desistam do casamento e optam
por manter uma convivência informal.

177
~1
EUCLIDES BENEDITO DE OLIVEIRA

O que se está afirmando, com esta exposição à luz da norma


constitucional, é que, apriori, não se aplicam à união estável, necessária e
genericamente, todos os impedimentos previstos em lei para o casamen-
to. Tais impedimentos haverão de ser considerados somente para fins de
habilitação da conversão da união estável em casamento, se e quando
requerida pelas partes.
Mas não se exaure, pelo só estudo do texto da Constituição, a difícil
questão que se coloca dos impedimentos matrimoniais frente à união
estável. Há que examinar, de modo mais circunstanciado, quanto dispõe a
legislação especial aplicável à matéria e, bem assim, os requisitos informa-
dores do ato jurídico pela ótica do ordenamento civil codificado.
O tema suscita sérias controvérsias, em face da imprecisão do
texto legal e porque a muitos parece que a proteção jurídica a todas as
espécies de entidade familiar estaria condicionada ao requisito uno da
inexistência de impedimentos, seja para o matrimônio, seja para a união
estável, enquanto a outros se afiguram distintas essas situações de união
familiar, com a necessidade de tratamentos diferenciados no plano dos
2
requisitos para sua formaçao.
Podem ser alinhadas, dentro dessa diversidade de pensamentos na
solução do problema, três posições doutrinárias entre si divergentes: a)
radical conservadora — a união estável exige ausência de impedimentos
matrimoniais para que se constitua, mesmo porque, não fosse assim, não
poderia converter-se em casamento, b) radical liberal — a união estável
forma-se independente de impedimentos matrimoniais, pois constitui
família de fato a ser protegida em qualquer situação, mesmo nos casos de
união adulterina ou incestuosa, e c) conciliadora ou mista — a uniao
estável sofre os impedimentos matrimoniais absolutos, salvo nos casos
de separação judicial ou de separação de fato das partes.

2 Em aprofundada análise do tema, Gailherme Galmon Nogsíeira da Gama


assinala que alguns
questionamentos se impõem: a) o art.226, § 30, da Constituição Federal somente
permite
“união estável” entre pessoas solteiras, divorciadas e/ou viúvas?; b) diante da
regra constitu-
cional, é possível que um ou ambos os companheiros sofram algum impedimento
matrimonial
previsto no art. 183, do Código Civil, e mesmo assim a união mantida pode ser
considerada
familiar, na modalidade de companheirismo?; c) a situação das pessoas casadas e
separadas de
fato de seus cônjuges, vindo a se unir informalmente com outras, poderá
constituir unsao
estável”?; d) haverá alguma outra hipótese não juridicamente definida como
impedimento
matrimonial a ensejar a impossibilidade de constituição do companheirismo? (O
companhei-
nsmo: uma espécie de família. 2. cd. São Paulo: RT, 2001, p. 180).

178

IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL

Predominante se mostra a corrente intermediária, tanto em doutrina


quanto na jurisprudência, fazendo a necessária distinção entre casamento e
união estável, para que a esta se apliquem unicamente os impedimentos
matrimoniais absolutos, decorrentes de parentesco (incesto) ou de anterior
casamento (bigamia), com as exceções decorrentes de separação de fato ou
judicial de um ou de ambos os conviventes.

4 REQUISITOS LEGAIS DA UNIÃO ESTÁVEL

Na esteira da previsão constitucional da união estável como enti-


dade familiar, foram editadas duas leis especiais para sua regulamenta-
ção: a Lei 8.971, de 30 de dezembro de 1994, e a Lei 9.278, de 13 de maio
de 1996, com parcial revogação da primeira.3
Conquanto chamada de “estatuto da união estável”, a Lei 9.278/96,
assim como a anterior, não abarca todos os efeitos jurídicos que lhe são
decorrentes. São assegurados, em leis esparsas, diversos outros direitos a
1k
companheiros. Assim é que as leis previdenciárias e fiscais asseguram ao
companheiro situação de dependente; a lei de locação (8.245/91, arts. 11 e 12)
11
permite sub-rogação do contrato para os dependentes do locatário, aí
também posicionando o companheiro; a lei registrária (6.015/73, art. 57, § 2.0)
concede à mulher direito de acréscimo ao seu nome do patronímico do
companheiro; a lei do bem de família (8.009/90) estende proteção ao
imóvel que sirva de residência à entidade familiar, aí compreendida a união
estável; e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90, art. 42,
~ 2i~) permite adoção por “concubinos”, desde que comprovada a estabili-
dade da união.
Na legislação extravagante, porém, não se encontram referências
aos requisitos legais para formação da união estável. A aplicação de seus
preceitos ficam, portanto, na dependência da definição constante das leis
específicas, como sejam as citadas Leis 8.971/94 e 9.278/96.

3 Como a Lei 8.971/94 não sofreu revogação expressa, entende-se que continua em
vigor
naquilo cm que não foi contrariada pela Lei 9.278/96. Enquadra-se nessa situação
o art. 2.
daquela Lei, que dispõe sobre direitos sucessórios do companheiro, pois, nesse
aspecto, a nova
Lei apenas acrescentou o direito de habitação. Já o conceito de união estável
sofreu substancial
mudança. Os requisitos pessoais e temporais (cinco anos) previstos na lei de
1994 não mais
subsistem na lei de 1996, dada a nova conceituação daquela espécie de entidade
familiar.

179

EUCLIDES BENEDITO DE OLIVEIRA

A Lei 8.971/94, no art. 1.0, ao contemplar o direito a alimentos na


união estável, exige união comprovada de homem e mulher solteiros,
separados judicialmente, divorciados ou viúvos, por mais de cinco anos
(salvo havendo prole).
Os requisitos expressos nessa lei dizem respeito a dois aspectos:
qualificação pessoal dos companheiros e fator temporal, suavizado, este,
no caso de existir prole.
A referência ao estado civil das partes para que se caracterize união
estável leva em conta a ausência de impedimento matrimonial decorrente
do casamento (art. 183, mc. VI, do CC), exceto para os separados judicial-
mente. Subsiste clara vedação à união adulterina, mesmo que houvesse
separação de fato da pessoa casada.
Mas a Lei 8.971/94 não refere outros impedimentos matrimoniais,
deixando em aberto a questão de serem ou não aplicáveis à união estável.
Nada se aclarou a esse respeito na Lei 9.278/96, que deu nova
conceituação à entidade familiar formada pela união estável, deixando de
mencionar requisitos de natureza pessoal, tempo mínimo de convivência
e a circunstância de existir prole dessa união. Conforme está em seu art. 1.0,
considera-se entidade familiar “a convivência duradoura, pública e conti-
nua, de um homem e de uma mulher, estabelecida com objetivo de constitui-
ção de família”.
A nova definição legal, portanto, delimita a existência de união
estável aos requisitos de: a) convivência duradoura, sem prazo fixo, deven-
do aferir-se a permanência no tempo de acordo com as peculiaridades de
cada caso, b) heterossexualidade, no referir a convivência entre um homem
e uma mulher, c) publicidade, a significar reconhecimento familiar e
social da união more uxorio, d) continuidade, isto é, vida em comum sem
interrupções, e) intenção de constituir família, elemento de ordem subje-
tiva que afasta outros tipos de união sem interesse na efetiva comunhão
de vida entre o homem e a mulher.
Em adendo a essa tipificação da figura da união estável, a Lei 9.278/96,
em seu art. 2.~, enumera os direitos e deveres recíprocos dos convlventes:
a) respeito e consideração, significando fidelidade e lealdade, b)
assistên-
cia mútua, do que decorre a obrigação alimentar entre conviventes, c)
guarda, sustento e educação dos filhos, como consectário do pátrio-poder.
Nenhuma referência é feita à ausência de impedimentos matrimoniais
como requisito para reconhecimento da união estável. A única inferência que
se poderia extrair a esse respeito decorre da necessidade de habilitação legal

180
IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL

das partes para fins de conversão da união estável em casamento, de que


trata o artigo 8.~’ da Lei 9.278/96. Então, e para esse fim, haveriam de estar
desimpedidas matrimonialmente as partes casadoiras.

5 IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NO CÓDIGO CIVIL

Consideram-se impedimentos matrimoniais certas condições pes-


soais ou circunstâncias objetivas que vedam a realização do casamento.
São verificadas mediante o processo prévio de habilitação (art. 180 do
Código Civil).
Não se confundem os impedimentos pessoais para o ato de casar
com a incapacidade para a prática de atos jurídicos. A pessoa pode ser
plenamente capaz, como no caso dos maiores de 21 anos, e estar impedida
de contrair casamento, como se dá, por exemplo, nas uniões entre parentes
próximos, em vista de seu caráter incestuoso.
Embora certas hipóteses de impedimentos resultem da própria 4
1k
incapacidade, a conceituação da natureza jurídica dos impedimentos está
mais relacionada à falta de legitimação para o ato jurídico do casamento.
A matéria é cuidada no artigo 183 do Código Civil brasileiro.
Nu
Estende-se em dezesseis incisos, que a doutrina divide em três categorias
1W
por seus diversos efeitos na hipótese de violação dos impedimentos.
A primeira categoria abrange oito espécies de impedimentos absolu-
tos, porque de maior relevância em razão de seu interesse público. Sua
inobservância acarreta a nulidade do casamento. Estão aí previstas, nos
incisos 1 a VIII do artigo 183 do Código Civil, as situações de parentes na
linha reta, parentes colaterais irmãos e de terceiro grau (ressalvada, para
estes, autorização judicial), afins em linha reta, adotado com parentes do
adotante, pessoas casadas, o cônjuge adultero com o seu co-réu por tal
condenado e o cônjuge sobrevivente com o condenado como deinqúente
de homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.
Na segunda categoria de impedimentos, acham-se os incisos IX a
XII do citado artigo, relatando situações menos graves, atinentes à
incapacidade parcial das pessoas por vícios de consentimento, falta de
autorização dos responsáveis legais e menoridade dos contraentes (fixada
a idade núbil em 16 anos para a mulher e em 18 anos para o homem). A
violação a esses impedimentos, considerados relativos porque restritos
ao interesse privado das partes, acarreta mera anulabilidade do casamen-
181

EUCLIDES BENEDITO DE OLIVEIRA

to, desde que requerida pelos interessados em prazos decadenciais variá-


veis, com o máximo de seis meses.
Por ultimo, o artigo 183 do Código Civil refere certas circunstâncias
que são meramente proibitórias ou impedientes, mas não invalidam o
casamento celebrado com sua inobservância. São os incisos XIII a XVI
daquele dispositivo, abrangendo os casos de viúvo ou viúva enquanto
não fizerem inventário dos bens do extinto casal, a viúva ou mulher com
casamento anulado nos dez meses subseqüentes à extinção do seu casa-
mento, o tutor ou o curador e seus parentes com a pessoa tutelada ou
curatelada, e o juiz ou o escrivão e seus parentes com órf~o ou viúva do
lugar (salvo autorização superior). Os casamentos celebrados com esses
impedimentos não são afetados na sua essência, mas sofrem certas
penalidades civis, como a obrigatória submissão ao regime da separação
de bens.
O novo Código Civil brasileiro altera substancialmente o catálogo
distintivo dos impedimentos matrimoniais, passando a considerar como
tais apenas os impedimentos absolutos previstos no artigo 183 do Código
vigente, incisos 1 a VI e VIII. Não mais considera impedimento a hipótese
prevista no inciso VII desse artigo, que se refere ao casamento do cônjuge
adúltero com o seu co-réu por tal condenado.
As demais situações passam a ter diverso tratamento no novo
Código. Assim, os casos hoje considerados impedimentos relativos são
tratados à parte, como causas de anulação do casamento. E os demais
impedimentos, de caráter meramente proibitório, passam a ser chamados
de causas suspensivas do casamento, com possibilidade de sua dispensa
por decisão judicial.

6 IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS EM FACE


DA UNIÃO ESTÁVEL

Conforme já analisado nos tópicos anteriores, não há explícita


previsão constitucional ou legal para que se apliquem à união estável os
mesmos impedimentos que servem ao casamento.
A ausência de impedimentos somente se torna requisito essencial
na conversão da união estável em casamento, ou seja, para a facultativa
mudança da situação jurídica das partes com relação ao seu modelo de

182

IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL

convivência. Não se pode, por raciocínio extensivo, pretender que, sendo


vedada essa conversão pela existência de impedimentos, não haveria
união estável. Basta considerar a situação dos separados judicialmente
que, não obstante impedidos de contrair casamento, estão aptos a manter
união estável, por expressa permissão da Lei 8.971/94.
Cumpre observar, no entanto, que os requisitos pessoais constan-
tes da Lei 8.971/94, ao indicarem que os companheiros sejam homem e
mulher solteiros, separados judicialmente, divorciados ou viúvos, impedem
o reconhecimento de união estável de pessoas casadas e ainda não sepa-
radas judicialmente, mesmo que separadas de fato.
Está aí, portanto, um impedimento matrimonial aplicável à união
estável, símile ao disposto no artigo 183, inciso VI, do Código Civil, com
a exceção posta para a pessoa separada judicialmente.
Na Lei 9.278/96, porém, não se repete essa disposição relativa à
qualificação pessoal dos companheiros. Sua conceituação de entidade
familiar apenas refere a união duradoura entre “um homem e uma mu
4
lher”, com os requisitos de que seja pública, contínua e com intuito de
formar uma família. ~Ig
A falta de menção à pessoa separada judicialmente não significa,
11
Eiq
sob pena de se admitir retrocesso legislativo, que referido estado civil
constitua impedimento para uma união estável. A realidade social é bem
outra. Bem se conhece a numerosa situação de pessoas que se separam,
ou são antigas desquitadas, e não se preocupam em obter o divórcio, mesmo
porque não pretendem um novo casamento. Sentem-se livres para uma
outra união que, estabilizando-se no tempo e confortada pelo reconheci-
mento público, constitui induvidosa entidade familiar digna de proteção
jurídica aos seus componentes.
O que se há de extrair dessa nova disposição legal, portanto, é que
efetivamente não subsiste, para configuração da união estável, o impedi-
mento relativo à participação de pessoa casada, quando separada judi-
cialmente, ou, também, quando separada de fato do seu cônjuge.
Justifica-se a extensão da união estável para o separado de fato.
Esta situação de ruptura da vida conjugal, prolongada por mais de um
ano, constitui motivo para separação judicial sem causa, e, se durar mais de
dois anos, fundamento para o divórcio (arts. 5•~), ~ 1.0 e 40, da Lei 6.515/77).
Pela mesma razão, visto que dissolúvel a sociedade conjugal nessas
situações, parece claro que já não se pode falar em impedimento ao sepa-
183

EUCLIDES BENEDITO DE OLIVEIRA

rado de fato para se direcionar à constituição de família sob a forma de


união estável.
A comentada omissão da Lei 9.278/96 aos requisitos de ordem
pessoal, afastando-se do modelo adotado na Lei 8.971/96, no entanto,
trouxe dúvida hermenêutica que levou certos intérpretes a considerar
tivesse havido um endurecimento do legislador, afastando a configuração
de união estável em qualquer hipótese de impedimento matrimonial,
mesmo na hipótese de separação judicial de um ou de ambos os convi-
ventes. Mas certamente esse não foi o intuito da modificação legislativa.
Ao contrário, desde que a nova lei afasta a exigência da qualificação
pessoal dos conviventes, deixa aberta a possibilidade de configuração da
união estável para outras situações em que já não subsista efetivo casa-
mento, ou seja, não só na ocorrência de separação judicial como também
no caso de separação de fato da pessoa que passa a manter união com
outrem.
O que não se admite, contudo, em vista dos contornos exigidos na
lei para configuração de uma união estável, é a ligação adulterina de
pessoa casada, simultaneamente ao casamento, sem estar separada de
fato do seu cônjuge. Tem primazia, em tal situação, a família constituída
pelo casamento. A outra união seria de caráter concubinário, à margem
da proteção legal mais ampla que se concede à união estável. A verdade é
que, afora hipóteses excepcionais, em tais casos geralmente a vivência
extramatrimonial é mantida com reservas, sob certo sigilo ou clandestini-
dade. Falta-lhe, pois, o indispensável reconhecimento social, até mesmo
pelas discriminações que cercam esse tipo de amasiamento.
O mesmo se diga das uniões desleais, isto é, de pessoa que viva em
união estável e mantenha uma outra ligação ou, quem sabe, até múltiplas
relações de cunho afetivo. Admitir caráter familiar a todas essas uniões
seria consagrar uma verdadeira poligamia. Tanto que preservada a pri-
meira união, as demais não podem subsistir, porque desleais. Ou, confor-
me o caso, poderá ocorrer que a segunda união derrube a primeira, por
quebra ao dever de “respeito e consideração mútuos” (art. 2.0, mc. i, da
Lei 9.278/96). Extinta que seja a união estável por esse motivo, poderá
ser a subseqüente reconhecida, desde que venha a se manter com os
requisitos legais da duração, publicidade e continuidade.
Do que ficou exposto, conclui-se que não é possível a simultanei-
dade de casamento e união estável ou de mais de uma união estável.
Uniões múltiplas podem ocorrer sucessivamente, mas não a um só tem-

184
IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL

po. O texto legal expressamente restringe o reconhecimento da entidade


familiar à união de “um homem e uma mulher”, com emprego de artigo
definido singular que gramaticalmente veda a acumulação simultânea de
uniões familiares. Poderá não ter sido proposital essa especificação do
artigo, e até seria dispensável, mas, sem dúvida, reforça a interpretação
de que a lei somente protege as uniões sinceras e leais, próprias do sistema
monogâmico. E assim há de ser, com efeito, ante a ilicitude da bigamia,
para a hipótese dos casados.
Ressalva-se, contudo, a possibilidade de uma segunda união de
natureza putativa, como se dá no casamento, mesmo em casos de nulidade
ou de anulação, quando haja boa-fé por parte de um ou de ambos os
cônjuges, com reconhecimento de direitos, nos termos do artigo 221 do
Código Civil. Da mesma forma, e por igual razão, pode haver união estável
putativa, quando o partícipe de segunda união não saiba da existência de
impedimento decorrente da anterior e simultânea união do seu companhei-
ro; para o companheiro de boa-fé subsistirão os direitos da união que lhe
parecia estável, desde que duradoura, contínua, pública e com propósito de
constituição de família, enquanto não reconhecida ou declarada a sua
11
invalidade em face de uma união mais antiga e que ainda permaneça.
Em suma, não se admite, à luz das normas contidas na Lei 9.278/96, a
chamada união adulterina, característica do concubinato de pessoa casa-
da. Nem união desleal, que se some a outra união de fato. Importa
lembrar, neste passo, que o projeto original da lei previa, como requisitos
da convivência, que não fosse adulterina nem incestuosa. Essas expres-
sões foram afastadas do texto aprovado, o que não implica aceitação de
uniões daquela espécie, desde que se atente para os deveres dos compa-
nheiros, com destaque para o “respeito e consideração” mútuos, ou seja,
lealdade e fidelidade entre os parceiros.
Tampouco se admite, nessa mesma linha conceitual, a união de
caráter incestuoso, que seja mantida entre parentes próximos. Basta frisar
que, além da proibição legal do casamento de tais pessoas, o relaciona-
mento dessa espécie atenta contra o próprio Direito Natural, princípios
de moral pública e também interesses de ordem sanitária, que afetam os
descendentes e, por via reflexa, os interesses sanitários de toda a comunidade.
Em colação, o abalizado parecer de Guilherme Calmon Nogueira da
Gama, no sentido de que “as uniões adulterinas ou incestuosas, não apenas
sob o ponto de vista matrimonial, mas agora também sob a ótica da pre-
sença do companheirismo no Direito de Família, não merecem ser tratadas

185

EUCLIDES BENEDITO DE OLIVEIRA

como espécies de família, justamente por contrariarem valores morais,


adotados pela sociedade, reconhecidos juridicamente, neste caso específi-
co sob a forma de impedimentos matrimoniais que também merecem
pronta aplicação ao companheirismo. Assim, as hipóteses de “concubinato
adulterino”, e “concubinato desleal”, nas expressões da Àlvaro Villaça
A~evedo, justamente por carecerem da característica de unicidade de víncu-
lo, não estão abrangidas pelo companheirismo, podendo eventualmente se
caracterizarem como sociedades de fato para efeito de partilhamento de
bens, desde que atendidos os requisitos necessários.”
O eminente autor vai além, estendendo à união estável os demais
impedimentos previstos em lei para o casamento, com a observação de
que os de natureza relativa ensejam anulação da união estável e os mera-
mente proibitórios lhe acarretam sanções patrimoniais para que se mante-
nha a separação dos bens dos companheiros. Ainda acrescenta Nogueira
da Gama um impedimento adicional a que denomina de “companheiril”,
relativo à deslealdade que obsta ao reconhecimento de uma segunda
união da mesma espécie.4
De Francisco José Cahali, a opinião parelha com relação ao que
entende ser tranqüila doutrina e jurisprudência “no sentido de negar a
proteção e efeitos enquanto entidade familiar às relações adulterinas e
incestuosas (consideradas para alguns como concubinato impuro), pres-
tigiando os aspectos morais solidificados na sociedade”. Quanto às rela-
ções incestuosas, o autor lembra que “também, se não principalmente, a
família, enquanto alicerce de uma civilização evoluída, repousa seus
princípios em valores morais, indicados pela sociedade, que desde antes
(na prevalência do Direito canônico), como ainda hoje, repudiam as rela-
ções de degradação, decorrente de uma nefasta promiscuidade no seio
familiar. Tendo como modelo o casamento, evoluindo à qualidade de
entidade familiar, é natural a preservação também para o instituto da
união estável, dos valores morais que informam a família decorrente do
matrimonio civil’ ‘ã

4 NOGUEIRA DA GAMA, Guilherme Calmon. Op. cit, p. 163, 180, 188 et seq.
5 CAHALI, Francisco José. União estável e alimentos entre companheiros.
São Paulo: Saraiva, 1996,
p. 60. Observa Caha/i, porém, que o impedimento da adulterinidade cede passo no
caso de
união estável de pessoas casadas mas separadas de Jato: “Efetivamente, a
separação de fato põe
termo ao regime de bens e aos deveres do casamento, dentre eles coabitaçáo e
fidelidade. Em

186

IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL

Bem é de ver que o Direito não protege o concubinato adulterino.


Assim diz Rodrt.~go da Cunha Pereira: “A amante, amásia ou qualquer
nomeação que se dê à pessoa que, paralelamente ao vínculo do casamen-
to, mantém uma relação, uma segunda ou terceira ..., ela será sempre a
outra, ou o outro, que não tem lugar em uma sociedade monogâmica”.
Ressalva a situação em que “uma das partes concubinárias mantém o
casamento, mas apenas em sua formalidade, ou seja, quando há uma
separação de fato, há muito tempo. Embora exista uma certa polêmica
entre autores, a situação é bem diferente da anterior. Aqui, na realidade,
não existe mais o casamento, apenas uma aparência e um vínculo formal
,, 6

que não se sustenta em sua essência


~II
7 IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NO PROJETO
DE NOVA LEI DA UNIÃO ESTÁVEL E NO NOVO
CÓDIGO CIVIL7
4
A inexistência de impedimentos matrimoniais para reconhecimento da
Iqq
~I.
união estável consta de textos projetados para sua nova regulamentação.
São ressalvadas, no entanto, as situações de separação judicial das partes e
4Ii~
de separação de fato dos companheiros, cuja união estável se configura
mesmo que subsistentes aqueles impedimentos tipicos do casamento.
Nesse sentido dispõe o projeto de Lei 2.686, de 1996, ao exigir
como requisito para configuração da união estável que o homem e a
mulher não estejam impedidos de realizar matrimônio, salvo se separados
de direito ou de fato dos respectivos cônjuges.

assim sendo, tornam-se os cônjuges separados de fato desimpedidos para


constituírem nova
família da união estável” (.p. 80).
Essa interpretação constitui uma exceção ao sistema jurídico, pois, acrescenta
Gahali, “tecni-
camente, de um lado, a lei só contempla o encerramento dos deveres conjugais com
a
dissolução da sociedade conjugal, embora antecipe este efeito à separação de
corpos judicial-
mente autorizada ou determinada, e, de outro, a união estável, nestas condições,
embora
caracterizada, não poderá ser convertida em casamento, não obstante tenha a
Constituição
recomendado à lei a facilitação da conversão” (ji. 81).
6 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e anião estável 4. cd. Belo Horizonte:
Dcl Rey, 1997,
p. 74-75.

7 Quando da exposição deste trabalho ainda se achava em fase de votação o


projeto de lei que

veio a converter-se no novo Código Civil brasileiro, Lei 10.406, de 10 de


janeiro de 2002, com

vigência marcada para um ano depois de sua publicação.

187

EtJCLIDES BENEDITO DE OLIVEIRA

Da mesma forma constou no texto incluído no projeto que veio a


converter-se no novo Código Civil, onde a matéria veio a receber solução
disciplinadora, deixando ultrapassado o referido projeto 2.686.
O artigo 1.723, § 1.o,do novo Código diz que a união estável não se
constituirá se ocorrerem os impedimentos previstos no artigo 1.521, que
correspondem aos impedimentos absolutos do artigo 183 do Código Civil
de 1916, incisos 1 a VI e VIII, abrangendo os casos de parentesco na linha
reta, parentesco na linha colateral até o terceiro grau, afinidade na linha
reta,
parentesco por adoção, casamento anterior e prática de homicídio ou tenta-
tiva de homicídio contra um dos cônjuges.
Não se aplicam à união estável, como dispõe o § 2.’~ do artigo 1.723
do novo Código, as causas suspensivas do artigo 1.523, que são seme-
lhantes aos impedimentos meramente proibitórios cuidados no artigo 183,
incisos XIII a XVI (situação de viuvez, enquanto não realizado o inventá-
rio, ou antes dos 10 meses, etc.) do atual ordenamento civil. Quanto aos
impedimentos relativos, de que trata o artigo 183, incisos IX a XII (incapa-
cidade nupcial, falta ou vícios de consentimento, etc.), deixam de ser
considerados impedimentos matrimoniais no novo Código, mas constituem
causas de anulação do casamento, nos termos do seu artigo 1.550, de
sorte que também poderão ser invocados como possíveis causas de anula-
ção da união estável.
As disposições do novo ordenamento civil fazem eco, portanto, ao
dominante entendimento exegético das leis vigentes, na doutrina pátria e
bem assim na jurisprudência de nossos tribunais, dando maior abertura
ao reconhecimento da união estável para abranger as situações de pessoas
casadas e ainda não divorciadas porém com a sociedade conjugal desfeita
por separação judicial ou de fato.

8 UNIÃO ESTÁVEL NÃO ACARRETA IMPEDIMENTOS


MATRIMONIAIS

Sob ângulo inverso no exame de impedimentos matrimoniais, cabe


afirmar que o casamento não está adstrito a impedimentos decorrentes de
união estável. Não haverá adultério (art. 240 do Código Penal), nessa
situação de pessoa que, em união estável, venha a contrair casamento com

188

IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL

outrem. Muito menos se configura crime de bigamia, que se restringe ao


casamento de pessoas casadas (art. 235 do Código Penal).
O casamento celebrado em tais circunstâncias sobrepõe-se à união
informal preestabelecida, causando natural prejuízo à subsistência dessa
união pela quebra ao dever de lealdade entre os companheiros. Mas se o
casamento for mantido em sigilo, subsistindo convivência com o compa-
nheiro de boa-fé, para este poderão ser ainda aplicados os efeitos da união
estável considerada putativa, à semelhança do que se dá no casamento
por força do que dispõe o artigo 221 do Código Civil.
Ainda nessa situação de companheiro que mantenha união estável
e venha a se casar com terceiro, pode imaginar-se que este, desconhecendo
a situação ao casar-se, possa pedir anulação do ato invocando erro essen-
cial sobre a pessoa do outro cônjuge, presentes os requisitos do artigo 219
do Código Civil. Ifi~j
Questão a ser ressaltada, quanto aos efeitos da união estável, diz
com a afinidade que poderia ser invocada entre um dos companheiros e 1k
parentes em linha reta do Outro, como se fossem genro (ou nora) e sogra lo
(ou sogro), gerando o impedimento matrimonial dessas pessoas, nos ter- III
mos do artigo 183, inciso II, do Código Civil.
II
A afinidade na linha reta consiste no vínculo que une um cônjuge e

os parentes do outro, conforme dispõe o vigente Código Civil, no artigo


334. Seu pressuposto, portanto, é o casamento, de modo que não haveria
afinidade entre os parentes de um companheiro e o outro, na relação de
união estável. A esse propósito, quando o artigo 183, inciso II, do mesmo
Código, menciona o impedimento por afinidade decorrente de vínculo
“legítimo ou ilegítimo”, está se referindo à origem do parentesco gerador
da afinidade de um dos cônjuges, isto é, se ele é filho de pais casados ou
de pais não casados, fato esse que não altera o reconhecimento daquele
vínculo. Nada tem a ver, esse dispositivo, com a afinidade entre parentes
de pessoas unidas em concubinato ou em união estável.
O novo Código Civil, porém, amplia o conceito de afinidade para
reconhecer que o mesmo se estabelece entre cada cônjuge ou companhei-
ro e os parentes do Outro (art. 1.595). E como, na linha reta, a afinidade
não se extingue com a dissolução do casamento ou da união estável (~ 2.0
do mesmo artigo), conclusivo que subsiste esse impedimento também
para a constituição desta espécie de entidade familiar.

189

EUCLIDES BENEDITO DE OLIVEIRA

9 CONCLUSÃO

Salvo disposição de legeferenda (como previsto na nova codificação


civil), não existe no atual ordenamento jurídico comando expresso para
aplicar os impedimentos matrimoniais à união estável, salvo para o fim
de sua conversão em casamento.
Não obstante, aplicam-se à união estável os impedimentos consi-
derados absolutos, que nulificam o casamento e, bem por isso, impedem
igualmente a formação de entidade familiar nos moldes de união estável,
por aspectos concernentes à própria capacidade das pessoas e a funda-
mentos de ordem social e moral.
As regras gerais da incapacidade para a prática de atos jurídicos
têm lugar na formação da união estável que, de inicial fato jurídico, evolui
para ato jurídico em vista dos seus especiais efeitos no plano dos direitos
assegurados às partes envolvidas. Assim, para que haja união estável é
preciso que as partes sejam capazes e que seja licito o objeto da família
assim constituída, afastando-se, pois, as uniões de pessoas sem condição
para assumir encargos de cunho familiar e que não se apresentem com
foros de legitimidade moral para o consórcio afetivo, como tais se incluin-
do as uniões adulterinas e as incestuosas.
Outras categorias de impedimentos matrimoniais, como os relati-
vamente incapacitantes, embora sem aplicação direta à união estável,
podem servir como fundamento para pedido de anulação e assim cercear
os efeitos decorrentes desse ato, se comprovada a sua realização com
vício de vontade por erro, incapacidade mental, insuficiência de idade ou
outro fator invalidante, como se admite para decretação de anulação dos
atos jurídicos em geral.
Não cabem como óbices à união estável os impedimentos matri-
moniais meramente proibitórios, previstos no atual ordenamento, a que o
novo Código Civil chama de causas suspensivas, eis que meramente
penalizadoras na esfera patrimonial dos contraentes, sem invalidar o ato
matrimonial.
Em suma, desfigura-se a união estável em casos de ilicitude do
objeto na ampla acepção, abrangendo: a) uniões adulterinas à margem do
casamento, quando não haja separação judicial ou de fato, salvo hipótese
de boa-fé, b) uniões estáveis simultâneas, salvo hipótese de boa-fé, c)
uniões incestuosas de parentes, afins na linha reta e colaterais até terceiro

190

IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL


grau (salvo, para terceiro grau, autorização judicial prevista no Decreto-
lei 3.200/41), pela ofensa a princípios de ordem pública, moral, tradição
e bons costumes, d) união entre adotado e adotante, seu cônjuge ou filho,
e) união do cônjuge ou do companheiro sobrevivente com o condenado
por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte ou parceiro.8
Em qualquer situação, porém, mesmo quando desfigurada a união
estável como entidade familiar, como se dá em uniões adulterinas ou
incestuosas, pode restar a situação indelével da chamada “família de
fato”, que subsiste mesmo sem lei que lhe dê cobertura. A falta de revesti-
mento legal não obsta ao reconhecimento de certos efeitos jurídicos a essas
espécies de união do tipo concubinário. Seus membros fomam uma entida-
de familiar ainda que sem estrita concepção jurídica. Não podem ser
ignorados os efeitos dessa convivência no âmbito interno do grupo e
também no plano externo, por seu indisfarçável reflexo social.
Basta que se considere a eventualidade de formação de um patri-
mônio comum entre os parceiros, a exigir partilha dos bens no momento 4
em que se dissolva a convivência. Esse aspecto patrimonial terá sempre
1k,
relevância, ainda mesmo nos casos de múltiplas uniões em caráter simul-
tâneo, bastando que se distingam as aquisições pela sua origem, partilhan-
i1W

do-se os bens separadamente, por blocos específicos em favor dos que


efetivamente hajam colaborado na formação de cada fatia do patrimônio.
Muito menos haverá restrição de direitos aos filhos havidos em
quaisquer dessas situações extramatrimoniais desfocadas do modelo ofi-
cial da união estável. Para os filhos não interessa como se qualifique a
relação de seus progenitores. Eles fazem parte de uma entidade familiar
em conjunto com seus ascendentes, não importa a origem ou as condi-
ções da convivência, e terão todos os direitos decorrentes da filiação,
conforme lhes assegura, em solene afirmação, o artigo 227, § 6.0, da
Constituição Federal.
Em suma, com ou sem impedimentos para sua constituição, a
entidade familiar decorrente da convivência duradoura de homem e
mulher, em quaisquer circunstâncias, merece proteção do Estado como
núcleo integrante da sociedade.

8 Desmerece inclusao a hipótese de uniao do cônjuge adúltero com o seu


co-reu, por tal
condenado, por tratar-se de situaçao em vias de destipificação civil como
impedimento (novo
Código Civil) e também na esfera do procedimento criminal (já existente, pelo
perdáo judicial,
e com efetiva exclusão do tipo, na pendência de reforma da parte especial do
Código Penal).

191

EUCLIDES BENEDITO DE OLIVEIRA

Os efeitos jurídicos dessa união à moda conjugal serão examinados


caso a caso, de acordo com suas características e peculiaridades. Garanti-
da será, no entanto, a defesa dos direitos assegurados aos parceiros, ao
menos no plano patrimonial, assim como assegurado o reconhecimento
de plenos e igualitários direitos aos seus descendentes, como se dá na
chamada família monoparental, que prescinde da pré-configuração matri-
monial ou de ajuste ao figurino da união estável.

10 BIBLIOGRAFIA

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato. São Paulo: Jurídi-


ca Brasileira, 2001.
BITTENCOURT, Edgard de Moura. Concubinato. 2. ed. São Paulo: Leud,
1980.
BRITO, Nágila Maria Sales. Concubinato e seus feitos económicos. Bahia:
Ciência Jurídica, 1998.
CAHALI, Francisco José. União estável e alimentos entre companheiros. São
Paulo: Saraiva, 1996.
Contrato de convivéncia na união estável São Paulo: Saraiva, 2002.
DIAS, Maria Berenice. União homossexual O preconceito & a justiça.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
NOGUEIRA DA GAMA, Guilherme Calmon. O companhei4çmo: uma
espécie de família. 2. ed. São Paulo: RT, 2001.
OLIVEIRA, Euclides Benedito. União estável, comentários às leis 8.971/94
e 9.278. 5. ed. São Paulo: Paloma, 2000. Curso Damásio.
PEDROITI, Irineu Antonio. Concubinato: união estável. 3. ed. São Paulo:
Leud, 1997.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável 4. ed. Belo Horizonte:
Del Rey, 1997.
DIAS, Maria Berenice. Direito de família e o novo Código Civil Belo
Horizonte: IBDFAM/Del Rey, 2001.
PESSOA, Cláudia Grieco Tabosa. Efeitos patt-imonias do concubinato. São
Paulo: Saraiva, 1997.
VARJÂO, Luiz Augusto Gomes. União. estável: requisitos e efeitos. São
Paulo: Juarez de Oliveira, 1999.
VELOSO, Zeno. União estável Coleção Biblioteca do Ministério Público
do Estado do Pará, Belém, 1997.

192

Ternário II

FAMILIA, DIREITOS HUMANOS


E OS PRINCÍPIOS
DA DIGNIDADE HUMANA

PENSÃO ALIMENTÍCIA ENTRE CÔNJUGES


E O CONCEITO DE NECESSIDADE

Maria Aracy Menezes da Costa


Juíza de Direito aposentada. Advogada. Mestra em Direito
pela PUC-RS. Professora de Direito Civil — Família
e Sucessões — na Escola Superior da Magistratura
do Rio Grande do Sul, na Faculdade de Direito da PUC-RS, ,l~V
na Faculdade de Direito Ritter dos Reis — RS (graduação
e pós-graduação). Membro do IBDFAM e da ABMCJ —
!i~I
Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica.

_________________ Sumário _________________

I~q
1. Introdução. 2. A igualdade. 3. Os alimentos. 4. O dever de
alimentos e o dever de socorro. 5. Rendimentos da mulher. 6. A
necessidade. 7. A transpessoalidade na pretensão alimentária.
8. A dignidade da pessoa humana. 9. A interpretação sistemáti-
ca do direito. 10. A hermenêutica do art. 400 do Código Civil: a
necessidade, a aptidão para o trabalho e a disponibilidade para
o trabalho. 11. Conclusão. 12. Bibliografia.

1 INTRODUÇÃO

Ao longo da história da humanidade, a mulher tem sido tratada como


ser inferior ao homem, menos dotada e, por isso, olhada com compaixão.
Com relação a direitos, os que lhe foram concedidos vieram quase como
esmola. Também historicamente, observa-se que a mulher manifestou ten-
dência a se submeter a tal situação, acomodando-se na posição de inferioridade.
Age dessa forma provavelmente por comodismo, possivelmente
por receio. O que não se aceita como justificativa de sua subserviência é

195

PENSÃO ALIMENTÍCIA ENTRE CONJUGES


E O CONCEITO DE NECESSIDADE

Maria Aracy Menezes da Costa


Juíza de Direito aposentada. Advogada. Mestra em Direito
pela PUC-RS. Professora de Direito Civil — Família
e Sucessões — na Escola Superior da Magistratura ~II~
do Rio Grande do Sul, na Faculdade de Direito da PUC-RS,
na Faculdade de Direito Ritter dos Reis — RS (graduação
e pós-graduação). Membro do IBDFAM e da ABMCJ —
Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica.
irn
________________ Sumário _________________ II~
1. Introdução. 2. A igualdade. 3. Os alimentos. 4. O dever de
alimentos e o dever de socorro. 5. Rendimentos da mulher. 6. A
necessidade. 7. A transpessoalidade na pretensão alimentária.
8. A dignidade da pessoa humana. 9. A interpretação sistemáti-
ca do direito. 10. A hermenêutica do art. 400 do Código Civil: a
necessidade, a aptidão para o trabalho e a disponibilidade para
o trabalho. 11. Conclusão. 12. Bibliografia.

1 INTRODUÇÃO
Ao longo da história da humanidade, a mulher tem sido tratada como
ser inferior ao homem, menos dotada e, por isso, olhada com compaixão.
Com relação a direitos, os que lhe foram concedidos vieram quase como
esmola. Também historicamente, observa-se que a mulher manifestou ten-
dência a se submeter a tal situação, acomodando-se na posição de inferioridade.
Age dessa forma provavelmente por comodismo, possivelmente
por receio. O que não se aceita como justificativa de sua subserviência é

195

MARIA ARACY MENEZES DA COSTA 1

a ignorância. A mulher acostumou-se a estar em situação de dependência


com relação ao homem, a não ter iniciativa, a ser subordinada. Por muito
tempo foi considerada uma “coisa”, propriedade do pai, do marido, do
companheiro. A conscientização de seu efetivo valor dar-se-á em um
processo lento que, por certo, ainda levará décadas para ser concluído.t
Ainda hoje mulheres hesitam em sair de casa, enfrentar o mercado
de trabalho. Entre permanecer nos limites de seu lar, sem maiores com-
promissos com o mundo profissional, ou enfrentar um dia de trabalho fora
de casa, significativa parcela feminina escolhe pela primeira opção.
Muitas já obtiveram êxito na busca da igualdade entre os sexos.
Outras ainda estão subjugadas aos homens por razões culturais, familia-
res, econômicas ou sociais. O Brasil é um país heterogêneo, com múltipla
formação étnica e profundos contrastes culturais, sociais e econômicos,
além de sua enorme dimensão continental, o que justifica costumes e
comportamentos diversificados.
Em nome da igualdade e em busca de um lugar na sociedade,
mulheres reivindicam postos e cargos — que podem ser conquistados com
esforço próprio, mas acabam sendo concedidos como pagamento por
dívidas do passado, uma compensação. Em nome de uma alegada igual-
dade, vagas lhes são asseguradas nas empresas, estabelecendo-se uma
verdadeira reserva de mercado a favor das mulheres não porque são mais
capazes, mas simplesmente porque são mulheres.
A efetiva e real igualdade de gênero, não raro, é interpretad~i de
forma equivocada na doutrina e até mesmo por alguns tribunais: ou tudo
é negado para a mulher — sob o argumento de que, afinal, ela é igual ao
homem em direitos — ou tudo lhe é concedido, porque ela já foi muito
sacrificada, e este é o momento histórico de serem reparadas as injustiças
do passado.
Ao se submeter à humilhante situação de dependência, de coisft-
caçâo, a mulher está, ela mesmo, abrindo mão de sua dignidade, situação
que se agrava quando ela é abandonada pelo marido, “trocada por outra”,

1 “(...) O universo feminino é habitado pela idéia de ser sustentado por


um homem. Embora essa
idéia de sustento da mulher pelo homem começa a se modificar, alterando
paulatinamente os
ordcnamentos jurídicos, levará, ainda, segundo a psicanalista Gi/da L’a~
Rodsigues, pelo menos
trés gerações para que esse fato se sedimente no inconsciente como cultural.”
PFRFIRA
Rodrigo da Cunha. (Coord.). Direito de família: uma abordagem psicanalítica, p.
133.
196

PENSÃO ALIMENTÍCIA ENTRE CÓNJUGES E O CONCEITO DE NECESSIDADE

desprezada. Em geral a mulher não hesita em lançar mão de todos os


meios a seu alcance para atingir o homem causador de sua desgraça. E
sua vingança é materializada com o pedido de alimentos contra aquele
que a abandonou. Se tem filho com esse homem, a situação é vantajosa
para ela: é só utilizar o filho (valendo-se do seu nome) e elencar necessi-
dades, nem todas reais, para encobrir as suas despesas pessoais. Com a
representatividade legal decorrente da guarda do filho, a mulher pode
usar de má-fé e abusar do direito que a lei lhe concede, litigando sob o
nome do filho para buscar sustento para si.
A hipótese apresentada existe, mas não costuma ser objeto de
análise, talvez por ser politicamente incorreta e provocar um certo constran-
gimento, principalmente para quem a expõe. Mas, se está posta na
sociedade, deve ser enfrentada, analisada e criticada com o auxilio de
4reas afins, como a Psicologia, a Psiquiatria e a Sociologia, num verdadei-
ro trabalho interdisciplinar.
Felizmente, a situação não é generalizada. Os casos desse tipo não
1W
devem levar à estereotipação da figura feminina. Paralelamente às mu-
lheres que preferem ser sustentadas toda uma vida por ex-maridos, existem
as trabalhadoras, lutadoras, guerreiras, que honram e dignificam o gênero
IpsE
£emtntno.
~ A monoparentalidade leva as mulheres — que não têm a seu lado um
marido ou companheiro — a se lançarem no mercado de trabalho para
sustentar os filhos.2 Porém, quando a mulher não quer ou não pode
trabalhar, espera que o pai de seus filhos a mantenha financeiramente. O
problema econômico decorrente dessa situação é grave. Quando são aban-
donadas pelos maridos ou companheiros, as mulheres são tomadas de
surpresa por uma nova realidade. Até então, elas ficavam no las sem
qualquer qualificação para o trabalho, cuidando das lides domésticas,
lavando as roupas, limpando a casa, e guardando3 pela situação moral e
administrativa da família, como auxiliar do chefe4 da sociedade conjugal.

2 LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias monopaprentais, passtm.

3 Conforme determina o art. 240 do Código Civil, no capítulo que trata dos
direitos e deveres da

mulher: “A mulher, com o casamento, assume a condição de companheira, consorte e

colaboradora do marido nos encargos de família, cumprindo-lhe velar pela direção


material e
moral desta.” (Grifo da autora).

4 Nos termos do art. 233 do Código Civil, “o marido é o cheji da sociedade


conjugal, função que

exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos.”


(Grifo da autora).

197
MARIA ARACY MENEZES DA COSTA

Há que se distinguir a mulher que realmente necessita dos alimen-


tos da que está somente a reivindicá-los como instrumento de vingança
ou por mera comodidade. O artigo 400 do Código Civil determina que os
alimentos devem ser tratados na proporção das necessidades de quem os
pede e na possibilidade de quem os alcança. Impõe-se dimensionar, hoje,
o conceito de necessidade, fazer uma releitura do conceito, valendo-se da
interpretação sistemática do Direito para uma adequada hermenêutica,
diferenciando aptidão para o trabalho de disponibilidade para o trabalho.

2 A IGUALDADE

Em busca da verdadeira igualdade, por vezes são praticadas injustiças.5


A igualdade absoluta é aritmética, mecânica, implica nivelamento e
contraria a natureza das coisas e do ser humano, pois os indivíduos se
apresentam de forma diversa, tanto no plano físico como no intelectual.
Inteligência, caráter e aptidões não são iguais. A legislação distingue entre
homem e mulher, brasileiros e estrangeiros, governantes e governados;
trata diversamente magistrados e jurisdicionados, funcionários públicos
civis e militares; difere o credor e o devedor, o proprietário e terceiros, pais
e filhos, capazes e incapazes e muitos outros.
A igualdade relativa pode ser considerada a verdadeira igualdade.
Também denominada proporcional, geométrica ou orgânica, é o contrá-
rio da absoluta, pois leva em conta a diversidade do ser humano, suas
diferentes capacidades, aptidões, habilidades.6 É a igualdade pregada por
Aristóteles e Rui Barbosa, quando ensinam que a verdadeira igualdade
consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.

5 “(...) a igualdade nem sempre é sustentada por motivos éticos. Assim,


ela é aspirada pelo ciúme,
que gostaria de gozar do mesmo favor que o privilegiado, pela inveja, que
gostaria dc rebaixar
o privilegiado à própria situação, pela malignidade, que se alegra em ver outros
cairem na cova,
que ela mesma abriu, pela sede de vingança, que gostaria de causar o mesmo
prejuízo a quem o
provocou.” RADBRUCH, Gustav. Vorschule der Rechlsphilosophie. Apud REIS Carlos
David. S.
Aarào. Família e igyaldade a chefia da sociedade conjugal em face da nova
constituição, p. 22.
6 “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente os
desiguais, na medida
em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade
natural, é que
se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do
orgulho, ou da loucura.
Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria
desigualdade flagrante, e
não igualdade real.” DAHL, Tove Stang, O direito das mulheres, p. 36.

198

PENSÃO ALIMENTÍCIA ENTRE CÔNJUGES E O CONCEITO DE NECESSIDADE


A aplicação da igualdade exterior pelo ordenamento jurídico, tra-
tando igualmente os desiguais, resulta na verdadeira desigualdade.7
A igualdade adotada na Constituição Federal foi a relativa, propor-
cional,8 pois o texto contém inúmeras distinções e discriminações entre
os mais variados indivíduos.

3 OS ALIMENTOS

ILut~ llidson Fachtn entende os alimentos como prestações para a


satisfa-
ção das necessidades de quem não pode provê-las por si.9 Yussef Cahali10 e
Orlando Gomes’1 limitam as necessidades para vitais. Lourenço Mário Prunes
conceitua alimentos como ‘II
“a prestação fornecida por uma pessoa a outra, para que atenda às
Ifi~i
necessidades da vida, podendo compreender comida, bebida, teto
I~I
para morar, cama para dormir, medicamentos, cuidados médicos,
IOi
roupas, enxoval, educação e instrução, etc., sendo proporcionada
no geral em dinheiro, cujo quantum corresponde às utilidades mas
podendo igualmente ser fornecido em espécie.”12

Enquanto os alimentos naturais ou necessários se referem ao que é


absolutamente indispensável à vida de uma pessoa — a alimentação propria-
mente dita, cura, vestuário e habitação —, os alimentos civis ou cóngruos
abrangem necessidades não vitais, como as intelectuais e morais, esporte e

7 “Alimentos. Igualdade dos cônjuges. Apelo parcialmente provido.


Unânime. Hipótese em que
a mulher não pode ficar totalmente sem alimentos, pois que os princípios
grandiosos da
igualdade jurídica entre os cônjuges e entre homem e mulher não se podem
transformar, em
casos concretos, em fator de destruição da mulher. O tema da igualdade não pode
ser tratado
apenas no plano genérico e abstrato”. (TJRS, Ap. Civ. 596038307, ReI. Des.
Sérgio Gischkow
Pereira, j. 02.05.1996).
8 REIS, Carlos David 5. Aarào. Família e igualdade: a chefia da sociedade
conjugal em face da
nova Constituição, p. 39.

9 FACHIN, Luiz Edson. Elementos cr*icos do direito de família, p. 268.

10 CAHALI, Yusscf Said. Dos alimentos, p. 16.

11 GOMES, Orlando. Direito de família, p. 427.

12 PRUNES, Lourenço Mário. Ação de alimentos, p. 29.

199

MARIA ARACY MENEZES DA COSTA


lazer, podendo variar conforme a posição social da pessoa necessitada.13
Lui~ Edson Fachin14 afirma que na exegese estrita da expressão “necessida-
des vitais” há uma idéia inexata do juízo de necessidade. Pondera que não
é possível viver dignamente sem a educação, mesmo que ela não seja
essencial à subsistência. Há necessidades que são vitais para a sobrevivên-
cia mesmo não o sendo do ponto de vista biológico, e por isso devem estar
contidas tanto quanto possível na prestação alimenticia.
A doutrina tradicional apresenta a obrigação alimentar decorrente
de leis relativas ao jus sanguinis — parentesco — e do jus matrimonii —
casamento —, sem contemplar a união estável, pois recente sua inclusão
nos benefícios alimentários. Com a recepção constitucional da união está-
vel, estendeu-se, por analogia, os alimentos decorrentes dojus matrimonii
também aos resultantes da união estável. Os alimentos previstos em lei,
atualmente, decorrem do parentesco, do casamento ou da união estável — esta
última a partir da Lei 8.971/94.
O dever de auxílio recíproco entre cônjuges, jus matrimonii, tem
a
sua origem no art. 231, mc. iii, do Código Civil, que trata dos direitos e
deveres dos cônjuges. A separação desfaz a sociedade conjugal, mas o
vínculo permanece apesar da separação, somente se extinguindo com o
término do casamento. De acordo com o que dispõe expressamente o
artigo 3•() da Lei 6.515/77, a separação judicial põe termo aos deveres de
coabitação, fidelidade recíproca e ao regime matrimonial de bens, como
se o casamento fosse dissolvido. Silencia a respeito da mútua assistência,
dever recíproco elencado no art. 231, o que leva a concluir que ela perma-
nece mesmo após a separação judicial e só cessa com o divórcio, confor-
me o artigo 24 da mesma lei, que determina que o divórcio põe termo ao
casamento e aos efeitos civis do matrimônio religioso.
O casamento implica auxilio recíproco entre o casal, e não entre
a
mulher e a família de seu marido. Não há previsão legal de alimentos entre
afins. A disposição do artigo 397 do Código Civil,15 que possibilita o pedido

13 GOMES, Orlando. Direito de família, cit., p. 427.

14 FACHIN, Luiz Edson. Elementos..., cit., p. 269.


15 Art. 397 do Código Civil: “O direito à prestação de alimentos é
recíproco entre pais e filhos e
extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em
grau, uns em
falta de outros.”

200

PENSÃO ALIMENTÍCIA ENTRE CÓNJUGES E O CONCEITO DE NECESSIDADE

de alimentos na linha reta ascendente entre parentes, não é extensiva a


afins.16

4 O DEVER DE ALIMENTOS E O DEVER


DE SOCORRO

Enquanto vige a sociedade conjugal, não se cogita na prestação de


alimentos, eis que o casal tem a obrigação recíproca de prover o sustento
da família. Com o término da convivência conjugal, o dever de sustento
assume outra feição, materializando-se na prestação de alimentos. Com a
separação, prevalecem os deveres de sustento, assistência e socorro originários
do
casamento, exceto em situações excepcionais.
Para os esposos, o dever de ajuda consiste na obrigação que tem cada
um de proporcionar ao cônjuge tudo que seja necessário para ele viver, sendo
equivalente aos alimentos: trata-se de ob~gação de dar. A assistência consiste
nos cuidados pessoais que devem ser dados ao cônjuge enfermo, constituin-
1W
do-se em obr~gaçào de fazer. Ajuda não se confunde com assistência.’7 ii.’
Por ocasião do divórcio consensual, o acordo entre as partes assume
as características contratuais do Direito das Obrigações, despindo-se do
caráter alimentar propriamente dito. No entanto, o Direito de Família
apresenta aspectos peculiares que o distinguem dos outros ramos do Direito,
destacando-se a importância fundamental do elemento social, ético e moral.18
Conforme assinala Amoldo Wald,19 não se pode negar que os direitos de
família são exercidos menos nos interesses individual e egoístico de cada
um dos membros do que em favor do interesse comum da família, superior
à soma dos desejos individuais dos seus membros.20

16 “Não há dever de alimentos entre os parentes por afinidade, como, por


exemplo, entre o sogro
e a nora (STJ, 3. T., RMS 957-0/BA, Rei. Mm. Eduardo Ribeiro, ac. 09.08.1993,
DJU
23.08.1993, p. 16.575). A afinidade é regulada pelo Código mais como causa de
restrições do
que como fonte de direitos (impedimento matrimonial: art. 183, II). GOMES,
Orlando.
Direito de família, cit.

17 PLANYOL, Marcel; RIPERT, Georges. Derecho ãvil p. 137.


18 WALD, Amoldo. Curso de direito civil brasileiro: direito de família, p. 18.

19 Ibidem, p. 19.
20 Também Alvaro Vi/laça A~ez’edo afirma: “(...) podemos dizer,
conceituando-o, que o casamen-
to é um contrato solene, regulado por normas de ordem pública, no âmbito do
Direito de
Família (...)“ (Estatuto da família de]àto, p. 282).

201

MARIA ARACY MENEZES DA COSTA

O casal separado judicialmente, mas não divorciado, mantém o


vínculo entre eles existente, motivo pelo qual prevalece a assistência
recíproca, nos exatos termos do artigo 3•o da Lei 6.515/77.21
A obrigação alimentar decorrente dojus matrimonii, que gera o dever
de manutenção de um dos cônjuges ou conviventes para com o outro após
a dissolução do casamento ou da união estável, constitui-se em manuten-
ção de um direito protetivo, no qual prepondera a figura masculina sobre a
feminina. São raros os casos de que se tem notícia de maridos pensionados
por ex-mulheres: em geral, as mulheres são pensionadas pelos ex-maridos.
Há pessoas, historicamente mulheres, que embora estejam em perfeitas
condições de exercer alguma atividade laborativa para prover o seu próprio
sustento optam por permanecer dependentes de ex-maridos ou ex-compa-
nheiros, na convicção de que o ex-marido ainda é o chefe da família, o
provedor perene, com o dever de sustentá-la ad infinitum. Fazem questão de
se manterem totalmente dependentes, como se “casamento fosse emprego
e marido, órgão assistencial”.22 A arraigada acomodação feminina está
sendo combatida pelos tribunais contemporâneos.23
Os alimentos constituem-se em dever de família?4 Não se admite
que, com a dissolução do vínculo, seja mantida a mesma obrigação marital.
Dissolvida a estrutura familiar, não resta qualquer obrigação alimentar
entre os ex-esposos. O princípio da solidariedade familiar, que norteia a
obrigação de prestar alimentos entre os cônjuges, rigorosamente cai por
terra quando não existe mais a família formada pelo casal, quando o casa-
mento é dissolvido pelo divórcio. Prevalece, apenas, a obrigação alimen-
tar com relação aos filhos, expressamente determinada no art. 231 do
Código Civil.

21 Art. 3•o da Lei 6.515/77: “ A separação judicial põe termo aos deveres
de coabitação,
fidelidade recíproca e ao regime matrimonial de bens, como se o casamento fosse
dissolvido.”

22 “Casamento não é emprego e marido não é orgão assistencial” é


expressão utilizada pelo Des.
ReI. Eliseu Gomes Torres, 8.’ Câm.Civ. TJRS, no julgamento do Proc. 595.181.272,
em
21.12.1995.

23 8.’ CC, TJRS julgamento da apelação no Processo 595.181.272, em


21.12.1995: interposta
por uma mulher saudável, com 20 anos de idade, Relator Des. Eliseu Gomes Torres:
“Entre os
cõnjuges existe o dever de mútua assistência e não o dever de sustento do homem
para com a
mulher, pelo princípio da igualdade entre ambos. Estando eles em situação igual
— ambos
capacitados para o trabalho, não há porque serem assistidos um pelo outro.”
24 GOMES, Orlando. Direito de família, p. 428 e 437.

202

PENSÃO ALIMENTÍCIA ENTRE CÔNJUGES E O CONCEITO DE NECESSIDADE

5 RENDIMENTOS DA MULHER

Se a mulher que se separa tem rendimentos próprios suficientes para


sua mantença, não há necessidade de pedir alimentos ao ex-marido.25
Com o início de atividade remunerada pela mulher que recebe
pensão de alimentos do ex-marido, apresentam-se duas possibilidades ao
alimentante: exonerar-se do encargo, na hipótese de ela ter o necessário
para sua mantença, ou reduzir o valor dos alimentos alcançados, se a
atividade feminina apenas proporciona rendimentos que melhoram a
qualidade de vida da mulher, sem serem suficientes para que ela se
mantenha sozinha. ~uq
Os alimentos podem sofrer alteração em seu quantum se após sua
fixação sobrevier alteração na fortuna de qualquer uma das partes, tanto
de quem alcança como de quem recebe, conforme expressamente deter-
mina o artigo 401 do Código Civil,26 mantido no art. 1.699 do projeto do
novo Código Civil. 41k
No entanto, existem outros elementos modificadores da fortuna de ~Im
quem recebe. Os mais freqüentes são o novo casamento ou a união estável,
o que não significa que com a nova união a pessoa alimentada tenha se
tornado rica, mas sim que, com o casamento ou união estável, outro homem
assumiu a responsabilidade pela mantença da mulher. Essa conclusão
advém da disposição do artigo 29 da Lei do Divórcio, expresso no
sentido de cessar a obrigação alimentar em caso de novo casamento da
pessoa alimentada,27 analogicamente aplicado a situações de união está-
vel e com previsão expressa no art. 1.708 do novo Código Civil.

25 “No mérito, entretanto, tenho que está com razão o agravante. Ocorre
que, percebendo a
agravada uma aposentadoria em valor correspondente a dez salários mínimos, e
residindo em
imóvel próprio e quitado, evidencia-se, a priori, a sua desnecessidade em
receber alimentos do
ex-marido, sabido que, em principio, o dever de mútua assistência entre
cônjuges, com a
máxima vênia de respeitáveis entendimentos diversos, não vai ao ponto de
assegurar o padrão
de vida do que postula alimentos. (AI 599 204 443 TJRS, 7.’ CC, voto do Des.
Luiz Felipe
Brasil Santos, j. 02.06.1999.)

26 Art. 401 CC: “Se, fixados alimentos, sobrevier mudança na fortuna de


quem os supre, ou nade
quem os recebe, poderá o interessado reclamar do juiz, conforme as
circunstâncias, exonera-
ção, redução ou agravação do encargo.
27 Art. 29 da Lei 6.515/77: “O novo casamento do cônjuge credor da pensão
extinguirá a
obrigação do cônjuge devedor.”

203

MARIA ARACY MENEZES DA COSTA

6 A NECESSIDADE

Conforme dispõe o artigo 400 do Código Civil, os alimentos devem


ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos
da pessoa obrigada. Dessa forma se estabelece uma das principais carac-
terísticas da obrigação alimentar: a condicionalidade, mantida no projeto do
Código Civil, no § 1.0 do art. 1.694.
A varübi/idade, outra das características da obrigação alimentar,
tem seu fundamento legal no artigo 401 do Código Civil, mantida no
projeto do novo Código no art. 1.699, que determina que, havendo
posterior mudança na fortuna de quem proporciona ou na de quem
recebe os alimentos, poderá o interessado requerer ao juiz, conforme as
circunstâncias, exoneração, redução ou agravação do encargo. Assim,
quem fornece alimentos poderá se exonerar ou reduzir o encargo; e quem
recebe poderá pleitear o aumento da pensão.
No comum dos casos, o conceito de necessidade tem sido auferido
tão-somente sob a ótica objetiva, ou seja, com caráter extrínseco. Sob
esse enfoque, é suficiente comprovar que a pessoa que pede alimentos
não os tem. A simples e objetiva constatação da falta dos alimentos leva
à lógica conclusão de que quem não os tem deles necessita. A situação é
de falta de dinheiro ou bens necessários à mantença. Dessa forma, não se
questiona o motivo pelo qual a pessoa que pede não tem: se não tem porque
efetivamente não pode ter ou se não tem porque não quer buscá-los por si
proíria. A pessoa alimentada prefere receber os alimentos de terceiros do
que provê-los por si. Assim, a necessidade, considerada tão-somente em
seu sentido denotativo, pode gerar situações de injustiça, encobertando
posturas subjetivas de comodidade ou vingança.
A jurisprudência tem se mantido fiel aos princípios da condicionali-
dade e da variabilidade dos alimentos, no sentido tradicional, ou seja,
fazendo um exame extrínseco (objetivo ou denotativo) da situação das
partes. A clássica “modificação da fortuna” é o elemento fundamental
para a alteração dos alimentos, principalmente quando quem alcança preten-
de se exonerar ou reduzir. Afirma-se que, se não houve um aumento das
despesas do alimentante ou uma expressa diminuição de sua fortuna —
assim entendida sua situação econômica e patrimonial —, nem aumento
na fortuna de quem está recebendo os alimentos, ou diminuição de seus

204

PENSÃO ALIMENTÍCIA ENTRE CÔNJUGES E O CONCEITO DE NECESSIDADE

gastos, não estão presentes os pressupostos para a ação revisional, sendo


indeferida a pretensão do alimentante.28
Habitualmente, não se fazem indagações a respeito da causa da
alegada necessidade alimentar. No entanto, torna-se necessária uma
abordagem do conceito de necessidade sob a ótica do Direito contemporâ-
neo, considerando-se o aspecto conotativo — extrínseco — do conceito,
principalmente após as diretrizes de igualdade da Constituição de 1988.
O conceito de “necessidade”, embora vago, é determinável e será
composto de acordo com a situação da época, conforme o contexto social
e econômico da pretensão.29
Cabe indagar os motivos pelos quais a situação da pessoa alimentada
continua sem alterações. Será que a mulher toma a iniciativa de exercer
alguma atividade remunerada que lhe proporcione seu próprio sustento?
Ou terá ela adoecido e ficado sem condições físicas de exercer qualquer
1 IfiI
atividade remunerada, impossibilitada de ao menos executar trabalhos
culinários ou manuais para vender? Ou será mais cômodo para ela não se 1k
fatigar com o trabalho, deixando que o ex-marido a sustente?
E então vem a pergunta que não quer se calar: quando a mulher
II~u
representa o filho em uma ação de alimentos, ela realmente atende aos
interesses do filho? Ela está demandando em nome do filho e efetivamente
expondo as necessidades dele? Ou está se valendo da pessoa do filho como
instrumento para deduzir em juízo as suas próprias necessidades.

7 A TRANSPESSOALIDADE NA PRETENSÃO
ALIMENTÁRIA

Em questões de Direito da Família, não há como deixar de consi-


derar a necessidade um tratamento inderdisciplinar. Emoções, afetos e

28 Nessa linha, decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:


“Exoneração de alimentos.
Descabe desonerar o marido da obrigação assumida quando da separação, de prestar
alimentos
à cônjuge, se inalterada a situação de qualquer das partes. Recurso desprovido,
por maioria 7.’
Câm. Civ.TJRS, Ap.Cív. 598 544 260, ReI. Des. Maria Berenice Dias.
29 “A complexidade das relações sociais, em geral, e das familiares, em
especial, confere novos
desafios ao Direito e, de conseqüência, à jurisprudência: os novos conflitos
reclamam posturas
difcrenciadas.” FACHIN, Rosana Girardi. Em busca da família do novo milénio, p.
56.

205

MARIA ARACY MENEZES DA COSTA

inconsciente ditam comportamentos que se refletem nas questões de


família.

“Ficam os restos da paixão. E não há nenhuma boa razão para


desprezar o poder que estes restos têm. Até porque as novas
relações que eventualmente aconteçam o farão sobre os restos
desta. Assim como esta também ocorre sobre os restos conser-
vados/transformados das que a precederam. Não há ausência
de história. Será um desafio à sanidade mental do ex-apaixona-
do conseguir encontrar um destino para estes restos que não
seja usá-los exclusivamente como seu instrumento de tortura.’ ‘30

As questões jurídicas como alimentos, guarda e direito de visitas


somente podem ser tratadas adequadamente se considerados os fatores
emocionais envolvidos. Freqüentemente, os filhos são usados como justifi-
cativa para a tomada de certas medidas legais, por meio das quais suposta-
mente serão defendidos seus interesses.31

7.1 Motivações afetivas

As uniões são movidas pelo amor. Conforme Eduardo de Oliveira


Leite,

‘‘quando a discussão ‘jurídico’ gira em torno das figuras marido


e mulher, pais e filhos, ou simplesmente filhos, são as imagens
do amor, do afeto e do sentimento que se sobrepõem em detri-
mento de todas as demais considerações.”32

Ressalta ele que no Direito de Família, além dos aspectos jurídicos


propriamente ditos, estão sempre presentes as dimensões axiológicas,

30 TURKENICZ, Abraham. A aventura do casa4 p. 42.

31 MO~ITA, Maria Antonieta Pisano. Além dos fatos e relatos: uma visão
psieanalitica do direito

de família. lo: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Direito de família: a


família na travessia
do milênio. Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família, p. 51.

32 LEITE, Eduardo de Oliveira. Os alimentos e o novo texto constitucional. lo:


PEREIRA,

Rodrigo da Cunha. (Coord.). Direito de família contemporáneo, p. 696.

206

PENSÃO ALIMENTÍCIA ENTRE CÔNJUGES E O CONCEITO DE NECESSIDADE

sociológicas, fisiológicas e éticas. A realidade humana é dimensionada


principalmente a partir de uma dose profunda de sensibilidade.
Em pactos e negócios realizados na área de família, o subjetivo dita
o comportamento, diferentemente dos outros “contratos” em que as
expectativas estão mais claras e melhor expressas.33 As questões patrimo-
mais na separação são de difícil composição; os filhos muitas vezes são
usados para o casal se atacar mutuamente:
Cada um dos separados quer ser indenizado pelo prejuízo sofrido
em nome do amor que acabou, e assim o dinheiro assume significações
simbólicas, sendo ao mesmo tempo prêmio e castigo. O patrimônio deixa
de ter seu sentido econômico, para representar perdas emocionais e o
luto pelo afeto que se foi.
Com o término da relação do casal, a guarda dos filhos geralmente
fica com a mãe. Não se trata de regra absoluta, principalmente nos dias
de hoje, mas pela própria formação mais tradicional das famílias, os
homens não costumavam lutar pela guarda dos filhos, concordando
desde logo que ficassem com a mulher. Hoje, a situação está modificando
NI
seus contornos. Mas, mesmo assim, ainda prepondera, significativamen- 1 ~
te, a guarda materna sobre a paterna.
Vê-se seguidamente que o homem reivindica a guarda do filho,
buscando tirá-lo da casa materna, porque a ex-mulher voltou a se casar ou
porque ele quer se livrar do encargo da pensão de alimentos para o filho.
No primeiro caso, se vê agredido em sua condição de “dono” da mulher e
também do filho: não suporta outro homem convivendo com a sua mulher
e o seu filho. No segundo caso, não há interesse afetivo pelo filho, somente
o interesse econômico de se livrar do pagamento de alimentos.
Porém, há situações diametralmente opostas, que ocorrem quando é
a mulher que toma a iniciativa de vingança por causa do comportamento

33 Comenta RolfMadaleno que “curioso constatar que todo o decantado


respeito constitucional à
intimidade do cônjuge e à sua dignidade no seio da sua sociedade familiar
desloca-se com
facilidade para o terreno da amargura, da censura pessoal e até mesmo da
humilhação, quando
se trata de buscar em juízo o decreto oficial de uma união desmoronada.” Novas
perspectivas no
direito de família, p. 31.

34 MOrrA, Maria Antonieta Pisano. Além dos fatos e relatos: uma visão
psicanalitiea do direito
de família. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Direito de família: a
família na travessia
do milênio. Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família, p. 39-52.

207

MARIA ARACY MENEZES DA COSTA

do marido. Nesse caso, se a separação foi proposta pelo homem, a mulher


perde o marido, mas fica com um trunfo nas mãos: o filho, um pedaço do
marido, um prolongamento dele, objeto de seu amor e seu ódio; “(...) uma
parte predominante do outro, depreciado e temido”.35
E esse filho será o seu instrumento, sua arma, seu escudo, o pretexto
utilizado para que ela possa falar, lutar, agredir — através dele.36
Usando a pessoa, o nome e a representatividade do filho, a mulher
transcende a sua própria individualidade e ultrapassa a individualidade
do filho para chegar ao objeto de seu desejo e ódio: o homem que a aban-
donou, que a trocou por outra; o pai do seu filho. A criança, sem sequer
suspeitar o que está acontecendo entre os pais, e muito menos sem
consentir, emprestará compulsoriamente seu nome para a mãe litigar na
ação de alimentos. A criança pouco ou nada quer do pai, e não necessita
de todos os bens materiais que a mãe descreveu como sendo suas
necessidades. Do que necessita, mais que tudo, é do amor do pai. Sem
querer, e muitas vezes sem necessitar, o filho será parte ativa no litígio,
utilizado como instrumento de vingança da mãe. A mulher tomara
todas as medidas judiciais em nome do filho, extrapolando o poder que
a lei lhe concede.
Em situações dessa espécie, seguidamente a mãe coloca o filho contra
o pai, sob a falsa afirmação de que o pai não o ama, não se interessa por
ele. Quer levar o filho a acreditar que apenas ela, a mãe, sente verdadeiro
amor por ele, apesar de abandonada, desprezada pelo homem que trocou
sua família por outra. O filho é utilizado como mero instrumento de
vingança da mãe para atingir o ex-marido, o ex-companheiro, ou o ex-aman-
te, porque aquele homem negou a ela o amor, a companhia, e talvez
também o sustento. E tem início uma luta mascarada, e desigual, na qual
a criança se transforma em arma e escudo. A mulher quer purgar suas

35 DIAS, Maria Berenice; SOUZA, Ivone M. C. Coelho de. Separação


litigiosa, na “esquina” do
direito com a psicanálise. Revista da Ajuris, Porto Alegre, o. 76, p. 234, dez.
1999.

36 “O desamor está presente no final do casamento e parece estender-se


aos filhos, quando eles se
transformam em um e talvez no principal elemento de disputa entre os cônjuges.
(..) Triste
constatar que as armas mais poderosas e quase sempre á mão são os filhos, bem
maior do casal e única razão
que o ob~gará a contiver no mínimo decentemente até o resto de seus dias” (.gri
fos nossos). MOrrA,
Maria Antonieta Pisano. Além dos fatos e relatos: uma visão psicanalítica do
direito de família.
lo: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Direito de família: a família na
travessia do milênio.
Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família, p. 47, 49.

208
PENSÃO ALIMENTÍCIA ENTRE CÕNJUGES E O CONCEITO DE NECESSIDADE

mágoas, e o filho, que deveria ser preservado, mantido fora da questão


pessoal dos pais, torna-se a verdadeira vítima na guerra deflagrada.
Em seu ódio, ela incita o filho contra o pai.37 Quer convencer a si
própria e aos outros de que todos os seus atos se justificam porque visa
ao bem do filho. No entanto, suas atitudes provocam apenas sofrimento
e mágoa na criança, que seria muito mais feliz se a mãe lhe permitisse
viver harmoniosamente com o pai que ela ama.
Cega com o fim da paixão, a mulher aproveita-se de uma possibilida-
de jurídica em decorrência de sua maternidade, de sua representatividade
legal, e utiliza-se de uma situação que enseja o exercício da sua vingança
pessoal, ultrapassando os limites dos seus próprios direitos e ferindo
direitos do filho e do pai.38
Existe estreita relação entre o Direito e a Psicanálise.39 A parte
somente recorre ao Judiciário quando o vínculo afetivo se desfaz. A
disputa pela guarda dos filhos muitas vezes é usada como objeto de
vingança. Cada qual busca provar a sua verdade, negando sua própria
culpa e atribuindo ao outro a responsabilidade pelo fim da relação, pelo
1k
um
sonho desfeito, pela perda do objeto amoroso. Cada um busca sua absolvi-
ção, ansiando pela proclamação judicial de sua inocência. Cada qual quer
o reconhecimento da responsabilidade do outro pelo fim da relação, e
que lhe seja imposta uma sanção. Os fatos concretos não são levados ao
Judiciário, mas sim a versão de cada um, impregnada de emotividade, o
que dificulta a percepção da realidade. “... são os restos do amor que são
levados ao Judiciário.”40

37 “(...) quando fortalecemos a mãe que impede a visitação e que incita


os filhos contra o pai,
denegrindo-o, alegando racionalizações que dificilmente ocultam seu rancor e
ódio por ter-se
sentido abandonada. ‘~ MOITA, Maria Antonieta Pisano. Além dos fatos e relatos:
uma visão
psicanalítica do direito de família. lo: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.).
Direito de
fismília: a família na travessia do milênio. Anais do II Congresso Brasileiro de
Direito de
Família, p. 50.
38 “(...) As justificativas racionais ou legais utilizadas para sustentar
sua aplicação ocultam outras
motivações, freqüentemente de cunho emocional, sejam elas conscientes ou
inconscientes,
mas que pouco dizem respeito aos filhos ou à defesa de seus interesses e que se
refere muito
mais aos pais e aos problemas relativos a conflitos conjugais não resolvidos.”
Iludem,
p. 50-51.
39 DIAS, Maria Berenice; SOUZA, Ivonc M. C. Coelho de. Separação
litigiosa, na “esquina” do
direito com a psicanálise. Revista da Ajuris, Porto Alegre, o. 76, p. 233-237,
dez. 1999.
40 Ibidem, p. 235.

209
MARIA ARACY MENEZES DA COSTA

7.2 Motivações econômicas

Muitas vezes, utilizando-se da demanda de alimentos, valendo-se


do filho como autor, cujo nome usa indevidamente, a mulher visa a
melhora de sua própria situação econômica. Se o filho necessita de dois
salários mínimos para sua mantença, ela reivindica quatro. Se a criança
tem necessidade de cinco, ela insiste em dez. Não pensa no filho, nem
defende os interesses dele. Seu objetivo maior é preservar a sua própria
situação financeira e econômica. Procura para si, naquele momento, a
segurança do futuro.41
Eduardo de Oliveira Leite42 ensina que a inclusão de itens que não fazem
realmente parte do quotidiano do credor, como tv a cabo, despesas com
computaçao, escola de dança, de natação, ginástica, equitação, quase sempre
é feita com vistas a acrescer o valor da divida alimentar, numa manobra
simulatória negada pela realidade do quotidiano da parte. Comprovado que o
filho não gasta o valor pedido, a determinação de pensão em valor exacerba-
do mais se aproxima de uma sanção de ordem civil do que do deferimento de
alimentos pelo caráter de necessidade contemplado no artigo 400 do Código
Civil. Conclui o Professor Eduardo de Oliveira Leite que atribuições de tais
valores só podem conduzir ao parasitismo e à ergofobia.43
Quando é o filho que está no pólo ativo de uma ação de alimentos,
considerando que os interesses da criança se sobrepõem de forma absoluta
aos interesses dos demais, o sistema jurídico, de uma forma geral, e o
Judiciário, de forma especial, põem-se em alerta para a proteção dos direitos
da criança, preponderantemente. Não é outro o ensinamento do Estatuto
da Criança e do Adolescente,44 que determina em seu artigo 4•o que é dever

41 “Alimentos. Adequação do quantum. Os alimentos devem assegurar o


sustento da filha
atendendo-lhe as suas efetivas necessidades, dentro das possibilidades do pai,
observadas as
condições sócio-econômicas deste. Não se pode ignorar que filho não é sócio do
pai, nem a mãe é
sócio da filha e que compete a ambos os pais o dever de garantir o sustento da
prole, não sendo
dado à mãe, por osmose, usufruir da pensão alimentícia. Recurso provido em
parte” (sic). (7.’ Cám.
Cív. TJRS, AC 598 523 207, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves,
j. 24.03.1999.)
42 LEITE, Eduardo de Oliveira. O quantum da pensão alimentícia, lo:
COUTO, Sérgio (Coord.
Científico). Nova realidade do direito de família, p. 16-17, t. 2.

43 ldem.
44 Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, denominada de Estatuto da Criança e
do Adolescente —
ECA.

210

PENSÃO ALIMENTICIA ENTRE CÔNJUGES E O CONCEITO DE NECESSIDADE


da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público
assegurar a efetivação dos direitos da criança e do adolescente. E visando a
proteger o menor, que aparentemente é o autor, pode ocorrer que o sistema
jurídico, como um todo, seja induzido a erro, ludibriado pela pessoa que
exerce a representatividade do filho, mas não o faz de forma adequada.
A mulher vale-se de sua histórica posição de inferioridade, traz à
tona o jugo que se perpetuou durante séculos, e, como que para se libertar,
como que para vindicar os direitos que anteriormente a história e o Direito
lhe negaram, ultrapassa os limites do justo, do moral e do legal. Excede o
exercício de sua legítima defesa, assumindo posição de ataque.
Questiona-se até onde estão postas as verdadeiras necessidades da
mulher que pretende alimentos; em que consiste a necessidade alegada;
como este termo vago pode ser determinado; e onde estão os limites do
direito da representante do filho.45
A interpretação sistemática do Direito pode auxiliar numa adequada
e contemporânea conceituação de necessidade, conforme se verá a seguir.
1k

8 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

De acordo com Ingo Sarlet

temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrín-


seca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do
mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comu-
nidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e
deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo
e qualquer ato de cunho degradante e desumano,comovenham
a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida
saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e
co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em
comunhão com os demais seres humanos.”46

45 O abuso do direito na pretensão de alimentos deduzida em juízo pela


representante do menor

merece indubitavelmente um estudo detalhado e aprofundado, o que o presente


trabalho não
comporta.
46 SARLET, logo Wolfgaog. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
Constituição

Federal de 1988, p. 60.

211

MARIA ARACY MENEZES DA COSTA

A dignidade da pessoa humana deve ser preservada tanto por ela


como por terceiros. O ser humano, dotado de um valor próprio, intrínse-
co, não pode ser transformado em objeto ou instrumento, nem por ele
próprio. Na concepção de Kant acolhida por Ingo Sarlet, a pessoa é vista
como um fim, e não como um meio, e portanto não pode ser coisificada
ou instrumentalizada.47
E difícil conceituar a dignidade da pessoa humana, mas se torna fácil
constatar quando essa dignidade é atacada, agredida, tornando-se possível
identificar melhor sua ausência do que a sua presença. A dignidade se
identifica com o valor próprio que identifica o ser humano como tal.48
A dignidade como qualidade intrínseca da pessoa humana é
irrenunciável e inalienável.49 Assim, quando a mulher que busca alimen-
tos tem condições de prover o seu próprio sustento e prefere ficar sendo
mantida economicamente por ex—marido, como se fosse inferior a ele em
condições de prover a sua mantença, ela está renunciando à sua própria
dignidade, trocando-a por dinheiro.5~~ Prefere suplicar em juízo, atestando
uma fictícia inferioridade. Insiste nessa inferioridade, cria situações para
sustentar essa idéia. Submete-se à humilhação de esmolar. Sem necessi-
tar. A pessoa humana deve se portar de forma digna, inclusive consigo
mesma, embora nem todos o façam. O comportamento contrário a essa
dignidade não exclui seu agente de seu reconhecimento como pessoa e da
igualdade em dignidade humana.51
No entanto, a dignidade da pessoa humana é atingida sempre que ela
é tratado como objeto, seja pelos outros ou por ela mesma. Quando a
dignidade é violada, cumpre ao Estado, com seu poder de policia, intervir e
preservar a dignidade atingida, violada. Mesmo que essa dignidade tenha
sido ferida pelo próprio sujeito de direito.52 O Estado, com seu poder de

47 Ibidem, p. 30, 32, 35.


48 Ibidem, p. 39.
49 Ibidem, p. 40-41.
50 Na concepção dc Rosana Fachin, “(...) há avanços e recuos no
reconhecimento real e efetivo da
dignidade da condição feminina. O debate sobre a pretensão de ser pcssoalmente
pensionada
sem uma necessidade real e a discussão acerca da manutenção do nome pela mulher
casada,
após a separação, são exemplos de contradições encontráveis nas lides forenses a
respeito.” Em
busca da família do novo milénio, p. 133.
51 SARLET, logo Wolfgang. Dignidade..., cit., p. 42.
52 Narra Ingo Sarlet que o Conselho Estadual da França acolheu decisão do
prefeito da comunidade
de Morgaog-sur-Orge em determinar interdição de casa de diversão que promovia
espetáculos

212

PENSÃO ALIMENTÍCIA ENTRE CÕNJUGES E O CONCEITO DE NECESSIDADE

policia, através de um dos seus poderes, no caso o Judiciário, deve se


manifestar expressamente em face da coisificação da mulher na situação de
pedido de alimentos. Utilizar o filho como instrumento de vingança ou
comodidade, submeter-se a uma vexatória e inexistente situação de inferio-
ridade são manifestações explicitas de auto-agressão à dignidade pessoal. A
forma mais eficaz de participação do Estado consiste em estimular a mulher
a desenvolver a sua própria dignidade através do trabalho, que é dignifi-
cante. O exercício de atividade laborativa impede o ócio e a comodidade.
Também sob o prisma objetivo, em face da dignidade de terceiro
atingida, ou seja, do demandado na desnecessária e fraudulenta ação de
alimentos, deve o Estado intervir. O homem, após o fim do casamento
ou da união estável, não pode levar sobre seus ombros a ex-mulher,
desnecessariamente, como um peso, pelo resto de seus dias, de forma a
prejudicar seu próprio crescimento, vida e lazer, impedindo o desenvolvi-
mento de sua própria vida.
Ao mesmo tempo em que o princípio da dignidade da pessoa impõe
limites à atuação estatal, objetivando impedir que o poder público venha
1k
a violar a dignidade pessoal, também implica que o Estado deverá ter
como meta permanente proteção, promoção e realização concreta de uma
vida com dignidade para todos. A dignidade da pessoa humana constitui
não apenas a garantia negativa de que a pessoa não será objeto de ofensas
ou humilhações, mas também a garantia positiva do pleno desenvolvi-
mento da personalidade de cada indivíduo.53
O que pode ser apontado como o ápice do fundamento doutrinário
relativamente à proteção da mulher contra ela mesma está expresso de
forma explicita na obra de Ingo Sanei, verbis.~

“Assim, percebe-se (...) que o dever de proteção imposto — e


aqui estamos a nos referir especialmente ao poder público —
nos quais anões eram lançados como objetos de um lado ao outro do
estabelecimento. Vencia

o freqüentador que conseguisse arremessar mais longe um anão. O Conselho


considerou
correta a decisão do prefeito em suspender os espetáculos e reformou a decisão
do Tribunal
Administrativo que havia anulado a decisão do prefeito, pois considerou ofensa à
dignidade da
pessoa humana — elemento integrante da ordem pública — os “campeonatos de
anões”, sendo
irrelevante o fato de que os anões participavam voluntariamente do espetáculo,
pois a
dignidade é um direito irrenunciável e não suscetível a comércio. SARLET, logo
Wolfgang.
Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de 1988, p.
106.
53 SARLET, Jogo Wolfgang. Dignidade..., eit., p. 108.

213

MARIA ARACY MENEZES DA COSTA

inclui até mesmo a proteção da pessoa contra si mesma, de tal


sorte que o Estado encontra-se autorizado e obrigado a intervir
em face de atos de pessoas que, mesmo voluntariamente, aten-
tem contra sua própria dignidade”.54

Poderá ocorrer conflito direto entre dignidades de pessoas diver-


sas, como o conflito entre as dignidades de quem pede os alimentos e a de
quem os alcança. Torna-se, então, imperioso hierarquizar axiologicamen-
te. A interpretação sistemática do Direito, conforme ensina Juane~ Fneitas,
vem em auxílio de uma adequada e atualizada conceituação de necessida-
de, conforme se verá a seguir.

9 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO

O juiz não é neutro: o juiz que não tem valores e diz que o seu
julgamento é neutro, na verdade, está assumindo valores de conservação.
O juiz sempre tem valores. Toda sentença é marcada por valores. A
tradição do pensamento jurídico ocidental está edificada sobre princípios
da lógica formal, em que as normas são abstrações da vida social, e a
aplicação da norma consiste em estabelecer a relação lógico-substantiva
entre os conceitos contidos na norma e os fatos.55 O Direito é também e
principalmente decisão axiológica ou escolha.56
A lógica formal, silogística e aparentemente sistêmica parte de uma
verdade sem questionar sua veracidade, sua origem e suas conseqüências, e
não dá conta do fenômeno jurídico em toda sua complexidade e exten-
são. Quando uma mulher requer alimentos alegando “necessidade”, pode
ocorrer que realmente ela não tenha dinheiro para pagar o aluguel, nem
para abastecer seu carro, nem para ir ao supermercado. No entanto, ela
poderia estar trabalhando. Mas não quer trabalhar. Prefere pedir ao ex-
marido. A constatação, aqui, é de que a mulher realmente tem a “falta”
de alimentos e, portanto, objetivamente, extrinsecamente (sem questio-
nar o aspecto intrínseco) se constata a sua “necessidade”. No momento

54 Jbidem, p. lii.

55 PORTANOVA, Rui. Motivaçdes ideologicas da sentença, p. 72-74.

56 FREITAS, Juarez. Interpretação sistemática do direito, p. 25.

214

PENSÃO ALIMENTÍCIA ENTRE CÓNJUGES E O CONCEITO DE NECESSIDADE

em que for analisada a situação sob o enfoque intrínseco, chegar-se-á


“causa” da falta dos alimentos, o que houve para que ocorresse o
resultado “falta de alimentos”: essa mulher, que nada tem para viver, não
se dispôs a trabalhar para se sustentar, embora com aptidão para o
trabalho.
O intérprete jurídico deve fazer as vezes de catalisador dos melho-
res princípios e valores de uma sociedade num dado momento histórico.57
Urge uma postura diferenciada para a solução dos novos conflitos de uma
sociedade em constante mutação.58
Juarez Freitas coroou sua obra A inteipretação sistemática do Direito
com dez regras básicas de hermenêutica jurídica, passíveis de aplicação
em todos os ramos do sistema objetivo.59 Interpretar é: sistematizar;
hierarquizar; unificar; fundamentar; manejar o metacritério da hierarqui-
zação axiológica; sintetizar; relacionar; bem diagnosticar; concretizar a
máxima justiça possível; aperfeiçoar.

1k

‘ml
10 A HERMENEUTICA DO ART. 400 DO CÓDIGO CIVIL:
A NECESSIDADE, A APTIDÃO PARA O TRABALHO
E A DISPONIBILIDADE PARA O TRABALHO

Tanto o Poder Judiciário como os doutrinadores mantiveram, por


muitos anos, uma posição paternalista com relação às mulheres. De
forma generalizada, as viam como vítimas, exploradas moral e material-
mente pelos ex-maridos ou ex-companheiros. Dessa forma, tornou-se
cômodo para elas aceitarem o rótulo de exploradas e tirarem partido
dessa histórica situação de exploração. Por muitas décadas a mulher foi
considerada a “colaboradora” do marido, com funções domésticas subal-
ternas, e realmente discriminada e tratada como ser inferior. Ainda hoje
uma parcela representativa do gênero feminino se vale desse estigma que
acompanhou a mulher por séculos para dele auferir vantagens.

57 Ibidem, p. 54, 138.

58 “A complexidade das relações sociais, em geral, e das familiares, em


especial, confere novos

desafios ao Direito e, de conseqüência, à jurisprudência: os novos conflitos


reclamam posturas
diferenciadas.” FACHIN, Rosana Amara Girardi. Em bzesca da família do novo
milénio, p. 56.
59 FREITAS, Juarez. Interpretação..., cit., p. 142-144.

215

MARIA ARACY MENEZES DA COSTA

Entre as mulheres, há a que não trabalhava durante o casamento ou


união estável e, ao se separar, pede alimentos, mas continua a não traba-
lhar. Alega necessidade, o que objetivamente se constitui em uma verdade.
No entanto, não exerce atividade remunerada porque não está disposta a
despender forças e energias, afinal: o marido lhe “deve” isso — expressão
muito utilizada por mulheres magoadas e rancorosas, quando proposta
conciliação em litígio de alimentos e ela não quer transigir.
No entanto, a “dívida” alegada não é econômica, mas moral. A
mulher busca compensação pecuniária pelo tempo que ficou ao lado do
marido, “perdendo sua juventude”, conforme alega com freqüência. No
momento em que se separa e requer alimentos, ela esquece que sua per-
manência no estado civil de casada foi por opção própria. Era-lhe conve-
niente permanecer casada, sem trabalhar. Manteve a situação dessa
forma porque para ela era cômodo, mesmo que posteriormente afirme
que sua vida anterior se constituía em verdadeiro suplicio.
Existem, também, as mulheres que permaneceram casadas ou em
união estável por um curto período de tempo e durante a união usufruí-
ram de um elevado padrão de vida que não tinham antes. Terminada a
relação, insistem em continuar na “posse do estado de casada”. Não
querem abrir mão do padrão de vida que o casamento lhes possibilitou.
Pretendem ser mantidas nesse padrão, não por modo próprio, mas sendo
sustentadas pelos ex-maridos ou ex-companheiros. Esquecem-se que
antes do casamento sua vida não comportava o elevado padrão que agora
reivindicam.60
Sob a ótica da hermenêutica processual, houve efetiva alteração do
binômio necessidade-possibilidade. Atualmente, existem condições de uma
mulher sã buscar mercado de trabalho, e se não busca é porque não lhe
convém, pois é mais cômodo continuar com a fonte garantida de renda,

60 Nesse sentido, decisão relativa a uma jovem cujo casamento durou um ano e
dois meses:

“Alimentos provisórios. Separação judicial. Mulher jovem e apta para o trabalho.


Matrimônio
de curta duração. Atenta à igualdade constitucional entre homem e mulher,
proclamada no art.
226 § 5. da Carta Magna, só se admite a concessão de alimentos provisionais
quando
provado, sem dúvida, a necessidade da postulante. Tratando-se a agravante dc uma
jovem
de 26 anos, em pleno gozo de suas faculdades físicas e mentais, não faz jus a
alimentos
provisórios, mormente quando, como in casu, o enlace matrimonial teve curta
duração.
Desproveram. Unânime. (AI 700 008 058 38, 7.’ CC, TJRS, Rei. Des. Luiz Felipe
Brasil
Santos, j. 12.04.2000).

216

PENSÃO ALIMENTÍCIA ENTRE CÔNJUGES E O CONCEITO DE NECESSIDADE

tendo seu ex-marido como provedor adinfinitum. Uma mulher jovem, sã e


qualificada profissionalmente tem aptidão para o trabalho, mas pode não
ter disponibilidade para o trabalho.61
O Código Civil alemão tem previsão legal minuciosa relativamente
ao direito à manutenção dos alimentos após o divórcio, reafirmando os
pressupostos fundamentais da pensão alimentícia. Do art. 1.569 ao 1.586,
o BGB62 ressalta a efetiva necessidade do credor e a impossibilidade de
prover sua subsistência por meio da capacidade de seu trabalho.63 Na
Alemanha, a idade, a formação, a saúde e as aptidões do credor, a reinserção
do cônjuge no mercado de trabalho, as condições de vida do casal são
critérios que cuidadosamente devem ser considerados na análise de cada
caso levado ao judiciário. “O exemplo alemão (...) visualiza (...) a auto-
nomia de ambos os cônjuges. Credor e devedor, embora, inicialmente,
vinculados à obrigação alimentar, tendem, a curto ou médio prazo, a 1 ~
soluções definitivas, geradoras da independência e autonomia fundamen-
tais à dignidade humana.”64
No Direito brasileiro, são comuns as obrigações infindáveis de 1k
alimentos, que tendem a fomentar a ociosidade e injustificável parasitismo.
No entanto, os tribunais estão se conscientizando da situação de dependên-
cia que certas mulheres pretendem com relação a seus ex-maridos,65 alte-
rando a tradicional interpretação do conceito de necessidade. Enquanto a
mulher se mantiver inerte, sem buscar meio próprio de sustento, estará, em

61 “Alimentos temporários. Mulher jovem e apta para o trabalho. União


conjugal por Curto lapso
temporal. Não prospera a petição de verba alimentar temporária quando já
requerida há mais
de um ano, tempo suficiente para que a apelante já houvesse superado a “nova
situação”
vivenciada com a separação. Descabe o pcnsionamento pelo marido que com a
requerente
viveu junto por curto lapso temporal, até porque esta conta vinte anos de idade
e se encontra
apta para o trabalho. Apelo improvido, por unanimidade. (Ap. Cív. 598084911,
TJRS, Rcl.
Des. Breno Moreira Mussi, j. 20.08.1998).
62 BGB — Bürgerliches Gcsctzbuch: Código Civil alemão.
63 LEITE, Eduardo dc Oliveira. O quantum da pensão alimentícia. lo:
CC)UTO, Sérgio (Cootd.
Científico). Nora realidade do direito de família: doutrina, jurisprudência,
visão interdisciplinar e
noticiário, p. 17, t. 2.
64 Ibidem, p. 18.
65 A esse respeito, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou: Alimentos.
Casal separado de fato.
Mulher apta para o trabalho, com 34 anos e saudável. Imoralidade da pretensão.”
(TJ — SP, Ac.
Unãnime, da 10.’ Cãm. de Dir. Privado, de 27.05.1997 — Ap. 033.672.4/7 — Rei.
Des.
Marcondcs Machado. lo: ADV — Advocada Dinâmica, Jmispmdéncia, Informativo
Semanal 3 5/97,
p. 556).

217

MARIA ARACY MENEZES DA COSTA

tese, sempre “necessitando” que outra pessoa lhe alcance o sustento. Essa
necessidade, no entanto, quando decorre da inércia da mulher, de sua própria
opção por não trabalhar, ou seja, quando é conseqüência de um comportamento
omissivo, por acomodação à situação de dependente, não pode mais ser
considerado uma necessidade. Os tribunais não mais cedem facilmente às
argumentações sentimentais das mulheres ociosas.66
Muitas vezes os alimentos pleiteados são convenientes para a mulher,
mas não necessários. E o que ocorre quando ela trabalha, seus ganhos são
mais do que necessários para o seu sustento, e ainda assim ela pretende
que o ex-marido lhe alcance uma prestação periódica de alimentos.67’ 68

11 CONCLUSÃO

Compõem hoje a sociedade tanto mulheres emancipadas como


mulheres submissas e dependentes de seus maridos ou companheiros.
Existem mulheres que, embora reúnam todos os pré-requisitos objetivos,
não querem trabalhar, porque é mais cômodo ficar recebendo “pensão”
do ex-marido ou ex-companheiro e dele depender economicamente. E há
as que não querem depender dos ex-maridos, mas não têm condições de
exercer uma atividade remunerada.
Distinguem-se, na atualidade, três grupos do gênero feminino com
características preponderantes e perfil comum:

66 “Alimentos. Majoração para a mulher. Casal divorciado. Descabida se


mostra a alegação de
doença e de impossibilidade de competir no mercado de trabalho, quando a mulher
permane-
ceu ociosa após a separação, já de longa data, sem buscar qualquer atividade
remunerada,
sendo-lhe cômodo viver às custas de ex-marido.(...). Recurso desprovido AC 70
000 030 353,
TJRS, Rei. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, j. 08.09.1999.
67 Pretensões dessa natureza não têm encontrado mais guarida no
Judiciário, conforme se
evidencia na decisão: “Exoneração de alimentos. Ex-mulher apta para o trabalho,
que sempre
trabalhou, com grande conceito profissional e que mantêm vida concubinária com
outro
homem não pode pretender a eternização do vinculo com o ex-marido. Os alimentos
são
convenientes para ela, mas não necessários. Recurso desprovido. Ap. Civ. 597 064
609, TJRS,
7.’ Câm. Civ., Rei. Dr. Sérgio Fernando de Vasconeellos Chaves,Juiz de Alçada em
Regime de
substituição).

68 “Nada justifica a obrigação alimentária que não teria, no caso em


tela, a finalidade de
atender uma necessidade, mas uma conveniência, já que a agravante não depende da
eventual pensão para prover o próprio sustento, destinando-se os alimentos para
agasalhar
o supérfluo.” AI 599 204 443, TJRS 7.’ Câm. Civ., Rei. Des. Sérgio Fernando de
Vasconcelios
Chaves, j. 02.06.1999.

218

PENSÃO ALIMENTÍCIA ENTRE CÕN.JUGES E O CONCEITO DE NECESSIDADE


1~)A mulher remanescente da fase da submissão: Tem mais idade. Seu
comportamento e pensamento correspondem às gerações de
até meados do século XX, antes do Estatuto da Mulher Casa-
da (1962) e da Lei do Divórcio (1977). É submissa e não faz
qualquer questionamento a respeito de sua submissão, acei-
tando-a como parte de sua própria essência feminina. Não
exerce atividade fora do lar, dependeu sempre economica-
mente do homem: primeiro do pai, depois do marido e, na
velhice, do filho. Sua educação foi moldada dessa forma,
assumiu o comportamento de sua mãe. Cultiva as artes do-
mésticas; se pertencente a uma classe economicamente privi-
legiada, toca instrumento musical, preferencialmente piano.
Manifesta submissão inquestionável ao gênero masculino,
embora não se iguale em comportamento às mulheres afegãs. 1 ~
2~)A mulher da fase da conscienti~ação: Não é nem muito jovem nem
idosa. E a mulher que vivenciou a transição dos costumes, as
modificações do Estatuto da Mulher Casada, a Constituição de 1k
1988. Adquiriu consciência de seus valores, de sua potencia-
lidade e de seus direitos, passou a lutar por eles, pela liberdade
‘Nu
sexual, pela queda dos tabus; disputa lugar nas Universidades, 4
~(
nas empresas, ocupa postos de chefia e posições de destaque;
concorre a cargos eletivos. No entanto, ainda está ligada à
época cronológica na qual teve sua origem; ainda tem tabus a
serem enfrentados. A ambivalência se faz presente em sua vida.
Tem plenas condições de se firmar profissionalmente por seus
próprios méritos, e sua capacidade já foi desenvolvida em
muitos cursos e treinamentos. No entanto, acumulou títulos e
diplomas, mas nem sempre chegou a exercer a profissão ou a
exerceu somente até se casar. Ao se separar, precisará de um
certo tempo para se inserir no mercado de trabalho. Necessita
de auxílio provisório do marido ou companheiro para tomar seu
próprio rumo na vida, para conseguir “andar com as próprias
pernas”. Poderá ou não consegui-lo. Se o auxilio do marido for
perene, ela não se sentirá sequer motivada para buscar sua auto-
suficiência econômica. No entanto, se os alimentos que receber
forem provisórios e progressivo-decrescentes, ela, aos poucos,
será induzida positivamente a se manter por conta própria.
219

MARIA ARACY MENEZES DA COSTA

3~) A mulher da fase da igualdade Jovem. Mulher pós-constituição,


atualizada, consciente, instruída, que pertence a uma camada
da população culturalmente esclarecida e está inserida numa
sociedade competitiva na qual disputa o mercado de trabalho
em situação de igualdade com o homem. Em muitos casos,
supera o homem em capacidade e desempenho. Tem a seu alcan-
ce os meios necessários para sua própria sobrevivência,sem
necessitar ser mantida por marido ou companheiro. Não neces-
sita de provedor. Ela tem condições de se auto-sustentar e, se
necessário, ainda garantir a manutenção do marido ou compa-
nheiro. Não precisa depender do homem. No entanto, pode
ocorrer que mesmo tendo aptidão, não tenha disponibilidade para
disputar o mercado de trabalho. Nesse caso, a tendência será a
de acomodar-se a uma situação de dependência parasitária. Por
isso deve ser estimulada a buscar sua emancipação econômica.

Em nenhum momento as diversas situações postas devem ser


tratadas de forma idêntica, pois os contextos são totalmente diversos.
Cada uma dessas mulheres é diferente da outra, suas realidades e suas
circunstâncias são diversas; elas sintetizam os litígios que hoje são leva-
dos ao Judiciário. Torna-se necessária uma interpretação sistemática do
direito de cada uma delas, preponderantemente hierarquizando, funda-
mentando, manejando o metacritério da hierarquização axiológica, diag-
nosticando, para concretizar a máxima justiça possível.
Cada tipo de mulher apresentado corresponde a uma situação e nos
remete a visões diferentes do mundo e da sociedade. Contudo, não se
trata de uma divisão estanque ou cronológica. As peculiaridades e o
contexto social, econômico e cultural em que cada mulher está inserida
contribuem para um tratamento jurídico diferenciado. Assim, pode ocor-
rer de uma jovem, que por sua idade estaria inserida no terceiro grupo,
apresentar mentalidade, comportamento e perfil que estejam mais de
acordo com as características do primeiro grupo. Ou de uma mulher na
faixa dos trinta anos ter convicção de que deve ficar em casa, prestando
pessoalmente os cuidados necessários aos filhos e se incumbindo das
tarefas domésticas, enquanto o marido, “provedor e chefe”, vai buscar o
sustento da família. Sobrevindo uma separação, por certo ela enfrentará
grandes dificuldades para se inserir no mercado de trabalho. Uma mulher

220

PENSÃO ALIMENTÍCIA ENTRE CÓNJUGES E O CONCEITO DE NECESSIDADE

na faixa dos cinqüenta anos, que em princípio pertenceria à primeira fase,


pode evidenciar perfil que mais se identifique com a terceira fase, a da
igualdade, devido às características da terceira que preponderam em seu
comportamento. Ela teria sido pioneira nas conquistas femininas há
décadas, quando diferentemente de suas contemporâneas, já trabalhava,
estudava e provia seu próprio sustento. Findo o casamento, não encon-
trará dificuldades em se manter sozinha, apesar da idade, pois tem profis-
são definida, sempre trabalhou — ao contrário da outra, que apesar de seus
trinta anos se vê sozinha, sem patrimônio, sem profissão e sem emprego.
Entre as duas, por certo, será a mais jovem que recorrerá ao Judiciário
para buscar alimentos do ex-marido.
As mulheres de faixa etária mais avançada, ao se separar ou divor-
ciar, pelas circunstâncias, são as que, em tese, necessitarão do auxílio
econômico dos ex-maridos, que deverão prover o sustento delas, talvez
pelo resto da vida, pois na faixa dos cinqüenta anos, sem nenhuma forma-
ção profissional, sem nunca terem trabalhado, torna-se muito mais difícil
iniciar uma nova vida, mesmo tendo boa vontade e disponibilidade para 1k
o trabalho.
A mulher relativamente jovem, com formação profissional apenas IØ
-
teórica, pois não trabalhava durante o casamento, deverá receber auxílio
do ex-marido pelo menos nos primeiros tempos após a separação, para
reunir condições de se inserir no mercado de trabalho, pois sua formação
profissional já está defasada. Quando tinha condições de aplicar de imedia-
to seus conhecimentos profissionais, o casamento e os filhos foram mais
importantes naquele momento da vida familiar, e a decisão de não traba-
lhar, naquela época, foi tomada em conjunto com o marido. Separada,
necessita primeiramente se atualizar, para então enfrentar a competição
do mercado de trabalho, que já está difícil para quem está preparado.
A jovem, recém-formada, com profissão em alta e boas ofertas de
trabalho, pode desde logo dispensar o auxílio do ex-marido.
Inseridas nas diversas categorias, existem as mulheres “parasitas”,
que se valem do argumento de que têm necessidade de alimentos e evocam
a seu favor o texto da lei que dispõe que os alimentos devem ser concedi-
dos na proporção da necessidade de quem pede e da possibilidade de
quem alcança.
Se não é justo conceder alimentos a uma mulher cuja “necessida-
de” decorre da falta de vontade — disponibilidade — para trabalhar, também

221

MARIA ARACY MENEZES DA COSTA

não é justo negar alimentos a uma mulher que, mesmo tendo profissão
própria e sendo independente, encontra-se impossibilitada momentanea-
mente de exercer suas atividades por motivos psíquicos ou físicos.
Ocorre, no entanto, que, justamente pela consciência da situação de
parasitismo de algumas mulheres, e se dando conta de que são utilizados
meios inadequados para buscar pretensos direitos, decisões há que exce-
dem esse cuidado e tendem ao extremo oposto e indistintamente negam
direitos alimentares a mulheres que efetivamente deles necessita. Assim,
não é reconhecido o direito a alimentos para uma profissional liberal que
circunstancialmente não pode exercer suas atividades por problemas pes-
soais ocorridos — situação eventual. A justificativa para negar o direito a
alimentos é a igualdade entre os gêneros: a mulher tem profissão, exerce
atividade remunerada (principalmente atividade liberal autônoma), é
emancipada e deve prover o seu sustento. No entanto, nessa negativa, é
desconsiderado o fato de que a emancipação e a capacidade para o trabalho
existem, sim, para aquela mulher, mas em situação de normalidade, e que a
situação posta no caso sub judice é eventual, está fora da normalidade do
quotidiano, constituindo-se em uma exceção na vida daquela mulher.
Dessa forma, em no me do princípio da igualdade, a mulher está sendo
tratada, não raro, de forma equivocada.
Cada situação requer um tratamento diferenciado. Cabe ao intér-
prete jurídico priorizar os valores determinantes do contexto de cada uma
dessas mulheres, observar os fatos que devem ser levados em considera-
ção e efetuar um diagnóstico seguro, de modo a concretizar a máxima
justiça possível.
A efetiva necessidade de cada uma dessas mulheres deve ser posta
com clareza, à luz de um conceito atualizado. Há que se distinguir necessi da-
de decorrente da impossibilidade para o trabalho da comodidade que vai objetiva-
mente gerar a necessidade de ser sustentada.
Se a necessidade é decorrência de desinteresse, da inércia, da
comodidade
ela se descaracteriza completamente e não mais pode ser recepcionada
como tal.
A hermenêutica jurídica, pela interpretação sistemática do Direito,
possibilita os meios adequados para uma interpretação justa do conceito
de necessidade que ultrapassa os limites do objetivo e penetra na sub jetivi-
dade de cada situação, individualmente.

222

PENSÃO ALIMENTÍCIA ENTRE CÔN.JUGES E O CONCEITO DE NECESSIDADE

O tratamento a ser conferido pelo Direito à mulher deve levar em


conta a efetiva situação em que ela se encontra, atendendo às pecu]iarida-
des de cada situação, independentemente da fase cronológica apontada.
A aplicação do princípio da igualdade não impede que se reconhe-
çam as desigualdades existentes. A igualdade legal não se identifica com
a igualdade real. As situações postas se abstraem do tempo: os novos
princípios e as novas regras convivem com os princípios mais conserva-
dores, de acordo com o contexto sociocultural em que estejam inseridas
as mulheres protagonistas do litígio judicial.

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225

PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA DE ALIMENTOS

Álvaro ViIIaça Azevedo


Professor Titular da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo.
Diretor da Faculdade de Direito da Fundação Armando
Álvares Penteado — FAAP.
Doutor em Direito.
I~t

_________________ Sumário _________________

1. Legislação. 2. Conceito e natureza jurídica. 3. Alimentos


provisionais e definitivos-inadimplemento. 4. Verbas estra- 1k
1 lO’
nhas ao débito alimentar. 5. Prisão reiterada. 6. Prazo da
prisão. 7. Lugar da prisão. 8. Prisão civil de terceiro. 9. Refe-
rências bibliográficas.
1 LEGISLAÇÃO

Com o apoio da exceção contida no inciso 67 do art. 5•o da


Constituição de 1988, a prisão civil por dívida alimentar, ao lado da
relativa ao depositário infiel, permanece, iamentavelmente, a justificar
outros textos infraconstitucionais, como os arts. 18 e 19 da Lei de Alimen-
tos, 5.478, de 25.07.1968, e o art. 733 do atual CPC, de 1973.
No tocante à Lei de Alimentos, cujos os artigos adiante analisados
nos interessam diretamente, porque ligados ao tema da prisão civil, estabe-
leceu ela modos especiais, que devem ser cumpridos, a possibilitarem o
pagamento da pensão devida, até o decreto da prisão do alimentante.
Assim, no art. 16, estabelece o legislador dessa lei alimentária que:
“Na execução da sentença ou do acordo nas ações de alimentos, será
observado o disposto no art. 734 e seu parágrafo único do Código de
Processo Civil” (já com a redação dada pelo art. 42 da Lei 6.014, de
27. 12.1973).

227

ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO

Ao seu turno, o art. 734 e seu parágrafo único, do Estatuto Proces-


sual Civil, determinam que o valor da prestação alimentícia seja descon-
tado em folha de pagamento, quando o devedor for funcionário público,
militar, diretor ou gerente de empresa, bem como empregado sujeito à
legislação do trabalho.
Referindo-se a esse modo executório, declara João Claudino de
Oliveira e Cru~1 que “A consignação em folha de pagamento é, sem
dúvida, a melhor forma de execução da obrigação alimentar, como a
experiência demonstra. Como determina a lei [determinava, à época; e,
hoje, do mesmo modo], sempre que for possível, a execução deverá ser
feita mediante consignação em folha de pagamento, como acontece
quando o executado é servidor público, civil ou militar, ou pertence a
profissão regulamentada pela legislação do trabalho”.
Basta, portanto, entendermos que o devedor dos alimentos receba
seu salário, por meio de folha de pagamento, para que esse desconto se
torne viável e eficaz.
Se o devedor dos alimentos, entretanto, tiver rendimentos, inclusi-
ve por recebimento de aluguéis, não sendo possível a efetivação do aludido
modo de execução, o juiz ordenará que seja pago ao alimentando, direta-
mente, o valor correspondente à pensão que lhe for devida, determinan-
do, para tanto, expedição de mandado ao devedor do alimentante, para
que pague ao alimentando o que puder retirar dessas mesmas rendas
(art. 17 da Lei Alimentária).
Se, com todas essas hipóteses executivas, não for possível o paga-
mento do débito alimentar, autoriza o art. 18 da Lei de Alimentos que o
credor requeira a execução da sentença nos moldes dos arts. 732, 733 e
735 do Código de Processo Civil (conforme a redação dada pelo art. 4~o
da Lei 6.014/73, antes citada).
Isso quer dizer que a execução da prestação alimentícia deve seguir
os parâmetros traçados nessa lei processual, iniciando-se com a penhora.
Se esta for em dinheiro, o exeqüente pode levantar, mensalmente, o valor
de seu crédito alimentar. Depois da fixação dos alimentos provisionais, o
devedor deverá ser citado, para pagar, em três dias, o débito alimentar ou
apresentar justificativa de sua impossibilidade de pagá-lo, pois, não
havendo esse pagamento ou escusa, o juiz decretará a prisão do devedor.
1 CRUZ, João Claudino de Oliveira e. A nova ação de alimentas. 2. ed. Rio de
Janeiro/São Paulo:

Forense, 1969, p. 64, n. 18; e o julgado. RT491/81.

228

PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA DE ALIMENTOS

É certo que, se o devedor de alimentos, citado regularmente, para


pagá-los, nada alega, “revelando descaso”, resta inevitável o decreto de
prisão contra ele.2
Todavia, havendo justificação da impossibilidade de pagamento
pelo devedor, em estado de real dificuldade3 ou em fase de comprovação
dessa alegada impossibilidade4 ou tendo exercido o direito de escusar-se,
sem terem sido afastadas suas razões, descabe qualquer decreto de prisão.5
Se, entretanto, nada existe em estágio de evidenciação da impossi-
bilidade de pensionamento, essa matéria, sendo de mérito, não pode ser
simplesmente alegada, em sede de habeas corpus.6
Mero desemprego, sem a prova da impossibilidade de pagamento,
não tem sido considerado, sendo necessária a comprovação de ocorrên-
cia de força maior, estranha à vontade do devedor.7
Por outro lado, decidiram as Câmaras Conjuntas Criminais do TJSP,
12.12.1978, sendo relator o Des. Cunha Bueno,8 por votação unânime, que
“Estando a ação de alimentos em fase de execução e oferecendo 4k
o devedor bens à penhora, não pode ser decretada sua prisão ‘5
civil antes de decidir o juiz sobre aquela oferta. Isso porque a
prisão civil do alimentante relapso é exceção à regra de que não
haverá prisão civil por dívida, devendo, pois, a medida ter
aplicação restrita, obedecendo, na sua aplicação, a todas as
cautelas e formalidades legais”.

Devem, assim, ser exauridos todos os meios compulsivos, antes do


decreto de prisão, assentam inúmeros julgados.9
2 RT 515/348.
3 RT 443/413, 534/300, 536/273; RTJ 69/252, 82/697.
4 RT 591/116.
5 RT 443/413, 466/313, 476/325, 489/311, 541/367 e 462, 552/325, 554/66,
569/48,
597/367, 645/201; R]T]SP-L.€x 59/337, 61/380, 63/307, 99/289, 122/442;
RTJ 94/147,
122/117; JSTF-Lex 17/289, 21/295, 130/333; RSTJ 24/121.
6 RT 473/291, 491/294, 510/353, 520/349, 525/352; RTJ 79/877.
7 RT 490/287; RJTJSP-Lex 113/369.
8 RT 529/301. No mesmo sentido, e citado nesse julgamento o acórdão. RT
456/368.
9 RT 452/332, 454/325 e 337, 456/368, 468/297, 471/305, 473/295, 474/284,
477/114,
485/277, 489/295, 508/322, 516/285, 529/301, 534/307, 535/275, 544/348,
554/66,
229

ÃLVARO VILLAÇA AZEVEDO


Destaque-se, ainda, a decisão da 2.’ C~m. Civ. do TJSP, em 26.04.1988,
por maioria de votos, sendo relator o Des. Cé~ar Peluso,1” que reconheceu que
“Não se justifica a modalidade extrema da prisão civil do devedor de alimen-
tos que possui disponibilidades suscetíveis de arresto e penhora cuja
efetivação garante a satisfação imediata do credor. Tal modalidade coercitiva
só é cabível em caso de frustração de execução pelo devedor”. No mesmo
sentido, quando o alimentante age com má-fé e recalcitrância, sendo solvente.”
Muito presente, nesses mencionados julgados, a lição de YussefSaül
Cahali,’2 segundo a qual

“É certo que a jurisprudência, nas mais variadas circunstâncias


(concessão de habeas corpus, reforma da decisão que decreta a prisão,
ou manutenção da que a denega), vem se firmando no sentido de que
a medida coercitiva da prisão civil só deve ser decretada quando
esgotados todos os meios comuns da execução por quantia certa
contra devedor solvente, incluindo-se assim a possibilidade de ofere-
cimento à penhora de bens em garantia da divida: como medida
extrema somente seria adotada quando não houvesse outra possibili-
dade de receber o quantum devido pelo arresto de bens ou rendas,
apresentando-se, então, o constrangimento pessoal como única for-
ma capaz de produzir algum resultado proveitoso

2 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA

A prisão por débito alimentar não é pena, mas meio coercitivo de


execução para compelir o devedor ao pagamento da prestação de alimen-
562/67, 563/68, 576/219, 590/94; R]TJSP 11/405, 25/418 e 422, 32/221 e 240,
33/215,
36/245, 48/277, 56/291 e 305, 59/337, 60/323 e 318, 97/389, 114/467; RSTJ
24/166,
dentre muitos Outros.
10 RT 631/115. Em sentido contrário, acórdão. RT 670/132.
11 RT 535/275.
12 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. São Paulo: RT, 1984, p. 634. No
mesmo sentido,
OLIVEIRA, Eduardo Alberto de Moraes. A prisão civil na ação de alimentos. RT
514/20.
Contrário ao entendimento: GOMES, Luis Flávio. Prisão civil por dívida alimentar
(alguns
aspectos controvertidos). RT 582/10-11; AMORIM, Sebastião Luiz. A execução da
presta-
ção alimentícia e alimentos provisionais: Prisão do devedor. RT 558/28; PEREIRA,
Sérgio
Gischkow. Alimentos e prisão civil. Ajuns, Porto Alegre, v. 10/35; e julgados RT
490/277,
489/439; RJTJSP-Lex 36/245; dentre outros.

230

PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA DE ALIMENTOS

tos. Essa prisão não existe, portanto, para punir esse devedor, tanto que,
pagando-se o débito, a prisão será levantada.t3
Entendo que essa prisão tem seu pressuposto no débito alimentar
entre parentes, na relação familiar ex jure sanguinis.
Portanto, a prisão civil é meio coativo para um parente forçar o
recebimento do crédito alimentar do outro parente, nos limites estabele-
cidos na lei.
Se o art. 396 do Código Civil de 1916 autorizava que os parentes se
cobrem de alimentos, reciprocamente, os arts. 397 e 398, seguintes,
mencionavam os graus dessa responsabilidade alimentar, quando não
houvesse cumprimento espontâneo.
Ao seu turno, o novo Código Civil, por seu art. 1.694, alargou,
bastante, a abrangência desse antigo art. 396, reconhecendo o direito
recíproco a alimentos entre os parentes ou os cônjuges ou os conviventes.
Assim, o direito a alimentos é recíproco entre pais e filhos e extensivo a
todos os ascendentes, recaindo o dever nos mais próximos em grau, uns em
falta de outros; nao havendo ascendentes, o dever alimentar cabera aos
descendentes, guardada a ordem sucessória; na falta destes, aos irmãos,
bilaterais ou unilaterais (arts. 1.696 e 1.697 do novo Código).
Resta evidente que só as aludidas pessoas, e do mesmo tronco
ancestral, podiam, pelo Código de 1916, pedir alimentos, umas das
outras. Pelo novo Código, incluem-se, também, os cônjuges e os convi-
ventes que não são parentes.’4
O parente necessitado de alimentos poderá reclamá-los, portanto,
em primeiro lugar, de seus pais; na falta destes, de seus avós paternos ou
maternos; na falta destes, dos bisavós até esgotar a linha; na falta de
ascendentes, dos filhos, netos, bisnetos, sucessivamente; faltando os
descendentes, dos colaterais de segundo grau, irmãos germanos (bilate-
rais) e unilaterais. Assim, tios não devem alimentos a sobrinhos, nem
primos se devem, reciprocamente, alimentos.
Por outro lado, os afins, não sendo parentes, também, não podem
pedir, reciprocamente, alimentos.’5

13 CRUZ, João Claudino de Oliveira e. A nova ação de alimentos, cit., p. 68, n.


20.

14 Assim, não há que decretar-se, por exemplo, prisão civil por descumprimento
de dever

alimentar decorrentes de responsabilidade civil por ato ilícito, conforme


julgado, nesse
sentido. RT 646/124.
15 RT 468/175, 418/180.

231

ÃLVARO VILLAÇA AZEVEDO

Sempre entendi que os cônjuges e os conviventes, não sendo


parentes, entre si, não tinham direitos e deveres recíprocos de alimentos,
a não ser direitos e deveres em razão do contrato de casamento ou de
união estável, enquanto durasse a sociedade familiar. Todavia, no tocante
ao casamento, esse dever de provisão do lar, que era do marido, atualmente
é de ambos os cônjuges, ante o § 5~() do art. 226 da Constituição de 1988.
Após a separação judicial e o divórcio, amigáveis ou litigiosos, bem como
a separação dos conviventes, sempre entendi, nascem outros direitos e
deveres, decorrentes de acordo ou de sentença, podendo estar incluída
pensão alimentícia.
Nesses casos,não há que se falar em prisão, pois ela foi criada para
coagir um parente para pagar alimentos ao outro.
Em face de sua Súmula 379, que equipara os alimentos oriundos
da separação aos devidos entre parentes, proibindo a renúncia do direito
aos alimentos, no acordo dessa separação, com o que não concordava, o
STF chega a admitir sua “dispensa”, “desistência tácita”, quando, por
muito tempo, deles não se utilizou a “desquitanda” (em quatorze ou em
vinte anos).t6
Ante o novo Código, não resta dúvidas de que admitiu ele esse
entendimento sumular, pois assenta, em seu art. 1.707:

“Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o


direito a alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de
cessão, compensação ou penhora”.

Mesmo tendo o novo Código Civil admitido o direito recíproco a


alimentos entre cônjuges e conviventes, para “viver de modo compatível
com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua
educação” (art. 1.694, capuZ), não foram eles considerados parentes. Sim,
porque os direitos e deveres dos cônjuges e dos conviventes nascem de
seu contrato de casamento ou de sua união estável, conforme o caso, e
não ex jure sanguinis. Os parentes consangüineos adquirem seus direitos e
deveres com seu nascimento biológico, já que esses direitos e deveres
ligam-se à sua personalidade, com todas as características desses direitos

16 RTJ 108/1351 (com dois outros julgados no mesmo sentido).

232

PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA DE ALIMENTOS

da personalidade, sendo, portanto, imprescritíveis. O direito a alimentos,


a seu turno, quando entre cônjuges ou conviventes, podem ser perdidos
em razão de decreto judicial na separação do casal; não são inatos.
Só o descumprimento do dever alimentar entre consagüíneos é que
pode levar ao decreto da prisão civil, no meu entender, ainda com o
advento do novo Código.
Uma coisa é ser devida e irrenunciável a pensão alimentícia, outra é
possibilitar a prisão por seu descumprimento.
Principalmente, ante o novo Código, que possibilita o penslona-
mento alimentício a credor culpado, caso em que os alimentos devem ser,
apenas, “os indispensáveis à subsistência” (Ç 2.0 do art. 1.694).
Com essa conceituação, por mim justificada, pela qual a prisão do
devedor de alimentos só se admite com o pressuposto de relação entre
parentes, analisarei a natureza desse modo de constrangimento pessoal.
Embora a 1.a T. do STF, por unanimidade de votos, em 11.12.1981,
sendo relator o Mm. Clóvis Ramalhete)’7 tenha entendido que a prisão por
dívida de alimentos não tem finalidade coativa de execução e deve existir
por prazo fixado em lei, com proibição de que se reitere, sendo, assim,
repressão punitiva”, prefiro acompanhar o entendimento pelo qual essa
medida extrema foi concebida não com caráter penal, de punição, mas para
forçar o cumprimento obrigacional; embora lute para que esse meio odioso
e violento desapareça de nosso texto legal.
Aliás, a 1.a Câm. Civ. do TJSP, por votação unânime, em 26.12.1978,
sendo relator o Des. José Carcljnale,’8 admitiu que: “à prisão civil imposta ao
devedor de alimentos não se aplicam dispositivos do Código Penal”, já que
“nao é pena, mas simples meio de coerção com que se busca o cumprimento
de obrigação”.
O próprio Mi Cordeiro Guerra, “principal colaborador da Lei de
Alimentos, defendendo a legitimidade dessa prisão, em voto proferido no
RHC 54.796-RJ, assentou: “A prisão do devedor de alimentos é meio
coercitivo adequado, previsto em todas as legislações cultas, para obrigar
o devedor rebelde aos seus deveres morais e legais a pagar aquilo que,
17 RT 564/235.
18 RT527/91. Ver, também, no mesmo sentido, julgamento das
Câmaras Criminais Conjuntas do
mesmo Tribunal. RJTIJ5P 49/286.
233

ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO

injustificadamente, se nega.” Essa orientação guarda consonância com


esta observação de Pisapia: “Todas as legislações modernas reconhecem,
hoje e para o futuro, a necessidade de recorrer à sanção penal para assegurar
o respeito e o cumprimento das obrigações que encontram sua fonte numa
relação de família”.’9
Ao meu ver, a tendência é a de que se humanizem e que se racio-
nalizem os sistemas jurídicos modernos, para que apaguem, definitiva-
mente, em breve futuro, essa lamentável prisão por dívida, por substitui-
ção do regime selvagem de hoje pelo civilizado e profícuo do amanhã.
O citado entendimento de Pisapia encontra eco em nossa posição
doutrinária, pois não se refere ele à prisão civil, mas às sanções penais, que
devem, mesmo, exisur nos crimes e nas contravenções contra a família;
não, simplesmente, como meio de cumprimento de dever alimentar.
Ao seu turno, ensina Pontes de Miranda20 que nosso Direito proces-
sual civil concebeu a prisão civil por débito alimentar, “não como medida
penal, nem como ato de execução pessoal, e sim como meio de coerção”.
A prisão sob estudo, como meio coativo de cumprimento obriga-
cional, está ligada à natureza da prestação alimentar, entre parentes, para
cumprir um dos eventuais efeitos desta.
A prisão é, assim, de natureza constritiva, agredindo a liberdade do
devedor, sendo, portanto, indiscutível modo de execução pessoal por
dívida.
Tanto é verdade que, desnaturando-se a dívida alimentar entre
parentes, torna-se impossível de se aplicar a prisão, em meu entender.
Em abono do exposto, decidiu o STF, por sua 1 ~a Turma, em
julgado já anteriormente referido,21 sob outro aspecto, que, não tendo

19 GOMES, Luiz Flávio. Prisão civil..., cit., p. 9. Ver, ainda, PISAPIA,


Giandomenico. Les
obligations familiales, alimentaires et leurs sanctions pénales. ]
ourneésJuridiqtíes, v. 1, p. 316.

20 PONTES DE MIRANDA, F. C. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de


Janeiro: Forense,

1976, t. X, p. 483.
21 RT 564/235-236. No mesmo sentido e do mesmo Tribunal, julgado RT 574/282-283;
RTJ

101/179. Em sentido contrário, julgado do Tribunal dc Justiça do Estado do


Paraná, em que
se entendeu que a prisão decretada, no processo executório de prestação
alimentícia pretérita,
é “crédito patrimonial, que perdeu sua função de garantia de sobrevivência”, RT
670/132,
sendo relator o Des. Troiano Netto. Destaque-se, na linha deste mesmo julgado, o
do STF, que
considerou, também, ao conceder habeas corpus, que a divida de alimentos,
pretérita, não se
apresenta com a virtude de assegurar a subsistência presente dos alimentandos.
Foi relator o
Mm. Francisco Rczek. RT 645/201.

234

PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA DE ALIMENTOS

sido pagos os alimentos devidos aos filhos, mesmo ocorrendo acordo, em


que ficou assumido, pelo devedor, pai, por confissão, o débito vencido,
não lhe retira a natureza de dívida alimentar, mormente tendo se tornado
quantia liquida, não se transformando em dívida de dinheiro.
O devedor, pai, procurou defender-se, alegando que o que era
alimentos, com o acordo, transformou-sem em “mera obrigação de pagar,
quanto a prestações vencidas”, uma vez que as filhas passaram da guarda
da mãe a dele, pai.
Aponta, nesse mesmo caso, em seu voto, o Mm. Clóvis Ramalhete,
que as prestações alimentícias vencidas, assumidas no acordo, não perde-
ram a natureza de alimentos pelo ato do acordo, sendo certo que a mãe,
que não recebeu os alimentos dos filhos, é credora deles. A divida, portan-
to, não é em dinheiro, mas de valor. Assim, o saldo do débito tem origem
e natureza alimentar.
Viu-se, nesse passo, que o débito alimentar, entre parentes, como
direito-dever da personalidade, é intransacionável. E certo que pode
haver transação (acordo) para fixação do quantum debeatur, todavia, a
transação tem por objeto direitos patrimoniais privados, consoante resul-
tava do art. 1.035 do CC, de 1916, e resulta, com idêntica redação, do art.
841 do novo Código Civil, não sendo possível que recaia sobre direitos
imateriais, sobre o direito à vida, sobre alimentos entre parentes.22
Entretanto, sendo dívida de alimentos resultante de acordo, em
processo de separação judicial amigável, entre os cônjuges, em que o ex-
marido obrigou-se, a título de alimentos, a pagar prestações de um carnê,
devido a uma financeira, tendo sua ex-mulher desistido de seu crédito
alimentar, por declarar-se em condições de custear sua própria sobrevivên-
cia, resta evidente que ocorreu novação objetiva, com a extinção do débito
alimentar, a partir da referida desistência. Nesse caso, julgado pela 1.’ Câm.
Civ. do TJSP, por votação unânime, em 25.05.1982, sendo relator o Des.
Mendes Pereira,23 entendeu-se desse modo: “Alterada a natureza alimentar
da pensão, em decorrência de novação havida entre as partes, é incabível a
decretação da prisão civil do inadimplente”.

22 AZEVEDO, Alvaro Villaça. Curso de direito dvii, teoria geral das obr~gaç&es.
9. cd. São Paulo: RT,

2001, p. 194.
23 RT 562/66.

235

ÃLVARO VILLAÇA AZEVEDO


3 ALIMENTOS PROVISIONAIS E DEFINITI VOS-
INADIMPLEMENTO

Cuidando de classificar os alimentos, quanto à sua finalidade,


divide-os Rubens Limongi França24 em provisionais ou iii litem e regulares,
sendo provisionais os que, “num pleito (ação de desquite, nulidade ou
anulação de casamento, ou ainda na própria ação de alimentos), se reque-
rem para a manutenção do suplicante, ou deste e de sua prole, durante a
pendência judicial”; e regulares são os estabelecidos, pelo magistrado ou
por acordo das próprias partes (exemplo: desquite amigável), como pres-
tação periódica, de caráter permanente, embora sujeitos a revisao
Ao seu turno, Francisco Fernandes de Araújo25 promove a diferença,
também, entre os alimentos provisionais e provisórios, concluindo que os
primeiros também têm caráter provisório, e nisso se confundem com os
segundos “provisórios propriamente ditos”. “Ambos são de natureza
cautelar, mas os provisionais também têm caráter acessório, uma vez que
se trata de outra ação proposta ou de futura propositura de outra ação”.
Antes, esclarece que: “Os provisionais, também chamados preven-
tivos, estão previstos como medida cautelar (arts. 852, e segs. do CPC), e
nessa ação podem ou não ser deferidos, liminarmente, os alimentos
provisórios, a exemplo do que ocorre na ação de alimentos de rito sumário
(Lei 5.478/68, art. 4.~)), o que faz perceber, desde logo, uma diferença
entre essas duas espécies de alimentos. O parágrafo único do art. 854 do
CPC cuida dos alimentos provisórios na própria ação cautelar de alimen-
tos provisionais.” Acrescenta, ainda, que “os provisórios são requeridos
sempre durante a demanda, seja ela cautelar ou pdnczjal, ao passo que os
provisionais podem ser pleiteados também antes da ação principal. Isso está
na própria lei”. E, também, na jurisprudência, em que se apoia.26
Esclarece, ainda, que, em sentido geral, tanto os alimentos provisio-
nais quanto os provisórios destinam-se a suprir as necessidades do credor,
embora aqueles tenham maior alcance quanto a tais necessidades.
Assim, continua,

24 FRANÇA, Rubens Limongi. Manual de direito dvii. São Paulo: RT, 1972, v. 2, t.
1, p. 298.

25 ARAÚJO, Francisco Fernandcs de. Algumas questões sobre alimentos


provisionais, provisõ-
rios e definitivos. RT 634/21.
26 RT 317/266, 148/282 e outras.

236

PRISÃO CIVIL POR DIVIDA DE ALIMENTOS

“Alimentos provisionais são os necessários à mantença, à roupa,


aos remédios, à habitação, e também às custas e demais despesas
feitas em Juízo, aos honorários de advogado e execução da sentença, ao
passo que os provisórios são para atender às necessidades primá-
rias do alimentando (alimentos naturais), ou outras necessida-
des que não as despesas do processo (alimentos civis). Percebe-se,
assim, a maior amplitude dos alimentos provisionais”.

Menciona esse doutrinador, ainda, outras diferenças e semelhanças


entre os alimentos provisionais e provisórios, que merecem ser examina-
das em seu trabalho citado, ao qual me reporto.
Controvertem-se, em seus posicionamentos exegéticos, a doutrina
e a jurisprudência, sobre se a prisão civil do devedor limita-se aos casos
de não pagamento de alimentos provisionais ou se englobam, também, os
casos de inadimplemento de alimentos definitivos, fixados em sentença
ou objeto de acordo dos interessados.
Cogitando dessa polêmica, Athos Gusmão Carneiro,27 em valioso
estudo, promoveu levantamento, mostrando, inicialmente, a posição
adotada em vários acórdãos do TJRS, acolhendo entendimento de que a
prisão civil, como meio coativo sobre a vontade do devedor, tendente à
chamada “execução indireta” ou “imprópria”, pode se considerar verda-
deira “medida extrema que o novo Código de Processo Civil reservou
“28
apenas para o caso de não pagamento de alimentos provisionais
Menciona, em seguida, que mudaram de orientação, pelo menos, a
e a 3.” Câmaras Civis desse mesmo Tribunal, passando a admitir a
prisão civil também contra o devedor de alimentos definitivos.29
Realmente, andaram divergindo a esse respeito a jurisprudência e a
doutrina, como bem demonstra YussefSaid Cahali,30 inclusive mencionan-
do posição que sustenta como somente autorizada dita prisão em se

27 CARNEIRO, Athos Gusmão. Ação de alimentos e prisão civil. RT 516/14; Revista


Brasileira

de Direito Processual, Rio de Janeiro, Forense, 1978, v. 16, p. 59; e Ajuris,


Porto Alegre, v. 13/61.
28 Alinha, então, varios acordãos nesse sentido: da 1.’ Câm. Civ., em
24.06.1975, no HC 24.453,
sendo relator o Des. Oscar Gumes Nunes; RJTJRS 57/146, 59/218, 61/144.
29 R]TJRS 63/160 e 206; HC 28.515, em 09.08.1977, 1. Câm. Civ., sendo Relator o
Des. Athos

Gusmão Carneiro.

30 CAHALI, Yusscf Said. Dos alimentos..., cit., p. 628-631.

237

ALVARO VILLAÇA AZEVEDO

tratando de alimentos fixados definitivamente, defendida, dentre outros,


por Amilcar de Castro,31 com farta jurisprudência mais antiga.
Decidiu, já após o advento do CPC, de 1973, a 2.’ T. do STF, por
unanimidade de votos, em 21.05.1985, sendo relator o Mm. Cordeiro
Guerra,32 que esse Pretório Excelso já firmara o entendimento de que a
prisão civil do inadimplente de dever alimentar “é cabível, quer se trate
de alimentos provisionais, quer se trate de alimentos definitivos”.
E acrescenta, ressaltando: “Efetivamente, já houve hesitação quan-
to à tese que, data venia, não encontra qualquer respaldo na lei, na doutrina
ou na jurisprudência predominante, notadamente do Colendo STF”.
No mesmo acórdão, cita-se decisão de 22.08.1978 sendo relator o
Mm. Xavier de Albuquerque,33 em que entendeu que a prisão civil por
dívida de alimentos “não se restringe, após o advento do Código de
Processo Civil, de 1973, à hipótese de alimentos provisionais”.
4 VERBAS ESTRANHAS AO DÉBITO ALIMENTAR

No tocante ao decreto de prisão por débito alimentar, vêm a doutrina


e a jurisprudência encaminhando-se no sentido de admiti-lo, tão-somente,
quanto ao valor dos alimentos propriamente ditos, sem verbas extraordinárias.
Assim, Edgard Moura Bittencourt,34 Domingos Sávio Brandào de Uma,35
João Ciaudino de Oliveira e Cn12)6 entre outros, comungam desse entendimento.

31 CASTRO, Amilcar de. Comentá tios ao Código de Processo Civil. São


Paulo: RI, 1974, v. 8, n. 522,
p. 381; RT 404/369, 441/143, 452/332, 468/297, 497/289; R]TJSP 18/313, 24/384,
25/418.
Podemos citar, ainda, os julgados: RT 463/317 e 435/280, que acompanham o mesmo
entendimento, sob o CPC de 1939.
32 JSTF-Lex 83/339.

33 RTJ87/1.025. Entre muitas outras decisões citadas nesse mesmo julgado:


RTJ86/126, 87/67,

102/602, 104/137, 108/171. Em destaque, ainda, nesse voto do Ministro Cordeiro


Guerra,

decisão da 2.’ T. do mesmo Excelso Prcrório, sendo relator o Mm. Moreira Alves.
RT567/226.

Acrescento, ainda, os seguintes acórdãos. RT 477/115, 480/287, 486/258, 489/439,


491/81,
521/350, 527/93 e 450, 542/314, 567/226, 585/261; JSTF-Lex 18/310; RT] 76/116;

RJTJSP 37/139.

34 BFITENCOURT, Edgard Moura. Alimentos. 4. ed. São Paulo: Leud, 1979, p. 117,
nota de

rodapé 238.

35 LIMA, Domingos Sávio Brandão de. Alimentos do cônjuge na separação


judicial e no divórcio.
Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 1983, p. 131.

36 CRUZ, João Claudino de Oliveira e. A nova ação de alimentos, cit., p. 73.

238

PRISÃO CIVIL POR DIVIDA DE ALIMENTOS

Do mesmo modo, assenta-se na jurisprudência que o débito ali-


mentar deve restringir-se, para os efeitos da efetivação do decreto de
prisão, ao pagamento das prestações alimentícias, tão-somente; restam
excluídas, desse modo, as verbas referentes a honorários advocatícios e
custas processuais, bem como parcelas relativas a filhos já maiores, com
erro de cálculo, iliquidas.37
Destaque-se trecho do julgamento, pela 1.’ T. do STF, em
24.08.1984, por unanimidade, sendo relator o Mm. Soares Mutioz)8 em
que se reconheceu que: “Sob o pretexto de que o quantum da obrigação
abrange numerários que, embora ajustado como integrando a pensão ali-
mentícia, não constitui alimentos, no sentido estrito, o paciente recusa-se
a satisfazer o total, quando”.. .“fácil lhe seria obter a separação da parcela
impugnada”. II~,
A recomendação, nesses casos, é a de que o devedor de alimentos
deposite, pelo menos, a parcela correspondente à pensão alimentícia,
propriamente dita, discutindo as demais verbas estranhas, sem o risco do
decreto de prisão.
Embora já tenha sido adepto dessa tese, Yussef Said Cahal?9 não
mais sustenta esse entendimento, esclarecendo: —

“Em nosso direito, mesmo antes da adoção do princípio da


sucumbência (Lei 4.632, de 18.05.1965), antiga jurisprudência
aceitava que ‘as verbas de custas e honorários se incluem na pensão
alimentar e o seu não-pagamento autoriza também a prisão civil’;
pois, ‘se não fosse a inclusão antecipada de tais verbas, não poderia
a mulher fazer valer judicialmente seus direitos contra o marido,
pela carência de recursos essenciais à sustentação da causa: tais
despesas se equiparam às que são destinadas diretamente ao sus-
tento do alimentando, tendo em atenção a pessoa deste e não as
dos credores por custas e honorários”.

37 jSTF-L.ex 112/337 (o mesmo, RTJ 125/326), 100/330 (o mesmo, RTJ


121/553), 74/438 (o
mesmo, RT 594/225); RTJ 111/1.048; RT 454/338, 491/267, 509/332, 524/323,
525/310,
526/428, 529/306, 531/293, 535/276, 539/351, 552/325, 553/75, 559/64, 578/58,
590/94,
670/132.
38 JSTF-Lex 74/442.

39 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos..., cit., p. 643.

239

ALVARO VILLAÇA AZEVEDO


muito 40
Cita dois acórdãos, antigos.
Entendo que, sendo uma medida de exceção, a da prisão civil, e de
extrema violência, enquanto existir, deve ser utilizada com a maior
parcimônia possível, devendo seus casos, previstos em lei, ser analisados
de modo restritivo.
O que se considera essencial à vida são os alimentos propriamente ditos.

5 PRISAO REITERADA

Muito se discutiu sobre a possibilidade de ser reiterado, ou não, o


decreto de prisão do devedor de alimentos.
Em breve retrospecto histórico, a proibição de reiterar-se o decreto
de prisão continha-se no art. 921 do CPC, de 1939, que determinava essa
vedação, se o devedor de alimentos houvesse cumprido, integralmente,
pena de prisão, objeto de decisão anterior. Terminava o texto desse art. 921
mencionando: “mas excluirá a imposição de nova pena de prisão”.
A seu turno, o § 1.0 do art. 19 da Lei de Alimentos, 5.478, de
25.07.1968, deu nova redação ao referido art. 921, eliminando essa frase fmal.
Comentando o fato, João C/audino de Oliveira e Cru( reporta-se a
sua manifestação, sob o texto antigo, afirmando que ele era injusto,
“pois, em contrário, o cumprimento da prisão conferiria ao devedor uma
verdadeira carta de imunidade para o não cumprimento da obrigação
alimentar para o resto de sua vida”, concluindo que, eliminada a parte
final do art. 921, pela Lei de Alimentos, não havia dúvida de que era,
então, possível o decreto de nova prisão, pelo não pagamento de novo
débito alimentar. No mesmo sentido, Yussef Said Cahali,42 entendendo
que esse aludido dispositivo da Lei de Alimentos “não proibia a reitera-
ção” da pena de prisão.
De recordar-se que, depois, o § 2.0 do art. 733 do CPC apresentava
a seguinte redação: “O cumprimento da pena não exime o devedor do
pagamento das prestações vencidas e vincendas; mas o juiz não lhe
imporá segunda pena, ainda que haja inadimplemento posterior”. Lem-
40 Acórdãos RF 116/173 e RT 136/155.

41 CRUZ, JoSo Claudino de Oliveira e. A nova ação de alimentos, cit., p. 76.

42 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos..., cit., p. 663.

240

PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA DE ALIMENTOS

bre-se, todavia, de que desse § 2.~ retirou-se a última frase, com a redação
determinada pela Lei 6.515, de 1977 (Lei do Divórcio).
Entretanto, reconheceu o STF, por sua 2.~ T. em 28.09.1976, por una-
nimidade, sendo relator o Mm. Cordeim Guerra,43 que o impedimento do
mencionado art. 733 “foi revogado” pelo art. 4•0 da Lei 6.014, de 27.12.1973,
que “restabeleceu” o § 1.” do art. 19 da Lei 5.478, de 25.07.1968.
Na redação do § 2.~’ do citado art. 733, determinada pelo art. 52 da
Lei do Divórcio, 6.515 de 1977, foi excluída a parte final daquele dispositi-
vo citado, modificando-o. Desapareceu, portanto, a proibição de que se
reitere o decreto de prisão. Agora, indene de dúvidas.
Assim, não mais existe na legislação o caráter proibitivo de nova
prisão do alimentante faltoso, o que foi reconhecido pela jurisprudência.’”

6 PRAZODAPRISÃO
1 fi~t~

Pelo caput do art. 19 da Lei de Alimentos, 5.478/68, a prisão do


devedor de alimentos pode ser decretada até 60 dias; e pelo § 1.0 do art. 733
do CPC, o prazo máximo para a eficácia da pena de prisão é de um a três
meses, quando se cuidar de alimentos provisionais.
Com relação aos alimentos definitivamente fixados por sentença
ou por acordo, é de 60 dias o prazo máximo da prisão do devedor inadim-
plente, vem decidindo o STF.45 E, também, os Tribunais dos Estados.46
Pondera, e com muita justiça, Adroaldo Furtado Fabrício,47 que “A
prisão do alimentante, quanto à sua duração, segue regulada pela lei
especial, podendo ser decretada até 60 dias. Impõe essa conclusão o fato
de tratar-se”...”de lei posterior, à parte a circunstância de conter regra mais
favorável ao paciente de medida excepcional — odiosa restringenda”. Con-
43 RTJ 79/448. Em sentido contrário, três acórdãos do TJSP, respectivamente, em
27.12.1974,
em 06.05.1975 e em 04.11.1975, RT473/291, 479/291 e 489/305 (este último só
admitindo
a nova prisão quando não cumprida integralmente a anterior).

44 RTJ 115/1150 o mesmo RT602/240; RT577/65.

45 JSTFT.Lex 51/363, 61/379 (o mesmo julgado RTJ 104/137), 18/310, 41/344; RTJ
115/1151

(o mesmo julgado RT 602/240), 87/67, 108/171; RT 585/261.

46 RT 545/347, 556/358, 559/71, 560/220, 601/107.

47 FABRIC1O, Adroaldo Furtado. A legislação processual extravagante em face do


novo Código
de Processo Civil. Apais, Porto Alegre, v. 3, n. 5.1 e 5.4, p. 85.

241

ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO

clui, ainda, que, em qualquer das hipóteses, legalmente consideradas, “a


duração da prisão poderá exceder de 60 dias”. Essa posição é acolhida
como a mais acertada por Yussef Said Cahali.’”
Aliás, decidiu a 2.’ Câm. do TJSP, por votação unânime, em 04.02.1980,
sendo relator o Des. Prestes Barra,’” que a decretaç ão de prisão contra
devedor de alimentos não pode ultrapassar 60 dias; daí porque reduziram
para esse prazo, o que condenava o mesmo devedor a 90 dias. Tudo sob
fundamento de que essa é a inteligência das Leis 5.478/68 e 6.014/73 e
do art. 733, § 1.0, do CPC.
Por outro lado, é inadmissível que o devedor seja condenado, “por
tempo indeterminado, isto é, até que seja paga a dívida”.50
Embora Francisco Fernandes de Araujo~ não vislumbre exagero em
fixar o tempo da prisão em 90 dias, no caso de alimentos provisórios ou
provisionais, “porque o devedor será imediatamente colocado em liber-
dade, tão logo pague o seu débito”, pondera que tem adotado, na prática,
como Magistrado, também, nesses casos, o prazo máximo de 60 dias de
prisão, “mesmo porque se mostra difícil perceber o fundamento que teria
levado o legislador a adotar critério diverso entre as referidas espécies de
alimentos, quanto à prisão do devedor”. Todas as espécies de alimentos
são, igualmente, necessarias.
E aduz, explicando:

“A Lei 5.478/68 é mais antiga do que o CPC, e a inovação dos


três meses de prisão ocorreu neste, e é possível que tal se tenha
verificado por ter o legislador sentido a necessidade de um maior
rigor a respeito da matéria, elevando, destarte, os limites da
prisão. E possível, ainda, que se tenha adotado critério um pouco
mais rigoroso para o caso de alimentos provisórios ou provi-
sionais, em relação aos alimentos definitivos, porque nestes já
existe um título definido para a imediata execução. São hipóteses
aventadas para a busca de fundamentos que justifiquem a dife-
48 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos..., cit., p. 640.

49 RT 541 /367. No mesmo sentido os julgados RF 269/50 e RT 576/219.


50 RT 490/373.

51 ARAÚJO, Francisco Fernandes de. Algumas questões sobre..., cit., p. 30-31.

242

PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA DE ALIMENTOS

rença de tratamento, e que o juiz poderá levar em conta, no


estudo de cada caso específico, sem desconsiderar os princípios
norteadores do art. 5.” da LICC e também do art. 52 do Código de
Menores, se for o caso, aplicáveis por extensão mesmo em maté-
ria de alimentos”.

7 LUGAR DA PRISÃO

Revestindo-se a prisão do alimentante de caráter coercitivo ao


cumprimento do dever alimentar, têm a doutrina e a jurisprudência
demonstrado que essa pena deve ser executada na forma regular. fl
Assim, julgou a 12 Câm. Civ. do TJSP, em 17.02.1987, por unani-
midade, sendo relator o Des. Roque Komatsu,52 ressaltando a inadmissibi-
lidade de conversão dessa prisão para regime-albergue.
Nesse mesmo julgado, alinha-se o entendimento de vários doutri-
nadores,53 acentuando essa inadmissibilidade. Do mesmo modo, são ali h
“e
citados vários acórdãos, reafirmando essa posição.54
O alimentante, inadimplente, poderá ser mantido em prisão especial
ou em quartéis, se o devedor for diplomado por Escola Superior da Repú-
blica, conforme permite o art. 295, mc. VII, do CPP, não em prisão
domiciliar ou em liberdade vigiada. Assim, decidiu a 12 T. do STF, por
unanimidade, em 30.10.1984, sendo relator o Mm. Soares Mut7o~.55

8 PRISÃO CIVIL DE TERCEIRO

A prisão civil, como é óbvio, não pode atingir terceiros; mormente,


porque vinculados por outra relação jurídica, que escapa à natureza do
débito alimentar.

52 RJTSP-L.ex 108/333.

53 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos..., cit., p. 660; CRUZ, João Claudino de
Oliveira e. Dos

alimentos no direito dejismília. Rio de Janeiro: Forense, 1956, p. 343; GOMES,


Luiz Fiávio.

Prisão civil..., cit., p. 10; CARNEIRo, Athos Gusmão. Ação de alimentos...,


cit., p. 16.

54 RT 538/316, 552/413; RJTJSP-Lex 92/411.

55 RTJ 112/234 (o mesmo julgadoJSlF-Lex76/428). No mesmo sentido, acórdão RTJ


79/448,
98/685; R]TJSP 92/407, 43/328; RT538/316. Em sentido contrário, decisão
RJTJSP48/274.

243

ALVARO VILLAÇA AZEVEDO

Destaque-se, nesta feita, decisão da 22 Câm. Civ. do TJSP, por


unanimidade, em 21.03.1986, sendo relator o Des. A?y Belfort,56 em que
se reconheceu inadmissível o decreto de prisão contra quem figurava
como fiador do débito alimentar. Também porque essa obrigação assumi-
da por terceiro apresenta-se com caráter contratual.
Observe-se, ainda, que a pena de prisão “atinge, apenas, ao deve-
dor de alimento”, segundo a art. 733, § 1.0, CPC, de 1973.~~
A seu turno, prevê, entretanto, o art. 22 de Lei de Alimentos, 5.478/68,
que constitui crime contra a administração da Justiça deixar o empregador ou
funcionário público de prestar ao Juízo competente as informações ne-
cessárias à realização processual que fixe pensão alimentícia. A pena,
para esse crime, é de seis meses a um ano, sem prejuízo da pena acessória
de suspensão do emprego de 30 a 90 dias. Nas mesmas penas desse
artigo, assenta seu parágrafo único, incidem as pessoas que ajudarem o
devedor a eximir-se ao pagamento alimentar judicialmente convencio-
nado, fixado ou majorado, ou que se recusarem ou procrastinarem a
execução ordenada pelo juiz.

9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, Francisco Fernandes de. Algumas questões sobre alimentos


provisionais, provisórios e definitivos. RT 634/21.
AMORIM, Sebastião Luiz. A execução da prestação alimentícia e ali-
mentos provisionais: Prisão do devedor. RT 558/28.
AZEVEDO, Alvaro Villaça. Curso de direito civil, teoria gera! das obrzgaç~es.

9. ed. São Paulo: RT, 2001.


BITrENCOURT, Edgard Moura. Alimentos. 4. ed. São Paulo: Leud,
1979.
CARNEIRO, Athos Gusmão. Ação de alimentos e prisão civil. RT 516/14.
CASTRO, Amilcar de. Comentários ao Códzgo de Processo Civil. São Paulo:
RT, 1974, v. 8.
CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. São Paulo: RT, 1984.

56 RJTJSP-L.ex 102/251.
57 RT 495/225.

244

PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA DE ALIMENTOS

CRUZ, João Claudino de Oliveira e. A nova ação de alimentos. 2. ed. Rio de


Janeiro/São Paulo: Forense, 1969.
Dos alimentos no direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 1956.
FABRICIO, Adroaldo Furtado. A legislação processual extravagante em
face do novo Código de Processo Civil. Ajuris, Porto Alegre, v. 3, n. 5.1
e 5.4, p. 85.
FRANÇA, Rubens Limongi. Manual de direito dii!. São Paulo: RT, 1972,
v. 2, t. 1.
GOMES, Luiz Flávio. Prisão civil por dívida alimentar (alguns aspectos
controvertidos). RT 582/10-11.
LIMA, Domingos Sávio Brandão de. Alimentos do cônjuge na separação
judicial e no divórcio. Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 1983.
OLIVEIRA, Eduardo Alberto de Moraes. A prisão civil na ação de
alimentos. RT 514/20.
PEREIRA, Sérgio Gischkow. Alimentos e prisão civil. Ajuris, Porto Me-
gre, v. 10/35.
PISAPIA, Giandomenico. Les obligations familiales, alimentaires et leurs
1 ~5’
sanctions pénales. JourneésJuridiques, v. 1, p. 316.
PONTES DE MIRANDA, F. C. Comentários ao Código de Processo Civil.
Rio de Janeiro: Forense, 1976, t. X.

245

A PRESUNÇÃO ABSOLUTA E RELATIVA


NO ESFORÇO COMUM PARA AQUISIÇÃO
PATRIMONIAL NA UNIÃO ESTÁVEL

Antônio Carlos Mathias Coltro


Professor de Direito Civil na PUC-SP. Juiz do Tribunal de
Alçada Criminal de São Paulo. Membro da Academia
Paulista de Magistrados e do IBDFAM.
Sócio-colaborador do Instituto dos Advogados de São Paulo.
l~ 1—
~t e

___________________ Sumário ___________________ ‘~‘

1. Introdução. 2. A aplicação da norma constitucional. 3. A


I~ a —
Lei 8.971/94 e a superveniência da Lei 9.278/96. 4. A presun- I~J ~
ção a que se refere o art. 5•ø da Lei 9.278/96.

1 INTRODUÇÃO

“Usos e costumes, por serem concretos,


constituem lei mais forte do que a lei”
(Carlos Drummond de Andrade)1

A partir da reflexão sobre outros costumes, tempos e hábitos e


acerca da própria necessidade da revisão de conceitos até então admiti-
dos, ainda que para tanto seja estabelecido um confronto entre convic-
ções firmadas e considerada a circunstância de ter-se tornado imprescin-

O avesso das coisas, ajorismos. Rio de Janeiro: Record, 1987, p. 91.

247

ANTÔNIO CARLOS MATH IAS COLTRO

dível enxergar a família com moldura diversa da até então considerada,2


impondo-se admitir que o próprio conceito do que ela seja se nao
mantém estático” e vem “sofrendo a variedade de acepções, no espaço e
no tempo”, conforme escrito por Caio Mário da Silva Pereira,3 preocupa-se
o Constituinte de 1988 em firmar princípios, da mesma maneira que os
próprios fatos que indicaram sua necessidade, acabam por, ao mesmo
tempo em que acalmam a insatisfação de alguns com o estado de coisas
existente, causar indignação de outros, satisfeitos estes com uma estrutu-
ra familiar na qual “o chefe exercia seus poderes sem qualquer objeção ou
resistência, a tal extremo que se chegou a descrevê-la como a um agrega-
do social constituído por um marido déspota, uma mulher submissa e filhos
aterrados”,4 não dispostos a aceitar que filho é filho e pouco importa, para
a Lei, se os pais puderam tê-lo de forma natural ou precisaram socorrer-se
da adoção ou de meios científicos outros com o fim de ter o seu, da mes-
ma forma que enquanto alguns optam por casar-se, outros preferem
seguir trilha em que não há moldura matrimonializada e na qual se insere
tanto a união de fato entre homem e mulher, quanto a ligação livre e
descompromissada, como a monoparentalidade, circunstâncias da vida
que não podem ser desconsideradas pela sociedade e pelo legislador, com
vistas à aferição sobre os efeitos decorrentes de tais opções de conduta.
Por conta dessa rotina de exceções em que a vida se constitui e
seguindo a advertência de Eugen Ehrlich, dirigida a que o fundamental no
desenvolvimento do Direito reside na projnia sociedade,5 levando em con-
ta, ademais, que a vida não pára, a sociedade muda e tanto isto como a

2 Como posto por L.4i~Edson Fachin, “O transcurso da história revela que


a ‘realidade desmente
o código’, e a lei se altera para incorporar novos valores, máxime os que
decorrem do
fenômeno da “repersonalizaçâo”. O encontro da identidade dos novos sujeitos e
das situações
antes colocadas à margem passa pela supcração das regras de sua desqualificação
e se choca com
resistências diversas precisamente porque nos textos legais, do Código Civil ao
Código Penal,
a família patriarcal, hierarquizada e matrimonializada depositou aquilo que lhe
parecia ser a
sua própria identidade” (Contribuição crítica à teoria das entidades familiares,
p. 94-113, no
Repertório de Jurisprudência e Doutrina sobre Direito de Família. WAMBIER,
Teresa Arruda Alvim;
LAZZARINI, Alexandre Alves (Coords.). São Paulo: RT, 1996).

3 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito civil alguns aspectos da sua


evolução. Rio de Janeiro:
Forense, 2001, p. 169.

4 GOMES, Orlando. O novo direito de família. Porto Alegre: Fabris, 1984,


p. 65
5 EHRLICH, Eugen. Fundamentos da Sociologia do Direito, Cadernos da UNB, UNB.
Trad. de Renê
Ernani Gertz e rev. de Vamireh Chacon. Brasilia: UnB, 1986.

248

A PRESUNÇÃO ABSOLUTA E RELATIVA NO ESFORÇO...

alteração do panorama social, ético e econômico devem orientar a legis-


lação, preocupou-se o constituinte de 1988, no art. 226 e §~ da CF, em
proteger a família de forma especial, tendo-a como base da sociedade e
enlaçando na normatização a ela concernente tanto o ente familiar
decorrente do matrimônio quanto o formado pelo homem e mulher que
vivam em união de fato estável, além da “comunidade formada por
qualquer dos pais e seus descendentes”, tratando as duas últimas como
entidades familiares, eufemismo que foi objeto de crítica da doutrina,
mesmo porque, e de acordo por Semj G/anzd “os parágrafos devem ser
interpretados consoante o caput. Se este cuida da família, as diversas
entidades dos parágrafos são também famílias” ,~ não se esquecendo o
constituinte, outrossim, de reconhecer que “o planejamento familiar é
livre decisão do casal” e de atribuir ao Estado o dever de “propiciar recursos
educacionais e científicos para o exercício desse direito”, bem como
afirmar que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por
adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer e
designações discriminatórias relativas à filiação”. “A norma constitucio-
nal compreende tanto a família fundada no casamento como a união de ~ Ii
fato (art. 226, § ~ na família) e a natural, assente no fato da procriação
iH~ a

(art. 226, § 4.0) e adotiva, todas as situações comunitárias análogas à


,, 7

família matrimonializada do ponto de vista sociológico


De forma salutar evidencia-se a percepção de que a Constituição
Federal reconheceu a inflexão sofrida pela família8 no século anterior, às
portas de um novo milênio, e o fato de que “do ponto de vista sociológico
tnexiste um conceito unitário de família”, na sábia ressalva do Des. Fran-
cisco José Ferreira Muniz]~ sendo necessária uma nova arquitetura legal,
em que os princípios da dignidade humana e da cidadania fossem obser-
6 GLANZ, Semy. O direito na década de 1990: novos aspectos. São Paulo: RT, 1992,
p. 188.
7 MUNIZ, Francisco José Ferreira. Textos de direito civil Curitiba:
Juruá, 1998, p. 88, n. 3.
8 “Pontos de inflexão são as grandes mudanças verificadas em determinadas
áreas da atividade
humana e que determina novo rumo, importando, quase sempre, uma verdadeira
guinada na
história...Um dos maiores pontos de inflexão do Direito de Família no Brasil foi
assinalado a
partir da Constituição de 1988, quando o conceito de família foi alterado
profundamente, para
acolher o instituto da união estável e da união entre pais e filhos como
entidades familiares”
(Pontos de inflexão na evolução do direito de família, Informativo da Ajuris —
Artigos
publicados na Gazeta Mercantil, Internet, Domingos dos Santos Bittencourl~.
9 MIJNIZ, Francisco José Ferreira. Textos de direito civil. Curitiba: Juruá,
1998, p. 95-116.

249

ANTÔNIO CARLOS MATHIAS COLTRO

vados, não sendo possível “conviver com uma atitude de indiferença ou


renúncia a uma posição avançada na inovação ou mesmo na revisão e
superação dos conceitos”, na sempre acurada observação de Lui~ Eclson
Fachin,10 invocando o Prof. Milton Campos, para quem “o tropel dos
eventos desmente verdades estabelecidas e desmancha o saber”. Concluin-
do: “O ‘direito e o avesso’ se reconhecem como participes de uma mesma
caminhada”.11
“A partir da institucionalização do matrimônio, — de muito adverti-
ra o Des. Edgard de Moura Bittencourt, com apoio em René The~y, — “o estudo
do concubinato deveria inscrever-se no melhor plano de um programa de
pesquisas de sociologia jurídica, pois conduzido a bom termo permitiria
medir na realidade dos fatos a vitalidade de uma das instituições funda-
mentais: a família no casamento”~2 principalmente em um pais como o
Brasil, em que: “O modelo de família que o legislador teve em vista ao
elaborar o Código Civil em sua versão orêginal traduz uma sociedade conju-
gal funcionalmente diferenciada e acentuadamente hierarquizada.”13
De um lado, e se na linha adotada pelo Código Civil a família
decorria do casamento, considerado por Pontes de Miranda como “(...) a
proteção, pelo direito, das uniões efetuadas conforme certas normas e
formalidades fixadas nos Códigos Civis,”14 de outro, não era possível ne-
gar a opção de muitos pela vida em comum fora do matrimônio conseqüen-
te de causas variadas, desde crenças religiosas, oposição da família ao casa-
mento com determinada pessoa, impossibilidade — por razões várias — de
separar-se do cônjuge para poder viver com outra pessoa e a própria
demora na regulamentação do divórcio etc.
Mesmo em face de tal realidade, contudo, “(...) o fato social das
uniões livres não se apresenta com a nitidez de contornos, como se em
todas elas houvesse uma família, à semelhança da legítima, criada pelo
casamento. Ao contrário, de par com situações estáveis, há distorções e
acintes aos índices éticos, que chegam a localizá-los no campo da própria

10 FACHIN, Luiz Edson. Curso de direito civil: elementos críticos do direito de


família. Rio de
Janeiro: Renovar, 1999, p. 2.

11 Idem.

12 BI’ITENCOURT, Moura. Concubinato. São Paulo: Leud, 1980, p. 1.

13 MUNIZ, Francisco José Ferreira. Textos..., cit., p. 77.

14 PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de direito privado. RT, 1974, t. 7, p. 199,


§ 764.

250

A PRESUNÇÃO ABSOLUTA E RELATIVA NO ESFORÇO...

criminologia. O fato social, que resulta do complexo desse fenômeno,


obriga tanto seu conhecimento como sua discriminação para os efeitos de
sanções diretas ou indiretas”,15 levando o legislador, de forma tímida,
todavia, a procurar estabelecer, em um ou outro aspecto, os direitos e
limites a serem considerados para algumas situações envolvendo a união
de fato, cabendo aos juizes e tribunais, na maior parte dos casos e segundo
a maior ou menor abertura de pensamento de cada julgador, fixar os
princípios a serem considerados para a solução das hipóteses submetidas
ao Judiciário, que passa a atuar, assim, como um verdadeiro laboratório
no exame das situações a ele submetidas em busca das soluções a serem
impostas caso a caso,no cumprimento da exata posição do jurista— con-
forme, uma vez mais, Moura Bittencourt~

apurar a conjuntura humana, porque nem sempre a natureza


está disposta a obedecer a lei dos homens; pesquisar as conse-
qüências econômicas; usar os princípios racionais de uma mo- ~
ral, nem de tal forma superior que torne o direito obra ilusória a
ou cruel, nem tão inferior que se descambe na desagregação da 1 M 1’
família; enfim, dar às soluções o caráter de justa adequação à
finalidade do direito. Então, o fenômeno da união livre encon-
trará no jurista seu mais autorizado crítico”•16

Assim, arremata o autor: “Do conjunto dos julgados que enfrentam


a união livre, em linha mais ou menos constante de reconhecimento de
efeitos positivos, brota verdadeira disciplina ~ tendente à regula-
mentação do concubinato e à própria aceitação de sua existência, pela
sociedade, em um processo no qual “o juiz interpreta a consciência social
e lhe dá efeito jurídico, mas, ao fazê-lo, auxilia a formação e modificação
da consciência que interpreta. A descoberta e a criação reagem uma sobre
a outra”, segundo a lição de Benjamin N Cardo~o,18 fazendo com que tanto o
direito legislado se conforme aos caminhos que a vida apresenta quanto a
sociedade se conscientize da realidade do dia-a-dia.

15 BITTENCOURT, Moura. Concuhinato..., cit., p. 2.

16 Ibidem, p. 10.

17 Ibidem, p. 11.
18 CARDOZO, Benjamin N. A natureza do processo e a evolução do direito.
Trad. de Leda Boechat
Rodrigues. 3. cd. Ajuris, 1978, na notícia bibliográfica sobre o autor, p. 18.

251

ANTÔNIO CARLOS MATH IAS COLTRO

Como resultado, e “com o desencadeamento dos rumos sociais do


direito, a politica legislativa enfrenta a realidade da união livre e sua
extensão quantitativa, para outorgar-lhe efeitos jurídicos, não apenas na
infortunística, na previdência e no relacionamento das obrigações civis,
como também no próprio direito sucessório, chegando mesmo a surgir
propostas de quase consagração do concubinato”, sem que possa o
legislador constituinte fechar os olhos para aquilo que a vida lhe apresen-
ta e sendo obrigado a reconhecê-lo no próprio texto de 1988, afirmando,
no caput do art. 226, que, se, “a família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado”, para efeito dessa proteção, conforme o § 3~o do
mesmo dispositivo, ~ é reconhecida a união estável entre o homem e
a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em
casamento

2 A APLICAÇÃO DA NORMA CONSTITUCIONAL

“A lei estabelecida para dirimir o primeiro


conflito foi interpretada de duas
maneiras, e gerou novo conflito”
(Carlos Drumond de Andrade)19

Feitas tais considerações e no tocante ao que interessa às presentes


notas, ligadas ao tema da união estável, é preciso ressaltar que, embora
para alguns a inovação constitucional tenha se apresentado como de
simples inteligência, no tocante à sua aplicação aos casos concretos, sem
demandar indagações outras que as relacionadas com a leitura do texto
maior e a verificação sobre a adequação dos fatos aos seus limites, para
outros surgiram dúvidas a respeito da própria auto-aplicabilidade da regra
constitucional e da necessidade de sua regulamentação, embora a única
ressalva nela constante e a respeito de regulamentação tivesse a ver com
a conversão da sociedade de fato em casamento, verificando-se, na segun-
da de tais posições, a presença, inclusive, de traço reacionário e inerente

19 Op. cit., p. 91.

252

A PRESUNÇÃO ABSOLUTA E RELATIVA NO ESFORÇO...

ao conservadorismo dos que não conseguiam aceitar as modificações


havidas20 especialmente em tema como o da família, em que e sob a moldura
ético-social faz-se necessario “não perder de vista que a multiplicidade e
variedade de fatores não consentem fixar um modelo judicial uniforme~~,
na lição de Caio Mário,21 disto resultando poder-se atribuir-lhe particular
feição jurídica, admitindo “(...) ser considerada como um organismo jurídi-
co, como também uma instituição”.22
De qualquer forma, e se para alguns a regra do art. 226, § 3•o, da CF
surgiu como apta a desde logo produzir efeitos, sem necessidade de
regulamentação a tanto correspondente23 — inclusive porque, se antes de
1988 e em especial quando quase nada havia a respeito de direito escrito
e pertinente à união de fato cuidara a jurisprudência de estabelecer ver-
dadeiro regramento a respeito do assunto, como já visto, logicamente não
seria após o reconhecimento, pelo próprio Estado, sobre seu dever
protetivo a tal forma de vida que se haveria pensar, ainda, na necessidade
de regulamentação a respeito ~,24 o fato é que acabou por preponderar o

20 Afinal e dc acordo com Sérgio Gischkow Pereir~ “A mudança foi


profunda, muito profunda.
Não é fácil assimilá-la desde logo, condicionados que estamos por séculos e
séculos de cultivo 1 rd
da irrealidade e da hipocrisia neste ramo do Direito e por categorias diversas
de pensamento.
É o poder da tradição, acentuado magistralmente por Gadamer, mas que há de
sofrer o 1 ~
impacto, conforme Habermas, da análise da ideologia e da Psicanálise
(HABERMAS,Jürgen.
Dialética e hermenéwtica. L&PM, 1987). Afinal, a família, juntamente com a
propriedade e o
contrato, são os pilares do Direito liberal ocidental.” (CABONNIER, Jan. Derecho
flexible.
Tecnos: Madri Editorial, 1974) (Algumas questões de direito de família na nova
constituição.
Revista dos Tribunais, 639/247).
21 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito civil: alguns aspectos cit., p.
172.

22 Idem.

23 V., por todos, o Prof. Caio Mário da Silva Pereira: “Na sua primeira
parte, este inciso me pareceu
uma self executing provision. Fiel às minhas antigas convicções, entendia eu que
não havia
mister descesse o legislador a minúcias. A elaboração pretoriana seria
suficiente para que o juiz,
em cada caso, avalie as condições da união e declare, pelas circunstàncias
materiais, suficiente
para considerar a existéncia de uma ‘entidade familiar’. Não dispondo a
propósito da
‘conversão em casamento’, aí sim, entendia eu a conveniência de discipliná-la
pela via
administrativa ou judicial” (Direito civil: alguns aspectos..., cit., p. 180).
Observa o mesmo
doutrinador, ainda c cm outro passo: “Tenho sempre sustentado, cabe à doutrina
elaborar
definições. Toda vez que o Legislador se propõe definir, ou é excessivo, ou
incompleto. A
entidade familiar’, nos termos do art. 226, ~ 3., é uma decorrência da ‘união
estável’, e esta
e uma situação de fato, a ser apreciada em cada caso” (Op. cit., p. 185-186).
24 Cf., do autor, A união estável: um conceito?, no Repertório de Jurisprwdéncia
e Doutrina sobre
Direito de Família. ALVIM, Teresa Arruda; LAZZARINI, Alexandre Alves (Coords.).
São

Paulo: RT, 1996, v. 3, p. 19-44.

253

ANTÔNIO CARLOS MATH IAS COLTRO

ponto de vista dirigido à regulamentação, editando-se, primeiro, a Lei


8.971, de 29 de dezembro de 1994 e, em 1996, a Lei 9.278, de 10 de
maio, advindo, de ambas, várias e até hoje presentes indagações a respeito
de suas normas e mesmo sobre a vigência do primeiro diploma em função
da edição do segundo, sobre o qual já se sustentou até questionamento
acerca de sua validade, por destinar-se, conforme consta de sua epígrafe,
a regular o § 3~o do art. 226 da Constituição Federal, o que, como adverte
o Prof. Caio Mário, “é objeto das leis complementares. Segundo o dispos-
to no art. 69 da Constituição, as leis complementares deverão ser aprova-
das por maioria absoluta, e não por maioria simples, como se deu com a
Lei 9.278/96~~.25
E a partir dos requisitos adotados em um e outro para a caracteriza-
ção da união estável, desde logo se nota a divergência legislativa, uma
vez que enquanto a Lei 8.971 dispôs, em seu art. 1.0, que: “A companhei-
ra comprovada de um homem solteiro, separado judicialmente, divorcia-
do ou viúvo, que com ele viva há mais de cinco anos, ou dele tenha prole,
poderá valer-se do disposto na Lei 5.478, de 25 de julho de 1968, en-
quanto não constituir nova união e desde que prove a necessidade’’,
sendo “igual direito e nas mesmas condições (...) reconhecido ao compa-
nheiro de mulher solteira, separada judicialmente, divorciada ou viúva”
(parágrafo único); o art. 1.0 da Lei 9.278 dispôs: “É reconhecida como
entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um
homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de
família”.
Assim e enquanto o primeiro de tais diplomas (que se dispõe a
regular “o direito dos companheiros” nas matérias a que se refere) estabele-
ceu sobre a necessidade de um prazo mínimo ou a existência de prole e a
necessidade de o companheiro ou companheira ser solteiro, separado
judicialmente, divorciado ou viúvo, nenhuma dessas condições foi inscri-
ta no segundo, aspecto em que, sem qualquer dúvida, atuou o legislador
com maior cautela, por não ser papel da lei conceituar os institutos a que
se refere — missão da doutrina e dos pretórios, segundo o caso a ser
examinado e os princípios aplicáveis —‘ havendo-se limitado à moldura
do art. 266, § 3~o, da Lei Maior, e sem procurar restringir a sua incidência,

25 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito civil: alguns aspectos..., cit., p.


185.

254

A PRESUNÇÃO ABSOLUTA E RELATIVA NO ESFORÇO...


atentando para o fato de que o Direito deve ser considerado uma forma
de crescimento e valorização do homem, e é defeso ao legislador ou ao
aplicador da Lei, pretextando receios com a aplicação da norma, reduzí-la
a limites estreitos e que acabam por alcançar resultado oposto ao preten-
dido pelo constituinte, principalmente em tema de imenso fundo social e
inegável cunho protetivo, o que inocorreu em referência ao art. 1.0 da Lei
8.971, que acabou “por demarcar um campo que por sua natureza não
pode ser demarcado”, uma vez que “as relações concubinárias pertencem
ao espaço não instituído a estatuí-las” na arguta nota de Rodrz~go da Cunha
Pereira.26
Não fosse suficiente o referido e já no campo que interessa a este
trabalho, dos bens adquiridos na constância da união de fato, a Lei
8.971/94, após mencionar, em seu art. 2.~, que as pessoas referidas no 1
~“
art. 1.0 têm direito a participar da sucessão do companheiro, nas condições
previstas em seus inciso 1 a III, determinou, no art. 30 que: “Quando os
bens deixados pelo(a) autor(a) da herança resultarem de atividade em que
1 1~
II
haja colaboração do(a) companheiro(a), terá o sobrevivente direito à me-
tade dos bens”. Numa clara confusão entre institutos que nada têm a ver
entre si, quais sejam a sucessão e a meação, porquanto: “A meação corres-
ponde ao direito que se tem à quota parte, equivalente à metade, em vida;
já o direito derivado da sucessão nasce pelo fato da morte. A meação é
devida se houver colaboração. E a colaboração tem um amplo sentido,
material e moral”, na lembrança de ILui~ Edson Fachin.27
Já o caput do art. 5•0, da Lei 9.278/96, dispõe: “Os bens móveis e
imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância
da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e
da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e
em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito” ou
quando “a aquisição patrimonial ocorrer com o produto de bens adquiri-
dos anteriormente ao inicio da união” (~ 1.0), cabendo a administração do
patrimônio comum aos conviventes a ambos, salvo cláusula em contrário
em contrato escrito (~ 2.0) e ressalvando o parágrafo único do art. 7.~:

26 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. O fim do concubinato. Coluna “Data Vcnia”. Folha


de 5. Paulo,
28.05.1995, Caderno 2, p. 2.

27 FACHIN, Luiz Edson. Curso de direito dviI~ fundamentos..., cit., p. 70-71.

255

ANTÔNIO CARLOS MATHIAS COLTRO

“Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o


sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou
não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imó-
vel destinado à residência da família”.

Dessarte e conquanto se possa ter de melhor redação e adequação


ao instituto a que se destina, da união estável, a lei mais moderna, nos
aspectos referidos, uma ressalva é cabível e que mostra — ao menos no
ponto a que se refere — ter andado melhor a redação da Lei 8.971, ao
mencionar, no art. 30 o direito do companheiro sobrevivo à
metade dos
bens deixados pelo outro, falecido, resultantes “de atividade em
que haja
colaboração” de ambos, uma vez que de acordo com o art. 5•() da
Lei
9.278, o direito à partilha diz com os bens adquiridos por um ou
ambos
~lI dos conviventes, “na constância da união estável e a título
oneroso
ainda não se podendo olvidar, relativamente à Lei 8.971, ter a jurispru-
dência firmado “(...) que a colaboração é conceito lato, e compreende não
apenas a aquisição, vale dizer, a contribuição em sentido estrito, como
também a conservação. A meação decorre, pois, da existência de comu-
nhão de vida no momento do ingresso de bens na esfera jurídica dos com-
[~I panheiros”, na lembrança de Fachin,28 apesar do acerto da Lei 9.278 ao
considerar como passando a pertencer a ambos os companheiros, como
fruto do trabalho e da colaboração comum, os bens móveis e imóveis
adquiridos por um ou ambos os conviventes, durante a união de fato.
De outra parte e ainda quanto art. 1.0 da Lei 9.278, no tocante a
expressão “a título oneroso”, inexistente no art. 1.0 da Lei 8.971, perce-
be-se, como alertado por Guilherme Calmon Nogueira da Gama, que: “A
disponibilidade entre os companheiros, em matéria de regime de bens,
somente abrange os bens adquiridos onerosamente durante a união, afasta-
dos os bens adquiridos anteriormente, a qualquer título, e os adquiridos
no curso do companheirismo a título gratuito ou por fato eventual”.29 Além
daqueles decorrentes de sub-rogação real de efeito pessoal, conforme
Fachin, e decorrentes de “aquisição patrimonial, durante a convivência,

28 Ibidem, p. 85.

29 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O companheirismo: uma espécie de família.


S~o Paulo:

RT, 2001, p. 342.

256

A PRESUNÇÃO ABSOLUTA E RELATIVA NO ESFORÇO...

com o produto de bens que já estavam no patrimônio dos conviventes ao


início da união”.
Para culminar e sem que se aluda a outras regras inseridas em
ambos os diplomas, o art. 11 do segundo deles limitou-se a revogar as
disposições em contrário, surgindo, desde logo, e cumprindo examinar-se,
na seqüência, se coexistem ambos os diplomas.

3 A LEI 8.971/94 E A SUPERVENIENCIA


DA LEI 9.278/96

“As Leis se complicam, quando se multiplicam”


CMarquês de Maricá)

I~~4l
~dIa~
Editada a Lei 8.971 e inclusive por conta das críticas contra ela
lançadas — tanto em função de implicar retrocesso quanto a determinados
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aspectos, como, p. ex., o de determinar a avaliação da união estável mais
pela quantidade de tempo em que os conviventes permanecessem juntos ii —.
do que pela qualidade que a permanência pudesse ter,31 “pois a situação é
sempre a mesma, a soma do tempo não edifica direito algum à compa-
nheira, nem lhe cai proveito em detrimento da moral social”, segundo
escrito por Ac1a/~yl Lourenço Dias,32 bem como a circunstância de haver
desconsiderado a situação daqueles que, embora casados, estivessem
separados de fato e passassem a ter vida em comum com outra pessoa —,
veio a lume a Lei 9.278, de 1996, suprindo omissões e corrigindo aspectos
do anterior diploma, desde logo surgindo o debate sobre se teria ela ou
não ab-rogado, derrogado ou em nada interferido na Lei 8.971, principal-
mente porque, e como referido, seu art. 11 cingiu-se a revogar as disposi-
ções em contrário, o que, a rigor, seria desnecessário.
Conforme bem apontado por Guilherme Calmon, “a cláusula gené-
tica aposta na maioria dos textos legislativos dispondo quanto à revoga-
30 FACHIN, Luiz Edson. Curso..., cit., p. 87.

31 Cf. o trabalho a que se refere a nota n. 13, supra.

32 DIAS, Adahyl Lourenço. A concubina e o direito brasileiro. S~io Paulo:


Saraiva, 198, p. 83.

257

ANTÔNIO CARLOS MATH IAS COLTRO

“Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o


sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou
não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imo-
vel destinado à residência da família”.

Dessarte e conquanto se possa ter de melhor redação e adequação


ao instituto a que se destina, da união estável, a lei mais moderna, nos
aspectos referidos, uma ressalva é cabível e que mostra — ao menos no
ponto a que se refere — ter andado melhor a redação da Lei 8.971, ao
mencionar, no art. 3~o, o direito do companheiro sobrevivo à metade dos
bens deixados pelo outro, falecido, resultantes “de atividade em que haja
colaboração” de ambos, uma vez que de acordo com o art. 5.’~ da Lei
9.278, o direito à partilha diz com os bens adquiridos por um ou ambos
dos conviventes, “na constância da união estável e a titulo oneroso”,
ainda não se podendo olvidar, relativamente à Lei 8.971, ter a jurispru-
dência firmado “(...) que a colaboração é conceito lato, e
compreende não
II
a penas a aquisição, vale dizer, a contribuição em sentido
estrito, como
também a conservação. A meação decorre, pois, da existência de
comu-
ii nhão de vida no momento do ingresso de bens na esfera jurídica
dos com-
iii panheiros”, na lembrança de Fachin,28 apesar do acerto da Lei
9.278 ao
considerar como passando a pertencer a ambos os companheiros,
como
fruto do trabalho e da colaboração comum, os bens móveis e
imóveis
adquiridos por um ou ambos os conviventes, durante a união de
fato.
De outra parte e ainda quanto art. 1.0 da Lei 9.278, no
tocante à
expressão “a título oneroso”, inexistente no art. 1.0 da Lei
8.971, perce-
be-se, como alertado por Guilherme Calmon Nogueira da Gama, que:
“A
disponibilidade entre os companheiros, em matéria de regime de
bens,
somente abrange os bens adquiridos onerosamente durante a união,
afasta-
dos os bens adquiridos anteriormente, a qualquer título, e os
adquiridos
no curso do companheirismo a título gratuito ou por fato
eventual”.29 Além
daqueles decorrentes de sub-rogação real de efeito pessoal,
conforme
Fachin, e decorrentes de “aquisição patrimonial, durante a
convivência,

28 Ibidem, p. 85.

29 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O companheirismo: uma espécie de família.


S~o Paulo:

RT, 2001, p. 342.

256

A PRESUNÇÃO ABSOLUTA E RELATIVA NO ESFORÇO...

com o produto de bens que já estavam no patrimônio dos conviventes ao


início da união~~ 30
Para culminar e sem que se aluda a outras regras inseridas em
ambos os diplomas, o art. 11 do segundo deles limitou-se a revogar as
disposições em contrário, surgindo, desde logo, e cumprindo examinar-se,
na seqüência, se coexistem ambos os diplomas.

3 A LEI 8.971194 E A SUPER VENIÊNCIA


DA LEI 9.278/96

“As leis se complicam, quando se multiplicam”


(Marquês de Maricá) F
I~i

Editada a Lei 8.971 e inclusive por conta das críticas contra ela
II
lançadas — tanto em função de implicar retrocesso quanto a determinados
aspectos, como, p. ex., o de determinar a avaliação da união estável mais
pela quantidade de tempo em que os conviventes permanecessem juntos
do que pela qualidade que a permanência pudesse ter,31 “pois a situação é
sempre a mesma, a soma do tempo não edifica direito algum à compa-
nheira, nem lhe cai proveito em detrimento da moral social”, segundo
escrito por Ada/~yl Lourenço Dias,32 bem como a circunstância de haver
desconsiderado a situação daqueles que, embora casados, estivessem
separados de fato e passassem a ter vida em comum com outra pessoa —,
veio a lume a Lei 9.278, de 1996, suprindo omissões e corrigindo aspectos
do anterior diploma, desde logo surgindo o debate sobre se teria ela ou
não ab-rogado, derrogado ou em nada interferido na Lei 8.971, principal-
mente porque, e como referido, seu art. 11 cingiu-se a revogar as disposi-
ções em contrário, o que, a rigor, seria desnecessário.
Conforme bem apontado por Guilherme Calmon, “a cláusula gené-
rica aposta na maioria dos textos legislativos dispondo quanto à revoga-
30 FACHIN, Luiz Edson. Curso..., cit., p. 87.

31 Cf. o trabalho a que se refere a nota n. 13, supra.

32 DIAS, Adahyl Lourenço. A concuíbina e o direito brasileiro. S~o Paulo:


Saraiva, 198, p. 83.

257

ANTÔNIO CARLOS MATH IAS COLTRO

ção dos preceitos anteriores e contrários ao preceito novo, evidente-


mente é despicienda, considerando que toda norma anterior incompatí-
vel com a posterior, com a mesma força hierárquica, sendo esta não
eivada de vício formal ou material de inconstitucionalidade, está impli-
citamente revogada”,33 até porque, segundo o art. 2.0, § 1 .“ da Lei de
Introdução ao Código Civil: “A lei posterior revoga a anterior quando
expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando
regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”, determinan-
do o § 2.0 do mesmo dispositivo a subsistência da lei anterior quando a
nova “estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes”.
Entretanto e ainda de acordo com Calmon: “É importante notar
• que, malgrado a Lei 9.278/96 tenha sido aprovada com o objetivo de
regular o preceito constitucional contido no art. 226, § 32, conforme
consta de sua ementa, as disposições constantes do texto legal nem de
longe abrangeram todos os pontos já tratados em leis anteriores e,
especialmente, na Lei 8.971/94”2~ Concluindo o Prof. Alvaro Villaça
A~evedo não ter ocorrido a revogação total da lei anterior pela posterior,
mas apenas parcialmente, referindo-se ao aspecto do direito alimentar e à
Ii
não prevalência do art. 3~0 da primeira Lei, ante a regra do art. 5.” da
segunda,35 posição que, de forma geral, é a de Humberto Theodoro Júnior,
atualizando a obra do Prof. Orlando Gomes

- “É bom notar que Lei 9.278 não substituiu a Lei 8.971, mas
apenas a revogou em parte, naquilo que instituiu alguma norma
diferente e incompatível com que antes fora disciplinado pela
última lei. O certo, porém, é que a Lei 9.278 não regulou
inteiramente a matéria tratada pela Lei 8.971 e somente em um
ou outro ponto tratou de objeto que já havia sido cogitado por

33 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O companheirismo..., cit., p. 495-


496. Ressalta o
ilustre magistrado e doutrinador, inclusive, cuidar-se dc “prática legislativa
náo apropriada,
portanto devendo ser expurgada dos sistema jurídico brasileiro. Em seu lugar,
devem ser
adotadas providências no sentido de indicar as disposições ou as leis que
perderáo sua força
com o advento da nova lei, ou o novo texto deve ser omisso quanto ao tema,
permitindo que
o exegeta possa veri6car se há ou não incompatibilidade entre os dois textos, ou
se o último
regula toda a matéria da lei precedente” (p. 496).
34 Ibidem, p. 497.
35 AZEVEDO, Alvaro Villaça. Estatuto da famiba de fato. São Paulo:
Jurídica Brasileira, 2001, p. 405.

258

A PRESUNÇÃO ABSOLUTA E RELATIVA NO ESFORÇO...

esta última. Nesses pontos de conflito e incompatibilidade é


que terá ocorrido a parcial revogação da Lei 8.971”2~

Quanto ao aspecto que interessa aos presentes comentários e con-


cernente ao patrimônio adquirido durante a união estável, necessário se
faz concordar com o mestre Villaça e o Prof. Galmon, no entendimento
sobre estar revogado o art. 32 da Lei 8.971, pelo art. 52 da Lei 9.278, pre-
valente, quanto à matéria, apenas o último, uma vez que “o regime de
bens instituído pela lei antiga não permitia disposição em contrário, ou
seja, a lei não autorizava a existência de regime diverso do expressamente
previsto, com a devida interpretação” ,~‘ o que a atual permite, exigindo a
anterior, ademais, a prova da colaboração do companheiro, enquanto a mais
moderna presume essa colaboração, nos termos que enuncia.
Por outro lado — e se o art. 32 da Lei 8.971/94 remetia ao seu art. 22,
o qual, por sua vez, se referia ao art. 1.0, no qual contida a moldura da
II

união estável então proposta pelo legislador (companheiro~a] livre, rectius,


solteiroLaj, separadoía] judicialmente, divorciado[a] ou viúvoLa] e vida em
comum há mais de cinco anos ou existência de prole) e o art. 1 .“ da Lei
9.278 reconheceu “a convivência duradoura, pública e contínua, de um
homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de famí-
lia”, como a entidade familiar a que se refere o art. 226, § 32, da CF —
logicamente que os requisitos contidos na Lei de 1994 foram superados,
também, pelo que a Lei de 1996 entendeu como preciso à definição da
entidade familiar considerada pela norma constitucional, prevalecendo,
desta forma, o desenho firmado na última das leis referidas, em detrimen-
to do contido na anterior.
Afirmado, portanto, que o art. 5.~ da Lei 9.278/96 revogou o art. 3o
da Lei 8.971/94 e que o paradigma a ser levado em conta, para o
conceito do que seja a união estável prevista no art. 226, § 30 da CF, é o
previsto no art. 1.” do diploma de 1996, superada, assim, a engenharia
utilizada no art. 1.” do de 1994, e sem que se ingresse, aqui, no exame das
questões pertinentes ao direito intertemporal, passa-se ao exame sobre a
natureza da presunção a que se refere o art. 52 supracitado.

36 GOMES, Orlando. Direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 48.


37 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O companheirismo..., cit., p. 500.

259

ANTÔNIO CARLOS MATHIAS COLTRO

4 A PRESUNÇÃO A QUE SE REFERE O ART. 5•O


DA LEI 9.278/96

“Construir ou descobrir o direito, chamai-o como


quiserdes,” diz Pound, pressupõe “um quadro mental
do que se está fazendo e por que se o está fazendo”
(B enjamin Nathan Cardozo)38

Alterando o sistema da Lei 8.971, em que o art. 32 determinava o


direito do companheiro sobrevivo à metade dos bens deixados pelo
companheiro falecido, desde que tivesse havido colaboração de ambos
na aquisição, o art. 5•0 caput, da Lei 9.278 dispôs:

“Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os


• conviventes, na constância da união estável e a título oneroso,
são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum,
passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes
iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito”.

Como corolário de seu enunciado, de forma clara e a não admitir


questionamento, estabeleceu o dispositivo em comentário presunção legal
sobre serem os bens adquiridos na constância da união estável considera-
dos fruto do trabalho e da colaboração de ambos os conviventes, “pas-
sando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais” e inde-
pendente da prova sobre a contribuição de cada qual para a aquisição,
bastando a apurar-se a existência da união estável, decorrente esta da
confluência de interesses dos companheiros, com vistas a objetivo co-
mum e conseguindo, com fundamento sobretudo em respeito e conside-
ração mútuos, assistência moral e material recíproca em situação dura-
doura, pública e contínua, a revelar o intuito de estabelecer-se família.
Neste aspecto e como aponta a Advogada Marilene Silveira Guima-
rães: “Ao estabelecer o condomínio irrestrito dos bens, o legislador
valoriza o afeto, o apoio psicológico, a solidariedade que um convivente

38 Op. cit., p. 215.

260

A PRESUNÇÃO ABSOLUTA E RELATIVA NO ESFORÇO...

presta ao outro, reconhecendo o amor como valor jurídico”.39 Do que


resulta, como antes citado, importar não apenas a colaboração material
de cada um na aquisição dos bens, mas e também a contribuição afetiva e
a qual se acresce aquela circunscrita, no que toca à mulher, às atividades
que desenvolve cuidando da família e da casa, que, mesmo se considera-
da “indireta”, tem fundamental importância, muitas vezes, à consecução
dos objetivos comuns.
Posto isso, o primeiro questionamento que surge em função dos
termos do dispositivo em comentário tem a ver com a natureza da presun-
ção que dele emerge, quanto aos aqüestos, ou seja, se é absoluta ou relativa
e, assim, se admite ou não prova em contrário.
E tema que tem enfrentado posições divergentes na doutrina, enten-
dendo Guilherme Calmon Nogueira da Gama tratar-se de presunção absoluta,
O
~1
“nao somente pela própria instabilidade que se instauraria no seio
familiar, como também e, principalmente, na sociedade. O dispo- ~
1
sitivo é claro ao somente admitir que o regime de bens não preva-
li,~
lecerá se houver estipulação em contrário. E, no § 1.0, do art. 5•o,

da mesma lei, há expressa referência que somente no caso da d


aquisição decorrer da utilização de produto da venda de bens
adquiridos anteriormente ao inicio da união a presunção contida
no caput deixa de existir. Caso a lei pretendesse excepcionar a
regra fundada na falta de contribuição, certamente teria expressa-
mente cuidado do assunto, o que não ocorreu. Desse modo, não
se pode considerar a possibilidade de se admitir prova em contrá-
rio da presunção absoluta, introduzida pela lei”.40

O eminente Prof. Zeno Veloso, com quem ousei dividir esta mesa de
trabalhos, em função de um desejo íntimo de aprender mais e atento à
advertência de Kier/egaard Soren, que, “ousar é perder o equilíbrio por uns
instantes, mas não ousar é perder-se a si mesmo”, observa, após mencio-
nar a antiga súmula 380 do Colendo Supremo Tribunal Federal:

39 GUIMARÂES, Marilena Silveira. A união estável e a Lei 9.278, publicada em 13


de maio de

1996, no Caderno de Estudos o. 2, do Instituto Brasileiro de Estudos


Interdisciplinares de Direito de
Família. Jurídica Brasileira, 1998, p. 215-225.

40 (;AMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O companheirismo..., cit., p. 339.

261

ANTÔNIO CARLOS MATH IAS COLTRO

“Agora, por força do art. 52, caput, da Lei 9.278, há a presunção


legal de que os aqüestos são fruto do trabalho e da colaboração
comum dos parceiros, presunção esta que não pode ser elidida
por prova em contrário, mas, somente, por estipulação contrária
dos conviventes, em contrato escrito “•41

O Prof. Alvaro Villaça de A~evedo, contudo e após aludir à pos sibili-


dade de os companheiros, no ato de aquisição de um ou de todos os bens,
ressalvarem a participacão de um deles, a maior, na aquisição, com vistas
a efeitos futuros, além de ser-lhes admitido “fazer contrato, programando
toda a sua vida econômico-financeira, como possibilita, expressamente,
esse artigo”, tem diverso pensar:
‘4

1 “Veja-se, mais, que a presunção estabelecida nesse artigo é iuris


tantum (e não iuris et de iure), pois admite prova em contrário.
4 Realmente, a união pode ser conturbada, de tal sorte, por um
dos
concubinos, que reste comprovada sua completa ausência de

A
colaboração, como, por exemplo, a vida irresponsável, de má
• conduta ou de prodigalidade; a de mero companheirismo, na
1 relação aberta; a pautada por vícios de embriaguez, de jogo etc”.42

Das Minas Gerais, o jurista e Prof. Rodrt,~go da Cunha Pereira não


aponta
solução diversa:

“Presume-se que os bens adquiridos na constância da união, a


título oneroso, pertencem a ambos, porque adquiridos com
esforço comum. Entretanto, é importante salientar que esse es-
forço comum é só uma presunção. Sendo assim, pode-se deter-
minar o contrário, ou seja, provar que os seus, ou determinados
bens, não foram fruto do trabalho e/ou da contribuição de
ambos”.43

41 SOREN, Kierkgaard. União estável. Pará/São Paulo: CEJUP, Coi Biblioteca do


Ministério
Püblico, v. 5, 1997, p. 83.

42 AZEVEDO, Alvaro Villaça. Estatuto da família de fato, cit., p. 389.

43 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. Belo Horizonte: Dcl


Rey, 1997, p. 117.

262

A PRESUNÇÃO ABSOLUTA E RELATIVA NO ESFORÇO...

Para Rainer C~ajkows/ei, Prof. Titular de Direito Civil na Faculdade


de Direito de Curitiba, o art. 52, supra, estabelece presunção relativa de
condomínio, pois:

“Na união livre estável, quando o homem e a mulher juntam


esforços, dinheiro ou trabalho, para a aquisição de um bem, já
caracterizam sociedade de fato. Se ambos se tornam titulares
deste bem, o condomínio é o resultado da sociedade de fato havida.
Mas se somente um deles se torna titular do bem, sociedade de
fato continuou existindo, só que o efeito jurídico, condomínio,
não foi alcançado. O art. 52 da Lei 9.278 inspirou-se nesta situa-
ção para presumir este efeito, mas não o fez em termos absolutos.
Esta é uma das diferenças básicas entre o casamento e a união
estável: nesta é imprescindível o esforço comum (direto ou mdi-
reto); naquele não se discute isto”.44

Entretanto e de seu ponto de vista, a relatividade da presunção não a


decorre da circunstância de inverter o ônus da prova ou permitir a produ-
ção de prova contrária, concluíndo, em interessantes considerações: 1 ~
~II

“É relativa porque não se refere a todos os bens dos parcelros, e


porque pode ser afastada por contrato escrito. Prova em contrá-
rio seria demonstrar que a aquisição se deu por trabalho exclusi-
vo de um, sem colaboração do outro. Esta prova não se admite.
Se um dos parceiros demanda contra o outro, com pretensão
patrimonial fundada no art. 5•O, óbvio que não contratou com
ele afastando a presunção. Seria um contra-senso processual. Se
o fez, pode ter outras pretensões contra o ex-parceiro, mas não
tem com fundamento neste art. 52. Pode, ainda, ter contratado
parcialmente afastando a presunção, e demandar pela aplicação
,‘ 45

da presunção sobre outros bens não atingidos pelo contrato

Pondera, ainda, entender redundante esse artigo da lei, quando


afirma que os bens adquiridos pelos conviventes passam a pertencer a

44 CZAJKOWSJKI, Rainer. União livre. Curitiba: Juruá, 1996, p. 110.

45 Ibidem, p. 118.

263

ANTÓNIO CARLOS MATHIAS COLTRO

ambos, pois “bem adquirido por ambos já é condomínio, não precisa a lei
presumir”, devendo-se aplicar a presunção de condomínio no tocante ao
bem adquirido por qualquer um deles, desde que estável a união de vidas,
pois: “Presumir condomínio implica descartar prova da colaboração para a
aquisição patrimonial. Importa é haver ou ter havido família”.46
Respeitada a posição dos que pensam diversamente, entendemos
que a posição em que melhor se enquadra o art. 5.” da Lei 9.278/96 é a de
ser relativa a presunção dele decorrente.
Tal conclusão decorre tanto da circunstância de que os seus próprios
§ § 1.0 e 2.” apresentam hipóteses em que a presunção não ocorrerá como
porque o importante é a existência presente ou passada da união de fato e
segundo o desenho emergente do que consta nos arts. 1.0 e 2.0 da Lei
9.278, sem o que não será possível afirmar-se a presunção.
De outra parte, poderá um dos conviventes ter adquirido algum
bem com o produto advindo da venda de outro, de sua única propriedade
e anterior ao inicio da união de fato, caso em que, como já
visto, não é
e possível comunicação com o parceiro. Se a presunção for tida
como
e absoluta, não se admitindo ao primeiro a prova a respeito da circunstân-
eia referida, já que o bem foi adquirido na constância da vida em comum,
e
logicamente estar-se-á abrindo porta ao enriquecimento ilícito do outro
convivente.
É o que pensa também a Profa. Débora Goz~o:

a presunção legal do art. 5•0, caput, dessume-se ser relativa


pelo próprio conteúdo da norma legal, vez que nela encontra-se
prevista a possibilidade dos conviventes estabelecerem, em
contrato escrito, hipótese diversa de condomínio para bens
adquiridos após o inicio da vida em comum

Ressalva, contudo, não ter aludido a Lei 9.278/96 à possibilidade de


outro meio de prova além do contrato escrito como forma de arredar a
presunção sobre o condomínio, no tocante a que, todavia, parece-nos que a
ressalva atinente ao contrato escrito não exclui o entendimento sobre serem
possíveis outros meios de prova com vistas ao afastamento do condomínio,
conforme, aliás, a lição do Prof. Vi/laça de A~evedo antes mencionada.

46 Idem.

264

A PRESUNÇÃO ABSOLUTA E RELATIVA NO ESFORÇO...

Assim, e se anteriormente a 1988 orientava a Súmula 380 sobre a


necessidade de ser comprovada a existência da sociedade de fato entre os
concubinos, com vistas ao partilhamento do patrimônio adquirido pelo
esforço comum, atualmente e por força do art. 5•0 da Lei 9.278/96, a
demonstração sobre haver-se configurado a união estável conforme a
moldura prevista no art. 1.” do mesmo diploma induz presunção relativa
de que os bens adquiridos por um ou pelos dois conviventes, na constân-
cia da vida em comum, pertencem a ambos, em condomínio e em partes
iguais, observada a ressalva contida no § 2.” do art. 50 que deve respeitar,
também, a circunstância de, sendo o bem ou alguns dos bens de proprie-
dade exclusiva de apenas um dos parceiros, que já o tinha antes de iniciada
a vida em comum,não se pode deixar de lado os efeitos advindos da
colaboração do companheiro, na sua manutenção e melhora, já que con-
soante de muito afirmado, pois:

se não houve cooperação do outro na aquisição, que se deu


antes do concubinato, a conservação, a valorização e melhoria
receberam o concurso do galardão da companheira, o que inte-
gra o seu trabalho nos bens assim melhorados, vincula o direito
da concubina ao mesmo patrimônio numa percentagem repre j U
sentada por determinada quota-parte, correspondente àquele
trabalho. Igual entendimento adotou o Tribunal bandeirante,
confirmado pelo Supremo Tribunal em uma ação movida pela
companheira contra o espólio do falecido concubinário. Procla-
mou-se que, embora não houvesse contribuição da autora na
aquisição dos imóveis inventariados, a ela se deferia uma quota
de 1Á em um imóvel rural porque “as melhorias que ambos
introduziram no mesmo, tornando-o de deficitário em produti-
vo, ficaram bem positivadas pelas provas colhidas”.47

Assim e da mesma forma que se afirmou a relatividade da presun-


ção quanto à participação dos companheiros na aquisição dos bens, e
embora o art. 51’ se refira a partes iguais para cada um, não se pode deixar
de levar em conta a possibilidade acima referida, sob pena de não o
fazendo incidir-se em solução iníqua no tocante a um dos conviventes.

47 DIAS, Lourenço. A concubitza..., cit., p. 121.


265
a es e a ame a a

DIREITO SUCESSÓRIO

DOS COMPANHEIROS

Zeno Veloso
Professor de Díreito Cívil na Universidade Federal do Pará
e de Direito Civil e Direito Constitucional na Universidade
da Amazônia. Tabelião. Integrante da Comissão
que elaborou o Anteprojeto de Consolidação de Leis
de Família e Sucessôes. Membro fundador e Diretor
Regional Norte do IBDFAM.

1W
___________________ Sumário ___________________

1. Apresentação do tema. 2. Sucessão dos cônjuges — das


Ordenações Filipinas ao Código Civil de 1916. 3. Sucessão
entre companheiros — Leis 8.971/94 e 9.278/96. 4. Suces-
são dos cônjuges no novo Código Civil — direito comparado.
5. Sucessão entre companheiros no novo Código Civil —
crítica. 6. Proposta de reforma legislativa.

1 APRESENTAÇÃO DO TEMA

Pretendo, nesta exposição, criticar o Projeto do Novo Código Civil


pela solução, a meu ver avelhantada e discriminatória, que deu ao direito
sucessório entre companheiros. Trata-se de um ponto que, urgentemen-
te, ainda na fase da vacatio /egis do Código, deve ser modificada, para que
ele não comece a vigorar com esta mácula.
Não por acaso, mas porque tudo tem a ver, dada a paridade de
situações, começo fazendo uma abordagem histórica sobre o direito
sucessório dos cônjuges, mostrando como a legislação in fieri regulou a
matéria.

267

ZENO VELOSO

2. SUCESSÃO DOS CONJUGES - DAS ORDENAÇOES


FILIPINAS AO CÓDIGO CIVIL DE 1916

As Ordenações Filipinas prescreviam que, se o falecido não deixou


parentes até o 10.0 grau da linha colateral, seria chamado à sucessão o
cônjuge sobrevivente, se ao tempo da morte do outro viviam juntos,
habitando a mesma casa.
Na Consolidação das Leis Civis, Teixeira de Freitas teve de guardar
fidelidade ao direito anterior e estabeleceu (art. 959) que a sucessão se
defere na seguinte ordem: aos descendentes; na falta de descendentes,
aos ascendentes; na falta de uns e outros, aos colaterais até o 10.” grau
por Direito Civil; na falta de todos ao cônjuge sobrevivente; ao Estado
em último lugar. O art. 973 da Consolidação complementava: “Na ordem
dos cônjuges, a herança é deferida ao sobrevivente, sendo que, ao tempo
da morte, vivessem juntos habitando na mesma casa
Criticando essa vocação dos colaterais até o 10.0 grau, Clóvis
Bet.iláqua
observa que, nesse grau, não há mais consciência da unidade da família,
não há mais essa afeição simpática dos parentes entre si, concluindo: “não
se distingue mais o parente do conterrâneo
E era só depois deste parente em grau afastadíssimo, deste mero
“conterrâneo”, que seria chamado o cônjuge sobrevivente à sucessão do
finado. Com certeza, pouquíssimas vezes chegou a vez do cônjuge, para
suceder ab intestato, diante desta legislação rigorosa, que, praticamente, o
excluía da herança, embora devamos ter presente que o regime legal
supletivo, nessa época, era o da comunhão universal de bens, também
chamado “por carta de ametade”)
No começo do século XX, ocorreu uma notável alteração quanto à
ordem da vocação hereditária, invertendo-se a posição do cônjuge e dos
colaterais, ficando o cônjuge sobrevivente em terceiro lugar, depois dos
descendentes e dos ascendentes, e os colaterais em quarto. A mudança foi
determinada pelo Decreto 1.839, de 31 de dezembro de 1907 (conhecido
como Lei Feliciano Penna, em homenagem ao seu autor, senador mineiro).

1 ORDENAÇOES FILIPINAS, Livro 4, Título 46 princ.; Consolidaçlo das Leis Civis,


de
Teixeira de Freitas, art. 111; Decreto 181, de 1890, art. 57; Código Civil de
1916, art. 258,
caput, na redaçio original.

268

DIREITO SUCESSÓRIO DOS COMPANHEIROS

Além disto, a Lei Feliciano Penna limitou o chamamento dos colaterais

ao 6.0 grau, o que, na época, foi considerado uma inovação importante.


O Código Civil de 1916 manteve as soluções da Lei Feliciano Penna,
expondo, no att. 1.603, a ordem da vocação hereditária, afirmando, no
art. 1.611, que à falta de descendentes ou ascendentes será deferida a
sucessão ao cônjuge sobrevivente, se, ao tempo da morte do outro, não
estavam desquitados (após a Lei do Divórcio, o dispositivo passou a dizer:
“se não estava dissolvida a sociedade conjugal”). O art. 1.612, em sua versão
original, previa: “Se não houver cônjuge sobrevivente, ou ele incorrer na
incapacidade do artigo 1.611, serão chamados a suceder os colaterais até o
sexto grau”. Este art. 1.612 foi sucessivamente alterado: o Decreto-lei
1.907, de 26.12.1939, limitou o direito hereditário dos colaterais ao 2.~
grau (irmãos); o Decreto-lei 8.207, de 22.11.1945, determinou que a
vocação hereditária dos colaterais ia até o 3•o grau (tios, sobrinhos); por
último, o Decreto-lei 9.461, de 15.07.1946, fixou a vocação dos colaterais
até o 4.” grau (tio-avô, sobrinho-neto, primos).
C/óvis Bevi/ãqua pondera que, unidos pelo mais íntimo dos laços, pela
comunhão de afetos e de interesse era uma necessidade moral indeclinável
conceder, ao cônjuge sobrevivo, direito sucessório preferente ao dos cola-
terais, embora achasse que o Código devia ter ido um pouco além. Em
comentários ao art. 1.603, o civilista emérito propõe:

“Em rigor, o cônjuge supérstite deveria fazer parte das duas


primeiras classes de sucessíveis, salvo se pelo regime do casa-
mento lhe coubesse levantar a metade do patrimônio da família,
porque, então, já estaria, economicamente, amparado”.2

Caio Má,io da Silva Pereira,3 na mesma linha, expõe que, conferido ao


cônjuge o direito sucessório preferente aos colaterais, de nada lhe valeria
em face da liberdade de testar reconhecida ao outro cônjuge:

“Formando embora uma unidade psicofísica, não tem qualquer


deles meios de evitar que a disposição de última vontade, ainda

2 BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil. 3. cd. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1933,
v. VI, p. 59.
3 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituifões de dierito civil. 11. cd. Rio de
Janeiro: Forense, 1997,

v. VI, n. 447.

269

ZENO VELOSO

que mal dirigida e mal inspirada, conduza a outras mãos os haveres


matrimoniais. Somente a qualificação do cônjuge na condição
de herdeiro necessário pode defender a sua quota reservatária”.

Pelo visto, o cônjuge sobrevivente, no Código de 1916, é herdeiro


legítimo, mas facultativo, não necessário, ocupando o terceiro lugar na
ordem da vocação hereditária. Todavia, para melhorar a situação da
viúva e do viúvo , atendendo a uma aspiração generalizada no corpo
social, a Lei 4.121, de 27.08.1962 (Estatuto da Mulher Casada), acres-
centou dois parágrafos ao aludido art. 1.611, prevendo a sucessão do
cônjuge em usufruto e no direito real de habitação. É nítido o caráter
protetivo e assistencial da inovação, merecedora dos maiores aplausos, e,
no que tange à sucessão usufrutuária, parece ter raiz longínqua nas Novelas
53 e 117, de Justiniano, do século VI de nossa Era, quando o Imperador
garantiu à viúva pobre e sem dote o direito de concorrer com os herdeiros
do de cujus, para o fim de ser beneficiada com uma parte do usufruto dos
bens da herança (quarta uxória).
Assim, se o regime do casamento não era o da comunhão universal,
II terá direito o cônjuge sobrevivente, enquanto durar a viuvez, ao
usufruto
da quarta parte dos bens do cônjuge falecido, se houver filhos deste ou do
casal, e à metade, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes
do de cujus (art. 1.611, § 1.”).
Estabeleceu o legislador de 1962, portanto, concorrência do cônjuge
supérstite com os descendentes e com os ascendentes do falecido, com-
petindo a nua-propriedade desses parentes na linha reta com o usufruto
vidual. E isto em todos os regimes matrimoniais, exceto no da comunhão
universal de bens.
A jurisprudência, todavia, tem moderado o texto legal, conferin-
do-lhe uma interpretação teleológica e construtiva. Já se decidiu, por
exemplo, que o cônjuge sobrevivente fica excluído do benefício se foi
contemplado em testamento do de cujus, com usufruto ou propriedade de
bens, em quantia igual ou superior àqueles sobre os quais recairia o
usufruto legal (RT 437/204; 484/73; 713/219). O STJ, confirmando
decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, deixou assentado:

“Reconhecida a comunhão dos aqüestos, não tem a viúva-


meeira, ainda que casada sob regime diverso do da comunhão

270

DIREITO SUCESSÓRIO DOS COMPANHEIROS

universal de bens, direito ao usufruto vidual previsto no art. 1.611,


§ 1.~, do Código Civil. Precedente do STF. Recurso Especial
não conhecido”.4

Se o regime de bens era o da comunhão universal, afastado, portan-


to, o usufruto vidual, o cônjuge sobrevivente, enquanto viver e permane-
cer viúvo, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, exerce-
rá o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à resi-
dência da família, desde que seja o único bem daquela natureza a inven-
tariar (Código Civil de 1916, art. 1.611, § 2.0).
São necessários dois requisitos para que o direito real de habitação
seja atribuído: o casamento sob o regime da comunhão universal de bens —
sempre critiquei que o benefício tivesse tal restrição, entendendo que devia
ser instituído independentemente do regime de bens do casamento —, e
que o espólio tenha somente este imóvel residencial. Portanto, se no
inventário houver outro ou outros bens residenciais, o cônjuge sobrevi-
vente não exercerá o direito real de habitação.
“II

e’
3 SUCESSÃO ENTRE COMPANHEIROS —
LEIS 8.971/94 E 9.278/96

Com o advento da Constituição de 1988, entrou em vigor seu art. 226,


§ 3.~’, que enuncia: “Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a
união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo
a lei facilitar sua conversão em casamento
Convém esclarecer que a Constituição, ao sinalizar que a lei deve
facilitar a conversão da união estável em casamento, não está estabele-
cendo hierarquia, precedência ou preferência entre essas duas formas de
constituição de família. Uma conclusão neste sentido não tem base
histórica ou sociológica e se choca com os fundamentos, o todo orgânico,
o próprio ideário, liberal, igualitário, solidário e democrático da Carta
Magna. O que ela quer, simplesmente, é que, se os conviventes resolve-
rem casar, que este objetivo seja facilitado, dispensando-se os que já
vivem juntos, em união estável, como entidade familiar, de algumas
exigências que são prescritas para os que não exibem esta condição.

4 RSTJ 64/210; RT 710/178.

271

ZENO VELOSO

Em nível infraconstitucional, regulando e explicitando o estatuído


na Carta Magna, vigoram no país duas leis: Lei 8.971, de 29 de dezembro
de 1994, e Lei 9.278, de 10 de maio de 1996. A primeira tratou da sucessão
entre companheiros; a segunda, em complemento, previu o direito real de
habitação.
É preciso observar, preliminarmente, que o legislador definiu o
direito sucessório entre companheiros à imagem e semelhança do direito
sucessório dos cônjuges. A aproximação é notória.
Assim, na forma do art. 2.’~ da Lei 8.971 /94:

1 — o (a) companheiro (a) sobrevivente terá direito, enquanto


não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens
do de cujus, se houver filhos deste ou comuns;
II — o (a) companheiro (a) sobrevivente terá direito, enquanto
1
não constituir nova união, ao usufruto da metade dos bens do de
cujus, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes;
III — na falta de descendentes e de ascendentes, o (a) compa-
nheiro (a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança.
o
Por sua vez, oart. 70 parágrafo único, da Lei 9.278/96 dispõe que,
dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevi-
vente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir
nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residên-
cia da família.
Conforme a situação, o companheiro sobrevivente sucede em pro-
priedade, usufruto e habitação, copiando-se o regime do Código Civil de
1916 para o cônjuge supérstite, com uma importante diferença, todavia:
o companheiro sobrevivente pode cumular os direitos de usufruto e de
habitação; já a viúva ou o viúvo terá um benefício ou outro, não podendo
somá-los, tudo dependendo do regime de bens do casamento (cf. §~ 12 e
2.’~ do art. 1.611 do Código Civil de 1916).
Embora tenha participado da luta pelo reconhecimento das uniões
familiares constituídas fora do casamento, que teve como paladino o
saudoso Nélson Carneiro, e aplaudido as soluções constitucionais e legais
a respeito do tema, não posso deixar de registrar (como já fiz em meu
livro, União Estável Belém: Cejup, 1997) que o usufruto legal e o direito

272

DIREITO SUCESSÓRIO DOS COMPANHEIROS

real de habitação foram concedidos aos companheiros com maior ampli-


tude, sem os requisitos e restrições com que foram conferidos aos cônju-
ges, sendo estes tratados, afinal, de forma menos liberal e benevolente, e
isto, sem dúvida, é inadmissível.

4 SUCESSÃO DOS CÕNJUGES NO NOVO CÓDIGO CIVIL -


DIREITO COMPARADO

O novo Código Civil (que designarei, em seguida, pelas iniciais


CC), ainda na fase de vacatio legis, seguindo uma tendência universal,
melhorou substancialmente a posição do cônjuge na sucessão legítima,
considerando-o, inclusive, herdeiro necessário, com os descendentes e
ascendentes (art. 1.845). Segue-se a esteira do BGB, art. 2.303; do Código
Civil espanhol, art. 807; do Código Civil argentino, art. 3.593; do Código Civil
aa
italiano, art. 536 (com a Reforma de 1975) e do Código Civil português,
art. 2.157 (com a Reforma de 1977), valendo chamar a atenção de que no
5’
art. 1.884 do Projeto primitivo, elaborado em 1899 pelo venerando Clóvis
Beviláqua, já era considerado o cônjuge herdeiro necessário, o que ocor-
reu, também, no art. 785 do Anteprojeto de Código Civil, apresentado
em 1963, por Orlando Gomes. Segundo o art. 1.846 do CC, pertence aos
herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança,
constituindo a legítima.
Porém, o Código Civil não erigiu o cônjuge à condição de herdeiro
necessário, apenas, mas a de herdeiro necessário privilegiado, pois con-
corre com os descendentes e com os ascendentes do de cujus, portanto, ora
está na 12 classe dos herdeiros legítimos, concorrendo com os descen-
dentes, ora na 2.~’ classe sucessória, concorrendo com os ascendentes, e
ocupa, sozinho, a 3.’ classe dos sucessíveis. Esta posição sucessória
reconhecida ao cônjuge sobrevivente é um dos grandes avanços do novo
Código Civil, que edita:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:


1 — aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevi-
vente, salvo se casado este com o falecido no regime da comu-
nhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640,

273

ZENO VELOSO

parágrafo Único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor


da herança não houver deixado bens particulares;
II — aos ascendentes, em concorrência com cônjuge;
III — ao cônjuge sobrevivente;
IV — aos colaterais.

A remissão feita no inciso 1 ao art. 1.640, parágrafo único, não está


correta, devendo ser ao art. 1.641.
Observe-se que somente é reconhecido direito sucessório ao con-
juge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separa-
dos judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo
prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem
q culpa do sobrevivente (CC, art. 1.830). No direito comparado, apresen-
tam restrições semelhantes à vocação hereditária do cônjuge o art. 755

1
do Código Civil francês; o art. 1.933 do BGB; o art. 585 do Código Civil
italiano; o art. 945 do Código Civil espanhol; os arts. 3.574 e 3.575 do
Código Civil argentino; o art. 2.133, 3, do Código Civil português.
A exclusão da herança do cônjuge sobrevivente que estava separa-
do de fato do falecido constava nas Ordenações Filipinas,5 e Teixeira de
Freitas, no art. 973 da Consolidação das Leis Civis, consignou que, na
ordem dos cônjuges, a herança será deferida ao sobrevivente, desde que,
ao tempo da morte, vivessem juntos habitando a mesma casa , como
vimos antes.
É interessante registrar que, diante do estatuído no Livro 4, Título
94, das Ordenações, havia escritores e praxistas entendendo que, mesmo
estando divorciados os cônjuges (e as questões de divórcio pertenciam ao
Juízo Eclesiástico), o sobrevivo devia herdar do falecido, se este é que
tinha dado causa e era responsável pela separação (Barbosa, Portugal, Mello
Freire, Coelho da Rocha, Gouvea Pinto). Contra esta doutrina insurgiram-se Li~
Teixeira e o nosso Teixeira de Freitas (v. nota 25 ao art. 973 da Consolidação
das Leis Civis). Clóvis Beviláqua opina que aqueles autores que pretenderam
dar uma interpretação extensiva, beneficiando o cônjuge inocente, não
tinham razão, “em face da letra claríssima da Ordenação citada”.6 No

5 ORDENAÇÔES FILIPINAS, Livro 4, Título 94.

6 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das sacess&es. 5. cd. Rio de Janeiro: Francisco


Alves, 1955, ~ 47,

p. 118.

274
DIREITO SUCESSÓRIO DOS COMPANHEIROS

entanto, aquela interpretação construtiva dos antigos praxistas, embora


sem corresponder ao texto expresso das Ordenações Filipinas, de 1603,
como observa Beviláqua, acabou ressurgindo e sendo de alguma forma
aproveitada no novo Código Civil brasileiro (art. 1.830), já no século XXI.
O Código Civil não menciona os casos de o vínculo matrimonial ter
sido dissolvido pelo divórcio, ou de ter havido a anulação ou a declaração de
nulidade do casamento. Nem precisava! Nessas hipóteses, sem dúvida, nem
há cônjuge que pudesse ser chamado à sucessão, embora se deva alertar para
a controvertida questão do casamento putativo (CC, art. 1561; Código Civil
de 1916, art. 221). Se a anulação ou a declaração de nulidade do casamento
deu-se após o falecimento do cônjuge, estando o cônjuge sobrevivente de
boa-fé, este não perde a qualidade de herdeiro, pois a sentença anulatória
não tem efeito retroativo. Em caso de bigamia — contrariamente ao que
dispõe o art. 584, 22 alinea, do Código Civil italiano —, a maioria da doutrina
brasileira opina que a herança será dividida, em partes iguais, entre o
cônjuge legítimo e o cônjuge putativo. A matéria é complexa, extensa,
desbordando dos limites desta explanação, devendo ser consultados:
I~I
Virgílio de Sá Pereira;7 YussefSaid Cahali8 Alzipio Silveira;9 Pontes de
Miranda,10
que sentencia: dl.

“Se morre o cônjuge bígamo antes de se inscrever a sentença


constitutiva da nulidade do casamento, ou de anulação, há duas
mulheres, ou dois maridos, com direito à sucessão, desde que se
trate de casamento putativo”.

A concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes vai


depender do regime de bens do casamento, não acontecendo se o regime
foi o da comunhão universal ou o da separação obrigatória. Se o regime foi
o da comunhão parcial, a concorrência dar-se-á se o autor da herança houver
deixado bens particulares (CC, art. 1.829, 1).

7 PEREIRA, Virgílio dc Sá. Direito de família. 2. cd. Rio de Janeiro: Freitas


Bastos, 1959, p. 353.

8 CAHALI, Yussef Said. O casamento putativo. 2. cd. Sao Paulo: RT, 1979, ~. 63,
~. 136.

9 SILVEIRA, Alípio. O casamento putativo no direito brasileiro. Universitária de


Direito, 1972, p. 137

e 158.

10 PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de direito privado. 2. ed. Borsoi, t. VIII,


§ 827, p. 24.

275

ZENOVELOSO
Admitida a concorrência do cônjuge sobrevivente com os descen-
dentes do de cujus~ observando o que acima foi exposto, caberá a ele quinhão
igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser
inferior à quarta parte de herança, se for ascendente dos herdeiros com
que concorrer (CC, art. 1.832). Esta solução se inspirou no art. 2.139, n. 1,
do Código Civil português.
Pelo exposto, se o falecido deixou até três filhos, a partilha se faz
por cabeça, dividindo-se a herança, em partes iguais, entre os filhos e o
cônjuge. No caso de o de cujus possuir quatro filhos, ou mais, e tendo de
ser reservada a quarta parte da herança à viúva ou ao viúvo, os filhos
repartirão o restante. Por exemplo: o autor da herança tem quatro filhos.
Ii Neste caso, o cônjuge sobrevivente fica com um quarto da herança, e os
três quartos restantes são destinados aos quatro filhos.
Mas esta reserva hereditária mínima (1/4), conferida ao cônjuge
1
sobrevivente, pressupõe que este cônjuge seja também ascendente dos
herdeiros com que concorrer, requisito que não é previsto no art. 2.139,
n. 1, do Código Civil lusitano. Se o de cujus deixou descendentes, dos
quais o cônjuge sobrevivente não é ascendente, será obedecida a regra
geral: ao cônjuge sobrevivente caberá um quinhão igual ao dos descen-
dentes que sucederem por cabeça.
E se o falecido possuía filhos com o cônjuge sobrevivente, mas
tinha-os, também, com outra pessoa? ~uidjuris? É hipótese que o Código
Civil não resolveu, expressamente, e que a doutrina e jurisprudência
deverão esclarecer. Neste caso, o cônjuge sobrevivente não é ascendente
de todos os herdeiros com que está concorrendo. Parece que, assim
sendo, a quota hereditária mínima (1/4) não é cabível.
Na falta de descendentes, são chamados à sucessão os ascenden-
tes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente (CC, art. 1.836). Na
concorrência com os ascendentes, já não se apresentam aquelas restri-
ções decorrentes do regime de bens do casamento (CC, art. 1.829, 1). Mas
a quota hereditária é variável: concorrendo com ascendente em primeiro
grau, ao cônjuge tocará um terço da herança; caber-lhe-á a metade desta
se houver um só ascendente, ou se maior for aquele grau (CC, art. 1.837).
Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão
por inteiro ao cônjuge sobrevivente (CC, art. 1.838). Pelo sistema do
novo Código Civil, como vimos, o cônjuge já concorre com os descen-
dentes (art. 1.832) e com os ascendentes (art. 1.837) do de cujus. E não

276

DIREITO SUCESSÓRIO DOS COMPANHEIROS

havendo tais parentes na linha reta, o cônjuge sobrevivente é chamado à


totalidade da herança, excluindo, portanto, os parentes colaterais. Este
art. 1.838 corresponde ao art. 1.611, caput, do Código Civil de 1916, que
copiou o art. 1.~ da Lei Feliciano Penna, de 1907. Neste sentido, dispõem o
art. 1.931, al. 2, do BGB; o art. 944 do Código Civil espanhol; o art. 2.144
do Código Civil português; o art. 3.572 do Código Civil argentino. O
Código Civil italiano, todavia, art. 582, redatado por força da Reforma do
Direito de Família, de 1975, enuncia que, mesmo não havendo descen-
dentes, nem ascendentes, o cônjuge concorre com irmãos e irmãs do
falecido, embora tenha direito a dois terços da herança. Antes desta
Reforma, o cônjuge concorria com colaterais até o 4~o grau.
Além desta sucessão em propriedade, do qual o cônjuge saiu em
posição privilegiada, como vimos, o CC estatui, ainda, o direito real de
habitação:
Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime
de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe
caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao
imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único
daquela natureza a inventariar.

O art. 1.611, ~ 2.0, do Código Civil de 1916 institui o direito real de


habitação para o cônjuge sobrevivente. Todos apontam o caráter assis-
tencial desse direito. O legislador quer manter o status, as condições de
vida do viúvo ou da viúva, garantir-lhe o teto, a morada. Porém, não há
razão para que o favor legal seja mantido se o cônjuge sobrevivente
constituir nova família. O cônjuge já aparece bastante beneficiado no
novo Código. Não parece justo que ainda continue exercendo o direito
real de habitação sobre o imóvel em que residia com o falecido, se veio a
fundar nova família, mormente se o dito bem era o único daquela
natureza existente no espólio. O interesse dos parentes do de cujus deve,
também, ser observado. Enfim, o art. 1.831 do CC precisa ser modificado
para prever que o direito personalíssimo do cônjuge sobrevivente, neste
caso, é resolúvel, extinguindo-se, se a viúva ou o viúvo voltar a casar ou
constituir união estável.
Para efeito comparativo, façamos uma ligeira visita ao direito
português. No Código Civil daquele país, Livro do Direito de Família,277

ZENO VELOSO
Admitida a concorrência do cônjuge sobrevivente com os
descen-
dentes do de czØus, observando o que acima foi exposto, caberá a
ele quinhão
igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota
ser
inferior à quarta parte de herança, se for ascendente dos
herdeiros com
que concorrer (CC, art. 1.832). Esta solução se inspirou no art.
2.139, n. 1,
do Código Civil português.
Pelo exposto, se o falecido deixou até três filhos, a
partilha se faz
por cabeça, dividindo-se a herança, em partes iguais, entre os
filhos e o
cônjuge. No caso de o de cujus possuir quatro filhos, ou mais, e
tendo de
ser reservada a quarta parte da herança à viúva ou ao viúvo,os
filhos
repartirão o restante. Por exemplo: o autor da herança tem
quatro filhos.
Neste caso, o cônjuge sobrevivente fica com um quarto da
herança, e os
três quartos restantes são destinados aos quatro filhos.
Mas esta reserva hereditária mínima (1/4), conferida ao
cônjuge
Ii’
sobrevivente, pressupõe que este cônjuge seja também ascendente
dos
herdeiros com que concorrer, requisito que não é previsto no
art. 2.139,
ir n. 1, do Código Civil lusitano. Se o de cujus deixou
descendentes, dos
quais o cônjuge sobrevivente não é ascendente, será obedecida a
regra
geral: ao cônjuge sobrevivente caberá um quinhão igual ao dos
descen-
dentes que sucederem por cabeça.
E se o falecido possuía filhos com o cônjuge sobrevivente, mas
tinha-os, também, com outra pessoa? Quidjuris? É hipótese que o Código
Civil não resolveu, expressamente, e que a doutrina e jurisprudência
deverão esclarecer. Neste caso, o cônjuge sobrevivente não é ascendente
de todos os herdeiros com que está concorrendo. Parece que, assim
sendo, a quota hereditária mínima (1/4) não é cabível.
Na falta de descendentes, são chamados à sucessão os ascenden-
tes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente (CC, art. 1.836). Na
concorrência com os ascendentes, já não se apresentam aquelas restri-
ções decorrentes do regime de bens do casamento (CC, art. 1.829, 1). Mas
a quota hereditária é variável: concorrendo com ascendente em primeiro
grau, ao cônjuge tocará um terço da herança; caber-lhe-á a metade desta
se houver um só ascendente, ou se maior for aquele grau (CC, art. 1.837).
Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão
por inteiro ao cônjuge sobrevivente (CC, art. 1.838). Pelo sistema do
novo Código Civil, como vimos, o cônjuge já concorre com os descen-
dentes (art. 1.832) e com os ascendentes (art. 1.837) do de cujus. E não

276

DIREITO SUCESSÓRIO DOS COMPANHEIROS

havendo tais parentes na linha reta, o cônjuge sobrevivente é chamado à


totalidade da herança, excluindo, portanto, os parentes colaterais. Este
art. 1.838 corresponde ao art. 1.611, capul; do Código Civil de 1916, que
copiou o art. 1.0 da Lei Feliciano Penna, de 1907. Neste sentido, dispõem o
art. 1.931, al. 2, do BGB; o art. 944 do Código Civil espanhol; o art. 2.144
do Código Civil português; o art. 3.572 do Código Civil argentino. O
Código Civil italiano, todavia, art. 582, redatado por força da Reforma do
Direito de Família, de 1975, enuncia que, mesmo não havendo descen-
dentes, nem ascendentes, o cônjuge concorre com irmãos e irmãs do
falecido, embora tenha direito a dois terços da herança. Antes desta
Reforma, o cônjuge concorria com colaterais até o 4~o grau.
Além desta sucessão em propriedade, do qual o cônjuge saiu em
posição privilegiada, como vimos, o CC estatui, ainda, o direito real de
habitação:

Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime


de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe
caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao
imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único
daquela natureza a inventariar.

O art. 1.611, Ç 2.~, do Código Civil de 1916 institui o direito


real de
habitação para o cônjuge sobrevivente. Todos apontam o caráter assis-
tencial desse direito. O legislador quer manter o status, as condições de
vida do viúvo ou da viúva, garantir-lhe o teto, a morada. Porém, não há
razão para que o favor legal seja mantido se o cônjuge sobrevivente
constituir nova família. O cônjuge já aparece bastante beneficiado no
novo Código. Não parece justo que ainda continue exercendo o direito
real de habitação sobre o imóvel em que residia com o falecido, se veio a
fundar nova família, mormente se o dito bem era o único daquela
natureza existente no espólio. O interesse dos parentes do de cujus deve,
também, ser observado. Enfim, o art. 1.831 do CC precisa ser modificado
para prever que o direito personalissimo do cônjuge sobrevivente, neste
caso, é resolúvel, extinguindo-se, se a viúva ou o viúvo voltar a casar ou
constituir união estável.
Para efeito comparativo, façamos uma ligeira visita ao direito
português. No Código Civil daquele país, Livro do Direito de Família,

277

ZENO VELOSO

Título V —Dos Alimentos, Capítulo II — Disposições Especiais, áo art. 2.018,


que trata do apanágio do cônjuge sobrevivo. Falecendo um dos cônjuges,
o viúvo tem direito a ser alimentado pelos rendimentos dos bens deixados
pelo de cujus. São obrigados, neste caso, à prestação de alimentos os herdeiros
ou legatários a que tenham sido transmitidos os bens, segundo a propor-
ção do respectivo valor. O art. 2.019 edita que cessa o direito a alimentos
se o alimentado contrair novo casamento ou se tornar indigno do benefício
pelo seu comportamento moral.
O direito de apanágio independe da posição sucessória do cônjuge
sobrevivente e pressupõe a necessidade que possa ter a viúva ou o viúvo
a alimentos.
Já no Direito das Sucessões, Capítulo X — Partilha da Herança, Seção
4 II — Atribuições Preferenciais, aditada pelo Decreto-lei 496, de 25 de
I~rII novembro de 1977, o art. 2.103-A do Código Civil português
determina
1k que o cônjuge sobrevivo tem direito a ser encabeçado, no momento da
qç~ partilha, no direito de habitação da casa de morada da
família e no direito
de uso do respectivo recheio, devendo tornas aos co-herdeiros se o valor
*~flI recebido exceder o da sua parte sucessória e meação, se a houver. O art.
II~ 2.103-C considera recheio o mobiliário e demais objetos ou utensílios
destinados ao cômodo, serviço e ornamentação da casa.
Veja-se que se trata de mera atribuição preferencial, por ocasião da
partilha. O direito de habitação não é um benefício a mais; não aumenta
o quinhão do cônjuge, tanto assim que este tem de pagar tornas aos co-
herdeiros por ter ficado com tal direito, se o valor do mesmo exceder o da
sua parte na sucessão do finado, acrescido da meação, se a houver.
Este direito de habitação da casa de morada da família é um direito
real de gozo sobre coisa alheia. Se a casa integrar a meação ou o quinhão
hereditário do cônjuge, a situação já estará resolvida: o cônjuge é dono, e
não há que se falar em direito de habitação. José de Oliveira Ascensão explica:

“É categórico o artigo 2.103-A, que não atribui a casa ou o recheio,


mas o direito de habitação da casa de morada ou o direito de uso do
recheio. Por isso, se na partilha a titularidade destes bens pertencer
ao cônjuge, dá-se a consunção dos direitos de uso e habitação, pelo
que não haverá que entrar então em conta com estas atribuições”.11

11 ASCENSÂO, José de Oliveira. Direito civiI-sucess~es. Coimbra, s/d, n. 244, p.


486.

278

DIREITO SUCESSÓRIO DOS COMPANHEIROS


5 SUCESSÃO ENTRE COMPANHEIROS
NO NOVO CÓDIGO CIVIL - CRÍTICA

Voltando ao direito brasileiro, e tratando, diretamente, do tema


desta exposição, verificamos que no Projeto de Código Civil, aprovado,
com emendas, em 1984, pela Câmara dos Deputados, não havia nenhum
dispositivo que regulasse a sucessão entre companheiros. Quando trami-
tava no Senado, o senador Nélson Carneiro apresentou a emenda 358,
claramente inspirada no art. 668 do Projeto Orlando Gomes (revisto por
Orosimbo Nonato e Caio Mário da Silva Pereira), com vistas a suprir a
lacuna. A emenda tem data anterior à promulgação da Constituição de
1988 e, obviamente, à entrada em vigor das Leis 8.971/94 e 9.278/96. O
relator-geral, senador Josaphat Marinho, deu parecer favorável à emenda,
mas apresentou subemendas, e o texto foi aprovado pelo Senado, na
forma seguinte:

Art. 1.802. Na vigência da união estável, a companheira, ou o


companheiro, participará da sucessão do outro, nas condições
seguintes:
1 — se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma cota
equivalente à que por lei for atribuida ao filho;
1 — se concorrer com descendentes só do autor da herança,
tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III — se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a
um terço da herança;
IV — não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade
da herança.

Em obediência ao art. 65, parágrafo único, da Constituição Fede-


ral, o Projeto de Código Civil foi enviado, em 16 de dezembro de 1997, à
Câmara dos Deputados (Casa iniciadora). O relator-geral na Câmara,
deputado Ricardo Fiu~a, apresentou proposição com vistas a mudar o
caput do artigo aprovado pelo Senado, para inserir a locução “quanto aos
bens adquiridos na vigência da união estável”, e não ofereceu qualquer
modificação aos quatro incisos do mesmo artigo, aprovados pelo Senado.
O caput do dispositivo, que teve a numeração alterada, ficou assim:

279

ZENO VELOSO

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da


sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos na vigência da
união estável, nas condições seguintes:
1 —
II —
III —

Inicialmente, é estranhável a colocação do art. 1.790 e seus incisos,


regulando a sucessão entre companheiros, no Capítulo denominado
“Disposições Gerais”, da sucessão em geral. Numa conclusão que pode-
ria ter sido do conselheiro Acácio, personagem de Machado de Assis, não
devia o art. 1.790 estar nas “Disposições Gerais” porque de disposições
fl gerais não trata. O art. 1.790 tinha de ficar no Capítulo que regula a
ordem da vocação hereditária. Mas este é um problema menor. O art. 1.790
merece censura e crítica severa porque é deficiente e falho, em substân-
cia. Significa um retrocesso evidente, representa um verdadeiro equivoco.
Quando o senador Nélson Carneiro apresentou a emenda que, em
II ~ linhas gerais, resultou no art. 1.790, era outra a
realidade social. Nem
SI
mesmo a Constituição de 1988 estava em vigor. A longa tramitação do
Projeto, as transformações sociais e as mudanças legislativas que ocorre-
ram no período, enfim, a evolução e o avanço verificados no Direito Positivo
com relação à matéria tornaram aquela emenda — liberal e progressista no
tempo em que apareceu — desatualizada e precária na época presente.
Vimos que as Leis 8.971/94 e 9.278/96 regularam o direito suces-
sório entre companheiros imitando as soluções já existentes para os
cônjuges. Mas as referidas leis não apresentaram para os conviventes
alguns requisitos e limitações que, para as mesmas hipóteses, vigoravam
para as pessoas casadas, previstos não só no artigo 1.611 do Código Civil
de 1916, como indicados na jurisprudência que se formou em torno da
matéria, inclusive dos Tribunais superiores.
Muitos autores afirmaram que tal discrepância era desarrazoada,
não havendo base para que o companheiro sobrevivente fique numa
situação mais benéfica e vantajosa do que a do cônjuge supérstite. A
doutrina propugnava por uma alteração legislativa que estabelecesse o
equilibrio, a paridade das situações. O conserto dependia de uma mode-
rada intervenção; o ajuste carecia de pequena modificação.

280

DIREITO SUCESSÓRIO DOS COMPANHEIROS

Contrariando estas expectativas, o Código Civil promove um recuo


notável. O panorama foi alterado, radicalmente. Deu-se um grande salto
para trás. Colocou-se o companheiro em posição infinitamente inferior
com relação à que ostenta o cônjuge.
A sucessão do companheiro, para começar, limita-se aos bens adqui-
ridos na vigência da união estável. Quanto aos bens adquiridos onerosa-
mente, durante a convivência, o companheiro já é meeiro, conforme o
art. 1.725 do CC, inspirado no art. 5~o da Lei 9.278/96, e que diz: “Na
união estável, salvo convenção válida entre os companheiros, aplica-se
às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de
bens
Não se deve confundir meação com direito hereditário. A meação
decorre de uma relação patrimonial — condomínio, comunhão —, existen-
te em vida dos interessados, e é estabelecida por lei ou pela vontade das
partes. A sucessão hereditária tem origem na morte, e a herança é transmiti-
da aos sucessores conforme as previsões legais (sucessão legítima) ou a
vontade do hereditando (sucessão testamentária).
Alguém pode ser meeiro e herdeiro, como pode ser meeiro sem ser
herdeiro, ou herdeiro sem ser meeiro, e estas posições jurídicas têm causa
diversa, são diferentes, e se baseiam em motivos e regras distintas.
Se os bens são comuns, o companheiro sobrevivente tem direito à
meação. Mas este direito não tem origem na morte do outro convivente. O
meeiro já é dono de sua parte ideal antes da abertura da sucessão, por outro
título. Trata-se de situação que decorre do Direito de Família, não do Direito
das Sucessões. A meação do falecido é que vai ser objeto da sucessão,
juntamente com outros bens, de propriedade exclusiva, se houver.
Restringir a incidência do direito sucessório do companheiro sobre-
vivente aos bens adquiridos pelo de cujus na vigência da união estável não
tem nenhuma razão, não tem lógica alguma, e quebra todo o sistema,
podendo gerar conseqüências extremamente injustas: a companheira de
muitos anos de um homem rico, que possuía vários bens na época em que
iniciou o relacionamento afetivo, não herdará coisa alguma do compa-
nheiro, se este não adquiriu outros bens durante o tempo da convivencia.
Ficará esta mulher — se for pobre — literalmente desamparada, mormente
quando o falecido não cuidou de beneficiá-la em testamento, ou foi
surpreendido pela morte antes de outorgar o testamento que havia resol-
vido fazer. O problema se mostra mais grave e delicado se considerarmos

281

ZENO VELOSO

que o CC nem fala no direito real de habitação sobre o imóvel destinado


à residência da família, ao regular a sucessão entre companheiros, deixan-
do de prever, em outro retrocesso, o benefício já estabelecido no art. 7,0,
parágrafo único, da Lei 9.278/96.
Uma questão que poderá surgir, futuramente, é a de que, mesmo
com o início da vigência do novo Código Civil, continuaria vigorando o
parágrafo único do art. 7,0 da Lei 9.278/96, que confere o direito real de
habitação ao companheiro sobrevivente. Realmente, este preceito não é
incompatível com qualquer norma do novo Código, podendo-se argu-
mentar que ele sobreviverá, até porque está na linha determinada pela
Constituição Federal, de reconhecimento e proteção à união estável,
como entidade familiar paralela à que é fundada no matrimônio.
A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare,
quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a
matéria de que tratava a lei anterior. O Código Civil, art. 2.046, edita:

“Revogam-se a Lei 3.071, de 1.0 de janeiro de 1916 — Código


Civil, a Parte Primeira do Código Comercial, Lei 556, de 25 de
junho de 1850, e toda a legislação civil e mercantil abrangida
Sg~1
II~ por este Código, ou com ele incompatível, ressalvado o disposto
no presente Livro”.

O Código Civil tem de ser abrangente, mas não pode ser exclusivo.
Como se sabe, o Código não contém toda a legislação civil; não é — e nem
que o quisesse seria — o estatuto completo da vida privada. Ao contrário,
vivemos a “Idade da descodificação”, para usar o título sugestivo do livro
de Natalino Irti. Sem contar a legislação extravagante, proliferam, ao lado
dos Códigos, microssistemas legais, conforme Orlando Gomes,12 que cita
os rnicrossistemas das sociedades por ações, o estatuto da terra, o do mercado
de capitais, o da legislação bancária, o do inquilinato, o da responsabili-
dade civil, o dos direitos autorais, o dos seguros, o da propriedade industrial,
o da proteção ao consumidor.
No art. 2.046, o novo Código revoga expressamente o anterior,
toda a legislação civil que abrange, ou que com ele seja incompatível.

12 GOMES, Orlando. Novos temas de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1983,
cap. 3, p. 40;
AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
1998, p. 148.

282
DIREITO SUCESSÓRIO DOS COMPANHEIROS

Porém, a matéria que não foi nele inteiramente regulada, ou que com ele
não é inconciliável, continua vigorando, e o princípio já estava previsto
no Digesto (Livro 1, Título III, frags. 26 e 28): posteriores Iegis ad priores
pertznent, nisi contrarzae sint.
A própria Constituição, que é a norma superior, o comando supre-
mo, que confere o fundamento de validade a todo o ordenamento jurídi-
co, não desconhece ou revoga, automaticamente, a legislação ordinária
anterior. Ao contrário, esta continua vigorando, se não for incompatível
com a nova Constituição, que lhe confere novo fundamento de validade.
Hans Keísen explica o fenômeno, em passagem magistral: “o que existe
não é uma criação de Direito inteiramente nova, mas recepção de normas
de uma ordem jurídica por uma outra.”’3 ¶
Quanto ao direito real de habitação, beneficiando o companheiro
‘41
sobrevivente, embora o novo Código Civil não tenha se referido ao assun-
to, deixando de repetir o que estatui a Lei 9.278/96, não havendo, todavia, aa
revogação expressa, nem ocorrendo contradição, é possível, teoricamente,
a subsistência da lei especial e da lei geral posterior, regendo o mesmo
assunto. [1
II—

Mas não se pense que o caso será resolvido facilmente. A revoga-


ção tácita ou indireta representa um dos mais tormentosos problemas que
o intérprete tem de enfrentar. Sobre a questão, basta advertir que se pode
indagar se o CC apresenta, mesmo, uma omissão, se houve um esqueci-
mento, se se trata, realmente, de uma lacuna por imprevisão do legisla-
dor, ou estamos diante de uma exclusão intencional, de um “silêncio
eloqüente”, o beredtes Schweigen do direito alemão?’4
Observada aquela criticada limitação quanto aos bens que serão
objeto da sucessão, o CC, art. 1.790, 1, dispõe que, se concorrer o
companheiro sobrevivente com filhos comuns, terá direito a uma quota
equivalente a que por lei for atribuída ao filho. Se concorrer com descen-
dentes só do autor da herança, diz o art. 1.790, II, tocará ao companheiro
sobrevivente a metade do que couber a cada um daqueles. Se concorrer
com outros parentes sucessíveis (ascendentes, colaterais), terá direito a

13 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. deJoão Baptista Machado. 4. cd.
Coimbra, 1976, n. 34,
p. 290.

14 LARENZ, Karl. Metodologia da ciíncia do direito. Trad. de José Lamego. 3. cd.


Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 1997, p. 525.

283

ZENO VELOSO

um terço da herança (CC, art. 1.790, III). Finalmente, não havendo


parentes sucessíveis, isto é, se o de cujus não tiver descendentes, nem
ascendentes, nem colaterais até o 4~~) grau, o companheiro sobrevivente
terá direito à totalidade da herança (CC, art. 1790, IV).
A “totalidade da herança”, mencionada no inciso IV do art. 1.790,
é da herança a que está autorizado o companheiro sobrevivente concor-
rer. Mesmo no caso extremo de o falecido não ter parentes sucessíveis,
cumprindo-se a determinação do caput do art. 1.790, o companheiro
sobrevivente só vai herdar os bens que tiverem sido adquiridos na
vigência da união estável. Se o de cujus possuía outros bens, adquiridos
antes de iniciar a convivência, e não podendo esses bens integrar a
herança do companheiro sobrevivente, passarão para o Município ou
para o Distrito Federal, se localizados nas respectivas circunscrições, ou
a União, quando situados no Território Federal (CC, art. 1.844). Não há
quem possa, em sã consciência, defender ou sustentar esta decisão legal,
que chega às raias do absurdo. O art. 1.790 do CC é um dispositivo cruel
e inconseqüente.
Quando o art. 1.790, capul foi emendado, restringindo a herança
IF~ do companheiro sobrevivente aos bens adquiridos durante a união está-
I~I vel, deviam ter sido reescritos e adaptados à nova ordem os incisos do
referido artigo e outras disposições que regulam a matéria.
O operador do Direito tem de compreender a sucessão dos compa-
nheiros diante do comando imperativo, da regra geral do art. 1.790, caput
que subordina todas as demais prescrições a respeito do tema. A não ser
que, para escapar da esdrúxula e injusta solução do novo Código Civil,
dê-se ao assunto um entendimento que desborde da interpretação —
mesmo construtiva —, que é admissível e até louvável, ingressando no
campo da criação normativa, o que ao intérprete é vedado, ao próprio
juiz é proibido, porque estará tomando o lugar e exercendo função do
Legislativo, praticando um excesso, uma usurpação, um abuso de poder.
O CC, art. 1.839, admite o chamamento para a sucessão dos
colaterais até o quarto grau. No Projeto de Código Civil (revisto) de
Orlando Gomes, apresentado em 1965, art. 698, ficou estabelecido que na
falta de cônjuge sobrevivente — e não havendo descendentes, nem ascen-
dentes — seriam chamados a suceder os parentes colaterais até o terceiro
grau. Fico com a opinião do professor Sílvio Rodr~~gues, de que a vocação
dos colaterais até o 4~ø grau revela uma generosidade do legislador, e a

284

DIREITO SUCESSÓRIO DOS COMPANHEIROS

sucessão dos colaterais não deve ir além do 3~o grau.15 Não obstante, o
Código Civil português (art. 2.147), o espanhol (art. 954), o argentino
(art. 3.585) admitem a vocação dos colaterais até o 4•o grau. No Código
Civil italiano (art. 572), o chamamento da parentela vai até o 6.0 grau. O
Código Civil francês, de 1804, na versão original de seu art. 755, afirma-
va que não sucedem os parentes além do 12. grau. A Lei de 31 de dezembro
de 1917 modificou este dispositivo, cuja primeira alinea, agora, prevê:

‘Les parents collatéraux au-de/à da sixiême degré ne succêdent pas, à


l’excep/ion, toutefois, des descendants desfrères et soeurs da d~/’unt” “Os
parentes colaterais além do sexto grau não sucedem, com exce-
ção, todavia, dos descendentes dos irmãos e irmãs do defunto”.
~NI
Na segunda alinea, o art. 755 do Code Napoléon edita: t
Lia
“Não obstante, os parentes colaterais sucedem até o décimo-
segundo grau, quando o defunto não era capaz de testar e não
estava sujeito a interdição civil”.

Tenho acompanhado, há mais de vinte e cinco anos, desde o começo


de sua tramitação, na Câmara dos Deputados, o Projeto que redundou no
Código Civil brasileiro, de 2001. Até escrevi um livro opinativo sobre ele.16
Creio que o novo Código, sem ser perfeito, que nenhuma obra humana é
acabada e completa, atende às aspirações da comunidade jurídica e de
toda a gente. Devemos nos orgulhar do resultado. E o mérito não é
somente dos que redigiram o Anteprojeto, eminentes juristas brasileiros
(alguns deles já tendo partido desta vida terrena), mas, igualmente, de
muitos deputados federais e senadores que, ao longo do tempo em que a
proposição foi discutida no Congresso Nacional, apresentaram centenas
de emendas, com vistas a melhorá-la, atualizá-la, especialmente diante das
grandes transformações e avanços ditados pela Constituição de 1988.
Sinto-me à vontade, portanto, para reagir contra o modo com que
foi disciplinado o direito sucessório dos que vivem em união estável.

15 RODRIGUES, Sflvio. Direito civil. 24. ed. Slo Paulo: Saraiva, 2001, v. 7, n.
41, p. 83.

16 VEL()SO, Zeno. Emendas ao projeto de Gódigo Civil Belém: Grafisa, 1985.

285

ZENO VELOSO

Tanto é entidade familiar a que se funda no casamento como e


entidade familiar a que resulta da união estável, quanto é entidade familiar
a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (CF,
art. 226, §~ 30 e 4.0).
As famílias constituídas por essas formas têm a mesma dignidade, a
mesma importância, são merecedoras de igual respeito, consideração,
acatamento. Acabou-se o tempo em que, com base em preconceitos
aristocráticos, concepções reacionárias, passadistas, e argumentos repletos
de hipocrisia, as famílias eram classificadas — como os produtos nas pratelei-
ras das mercearias — em famílias de primeira classe, de segunda classe e,
até, de classe nenhuma. O jurista precisa ter gravada, na alma e no
coração, a advertência de Vitgí/io de Sá Pereira, de que a família é um fato
natural, não é criada pelo legislador, como o jardineiro não cria a prima-
vera, valendo transcrever as sábias lições do saudoso mestre pernambucano:

“Agora, dizei-me: que é que vedes quando vedes um homem e


uma mulher, reunidos sob o mesmo teto, em torno de um
pequenino ser, que é o fruto do seu amor? Vereis uma família.
S~NI Passou por lá o juiz, com a sua lei, ou o padre, com o seu
sacramento?
Que importa isto? O acidente convencional não tem força para
apagar o fato natural”.17

Se o princípio da igualdade obriga a que se coloque no mesmo


plano tanto a família constituída pelo casamento, como a que decorre da
convivência pública, contínua e duradoura; se o cônjuge é herdeiro, e
herdeiro necessário, concorrendo, inclusive, com descendentes e ascen-
dentes do falecido, como se pode admitir tamanha discriminação no
tratamento conferido aos companheiros?
Estava assentada, pacificamente, em nosso direito, a posição do
companheiro sobrevivente similar à do cônjuge supérstite. Salvo a neces-
sidade de alguns ajustes, não se via na doutrina pátria nenhuma objeção
mais profunda sobre a forma como a matéria foi disciplinada. Não há,
portanto, razão jurídica, motivo histórico, fundamento ético ou moral,
causa sociológica que justifique mudança tão intensa e radical.

17 PEREIRA, Virgílio de Sá. Direito de família..., cit., p. 90.

286

DIREITO SUCESSÓRIO DOS COMPANHEIROS

As concepções atuais do povo a respeito da sociedade familiar, que


a Constituição de 1988 reconheceu, avocou e subscreveu em normas de
hierarquia máxima, não estão minimamente atendidas na acanhada colo-
cação a que o companheiro sobtevivente está relegado no Código Civil.
Enquanto o cônjuge passou à categoria de herdeiro necessário, e em
situação privilegiada, o companheiro é considerado herdeiro facultativo,
e em posição bisonha e tímida, muito inferior à que ocupava na legislação
que vigorará até que o Código Civil comece a viger.
Ainda que se queira prestigiar os cônjuges, incentivar o casamento,
enaltecer as famílias matrimonializadas, tem algum sentido, alguma ra-
zão, alguma base econômica, social, cultural ou moral estatuir que o
companheiro sobrevivente vai concorrer com colaterais até o 40 grau do
de ctjus, e só tendo direito a um terço da herança?
Alerte-se, mais uma vez, que, embora falando os incisos 1 a III do
art. 1.790 em quotas da herança, tais incisos, obviamente, estão conecta-
dos e presos ao caput do dispositivo, e, segundo este, a sucessão do com-
panheiro não considera o patrimônio todo deixado pelo falecido. O
companheiro sobrevivente, nos termos do duro preceito do art. 1.790, só
participará da sucessão do de cujas “quanto aos bens adquiridos na vigên-
cia da união estável”.
No direito sucessório brasileiro, já se mostrava consolidado e
quieto o entendimento de que, na falta de parentes em linha reta do
falecido, o companheiro sobrevivente deve ser o herdeiro, afastando-se
os colaterais e o Estado.
Neste tempo em que vivemos, a concepção de família está se contrain-
do, para compreender, praticamente, o homem, a mulher e os filhos,
vivendo no lar conjugal ou no lar doméstico. A família, hoje, é muito
diferente da família patriarcal. E menor, menos hierarquizada. Fala-se em
família nuclear, na qual predominam os laços da afetividade e os princípi-
os da liberdade e igualdade. O legislador não pode dar as costas para este
fato social.
Na sociedade contemporânea, já estão muito esgarçadas, quando
não extintas, as relações de afetividade entre parentes colatetais de 4~o
grau (primos, tios-avós, sobrinhos-netos). Em muitos casos, sobretudo
nas grandes cidades, tais parentes mal se conhecem, raramente se encon-
tram. E o novo Código Civil brasileiro, que vai começar a vigorar no 3~o

287

ZENOVELOSO

milênio, resolve que o companheiro sobrevivente, que formou uma família,


manteve uma comunidade de vida com o falecido, só vai herdar, sozinho,
se não existirem descendentes, ascendentes, nem colaterais até o 4~0 grau
do de cujas. Temos de convir: isto é demais! Para tornar a situação mais
grave e intolerável, conforme a excessiva restrição do caput do art. 1.790,
que foi analisado acima, o que o companheiro sobrevivente vai herdar
sozinho não é todo o patrimônio deixado pelo de cujas, mas, apenas, o que foi
adquirido na constância da união estável.
Haverá alguma pessoa, neste país, jurista ou leigo, que assegure
que tal solução é boa e justa? Por que privilegiar a este extremo vínculos

biológicos, ainda que remotos, em prejuízo dos vínculos do amor, da


q ~ afetividade? Por que os membros da família parental, em grau tão
longín-
• ~ quo, devem ter preferência sobre a família afetiva (que em tudo é
compará-
• ~ vel à família conjugal) do hereditando?
q ~ Sem dúvida, neste ponto, o CC não foi feliz. A lei não está imitando
a vida, nem se apresenta em consonancia com a realidade social, quando
decide que uma pessoa que manteve a mais íntima e completa relação com
o falecido, que sustentou com ele uma convivência séria, sólida, qualifica-
da pelo animas de constituição de família, que com o autor da herança
protagonizou, até a morte deste, um grande projeto de vida, fique atrás de
parentes colaterais dele, na vocação hereditária. O próprio tempo se in-
cumbe de destruir a obra legislativa que não seguiu os ditames do seu tempo,
que não obedeceu as indicações da história e da civilização.
Aliás, no próprio CC, no texto mesmo da nova legislação civil, é
flagrante a discrepância, notória a disparidade com que os companheiros
são tratados, e isto se conclui à simples leitura do que consta no Direito
de Família e no Direito das Sucessões. Naquele, foi dedicado um título
especial à união estável — arts. 1.723 a 1.727 —, e a matéria está regulada
convenientemente, prestigiando-se a união estável entre o homem e a
mulher, com o objetivo de constituição de família. Os direitos e deveres
dos companheiros estão bem distribuídos, imitando-se o estatuto dos
cônjuges, atendendo, enfim, as melhores expectativas da comunidade
jurídica. No Direito das Sucessões, aparece o tenebroso art. 1.790,
afrontando o que antes havia sido dito e afirmado, colidindo com o orde-
namento dos companheiros, parecendo, até, que o art. 1.790 é norma de

288

DIREITO SUCESSÓRIO DOS COMPANHEIROS

outro Código, de outra Nação, porque não guarda correspondência algu-


ma (muito ao contrário) com as que o novo Código Civil brasileiro, no
livro do Direito de Família, dedicou às entidades familiares formadas por
uniões estáveis.

6 PROPOSTA DE REFORMA LEGISLATIVA

Aproveitando que o CC está na vacatio /egis, urge que seja reformado


na parte que foi objeto deste estudo.
Se a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado;
se a união estável é reconhecida como entidade familiar; se estão pratica-
mente equiparadas as famílias matrimonializadas e as famílias que se
criaram informalmente, com a convivência pública, contínua e duradoura
entre o homem e a mulher, a discrepância entre a posição sucessória do
cônjuge supérstite e a do companheiro sobrevivente, além de contrariar o
sentimento e as aspirações sociais, fere e maltrata, na letra e no espírito,
os fundamentos constitucionais.
Temos de mudar isto. Já e já!
Consciente de que a crítica doutrinária, científica, tem de ser isenta,
ponderada, respeitando, sobretudo, o trabalho e o esforço dos que escre-
veram o Projeto do Novo Código Civil, é preciso, ademais, oferecer
alternativa, expor as próprias idéias para o conhecimento e análise de
todos. Assim, cabe-me oferecer emenda substitutiva ao mencionado art.
1.790 do novo Código Civil brasileiro, advertindo que precisam ser
alterados, ainda, os arts. 1.831 e 1.839.
Inicialmente, é necessário, até por imperativo de técnica legisla-
tiva, deslocar o art. 1.790, e inseri-lo no Título II — Da Sucessão Legítima,
Capítulo 1 — Da Ordem da Sucessão Hereditária, em seguida do art. 1.838,
que trata da sucessão do cônjuge sobrevivente.
O art. 1.839 deve ser alterado, passando a ter a seguinte
redação:

“Se não houver cônjuge sobrevivente, nas condições estabeleci-


das no art. 1.830, nem companheira ou companheiro, na forma
do artigo antecedente, serão chamados a suceder os colaterais
até o quarto grau

289

ZENO VELOSO

O art. 1.831 também deve ser modificado, para estabelecer, como


faz o art. 1.611, § 2.0, do Código Civil de 1916, que o direito real de
habitação só persiste enquanto o cônjuge sobrevivente permanecer viúvo ou não
constituir união estável.
Então, com base nos arts. 1.829, 1.831, 1.832, 1.837 e 1.838 do
Código Civil, que editam normas sobre a sucessão dos cônjuges, o artigo
que regula a sucessão dos companheiros, com nova localização e outro
número, deve ficar redigido assim:

Art. (...).
A companheira ou o companheiro participará da sucessão do
outro, com quem convivia ao tempo do falecimento, nas condi-
ções seguintes:
1 — se concorrer com descendentes, terá direito a um quinhão
igual ao dos que sucederem por cabeça, salvo se tiver havido
q ~ comunhão de bens durante a união estável e o autor da herança
não houver deixado bens particulares, ou se o casamento dos
01,1
companheiros, se tivesse ocorrido, fosse pelo regime da separa-

ção obrigatória (art. 1.641), observada a situação existente no


começo da convivência;
II — concorrendo com ascendente em primeiro grau, tocar-lhe-á
um terço da herança; caber-lhe-á metade desta, se houver um só
ascendente ou se maior for aquele grau;
III — não havendo descendentes nem ascendentes, terá direito à
totalidade da herança.
Parágrafo único. Ao companheiro sobrevivente, sem prejuízo
da participação que lhe caiba na herança, enquanto não consti-
tuir nova união ou casamento, será assegurado o direito real de
habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da
família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.

Esta emenda não cria fatos, não inventa soluções, não dá pulos,
não introduz grandes novidades. Simplesmente procura resgatar o que a
Constituição e as leis, atendendo às esperanças e aos sentimentos sociais,
já tinham estabelecido, sem que se vislumbre motivo algum para que o
quadro fosse mudado. Reside aí, talvez, o mérito que a proposta possa

290

DIREITO SUCESSÓRIO DOS COMPANHEIROS

ter. Esta emenda, singelamente, quer fazer justiça aos brasileiros e brasi-
leiras que constituem famílias respeitáveis e dignas, com base nos laços
da afetividade, da compreensão, da solidariedade, da lealdade, da mútua
assistência moral e material, formando uniões estáveis que merecem o
mesmo tratamento dispensado às famílias fundadas no casamento.

291

DO NOME DA MULHER CASADA: DIREITO


DE FAMÍLIA E DIREITOS DA PERSONALIDADE
Silmara Juny de A. Chinelato e Almeida
Professora Associada da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo. Doutora e Livre-docente
pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Autora do livro Do nome da mulher casada:

São Paulo/Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001.

_________________ Sumário __________________

1. Introdução. 2. Notícia histórica. 3. O nome da mulher casada


no Direito estrangeiro. 4. Direitos da Personalidade: coordena-
das fundamentais. 5. O nome da mulher casada no Direito
Positivo brasileiro. 5.1 Direito Constitucional: igualdade real ou
formal? 5.2 Evolução e involução legislativa acerca do nome da
mulher casada. 6. O novo Código Civil. 7. Bibliografia.

1 INTRODUÇAO

O nome da mulher casada não tem sido considerado pela legislação


~ e Doutrina nacionais e estrangeiras, com reflexos na jurisprudência, em
seu aspecto primordial: o dos Direitos da Personalidade.
N ótica da culpa tem penalizado a mulher, também neste tema,
d~sprezando-Wxe a ~XenúXadie, o c~ue nos motivou a esctevet monogra~rn na
qual nos aprofundamos nos temas que aqui serão apresentados em síntese
sobre o nome da mulher casada,1 tema não tratado ainda, como tal, na
Doutrina brasileira e estrangeira.

1 CHINELATO E ALMEIDA, Silmara Juny de A. Do nome da mulher casada: direito de


família
e direitos da personalidade. S~o Paulo/Rio de Janeiro: Forense Universitâria
2001.

293

DO NOME DA MULHER CASADA: DIREITO


DE FAMÍLIA E DIREITOS DA PERSONALIDADE

Silmara Juny de A. Chinelato e Almeida


Professora Associada da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo. Doutora e Livre-docente
pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Autora do livro Do nome da mulher casada:
direito de família e direitos da personalidade,
São Paulo/Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001.
_________________ Sumário __________________

1. Introdução. 2. Notícia histórica. 3. O nome da mulher casada


no Direito estrangeiro. 4. Direitos da Personalidade: coordena-
das fundamentais. 5. O nome da mulher casada no Direito
Positivo brasileiro. 5.1 Direito Constitucional: igualdade real ou
formal? 5.2 Evolução e involução legislativa acerca do nome da
mulher casada. 6. O novo Código Civil. 7. Bibliografia.

1 INTRODUÇÃO

O nome da mulher casada não tem sido considerado pela legislação


e Doutrina nacionais e estrangeiras, com reflexos na jurisprudência, em
seu aspecto primordial: o dos Direitos da Personalidade.
A ótica da culpa tem penalizado a mulher, também neste tema,
desprezando-lhe a identidade, o que nos motivou a escrever monografia na
qual nos aprofundamos nos temas que aqui serão apresentados em síntese
sobre o nome da mulher casada,1 tema não tratado ainda, como tal, na
Doutrina brasileira e estrangeira.

1 CHINELAT() E ALMEIDA, Silmara Juny de A. Do nome da mulher casada: direito de


família
e direitos da personalidade. SIo Paulo/Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2001.

293

SILMARA JUNY DE A. CHINELATO E ALMEIDA

2 NOTÍCIA HISTÓRICA

Nosso estudo, que remonta à Antigüidade e Direito Romano,


analisa o papel da mulher na família.
Da função da mulher como geratriz, representação da continuidade
da espécie, como caracterização de um dos elementos da casa, ao lado
dos filhos, dos escravos e dos clientes, como na sociedade romana do ano
100 a. C., com submissão, antes do casamento, ao pai e, depois, ao marido,
o papel da mulher não mudou muito durante vários séculos.
Nosso estudo histórico dedica-se, ainda, à evolução da mulher brasi-
leira na sociedade e no Direito e demonstra, também, que a qúestão do nome
~IiI da mulher casada sempre esteve ligada à submissão ao poder do
marido.
É expressivo que a palavra “pater” signifique “poder” — e não pai
biológico. Por isso, a mulher não poderia ser “paterfamilias”, possibilida-
de estendida ao filho menor.
Nomear significa exercer o poder — daí a relação clara com a obriga-
toriedade de a mulher adotar o patronímico do marido, que vigorou entre
nos até a Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977.
A análise da legislação brasileira constitucional e ordinária2 atesta
I~it, que um longo trajeto foi percorrido até se chegar à facultatividade
do uso
do patronímico do marido, pela mulher, e à igualdade de direitos prevista
pela Constituição Federal de 1988.
3 O NOME DA MULHER CASADA
NO DIREITO ESTRANGEIRO

A análise breve da legislação estrangeira, demonstra evolução no


sentido de se passar da obrigatoriedade do uso do patronímico do marido,
pela mulher, à facultatividade. Caminha-se também para o reconheci-
mento da igualdade de direitos, não prevalecendo o patronímico do
marido, no silêncio dos interessados.

2 Foram objeto de estudo as Constituições desde 1824, bem como a


legislação infra-constitucio-
nal: Decreto 181, de 24 de janeiro de 1890, Código Civil de 1916, Estatuto da
Mulher Casada
(Lei 4.121, de 27 de agosto de 1962), Lei do Divórcio (Lei 6.515, de 26 de
dezembro de
1977), Lei 8.408, de 13 de fevereiro de 1992.

294

DO NOME DA MULHER CASADA: DIREITO DE FAMILIA E DIREITOS DA PERSONALIDADE

Do estudo da legislação de vários países — Itália, França, Alemanha,


Portugal, Espanha e Japão — pareceu-nos mais adequada a da Espanha.
O Código Civil espanhol não trata do nome da mulher casada, mas
a Lei de Registros Públicos proíbe que mulher introduza no seu nome o
apelido do marido, conforme artigo 137, n. 2, do Regulamento do Regis-
tro Civil, de 14 de novembro de 1958.
Há um “uso social” bastante generalizado pelo qual a mulher
casada ou viúva utiliza o patronimico do marido como parte de seu nome,
empregando-se as expressões “sefiora de A” ou “viuda de B”.

4 DIREITOS DA PERSONALIDADE:
COORDENADAS FUNDAMENTAIS

O estudo dos Direitos da Personalidade, para o qual muito contri-


buíram as obras de Adriano de Cupis, Rabina’ranat Capelo de Sou~a e, no
Brasil, as de Rubens Limongi França, Walter Moraes e Carlos Alberto Bitta~ é
de primordial importância para o deslinde da questão, no prisma exato
sob o qual deve ser considerada.
O direito à identidade — do qual o nome é um aspecto — insere-se
entre os direitos à integridade moral, como quer R Limongi França, ou
direitos morais, como prefere Carlos Alberto Bittar.
Para Rabindranath Capello de Sou~a, o direito à identidade incide
sobre a configuração somático-psíquica de cada indivíduo, particular-
mente sobre sua imagem física, gestos, voz, escrita, retrato moral, recain-
do ainda sobre a inserção socioambiental de cada pessoa, notadamente
sobre sua “imagem de vida, sua história pessoal, o seu decoro, a sua reputação
ou bom nome, o seu crédito, a sua identidade sexual, familar, racial, lingüís-
tica, politica, religiosa e cultural”.3
A consagração legislativa do direito ao nome como direito da perso-
nalidade encontra-se no Código Civil português —‘ art. 72, no Código Civil
alemão, ~ 12, no Código Civil suíço, art. 29, no italiano, arts. 6.~, 70 e 8.0.
Na América Latina, destaca-se o recente Código Civil do Peru, de
1984-85.
3 CAPELO DE SOUZA, Rabindranath. O direito geral de personalidade, p. 249, nota
571.

295

SILMARA JUNY DE A. CHINELATO E ALMEIDA

O novo Código Civil brasileiro cuida de modo tímido dos Direitos


da Personalidade, sem sistematização, tratando expressamente do direito
ao nome nos artigos 16 a 19, cuidando especificamente do nome da
mulher casada, quando da separação e do divórcio, no artigo 1.578.

5 O NOME DA MULHER CASADA NO DIREITO POSITIVO

BRASILEIRO

5.1 Direito Constitucional: igualdade real ou formal?

A possibilidade de o marido também adotar o patronímico da


~ii~Il mulher, que decorre da igualdade consagrada na Constituição
Federal de
1988 (artigos 5•0, 1 e 226, ~ 5.~’) representa, no nosso modo de ver,
igualdade real e não apenas formal.
Respalda a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discrimina-
ção contra a mulhe5 adotada pela Resolução 34/180 da Assembléia Geral
das Nações Unidas, de 18 de dezembro de 1979, ratificada pelo Brasil em
uI~I
1.~ de fevereiro de 1984, com reservas, que só foram retiradas em dezembro
de 1994. Referiam-se elas exatamente à igualdade entre homem e mulher.
As normas constitucionais que consagram a igualdade entre ho-
mem e mulher são, a nosso entender, normas de eficácia plena, conforme
sustenta a maioria da Doutrina, não dependendo de lei ordinária.
A possibilidade de o marido também adotar o patronímico da
mulher, que decorre da igualdade consagrada na Constituição Federal de
1988 (artigos 50 1 e 226, ~ 5.o) não teve repercussão prática, tendo em
vista a refração que maridos têm em adotar o patronímico da mulher.
Nossa pesquisa de campo comprova tal assertiva.
É um direito não exercido por preconceito.
Quando raríssimos maridos quiseram adotar o patronímico da
mulher, ainda encontraram o preconceito de alguns julgadores. Exem-
plifica-o bem o voto vencido proferido na Apelação 198.349-1 do E. TJSP,
julgada em 3 de agosto de 1993, publicada na Jurisprudência do Tribunal
de Justiça 149:96-100.
Do R. voto vencido transcrevemos:

“Inobstante o princípio constitucional, de caráter genérico, não


vejo como possa desde logo estender-se ao marido a mesma

296

DO NOME DA MULHER CASADA: DIREITO DE FAMILIA E DIREITOS DA PERSONALIDADE

faculdade, concedida à mulher, a não ser mediante lei. Como


não há, até hoje, preceito legal a esse respeito, entendo não
caber admitir-se a opção, que por sinal destoa de nossa tradição
jurídica e dos costumes e da sociedade.
É certo, a meu ver, que não se brinca com o nome, nem deve o nome
servir de pretexto para expor ao ridículo o seu portador. No caso, é de
supor que não seriam poucos nem pequenos os dissabores a que se
exporia o futuro marido, se adotasse o patronímico da esposa, numa
atitude talvez poineira, talvez simplesmente galhofa.”

5.2 Evolução e involução legislativa acerca


do nome da mulher casada

O artigo 240 do Código Civil impunha a obrigatoriedade de adoção do


patronímico do marido. A doutrina majoritária defende a compulsoriedade,
registrando-se voz discordante e solitária de Spencer Wan~pré4
A obrigatoriedade refletiu-se na jurisprudência, anotando-se acor-
dãos que consideraram injúria grave a mulher não usar socia]mente o nome
do marido.
Mesmo após ter sido consagrada pela Lei 6.515/77 como opção
adotar ou não o patronímico do marido, o costume consolidado de longa
data e a nomeação, como ato de poder, constrangeram muitas mulheres a
“optar” por acrescer, ao seu, o patronímico do marido.
Já sustentamos em nossa monografia e enfatizamos novamente que
conservar o nome de solteira sempre foi e será questão a ser ponderada e julgada
como
direito à identidade. Nada tem a ver com amor, nem possível caracteri~açào de
injúria ao marido.5
Sustentamos, ainda, a possibilidade de alteração do nome, na cons-
tância do casamento.
O estudo da doutrina nacional revela que, quando da separação e
do divórcio, a perda do patronímico da mulher que incorporou ao de sua
família de origem o do marido, agora também patronímico dela, está
sempre — e ainda! — relacionada à culpa, sem considerar o direito à

4 \VAMPRE, Spencer. Do nome ciii!. Rio de Janeiro: Briguiet, 1935, p. 126.

5 Consultem-se, em nossa monografia, p. 84 et seq., acórdãos que sustentam o


contrario.

6 Consultem-se, p. 85-92 de nossa monografia.

297

SILMARA JUNY DE A. CHINELATO E ALMEIDA

identidade, tônica primordial da questão. Nem mesmo às mulheres que se


casaram antes da Lei 6.515, de 1977, no regime da obrigatoriedade da
adoção do patronímico do marido, a maioria da doutrina se mostra
sensível à analise do direito à identidade, registrando-se vozes discordan-
tes isoladas como as de Gustavo Tepedino, Eduardo de Oliveira Leite, Maria
Celina Bodin de Moraes. Esses autores como nós, sustentam que ao adotar
o patronímico do marido, passa aquele a ser patronímico da mulher,
incorporando-se a sua identidade.7
O reflexo da tese minoritária na jurisprudência é imediato, confor-
me estudos que fizemos nas decisões de Tribunais dos diversos Estados.
A Lei 8.408, de 13 de fevereiro de 1992, representa um retrocesso,
pois se antes dela a mulher poderia conservar o patronímico “do marido”,
se considerada inocente, agora não o pode, como regra que admite três
exceções.
A primeira privilegia apenas a identidade profissional, revelando-se
lhe
litista. A materfamilias não tem identidade. A segunda exceção
protege o
4~r~ interesse de filhos que teriam o patronímico muito diferente
do da mãe.
Seria de aferição objetiva, o que tem sido desmentido pelo exame de
muitos casos concretos. A terceira hipótese, que teria alcance mais amplo,
também tem-se revelado tímida, cingindo-se, no mais das vezes, também
IiL à discussão de prejuízo à identidade profissional, na visão da
jurisprudência.
Alguns poucos acórdãos de nossos Tribunais assim enfrentam a
questão, segundo pesquisa analitica, reproduzida em nossa monografia.
Registrem-se acõrdãos do TJRS e alguns do TJSP.

6 O NOVO CODIGO CIVIL

Propomos que a questão do nome da mulher casada, quando da


separação e do divórcio, seja sempre analisada sob a ótica do direito à
identidade, como direito da personalidade da mulher, já que o nome
agora é dela e não “do marido”.

7 MORAES, Maria Celina Bodin de. Sobre o nome da pessoa humana. Revista
Brasileira de Direito
de Família. Instituto Brasileiro de Direito de Família. Porto Alegre, Síntese,
n. 7, p. 38-59,
out./nov./dez. 2000. TEPEDINO, Gustavo. O papel da culpa na separação e no
divórcio. In:
Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 367-388. LEITE,
Eduardo Oliveira.
Mulher separada. Continuidade do uso do nome do marido. Parecer. Reãsta dos
Tábnnais o. 780,
p. 103-21, out. 2000.

298

DO NOME DA MULHER CASADA: DIREITO DE FAMÍLIA E DIREITOS DA PERSONALIDADE

Essa proposta de direito constituendo, que julgamos o ideal de legisla-


ção, na esteira da espanhola, não foi acolhida pelo novo Código Civil.
O artigo 1.578 do novo Código perfilha o que denominamos “siste-
ma mitigado de culpa”, possibilitando ao cônjuge vencido (pressupondo
que também o homem exercerá o direito de utilizar o patronímico da
mulher) conservar o nome do outro cônjuge, como regra, que será excep-
cionada se houver três requisitos cumulativos:
1. ser vencido na ação de separação judicial;
2. requerimento expresso do vencedor;
3. não-ocorrência de:
3.1. evidente prejuízo para identificação ou
3.2. manifesta distinção entre seu nome de família e o dos filhos
havidos da união dissolvida ou
3.3. dano grave reconhecido na decisão judicial.
Anossover,onovoCódigoCivil,emboraaindaestejaatreladoà
culpa na questão do nome da mulher, representa um avanço em relação à
Lei 8.408, de 1992, pois admite a conservação do nome como regra e não
como exceção. Melhor seria se tivesse previsto que a mulher ou o marido
conservaria o patronímico adquirido com casamento, como regra, poden-
do a ele renunciar se e quando não o tenha incorporado em sua identidade.
Nossa proposta em termos de legislação constituenda é no sentido
de que o casamento não importa alteração do patronímico. Assim pensamos,
pois adotar um patronímico é um ato de amor;8 retirá-lo, é um ato de desa-
mor e ódio, sustentando intermináveis polêmicas judiciais e extrajudiciais.
Como “o Direito de Família começa onde termina o amor , nas
palavras precisas e sensíveis do jurista paulista Agostinho Arrucla A/vim, a
conservação do patronímico da família de origem representará um ponto
nevrálgico a menos a enfrentar nas intermináveis e apaixonantes discus-
sões que sustentam a separação e o divórcio.

8 O problema é que quase nunca se pensa na propriedade com que dele tratou
Vinícius de
Moraes no Soneto da fidelidade, do qual transcrevemos os versos finais:

“E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.”

299

SILMARA JUNY DE A. CHINELATO E ALMEIDA

7 BIBLIOGRAFIA

BITTAR, Carlos Alberto. Direitos da personalidade. 2.ed. Rio de Janeiro:


Forense Universitária, 1995.
CAPELO DE SOUZA, Rabindranath V. A. O direito geral de personalidade.
Coimbra: Coimbra Editora, 1995.
CHINELATO E ALMEIDA, Silmara Juny de Abreu. Do nome da mulher
casada: direito de família e direitos da personalidade. São Paulo/Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Trad. de Adriano Vera
Jardim. Lisboa: Livraria Morais, 1961.
LEITE, Eduardo Oliveira. Mulher separada. Continuidade do uso do nome
do marido. Parecer. Rettista dos Tribunais n. 780, p. 103-21, out. 2000.
LIMONGI FRANÇA, Rubens. Do nome civil das pessoas naturais. 3. cd. São
Paulo: RT, 1975.
q . Manual de direito civil. 3.ed. São Paulo: RT, 1981.
~III~I . O nome civil da mulher casada diante da nova Constituição.
Repertório IOB de Jurisprudência. 1.a quinz. out. 1999, n. 19/89, p. 341-40.

Direitos da personalidade. Coordenadas fundamentais. Revista dos


Tribunais, v. 56, p. 9-16.
MORAES, Maria Ceina Bodin de. Sobre o nome da pessoa humana.
Revista Brasileira de Direito de Família. Instituto Brasileiro de Direito de
Família. Porto Alegre, Síntese, n. 7, p. 38-59, out./nov./dez. 2000.
TEPEDINO, Gustavo. O papel da culpa na separação e no divórcio. In:
Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
WAMPRÉ, Spencer. Do nome civil. Rio de Janeiro: Briguiet, 1935.

300

A ESTATIZAÇAO DAS RELAÇÕES AFETIVAS


E A IMPOSIÇÃO DE DIREITOS E DEVERES
NO CASAMENTO E NA UNIÃO ESTÁVEL

Maria Berenice Dias


Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul. Vice-Presidente Nacional do IBDFAM.

__________________ Sumário __________________

1. Um bem-querer. 2. Um querer sem liberdade. 3. Um querer


limitado. 4. Um querer cheio de responsabilidade. 5. Um
querer sem fim. 6. Mesmo não querendo. 7. Bibliografia.

1 UM BEM-QUERER

Os vínculos afetivos são da ordem do desejo, impulso para vida


que remete à necessidade de completude. São fenômenos naturais, que
sempre existiram independentemente de regras ou tabus e bem antes da
formação do Estado e do surgimento das religiões. “São questões com-
plexas”, refere Rodrzgo da Cunha Pereira, “pois é de se indagar se o Direito
pode mesmo legislar sobre a sexualidade, uma vez que esta pressupõe o
desejo. Não se sabe, ou pelo menos não se escreveu ainda, se é o Direito
‘‘ 1

que legisla sobre o desejo, ou se é o desejo que legisla sobre o Direito


Sob a justificativa de se estabelecerem padrões de moralidade e regu-
lamentar a ordem social, foram gerados interditos — proibições de natureza
cultural, e não biológica — e nominaram-se os relacionamentos afetivos de
1 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 2.
ed. Belo

Horizonte: Dei Rey, p. 53.

301

MARIA BERENICE DIAS

família. O Estado solenizou sua formação pelo casamento e transformou a

família em uma instituição. A Igreja deu-lhe status de sacramento. Seja o


Estado da espécie que for, tenha a formação que tiver, nomine a religião o

seu deus da forma que o idealize, o fato é que ambos acabaram se

imiscuindo na vida das pessoas e regulamentando suas relações amorosas.


Como lembra Vi?gÍlio de Sã Pereira “A família é um fato natural, o casa-
mento é uma convenção social”.2 No entanto, a partir desse intervencionis-
mo, os vínculos interpessoais, para merecerem aceitação social e o reconhe-
cimento jurídico, necessitavam ser chancelados pelo que se convencionou
chamar de matrimônio. Uma vez atendidos os pressupostos e requisitos
estabelecidos, o casamento transforma-se em união praticamente indissolúvel.
Igualmente o Estado só reconhecia a existência da relação matri-
monializada, vedando quaisquer direitos às relações nominadas
por espú-
rias, adulterinas ou concubinárias. Somente a família “legítima”
era
Iii reconhecida, sendo que a filiação estava condicionada ao
estado civil dos
q r11
pais, só merecendo reconhecimento a prole nascida dentro de um casa-
mento.3 Os filhos havidos de relações extramatrimoniais eram alvo de

5 ~ uma enorme gama de nominações de conteúdo pejorativo e discrimina-


torio. Nenhum direito possuíam, sendo condenados à invisibilidade, pois
não podiam buscar seu reconhecimento ou sua identidade. Durante
muito tempo, os filhos ilegítimos estavam fadados à morte, pois nem
alimentos podiam buscar.4

2 UM QUERER SEM LIBERDADE

A vontade das partes é auscultada tão-só no momento da constitui-


ção da família. Não são questionados os noivos sobre seus sentimentos,
nem é perquirida a causa do casamento, pois se colhe a simples manifes-
tação da vontade de casar: é de livre vontade que ofa~eis?

2 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito civil: estudos. Belo


Horizonte: Dei

Rey, 2000, p. 24.

3 Essa odiosa diseriminaç~o permaneceu até o advento da Constituiçiio Federal,


em 1988, que
vedou qualquer designação discriminatória (~ 6. do art. 227).

4 A Lei 883/48 autorizou ao filho ilegítimo acionar o pai em segredo de justiça,


mas só para

buscar alimentos.

302

A ESTATIZAÇÃO DAS RELAÇÕES AFETIVAS E A IMPOSIÇÃO DE DIREITOS...

Porém, se a vontade é elemento essencial para a solenização do


casamento, mais nenhuma relevância possui após ser proferida a palavra
sim
Parece que o Estado, com sua onipotência, olvida que são os vínculos
e pactos íntimos que ligam o par, e não as imposições sociais ou os manda-
mentos legais que os mantêm unidos. Não se limita a lei a chancelar o
casamento e atribuir responsabilidades ao casal, pois também busca inter-
ferir na sua vida íntima, impondo deveres e assegurando direitos para
serem cumpridos durante o período de convívio. Além dos deveres impos-
tos a ambos os cônjuges, como o de fidelidade recíproca, vida em comum
e mútua assistência,5 também divide a lei direitos e deveres entre o
marido e a mulher,6 distinção que se tem por não mais vigorante desde o
advento da Constituição Federal, que os considera “exercidos igualmente
pelo homem e pela mulher”.7
Essa ingerência, além de nitidamente descabida, é de todo
despicienda. Ainda que tente a lei impor obrigações e assegurar direitos,
o descumprimento de qualquer dos deveres não gera a possibilidade de
ser buscado seu adimplemento em juízo. Como os imperativos previstos
na lei não têm como ser impostos por decisão judicial, é mister concluir
que tais previsões servem tão-só e eventualmente para fundamentar uma
ação de separação. Ou seja, as regras estabelecidas para vigorarem
durante a vida em comum têm utilidade para justificar o pedido de sepa-
ração, isto é, são invocáveis somente depois de findo o casamento. A
infringência aos deveres conjugais outorga legitimidade para a busca da
separação mediante a imputação ao infrator da culpa pelo fim do amor.
Durante a vigência da sociedade conjugal, o eventual ou reiterado,
dissimulado ou público inadimplemento dos deveres por um ou ambos os
cônjuges em nada afeta a existência, a validade ou a eficácia do casamen-
to. Assim, é de concluir-se que de nada adianta o legislador tentar impor
condutas ou modo de viver a quem optou por oficializar o seu relaciona-
mento afetivo. O compromisso assumido perante o Estado dispõe de
inúmeras seqüelas, quer quanto à prole, quer com relação a terceiros, quer
ainda, e principalmente, quando do desfazimento do vínculo, pela separa-
5 Art. 231 do Código Civil.

6 Arts. 233 a 255 do Código Civil.

7 ~ 5. do art. 226 da Constituição Federal.

303

MARIA BERENICE DIAS


ção, pelo divórcio ou pela morte. Ainda que, com referência a tais ques-
tões, seja necessário o regramento legal, descabido é tentar interferir na
intimidade do casal, intromissão que ninguém quer e de nada serve.

3 UM QUERER LIMITADO

Ainda que a lei imponha algumas restrições para o casamento e


estabeleça certos impedimentos, ao menos um deles se mostra de todo
descabido: é presumir a incapacidade para as mulheres a partir dos 50 anos e
para os homens a contar dos 60 anos, impondo a obrigatoriedade do regime
de separação de bens.8 Identificada como norma de ordem pública de
natureza protetiva — isso quando da edição do Código, nos idos de 1916 —,
hoje tal dispositivo não resiste ao confronto com os mais elementares
princípios que merecem proteção constitucional: o direito à liberdade, à
igualdade e o respeito à dignidade. Descabe restringir a capacidade de alguém
pelo mero implemento de determinada idade, limitação estabelecida de
forma absolutamente aleatória tão-só para impedir a prática de um determi-
nado ato. Ao depois, tal gera a possibi]idade do enriquecimento injustificado
ao subtrair a presunção do estado condominial dos bens adquiridos na
vigência do casamento. Finalmente, como dita limitação inexiste na união
estável, o tratamento desigualitário afasta a possibilidade de sua permanên-
cia no ordenamento jurídico. Felizmente vem a jurisprudência afastando
essa restrição, tendo-a como não recepcionada pelo estatuto constitucional.

4 UM QUERER CHEIO DE RESPONSABILIDADE

O casamento parece ser o destino de todos os cidadãos, pois, como


afirma Sérgio Resende de Barros, “a sociedade humana não é uma sociedade
de indivíduos, nem a sociedade politica é uma sociedade de cidadãos, mas
sim de famílias”.9

8 O mc. II do att. 258 do CC mereceu abrandamento pela Súmula 377 do STF: No


regime de
separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.

9 BARROS, Sérgio Resende de. A ideologia da família. Palestra proferida na X


Jornada de Direito

dc Família, promovida pelo IARGS, dia 01 .09.2001, em Porto Alegre-RS.

304

A ESTATIZAÇAO DAS RELAÇÕES AFETIVAS E A IMPOSIÇÃO DE DIREITOS...

Celebrado o casamento, tem-se por constituída a família, a qual se


transforma na base da sociedade, passando a merecer a especial atenção do
Estado.lÜ Apesar de a Constituição assegurar assistência á família na pessoa de
cada um dos que a integram,11 e imposta à família o dever de garantir, à criança
e ao adolescente, com absoluta primazia, todos os direitos que lhes são
assegurados, bem como o dever de amparar as pessoas idosas. Só em
caráter secundário tal dever é atribuído à sociedade, ou, em ordem sucessi-
va, é invoca da a participação do Estado de forma supletiva ou residual.12
Ou seja, exime-se o Estado de seus deveres sociais, delegando-os à família,
sem garantir-lhe condições ou repassar-lhe recursos para o desempenho de
tais funções.

“Inconscientemente, vale-se o Constituinte da ideologia da famí-


lia para assim desonerar o Estado — ou ao menos compartir o ônus
— de certas funções públicas e deveres socais, para cujo desempe-
nho e adimplemento a grande maioria das famílias brasileiras não
têm recursos econômicos, nem outras condições”~13

5 UM QUERER SEM FIM

Outorgados tantos privilégios à família e atribuindo-lhe também


tantas responsabilidades, o Estado só pode insurgir-se contra sua dissolu-
ção. Em um primeiro momento, o casamento era indissolúvel e só podia
ser desconstituído pela anulação. Para isso, indispensável a ocorrência de
erro essencial, ou quanto à identidade ou quanto à personalidade do outro.
Fora disso, era possível o rompimento do casamento apenas pelo desquite,
que, no entanto, não o dissolvia, restando os cônjuges numa situação sui
generis. Não mais eram casados, mas cessavam os “deveres” matrimoniais.
Porém, o vínculo do casamento permanecia, o que impedia os desquitados
de buscarem reconstituir suas vidas mediante novo casamento.
10 Art. 226 da Constituição Federal.
11 ~ 8.’ do art. 226 da Constituição Federal.
12 Arts. 227 e 230 da Constituição Federal.
13 BARROS, Sérgio Resende de. A ideologia da família, loc. eit.

305

MARIA BERENICE DIAS

A Lei do Divórcio limitou-se a proceder a uma alteração exclusiva-


mente terminológica. O desquite passou a ser chamado de separação,
com idênticas características, isto é, rompe o casamento, mas não o
dissolve, fazendo-se necessário, após o decurso de um ano, volver à via
judicial para transformar a separação em divorcio.
Mesmo após o advento da dissolvabilidade do vínculo do matrimô-
nio, continua não bastando a vontade dos cônjuges para se desvencilha-
rem do casamento. Ainda que haja consenso das partes, mister que
estejam casados há mais de dois anos para buscarem a separação. Somen-
te depois do decurso de mais um ano é que podem buscar a chancela
judicial para o reconhecimento do fim do casamento. De outro lado,
mesmo de forma consensual, o divórcio só pode ser buscado se já estive-
rem separados de fato há mais de dois anos.
Curioso que, após o decurso do prazo de um ano do fim da vida em
comum, se desinteressa o Estado em identificar e punir o responsável
pela separação. Antes de decorrido esse prazo, somente o cônjuge “ino-
cente” pode buscar a separação, devendo atribuir e provar a culpa do réu:
conduta desonrosa ou infringência aos deveres conjugais, necessitando
demonstrar também que tais posturas tornam insuportável a vida em
comum. Assim, cumulativas as causas para ser buscada a separação: além
da prova da culpa, mister que o magistrado reconheça que o comporta-
mento do réu tem o condão de inviabilizar a convivência do par.
Hoje, ainda que tal causa de pedir conste da lei, cada ve~ mais vai
saindo de cena o to[pico da culpat4 e vem a jurisprudência auscultando a
melhor doutrina e decretando a separação mediante a mera alegação de
desencontros e desentendimentos ou evidência de personalidades distin-
tas ou incompatibilidade de gênios.
Diante da quantidade de regras impostas, pouco ou quase nada
vale a vontade dos nubentes, o que permite concluir que o casamento
não passa de um mero “contrato de adesão”, com cláusulas, condições,
regras e até posturas prévia e unilateralmente estabelecidas, e, pior, por
quem não faz parte do contrato. Assim, mister reconhecer que se está
diante de um paradoxo. Para casar basta a mera manifestação da vontade

14 RIBEIRO, Renato Janine. A família na travessia do milénio. Anais do II


Congresso de Direito de
Família. Belo Horizonte: DeI Rey, 2000, p. 19.

306

A ESTATIZAÇAO DAS RELAÇÕES AFETIVAS E A IMPOSIÇÃO DE DIREITOS...

dos noivos, que, no máximo, podem, mediante pacto antenupcial, esco-


lher o regime de bens que vigorará quando da dissolução do casamento.

6 MESMO NÃO QUERENDO

Não só em relação ao casamento ocorre a interferência estatal na


vida afetiva das pessoas.
Os vínculos de convivência formados sem o selo da oficialidade
ingressaram no mundo jurídico por obra da jurisprudência, sob o nome de
concubinato. Essas estruturas familiares acabaram aceitas pela socieda-
de, impondo que a Constituição Federal albergasse no conceito de enti-
dade familiar o que chamou de união estável. Assumiu o Estado, no
entanto, o encargo de promover sua conversão em casamento, norma
que, no dizer de Giselda Maria Fernandes Novaes Hirona/ea, “é a mais inútil
‘, Is

de todas as inutilidades
A legislação infraconstitucional que veio a regular essa nova espécie
de famíliat6 acabou praticamente copiando o modelo oficial do casamento.
Além de estabelecer os requisitos para o seu reconhecimento, impõe
deveres e cria direitos. Assegura alimentos, estabelece o regime de bens,
tnsere o convivente na ordem de vocação hereditária, institui usufruto e
concede direito real de habitação. Aqui também pouco resta da vontade do
par, cabendo concluir-se que a união estável se transforma em um “casa-
mento por decurso de prazo”.
A exaustiva regulamentação da união estável a faz objeto de um
dirigismo estatal não querido pelos conviventes. Tratando-se de relações
de caráter privado, cabe questionar a legitimidade de sua publicização.
Assim, passou o Estado a regular não só os vínculos que buscam o
respaldo legal para se constituírem, mas também os relacionamentos que
escolhem seus próprios caminhos e que não desejam qualquer interferência.

“A sexualidade, que é da ordem do desejo, sempre escapará ao


normatizável, [conforme bem lembra Rodrtgo da Cunha Pereira] O
Estado não pôde mais controlar as formas de constituição das

15 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit, p. 27.


16 Leis 8.971, de 29.12.1984, e 9.278, de 10.05.1996.

307

MARIA BERENICE DIAS

famílias... eia é mesmo plural. O gênero família comporta várias


espécies, como a do casamento, que maior proteção recebe do
Estado, das uniões estáveis e a comunidade dos pais e seus
descendentes (art. 226, CF). Estas e outras formas vêm exprimir
a liberdade dos sujeitos de constituírem a família da forma que
lhes convier, no espaço de sua liberdade”.’7

No momento em que o formato hierárquico da família cedeu à sua


democratização, em que as relações são muito mais de igualdade e de
respeito mútuo e o traço fundamental é a lealdade, não mais existem
razões, quer morais, religiosas, politicas, físicas ou naturais, que justifi-
quem essa excessiva e indevida ingerência do Estado na vida das pessoas.
A esfera privada das relações conjugais tende cada vez mais a
repudiar a interferência do público, não se podendo deixar de concluir
que está ocorrendo uma verdadeira estatização do afeto.

7 BIBLIOGRAFIA

BARROS, Sérgio Resende de. A ideologia da família. Palestra proferida na X


Jornada de Direito de Família, promovida pelo IARGS, dia 01 .09.2001,
em Porto Alegre-RS.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito civil: estudos. Belo
Horizonte: Dei Rey, 2000.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicana-
litica. 2. ed. Belo Horizonte: Dei Rey, 1999.
RIBEIRO, Renato Janine. A família na travessia do milênio. Anais do II
Congresso de Direito de Família. Belo Horizonte: Dei Rey, 2000.

17 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Op. cit., p. 55.

308

A PRATICA DA MEDIAÇÃO
EIiana Riberti Nazareth
Psicóloga. Psicanalista do Instituto de Psicanálise
da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
Terapeuta de Família e de Casal — Mediadora.
Coordenadora do Núcleo de Mediação do IBDFAM-SP.
Membro da International Society of Family Law.
Membro do Fórum Mundial de Mediação.

_________________ Sumário __________________

1. Introdução. 2. O procedimento da mediação. 3. Etapas da


mediação. 4. Conclusão. 5. Bibliografia.

1 INTRODUÇÃO

Como este artigo versa sobre A Prática da Mediação, penso ser útil
apresentá-lo de forma a mostrar como se dá o procedimento passo-a-passo.
Desse modo, o profissional que se interessa pela Mediação poderá ter
uma noção de suas etapas de desenvolvimento.
Desejo esclarecer também que muitos dos aspectos que abordo a
seguir são mais aplicáveis à Mediação Familiar.
A Mediação Comercial, por exemplo, se assemelha mais à Concilia-
ção, algo com o qual os advogados, administradores de empresas e econo-
mistas estão mais familiarizados.
A Mediação Familiar tem sua especificidade, pois é voltada à con-
dução de conflitos que envolvem níveis diversos de complexidade, em
que o intrapsíquico e o intersubjetivo exercem papéis preponderantes.
No entanto, cabe ressaltar, a Mediação se aplica a qualquer contex-
to de relação humana: às relações comerciais, como já dito, mas também
às de vizinhança, de comunidade, entre países, etnias etc.

309

ELIANA RIBERTI NAZARETH

Concebida como uma transdisc~blina, a Mediação utiliza conheci-


mentos de várias disciplinas, como a Psicologia, a Psicanálise, a Teoria
Geral de Sistemas, a Teoria do Conflito, o Direito, a Sociologia etc.
Além de coordenar o Núcleo de Mediação do IBDFAM/SP, faço
parte do Programa de Fortalecimento da Mediação e da Arbitragem
Comercial no Brasil — Banco Interamericano de Desenvolvimento, Con-
federação das Associações Comerciais do Brasil e SEBRAE —, que tem
por objetivo promover a cultura de paz entre nos.

2 O PROCEDIMENTO DA MEDIAÇÃO

“Let us never negotiate out of fear,


but let us never fear to negotiate”
John E. Kennec~y
A Mediação pode ser concebida de duas maneiras: como técnica e
como procedimento. Gomo técnica, pode contribuir com outros métodos
de condução de conflitos, como a Conciliação e a Arbitragem, auxilian-
do-os a melhor formular acordos ou soluções mutuamente satisfatórios
às partes em conflito. Como procedimento, sobretudo o modelo mais
complexo que é o da Mediação Familiar, tem fases que compõem todo
um processo, cujos passos abordarei mais adiante.
Ainda como procedimento, pode ser aplicado a dois planos distin-
tos de emergência do conflito.
O primeiro plano refere-se ao sistema de profissionais e consiste
em o mediador trabalhar os conflitos suscitados na equipe dos que atuam
com as pessoas e famílias em crise. É o que poderíamos chamar de “Media-
ção-suporte”. O objetivo é desenvolver nesses profissionais a habilidade
e capacidade de compreensão e continência emocional necessárias ao
atendimento. Freqüentemente há a produção na equipe de conflitos que
guardam semelhança com o conflitos originais, isto é, com os conflitos
daquelas famílias ou casais merecedores de atenção. Denominados con-
flitos por procuração”, são na maioria das vezes inconscientes.
O segundo plano refere-se à “Mediação-direta”, isto é, quando o
mediador interfere diretamente nos sistemas em crise.

310

A PP~T~CA DA MED~AÇAO

Pode ser global ou parcial, enfocando todos ou somente alguns


aspectos de uma situação.
Pode-se definir a Mediação como:

“Um método de condução de conflitos, voluntário e sigiloso, no


qual um terceiro neutro, imparcial, escolhido pelas partes e
especialmente capacitado, colabora com as pessoas que se en-
contram em um impasse, para que restabeleçam a comunicação
produtiva, ajudando-as a chegar a um acordo, se esse for o caso.

Pode incidir em qualquer momento da emergência de um conflito.


Pode ser paraprocessual ou não guardar relação alguma com o processo
judicial.
Destaca-se as seguintes vantagens e objetivos:

Vantagens
• voluntária;
• rápida;
• consensual;
• evita a manutenção do conflito;
• facilita a comunicação do casal antes, durante e após uma
separação;
• gera alternativas criativas;
• o mediador é escolhido pelas partes, o que lhe confere maior
confiança e credibilidade;
• acordos são construídos pelas pessoas; portanto, são mais dura-
douros, pois atendem suas necessidades, evitando o apareci-
mento das chamadas “ações-filhotes”.

Objetivos
• Fomentar relações mais harmoniosas dentro das condições possíveis.
Poder ser escutado e conseguir acertos referente a questões apa-
rentemente inconciliáveis resulta em alivio importante de an-
gústia e sofrimento. De acordo com Ho/mes e Rahe (1967), o
divórcio ocupa o segundo lugar no ranking dos acontecimentos
estressantes. Antes dele, vem somente a morte do companheiro.
Depois dele, vem a morte de amigos queridos e a própria prisão.
• Estimular a autodeterminação da família.

311

ELIANA RIBERTI NAZARETH

Em um processo de separação, observa-se o alijamento cada


vez maior das pessoas em relação a decisões fundamentais
concernentes às suas próprias vidas.
• Apurar melhor as responsabilidades parentais.
• Determinar dentro do “melhor interesse da criança” o que é
mais adequado.
Há os aspectos gerais desse princípio, porém há os específicos, que
são derivados dos diferentes momentos da vida da criança e dos pais,
de sua origem social, cultural, étnica e do tipo de família de origem
de cada um dos genitores (que é o que fornece os substratos para o
exercício das funções e papéis paterno e materno). Em outras
palavras, a Mediação permite que sejam avaliadas e estabelecidas as
melhores condições de atendimento às necessidades da criança.
• Equilibrar os “tempos”.
As pessoas possuem tempos diferentes de amadurecimento do
desapego, isto é, evoluem diferentemente frente à separação.
Observa-se que quem pede a separação a elabora e amadurece
mais rapidamente, pois, na verdade, a idéia de separar-se está pre-
sente em seu imaginário muito tempo antes de ser verbalizada.
• Discriminar o que é de ordem legal e o que é de ordem emocional.
Essas duas ordens se confundem nos momentos de crise. Mui-
tos, quando se separam, alimentam a ilusão de que “ganhando
uma ação” estarão sendo ressarcidos dos prejuízos emocionais
sentidos e temidos.
Poder-se-ia então dizer que a meta da Mediação é fornecer as
condições mínimas para que as pessoas, em situação de crise,
passem a operar de uma maneira mais madura.
Assim, temos esquematicamente:

META DA MEDIAÇÃO
Funcionamento + Primitivo —> Funcionamento + Maduro
Inflexibilidade —~ Maleabilidade
Desconfiança —> Cautela
Dominar —~ Ceder agora Benefício Posterior
Submissão —* Concessões
Culpa —* Responsabilidade
Ganhar —* Negociar
312

A PRÁTICA DA MEDIAÇÃO

3 ETAPAS DA MEDIAÇÃO
A seguir, apresento os passos que compõem as seis etapas da
Mediação.

Etapa í.~ Abertura


Nesta etapa, o mediador explica às pessoas o processo da Media-
ção, seus objetivos e alcances. Mostra também suas vantagens e limites.

Etapa 2: Apresentação das partes


Aqui, o mediador procura mapear a situação.
• Quem são as pessoas?
Traça o perfil dos indivíduos,
como chegaram à mediação,
quem mais está envolvido no conflito.
• Qual é a queixa?
Trazida?
Encoberta?
Traça o perfil do conflito.
• Qual a expectativa das pessoas?
Em relação ao problema,
em relação ao futuro,
em relação às próprias vidas.
• Quais os objetivos das pessoas?
A curto, médio e longo prazos.

Etapa 3: Levantamento de opções


Nesta e nas duas etapas seguintes, torna-se de vital importância o
preparo técnico do mediador, a fim de que possa não só criar um campo
possível de trabalho, mas estimular modificações efetivas.
Assim, recomenda-se ao mediador:
• Escuta dinâmica (capacidade de amortecer/absorver impactos):
Postura ativa,
ouvir com atenção,
respeito,
receptividade,
paciência,
sem pressa,

313

ELIANA RIBERTI NAZARETH


sem julgamentos,
sem pré-conceitos,
avaliação.
• Colocar-se no lugar das pessoas: qual o sofrimento?
• Acreditar na capacidade de mudança das pessoas.
• Criar um clima propício a trocas e discussões:
não permitir ataques pessoais,
transformar a surdez em pequenos interesses,
não se deixar entreter por argumentações.
• Estabelecer os reais interesses.
• Levantamento de opções propriamente dito:
o que já tentaram,
o que ainda não tentaram,
o que gostariam de tentar.

Etapa 4: Negociação
O uso de determinadas técnicas promove e agiliza a negociação de
opções:
• micro-enfoque;
• perguntas esclarecedoras;
• redimensionamento do problema;
• desdramatização;
• questionamento circular;
• refrasear;
• refletir;
• assinalar;
• inverter os lugares;
• convite a sugestões;
• transformar os pactos implicitos em acordos explícitos;
• promover condições para a consecução de ‘combinados’ pontuais
em cada entrevista.

Etapa 5: Agenda
Levantamento das prioridades e possibilidades de consecução no
tempo.

Etapa 6: Fechamento
Conclusão do processo, confecção do acordo, se existir, e retomada
do caso pelos advogados para o adequado encaminhamento jurídico.

314

A PRÁTICA DA MEDIAÇÃO

4 CONCLUSÃO

Além do preparo técnico e pessoal do profissional, suas atitudes


influenciam a condução e o resultado do processo. Tais atitudes depen-
derão em grande parte da profissão de origem e do tipo de mediador que
se queira e se possa ser.
Observa-se que os advogados costumam intervir mais, enquanto
que psicólogos intervêm menos. Uma experiência que tem obtido bons
resultados é a da co-mediação, em que um advogado e um psicólogo
atuam juntos.
Porém, independentemente das peculiaridades, talentos e forma-
ção do mediador, na Mediação Familiar seu objetivo deve visar a trans-
formação do conflito, sem o quê o procedimento perde em eficacia a)
Dessa maneira, o profissional estará apto a:
• conduzir o processo e não as escolhas;
• estimular acordos participativos; 1)
• usar os aspectos transferenciais e contra-transferenciais do ‘aqui-
,e~.
e-agora’ da entrevista para promover a construção de um relacio-
namento diferente daquele que tiveram anteriormente com pro-
fissionais ou entre eles mesmos;
• reformular e reorganizar a comunicação;

• estimular a busca de novos significados para o conflito;


• promover o aparecimento de emoções novas: tristeza e pesar, a
fim de que o luto pelas perdas possa ser postenormente elaborado.

5 BIBLIOGRAFIA

HOLMES, T; RAHE, H. The social readjustment rating scale. Journal of


P~ychosomatic Research, 1967, v. 11.
FARINHA, A. H. L.; LAVADINHO, C. Mediação famili ar e responsabilida-
des parentais. Coimbra: Livraria Almedina, 1997.

315

A POLÍTICA PÚBLICA DA MEDIAÇÃO


E A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA

Águida Arruda Barbosa


Advogada especialista em Direito de Família.
Diretora da Comissão de Mediação do IBDFAM.
Professora de Direito de Família e Mediação Familiar
no IMES — Instituto Municipal de Ensino Superior
de São Caetano do Sul (SP). Membro da Fédération
Internationale des Femmes des Carriéres Juridiques.

_________________ Sumário __________________

1. A história da mediação no Brasil. 2. Tendência norte-america-


na. 3. Tendência européia. 4. Mediação familiar interdisciplinar.
5. O pioneirismo da experiência brasileira — Projeto de Lei da
Mediação. 6. MEC — Normatização do padrão de excelência
do curso de direito. 7. Conclusão. 8. Bibliografia.

1 A HISTÓRIA DA MEDIAÇÃO NO BRASIL

Em outubro de 1995, em São Paulo, o extinto IBEIDF (Instituto


Brasileiro de Estudos Interdisciplinares de Direito de Família), que exer-
ceu importante papel no desenvolvimento da construção de uma teoria
moderna na abordagem dos conflitos familiares, tomou a iniciativa de
instituir uma comissão temática para estudo da Mediação Familiar.
Esse fato histórico foi o marco inicial de sistematização dos estu-
dos da Mediação Familiar no Brasil. Profissionais de Direito, Psicologia,
Serviço Social, Medicina, Psicanálise etc. reuniram-se e formaram uma
comissao multidisciplinar e multiprofissional, que chegou a contar com a
participação de cerca de trinta pessoas.

317

ÁGUIDA ARRUDA BARBOSA

Os integrantes da comissão realizavam reuniões semanais para


exposição de textos, relatos de casos e troca de experiências, comenta-
vam e recomendavam leituras. Enfim, abria-se um espaço para comparti-
lhamento de idéias e ideais.

Em decorrência do rápido desenvolvimento do projeto, foi promo-


vido um evento na PUC-SP — cursos de Direito e Psicologia — em parceria
com o IBEIDF, com o propósito de divulgar os primeiros resultados
daquele importante trabalho de pesquisa. Logo outras instituições repre-
sentativas das profissões jurídicas, como a AASP (Associação dos Advo-
gados de São Paulo) e IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo),
interessaram-se pelo movimento. Em seguida, o tema “mediação” foi
inserido nos cursos de Direito de Família, ministrados pelas mencionadas
instituições.

Em 1997 o IBEIDF brinda a Mediação Familiar com substanciosos


eventos. Em fevereiro, é lançada a obra coletiva Direito de Família e Ciéndas
Humanas — Cadernos de Estudos n. 1, publicando o primeiro texto jurídico
sobre Mediação Familiar1 no Brasil.
Outros eventos estenderam-se durante o mesmo ano, com a inicia-
tiva de convidar três mediadores estrangeiros para virem ao Brasil e
ministrarem cursos de formação de mediadores: Pedro Herscovici e Eduardo
José Cardenas, da Argentina, e Claude de Don/eer, da França.
Os cursos ministrados pelos mediadores estrangeiros trouxeram
participantes de outros Estados brasileiros, vindo a tornar reconhecida-
mente nacional a iniciativa paulista do IBEIDF, na implantação da media-
ção familiar.

A comissão temática logo concluiu que a mediação agrupava duas


tendências bem definidas. Uma, proveniente da Argentina, que, por sua vez,
refletia a experiência norte-americana desenvolvida desde a década de 1960,
portanto, já amadurecida naquele país. Outra, a vertente européia, com
características muito diferenciadas do modelo norte-americano.

1 BARBOSA, Águida Arruda. O direito de família e a mediação familiar. Inserido


na obra

coletiva Direito de Família e Ciências Humanas. Caderno de Estudos n. 1.


Jurídica Brasileira, Silo Paulo,
1997, p. 23-32.

318

A POLÍTICA PÚBLICA DA MEDIAÇÃO E A EXPERIÉNCIA BRASILEIRA


2 TENDÊNCIA NORTE-AMERICANA

Nos Estados Unidos, a mediação desenvolveu-se com o objetivo de


satisfazer a necessidade de aliviar o Judiciário, cada vez mais sobrecarrega-
do pela crescente demanda judicial. Assim, sob o enfoque de negociação, a
mediação encontra em Harvard a fundamentação teórica que a conceitua
como um modo de resolução de conflitos. O objetivo focaliza-se no acordo
entre as partes, afastando qualquer preocupação com as causas subjacentes
do impasse. Logo, não há preocupação com o caráter preventivo.

Sob tais aspectos, a mediação norte-americana apresenta-se como


circuito derivado tendente ao “aperfeiçoamento do acesso à justiça”,
decorrente da explosão do contencioso. Coincide, justamente, com a
tendência mundial de criação de instâncias de conciliação e arbitragem
para todas as causas. A exclusão das de pequeno valor da apreciação das
instâncias superiores logo mereceu críticas, pois as chamadas “pequenas
causas” passaram a ser tratadas como “justiça de segunda classe” ou uma
nova forma de “controle social”.

Diante do alto custo do acesso à justiça, nos Estados Unidos, os


cidadãos aderem, rapidamente, à via intitulada ADR — Alternative Dispute
Resolution, que se apresenta como uma alternativa rápida e econômica, na
qual foi inserida a mediação.

3 TENDÊNCIA EUROPÉIA

A outra vertente dos estudos da mediação familiar estava atrelada


ao modelo europeu.
Na metade da década de 1980, franceses interessados nas experiên-
cias norte-americanas tiveram a iniciativa de estudar a mediação no
Canadá, país que, pela facilidade da proximidade geográfica aos Estados
Unidos e pelo acesso à dupla lingua oficial — inglês e francês — realizou
uma mediação entre o continente americano e o europeu. Assim, com as
devidas adaptações, começa a ser construído um modelo inicialmente
francês, mas que logo se torna um modelo europeu de mediação.

319

ÁGUIDA ARRUDA BARBOSA

A prática da mediação familiar na França foi enraizada e estruturada


sob o enfoque da interdisczjilinaridade, afastando-se, assim, do conceito de
mediação consagrado nos Estados Unidos — de resolução de conflitos — para
construir um conceito próprio, pautado na trasformação do conflito.

A divergência no conceito, entre as duas marcadas tendências da


mediação, está na origem do movimento. Enquanto nos Estados Unidos
a mediação correspondia a uma resposta capaz de desafogar o Judiciário,
na França teve a sua origem na É cole des Parents e no Conseil Congugal et
Familial, institutos que se aperfeiçoaram a partir do desenvolvimento
teórico da mediação familiar.

4 MEDIAÇÃO FAMILIAR INTERDISCIPLINAR

A diferença essencial entre as duas vertentes centra-se no âmbito


de abordagem do tema. Enquanto a busca de resolução de conflitos possui
natureza unidisciplinar (sistema de um só nível e um só objetivo), a transjbr-
mação de conflito é essencia]mente interdisciplinar, pois se define como axio-
mática comum a um grupo de disciplinas conexas e definida no nível hie-
rárquico imediatamente superior, introduzindo-se à noção de finalidade.

Registre-se, porém, a forte tendência que, freqüentemente, se estabe-


lece entre interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e pluridisciplinaridade.
Inicialmente, releva considerar o conceito de disciplinaridade como:

“Exploração científica especializada de determinado domínio


homogêneo de estudo, isto é, o conjunto sistemático e organiza-
do de conhecimentos que apresentam características próprias
nos planos do ensino, da formação, dos métodos e das matérias;
esta exploração consiste em fazer surgir novos conhecimentos
que se substituem aos antigos “3
Assim, como doutrina, ensina Hilton Japiassu: a multidisczblinaridade é
uma gama de disciplinas adotadas simultaneamente, abstraídas das tela-
2 JAPIASSU, Hiiton. Interdisciplinaridade epatelo,gia do saber. Rio de Janeiro:
Imago, 1976, p. 71.

320

A POLÍTICA PÚBLICA DA MEDIAÇÃO E A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA

ções existentes entre si. A pluridisc~~linaridade, ao contrário, caracteriza-se


pela justaposição de diversas disciplinas situadas geralmente no mesmo
nível hierárquico e agrupadas, mantendo-se as relações existentes.
Em síntese, única semelhança entre multidisplinaridade e pluridis-
ciplinaridade está no agrupamento disciplinar, enquanto a diferença é
marcada pela existência, ou não, de cooperação.
Um exemplo típico de pluridisciplinaridade pode ser explicitado
pela atuação do serviço técnico de psicologia e serviço social no Poder
Judiciário. O juiz requer estudos de outras disciplinas que irão cooperar
com a aplicação do Direito. Cada profissional é independente para atuar
no campo de sua disciplina de especialização, sem que haja, porém, a
coordenação de um sobre os demais.

Neste passo cabe registrar a freqüente confusão que se faz quanto à


percepção do conceito de mediação familiar. Muitos profissionais decla-
ram-se “mediadores” porque atuam com a multidisciplinaridade, o que,
evidentemente, não basta. A exemplo, no Brasil há instituições sérias que
acreditam e declaram realizar mediação familiar, porque o atendimento
ao cliente é feito por advogado e psicólogo ou asistente-social, simulta-
neamente. Claro que essa forma de abordagem da pessoa em estado de
sofrimento é louvável, ampliando, em muito, a qualidade de atuação
profissional. Entretanto, não se trata de mediação, visto que esta tem
conteúdo interdiczplinar, e não meramente multidisc~plinar.

O conceito de interdisciplinaridade envolve maior complexidade


por se tratar de neologismo que traduz um significado ainda não inteira-
mente sintetizado pela compreensão universal. Na Bélgica, por exemplo,
é considerada interdisciplinar a relação entre Direito Penal e Direito
Civil. Já na França, há uma forte tendência a se considerar interdisciplinar
a relação entre disciplinas com diferentes métodos de observação do
mesmo fenômeno.
No Direito de Família francês, por exemplo, há uma coordenação
hierárquica rigorosa e uma cooperação sistemática entre Psicanálise e
Direito, com a finalidade de construção de um Direito de Família mais
aberto, com a compreensão das qualidades intrínsecas das relações fami-
liares. Essa visão moderna do conceito de família só foi tornada possível
com a implantação da interdisciplinaridade no estudo desse campo do
conhecimento.

321

ÃGUIDA ARRUDA BARBOSA

A interdisciplinaridade3 é decorrente dos tempos atuais e resultante do


estágio em que se encontra a teoria do conhecimento científico. Para Japiassu2

“Constitui importante instrumento de reorganização do meio


científico, a partir da construção de um saber que toma por
empréstimo os saberes de outras disciplinas, integrando-os num
conhecimento de um nível hierarquicamente superior”.

Enfim, em elogiável aporte de Lídia Almeida Prado,4 a interdis-


ciplinaridade amplia a potencialidade do conhecimento humano, pela
articulação entre as disciplinas e o estabelecimento de um diálogo entre
os mesmos, visando à construção de uma conduta epistemológica.
É importante destacar que se trata de “conduta” individual, e não
coletiva, como acreditam alguns que confundem o conceito de interdisci-
plinaridade com pluridisciplinaridade e multidisciplinaridade.
A produção de conhecimento interdisciplinar é oriunda da adoção
de uma atitude individual, construída com suporte na observação e na
cooperação com outros saberes. Para tanto, fundamental desperte no
pesquisador uma nova manifestação de inteligência e uma nova pedago-
gia, opondo a extrema especialização à propedêutica interdisciplinar.

Assim, para compreender a mediação familiar interdisciplinar é


preciso adotar uma atitude corajosa de despojamento de conceitos e pre-
conceitos já ultrapassados, pois trata-se de uma atitude ousada de amplia-
ção do conhecimento.

5 O PIONEIRISMO DA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA -


PROJETO DE LEI DA MEDIAÇÃO

Numa atitude ousada, em busca de um conhecimento a partir da


ótica interdisciplinar, coube a um grupo de pesquisadores brasileiros,5 o

3 JAPIASSU, Hilton. Op. cit., p. 18.

4 ALMEIDA PRADO, Lídia. Apontamentos de aulas ministradas no Curso de Pós-


Graduação da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2001.

5 O Projeto de Lei que institui a mediaçlo é de autoria da advogada e mediadora


AguidaAmída

Barbosa, Desembargador do TJSP Antonio Cesar Pe/uso, das Psicanalistas e


mediadoras E/lana

322

A POLÍTICA PÚBLICA DA MEDIAÇÃO E A EXPERIENCIA BRASILEIRA

pioneirismo da iniciativa de construção de um projeto de lei que institui a


mediação familiar.

A inspiração que se prestou de êmbolo a essa iniciativa foi o estudo


da inserção da mediação no Código de Processo Civil da França, que
recepcionou o instituto em reforma processual de 8 de janeiro de 1995.
No título II “ Disposições de Procedimento Civil”, a Primeira Parte
“6

intitula-se “A Conciliação e a Mediação Judiciarta


A experiência francesa revelava que a instituição legal da mediação
prestava-se a conceituá-la, permitindo, a partir daí, que se organizasse
como prática social que permeia o Judiciário, garantindo as prerrogativas
de cidadania.

Iniciava-se, assim, a trajetória de um projeto de lei brasileira de


mediação, norteado pelo modelo europeu. Em dezembro de 1998 a Depu-
tada Zulaié Cobra Ribeiro adotou aquele estudo, dando origem ao Projeto
de Lei 4.827/98, que já tramitou pela Comissão de Justiça, pendente de
votação e aprovação para se tornar a lei nacional instituindo a mediação
no Brasil.

A primeira questão debatida pelo grupo interdisciplinar versou sobre


o conteúdo, adotando-se a concepção contida no artigo 1.0, da lei
francesa:

“Mediação é a atividade que facilita a comunicação, exercida


por terceira pessoa, neutra, que ESCUTA e orienta as partes,
permitindo que encontrem uma solução consensual para o con-
flito que as opõem, ou que previna o litígio.”

Outra questão levantou-se em torno da figura do mediador, con-


cluindo-se, da mesma forma, pela adoção da lei francesa:

“Mediador é a pessoa capaz, de reputação i]ibada, aceita pelos me-


diandos e que tenha qualificação adequada à natureza do conflito”.

Riberti Na~areth e Gise//e Groeninga e do advogado Luis Caetano Antunes, com


iniciativa
legislativa da Deputada Zulaié Cobra Ribeiro.

6 BABU, Annie; BILETTA, Isabella; BONNOURE-AUFIERE, Pierrette.


Médiationfamiliale.
Regards croisis. Toulouse: Erês, 1997, p. 256-261.

323

ÁGUIDA ARRUDA BARBOSA

Quanto ao objeto da mediação, com as devidas adaptações ao


sistema jurídico brasileiro, definiu-se que:

“A mediação está prevista para toda matéria que admita conci-


liação, reconciliação, transação ou acordo de outra ordem ou fins
que a lei permita”.

Definido o conceito, duas outras questões relevantes foram assim


definidas: a) quanto à natureza da mediação, constando do projeto que a
mediação tanto pode ser judicial como extrajudicial, esta com objetivo de
prevenir litígio, em atividade que se desenvolve fora do processo; b)
quanto ao seu objeto, podendo a mediação versar sobre todo o litígio ou
parte dele.

Outra disposição importante para o contexto brasileiro foi a inserção


de previsão que autoriza:

“O Juiz poderá, obtida a concordância das partes, designar um


mediador, em qualquer grau de jurisdição e em qualquer fase do
processo, suspendendo-o pelo prazo de até 3 meses, prorrogável
por igual período”.

Como retro transcrito, o projeto de lei em estudo, no artigo 1.~,


expressa a ação do mediador pelo verbo escutar.
Quando oferece a instalação de uma instância de mediação, o juiz
delega a um terceiro os poderes que lhe são conferidos pelo sistema
jurídico, a exemplo do artigo 32, § 2.~’, da Lei 6.515/77, que atribui ao
juiz o poder irrestrito de promover todos os meios para que as partes se
reconciliem ou transijam.
É preciso compreender que o poder simbólico do Judiciário e o
ambiente da audiência constituem um ritual que encoraja as partes a uma
mediação, cuja função é dar voz à pessoa para que possa dispensar a tra-
dução de seu sofrimento pela palavra do advogado ou da sentença.
Uma indagação que exigiu reflexão ao entendimento e à compreen-
são da atividade, para poder legislar sobre ela, foi a escolha entre escutar
ou ouvis para dar a redação cuidadosa ao artigo que define a mediação.

324

A POLÍTICA PÚBLICA DA MEDIAÇÃO E A EXPERIãNCIA BRASILEIRA

A mediadora francesa Jacqueline Mourret7 explica que a metodologia da


mediação é a tática e a estratégica em que a escuta8 entra como atividade
profissional altamente qualificada, permitindo decodificar, imaginar e con-
cretizar. Trata-se de uma escuta dinâmica, que dá sentido ao silêncio, que
percebe as mensagens não-verbais. Enfim, trata-se de uma atividade de ouvir
para depois escutar, ajustar, promover escolhas, realizar recortes, criar um
novo colorido para habitar as sombras do sofrimento humano.
A escuta do mediador deve ser treinada para que a sua presença
junto aos mediandos seja suficientemente próxima, para não parecer indife-
rente, e suficientemente distante, para não correr o risco de “vestir o outro
com nossas vestes”.

6 MEC - NORMATIZAÇÃO DO PADRÃO DE EXCELÊNCIA a)


DO CURSO DE DIREITO

A expressão da atualidade da politica da mediação no Brasil está na )


exaltação do instituto jurídico em formação, inserido nas recomendações

i
do Ministério da Educação — Secretaria de Educação Superior — junho de
2001 — como item a ser desenvolvido pelo núcleo de prática jurídica dos
cursos de Direito.
Destarte, para que um curso de Direito alcance o conceito “A”,
terá que ter promovido o ensino de técnicas da mediação, conforme item
5, letra C, II — Organização Didático-Pedagógica, dos Padrões de Quali-
dade do Curso de Direito.
Ressalte-se, outrossim, a importância da distinção técnica estabelecida
no mesmo dispositivo supra mencionado, no número 4, a arbitragem; e no
número 5, “prática de atividade de negociação, conciliação e mediação.”

Como é habitual na evolução de um conceito, no Brasil ainda está


muito presente a confusão entre mediação, conciliação e arbitragem. No
texto não há nenhuma referência à palavra ou ao conceito de mediação.

7 MOURRET, Jacqueline; DIERSTEIN, Hélêne. Médiationfami/iab.~ une cuiture


de paix. França:
Atei iers de ia Licorne, 1996, p. 45.

8 íbidem, p. 47. “L’écoute ‘L’oreillo d’oro’ c’est comme si par tout son
Être, et dans une notion
d’avenir, 11 ecoutait vibrer les fibres des violons qui n’existaient pas
encore... Ii écoutait... Ii
appeiait cela avoir ‘l’oreillo d’oro’ Seul le bois ainsi choisi pouvait enfanter
la ‘nota perfecta’
digne de ‘i’anima dei vioiono’.”

325

ÁGUIDA ARRUDA BARBOSA

No entanto, freqüentemente os próprios curso de arbitragem anunciados,


acoplam em seu título, além de seu principal direcionamento (arbitra-
gem), a palavra mediação, como se sinônimas fossem.

O critério adotado pelo MEC, seguramente, atuará na formação


dos futuros profissionais do Direito para que não perpetuem a confusão
de conceitos, pois já terão a formação jurídica adequada para assimilação
da diferença entre mediação e arbitragem.

Outra freqüente confusão terminológica corrente faz-se entre me-


diação e conciliação. A diferença de conceitos, contudo, é substancial. A
conciliação privilegia o acordo e pressupõe que cada litigante deve perder
um pouco. Popularmente, a conciliação expressa-se pelo conhecido adágio:
“Antes um mau acordo que uma boa demanda.” Na conciliação inexiste
qualquer preocupação com as causas determinantes do conflito, assim
como não se vislumbra a futura execução do acordo que, freqüen-
temente, não é passível de cumprimento, como ocorre, notadamente, nos
litígios de Direito de Família.
A mediação tem o início de sua atuação, anteriormente, ao conflito
e sua abrangência ultrapassa os limites de eventual acordo, que possa vir
a ser celebrado entre os litigantes. Trata-se, portanto, de uma abordagem
muito mais ampla que a conciliação e a arbitragem.

7 CONCLUSÃO

A politica pública da mediação no Brasil caminha a passos largos


para ser adotada como procedimento ordinário, no âmbito privado,
exercido em instituições especializadas; e no âmbito do Poder Judiciário.
E, a respeito, registrem-se experiências em Curitiba (PR), Maceió (AL),
Porto Alegre (RS) e Florianópolis (SC), que realizam a mediação no
âmbito do Poder Judiciário, cujos resultados ainda não foram sistemati-
zados para uma perfeita avaliação, sobrelevando em importância o
pionerismo da inicativa.
Finalizando, como enfatiza o civilista João Baptista Vil/ela, o amor
está para o Direito de Família assim como a vontade está para o Direito
das Obrigações. Portanto, a mediação familiar não pode se afastar dessa

326

A POLÍTICA PÚBLICA DA MEDIAÇÃO E A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA

máxima, conteúdo de sua atividade, relevando aos estudiosos externar


esse sentido à experiência brasileira.

8 BIBLIOGRAFIA

BARBOSA, Aguida Arruda. O direito de família e a mediação familiar.


Inserido na obra coletiva Direito de Família e Ciências Humanas. Caderno
de Estudos n. 1. Jurídica Brasileira, São Paulo, 1997.
GROENINGA, Giselle; NAZARETH, Eliana. Mediação: além
de um método, uma ferramenta para a compreensão das demandas
judiciais no direito de família — a experiência brasileira. Revista Brasilei-
ra de Direito de Família. Síntese, n. 7, out./dez. 2000, p. 23. Trabalho
apresentado na 1O.~ Conferência Mundial da International Society of
Family Law, Brisbane, Austrália, jul. 2000.
BABU, Annie; BILETTA, Isabella; BONNOURE-AUFIERE, Pierrette.
Médiation familiale. Regards croisés. Toulouse: Érês, 1997.
CARBONNIER, Jean. Flexible droit. Librairie Générale de Droit et de
Jurisprudence. Paris: EJA, 1977.
Droit etpassion du droit. França: Flammarion, 1996.
JAPJASSU, Hilton. Interdisciiplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro:
Imago, 1976.
MOURRET, Jacqueline; DIERSTEIN, Hélêne. La médiationfamiliale: une
culture de paix ou méditation sur la médiation familiale. França: Ateliers
de la Licorne, 1996.
SJX, Jean-François. Dinámica da mediação. Trad. Águida Arruda Barbosa,
Giseile Groeninga e Eliana Nazareth. Belo Horizonte : Dcl Rey, 2001.
VILLELA, Baptista João. Repensando o direito de família (abertura). Belo
Horizonte: Dei Rey, 1999.

327
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RÉQUIEM PARA UMA CERTA DIGNIDADE


DA PESSOA HUMANA

Antonio Junqueira de Azevedo

_________________ Sumário __________________

1. Introdução. 2. A concepção insular de pessoa. 3. Concreti-


zação do princípio constitucional da dignidade humana à luz
da nova ética. 4. Bibliografia.

1 INTRODUÇÃO

A utilização da expressão “dignidade da pessoa humana” no mundo


do direito é fato histórico recente. Evidentemente, muitas civilizações,
graças especialmente a seus heróis e santos, respeitaram a dignidade da
pessoa humana, mas juridicamente a tomada de consciência, com a
verbalização da expressão, foi um passo notável dos tempos mais próximos.1
“Da dignidade da pessoa humana tornam-se os homens de nosso tempo
sempre mais cônscios” (“Declaração Dignitatis Humanae Sobre a Liberdade
Religiosa”, de Paulo VI e do Concilio do Vaticano II, em 7 de dezembro de

1 Parece que a expressão em causa surgiu pela primeira vez, nesse


contexto preceptivo em que
hoje está sendo usada, em 1945, no “Preâmbulo” da Carta das Nações Unidas
(“dignidade e
valor do ser humano”). A palavra “dignidade”, porém, utilizada em contexto
ético, não
jurídico, para o ser humano, já está muito precisamente em Kant que opõe
“preço”, (“Preis”,
para tudo que serve de meio), à “dignidade” — “Würde”, para o que é um fim em si
mesmo, o
valor intrínseco do ser racional (para o citado filósofo, somente o homem está
nessa condição).
Citamos Kant por via de tradução francesa dos Fundamentos da metafísica dos
costumes (p. 80).

329

ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO

1965). Tomada em si, a expressão é um conceito jurídico indeterminado;


utilizada em norma, especialmente constitucional, é princípio jurídico.2 É sob
essa última caracterização que está na Constituição da República, já que aí
aparece entre os “princípios fundamentais” (art. 1 .‘~, III).
Com ligeiras diferenças de redação, também utilizam a expressão,
exempLificativamente:
1) a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), tanto
em seu primeiro “considerando” quanto em seu primeiro artigo.
“Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos
os membros da família humana e de seus direitos iguais e inaliená-
veis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.
E art. 1 .“: “Todos os homem nascem livres e iguais em d~~gnidade e
direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em
relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”
2) a Constituição da República Italiana (1947): “Todos os cida-
dãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei sem
distinção de sexo, raça, lingua, religião, opinião
politica e condi-
ções pessoais e sociais” (art. 3•o, 1 •a parte).
3) a “Lei Fundamental” da Alemanha (1949): “A dignidade do
‘II homem é intangível Respeitá-la e protegê-la é
obrigação de todo o
poder público” (art. 1.1).
4) a Constituição da República Portuguesa: “Portugal é uma
Repú-
blica soberana, baseada, entre outros valores, na
dignidade da
pessoa humana e na vontade popular e empenhada na
construção
de uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 15.~ E:
“Todos

2 Os conceitos jurídicos indeterminados são assim chamados porque seu


conteúdo é mais
indeterminado do que o dos conceitos jurídicos determinados (exemplo destes, os
numéricos —
18 anos, 24 horas—, daqueles, “casa particular”). Os conceitos jurídicos
indeterminados podem
ser desctitivos (exemplo, patrimônio, cobrança) ou normativos (exemplo, justa
causa, boa-fé) (ef.
Engish, Introdução ao pensamento jurídico, Lisboa, Gulbenkian, 1988, p. 210). Os
normativos
exigem valoraçào. No caso da dignidade humana, o conceito, além de normativo, é
axiolo~gico
porque a dignidade humana é valor — a dignidade é a expressão do valor da pessoa
humana.
Todo “valor” é a projeção de um bem para alguém; no caso, a pessoa humana é o
bem, a
dignidade o seu valoó isto é, a sua projeção.
Princípio jurídico, por sua vez, é a idéia diretora de uma regulamentação (cf.
Larenz, Derecho
justo: fundamentos de ética jurídica, Madrid, Civitas, 1985, p. 32). O principio
jurídico não é
regra mas é norma jurídica; exige não somente interpretação, mas também
concretização.
3 A redação de 1976, repetida em 1982, por ocasião da primeira revisão,
era: “Portugal é uma
República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e
empenhada

330

RÉQUIEM PARA UMA CERTA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a


lei” (art. 13., 1.a alínea).
Infelizmente, porém, o acordo sobre palavras, “dignidade da pes-
soa humana”, já não esconde o grande desacordo sobre seu conteúdo. Há
hoje duas diversas concepções da pessoa humana que procuram dar
suporte à idéia de sua dignidade; de um lado, há a concepção insula~ ainda
dominante, fundada no homem como razão e vontade, segundo uns,
como autoconsciência, segundo outros, é a concepção para cuja morte
queremos colaborar e a cujo réquiem queremos assistir, porque se tornou
insuficiente; e, de outro, a concepção própria de uma nova ética, fundada
no homem como ser integrado à natureza, participante especial do fluxo
vital que a perpassa há bilhões de anos, e cuja nota específica não está na
razão nem na vontade, que também os animais superiores possuem, ou
na autoconsciência, que pelo menos os chimpanzés também têm, e sim,
em rumo inverso, na capacidade do homem de sair de si, de reconhecer
no outro um igual, de usar a linguagem, dialogar, e, ainda, principalmente,
na sua vocação para o amor, como entrega espiritual a outrem. A primeira
concepção leva ao entendimento da dignidade humana como autonomia
individual, ou autodeterminação; a segunda, como qualidade do ser vivo,
capaz de dialogar e chamado à transcendência.
Do ponto de vista ontológico, ou de visão da realidade, a concep-
ção insular da pessoa humana é dualista: homem e natureza não se en-
contram, estão em níveis diversos; são respectivamente sujeito e objeto. O
homem, “rei da criação”, vê e pensa a natureza. Somente o homem é
racional e capaz de querer. O homem é radicalmente diferente dos
demais seres; somente ele é autoconsciente. A natureza é fato bruto, isto
é, sem valor em si. A segunda é monista: entre homem e natureza, há um
rontinuum; o homem faz parte da natureza e não é o único ser inteligente e
capaz de querer, ou o único dotado de autoconsciência. Há, entre os

na sua transformação numa sociedade sem classes”. Depois, em 1989 (segunda


revisão), a
redação passou a: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da
pessoa
humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre,
justa e
solidária”. Hoje, após a terceira revisão, o teor do artigo 1.0 é o que consta
do texto supra.
O artigo “O direito brasileiro e o princípio da dignidade humana”, de Nobre
Júnior (2001)
enumera diversas outras Constituições que abrigam o princípio da dignidade. O
livro A
a]irmação históríca dos direitos humanos, de Comparato (2001), por sua vez, traz
e comenta as mais
importantes declarações dc direitos humanos.

331

ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO

seres vivos, um crescendo de complexidade, e o homem é o último elo da


cadeia. A natureza como um todo é um bem; a vida, o seu valor.
Do ponto de vista antropológico, em segundo lugar, o homem não
é uma “mente”, que tem um corpo; ele todo é corpo. O racionalismo
iluminista, que deu origem à concepção insular, corresponde visualmente
a figura do homem europeu: o terno que veste deixa-lhe à mostra somen-
te a cabeça e as mãos (z razão ± ação, ou vontade); o resto do corpo é a
parte oculta do iceberg, a natureza física, cuja essência, no homem, aquela
filosofia ignora.4 Essa parte do corpo (insensivelmente “o como” é pensa-
do por nós muitas vezes à européia como sendo a parte de nosso ser que
nao e a cabeça) essa parte do corpo, repetimos, é considerada uma
“máquina” ou um “mecanismo” tido pela mente. Mas a mente também é
corpo!
O desconhecimento do valor da natureza, inclusive da natureza no
homem, é, assim, a primeira grande insuficiência de concepção insular. A
segunda é, justamente, seu caráter fechado, subjetivista. Quer como
[III

razão e vontade quer como autoconsciência, a concepção insular age


com redução da plenitudo hominis, retirando do ser humano justamente o
que ele tem de realmente específico: seu reconhecimento do próximo,
com a capacidade de dialogar, e sua vocação espiritual. Apesar
dos
•rr desvios, dos rumos dispersos, dos caminhos sem saída, a
evolução dos se-
res vivos, vista a longuíssimo prazo, revela aumento progressivo
de com-
plexidade dos seres unicelulares, como bactérias, aos
pluricelulares, pas-
sando aos vegetais, aos animais invertebrados, aos vertebrados,
e vindo
até o homem. Entre o mais remoto e o mais recente dos seres, há
mudanças
de nível com a emergência de novas faculdades, sempre, porém,
sem quebra da
continuidade: à simples vida, foram se acrescentando a
mobilidade, a
sensibilidade, a inteligência e a vontade, a autoconsciência e,
finalmente,
a projeção para o próximo, com a capacidade de dialogar, e a
potencial
abertura para o absoluto.5 Ao tentar fixar a especificidade do
homem, a

4 O homem europeu é como esses “santos de roca”, da época do Iluminismo,


aqui em Ouro
Preto: somente tem cabeça e mãos, o testo é “roupa”. Não deixa de ser curioso
observar como
esses santos nâo são apreciados pelos brasileiros. É claro, eles não
correspondem à nossa
formação africana e indígena que valoriza o corpo e a vida.

5 Do início da vida na Terra até a projeção para o próximo, com o uso da


linguagem, há um
continuam (imanéneia). A abertura pata o absoluto é potencial; para transformá-
la cm ato é
preciso uma decisão fundamental, amar. Amar é a decisão fundamental que inventa
a
transcendência.

332

RÉQUIEM PARA UMA CERTA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

concepção insular ou pára na inteligência e na vontade, que são faculda-


des comuns aos homens e animais superiores, ou pára na auto-conscien-
cia, comum pelo menos ao homem e ao chimpanzé.6 O que, de fato, é
específico do homem é omitido por ela. Daí, com graves conseqüências
jurídicas, o lento deslizar intelectual no entendimento da dignidade da
pessoa humana, de “autonomia individual”, para “qualidade de vida”,
quando, então, algo que deveria ser radical passa a ser tão relativo quanto
viver melhor ou pior. A concepção insular, antropocêntrica e subjetiva-
mente fechada, já não garante juridicamente o ser humano; infelizmente,
ela pode levar a abusos e desvios, entre os quais o caso da eutanásia é
paradigmático.7
6 A autoconsciência é atribuída pela etologia também aos chimpanzés (e
talvez aos orangotangos)
especialmente por causa da chamada “experiência do espelho”. “While
almost ali visually oriented
mammals initially try tu reach or look behind a mirrur, only two
nonhumman specics — ~4I
chimpanzees and orangurans — seem tu understand that they are secing
themselves. The
speeial status of these apes has bcen recognized for a long time. In
1922 Anton Pertielje, a
Dutch naturalist, remarked that, whereas monkeys fail tu understand the
relation between their
reflectíons and themselves, au orangutan attentively looks firstly at
his mitror image but then
also at his bchind and bis erust ofbread in a mirror (...) obviously
understanding the use of a mirror UI
Similarly, the German gestalt psychologist Wolfgang Kõhler in 1925
commenred ou the
lasting interest of chimpanzees in their mirror image; they continue tu
play w th mak ng
5
strange faces at themselves and ehccking reflected objects against the
real thtng by looking
back and forth bcrween the two. Monkeys, in cuntrast, react with facial
cxpressiuns that are
anything but frivolous: thcy regard their reflection as another
individual, treating it as a
stranger of their own sex and specics.
Compelling evidence was derived in the 1970s from clegant experimcnts by
Gordon Gallup,
au American eomparativc psychulogist. An individual unknowingly received
a dot of paint in
a specifie placc, sueh as above the eyebrow, invisibie without a mirror.
Guided by their
reflecdon, chimpanzees and orangutans — as wefl as childrcn more than
eighteen months of age —
rubbed the paintcd spot with their hand and inspected the fingers that
had touchcd it,
reeognizing that thc coloring ou the reflected image was on their ows
face. Other primares — and
younger childrcn — failed tu make this conneetion. Gallup went ou tu
equate self— recognition
with self — awareness, and this in turn with a multitude of
suphisrieated mental abilities. The
list cneompassed attribution ofintention tu others, intentional
deception, reconciliation, and
empathy. Accordingly, humans and apes have entered a cugnitive domam
that sets them apart
from all t)ther furms uf life” (De Waal, Good natural: the urigins uf
right and wrung in humans
and uther animais, Cambridge, Harvard Univetsity Press, 1996, p. 67).
7 Escreve Etienne Muntcru (Cahiers, n. 3, 1998) contra a chamada
“eutanásia direta”: “A alguns
agradaria fazer-nus crer que, au privilegiar o respeito à autonomia
individual (cada um é juiz da
sua própria dignidade e decide o momento de sua morte), a legalização é
a única solução
admissível em um estado pluralista e laico. Mas estão muito equivocados:
au plasmar em um
texto legal — cuja vocação é estruturar comportamentos — o princípio da
eutanásia, inclusive a
voluntária, o legislador avalizaria a cuntruvertida noção dc “qualidade
de vida”, impondo-a
todos.”

333

ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO

Se as concretizações jurídicas da dignidade segundo ambas as


concepções são muitas vezes idênticas, em pontos fundamentais diver-
gem radicalmente. Segue-se, então, por força desse diverso entendimento
do que seja pessoa humana, um absurdo jurídico: o mesmo texto
normativo constitucional, usado para fundamentar tanto a permissão da
introdução quanto a proibição da introdução, da eutanásia, do aborta-
mento, da pena de morte, da manipulação de embriões, do exame obriga-
tório de DNA, da proibição de visitar os filhos etc. “A confusão é geral”
(Machado de Assis).
É preciso, pois, aprofundar o conceito de dignidade da pessoa huma-
na. A pessoa é um bem e a dignidade, o seu valor.8 O direito do século
XXI não se contenta com os conceitos axiológicos formais, que
podem
is ser usados retoricamente para qualquer tese. Mal o século XX se livrou
do vazio do “bando dos quatro” — os quatro conceitos jurídicos indeter-
minados: função social, ordem pública, boa-fé, interesse público9 —,
preenchendo-os, pela lei, doutrina e jurisprudência, com alguma diretriz
material, que surge, agora, no século XXI, problema idêntico com a expres-
são “dignidade da pessoa humana”! No presente artigo, após o réquiem
para a dignidade como autonomia individual, fundada na concepção
insular da pessoa humana (Parte “2”, a seguir), enterrados devidamente
os mortos, faremos uma tentativa de determinação do conteúdo da digni-
dade segundo uma nova ética: a ética da vida e do amor (Parte “3”).

8 A concretização da idéia de dignidade da pessoa humana exige uma tomada


de posição implícita
ou explícita sobre o que seja “pessoa humana”. A ética supõe a antropologia
(filosófica). “Esta
es la razón por la que la historia de la filosofia es la historia dcl encuenttu
secular entre
antropologia y ética. La rama de la ciencia que tiene como objetivo ei estudio
global dei bicn
y dcl mal moral — éstus sou los objetivos de la ética — no puede prescindir dei
hecho de que eI
bien y ei mal se manifiestan eu las acciones, y a através de las acciones se
eonvierten eu parte
dcl hombrc. Se pueden encontrar ejemplos tan antiguos como la Ética a Nicómaeo.
Y aunque
eu la filosofia moderna, especialmente eu cl pensamiento filosófico
contemporáneu, existe una
clara tendencia de la antropologia (este terreno está ahora sometido a la
exploración de la
psicologia y la sociologia moral), no es posible eliminar completamente las
implieaciones
antropológicas de la ética” (Karol Wujtyla, Personay acción, Madrid: BAC, 1982,
p. 13).
9 O conceito de função social veio a ter, afinal, diretrizes materiais na
própria Constituição da
República (art. 182, e seus §~, e art. 186); o de ordem pública, com a divisão
doutrinária entre
ordem pública de direção, em decadência, e ordem pública de proteção, em
ascensão, e, ainda,
com a separação das leis de ordem pública, duprinØpio de ordem pública, ganhou
precisão. O
de boa-fé foi tão trabalhado pela doutrina que dispensa comentários. Do “bando
dos quatro”,
somente o conceito dc “interesse público” mantêm, ainda, infelizmente, grande
indefinição.

334

RÉQUIEM PARA UMA CERTA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

2 A CONCEPÇÃO INSULAR DE PESSOA

Em pelo menos três áreas, o avanço do conhecimento científico


pôs abaixo a visão insular da pessoa. Essas áreas são: a biologia, com a
explicação da evolução das espécies; a etologia — estudo do comporta-
mento dos animais na natureza —, especialmente a primatologia, com o
aprimoramento das observações; e as ciências cognitivas, com as desco-
bertas sobre o cérebro humano.
Após indagar para si mesmo o que é o homem, o zoologista G. G.
Simpson escreveu:

“O ponto que quero agora deixar registrado é que todas as tentati-


vas para responder a essa questão feitas antes de 1859 são sem )
nenhum valor (“wortbless”) e é melhor que as ignoremos completa-
mente” (apud Richard Dawkins, The se~fish gene, 5. ed., Oxford/New
York, Oxford University Press, 1999, p. 1).
aq
De fato, desde 1859, ano da publicação da Or~gem das expedes, ufl
qualquer idéia do homem como ser desvinculado de uma ancestralidade
primata tornou-se insustentável. As pesquisas paleontológicas, no ponto 5
a que chegamos, com a certeza da sucessão dos diversos tipos de antro-
póides (a partir de 35 milhões de anos) e, em seguida, dos vários tipos de
hominóides (a partir de 25 milhões de anos), depois os hominídeos (há 6
ou 5 milhões de anos), até chegar às multas espécies do gênero homo (desde
aproximadamente 2,5 milhões de anos — h. habilis., h. erectus, h.
neandertha/ensis,
h. sapiens arcaico etc.), e, finalmente, ao moderno homo sapiens (+ —
150.000
anos atrás), não permitem aquela conclusão dos sábios iluministas de que
somente o homem é dotado de razão e vontade. Da bipedia (entre 8 e 5
milhões de anos) à utilização de instrumentos de pedra (2,5 milhões de
anos), do aumento do cérebro (iniciada há 2,5 milhões de anos), à
descoberta do fogo (700.000), daí à linguagem (“protolinguagem” com o
homo habi/is e linguagem somente com o moderno homo sapiens?) e aos
cuidados especiais com os mortos (100.000 anos), são sempre alguns
milhares de anos de evolução, demonstrando, numa determinada linha de
primatas, o progressivo aumento das faculdades existenciais. Essas emer-
gências vitais da evolução vão colocando os novos seres em níveis cada
vez mais elevados de complexidade. Não é possível, portanto, manter a

335

ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO

convicção de que aquelas faculdades (razão, vontade, autoconsciência)


já teriam surgido no homem prontas como as conhecemos hoje, tal qual
Minerva da cabeça de Júpiter, ou seja, que ou teriam sido criadas com o
próprio homem em um momento único, ou teriam sido acrescentadas a
um “suporte” (o macaco ancestral), de repente, não se sabe bem como.
Acresce a isso que a etologia comprova o que qualquer bom
observador, não contaminado pelo racionalismo europeu, sabe: animais,
como burros, cavalos, cachorros, macacos, pensam e querem. É de se ver com
que persistência os burros se esforçam para fazer o que desejam! E como
é comum crianças de fazenda se queixarem aos pais de que o cavalo em
que estão montadas “só pensa em comer”!10 Os cachorros, por sua vez,
i~r como seus donos sabem, têm consciência do que é proibido e do que é
permitido; envergonham-se quando erram e orgulham-se quando acer-
tam. São impressionantes, por fim, os relatos de solidariedade, amizade e
Ir “1 ~ colaboração entre os macacos antropóides (“apes” — chimpanzés,
gorilas,
orangotangos)! (cf. as exposições feitas por De Waal, Good natured, op.
cit., passim)i’1
‘1k.

Nesse campo, não têm nenhuma razão grandes nomes da filosofia,


o como Descartes e Kant, o primeiro, ao afirmar que os animais são
“máqui-
nas que se movem” e o segundo, ao reduzi-los a “coisas”. Descartes, depois
de escrever que a alma é que pensa e que os animais não tem alma e, por-

10 E preciso não confundir vontade (capacidade interna de decisão) e


liberdade (liberdade
natural). Admitamos, para argumentar, que a vontade dos animais não é livre — as
decisões dos
animais seriam determinadas pela natureza e suas eircunstãncias —,mas,
perguntamos, não seria
essa a mesma situação, somente mais complexa, a do homem? A diferença não seria
somente de
grau? um computador aperfeiçoadíssimo, alimentado com todos os dados de uma
situação e
mais todos os dados individuais de alguém (dados genéticos, o passado vivido e
registrado
psicologicamente, o atual estado físico) não revelaria previamente que decisão
esse alguém
tomaria naquela situação? Com exceção do ato fundamental da liberdade moral,
amar ou não
amar (ver nota 5), e a possibilidade de praticar os atos com amor ou sem amor,
haveria mesmo
liberdade (liberdade natural)? Com exceção da capacidade de amar, parece que ou
os animais
superiores, como o homem, têm alguma liberdade de querer, variando a extensão do
espaço de escolha
de cada um, ou nenhum dos dois têm nenhuma.
11 O autor citado no texto, a propósito de macacos aleijados ou
mentalmente prejudicados mas
perfeitamente integrados no grupo, chega a se referir a uma “survival of the
unfittest”.
“Altruism is not limited tu our species. Indeed, its presence in other species,
and the theuretical
challenge this represento, is what gave rise tu socibiology — the contemporary
study of animal
(including human) behavior from an evolutionary perspective. Aiding others at a
cost or risk
tu oneself is widespread in the animal world” (Good natured, op. eit., p. 12).

336

RÉQUIEM PARA UMA CERTA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

tanto, não pensam, nem tem vontade, transforma-os em “robots” natu-


rais (“autômatos”, na sua linguagem).

“O que não parecerá nada estranho às pessoas que, sabendo


como a indústria dos homens pode fazer autómatos, ou máquinas
móveis, empregando poucas peças, comparando com a plurali-
dade de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as demais
partes do corpo animal, considerarão esse corpo como uma máquina
que, tendo sido fabricada pelas mãos de Deus, é incomparavel-
mente melhor ordenada e tem em si movimentos mais admiráveis
que qualquer uma das que podem ser inventadas pelos homens”12
(Discours de la méthode, 5•a parte).

Como diz HansJonas (Leprincipe responsabilité, 1995, 3. ed., Paris,


p. 127), é inegável a presença de “elementos subjetivos” no agir e sofrer
dos animais; negar essa presença e uma violência dogmática”. E, sobre
essa negação ideológica cartesiana da subjetividade animal, escreve:

“Mas a razão totalmente artificial de tal negação, a saber o


decreto de Descartes (sic) de que a subjetividade como tal somente
pode ser racional e, portanto, existir somente no homem, não
convence o observador razoável e qualquer proprietário de
cachorro poderá zombar dessa observação.”13

Kanl por sua vez, escreve:

12 No original: “Cc qui ne semblera nullement étrange à ceux qui, saehant


combien de divers
automates, ou machincs mouvantes, l’industrie des hommes peut faire, sano y
employer que
fort peu de piéces, à comparaison de la grande multitude des os, des muscles,
des nerfs, des
artéres, des veines, et de toutes les surtes parties qui sont dano le corpo de
chaque animal,
considéreront cc corpo comme une maehine qui, ayant été faite des mamo de Dieu,
est
incompareblement mieux ordonnée, eta en soi des mouvements plus admirables,
qu’aucune
de celles qui peuvent êtrc inventées par les hommes”. Sobre as considerações de
Descartes e
de seus seguidores, a respeito dos animais, v. Gontie~ “De l’homme à l’animal’
passim.

13 No original: “Mais Ia raison totalment artifieielle d’une telle


négation, à savoir le décret de
Descartes (sic) que la sub jectivité comme telle peut seulement être raisonnable
et doit donc
exister seulement dano l’homme, ne lie pas l’observatcur raisonnable et
n’importe que1
propriétaire de chien pourra s’en gausser” (reforços gráficos nossos).

337

ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO

convicção de que aquelas faculdades (razão, vontade, autoconsciência)


já teriam surgido no homem prontas como as conhecemos hoje, tal qual
Minerva da cabeça de Júpiter, ou seja, que ou teriam sido criadas com o
próprio homem em um momento único, ou teriam sido acrescentadas a
um “suporte” (o macaco ancestral), de repente, não se sabe bem como.
Acresce a isso que a etologia comprova o que qualquer bom
observador, não contaminado pelo racionalismo europeu, sabe: animais,
como burros, cavalos, cachorros, macacos ,pensam e querem. E de se ver com
que persistência os burros se esforçam para fazer o que desejam! E como
é comum crianças de fazenda se queixarem aos pais de que o cavalo em
que estão montadas “só pensa em comer”!t1~ Os cachorros, por sua vez,
como seus donos sabem, têm consciência do que é proibido e do que é
a ~ permitido; envergonham-se quando erram e orgulham-se quando acer-
tam. São impressionantes, por fim, os relatos de solidariedade, amizade e
colaboração entre os macacos antropóides (“apes” — chimpanzés, gorilas,
iii orangotangos)! (cf. as exposições feitas por De Waal, Good natured,
op.
cit., passim).11
Nesse campo, não têm nenhuma razão grandes nomes da filosofia,
rr, como Descartes e Kan/ o primeiro, ao afirmar que os animais são
“máqui-
nas que se movem” e o segundo, ao reduzi—los a “coisas”. Descartes, depois
de escrever que a alma é que pensa e que os animais não tem alma e, por-

10 E preciso não confundir vontade (capacidade interna de decisão) e


liberdade (liberdade
natural). Admitamos, para argumentar, que a vontade dos animais não é livre — as
decisões dos
animais seriam determinadas pela natureza e suas circunstãncias —, mas,
perguntamos, não seria
essa a mesma situação, somente mais complexa, a do homem? A diferença não seria
somente de
grau? um computador aperfciçoadíssimo, alimentado com todos os dados de uma
situação e
mais todos os dados individuais de alguém (dados genéticos, o passado vivido e
registrado
psicologicamentc, o atual estado físico) não revelaria previamente que decisão
esse alguém
tomaria naquela situação? Com exceção do ato fundamental da liberdade moral,
amar ou não
amar (ver nota 5), e a possibilidade de praticar os atos com amor ou sem amor,
haveria mesmo
liberdade (liberdade natural)? Com exceção da capacidade de amar, parece que ou
os animais
superiores, como o homem, têm alguma liberdade de querer, variando a extensão do
espaço de escolha
de cada um, ou nenhum dos dois têm nenhuma.

11 O autor citado no texto, a propósito de macacos aleijados ou


mentalmente prejudicados mas
perfeitamente integrados no grupo, chega a se referir a uma “survival of thc
unfittest”.
“Altruism is nor limited to our spccics. Indeed, its presencc in other species,
and the theoretical
challcngc this rcpresents, is what gavc rise tu socibiology — thc contemporary
study of animal
(including human) behavior from an evolutionary perspective. Aiding othets at a
cost or risk
to oneself is widesprcad in the animal world” (Good natured, op. cit., p. 12).

336

RÉQUIEM PARA UMA CERTA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA


tanto, não pensam, nem tem vontade, transforma-os em “robots” natu-
tais (“autômatos”, na sua linguagem).

“O que não parecerá nada estranho às pessoas que, sabendo


como a indústria dos homens pode fazer autómatos, ou máquinas
móveis, empregando poucas peças, comparando com a plurali-
dade de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as demais
partes do corpo animal, considerarão esse corpo como uma máquina
que, tendo sido fabricada pelas mãos de Deus, é incomparavel-
mente melhor ordenada e tem em si movimentos mais admiráveis
que qualquer uma das que podem ser inventadas pelos homens~’12
(Discours de Ia méthode, 5 a parte).

Como diz Hans Jonas (Le principe responsabilité, 1995, 3. ed., Paris,
p. 127), é inegável a presença de “elementos subjetivos” no agir e sofrer
dos animais; negar essa presença é uma “violência dogmática”. E, sobre
essa negação ideológica cartesiana da subjetividade animal, escreve:

“Mas a razão totalmente artificial de tal negação, a saber o


decreto de Descartes (sic) de que a subjetividade como tal somente
pode ser racional e, portanto, existir somente no homem, não
convence o observador razoável e qualquer proprietário de
cachorro poderá zombar dessa observação.”13

Kant por sua vez, escreve:

12 No original: “Ce qui ne semblera nullement étrange à ceux qui, sachant


combien de divers
automates, ou machines mouvantes, l’industrie des hommes peut faire, sans y
empioyer que
fort peu de piêccs, à comparaison de la grande multitude des os, des muscles,
des nerfs, des
artêres, (les veines, et de toutes les autres parties qui sont dans le corps de
chaque animal,
considéreront cc corps comme une machine qui, ayant été faite des mains de Dieu,
est
incompareblement micux ordonnée, et a en soi des mouvements plus admirablcs,
qu’aucune
de celles qui peuvent étre inventées par les hommcs”. Sobre as considerações de
Descartes e
de seus seguidores, a respeito dos animais, v. Gontier, “De l’homme á l’animal”,
passim.

13 No original: ‘Mais la raison totalment artificielle d’une telle


négation, à savoir le décret de
Descartes (sic) que la subjectivité comme telie peut seuiement être raisonnablc
et doit donc
exister seulcment dans l’homme, ne lie pas l’observateur raisonnable et
n’importe quel
propriétaire dc chien pourra s’en gausser” (reforços gráficos nossos).

337

ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO


“Todos os objetos de nossas inclinações têm somente um valor
condicional; porque, se as inclinações e as necessidades que delas
derivam não existissem, esses objetos seriam sem valor. Mas as
próprias inclinações ou as fontes de nossas necessidades
tampouco têm um valor absoluto e tampouco merecem serem
desejadas por si mesmas que todos os seres racionais devem
querer se livrar inteiramente delas. Assim, o valor de todos os
objetos, que nós podemos conseguir por nossas ações, é sempre
condicional. Os seres cuja existência não depende de nossa von-
tade, mas, da natureza, têm somente, se são seres privados de
razão, um valor relativo, o de meios, e eis por que são chamados
de coisas, enquanto que, ao contrário, dá-se o nome de pessoas aos
seres racionais, porque sua própria natureza os fez como fins em
a si, isto é, algo que não pode ser empregado como meio, e que, em
conseqüência, restringem na mesma proporção a liberdade de

cada um (e, por sua vez, lhe é um objeto de respeito)”.14 15


a
III

Felizmente, o BGB, seguindo o Código Civil austríaco, é hoje bem mais


h,~III

realista; em 1990, seu texto foi alterado: o titulo Coisas (Sachen) da Parte
Hpi

1
‘II 4 No original: “Tous les objeto des inclinations n’nor qu’une valeur
conditionellc; car si les
incinations cries bcsoins qui co dérivent n’existaient pas, ccs objcts seraient
sans valeur. Mais les
inclinations mêmes, ou les sources de nos besoins, ont si peu une valeur absolue
et méritent si peu
d’êtrc désirées pour elles-mêmes, que tons les êtrcs raisonnablcs doivent
souhaitcr d’eu étre
entiérement délivrés. Ainsi la valeur de tons les objets, que nuns pouvons nuns
procurcr par nos
actions, cor toujours conditionnelle. Les êtres dont l’existcnce ne dépcnd pas
dc nutre volonté,
mais de la nature, n’uns aussi, si cc sons des étres privés de raison, qu’une
valeur rclativc, cclle dc
moycns, es c’est pourquoi no les appdllc dcs choscs, tandis qu’au contrairc ou
donne le num de
personnes aux êtres raisonnables, parce que leur nature même eu fait des fins en
soi, c’est-à-dirc
quelque chose qui ne doit pas être employé comme moycn, et qui, par c005équent,
restrcint
d’autant la liberté de chacun (et lui cor no objet dc respect)”
15 O trecho de Kant nos Fundamentos da meta]isica dos costumes é muito
citado porque, a todos os
personalistas, agrada a idéia do homem como fim, e nunca, como meio. Isto está
bem; mas Kant,
além dos erros filosóficos de negar valor em si à natureza e à vida em geral e
dc incluir os animais
entre as “coisas” — esse erro é, hoje, erro também jurídico em seu próprio país
—, expressa a idéia
de pessoa como fim, sem 4gação logica com a moral formal que ele sustenta com
base no imperativo
categórrio. Sua concepção de pessoa — certa, no resultado — não se deduz de seus
raciocinios
formais. ‘En vérité, doit-on ajoutcr, l’intuition morale de Kant était pius
grande que cc que
dictait la logique do systême. Le vide particulier auquel conduit “l’impératif
catégorique
purement formei avec sou critêre dela possibilité d’universaliser sano
contradiction la maxime du
vouioir, a été remarqué maintes fois. Mais Kant lui-même rachetait le simple
formalisme de sou
impératif catégurique par um principe de comportement ‘matériel’, qui
prétendument eu
découle, abro qu’en vérité il mi est surajouté: lc respect dc la dignité des
personnes en tant
qu’elles sons lento propres fins. Le reproche de vide ne vaus certainement pas
pour cela!”

338

RÉQUIEM PARA UMA CERTA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Geral passou a ser “Coisas. Animais” (Sachen. Tiere), e o § 90 atualmente


dispõe: “Os animais não são coisas. Os animais são tutelados por lei
específica. Se nada estiver previsto, aplicam-se as disposições válidas
para as coisas.” Além disso, em caso de dano ao animal (~ 251.2), o juiz
não pode recusar a tutela específica, ainda que os custos da cura sejam
maiores que o valor econômico hipotético do animal.
Finalmente, as ciências cognitivas, por vários meios, especialmen-
te pela observação das conseqúências de lesões cerebrais acidentais,16
pela realização de ressonância magnética e de eletroencefalografia, pela
utilização dos processos PET (câmaras de pósitrons))’7 e, finalmente,
pela conjugação das análises químicas e dos estados mentais,18 têm, com
alguma segurança, comprovado que os processos de sensações, ordena-
ção das sensações e impressões internas (pensamentos) são físicos, ou no
mínimo têm total correspondência física.
É patente, pois, a insuficiência teórica da concepção da pessoa
humana como ser autoconsciente, racional e capaz de querer. Fundamen-
tar toda a nossa dignidade numa “autonomia” individual, que, além de
duvidosa, não é evidentemente absoluta e acaba sendo vista somente
como “qualidade de vida” a ser decidida subjetivamente, não basta.
A enormidade dos avanços da tecnologia chegou a um ponto que
não só põe em perigo a vida do planeta, como, no que diz respeito ao
tema deste artigo, permite a plena manipulação da natureza humana, por
meio da biomedicina. A velha ética já não resolve essas novas situações.
Diferentemente, conforme a ética da vida e do amor, as soluções existem.
O princípio jurídico da dignidade fundamenta-se na pessoa humana, e a
pessoa humana pressupõe, antes de mais nada, uma condição objetiva, a
vida. A dignidade impõe, portanto, um primeiro dever, um dever básico,
o de reconhecer a intangibilidade da vida humana. Esse pressuposto,
conforme veremos adiante, é um preceito jurídico absoluto; é um impera-

16 O caso mais célebre é o de Phineas Gagc que sobreviveu à lesão


cerebral cansada por barra dc
ferro, em 1868 (cf. Jean-Pierrc Changeux et Paul Ricoeur, Co qui nousfaitpenser~
la naturc es la
rêglc, Paris, ()dile Jacob, 2000, p. 172). Mas, depois, as observações se
multiplicaram (cf.
António Damásio, (3 mistêrio da consciência, São Paulo, Cia. das Letras, 2000,
passim).
17 Cf. Changeux es Rieoeur, p. 62.

18 Entra aqui toda a questão dos neurutransmissores (cf. Masters e


McGuirc TheNeurotransmitter
Revolution: serutonin social bchavior, and the law. Southern Illinois University
Prcss,
Carbondale and Edwardsville, passim), de que, apesar dc sua importância, não
trataremos para
não cansar o leitor.

339

ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO

tivo jurídico categórico. Em seguida, numa ordem lógica, e como conseqüên-


cia do respeito à vida, a dignidade dá base jurídica à exigência do respeito
à integridade física e psíquica (condições naturais) e aos meios mínimos
para o exercício da vida (condições materiais). Finalmente, a mesma
dignidade prescreve, agora como conseqüência da especificidade do
homem, isto é, de ser apto ao diálogo com o próximo e aberto ao amor, o
respeito aos pressupostos mínimos de liberdade e convivência igualitária
(condições culturais). Os três últimos preceitos (respeito à integridade
física e psíquica, às condições mínimas de vida e aos pressupostos mínimos
de liberdade e igualdade), como é próprio dos preceitos deduzidos dos
princípios jurídicos, não são imperativos categóricos; embora fundamen-
tais, na sua qualidade de requisitos mínimos para o desenvolvimento da
personalidade e procura da felicidade, não são imperativos radicais, são
imperativos jurídicos relativos. Além disso, devem ser obedecidos segundo
sua hierarquia.
Ii Iii

3 CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL


DA DIGNIDADE HUMANA À LUZ DA NOVA ÉTICA
I~~I

r~I~ ~! A vida genericamente considerada consubstancia o valor de tudo


que existe na natureza. Esse valor existe por si; ele independe do homem.
Do primeiro ser vivo até hoje, há um fluxo vital continuo; todo ser vivo
tem sua própria centelha de vida mas cada centelha individual surge do
fogo que, desde então, queima na Terra, e, nesse fogo, cada centelha se
insere como parte no todo. A vida em geral fundamenta o direito
ambiental e o direito dos animais. Todavia, é, sem dúvida, a vida humana
que, sob o aspecto ontológico, representa sua parte excelente. Por isso, a
vida humana — globalmente e em cada uma de suas centelhas — deve
merecer a maior atenção do jurista. Sob o ponto de vista que nos interessa,
isto é, de cada pessoa humana, a vida é condição de existência. O princípio
jurídico da dignidade, como fundamento da República, exige como pressu-
posto a intangibilidade da vida humana. Sem vida, não há pessoa, e sem pessoa,
não há dignidade.
O pressuposto de um princípio não é uma conseqüência do princí-
pio; sua exigência é radical. Um princípio jurídico, ao se concretizar, exige
sempre um trabalho de modelação para adaptação ao concreto; nesse
trabalho, a intensidade da concretização poderá ser maior ou menor. Até
340

RÉQUIEM PARA UMA CERTA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

mesmo um princípio fundamental, como o da dignidade da pessoa humana,


impõe o trabalho de modelação, porque, por exemplo, é preciso compatibi-
lizar a dignidade de uma pessoa com a de outra (e, portanto, alguma coisa
da dignidade de uma poderá ficar prejudicada pelas exigências da digni-
dade da outra). Diferentemente, o pressuposto desse princípio fundamen-
tal impõe concretização radical; ele logicamente não admite atenuação. Se
afastado, nada sobra do princípio da dignidade. E esse princípio, se pudes-
se ser totalmente eliminado, não seria princípio fundamental. O preceito da
intangibilidade da vida humana, portanto, não admite exceção; é absoluto e
está, de resto, confirmado pelo caput do art. 5.” da Constituição da Repúbli-
ca. Vejamos algumas de suas concretizações.
Deixando de lado o que ninguém contesta, a licitude da suspensão
do “empenho terapêutico “$~ a primeira concretização da intangibilidade da
vida humana, no campo polêmico de hoje, há de ser a proibição da eutanásia
(dita, às vezes, “eutanásia direta”). O médico que concorda em praticar a LA
eutanásia, porque o interessado declarou vontade nesse sentido, está
admitindo implicitamente a falta de valor intrínseco da vida de seu
ø.
paciente. Como diz Montero (Rumo a uma legalização..., 1998): ~JJ

“É claro que o fundamento não reconhecido da eutanásia se


baseia na idéia de que algumas vidas não valem (mais) a pena
serem vividas. A decisão de praticar a eutanásia não se apoia
nunca apenas na vontade do doente, mas é sempre o resultado
de um juízo de valor sobre a qualidade de vida.”

O próprio suicídio fere o princípio da intangibilidade da vida


humana, porque não há, quanto à vida, jus in se ibsum (na qualificação

19 Catecismo da Igreja Católica (edição francesa, os. 2.278/2.279): “La


cessatiun de procédures
médicales unéreuses, périlleuses, extraordinaires ou dispruportionnées avec les
résuitats
attcndus, peut être légitime. C’est le refus de ‘l’acharnement thérapeutique’.
On ne veut pas
ainsi donner la murt; on accepte de ne pas puuvoir l’empécher. Les decisiuns
doivent étre
prises par le patient s’il en a la cumpétence et la capacité, ou sinon par les
ayants droit légaux,
eu respectant tuujuurs la volonté raisonnablc ct les intérêts iégitimes do
patient.

Même si la murt est considérée comme imminente, les soins urdinairement dus à
une personne
malade ne pcuvent être légitimement interrunipus. L’usage des analgésiques pour
ailéger les
suuffrances do nioribund, meme au risque d’abréger ses jours, peut être
moralement conforme
à la dignité humaine si ia mort n’est pas volue, ni comme fio ni comme moyen,
mais seulement
prévue et tolérée comme inévitable. Les soma palliatifs constituent une forme
priviiégiée de la
charité désintéressée. A cc titre ils doivent être encuuragés”.

341

ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO

“licito/ilícito”, é ato ilícito, ainda que sem sanção). Toda vida individual
se insere no fluxo vital coletivo, de tal forma que o titular não é o
soberano absoluto de sua vida; a vida de cada um é valor que, mediata-
mente, a todos interessa.
Uma segunda concretização da intangibilidade da vida humana é a
proibição do abortamento do embrião, isto é, a interrupção voluntária da
gravidez. A célula una (zigoto), resultante da fusão dos gametas e, em
seguida, multiplicada por desenvolvimento interno no ventre materno, é,
sem dúvida, um novo ser humano que já recebeu sua própria parcela de
vida, já se inseriu com individualidade no fluxo vital contínuo da nature-
za humana. Tem vida própria e, no mínimo, capacidade para ser amado.
Filosoficamente, ou eticamente, é, pois, pessoa humana. Do ponto de
vista jurídico, pode não ter “personalidade civil” (art. 4.” do Código Civil e
art. 2.” do novo Código), mas já é sujeito de direito (art. 4.”, última parte,
do Código Civil, e art. 2.”, última parte, do novo Código). Constitucional-
mente, não há, por fim, como negar que o feto assim constituído está
~ protegido tanto pelo princípio da dignidade da pessoa humana que
pressupõe o direito à vida quanto pelo caput do art. 5.” da CR.20
Por outro lado, do embrião pré-implantatório, resultante de proces-
sos de fecundação assistida, ou até mesmo de clonagem, constituído
artificialmente e que ainda está fora do ventre materno, por não estar
integrado no fluxo vital contínuo da natureza humana, é difícil dizer que se
trata de “pessoa humana”. E verdade que, por se tratar da vida em geral e
especialmente de vida humana potencial, nenhuma atividade gratuitamen-
te destruidora é moralmente admissível, mas, no nosso entendimento, aí já
não se trata do princípio da intangibilidade da vida humana; trata-se da

20 Do acordo com o que está escrito no texto, o chamado “aborto


sentimental”, embora não
punível pelo Código Penal de 1940, é constitucionalmente uro ato ilícito. A
gravidez
indesejada, resultante de estupro, infelizmente, põe em conflito direitos
relevantíssimos, mas,
logicamente, tem-se de reconhecer que o valor maior é o valor da vida humana. A
decisão de
abortamento elimina a vida e, em decorrência, como dissemos, elimina também toda
e
qualquer dignidade (valor) da pessoa eliminada; a de não-abortamento fere, por
hipótese, a
dignidade da mãe, mas certamente não elimina essa dignidade. Esse abortamento é,
pois, ato
ilícito, ainda que não punível. O ~ 1.0 do artigo 4.” da Convenção da Costa Rica
dispõe: “Toda
pessoa tem direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido
pela lei, e, cm
geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida
arbitrariamente”.
Diferentemente, na gravidez que põe em risco a vida da mãe, considerando que
nele há “vida
humana xvida humana”, o abortamento não é ato ilícito; não é caso de exceção ao
preceito da
intangibilidade da vida humana.

342

RÉQUIEM PARA UMA CERTA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

proteção, menos forte, à vida em geral. Dentro desses parâmetros, isto é,


sob o ângulo da intangibilidade da vida humana, a própria clonagem
terap~u~ca, como admitida pelo Parlamento Europeu e pelo Governo
inglês, não é condenável do ponto de vista ético e jurídico.21
Uma terceira concretização da intangibilidade da vida humana
como pressuposto do princípio constitucional da dignidade (e, aqui,
garantida expressamente pela letra a do inciso XLVII do art. 5•~) da CR) é
a impossibilidade da introdução legislativa da pena de morte. Considerando que,
pelas condições de hoje, a eliminação física não é a única forma de sanção
capaz de evitar um mal maior, isto é, de evitar outras mortes (seria, em tese,
a única hipótese em que caberia a pena de morte) e não havendo nenhum
outro valor jurídico superior à vida humana, a pena de morte no direito
penal comum é inconstitucional.
Depois da intangibilidade da vida humana, a primeira conseqüên-
eia direta que se pode tirar do princípio da dignidade é o respeito à
integridade
física e psíquica da pessoa humana. Pode o poder público “invadir” a condi-
ção natural do ser humano e obter à força amostras de sangue para fins de
prova? Pode realizar à força transfusões de sangue? Uma “sacralidade” ‘1
do corpo, à semelhança da intangibilidade da vida humana, existe? Sim, q
existe essa “sacralidade” do corpo, mas não tão forte quanto à da vida,
até porque estamos agora em pleno terreno dos princípios jurídicos cujos
preceitos nunca são imperativos categóricos.
O exame de ADN, no campo civil, não pode, por exemplo, ser
imposto manu militari; caberiam aqui outros meios de prova, como pre-
sunção e indícios, a serem utilizados livremente pelo julgador. Não
parece ser suficiente o interesse privado no conhecimento da paternidade
para quebrar o preceito da não-invasão física; a permissão poderia se
tornar precedente excessivamente grave, valendo como abertura de ca-
21 Procurando no multissecular arsenal da experiência jurídica uma situação que
possa servir
como base para o raciocínio analógico, báu caso do Digesto 19,1,17; a comparação
talvez seja
um pouco grotesca mas, do ponto de vista da analogia, parece ter pertinência. O
embrião pré-
implantatório seria coroou material de construção empilhado no terreno; ele
ainda não é a casa
(art. 49 do C. Civil e art. 84 do novo C. Civil; é bem móvel, não imóvel).Já o
embrião retirado
do ventre materno, pata melhoria genética e posterior reimplante, se isto fot
possível, seria
semelhante ao material retirado da casa, para posterior reaproveitamento, o qual
juridicamen-
te não perde sua condição de imóvel (art. 46 do C. Civil). Em latim (Ulpiano):
“ca quae ex
aedificii detracta sunt, ut reponantur, aedificii sunt; at quae parata sunt, ut
imponantur, 000
suor aedifieii”.

343

ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO

minho para abusos posteriores.22 No entanto, no campo penal, diferente-


mente, por força do interesse público na apuração de um crime, o exame
forçado poderia ser admitido.
Por sua vez, a decisão do paciente de autorizar ou não que lhe
façam transfusão de sangue, tal qual a de se submeter ou não a operações
cirúrgicas de risco, parece pertencer ao campo da autonomia (não se trata
aqui da intangibilidade da vida, como no caso da eutanásia). A hipótese
muda de figura quando se trata de representante de outra pessoa, por
exemplo, de pai em relação a filho menor — aqui, não há direito discricio-
nário do representante; a transfusão de sangue, ou a operação, diante da
impossibilidade de manifestação de vontade útil do paciente, deverá ser
H’rr
feita ou não segundo as normas técnicas.
Ponto fundamental do respeito à integridade física e psíquica é o da
obri.~gação de segurança. Os autores nacionais parece que ainda não se

Iii conscientizaram de que a obrigação de segurança, tão


firmemente referi-
‘., [1

da nos arts. 8.”, 9.0e 10 do CDC (Seção: Da proteção à saúde e segurança), tem
sede constitucional, seja como decorrência do princípio da dignidade, seja por
1~

força do cqput do art. 52 da CR. A obrigação de segurança hoje se “autono-


mizou”; existe independentemente de contrato — pode não haver contrato
nem muito menos importa se o contrato é gratuito ou oneroso (transporte
pago ou não, hospedagem, serviços em geral etc). A obrigação de segurança
existe sempre; os danos à pessoa devem ser indenizados. E importante
dizer: em matéria de danos à pessoa, a regra é hoje a responsabilidade ob>tiva.
A
responsabilidade subjetiva, nesse campo, é atualmente a exceção. A
responsabilida-
de objetiva, na obrigação de segurança, surge agora diretamente da Consti-
tuição (não é da lei ou da jurisprudência); somente haverá responsabilidade
subjetiva quando houver lei expressa (por exemplo, na responsabilidade
médica — na qual, assim mesmo, há inversão do ônus da prova, porque a
prova deve ser feita por quem tem melhores condições para a fazer). A
admissão da responsabilidade subjetiva como exceção à responsabilidade
objetiva constitucional é admissível, porque os preceitos decorrentes dos
princípios jurídicos não são absolutos.
Além da vida em si e da integridade física e psíquica, a concretiza-
• ção da dignidade humana exige também o respeito às condiç5es mínimas de

22 Há decisão do STF no sentido do texto (Habeas Corpos 71.373-4/RS).

344
RÉQUIEM PARA UMA CERTA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

vida (2.a conseqüência direta do princípio). Trata-se aqui das condições


materiais de vida. A obtenção da casa própria e a sua proteção, por
exemplo, são decorrências da dignidade humana. Embora a Lei 8.009/90
traga como ementa a impenhorabilidade do “bem de família”, e em seu
art. 1.” somente se refira a “imóvel residencial próprio do casal ou da
entidade familiar”, está correto o entendimento do STJ de que a proteção
cabe antes ao ser humano como tal que à família — o aprimoramento ético
leva a isso.

“Penhora iLei 8.009/90. Solteiro deve merecer o mesmo tratamento. A Lei


8.009/90, artigo 1 .“, precisa ser interpretada consoante o sentido
social do texto. Estabelece limitação à regra draconiana de que o
patrimônio do devedor responde por suas obrigações )
patrimoniais. O incentivo à casa própria busca proteger às pessoas,
garantindo-lhes o lugar para morar. Família, no contexto, significa
instituição social de pessoas que se agrupam, normalmente por
laços de casamento, união estável ou descendência. Não se olvi- sim
dem ainda os ascendentes. Seja o parentesco civil ou natural. ~oI
Compreende ainda a família substitutiva. Nessa linha, conservada
au
a teleologia da norma, o solteiro deve receber o mesmo tratamen-
to. Também o celibatário é digno dessa proteção. E mais. Tam-
bém o viúvo, ainda que seus descendentes hajam constituído
outras famílias, e como normalmente acontece, passam a residir
em outras casas. Data venia, a Lei 8.009/90 não está dirigida a
número de pessoas. Ao contrário — à pessoa. Solteira, casada,
viúva, desquitada, pouco importa. O sentido social da norma
busca garantir um teto para cada pessoa. Só essa finalidade, data
venia, põe sobre a mesa a exata extensão da Lei. Caso contrário,
sacrificar-se-á a interpretação teleológica para prevalecer a insufi-
ciente interpretação literal (STJ — Ac. unân. da 6.” T., publ. em
20.09.1999 — REsp. 182.223-SP — ReI. Mm. Vicente Cericchia-
ro)” (cumpre dizer que o STJ não se refere à Constituição da
República por causa das conhecidas conseqüências processuals
sobre competência).23

23 Há outras decisões; por exemplo, a do 1’ T. Civil de São Paulo, publicada no


Boletim daA/itP

n. 2.105 de 03.09.1999 (o. 5 do Ementário).

345

ANTONIO .JUNQUEIRA DE AZEVEDO

A Corte de Cassação da França, em 19 de janeiro de 1995, também


já decidiu que “a possibilidade para qualquer pessoa de dispor de uma
casa decente é um objetivo constitucional” (in: Arlette Heymann-Doat,
Libertés publiques et droits de l’homme, 4. cd., Paris, LGDJ, 1997, p. 149).
Justificam-se, pelo mesmo espírito de respeito às condições míni-
mas de vida, inúmeras normas como as de impenhorabilidade (especial-
mente os incisos II, IV, VI, VII e X do artigo 649 do CPC, ou seja, im-
penhorabilidade das provisões para manutenção por um mês, salários,
instrumentos profissionais, pensões, imóvel rural até um módulo), a
24
e dão dire
proibição de doar todos os bens, as qu ito a alimentos, as que
prevêem estado de necessidade,25 as que concedem direito real de habita-
ção e as que isentam o benefício do seguro de vida das obrigações ou
dívidas do segurado.
No campo contratual, o respeito às condições mínimas de vida
também tem aplicação. Segundo a teoria alemã dos “limites do sacrifí-
cio~~, os contratos não precisam ser cumpridos quando sua execução leva
a gastos excessivos não previstos, o que terá maior razão de ser quando o
adimplemento puder dificultar a sobrevivência. Também, ao que nos
informa Nobre Júnior (O direito brasileiro e..., cit., p. 16), com base em
Ernesto Benda, no campo administrativo, o Tribunal Constitucional
alemão ordena o respeito às condições de sobrevivencia:

“Assim, de acordo com tal preceito, afigura-se inadmissível que o


administrado seja despojado de seus recursos indispensáveis à sua
existência digna, de sorte que a intervenção estatal na propriedade,
pela via fiscal ou não, não deverá alcançar patamares capazes de
privá-lo dos meios mais elementares de subsistência. De modo
igual, o citado art. 1.1 traduz, em detrimento dos poderes públicos,
a obrigação adicional de prover ao cidadão um mínimo existencial.”

Pio XII, por sua vez, na rádiomensagem do Natal de 1942, estabe-


lece relação entre dignidade humana e o direito à propriedade privada:

“Deus, ao abençoar nossos pais, disse: ‘Crescei e multiplicai-vos;


enchei a Terra e submetei-a’. E disse depois ao primeiro chefe

24 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico dopabimônio mínimo. Rio dc Janeiro:


Renovar, 2001, passim.

25 A necessidade cria direito (Cf. Alain Sayag, Essai sur le besoin createur de
droit. Paris: LGDJ, passim).

346

RÉQUIEM PARA UMA CERTA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

de família: ‘Comerás o pão mediante o suor de teu rosto’. A


dignidade da pessoa humana exige, pois, normalmente, como fun-
damento natural para viver, o uso dos bens da terra, ao qual
corresponde a obrigação fundamental de normas jurídicas posi-
tivas, reguladoras da propriedade privada. As normas jurídicas
positivas reguladoras da propriedade privada podem modificar e
conceder um uso mais ou menos limitado; mas se querem
contribuir à pacificação da comunidade, deverão impedir que o
trabalhador que é ou será pai de família se veja condenado a
uma dependência e escravidão econômica inconciliável com
seus direitos de pessoa.”26

Grosso modo, o pressuposto e as conseqüências do princípio da )


dignidade (art. 1.”, III, da CR) estão expressos pelos cinco substantivos
correspondentes aos bens jurídicos tutelados no caput do artigo 5~o da CR;

5
são eles: vida (é o pressuposto), segurança (12 conseqüência), propriedade
(2.0 conseqüência) e liberdade e igualdade (3.a conseqüência), sendo o no
pressuposto, absoluto e as conseqüências, “quase absolutas”. MII
Finalmente, a terceira conseqüência do princípio da dignidade é a
~1I
consistente no respeito aos pressupostos mínimos de liberdade e convivência
~guali-
tária entre os homens (condições culturais). Excluindo o direito à vida e o
direito à integridade física e psíquica, já tratados, relacionam-se com esta
conseqüência os demais “direitos de personalidade” — mas não em todos os
seus aspectos, e sim, nos aspectos fundamentais; são, aqui, direitos que se
prendem ao livre desenvolvimento da pessoa humana no seu meio social.
A título de exemplo, lembramos as seguintes concretizações:
a) direito à identidade, especialmente direito ao nome. Trata-se de ter
iden-
tidade e nome. No século XIX, segundo Heymann-Doat (Libertés
publiques..., cit., p. 145), a prisão era um “espaço extralegal”, daí

26 No original espanhol: “Dios, ai bendecir a nuestro progenitores, les


dijo: ‘Crecedj multip/icaos
~y henchid la tien-aJ dominad/d. Y dijo dcspués ai primer jefe de familia:
‘Mediante ei sudor de tu
rostro comerás e/pan’. La dignidade de ia persona humana exige, pucs,
normalmente, como
fundamento natural para vivir, ei derecho ai uso de los bienes de ia tierra, ai
cuai corresponde
la obiigación fundamental de normas jurídicas positivas, reguladoras de ia
propiedad privada. Las
normas juridicas positivas, reguladoras de ia propriedad privada, pueden
modificar y conceder un
uso mas o menos limitado; pero, si quicren contribuir ala pacificación de la
comunidad, deberán
impedir que ei obrem que es o será padre de famiiia se vca condenado a una
dependencia y
esclavitud económica inconciiiabie con sus derechos dc persona” (Doctrina
Pontijicia, II~.

347

ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO

a seguinte quebra de dignidade humana: “não deixar penetrar no


recinto da prisão os nomes dos condenados (...) e dar a cada
detento um número bem visível que fique preso no braço direi-
to”. E a autora continua: “Era privar os prisioneiros do direito
mais elementar da pessoa, o direito a um nome.”27 No tema de
registro civil, a França foi condenada pela Corte Européia dos
Direitos do Homem, no “affaire B. x F. “, em 25 de março de
1992, por se recusar a alterar o estado civil de um transexual
(Heymann-Doat, op. cit., p. 147).
b) direito à liberdade. Em decisão sobre prisão em alienação
fiduciária já se decidiu: “A liberdade é o maior bem da vida, por
isso mesmo sobrepaira ao interesse pecuniário de qualquer cre-
dor. Só em último caso deve-se prender o cidadão comum, que
confia sua própria liberdade ao credor, fortalecido pela lei para
explorar atividade econômica considerada útil ao desenvolvi-
mento do País” (Des. Cristiano Graef Júnior, in RJTJRGS, v. 77,
p. 143)”. São contrárias à dignidade, sob esse aspecto da liber-
dade (liberdade natural), as cláusulas de tempo excessivo de
prestação de serviço.28 Eventualmente, também as cláusulas
abusivas de exclusividade e de não-concorrência podem ferir o
direito à liberdade.29
c) direito à igualdade. Serve de exemplo o conhecido “caso do
anão”, na França, que consistiu no fato de que, na comuna de
Morsang-sur-Orge, distrito da cidade de Aix-en-Provence, o
prefeito proibiu um espetáculo realizado em casa noturna, em
que o “jogo” consistia no lançar, de um grupo de pessoas para
outro, um anão, este, por dinheiro, aceitava participar da “brin-
cadeira”. O Conselho de Estado, em decisão de 1995, contrária
a todos os particulares envolvidos, deu como legítima a proibi-

27 No original: “ne pas iaisser pénétrer dans i’enceinte de la prison les foros
des condamnés... et

donner à chaque détenu un número très apparent qu’ii porte attaché au bras
droit. C’était
priver les prisonniers du droit ie plus élémentaire de ia persone, ie droit à un
nom

28 Cf. art. 1.120 do Código Civil e art. 598 do novo Código Civil.

29 Sobre essas cláusulas abusivas, mas vistas sob ângulos diferentes (abuso de
direito, fatores
economicos etc), Le Gac-Pech, La proportionna/ité eu droitprivé des contrate.
Paris: LGDJ, 2000,

p. 161 et seq.

348

RÉQUIEM PARA UMA CERTA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

ção feita pelo prefeito; o anão estava sendo tratado como coisa.
Também em alguns programas de auditório, no Brasil, a condi-
ção “desfrutável” com que o apresentador trata a pessoa que ali
está fere a dignidade, nesse capítulo da igualdade básica dos
seres humanos.
d) direito à intimidade, ao sigilo de correspondência etc. A Corte
Européia
dos Direitos do Homem desenvolveu o direito à intimidade,
compreendendo nele a vida sexual. Quanto à correspondência,
o artigo 50, XLIX, da CR determina: “é assegurado aos presos
respeito à integridade física e moral” e, de fato, pelo princípio da
dignidade da pessoa humana, todo preso deve ser tratado com
humanidade; ora, segundo decisão da Corte Européia dos Direi-
tos do Homem, no “affaire Fell et Burger” de 25 de março de
1983, os presos também têm direito ao respeito de sua corres- 41
pondência (Heymann-Doat, op. cit., p. 146).
Sintetizando tudo que procuramos transmitir com este artigo, con
cluímos: a) diante da “confusão geral” criada por “gregos e troianos” na
utilização do princípio jurídico da dignidade da pessoa humana, impõe-se
ao jurista brasileiro, evitando uma axiologia meramente formal, dar indi-
5
cações do conteúdo material da expressão; b) há graves falhas científicas
na concepção filosófica da pessoa humana como ser dotado de razão e
vontade, ou autoconsciente (concepção insular). Segue-se daí que é
insuficiente a idéia de dignidade como autonomia, a que essa concepção
dá sustentação. A pessoa humana, na verdade, se caracteriza por partici-
par do magnífico fluxo vital da natureza (é seu gênero mais amplo),
distinguindo-se de todos os demais seres vivos pela sua capacidade de
reconhecimento do próximo, de dialogar, e, principalmente, pela sua
capacidade de amar e sua abertura potencial para o absoluto (é sua dife-
rença específica) (concepção da pessoa humana fundada na vida e no
amor); c) com esse fundamento antropológico, a dignidade da pessoa
humana como princípio jurídico pressupõe o imperativo categórico da
intangibilidade da vida humana e dá origem, em seqüência hierárquica,
aos seguintes preceitos: a) respeito à integridade física e psíquica das
pessoas; b) consideração pelos pressupostos materiais mínimos para o
exercício da vida; e c) respeito às condições mínimas de liberdade e
convivência social igualitária.

349

ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO

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estabelecido pelo autor com a colaboração de Anna-Teresa Tymienicka).
351

~I~l ~11~ ~
rr;kI 1 Ir
III
Bi’~I 1 ‘1 i iii
‘iii

lo

O CASAMENTO COMO CONTRATO


DE ADESÃO E O REGIME LEGAL
DA SEPARAÇÃO DE BENS

Paulo Lins e Silva


Advogado de Família. Z
A
_________________ Sumário _________________

1. O casamento. 2. O regime legal da separação de bens. no

1 O CASAMENTO
5
O casamento é um ato jurídico solene ad solemnitaten, ou seja, de
todos os atos é o que necessita de maior formalidade para sua validade no
contexto social, tais como a publicação de editais, as portas abertas para
o simbolismo de maior divulgação no meio social, não somente dando
notícia pública de que naquele recinto se está convolando um ato jurídico
matrimonial, como também para os tradicionais efeitos da participação
de qualquer cidadão da mesma comunidade, quando podem intervir, gri-
tando ou denunciando todos os aspectos que impeçam a realização nota-
damente os que deram origem aos nominados, impedientes públicos.
Desde a primitividade o ato era realizado pelo chefe da tribo, o pagé,
a autoridade religiosa, em suma, a importância do ato jurídico era tanta que
somente as pessoas embuídas de notório poder, força ou com munus
especiais concedidos pelos dirigentes politicos e religiosos, é que se reves-
tiam das qualidades para presidir o ato jurídico solene do casamento.
Sempre houve a convergência triangular de três oralidades. A das
duas partes diante da autoridade, expressando de forma livre a volição de

353

PAULO LINS E SILVA

contrair núpcias, e a da autoridade civil ou religiosa, cuja voz deveria


ecoar, alcançando as mais longínquas regiões territoriais daquela jurisdi-
ção, para que toda aquela comunidade pudesse ter noção de que os dois
estavam se casando.
O conceito mais usual desse ato jurídico consiste na formalização
do
vínculo jurídico entre o homem e a mulher, para a constituição da família.

1.1 O casamento como contrato sul generis

É interessante essa corrente doutrinária, bem esteada pelos eleva-


dos princípios éticos e morais que envolvem o casamento, notadamente
quando analisado sob um ponto de vista bastante ortodoxo da Igreja, que
enfoca o ato entre duas únicas pessoas de sexos opostos, visando a
constituição da família, a perpetuação da espécie e a legalização da vida
~[,kI l~ LII sexual dos envolvidos.
I~’, ii
Por que suigeneris? De todos os atos jurídicos, é o único que exige
I’~I Viii uma solenidade excepcional, apenas duas partes e de sexos
opostos, além
~tl~ 1

da imposição de idade núbil, muitas vezes em algumas sociedades, antes da


complementação da maioridade civil, e sua finalidade ou objetivo não
~ tem alcances materiais e sim amorosos, envolvendo aspectos da chamada
affectio marita/is.
No Direito das Obrigações, podemos ter mais de um~ parte de
cada lado contratual. Admite-se também a diversidade de cláusulas e
condições, inclusive envolvendo prazo, termos iniciais e finais, com
sanções materiais, como multas e outros aspectos, sempre com a nuança
material, envolvido que está sob a égide da affectío negotialis.
No contrato regido pelo Direito das Obrigações, a natureza jurídi-
ca envolve, como dissemos, interesses materiais, lucrativos, que vinculam
as partes, de um lado geralmente credora e do outro devedora de uma
obrigação regida por cláusulas e condições. Existe um conforto interior
das partes no envolvimento do respectivo interesse que estão estabele-
cendo na constituição da relação jurídica.
No contrato dito sui generLv do casamento, a natureza jurídica é
altamente sublime, não envolvendo entre as partes aspectos materiais,
mas tão-somente aspectos amorosos, afetivos, carinhosos, visando à
criação de uma família, de um núcleo, de uma espécie de casulo fechado,
354

O CASAMENTO COMO CONTRATO DE ADESÃO E O REGIME LEGAL...

no qual se comunicam somente as partes afetivamente envolvidas, seus


ascendentes, descendentes e colaterais.
Não se contrai núpcias visando a uma lucratividade material ou a
uma vantagem a ser obtida da outra parte no mesmo sentido frio e negocial.
A vontade tem de ser expressa em voz alta e publicamente, diante de
um grupo social, que representa os convidados de cada parte, e de seus
padrinhos que se transformam nas testemunhas dos nubentes que na
primitividade serviam como o elemento perpetuador daquele ato público.
O “sim” diante da autoridade civil ou religiosa, tem o alcance da
concordância com os deveres comuns do casamento.
No ato em si, não se discute vantagem, tempo de duração, sede da
sociedade conjugal, limitação de filhos, condições futuras sucessórias.
Nada, absolutamente nada nesse aspecto. Somente o alcance idilico do
rectproco amor que será unido na constituição de uma família, que inclusi-
ve no sentido canônico, a presença sacerdotal representaria aquele que
consagraria a palavra de Cristo quando afirmava que o que Deus une o
homem não separa, criando um dogma, estimulativo da conservação do mm
casamento, colidindo com o desfazimento do vínculo por meio de uma A
decisão humana, proferida no divorcio. ~Il

1.2 O casamento como um contrato de adesão

Como falamos anteriormente, o alcance da expressão “sim” das


partes significa a acordância de ambos os nubentes com o que o Estado
estabelece de forma rígida, no artigo 231 do Código Civil, como deveres
de ambos os cônjuges.
Podem as partes como no contrato regido pelo Direito das Obrigações
transigir em relação as cláusulas e as condições do contrato de casamento?
Não! Absolutamente não! São essas condições estabelecidas pre-
viamente para a constituição da família ditados pela citada norma que
envolve basicamente os valores éticos que os princípios monogâmicos da
família devem obedecer, tais como, a fidelidade recíproca, a vida em
comum sob o mesmo teto, a mútua assistência e o sustento, guarda e
educação da prole.
O Estado mediante legislação apenas permite que as partes, tam-
bém livremente, estabeleçam as condições que vão nortear o casamento
na questão envolvendo os bens.

355

PAULO LINS E SILVA

O chamado pacto antenupcial é o único contrato, e, assim mesmo,


realizado por meio de escritura pública solene, antes do casamento, e que
somente terá validade se o ato jurídico do matrimônio se realizar em dias
seguidos e próximos do casamento. No pacto, o Estado admite a transi-
gência envolvendo apenas os aspectos patrimoniais das partes, mas
vedando, entre outros pontos, as disposições testamentárias ou as outor-
gas para a livre negociação de bens. E importante salientarmos que o
pacto antenupcial, em si, nenhum valor possui, a não ser quando integra-
do no ato jurídico do casamento e quando a ele está vinculado; reza
também o legislador que tais disposições são irrevogáveis, no atual Código
Civil vigente, mas em fase modificativa, tal aspecto nas novas regras
ditadas pelo Anteprojeto do novo Código Civil, que admite a alteração
do regime de bens em plena vigência do casamento desde que respeitado
o direto de terceiros, seguindo uma regra francesa já estabelecida inclusive
no Código de Napoleão e que não seguimos no Código de Clóvis Bevilá-
qua, mas que agora iremos talvez experimentar, contra os nossos costumes,
se sancionado o novo Código Civil.
Portanto, realizado o pacto, integrado no processo de habilitação do
casamento o ato jurídico será realizado, sem novas cláusulas ou condições,
sem regras alternativas facultadas às partes que em suma terão que aderir
ao que o Estado preestabelece para a constituição de uma família legitima
garantida pelo próprio Código Civil e pela Constituição Federal.
Onde está o princípio da livre vontade das partes na convolação
contratual?
No Direito das Coisas, é condição sine qua non para a validade do
ato jurídico. Enquanto no Direito de Família, diante da autoridade que
não é um simples notário, mas um Juiz de Paz ou togado, as partes apenas
ratificam as condições preestabelecidas não por elas, mas pelo ordena-
mento jurídico emanado pela força do Estado que dita as regras, as con-
dições, impondo a seriedade, a ética e os princípios morais que norteiam
aquela sociedade que criou primitivamente os costumes sociais que
foram vitalizados em normas jurídicas que agora ditam, voltamos a
repetir as condições fundamentais constitutivas da família, por meio do
ato jurídico solene, mais do que solene que é o casamento.
O Estado não nos permite residir em domicílios distintos. Não pode-
mos preestabelecer, no pacto nem extraordinariamente, que não teremos
relações sexuais, nem filhos, que dispensamos os cuidados recíprocos, os

356

O CASAMENTO COMO CONTRATO DE ADESÃO E O REGIME LEGAL...

alimentos até mesmo futuramente e que os filhos seriam mantidos por


uma das partes apenas ou que somos proibidos mutuamente de gerarmos
prole. Em nosso ordenamento jurídico não temos essa liberdade de transi-
gência no casamento, pois na verdade ele se constitui num verdadeiro
contrato de adesão que as partes subscrevem seguindo às regras ditadas
pelo Estado e não escolhidas livremente pelas partes de forma espontânea.
Se não podemos ousar divergir do que o Estado estabelece e somos
obrigados a aceitar as regras ditadas pela força do ordenamento jurídico
vigente, chegamos à conclusão que muito embora dentro do conceito de
Saleilles de que o contrato de adesão é uma predeterminação unilateral de
cláusulas contratuais, podemos afirmar que a intervenção do Estado
como elemento da conversão da volição das partes na consagração do ato
jurídico do casamento, o contrato que dá origem a tal ato sendo fixo, regrado
e sem a oportunidade de discussão ou divergência dos que o integram, .1
concluímos que o casamento pode ser considerado também sob essa ótica

1;
num contrato de adesão.
É interessante comentarmos Mário de Camargo Sobrinho, em sua mm
obra Contrato de adesão, quando fala sobre Orlando Comes que A

“entende que a nomenclatura modifica conforme o ângulo em


que se analisa o contrato. Verificando sobre o aspecto da con-
fecção de suas cláusulas por apenas uma das partes contratan-
tes, recebe o nome de condições gerais dos contratos. Sobre o
aspecto do momento em que o outro contraente adere às referi-
das cláusulas, momento esse em que o contrato realmente adqui-
re eficácia jurídica, denomina-se contrato de adesão”.

De forma genérica no mundo do Direito das Obrigações, vislum-


bra-se o contrato de adesão, quando as cláusulas e condições são estabe-
lecidas unilateralmente por uma das partes integrantes no ato jurídico.
Sob o prisma do Direito de Família, a regra é ditada subjetivamente pelo
Estado que estabelece previamente em que condições aceita sacramentar
a vontade das partes no ato jurídico do casamento. Sendo o Estado represen-
tado pelo organismo (Juiz de Paz ou togado), condição essencial para a
validade do ato jurídico, no momento em que as partes estão expressando
suas vontades diante de tal autoridade, elas assinam concordando com as

357

PAULO LINS E SILVA

cláusulas rígidas e indiscutíveis rezadas antecipadamente pelo ordena-


mento jurídico emanado pelo Estado.
Tal tendência é que dá força também à corrente que defende o
Direito de Família como publicista, já empunhada por CICU, em diversos
trabalhos inclusive monográficos, pois interpreta por analogia que esse
Direito tem suas afinidades em sua natureza jurídica com o Direito Penal
essencialmente público.
Ora se as sanções penais são coercitivas para evitar uma desagrega-
ção social, no Direito de Família, as sanções inerentes também são, à
violação dos deveres comuns do casamento, estabelecidas pelo Estado, e
atingem ao mesmo fim colimado, ou seja, de se regrar e estabilizar a
insti-
tuição Família, que é a mais importante das que fundamentam o próprio
Estado. Uma família enfraquecida e com regras frágeis para a contenção
do respeito envolvendo as partes e prole não terá uma força ética neces-
hI~ V~ sária e suficiente para o engrandecimento e fortalecimento do Estado
IhI ~ i,IIIr como instituição que tem como seu elemento humano integrante o
povo,
II

que nada mais é do que o somatório de famílias integradas numa naçao.


IH~ Concluímos, pois, que essa força e as regras impostas às partes
‘h ~ transformam também o casamento noutro aspecto como um contrato de

adesão, pois as partes (cônjuges) também aderem a esses princípios for-


‘~1IIII mais, para terem validado e consagrado o alcance de suas vontades

expressadas pelo simbolismo da palavra “sim”.

2 O REGIME LEGAL DA SEPARAÇÃO DE BENS

E considerado um regime obrigatório, por ser imposto dentro de


uma faixa etária, e, a meu ver, transmite um sentido de discriminação,
pois é bastante desigual o tratamento concedido àqueles que após uma
vida de vitórias, gloriosa e exaustivamente conseguindo amealhar valores
e patrimônios representativos, tenham de ser obrigados a se casar nesta
fase madura da vida, pelo regime imposto pelo Estado, ou seja, o da
Separação Legal de Bens, que muito embora expresse o termo separaçao,
nossa jurisprudência, inclusive ditada pela Suprema Corte, mediante a
Sumula 377, vem orientando que esse regime siga as mesmas regras do
regime da Comunhão Parcial de Bens, no que concerne à comunhão dos
aqüestos, ou seja, dos bens adquiridos durante a vida em comum, excluí-
dos os sub-rogados e doados.

358

O CASAMENTO COMO CONTRATO DE ADESÃO E O REGIME LEGAL...

A legislação vigente estabelece que as mulheres maiores que cin-


qüenta e os homens maiores que sessenta anos, são obrigados a se casar
por tal regime. O Anteproleto do novo Código Civil, já iguala a faixa
etária nos sessenta anos para ambos.
Essa regra possui uma exceção através do artigo 45 da Lei do
Divórcio que faculta à livre escolha do regime de bens, àqueles que
possuam uma vida em comum de mais de dez anos, iniciada antes de
28.06.1977 ou que tenham filhos. A jurisprudência tem aceito a prova
prévia dessa vida em comum não restrita ao ano de 1977 e tem admitido
a liberdade da livre escolha do regime optado pelos nubentes dessa faixa
etária, quando comprovarem na própria Circunscrição Civil, na fase
inicial do processo de habilitação que preenchem o requisito de convivên-
cia de mais de dez anos, ou que dessa união tiveram filhos, o que é raro,
mas pode acontecer, autorizando, assim, o casamento por qualquer regi- A
me quando devem as partes formalizar inclusive um pacto antenupcial.
Tem origem medieval essa regra restritória à liberdade dos maiores
de sessenta anos, como se fossem verdadeiros moribundos, obrigando-os a
uma forma de casamento, para dar proteção à expectativa sucessória dos
eventuais descendentes dos nubentes.
Podemos analisar algum aspecto social, se remontarmos aos secu-
los XVIII e XIX, quando a média de vida não ultrapassava os sessenta e
cinco anos de idade.
Mas hoje não podemos mais conceber tais imposições, quando a
média de vida já ultrapassa os setenta e cinco anos de idade e muito mais
quando verificamos que o titular de um patrimônio pode livremente
transferi-lo por alienação a terceiros, por que não poderá contrair casa-
mento por livre escolha do regime de bens, notadamente se foi ele quem
constituiu tal monte, sem a contribuição desses espectadores que muitas
vezes, de forma deselegante no fim da vida de seus pais, partem para
aventureiras interdições no intuito de coibir os atos da vida civil, impedin-
do assim que seus pais gozem, aproveitem e usufruam nos últimos anos de
vida daquilo que conseguiram amealhar por seus exclusivos esforços.
Procuro sempre em geral, orientar as partes interessadas no que
seria o regime ideal para o matrimônio que vão realizar. Assim, usual-
mente colho de forma livre e espontânea uma escolha objetiva, e sempre
que não for a opção o regime legal da comunhão parcial de bens, oriento
no sentido de firmarem um pacto antenupcial, evitando, assim, ficarem à

359

PAULO LINS E SILVA

mercê de alterações jurisprudenciais que podem ocorrer durante a vida da


sociedade conjugal de ambos.
Se os maiores de sessenta anos estão optando pelo regime sepa-
ratório, como leigos entendem que seria o da mais absoluta separação de
bens, o que não ocorre, pois o entendimento de nossos tribunais seguindo
a Súmula 377, do Supremo Tribunal Federal, tem orientado e interpretado
de que, após o casamento, o regime legal da separação de bens inclui os
aqüestos que serão oportunamente partilhados, reservando-se sempre a
meação para o cônjuge supérstite.
Se na realidade possuem a intenção de um regime separatório,
melhor seria lavrar um pacto antenupcial do regime da separação de bens,
enfocando no texto de forma clara e indubitável que muito embora
as
partes fossem obrigadas a se casar pelo regime da separação
legal de bens,
estão livremente optando além do aspecto redundante do termo
“separa-
ção” pelo da mais plena e absoluta separação de bens.
~rii~i ~ III Diante da imposição legal aos maiores de
cinqüenta ou de sessenta,
[‘Ii
mi’!. para o casamento pelo regime da separação legal de bens,
tenho visto que
pessoas nesta faixa etária estão optando pela lavratura de uma
escritura
1 ~ ~. pública constitutiva de união estável, onde em tal
ato podem escolher de
i~i ii forma livre a regulamentação de seus aspectos patrimoniais, sem
estar
ferindo qualquer regra jurídica vigente. É a alternativa que resta aos mais
velhos, pois terão a mesma proteção constitucional e serão regidos ora
pelo § 3.~ do artigo 226 da Constituição, ora pelos princípios da Lei
8.971/94 ou pela Lei 9.278/96, sem qualquer discussão entre ambos e
sem serem vítimas de eventuais agouros de seus descendentes, herdeiros
necessários, que algumas vezes já estão fazendo previsões futuras por
conta do que iriam receber pelo perecimento de seus ascendentes.
Finalizaria aconselhando num futuro breve e próximo que fossem
revistos tais critérios legislativos, pois afastam o direito natural de afeto,
carinho e elevada sensibilidade que o ser humano contém no seu interior,
muitas vezes quando rebrota nessa terceira idade, o amor para ser vivido
na fase mais experiente da vida. Tornam-se semi-incapazes, dependentes
de normas arcaicas, discriminatórias e protetivas daqueles que nada fize-
ram para a construção numa vida, de um patrimônio simples ou represen-
tativo, cerceando um livre direito de se exercer sem condições a realiza-
ção formal e completa de um matrimônio digno e volitivo.

360

Ternário III

O ESTADO E OS ESTADOS
DE FILIAÇÃO
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A PRESUNÇÃO DA PATERNIDADE NO
CASAMENTO E NA UNIÃO ESTÁVEL

Luis Paulo Cotrim Guimarães


Mestre e Doutorando em Direito pela PUC-SP.
Procurador da Defensoria Pública-MS.
Professor Universitário.
~1
____________________ Sumário ____________________

1. O casuísmo na evolução histórica da filiação. 2. A discipli-


na da paternidade presumida na codificação civil. 3. A perfi-
lhação pela “adoção à brasileira”. 4. As formas de impug-
nação da paternidade presumida. 5. A impugnação da pater-
nidade: breves visões do direito comparado. 6. A paternida
de presumida na união estável. 7. A paternidade presumida
no Projeto de Lei 4.719/01. 8. Referências bibliográficas.

1 O CASUÍSMO NA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FILIAÇÃO

Determinados fenômenos, alguns de razoável importância, passam


despercebidos pela comunidade jurídica, como se o aprimoramento dos
institutos de Direito se dessem, na maioria das vezes, por meros reflexos
do estágio de desenvolvimento das sociedades organizadas.
Assim é que, nos registros históricos de nosso Direito Criminal, nos
deparamos com a Lei 5.941/73, propiciando a redação do art. 594 do
Código Processual Penal, denominada de “Lei Fleury”, editada em bene-
fício de um ilustre cidadão brasileiro, condenado em primeiro grau, que
buscava o benefício da liberdade no período de julgamento de seu
recurso de apelação (desde que primário e com bons antecedentes),
quando a regra, até então em vigor, mandava recolher-se à prisão para

363

LUÍS PAULO COTRIM GUIMARAES

tanto. Inserida no sistema com sucesso, a novel regra veio gerar seus

regulares efeitos em benefício de terceiros — atônitos, mas agradecidos.

Fenômeno semelhante encontramos no direito de filiação brasileiro.


Em plena vigência do art. 358 do Código Civil, proibitivo do reco-
nhecimento da filiação adulterina e incestuosa, bem como da Lei 3.200/41,
editada no governo Vargas, em nome da proteção da família legítima,’ a
história brasileira é marcada pela forte presença do jornalista e empresa-
rio Assis Chateaubriand, proprietário de um verdadeiro império da mídia,
titular do não menos conhecido “Diários Associados”.
Possuía o mesmo uma filha, de nome Teresa, gerada fora de seu
casamento, tornando-se, entretanto, inviável juridicamente seu
reconhe-
~ ~1llil~ cimento paterno. Por influência junto à esfera central
de decisões, mesmo
iii ‘i’ri~ com o controle da imprensa pelo governo, Chateauhriand
foi atendido, sendo
expedido em Setembro de 1942 o Decreto-lei 4.737/42, que
propiciava o
iri~ ~ iii reconhecimento do filho nascido fora do matrimônio,
verbis

1 ;í~’ Art. 1.0 O filho havido pelo cônjuge fora do matrimônio pode,
~ [rrrI~n depois do desquite, ser reconhecido ou demandar que se declare
1 ‘
sua filiação.

Solucionado o primeiro impasse, tendo o ilustre jornalista efetivado


seu “desquite”, acabou por perfilhar Teresa, para espanto da mãe. Restava
o segundo, qual seja, a impossibilidade de ter a guarda da filha reconheci-
da para si, o que lhe era vedado pela redação do art. 16 da Lei 3.200/41,
que concebia o exercício do pátrio poder para aquele genitor que “primei-
ro reconheceu o filho”.2
Entrando para a história do Judiciário brasileiro como “Lei Tere-
soca”, destinada por Vargas especialmente à Chateaubriand é editado o
Decreto-lei 5.213/43, que terminava com eventuais obstáculos à guarda
da menor:

Art. 1.0 O art. 16 do Decreto-lei n. 3.200/41 passa a vigorar


com a seguinte redação:
1 RODRIGUES, Silvio. Direito civil v. 6, p. 4.
2 MORAIS, Fernando. Chatô, o rei do Brasil, p. 409.

364

A PRESUNÇÃO DA PATERNIDADE NO CASAMENTO E NA UNIÃO ESTÁVEL

Art. 16. O filho natural, enquanto menor, ficará sob o poder do


progenitor que o reconheceu e, se ambos o reconheceram, sob o do
pai, salvo se o juiz entender doutro modo, no interesse do menor.

Somente com o advento da Lei 4.121/62 (Estatuto da Mulher


Casada) tivemos alteração na redação do art. 326, § 1 .~, do Código Civil,
passando a regrar que, na hipótese de culpa recíproca na separação
litigiosa, os filhos menores ficarão sob o poder maternal. Tal disposição
foi repetida no art. 9.” da Lei 6.515/77 — a lei do Divorcio.
Desta feita, podemos concluir que, apesar do rigor absoluto da
norma do art. 358 do Código Civil, impeditivo do reconhecimento da fi-
liação adulterina e incestuosa — que perdurou com abrandamentos até
nossa atual Constituição Federal — o casuísmo infiltrou-se em nosso siste-
ma legislativo, para impor sua faceta tropical de violação consentida, para
espanto e felicidade dos interessados.

em
a
2 A DISCIPLINA DA PATERNIDADE PRESUMIDA
NA CODIFICAÇÃO CIVIL

O regime da paternidade presumida, instituído na maioria das


codificações civis do mundo ocidental, por inspiração do direito civil
francês contemporâneo, teve sua primeira menção na Lei das XII Tábuas
do antigo Direito Romano, em 462 a.C., na qual verifica-se a legitimidade
de um filho póstumo, se veio esta a nascer no décimo mês após a dissolu-
ção do matrimônio.3
Em nosso Código, o art. 338 explica a natureza presumida da
concepção dos filhos, concedendo aos mesmos a qualidade de legítimos,
no âmbito do casamento civil, desde que nascidos dentro de um determi-
nado e certo prazo, como se denota:
Art. 338. Presumem-se concebidos na constância do casamento:
1 — Os filhos nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois
de estabelecida a convivência conjugal (art. 339).

3 Lei das XII Tábuas, Tábua Quarta, o. 4.

365

LUÍS PAULO COTRIM GUIMARÃES

II — Os nascidos dentro dos trezentos dias subseqüentes à dissolu-


ção da sociedade conjugal, por morte, desquite, ou anulação.

Segundo Luig Edson Fachin, a presunção de paternidade — a de que


o pai é o marido da mãe — liga-se a outra presunção, qual seja, a de
concepção, deduzindo-se que o filho foi concebido na constância do
casamento.4
O dispositivo de lei acima demonstrado, desta feita, veio a consu-
mar determinados prazos, correspondentes à concepção presumida do
filho no seio do casamento. De acordo com Carvalho S’antos, a lei estabe-
leceu um critério, fundado na observação antiquíssima de que a gestação
do feto humano não pode se consumar antes de 180 dias da concepção, e
nem se protrair além do décimo mês.5
bI~ ~ No entanto, é o próprio autor acima quem suscita uma problemáti-
] 1’II
ca, aparentemente sem solução, extraída da disciplina jurídica da paterni-
ii: dade presumida: como solucionar o caso de uma mulher viúva que vem a
convolar novas núpcias antes de decorridos os dez meses estipulados
pela proibição do inciso XIV, do art. 183, do Código Civil, caso seu filho
venha a nascer após os 180 dias da celebração do segundo casamento? A
quem será atribuída a presunção de paternidade no caso vertente? Ao
falecido marido ou ao segundo?

Tal problemática, denominada por Carvalho Santos de conflito de


presunções, tentou ser solucionada pela redação do novo Código Civil
brasileiro, em seu art. 1.598, verbis

Art. 1.598. Salvo prova em contrário, se, antes de decorrido o


prazo previsto no inciso II do art. 1.523, a mulher contrair novas
núpcias e lhe nascer algum filho, este se presume do primeiro
marido, se nascido dentro dos trezentos dias a contar da data do
falecimento deste; do segundo, se o nascimento ocorrer após esse
período e já decorrido o prazo a que se refere o inciso 1 do art. 1.597.

O novo Código inova quando, no início da redação deste dispositi-


vo, faz a ressalva “salvo prova em contrário (...)“, possibilitando que o

4 FACHIN, Luiz Edson. Estabelecimento da filiação e paternidade presumida, p.


38.

5 SANToS, Joáo Manuel de Carvalho. Código Civil brasileiro intetpretado, p. 329.

366
A PRESUNÇAO DA PATERNIDADE NO CASAMENTO E NA UNIÃO ESTÁVEL

segundo marido da viúva possa demonstrar judicialmente que o filho nascido


de sua esposa foi concebido na constância do segundo casamento desta, muito
embora antes dos 10 (dez) meses da viuvez.
Tal ressalva visa a reforçar a idéia de que a paternidade presumida
do finado marido é juris tantum. O que vale dizer que, na hipótese do
segundo marido não conseguir demonstrar a concepção do filho nestas
novas núpcias, a paternidade do mesmo se consumará em favor daquele
primeiro, desde que dentro dos 300 (trezentos) dias que sucederem à sua
morte (art. 1.523, II).
O âmago da inovação prende-se no fato de a nova legislação civil
não enumerar, para o segundo marido, as hipóteses de prova da concep-
ção do filho, deixando um leque aberto para que demonstre sua paterni-
dade biológica.
Pelo sistema do atual Código, denominado de “cerrado”, as possi-
bilidades de contestação da paternidade — que no período pré-constitu-
cional era entendido como impugnação da legitimidade da prole — estão
vinculadas a três circunstâncias: a) impotência absoluta (generandi) do
marido; b) inexistência de relações sexuais no período de concepção (por a
ex: trabalho do cônjuge em local distante ou cumprimento de pena
criminal); c) separação judicial ou de fato dos cônjuges no período de
concepção.
É como mencionava Clóvis Beviláqua:

‘‘Assim, somente o marido poderá contestar a legitimidade do


filho de sua mulher. E esse seu direito restringe-se aos casos
seguintes: a) se, por moléstia ou outra qualquer causa, se achava,
no tempo da concepção, incapaz de realizar a fecundação; b) se,
na mesma época, a ausência tornava impossível a aproximação
dos cônjuges.”6

Por ocasião da edição do atual Código Civil, a ciência biomédica


não havia atingido índices seguros de comprovação do vínculo biológico
de paternidade, conformando-se a ciência jurídica com uma paternidade
calcada na “moral familiar”, que era a paternidade jurídica, independente-
mente de quem tivesse contribuído com o material genetlco.

6 BEVILAQUA, Clóvis. Direito da família, p. 314.

367

LUIS PAULO COTRIM GUIMARÃES

A paternidade presumida subsiste no novo Código Civil, tendo


sido absorvidos dados históricos relevantes, como a inseminação artifi-
cial — homóloga ou heteróloga — acompanhada dos dados demonstrativos
da gestão mínima e máxima do ser humano (seis e dez meses, respectiva-
mente), como se observa:

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casa-


mento os filhos:
1 — nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de
estabelecida a convivência conjugal;
II — nascidos nos trezentos dias subseqüentes à dissolução da
J~FJ~ sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e
a ~ anulação do casamento;
IIIr,~’

‘1 ~ III — havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que


BI~r falecido o marido;
IV — havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões
excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
IV — havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que
tenha prévia autorização do marido.

Constatamos uma nova roupagem dada ao art. 338 do atual Código


Civil, mais complexa e atualizada e até mesmo contrastante, eis que o
inciso IV acima trata de uma matéria que o moderno Direito de Família
acaba de defrontar-se: a destinação jurídica dos embriões excedentários.

3 A PERFILHAÇÃO PELA “ADOÇÃO À BRASILEIRA”

E uma prática disseminada nas nossas relações familiares a deno-


minada “adoção à brasileira”, que consiste no ato do padrasto Levar a
cabo o registro de nascimento de um filho de sua nova companheira ou
esposa, sem que haja vínculo biológico entre ambos. Em geral, tais atos
são explicados pela conotação protetiva e afetiva que envolves tais
parentes por afinidade na linha reta.
Mesmo constituido-se num delito específico (art. 242 do CP), a
jurisprudência atual é uníssona no sentido de conceder a absolvição

368

A PRESUNÇÃO DA PATERNIDADE NO CASAMENTO E NA UNIÃO ESTÁVEL

àqueles que assim procederam, desde que imbuídos de boa-fé (TACrSP,


RT 600/355).
Analisando o tema, Eduardo de Oliveira Leite assegura:

“Se examinarmos a jurisprudência brasileira sobre o assunto, é


facilmente constatável a inocorrência de pronunciamentos
condenatórios, sendo abundantes e, praticamente dominantes,
os acórdão absolutórios.”7

Tal prática — registrar como seu filho alheio — era tratado penal-
mente como crime de falsidade ideológica. A Lei 6.898/81 alterou o
dispositivo em curso, dando nova redação ao artigo 242 do Código Penal,
que passou a prescrever, verbis
ii’
Art. 242. Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o
filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, supri- »
mindo ou alterando direito inerente ao estado civil: em
Pena — reclusão, de dois a seis anos.
Parágrafo único. Se o crime é praticado por motivo de reco-
nhecida nobreza:
Pena — detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de
aplicar a pena.
Desta feita, prevista a remissão judicial por lei, tal prática consti-
tui-se num fato caracterizador de extinção da punibilidade, elencado no
art. 107, IX, de nossa Legislação penal substantiva (perdão judicial).
Importante destacar que a “adoção à brasileira” vem a gerar um
estado de filiação, em princípio, irreversível, estabelecendo, assim, uma
relação de paternidade não-biológica, sem a presença, inclusive, da pre-
sunção de paternidade, lastreada no art. 338 do Código Civil. Ao aproxi-
mar-se da adoção civil — porém, sem o devido processo legal — o termo de
nascimento passa a sofrer os efeitos legais do art. 348 do atual Código,
que veda a alteração do documento público, salvo se baseado em erro ou
falsidade, assunto que é abordado na seqüência.

7 LEITE, Eduardo de Oliveira.Temas de direito de família, no qual o autor


menciona inúmeros

arestos a respeito do tema.

369

LUÍS PAULO COTRIM GUIMARÃES

4 AS FORMAS DE IMPUGNAÇÃO DA PATERNIDADE


PRESUMIDA

Em princípio, a ação colocada ao dispor do marido para contestar a


paternidade surgida da presunção, no casamento, é a negatória, prevista no
art. 340 do Código Civil. Gustavo Tepedino refere-se à existência de três
obstáculos, fixados pela legislação em vigor, para a quebra da presunção de
paternidade, com base nesta demanda, a saber: a) quanto à legitimidade,
autorizando somente o marido à propositura da ação; b) quanto ao exíguo
prazo decadencial; e c) quanto ao fundamento do pedido, estabelecido em
numerus clausus, pelos arts. 340, 341 e 342 do Código. E pontifica o civilista:

“Tais obstáculos hão de ser revistados à luz da isonomia consti-


tucional e da legislação especial, que mitigam o rigor da presun-
ção, autorizando o filho, representado pela mãe, ou em nome
próprio, após atingir a maioridade, a propor a contestação.”8

Destaca-se, neste particular, que a paternidade surgida da “adoção


à brasileira” não se enquadra nas hipóteses tratadas pelo art. 340 do Código,
eis que aqui nos deparamos com uma perfilhação espontânea, sem qual-
quer vinculação necessária com o sistema presuntivo da paternidade. E o
dispositivo em curso é direcionado para a refutação da paternidade surgida
da presunção.
Por outro vértice, o art. 348 da codificação civil (que possui idêntica
redação no novo Código, pelo art.1 .604) é restritivo quanto à alteração do
registro de nascimento, ao prescrever:

Art. 348. Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resul-


ta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade
do registro.

Em verdade, o registro prova o nascimento e estabelece presunçao


de verdade em favor das declarações ali contidas, pois em favor dessa
veracidade há a fé pública.9
8 TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civii-constirucional das relações familiares.
A nova família:

problemas e perspectivas, p. 55.

9 LEVENHAGEN, Antônio José de Souza. Códzgo Civil, p. 217.

370

A PRESUNÇÃO DA PATERNIDADE NO CASAMENTO E NA UNIÃO ESTÁVEL

A irrevogabilidade de um ato jurídico de nascimento é apontada,


por Caio Mário da Silva Pereira, com um efeito, entre outros, seja o
reconhecimento voluntário ou forçado, como assevera:

uma vez pronunciada a declaração volitiva de reconheci-


mento, ela se desprende do foro interior do agente, para adquirir
a consistência jurídica de um ato perfeito. E neste sentido que
alguns o dizem irretratável.”10

A anulação de um ato jurídico tem como permissivo legal certos


defeitos que maculam a sua eficácia, como o erro, o dolo, a coação, a simu-
lação e a fraude, individualmente abordados entre os artigos 86 e 113 do
Código Civil. No que tange à declaração de paternidade no registro pú-
blico, encontramos outro elemento ensejador de nulidade: a falsidade.11
Caio Mário destaca duas acepções de falsidade registral: a material e
a ideológica. A primeira hipótese é exemplificada, pelo autor, quando o
oficial de registro vem a forjar um assento ou uma certidão falsa.12
Já a falsidade ideolo~gica ocorre quando o ato é formalmente escorreito,
4
mas o conteúdo é inverídico.13
Como já decidira o Supremo Tribunal Federal:

“O falso material envolve a forma do documento, enquanto o


falso ideológico diz respeito ao conteúdo do documento.” (STF,
RTJ 105/960)

Não se pode olvidar que o ato de reconhecimento, pelo marido, de


um filho de sua mulher enquadra-se plenamente na hipótese de falso
descrito como ideológico, enquadrando-se como uma exceção prevista
pela parte final do art. 348 do Código Civil.
A legitimação para a propositura de uma demanda anulatória —
ação declaratória de inexistência de filiação legítima — por comprovada
falsidade ideológica é dirigida tanto ao suposto filho como também a

10 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de paternidade e teus e]iitos,


p. 66.

11 GUIMARÃES, Luís Paulo Cotrim. A paternidade presumida no direito brasileiro e


comparado, p. 145.

12 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 146.

13 Idem.
371

LUÍS PAULO COTRIM GUIMARAES

outros legitimamente interessados, como já entendeu o STJ em Recurso


Especial (REsp 140579-AC, Rel. Mi Waldemar Zveite~ 18.08.1998).
Em se tratando de ação negatória, que visa a refutar a paternidade
resultante da concepção presumida (art. 338), muito embora o art. 178,
§~ 3.~” e 4~o do Código Civil preveja um prazo decadencial de 2 (dois) ou 3
(três) meses para sua interposição, a jurisprudência já vinha decidindo
por sua imprescritibilidade (TJSP, Ap. Cível 90.330-1).
Neste diapasão, Bertoldo Mateus de Oliveira Filho assegura:

“Vale observar que a ação tendente a negar a filiação, ainda que


decorrente do casamento, vem sendo tecepcionada como üitprescti-
tível na jurisprudência.”14

Acompanhando a tendência jurisprudencial dominante, o novo


Código Civil regulamentou a ação negatória de paternidade em seu art.
1.601, tratando-a como uma ação imprescritível. No entanto, manteve a
legitimação exclusiva da mesma ao marido, diferentemente da maioria
das legislações civis estrangeiras.

5 A IMPUGNAÇÃO DA PATERNIDADE: BREVES VISÕES


DO DIREITO COMPARADO

No estudo do Direito Comparado, podemos detectar uma tendência


legislativa a facilitar a impugnação da filiação advinda do sistema
presuntivo de paternidade. Assim, em diversas codificações civis, verifica-se
não somente uma maior amplitude das pessoas legitimadas a tanto — o
filho, a mãe etc. — como a redução das causas restritivas ao ajuizamento.
No atual Direito argentino, pela nova redação do art. 258 do
Código Civil, a paternidade presumida poderá ser impugnada por qual-
quer motivo, desde que se prove razoavelmente a impossibilidade de
coabitação dos cônjuges no período de concepção.
O novel legislador argentino buscou combater os absurdos e as
imoralidades que conduziam este regime, cercado de causas taxativa-
mente enumeradas pela lei, como asseveram Bossert e

14 OLIVEIRA FILHO, Bertoldo Mateus de. Alimentos e investzgaçâo de paternidade,


p. 167.

15 BOSSERT, Gustavo A; ZANNONI, Eduardo A. Manual de derecho defamilia, p. 452.

372

A PRESUNÇÃO DA PATERNIDADE NO CASAMENTO E NA UNIÃO ESTÁVEL

No Direito português, a contestação da filiação não é privativa


apenas do marido, podendo ser intentada por outros igualmente legitima-
dos, como a mãe, o filho e o Ministério Público. E como assenta o art.
1.839, n. 1, do Código Civil lusitano, verbis
“1. A paternidade do filho pode ser impugnada pelo marido da
mãe, por esta, pelo filho ou, nos termos do art. 1.841, pelo
Ministério Público.”

Conforme dispõe o n. 2 desse artigo, o autor deverá provar que, de


acordo com as circunstâncias, a paternidade do marido da mãe é impro-
vável. Segundo Tomás Oliveira e Silva, esta é a regra geral sobre a impug-
natória da paternidade.16
A legislação civil italiana, por seu turno, através do art. 235, admite
que a ação contestatória da paternidade possa ser exercida tanto pela mãe
como pelo próprio filho, quando este venha a atingir a maioridade legal.
No Direito francês atual, com a reforma de 1972, aboliu-se o
exclusivismo da impugnação da paternidade pelo marido, permitindo-se
à mãe, em certas circunstâncias, tal legitimação (art. 318). A jurisprudên-
cia posterior ampliou esta prerrogativa, possibilitando a qualquer interes-
sado o ajuizamento da ação ói17
Para que a mãe possa exercer seu direito de impugnação, entretan-
to, deverá ter dissolvido o primeiro casamento, casando-se com o verda-
deiro pai da criança.

6 A PATERNIDADE PRESUMIDA NA UNIÃO ESTÁVEL

Em se tratando de uma união informal, mesmo com característica


de estabilidade, parece-nos forçoso afigurar a existência de uma paterni-
dade presumida. O sistema da paternidade ficta ou jurídica, traduzida
pelo brocardo pater is est quem justas nuptiae demonstrani foi calcado em
valores familiares hoje já superados pela normatização de natureza cons-
titucional — a filiação legítima advinda do casamento.

16 SILVA, Tomás Oliveira e. Filiação — constituição e extinção do respectivo


vínculo, p. 123.

17 MAZAUD, Henri et Léon. Leçon de droit civi4 p. 309.

373

LUÍS PAULO COTRIM GUIMARÃES


Efetivamente, a contestação da paternidade
presumida era, em
nosso Direito pré-constitucional, e em última instância,
a contestação da
legitimação de uma determinada filiação, dentro de uma
limitada esfera de
liberdade jurisdicional.18 E somente o casamento civil
eta capaz de fazer
gerar proles legítimas — denominação essa, como se viu,
abolida de nosso
hodierno Direito Constitucional (art. 227, §
A presunção, por seu turno, tal como se denota no
art. 338 do
Código, é lastreada em prazos mínimos e máximos de
gestação do ser
humano, tendo como marco do período presuntivo o início
da convivên-
cia conjugal, o que é facilmente demonstrável no
matrimônio civil pelo
registro público.
.II~Fi~ No entanto, em se tratando de união estável,
torna-se difícil ou
quase que impossível a verificação do início de tal
convivência, até mesmo
Wri~ pela necessária informalidade que permeia este
vínculo. Mas não seria esse
o único obstáculo à admissão do sistema presuntivo nas
uniões estáveis.
i~i ~ Efetivamente, na própria Lei de Registros
Públicos — Lei 6.015/73 —

em seu aM 59, encontramos a exigência para o registro de filhos havidos


~ fora do casamento, qual seja: a presença do pai ao cartório, podendo
ser
1 iW~ ,~ suprida por procuração específica.
Ora, se a regra legal prevê tal formalidade — a manifestação volun-
tária do pai no ato tegistral —, de nada valeria cogitar-se de presunção de
paternidade na união estável, posto que a principal de suas conseqüências —
a declaração da paternidade do filho — é vetada à mãe sem o compareci-
mento ou assentimento do seu companheiro.
Rodrtgo da Cunha Pereira compartilha desse entendimento, ao asse-
gurar que:

“No concubinato, ainda que a união estável seja de muitos


anos, não se aplica esta regra, pois essa relação, por si mesma,
não autoriza presumir a paternidade.”

Conclui o autor que a união estável, uma vez caraterizada, tem


apenas o condão de ser prova indicativa para a ação de investigação de

18 Vide as restritas hipóteses ensejadoras da ação negatória de paternidade do


art. 340 do Código
Civil.

374

A PRESUNÇÃO DA PATERNIDADE NO CASAMENTO E NA UNIÃO ESTÁVEL

paternidade, com base no art. 363, inciso 1, do Código Civil, citando


alguns julgados nesse sentido.19
Em posição contrária, manifesta-se Nágila Maria Saies Brito, admi-
tindo, pela natureza juris tantum da paternidade presumida, a aplicação de
tal regra na união estável, na qual o ônus da prova contrária poderá ser
oponível pelo réu.2”

7 A PATERNIDADE PRESUMIDA
NO PROJETO DE LEI 4.719/01

Foi apresentado à Mesa da Câmara, pelo do deputado Alberto Fraga


14
(PMDB-DF), o Projeto de Lei 4.719/01, que estabelece a presunção de
paternidade no caso de recusa à submissão do pretenso pai ao exame de
identificação genética (DNA).
A justificativa do Projeto pauta-se na tentativa de colocar um fim na
atitude de pretensos pais que se negam a reconhecer seus filhos, prevale-
cendo, neste caso, a proteção especial que se deve dar aos menores. fI
Com o devido respeito, tal Projeto de Lei traz em si uma consequên- lá
cia excessivamente drástica e ilógica, desconsiderando a importância da j
instrução probatória no devido processo legal.
Realmente, atribuir a paternidade jurídica a alguém, pelo único e
simples fato de o mesmo se recusar ao exame genético de DNA, sem o
cotejamento com as demais provas existentes nos autos, seria uma
afronta ao princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa,
tnsertos no inciso LV, art. 5v’, da Carta Politica.
Em que pese a importância do estabelecimento do vínculo jurídico
diante do interesse do menor despojado da proteção familiar paterna —
brilhantemente defendido por Maria Celina Bodin de Moraes,2’ ao mencio-
nar que o direito constitucional à integridade física do pai constitui-se em
abuso se servir de causa para eximir a comprovação do vínculo genético —,

19 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. concubinato e união estávei p. 62.

20 BRITO, Nágila Maria Saies. Presunção de paternidade no casamento e na união


estável. Anais
do II Congresso Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), p. 562.

21 MORAES, Maria Ceina Bodin de. Recusa á realização do exame do DNA. A nova
família:
problemas e perspectivas, p. 194.

375

LUÍS PAULO COTRIM GUIMARÃES

não seria adequado e nem jurídico o estabelecimento automático da


paternidade pela mera recusa.
Como assevera o sempre festejado Zeno Veloso: “(...) não se pode
prosseguir com esta confiança cega no exame do DNA. (...) Ele é um
importante e poderoso meio de prova. Mas é, apenas, mais um elemento
probatório.”22
Desta feita, a recusa do pretenso pai ao exame genético não poderia
se converter, mecanicamente, numa cadeira de força, suficiente para levá-lo
à condição de pai jurídico por presunção (diferentemente da presunção
pater is est estabelecida no art. 338 de nosso atual Código Civil).
Tal fato, aliás, redundaria numa situação bastante cômoda para o
julgador de primeiro grau que, verificando a recusa do pretenso pai em
~ ~rr;,~g, sujeitar-se ao exame de impressões do DNA, acabaria por poder
declarar
~“‘o como certa tal paternidade. Mas, com toda a certeza, não é esta a função do
1 ~lr ,a;’
magistrado diante da lide posta em juízo, a teor do art. 130 do Código de
“IL Processo, que prescreve a atribuição do juiz, de ofício, ou a
requerimento
da parte, em determinar as provas necessárias à instrução do processo.
!~ ~r~7~i Por derradeiro, o Projeto de Lei ora em questionamento estaria
contribuindo, perigosamente, para o alastramento da denominada indústria
de presunções, violadora do princípio da ampla defesa constitucional, posto
que a dedução ficta só se afigura, no sistema jurídico, ante a inexistência de
elementos probatórios, e não se pode concluir que o exame genético seja a
prova exclusiva e absoluta no procedimento investigatório.

8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEVILÁQUA, Clóvis. Direito da família. 9. ed. Rio de Janeiro: Freitas


Bastos, 1959.
BRuTO, Nágila Maria Sales. Presunção de paternidade no casamento e na
união estável. In: A família na travessia do milénio. Anais do II Congresso
Brasileiro de Direito de Família (IBDFAI’vI), Belo Horizonte: Del Rey,
2000.

22 VELOSO, Zeno. A dessacralização do DNA. In: A Família da Travessia do


Milénio. Anais do II
Congresso Brasileiro de Direito de Família, p. 199.

376

A PRESUNÇÃO DA PATERNIDADE NO CASAMENTO E NA UNIÃO ESTÁVEL

FACHIN, Luiz Edson. Estabelecimento da filiação e paternidade presumida.


Porto Alegre: Fabris, 1992.
GUIMARAES, Luís Paulo Cotrim. A paternidade presumida no direito brasi-
leiro e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
LEITE, Eduardo de Oliveira. Temas de direito de família. São Paulo: RT,
1994.
LEVENHAGEN, Antônio José de Souza. Código Civil. São Paulo: Atlas,
1986.
MAZEAUD, Henri; MAZEAUD, Léon. Leçon de droit civil. Paris:
Montchrestien. 1955.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Recusa à realização do exame do DNA.
A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.
MORAIS, Fernando. Chatô, o rei do Brasil São Paulo: Cia. das Letras,
1994.
OLIVEIRA FILHO, Bertoldo Mateus de. Alimentos e investigação depater- ‘4
nidade. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento da paternidade e seus efeitos.
5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável 6. ed. Belo
Horizonte: Dei Rey, 2001.
RODRIGUES, Sílvio. Direito civil — Direito de família. 27. ed. São Paulo:
Saraiva, 2002, v. 6.
SANTOS, João Manoel de Carvalho. Código Civil brasileiro intespretado.
Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, v. V.
TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil-constitucional das relações
familiares. A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro:
Renovar, 1997.
VELOSO, Zeno. A dessacralização do DNA. In: A família na travessia do
milênio. Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM),
Belo Horizonte: Dei Rey, 2000.
377

DIREITO À IDENTIDADE GENÉTICA

Heloisa Helena Barboza


Professora Titular de Direito Civil
da Faculdade de Direito da UERJ.

___________________ Sumário ___________________

1. O DNA e a dupla “paternidade”. 2. Paternidade e paren-


tesco no direito brasileiro. 3. A identidade da pessoa huma-
na. 4. Direito à identidade genética. 5. Bibliografia.

1
1 O DNA E A DUPLA “PATERNIDADE”

A descoberta da verdadeira paternidade foi, durante muito tempo,


uma preocupação constante das pessoas, pois “mesmo à mulher a natureza
faz meias confidéncias”.’ Por “verdadeira” entenda-se, no caso, a atribuida a
um homem em razão de ter mantido relações sexuais com determinada
mulher que veio a ter um filho. Embora verdade, por força da natureza,
nem sempre correspondia à paternidade juridicamente reconhecida.2
A possibilidade de determinação do vínculo biológico de paterni-
dade através do exame do DNA se, por um lado, veio a por fim a tão
antiga angústia, por outro, trouxe questionamentos de diferentes ordens,
notadamente jurídicos, na medida em que cabe à lei estabelecer as regras
que disciplinam as relações familiares em seus aspectos pessoais e

1 PAGE, Henti de. Trai/é Élémentaire de Droit Civil Belge. Bruxelles:


Etabiissements Emile
Bruylant, 1948, v. 1, p. 1.054.

2 Nesse sentido, a teor do art. 346 do Código Civil, não bastava a confissão
materna para excluir

a paternidade atribuida legalmente por presunção a seu marido, com relação aos
filhos que

tivesse durante o casamento.

379
HELOISA HELENA BARBOZA

patrimoniais, quer entre os membros de uma família, quer desses em face


da sociedade.
A popularização do referido exame fez proliferar ações para estabe-
lecimento da paternidade biológica, quer mediante investigação da pa-
ternidade, quer desconstituindo as já existentes, por força de presunção
para estabelecer a verdade material. No que concerne à determinação da
paternidade, prepondera hoje nos tribunais brasileiros a verdade biológi-
ca, com o se pode facilmente constatar da jurisprudência. Em diversos
casos, a paternidade biológica substitui a jurídica preexistente.
Paralelamente, em decorrência do declínio das curvas de fertilida-
de — mesmo em nosso país, onde a expansão demográfica chegou a ser
preocupante —, cresceu o recurso às técnicas de reprodução assistida
como meio de obtenção de prole, não raro sendo utilizado doador de
material fecundante estranho ao casal ao qual será atribuída a filiação,
hipótese que vem sendo denominada “reprodução heteróloga” .~
Diferentemente da situação anterior, a “verdade” biológica deve
ser ocultada, pois, na falta de regulamentação jurídica sobre a matéria,
vem sendo observada a norma deontológica baixada pelo Conselho
Federal de Medicina,4 segundo a qual, na esteira do entendimento de
alguns países, a identidade do doador não deve ser revelada. A se manter
tal orientação, haverá, em tais casos, uma “dupla paternidade”: a jurídica
e a biológica.5 Observe-se que, salvo determinação legal em contrário,
hoje inexistente,6 a aplicação do entendimento jurisprudencial dominante
antes referido poderá implicar a atribuição da paternidade ao doador,
especialmente se considerado que a atribuição da paternidade jurídica ao
marido não encontra, a rigor, amparo na legislação vigente.

3 As considerações referentes ao doador valem com relação à maternidade,


ante a possibilidade
de doação de óvulos e da utilização de “mãe substituta”, popularmente designada
“barriga de
aluguel”, ou seja, de mulher que cede seu útero para gestação de filho alheio

4 Resolução 1.358/92.
5 Sobre as graves implicações jurídicas desse procedimento, permita-se
remeter a BARBOZA,
Heloisa Helena. A filiação em face da inseminação art~/icial e da fertili ração
in vitro. Rio de Janeiro:
Renovar, 1993.

6 O Projeto do Código Civil, em fase final de aprovação, s.m.), também


não resolveu o
problema, pois, embora inclua o filho havido por inseminação artificial
heteróloga na presun-
ção de paternidade gerada pelo casamento, não impede expressamente a revogação
da
autorização do marido exigida para tanto, atribuindo-lhe, ao contrário e sem
qualquer
ressalva, o direito imprescritíve/ de contestar a paternidade dos filhos havidos
por sua mulher
(arts. 1.597, III, IV e V e 1.601).

380
DIREITO À IDENTIDADE GENÉTICA

A possibilidade dessa “dupla paternidade”, contudo, não é inédita


em nosso ordenamento, eis que presente nos casos de legitimação adotiva
e adoção, afastados os inúmeros casos em que se manteve, por força da lei,
a paternidade jurídica em nome da “paz doméstica”, quando verificado o
adultério. Registre-se que nas duas primeiras hipóteses dispunha o legisla-
dor, conforme interesses predominantes, sobre o rompimento ou não do
vínculo com a família de origem, prevalecendo a paternidade civil sobre a
biológica, ressalvados os impedimentos para casamento.

2 PATERNIDADE E PARENTESCO
NO DIREITO BRASILEIRO

Ao lado dos aspectos até aqui abordados de forma panorâmica,


deve-se considerar que a paternidade recebeu diferentes tratamentos
legislativos e doutrinários no Brasil, podendo ser apontados três critérios
para seu estabelecimento: a) o critério jurídico, previsto no Código Civil,
ii
sendo a paternidade presumida nos casos ali previstos, independente-
mente da existência ou não de correspondência com a realidade; b) o

critério biológico, hoje predominante, como antes mencionado, pelo qual


prevalece o vínculo biológico; e c) o critério socioafetivo,7 fundamentado
nos princípios do melhor interesse da criança e da dignidade da pessoa
humana, segundo o qual o pai deve ser aquele que exerce tal função, mesmo
que não haja o vínculo de sangue.
Esse último critério, que assume feição evolutiva, embora não
tenha ainda recebido o merecido acolhimento pelos tribunais, é o mais
condizente com a atual estrutura das entidades familiares, formadas pela
comunhão de afetos e reconhecidas pelo Direito como o ambiente ade-
quado de formação do indivíduo e do desenvolvimento de suas plenas
potencialidades como ser humano.8 Mas não é só. Nesse sentido, a impor-
tância do pai para a estruturação da personalidade, da individualidade,
tem sido demonstrada amplamente pela Psicologia, afirmando-se que “o

7 Sobre o assunto ver FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade relação biológica e


afetiva. Belo

Horizonte: Dcl Rey, 1996.

8 TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil-constitucional das relações familiares.


lo: Temas de

direi/o civil. 2. cd. Rio de Janeiro: Renovar, p. 349-368.

381

HELOISA HELENA BARBOZA

pai é antes e tudo o representante de uma função. Seu ofício é representar


as leis da cidade e o interdito maior que as fundamenta (a proibição do
incesto), antes de tudo transmitindo seu nome (o patronímico)”. Não
obstante, o mesmo autor afirma que:

“A criança humana não é o produto da carne de seus progenito-


res, nem mesmo de seu desejo de filhos, ou de proezas biotecno-
lógicas desenvolvidas nos procedimentos medicais de procria-
ção assistida. Ele é instituído como tal — criança, filho de ... ou
“9
filha de ... — pelo Direito

Portanto, esse pai, que em termos ideais seria também o biológico,


mas pode não sê-lo, é de fundamental significado para que se alcance o
pleno desenvolvimento de potencialidades projetado pelo Direito.
Em termos jurídicos, a paternidade encontra-se compreendida no
âmbito do parentesco, traduzindo o vínculo entre pai e filho, o que confere
a esse último o estado de filho gerador de direitos pessoais e patrimoniais.
Cabe ao Direito ditar o parentesco, estabelecendo quem é o pai, o filho e
sua extensão ~ em outras palavras, quem é ou não parente. Embora o
Código Civil considere parentes pessoas que guardam entre si relação de
ascendência e/ou descendência, quer na linha reta, quer na colateral, o
parentesco não mantém necessariamente correspondência com o vínculo
sangüíneo, pois, como antes aludido, há a possibilidade de constituição
de vínculo meramente jurídico, por presunção ou por “atribuição” legal,
de que é exemplo significativo a adoção, que dava origem ao denominado
“parentesco civil”. Mais do que isso, o Código Civil, ao disciplinar a adoção,
restringiu o parentesco que dela resultava ao adotante e adotado, preser-
vando o parentesco natural desse com sua família de origem, admitindo,
portanto, uma dupla relação parental.
Observe-se, por outro lado, que quer na adoção do Código Civil,
que estabeleceu, como visto, parentesco restrito, quer nas disciplinadas
pelo extinto Código de Menores (adoção plena) e pelo Estatuto da Criança

9 LEGENDRE, Pierre, apud Régine Mougin-Lemerie. .STyeito do direito, sujeito do


des~jo. ALTOE,
Sônia (Org.). Rio de Janeiro: Revinter, 1999, p. 2-3.

10 De acordo com o Código Civil cm vigor o parentesco na linha colateral atinge


o sexto grau (art.
330), passando com o Projeto do Código Civil a limitar-se ao quarto grau (art.
1.592).

382

DIREITO À IDENTIDADE GENÉTICA

e do Adolescente, que atribuíram ao adotado a condição de filho, para


todos os fins de direito, desligando-o de qualquer vínculo com pais e
parentes, ressalvou-se esse rompimento para efeito de impedimentos
matrimoniais.11 Essa ressalva, que revela a preocupação com o incesto,
permite admitir-se um “vínculo excepcional”, mantido apenas para pre-
venir casamentos vedados pela lei.
A estrutura do parentesco, nos moldes apontados, reflete, como
não poderia deixar de ser, a orientação patrimonialista do Código Civil de
1916, voltada para a proteção da propriedade que permanece na família,
ainda que em parte, mediante a combinação das normas de parentesco e
de sucessões. Na mesma linha, o direito a alimentos também decorre do
vínculo de parentesco, salvo, à evidência, o resultante do casamento ou
da união estável, fundados nos deveres legais que se estabelecem entre o
casal. Os direitos à herança e aos alimentos tomam por base o parentesco
consangüíneo ou civil.
Não obstante os efeitos pessoais, e principalmente patrimoniais do
parentesco acima apontados, forçoso é concluir que, para determinado fim,
o
em nome de interesse relevante, o nosso ordenamento de há muito admite,
ou melhor, reconhece, a existência de um vínculo de consangüinidade
que não gera qualquer outro efeito jurídico, pessoal ou patrimonial, senão
o previsto em lei (impedimento matrimonial).

3 A IDENTIDADE DA PESSOA HUMANA

Ensina a doutrina tradicional que toda pessoa natural tem um


modo particular de existir”, uma “posição jurídica no seio da coletivida-
de”, que se pode definir como estado, do qual resultam múltiplas relações
jurídicas, sob o ângulo individual, familiar e politico. Ao lado do estado,
toda pessoa possui um atributo, o nome, que é como “uma etiqueta
colocada sobre cada um de nós, ele dá a chave da pessoa toda inteira”,
sendo um “sinal distintivo revelador da personalidade”.12 “Elemento
designativo do indivíduo e fator de sua identificação na sociedade, o nome

11 Lei 8.069/90, art. 41. No mesmo sentido, o Código de Menores, Lei 6.697/79,
art. 29.

12 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva,


1993, v. 1,

p. 75-76, 86-87.

383

HELOISA HELENA BARBOZA

integra a personalidade, individualiza a pessoa ~ O nome permite que


os indivíduos se distingam uns dos outros; não é o único sinal de iden-
tificação das pessoas, mas certamente o mais marcante. Ele é principal-
mente um elemento da personalidade.’4 Nessa linha, parece não haver
divergência em se reconhecer o direito ao nome como um direito da
personalidade. A tutela do nome protege um interesse individual, mas
também um interesse da sociedade; ter um nome é um direito essencial
da pessoa, ao qual corresponde um dever.15
Considerando, ainda, ser o indivíduo a unidade fundamental, celu-
lar, da vida jurídica, compreendendo-se, portanto, ser importante distin-
guir cada homem dentre os demais com um sinal, isto é, com um nome
percebe-se a preocupação não só de individualizar as pessoas com sinais
e atributos ou “distintivos jurídicos mediante os quais cada homem se
diferencia de seus semelhantes” ,~ como de estabelecer, simultaneamente
e, muitas vezes, em função desses “qualificadores”, sua identificação na
sociedade. Por conseguinte, não será exagerado afirmar que a identidade,
assim construída, é a melhor expressão da personalidade.
O progresso científico agregou mais um elemento, ainda que não o
mais importante, mas, por ora, o que parece imutável, para a identifica-
ção do ser humano: o DNA. Talvez tenha se atingido a última fronteira
em termos da identificação, na medida em que esse elemento é único e
exclusivo de cada pessoa humana, ressalvados os gêmeos univitelinos. A
pesquisa do DNA abre um novo campo de efeitos jurídicos, a um so
tempo revelando a origem genética do indivíduo e marcando indelevel-
mente sua passagem. Como a mais legítima e concreta expressão da
personalidade, a identidade genética é um direito da personalidade, assim
como o nome, e tanto ou mais do que os demais elementos de identifica-
ção, a informação da origem genética deve ser tutelada.
Com propriedade já se afirmou, em análise relativa ao direito da
criança saber sua origem, que diferentemente dos ordenamentos curo-
13 PEREIRA, Caio Mano da Silva. Institiíiçôes de direito civil Rio de Janeiro:
Forense, 1980, v. 1.

p. 215.

14 PAGE, Henri de. Traité E/émentaire de Droit Civil Belge. Bruxelle: Bruylant,
1990, p. 114.

15 TRABUCCHI, Alberto. Js/itutioni di Dieitto Civile. 38. cd. Padova: Cedam,


1998, p. 99-100.

16 Ibidem, p. 99.

17 CARBONNIER, Jean. Derecho Civil Barcelona: Bosch. Casa Editorial, 1960, v. 1,


p. 246.

384

DIREITO À IDENTIDADE GENÉTICA

peus e do direito internacional, para os quais saber a origem, entender


seus traços socioculturais (aptidões, raça, doenças, etnia) é um direito
humano, um direito fundamental, no Brasil, esse direito é visto, exclusi-
vamente, de modo funcional, como “um direito subjetivo ordinário de
bem-estar econômico, é direito a alimentos” e à herança.18
Efetivamente, tendo a Constituição da República assentado como
valor primordial a dignidade da pessoa humana, há que se abandonar a
visão patrimonialista que até então orientava a referida identificação do
indivíduo na sociedade e transcender, reconhecendo a identidade como
fator integrante da dignidade humana. Feliz a afirmativa de que “nas
relações consigo mesmo, com os outros homens, com a Natureza e com
Deus, ou pelo menos com a idéia d’Ele, cada homem é um ser em si
mesmo e só igual a si mesmo.” De todo procedente considerar que:
1
“O bem da identidade reside, assim, na própria ligação de corres-
pondência ou identidade do homem consigo mesmo e está pois
ligado a profundas necessidades humanas, a ponto de o teor da
‘i
convivência humana depender da sua salvaguarda em termos de
plena reciprocidade.”19 à

Imperativo reconhecer, nesses termos, um direito à identidade


genética, como direito da personalidade, inscrito igualmente dentre os
direitos fundamentais. Nessa linha, a Constituição Portuguesa, em dispo-
sição pioneira (art. 26), refere-se expressamente à garantia da dignidade
pessoal e da identidade genética do ser humano. A tradicional configuração
do direito à identidade pessoal tem maior alcance, incluindo o patrimônio
genético de cada indivíduo, constituindo um meio de identificação da
pessoa física.21~ De acordo com a doutrina portuguesa, compreende a
identidade pessoal duas diferentes dimensões: a) uma absoluta ou indivi-
dual, segundo a qual cada pessoa humana é uma realidade singular e

18 MARQUES, Claudia Lima. Visões sobre o teste de paternidade através do exame


do DNA em

direito brasileiro — direito pós-moderno à descoberta da origem? In: LEITE,


Eduardo de

Oliveira (Coord.). Grandes temas da atua/idade DNA. Rio de Janeiro: Forense,


2000, p. 31.

19 SOUSA, Rabindranath V. A. Capelo de. O direito geral de personalidade.


Coimbra: Coimbra

Editora, 1995, p. 244-245.

20 OTERO, Paulo. Personalidade e identidade pessoal e genética do ser humano: um


perfil constitucional
da bioética. Coimbra: Almedina, 1999, p. 84-85.

385

HELOISA HELENA BARBOZA

irrepetível e que a distingue de todas as demais, o que conduz à proibição


da clonagem humana; e b) outra relativa ou relacional, que define a
identidade de cada pessoa igualmente em função de uma memória oriun-
da de seus antepassados e que constitui sua “historicidade pessoal”,
reconhecida como um direito.21

4 DIREITO À IDENTIDADE GENÉTICA

Embora não haja em nossa Lei Maior disposição similar à da


Constituição portuguesa, a orientação deve ser a mesma, por diferentes
princípios, não bastasse a garantia da dignidade humana, eleita como um
dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.
No que concerne à primeira dimensão referida, em boa hora
posicionou-se o legislador22 brasileiro, proibindo a clonagem, em norma
que merece aplauso. Registre-se que mesmo a denominada clonagem
terapêutica, utilizando embriões humanos especialmente “produzidos”
para tanto, não deve ser admitida, uma vez que células tronco podem ser
obtidas de cordões umbilicais e placentas, como esclarecem especialistas
na área.23
Já a segunda dimensão não chegou a receber tratamento específico,
mas emerge, como assinalado, dos diferentes princípios constitucionais.
Assim, em se tratando de criança ou adolescente, não padece de dúvidas
o seu direito ao conhecimento de sua origem genética, especialmente
para estabelecimento da paternidade, com base na doutrina da proteção
integral, que encontra sua tradução no princípio do melhor interesse,
assegurado com absoluta prioridade pela Constituição de 1988.
Contudo, se o interessado for adulto, parece não haver dúvida
quanto à possibilidade da pesquisa genética para fins médicos, com
fundamento no direito à saúde e à preservação da vida. O mesmo já não
se pode assegurar caso se trate da busca da historicidade pessoal.

21 Ibidem, p. 64-65.
22 Lei 8.974, de 05.01.1995, art. 8.0.
23 Nesse sentido o pronunciamento da Dra. Mayana Katz, Professora Titular
do Departamento
de Biologia do Instituto de Bioeiência da USP, no Seminário Internacional
Clonagem humantr
questões jurídicas, realizado no STJ em 12.11.2001.

386

DIREITO À IDENTIDADE GENÉTICA

Impõe-se, contudo, transcender os limites tradicionalmente opos-


tos à busca da verdade genética, na medida em que valores mais altos se
impõe, com base no princípio da dignidade da pessoa humana. Reconhe-
cer o direito à identidade genética da criança, do adolescente e do adulto,
não importa idade, sexo, cor ou credo, significa não só franquear-lhes o
direito à vida, à saúde, à paternidade, mas também a sua história pessoal,
a seus traços socioculturais antes assinalados. Mais do que isso, é impera-
tivo avançar e reconhecer a identidade genética “não funcionalizada”,
vale dizer, não só como um instrumento para criação do vínculo de
parentesco. Sendo um direito da personalidade, inscrito, repita-se, dentre
os direitos fundamentais, poderá ou não gerar o parentesco, com os
conseqüentes efeitos patrimoniais, nos termos que o ordenamento jurídi-
co estabelecer.
Observe-se que, não bastassem sua natureza jurídica e o funda-
mento francamente constitucional, a admissão da descoberta do vínculo
genético, em razão de interesses maiores e para fim específico, como
assinalado, não é novidade no ordenamento brasileiro. Por conseguinte, g
o reconhecimento de um direito à identidade genética, que não gera
parentesco e seus “temidos” efeitos patrimoniais, em nada afronta nossas
à
tradições jurídicas. j
De realce que a não criação de parentesco surge como forma
razoável de harmonização dos interesses eventualmente em conflito: se
for assegurado legalmente o sigilo sobre a identidade do doador nos casos
de reprodução assistida, em atenção à privacidade daquele, certamente
esta deverá ceder em face dos princípios indicados que se sobrepõem.
Contudo, ressalvados estarão os direitos de terceiros (doadores, pais
biológicos) que nenhum ônus, ao menos patrimonial, sofrerão com a
revelação de sua identidade.
A matéria não escapou à sensibilidade dos Tribunais, sendo bas-
tante significativo nesse sentido o acórdão do STJ que admitiu o reconhe-
cimento do vínculo biológico, sem alteração da adoção, que subsistiu
inalterada, e que merece transcrição:

“Adoção. Investigação de paternidade. Possibilidade.


Admitir-se o reconhecimento do vínculo biológico de paterni-
dade não envolve qualquer desconsideração ao disposto no
artigo 48 da Lei 8.069/90. A adoção subsiste inalterada.

387
HELOISA HELENA BARBOZA

A lei determina o desaparecimento dos vínculos jurídicos com


pais e parentes, mas, evidentemente, persistem os naturais, daí a
ressalva quanto aos impedimentos matrimoniais. Possibilidade
de existir, ainda, respeitável necessidade psicológica de se co-
nhecer os verdadeiros pais.
Inexistência, em nosso direito, de norma proibitiva, prevalecen-
do o disposto no artigo 27 do ECA.”
(REsp. 127.541 — RS, 3.~ T. do STJ, j. 10.04.2000, DJ 28.08.2000)

O reconhecimento do direito à identidade genética, sem dúvida


em muito contribuirá para a ligação do ser humano consigo mesmo.

5 BIBLIOGRAFIA

BARBOZA, Heloisa Helena. A filiação em face da inseminação art~ficial e da


fertilização in vitro. Rio de Janeiro: Renovar, 1993.
CARBONNIER, Jean. Derecho Civil. Barcelona: Bosch, 1960, v. 1.
FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade relação bioljgica e afetiva. Belo Hori-
zonte: Dcl Rey, 1996.
LEGENDRE, Pierre. Apud Régine Mougin-Lemerle. In: ALTOÉ, Sônia
(Org.). Sujeito do direito, su~ftito do des~/o. Rio de Janeiro: Revinter, 1999.
MARQUES, Claudia Lima. Visões sobre o teste de paternidade através
do exame do DNA em direito brasileiro — direito pós-moderno à
descoberta da origem? In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Gran-
des temas da atualidade DNA. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. São Paulo:
Saraiva, 1993, v. 1.
OTERO, Paulo. Personalidade e identidade pessoal e genética do ser humano:
um perfil constitucional da bioética. Coimbra: Almedina, 1999.
PAGE, Henri de. Traité Elémentaire de Droit Civil Belge. Bruxelles:
Bruylant, 1948, v. 1.
Traité Elémentaire de Droit Civil Belge. Bruxelles: Bruylant, 1990.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro:
Forense, 1980, v. 1.
SOUSA, Rabindranath V. A. Capelo de. O direito geral de personalidade.
Coimbra: Coimbra Editora, 1995.

388

DIREITO À IDENTIDADE GENETICA

TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil-constitucional das relações


familiares. In: Temas de direito civil. 2. cd. Rio de Janeiro: Renovar.
TRABUCCHI, Alberto. Istitu~ioni di Diritto Civile. 38. ed. Padova: Ce-
dam, 1998.
1
.9

1
e
)
1
1

389

FILHOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA

Jussara Maria Leal de Meirelles


Professora Adjunta de Direito Civil nos Cursos
de Graduação e de Mestrado em Direito da PUC-PR.
Mestra e Doutora em Direito das Relações Sociais
pela UFPR. Procuradora Federal.

.9
___________________ Sumário ___________________

1. Métodos artificiais de reprodução humana: alcance da expres-


são “reprodução assistida”. 2. O desejo de gerar um filho: os
“direitos reprodutivos”. 3. A monoparentalidade programada:
“um filho somente meu”. 4. Reprodução assistida e determina- à
ção do vínculo de parentesco filial. 5. Referências bibliográficas.

1 MÉTODOS ARTIFICIAIS DE REPRODUÇÃO HUMANA:


ALCANCE DA EXPRESSÃO “REPRODUÇÃO
ASSISTIDA”

Homem e mulher dirigem-se a uma cinica especializada para realizar


o sonho de gerar um filho. São casados? Companheiros? Irmãos ou têm
outro vínculo de parentesco? Ou são apenas amigos que pretendem apoio
e/ou auxílio recíprocos nessa “empreitada”?
Mulher solteira (e sob tal expressão entenda-se não somente a mu-
lher não casada, mas, no sentido mais amplo, aquela que vive só, sem
companheiro, sem marido, sem noivo ou namorado) dirige-se a uma cinica
para gerar seu filho. Seu filho, só seu. Sua “produção independente”.
Dados atuais dão conta de que cerca de 7.000 crianças brasileiras
nascidas foram concebidas em provetas. Foram embriões de laboratório.
Hoje, convivem no seio de uma família.

391

JUSSARA MARIA LEAL DE MEIRELLES

“Empreitada”, “produção independente”, “embrião de laborató-


rio”. Termos que procuram definir, ainda que de modo inexato, essa nova
faceta do projeto parental: a reprodução assistida.
É sabido que fatores de ordem biológica, médica ou psíquica
podem causar a esterilidade ou a incapacidade para procriar. Visando a
corrigir anomalias de tal natureza, a Medicina vem lançando mão de
alguns métodos artificiais voltados a atenuar os problemas relativos à
reprodução humana. Dentre tais métodos, os mais conhecidos são a
inseminação artificial (1. A.) e a fertilização in vitro (F. 1. V.).’
A inseminação artificial é a técnica científica mais antiga e consiste,
basicamente, na introdução do esperma na cavidade uterina ou no canal
cervical, por meio de uma cânula, no período em que o óvulo se encontra
suficientemente maduro para ser fecundado. Pode ser homóloga ou
heteróloga. A inseminação artificial homóloga é a realizada com a utiliza-
ção do sêmen do marido ou do companheiro da paciente. Para a insemi-
nação artificial heteróloga utiliza-se o esperma de um doador fértil.2
A fertilização in vitro (F.I.V.) consiste, basicamente, em se retirar
um ou vários óvulos de uma mulher, fecundá-los em laboratório e, após
algumas horas ou em até dois dias,3 realizar a transferência ao útero ou às
trompas de Falópio.4
A ovulação é induzida por meio de hormônios, de modo a que
vários óvulos (até cinco ou seis), no mesmo ciclo menstrual, reúnam
condições de ser coletados. Os óvulos maduros são coletados pouco
antes do momento de sua liberação natural e, após, submetidos à
inseminação. A fertilização in vitro, assim como a inseminação artificial,
será homóloga ou heteróloga, conforme seja utilizado o sêmen do marido
ou do companheiro da paciente ou o de doador fértil.5

1 MEIRELLES, Jussara. Gestação por outrem e determinação da maternidade.


Curitiba: Genesis
1998, p. 36.

2 SCARPARO, Monica Sartori. FertiIi~açào assistida: questão aberta —


aspectos científicos e
legais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 10.

3 Já se desenvolve, no Brasil, uma técnica que consiste em cultivar o


embrião em uma substância
que reproduz as condições das trompas, permitindo que o mesmo seja implantado na
mulher
até cinco dias após a fecundação. Mais maduro, apresenta-se com maiores chances
de se fixar
na parede do õtero, aumentando o índice de gravidez, o que torna desnecessária a
colocação de
mais de dois embriões a cada tentativa (Nova.., 1997, p. 68).
4 SCARPARO, Monica Sartori. Op. eit., p. 10-12.
5 MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. A vida humana embrionária e sua proteção
jurídica. Rio de
Janeiro: Renovar, 2000, p. 18.
392

FILHOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA

Muito embora os métodos mais conhecidos de reprodução assisti-


da sejam a inseminação artificial e a fertilização in vitro, vale ressaltar que
a expressão “reprodução assistida” não se limita a essas práticas de implan-
tação artificial de gametas ou embriões humanos no aparelho reprodutor
feminino, com a finalidade de facilitar a procriação.
Em realidade, todas as práticas técnicas e biológicas que permitam a
reprodução, inte<erindo no processo natural, seja por meio da inseminação
artificial, seja mediante a concepção in vitro, ou pela transferência embrio-
nária, são consideradas “reprodução assistida”. De igual forma, aquelas
que consistem somente no acompanhamento médico e na eventual admi-
nistração de medicamentos que facilitem o processo natural de reprodução.
De acordo com os entendimentos médicos, o melhor termo para
definir a chamada reprodução assistida é inte~/èréncia, para deixar claro que
não se trata de métodos puramente artificiais, porque mesmo quando as
técnicas consistem no manuseio de gametas, elas não deixam de ser
naturais, apenas não ocorre o intercurso sexual. e
Por outro lado, mesmo nas hipóteses em que a fecundação derive do
ato sexual, nem sempre haverá possibilidade de se afirmar que o processo
resultou unicamente da natureza. Assim dar-se-á, por exemplo, quando
houver administração de medicamentos sob orientação do médico para
e
estimular a ovulação ou mera orientação sobre o período fértil ideal,
detectado através de rastreamento ecográfico. Em tais casos, há a interfe-
rência, embora não haja o manuseio dos gametas, e a fecundação tenha se
efetivado por meio do intercurso sexual (processo denominado natural). Daí
o porquê de também se entender “assistida” a reprodução nesses casos, bem
como em todos os outros nos quais tenha havido interferência médica.

2 O DESEJO DE GERAR UM FILHO:


OS “DIREITOS REPRODUTIVOS”

Há quem diga que a incessante e desenfreada busca aos métodos


artificiais, na ânsia de gerar um filho a qualquer preço, acaba por artificia-
lizar o próprio desejo. Nas palavras de Michel Tort, o desejo de gerar um
filho é um desejo por demais controlado, quando se recorre às técnicas
artificiais de procriação:

a mtencionaLização de fazer um filho compromete esse desejo no


caminho de uma programação fixa, estável (pelo menos momen-
393

JUSSARA MARIA LEAL DE MEIRELLES

taneamente). Lá onde o sexual, a relação sexuada introduz um


incalculável, uma ordem do aleatório, ligada particularmente ao
gozo, o projeto programado fabrica algo calculável, um funciona-
mento, no modo da racionalização da reprodução, bioindustrial.”6
Artificializado ou não, é de se recordar que o desejo de gerar um
filho e a conseqüente busca aos recursos da reprodução assistida estão
contidos no princípio constitucional referente ao planejamento familiar
(artigo 226, § 7.o),7 em cuja temática se inserem os “direitos reproduti-
vos”, ou seja, no reconhecimento, a todo indivíduo, do direito de livre-
mente exercer a sua vida sexual e reprodutiva, definindo o momento de
gerar e o número de filhos que deseja ter, recorrendo aos métodos moder-
nos de contracepção e, igualmente, aos meios científicos disponíveis para
realizar o projeto de parentalidade.
Admite-se, dessa forma, que os distúrbios da função reprodutora
constituem um problema de saúde, devendo o Estado assumir a responsabi-
lidade quanto ao acesso das pessoas aos tratamentos para a esterilidade e o
recurso à reprodução assistida (R. A), respeitando-se o princípio da liberdade
e o direito à privacidade, e, concomitantemente, garantindo à criança nascida
através da tais técnicas a proteção integral assegurada pela Convenção
Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente da ONU, pela
Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

3 A MONOPARENTALIDADE PROGRAMADA:
“UM FILHO SOMENTE MEU”

Quando se afirma que o desejo de gerar um filho é garantido


constitucionalmente, a primeira indagação que vem à tona diz respeito à

6 TORT, Michel. O des~iofno: procriação artificial e crise dos referenciais


simbólicos. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 168.

7 Art. 226.

§ 7.~ Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade


responsável, o
planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar
recursos
educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma
coercitiva por
parte de instituições oficiais ou privadas.

394

FILHOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA

polêmica questão da monoparentalidade programada, evidenciada prin-


cipalmente mediante a aplicação das técnicas de reprodução assistida em
mulheres solteiras.
O reconhecimento da igualdade entre os seres humanos impõe
concluir não ser admissível negar a uma mulher o uso das técnicas de
procriaçào assistida somente pelo fato de ela ser solteira. Porém, há que
se interpretar o mesmo princípio de igualdade tendo em vista o direito da
criança, cujo destino de viver sem ao menos conhecer a figura do pai seja
determinado pelo desejo da mãe. Sobre esse tema:

“O interesse da criança deve ser preponderante, mas isso não


implica concluir que seu interesse se contrapõe, de forma reite-
rada, ao recurso às técnicas de procriação artificial e que ela não
t
possa vir a integrar uma família monoparental, desde que o
genitor isolado forneça todas as condições necessárias para que
o filho se desenvolva com dignidade e afeto”.8

Há que se recordar, contudo, que o recurso à procriação medica-


mente assistida, consistindo em intervenção onerosa, invasiva da intimi-
dade do casal ou da mulher, a acarretar repercussões psicológicas e fami-
liares, deve representar a última alternativa para a pessoa que pretende
procriar, e não simplesmente um modo alternativo de reproduzir.
Por isso, há que se entendê-lo sob a finalidade terapêutica, que lhe
é elemento fundante. Excluída deve ser, por isso, sua utilização para fins
diversos, como buscar a geração de um filho por intermédio de outra
pessoa única e simplesmente para não interromper, em razão da gestação,
determinades atividades profissionais.
E justamente em razão de sua finalidade terapêutica, o uso de métodos
de reprodução assistida deve ser incluido no conceito de saúde, previsto na
Constituição da República, no artigo 196, como direito de todos e dever do
Estado.9 Nesse sentido, não há como negar à mulher o acesso às técnicas
de procriação assistida somente pelo fato de ela ser solteira.

8 BRAUNER, Maria Claudia Crespo. A monoparentalidade projetada e o direito do


filho à

biparentalidade. Estados Jurídicos. São Leopoldo, v. 31, o. 83, set./dez. 1998,


p. 151.

9 Att. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante


políticas sociais e

econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao


acesso universal

e igualitário ás ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

395

JUSSARA MARIA LEAL DE MEIRELLES

Mas a Constituição também assegura a todos a dignidade (no art. 1.”,


inciso III), como princípio informador de todo o ordenamento jurídico,
bem como o direito à identidade pessoal. Sendo assim, mesmo que se
reconheça a total possibilidade de uma criança vir a se desenvolver em
uma família monoparental, há que se estabelecer a sensível diferença
entre as situações que apenas aparentemente se confundem: de um lado,
há o reconhecimento pela Constituição às entidades familiares monopa-
rentais formadas em razão de separações de fato ou de direito, divórcio
ou morte, para que lhes seja dada a devida proteção (art. 226, ~ 4.~); de
outro, a institucionalização deliberada da monoparentalidade, de manei-
ra a coibir à criança o direito ao vínculo paterno-filial tão-somente por-
que assim sua mãe desejou.10

4 REPRODUÇÃO ASSISTIDA E DETERMINAÇÃO


DO VÍNCULO DE PARENTESCO FILIAL
Outra questão emergente quando se trata do recurso às técnicas de
reprodução assistida diz respeito à própria determinação do vínculo
parental. Pelo fato de o novo Código Civil brasileiro estar na “vacatio
legis”, a problemática será analisada, neste artigo, de acordo com o novo
texto. Porém, desde logo faz-se ressalva no sentido de estar tramitando
no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado 90, de 1999, sobre
Reprodução Assistida, de autoria do Senador Lúcio Alcántara, que poderá,
se aprovado, alterar muitas das questões aqui colocadas.

4.1 Maternidade ainda sempre certa

Pela leitura do texto consolidado, no que concerne a filiação, é de


se concluir que o legislador seguiu o Código Civil vigente no que
concerne ao estabelecimento certo e incontestável da maternidade a
partir do elemento obstétrico. Mater semper certa est, pois é determinada

10 O exercício da chamada monoparentalidade programada, por obstaculizar


o direito ao duplo
vinculo filial, caracteriza o que se conhece por colisão de direitos
fundamentais, cuja solução
deve ser efetivada pela ponderação concreta dos bens em conflito, mediante a
aplicação do
princípio da proporcionalidade (STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de
direitosfemdamentais
e princzôio da proporciona/idade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.
139-143).

396

FILHOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA

pelo parto. Alheia às disposições do novo Código Civil brasileiro, portan-


to, a chamada gestação de substituição, seja na forma onerosa (vulgar-
mente conhecida por “barriga de aluguel”), seja na forma gratuita.
Objetivando, imediatamente, a viabilização da vida humana e,
mediatamente, envolvendo a criança — por ela nascer como se fosse um
objeto contratual — bem como a gestante — esta com limitações ao seu
direito de liberdade, eis que a gestação será mantida no interesse alheio —,
de fato esbarra a referida técnica em alguns ditames legais vigentes,
como: os princípios constitucionais de proteção ao direito à vida e à liber-
dade, o artigo 104 do Código Civil (se observado o pacto de gestação de
substituição como negócio jurídico e, em tal hipótese, nulo em razão da
ilicitude do seu objeto) e também o artigo 242 do Código Penal, que pune
a atitude de dar parto alheio como próprio e a de registrar como seu filho
de outrem.
É de recordar-se que tais questionamentos no que diz respeito à
própria técnica, como as razões e os fundamentos da pretensa “substitui-
ção”, além da eventual ilicitude e nulidade dos pactos, onerosos ou não,
e
realizados entre a gestante e a pretendente à maternidade, levaram alguns
países a proibi-la, tal qual ocorre na Alemanha, Austrália, Espanha,
França, Inglaterra, Israel, Noruega, Suécia, Suíça, entre outros.11 e
1
4.2 Paternidade em hipóteses e procriação assistida
Quanto à determinação da paternidade em hipóteses de procriação
medicamente assistida, dispõe o novo Código Civil brasileiro:
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casa-
mento os filhos:
1 — ... (omissis)
II— ... (omissis)
III — havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que
falecido o marido;
IV — havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões
excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V — havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que
tenha prévia autorização do marido.

11 MEIRELLES, Jussara. Gestação por outrem..., cit., p. 84-85.

397

JUSSARA MARIA LEAL DE MEIRELLES

4.2.1 Autorização do marido

Mediante a previsão da determinação da paternidade jurídica a


partir da autorização do marido para a realização de inseminação artificial
heteróloga, vem demonstrado, pelo novo Código Civil brasileiro, o ampa-
ro legal a mais uma hipótese de esvaziamento do conteúdo biológico da
paternidade, dando lugar ao critério volitivo, consensual, de maneira a
valorizar a “paternidade socioafetiva”.12 Segue o legislador pátrio a orien-
tação de países que já legislaram sobre o tema da procriação assistida, nos
quais a paternidade é determinada a partir do consentimento livre outor-
gado pelo marido (ou companheiro) da mulher que se submete ao trata-
mento.13 Reconhece o legislador do CCB que a verdade biológica não
abriga o desenvolvimento do sistema de filiação, devendo estar fundada
em valores que atendam aos interesses do filho e da família no seu sentido
mais amplo.14

4.2.2 Marido falecido: concepção presumida


e sucessão parental

Duas observações ainda restam, contudo: a primeira diz respeito à


presunção de paternidade em relação ao marido falecido, em hipóteses de
reprodução assistida. Ressalte-se, de início, que, tendo sido utilizada pelo
legislador a expressão “fecundação artificial homóloga”, é de se observar
abranger a mesma as hipóteses de inseminação artificial ou de fertilização
in miro.
Assim, o legislador do novo Código Civil brasileiro versou de manei-
ra igualitária a respeito de ambas as técnicas, presumindo concebidos na
constância do casamento os filhos havidos mediante a prática de insemi-
12 Expressão inicialmente utilizada pelo Professor Doutor Lui~ Edson Fachin, na
sua tese de

doutoramento pela PUC-SP, cujo núcleo vem contido no livro Estabelecimento da


filiação e

paternidade presumida. Porto Alegre: Fabris, 1992.

13 Por exemplo: Austrália, Canadá, Espanha, França, Inglaterra, Israel, Noruega,


Nova Zelándia,
Suécia, Venezuela, dentre outros (MEIRELLES, Jussara. Gestação por outrem...,
cit., p. 163-166).

14 Em tal sentido: BARBOZA, Heloisa Helena. Novas relações de filiação e


paternidade. lo:

PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Repensando o direito dejamilia. Anais do 1


Congresso

Brasileiro de Direito dc Família. Belo Horizonte, 1999, p. 135-142. DELINSKI,


Julie

Cristine. O novo direito da filiação. São Paulo: Dialética: 1997, p. 103.

398

FILHOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA

nação artificial com sêmen do marido falecido ou de transferência de


embrião mantido em laboratório.
Versando o mesmo diploma, no artigo 1.798, a respeito da vocação
hereclitária dos seres já concebidos no momento da abertura da sucessão,15
é de se indagar sobre a compatibilidade entre uma e outra disposição,
posto que, se presumidamente serão tidos como concebidos na constân-
cia do casamento os filhos havidos mediante fecundação artificial homó-
loga, mesmo após o falecimento do marido, nesse patamar de idéias,
estarão esses filhos aptos à sucessão do pai.
Na sucessão parental, levando em consideração que toda a estrutu-
ra do instituto tem em vista um desenlace a curto prazo, ao se admitir
relevância sucessória às situações oriundas da inseminação artificial ou
da fertilização iii vitro, nas palavras de Oliveira Ascensão:

“Nunca seria praticamente possível a fixação dos herdeiros e o


esclarecimento das situações sucessórias. E a partilha que porventura
se fizesse estaria indefinidamente sujeita a ser alterada”.16
1
4.2.3 “Embriões excedentários”
1
Outra preocupação gira em torno da expressão “embriões exceden-
tários” ~ utilizada expressamente pelo legislador, no citado inciso IV, do
artigo 1.597, mas também não afastada na hipótese de fertilização in vitro
prevista no inciso III do mesmo artigo, sob a amplitude da expressão
“fecundação artificial”. Em primeiro lugar, o fato de se presumir concebi-
dos na constância do casamento os filhos havidos, a qualquer tempo,

15 Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já


concebidas no momento da
abertura da sueessao.

16 ASCENSÂO, José de Oliveira. Problemas Jurídicos da proeriação


assistida. Revista Forense,
o. 328, out./nov./dez. 1994, p. 78.

17 Costuma-se denominar excedentes os embriões obtidos em laboratório,


mediante fertilização
tu vitro, que não foram transferidos ao organismo feminino ou porque não
apresentavam sinais
de desenvolvimento normal ou porque, muito embora em condições de evoluir com
sucesso,
ultrapassaram o número máximo recomendável à transferência sem riscos inerentes
a uma
gestação múltipla, tais como ameaças de aborto e nascimentos prematuros
(MEIRELLES,
J ussara. A vida humana..., cit., p. 20).

399

JUSSARA MARIA LEAL DE MEIRELLES

ainda que embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial


homóloga, traz em si duas ordens de problemas.
A primeira diz respeito à própria liberdade individual dos titulares
dos gametas que deram origem aos embriões — ainda que casados sejam,
parece que impor-se o vínculo parental a qualquer deles é afetar-lhe direta-
mente a liberdade individual.18
Em segundo lugar, à parte a questão da determinação da paternidade
jurídica, o fato de se prever, legislativamente, embriões ditos excedentários,
abrindo a possibilidade para que, a qualquer tempo, sejam transferidos ao
organismo feminino para completarem o seu desenvolvimento, segundo o
maior ou menor interesse daqueles que deram inicio a um projeto parental
que, talvez, nem exista mais, é reduzir o ser humano em inicio de desenvolvi-
mento a mero objeto de desejo, e de desejo bioindustrial.
Saliente-se, portanto, conforme já observado anteriormente, que o
embrião pré-implantatório teria a possibilidade de vir ou não a se tornar
sujeito de direitos, em circunstâncias como as apontadas, dependendo do
interesse direto que apresentassem pessoas que juridicamente com ele
viriam a se relacionar.
Não se trata, então, de sujeitar a personalidade jurídica a aconteci-
mentos naturais, como o nascimento com vida, a morte, ou até mesmo a
nidação. A transferência ao útero dependeria, além dos fatores biológi-
cos, da intenção de quem a realizasse e de quem se submetesse a tal inter-
venção médica.
E reduzir a personalidade à vontade de pessoas direta ou indireta-
mente interessadas, por melhores que sejam suas intenções, faz caracteri-
zar verdadeira instrumentalização do ser embrionário. Saliente-se uma
vez mais o agravamento de tal sujeição nas hipóteses em que se pretenda
vantagens patrimoniais a partir da eventual gestação ou do nascimento
do implantado.

18 Tecendo considerações concernentes ao poder parental sobre o embrião


conservado em
laboratório, observa Gi/da Nico/au (Le otatut juridique de l’embryon congele.
L~influence des
progrés de /agenetiquesur/e droitde /afihiation. Talence: Presses universitaires
de Bordeaux, 1991,
p. 303-304) que o desacordo do casal a respeito de uma eventual reimplantação
pode
caracterizar duas ordens de problemas: a) a imposição de reimplantá-lo
constituirá atentado à
integridade psíquica da mulher e será até despicienda, se a gestante estiver
autorizada
legislativamente a optar pela interrupção da gravidez; b) a recusa em procriar
poderá constituir
injúria grave em relação ao marido.

400

FILHOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA

No tocante à proteção jurídica devida aos embriões humanos obti-


dos e mantidos em laboratório, algumas premissas devem ser estabelecidas.
Dentre os fundamentos que servem de alicerce para o Estado Demo-
crático de Direito brasileiro, merecem destaque a cidadania e a dignidade
da pessoa humana. A Constituição de 5 de outubro de 1988 estabelece-os
já no seu artigo 1.0, incisos II e 111.19 Também garante aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no Brasil a inviolabilidade do direito à vida, além
dos direitos à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (art. 5~0,
capul,Qt1 Consagrados, desse modo, no texto constitucional, os valores fun-
damentais a Legitimar a ordem jurídica, da qual a pessoa humana é refe-
rencial basilar.
É preciso lembrar que os embriões de laboratório podem represen-
tar as gerações futuras; e, sob ótica oposta, os seres humanos já nascidos
foram, também, embriões, na sua etapa inicial de desenvolvimento (e
muitos deles foram embriões de laboratório). Logo, considerados os
embriões humanos concebidos e mantidos in vitro como pertencentes à

mesma natureza das pessoas humanas nascidas, pela via da similitude, a


eles são perfeitamente aplicáveis o princípio fundamental relativo à digni-
dade humana e a proteção ao direito à vida. Inadmissível dissociá-los
1
desses que são os fundamentos basilares de amparo aos indivíduos nasci-
dos, seus semelhantes.
Inadmissível, enfim, tratar seres humanos como “resultados de
empreitada”, “produção independente”, “filhos de ninguém” ou, sim-
plesmente, “filhos da reprodução assistida”.

19 Art. 1.0 A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel


dos Estados e

Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito


e tem como

fundamentos:

— a soberania;

ii — a cidadania;

III — a dignidade da pessoa humana;

IV — os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V — o pluralismo político.

(. .
20 Art. 5.’ Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade,

à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)“.

401

JUSSARA MARIA LEAL DE MEIRELLES

5 REFEREIVC(AS B(BL(OGRAF(C~4S

ASCENSÃO, José de Oliveira. Problemas Jurídicos da procriação assis-


tida. Revista Forense, n. 328, p. 69-80, out./nov./dez. 1994.
BARBOZA, Heloisa Helena. Novas relações de filiação e paternidade.
In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Repensando o direito de família.
Anais do 1 Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte,
1999, p. 135-142.
BRAUNER, Maria Claudia Crespo. A monoparentalidade projetada e o
direito do filho à biparentalidade. Estudos jurídicos. São Leopoldo, v. 31,
n. 83, set./dez. 1998, p. 151.
DELINSKJ, Julie Cristine. O novo direito da filiação. São Paulo: Dialética:
IriOI

1997.

1k,, kI 1., FACHIN, Luiz Edson. Estabelecimento da filiação e paternidade


presumida. Porto
IIIr .~. .~I Alegre: Fabris, 1992.
~ MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. Gestação por outrem e determinação da
~ maternidade. Curitiba: Genesis, 1998.

~ ~ ~ ~ . A vida humana embrionária e sua proteção jurídica. Rio de


Janeiro:
Renovar, 2000.
NICOLAU, Gilda. Le statut juridique de l’embryon congele. L’influence
des progrés de Ia genetique sur le droit de laflliation. Talence: Presses
universi-
taires de Bordeaux, 1991, p. 297-321.
SCARPARO, Monica Sartori. Fertilização assistida: questão aberta — aspec-
tos científicos e legais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princz’pio
da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
TORT, Michel. O desejo frio: procriação artificial e crise dos referenciais
simbólicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

402
4

RESPONSABILIDADE CIVIL
NA RELAÇÃO PATERNO-FILIAL

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka


Professora Doutora do Departamento de Direito Civil
da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Sócia-fundadora e Diretora da Região Sudeste do IBDFAM.

__________________ Sumário __________________

1. Primeiras palavras. 2. O arco filosófico da circunstância


relacional humana entre pais e filhos. 3. A concepção jusna-
turalista de família e a distinta visualização do pátrio poder.
4. O desafio da modernidade para demonstrar, racionalmente,
os fundamentos da autoridade e da dependência entre os seus
componentes. 5. Os critérios para a definição da autoridade
e, conseqüentemente, da responsabilidade paterno-filial, sob
o enfoque do jusnaturalismo moderno: o fundamento, a titulari-
dade e a extensão. 6. Referências bibliográficas.

1 PRIMEIRAS PALAVRAS

O enfrentamento do presente tema — que me foi especialmente


deferido, neste conclave, pela conhecidíssima e eterna gentileza de nosso
Presidente, o Dr. Rodrigo da Cunha Pereira — descortinou para mim, ao
tempo em que me dediquei a imaginar como construir esta exposição, um
panorama tão variado e rico que não tenho hoje nenhuma dúvida de que se
trata de mais um daqueles assuntos que não se esgotam, que não desenham
os seus próprios limites, mas, ao contrário, oferecem de modo contínuo e
incessante, ao pesquisador, ao estudioso e ao operador do direito, um

403

GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA

fabuloso manancial de aspectos que podem ser sempre e sempre percorri-


dos, sem o risco do esgotamento da seiva profícua que o vivifica.t
Pessoalmente, na minha atividade acadêmica, tenho dedicado mui-
ta atenção e grande esforço de pesquisa à volta da temática da responsa-
bilidade civil, mormente esta conhecida como indireta, da qual se diz ora
ser uma responsabilidade subjetiva — por culpa presumida —, ora ser uma
responsabilidade objetiva, por se lhe conferir cada vez menos o ônus
probatório da culpa.2 Estou a me referir à responsabilidade dos pais pelos
danos causados pelos seus filhos menores, conforme é a regra da Lei Civil
que ainda vige, o Código de 1916, em seu artigo 1.521, especialmente.
Tem me sensibilizado, igualmente, nesta vertente da relação pater-
no-filial em conjugação com a responsabilidade, este viés naturalmente
jurídico, mas essencialmente justo, de se buscar compensação indeniza-
tória em face de danos que pais possam causar a seus filhos, por força de
uma conduta imprópria, especialmente quando a eles é negada a convi-
vência, o amparo afetivo, moral e psíquico, bem como a referência paterna
ou materna concretas, acarretando a violação de direitos próprios da
personalidade humana, magoando seus mais sublimes valores e garantias,
como a honra, o nome, a dignidade, a moral, a reputação social, o que,
por si só, é profundamente grave.
Mas, dizia-lhes antes, o descortinamento do tema, conforme minha
concepção, permitiu-me logo verificar que havia um estreitamento na

1 Registro, com grande honra, que para a elaboração desta palestra contei
com a generosidade da
inteligência de certos colegas de assunto, aos quais sou extremamente grata, e
que, com sua
colaboração inestimável, deixaram estas notas mais sofisticadas, com um certo ar
interdisciplinar, pelo qual tanto ansiei. São eles: Fernando Dias Andrade
(filósofo e professor),
Sandra Olivan Bajer (advogada), Giselle Groeninga (psicóloga e mediadora),
Aguida Amida
Barbosa (advogada e mediadora), Maria Berenice Dias (desembargadora), Rodrigo da
Cunha
Pereira (advogado e professor) e Euclidesule Oliveira (advogado e professor),
todos, à exceção do
primeiro, membros e/ou dirigentes do IBDFAM.
2 Dentre a riquíssima bibliografia que pode ser consultada a respeito do
assunto, registro em
especial a formidável obra de Albertino Daniel de Meia, professor titular da
Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Minas Gerais, denominada A responsabilidade ci
vi/pelo fato de outrem,
nos direitos francés e brasileiro. Rio dc Janeiro: Forense, 1972. E, ainda, como
ponto de partida
para a visualizaçào desta divergência qualificatória da responsabilidade
indireta dos pais pelos
danos causados por seus filhos menores, recomendo a leitura das singulares 18
linhas de
comentários ao artigo 1.523 do Código Civil em vigor que a Professora Maria
Helena Dini~
registra em seu Código Civil anotado. São Paulo: Saraiva (minha edição é a de
1995, gentilmente
dedicada pela autora).

404

RESPONSABILIDADE CIVIL NA RELAÇAO PATERNO-FILIAL

temática que me fora presenteada, de sorte que a preocupação com a


responsabilidade deveria cingir-se à civil e, sob este viés, deveria decorrer
dos laços familiares que matizam a relação paterno-filial.
Ora, assim visualizado o tema, impôs-se, prontamente, para mim,
esta idéia de que deveria tratá-lo sob as tintas da responsabilidade civil
propriamente dita, costurando os conceitos — tão conhecidos, para mim e
para tantos dos senhores — da urgência da reparação do dano, da “re-
harmonização” patrimonial da vítima, do interesse jurídico desta, sempre
prevalente, mesmo em face de circunstâncias danosas oriundas de atos
dos juridicamente inimputáveis...
E não me satisfiz com esta idealização estrutural, já bem formatada
na minha mente.
Pensei ainda mais e concluí que a insatisfação vinha de um fato
muito simples: se íamos nos reunir em Congresso de Direito de Família,
certamente a pujança do tema deveria — como o sadio ramo de trigo que
se enverga ao ritmo do vento, mas não se quebra — inclinar-se para um
outro lado e suscitar outra ordem de inquietações, além daquelas (impor-
tantissimas igualmente, não resta dúvida) que se condensam na preocu-
pação com a vítima — quer a vítima de danos produzidos por filhos
menores e indenizáveis pelos seus pais, quer a vítima consolidada na
pessoa do próprio filho, pela violação de seus direitos de personalidade,
principalmente —, na recuperação de sua normalidade patrimonial ou
moral, como instrumento de superior categoria e valoração, endereçado à
mantença da dignidade da pessoa humana.
Pensei então que seria adorável e certamente oportuno revirar os
alicerces mais profundos do assunto para trazer à tona as inquietações, as
dúvidas, as questões que nem sempre são do interesse imediato do
direito, mas que são, indubitavelmente, a sua raiz mediata. Melhor de
tudo, pensei, esta busca, ainda que significativamente difícil para mim,
revelaria aquela nova maneira de se procurar desvendar e descrever o
fenômeno jurídico a partir de sua interface com os fenômenos não-
jurídicos que o antecedem.
Este é, o rico caminho da interdisciplinaridade, que admite — a um
agrupamento de pessoas como este nosso de hoje, sob as dobras da
diversidade de pensamento, de linhas e de construções científicas, dobras
essas que caracterizam e personificam o IBDFAM — que nos sentemos
uns ao lado dos demais, sociólogos, antropólogos, psicólogos, filósofos e

405

GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA

homens do direito. Sem castelos ou prisões. Sem moldes pré-estruturados


e estratificados. Mas absolutamente abertos à contemplação da vida
como ela é, e atentos aos contornos do caminho que leva à realização
pessoal e plena de cada um dos homens, enquanto membro do grupo
familiar que o abriga e guarda.
E a inquietação intrigante que se encontrava presa dentro de mim
emergiu e expandiu-se, desdobrando-se na mais singela das perguntas:
Por que se impõe — e repercute no Direito de Família — a responsabilidade
advinda
da relação paterno-filial?
Em que bases extrajurídicas estariam assentadas as razões, as
justificativas e os fundamentos da imposição de tal dever?
Poderia, acaso, a filosofia fornecer alguma base para a discussão da
responsabilidade civil na relação paterno-filial?
I~m4 Poderia, acaso, a psicologia adequadamente explicar qual o liame
~

existente entre pais e filhos, que seja capaz de gerar e de justificar a


~ wi’,~ concretude desta responsabilização, em face de terceiros, mas — e
princi-
~ palmente — em face deles proprios, um em relaçao ao outro?
Sim, certamente sim, do mesmo modo como outros segmentos de
apreciação e formulação do conhecimento humano, como a antropolo-
gia, como a sociologia e como todas as demais persecuções científicas
I~MI~W que tenham por objeto de interesse imediato o homem e sua
circunstân-
cia relacional humana.
E assim, sob este desenho pré-jurídico, sob esse matiz fundante, sob
esta inquietação acerca da raiz, decidi mudar o curso de minha apreciação,
deixando-a sob suas mais que competentes considerações e críticas.

2 O ARCO FILOSÓFICO DA CIRCUNSTÂNCIA


RELACIONAL HUMANA ENTRE PAIS E FILHOS

Levando o conceito de responsabilidade civil para suas bases mais


longínquas, que o confundem com o termo genérico da responsabilidade, e
o dever clássico da prestação do devido, a filosofia, por exemplo, tem,
sim, muito que dizer.
Basicamente, ela tem muito que dizer sobre essa responsabilidade
na relação entre pais — ou só o pai, ou só a mãe — e filhos, sempre que a
idéia de família estiver presente ou for o centro das suas questões.

406

RESPONSABILIDADE CIVIL NA RELAÇÃO PATERNO-FILIAL

Há, a propósito, uma longa história do conceito de família na própria


~ ‘história da filosofia, além da história das instituições civis. E essa
é uma his-
tória que vem desde os gregos — portanto, desde o início da filosofia oci-
dental — e que se confunde multas vezes com a própria filosofia politica,
com o próprio pensamento em torno do direito e das sociedades.
Já de uma forma muito sofisticada, o tema da família aparece nessa
ligação com a politica justamente no pensamento político de Aristóteles,
quando, em sua Política, apresenta uma explicação da pólis (cidade) como
sendo uma associação de várias associações menores, das quais a originá-
ria é a família.
A cidade, antes de ser uma reunião de poderes, de instituições, de
leis, é uma associação de famílias. Essa concepção aristotélica da cidade
como uma reunião de famílias, célebre na história da filosofia política,
não prosseguiu, todavia, com grande repercussão desde a Idade Média.
A partir do longo período medieval, a concepção da vida politica se
verá derivada, em especial, das próprias instituições e da presença efetiva
de certos poderes ou autoridades, perdendo-se de certa forma a idéia grega de
que a cidade é uma grande família. Mais do que isso, quer no período
medieval, quer nos períodos subseqüentes (em especial naquele em que se
desenvolve o jusnaturalismo moderno), será possível encontrar longas
considerações jurídicas a respeito do que a familia é ou deva ser.
Mas há algo na concepção aristotélica que é fundamental, que talvez
não convenha esquecer, mesmo quando se desviar a atenção para as
concepções mais modernas. Trata-se do seguinte, resumindo este aspecto:
por que a cidade é uma associação máxima que resulta da reunião de
outras
associações, que resultam, por sua vez, da reunião de associações menores
que são, enfim, as famílias? Porque, justamente, a família é uma associação
natura] humana (como a cidade, de certa forma sera’ de maneira mas~
compkx~~2 dôs~tro da’ qual a’s rdaçces so íliztzzra’/Ine/ztc dctcrmí2ada’s. O
que permitiria, assim, conceber não só a família, não só a cidade, mas
qualquer associação, é a sua condição de elo de lzgações naturais.
Há, bem sabe e lembra Arütóteles, vários tipos diferentes de asso-
ciações, e conseqüentemente vários tipos diferentes de cidades, de famí-
lias e de comunidades de toda ordem. A conseqüência é que, se for o caso
de tentar uma classificação dos tipos de cidade ou dos tipos de família,
isso só será possível se for definido um critério para a tipologia.

407

GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA

Esse critério é buscado por Aristóteles para a classificação das cida-


des, e é encontrado não como critério único, mas como critério duplo:
primeiro, uma cidade pode ser governada por um só, por poucos ou por
muitos; segundo, o governo pode ser puro ou corrompido. Conseqüência:
há seis tipos de cidades — três tipos puros (monarquia, o governo de um só;
aristocracia, o governo de poucos;politéia, o governo de muitos) e três tipos
impuros, corrompidos, que são correspondentes às três formas puras
(respectivamente: tirania, o4garquia e democracia).
E para a família? Diferentemente do que ocorre com a cidade, para
o caso da família não há critério que permita sua classificação em vátios
modelos puros; existem, certamente, vários tipos de família, no sentido
de que há famílias com diferenciados números de componentes, que se
beneficiam ou não de servos, propriedades, etc. Mas, diferente do que
ocorre com a cidade (onde o poder pode estar na mão de um só, ou não),
no caso da família o comando familiar está sempre nas mãos dos pais, e
para certas funções está exclusivamente em poder do pai. Em outras
palavras: em Aristóteles, assim como em toda a tradição grega, é um
consenso entre os autores a idéia de que são os pais que têm autoridade
sobre seus filhos, e que é o marido que tem autoridade sobre sua esposa
(ou suas esposas).
Por que essa autoridade masculina, paterna e marital? Porque ela é,
como toda autoridade, uma autoridade natural, segundo a visão filosófica
de Aristóteles.
Ora, segundo a concepção clássica, então, será por uma necessida-
de natural humana que os filhos devam obedecer aos pais e a mulher deva
obediência ao marido. Se a família antiga, assim, é patriarcal, é porque a
natureza inteira o é.
Essa concepção clássica, que obviamente se encontra em completo
descompasso com a contemporaneidade, é a concepção que, como se sabe,
mais dominou as teorias ou doutrinas em torno da família, por toda a
história da humanidade. De fato, Aristóteles está mais presente do que
distante em certos aspectos: ainda que nunca mais se tivesse desenvolvido
a idéia de que a cidade é uma reunião de famílias, por praticamente toda a
história da humanidade se manteve a idéia de que a família é a mais
originária das associações naturais e que sua composição envolve uma
autoridade natural dos pais sobre os filhos e do marido sobre a mulher.

408

RESPONSABILIDADE CIVIL NA RELAÇÃO PATERNO-FILIAL

Por isso mesmo, pressinto que a análise do tema a partir de Aristóteles


seja relevante, na medida em que deixa claro o que sempre estará em
questão, na composição da família: a família é uma associação na qual
alguém tem poder sobre outrem, restando saber, primeiro, a quem epor que
se deve esse poder e, segundo, se a família não pode ser uma associação baseada
em outra coisa que não a dominação ou a dependência.
Sempre que se tratar das relações de família e da responsabilidade
envolvida nas relações familiares, fundamental será que se trate, tam-
bém, da base dessa relação.
A inquietação tipicamente pós-moderna assenta-se em buscar a
resposta à pergunta: no seio da família da contemporaneidade desenvol-
ve-se ainda, e tipicamente, uma relação de poder ou é possível afirmar, por
exemplo, que a ênfase relacional se encontra deslocada para a afetividade?
O tema da responsabilidade nas relações de família envolve neces-
sariamente essa visão clássica da autoridade, para bem ou para mal.
O olhar histórico de contemplação pretérita sobre o assunto admi-
te afirmar que é marcante essa significação da família do passado mais
como urna relação de poder do que como urna relação de afeto. Por conseqüên-
cia, a família aparece tradicionalmente como uma associação cujos bene-
fícios se dirigem mais para os pais (e mais ainda para o pai ou o marido)
do que para os filhos (ou para a mulher).
A tradição patriarcal, de índole francamente autoritária, na concep-
ção das relações de família, pretendeu muitas vezes, e na intenção de
justificar-se como instituição civil, fazê-lo por vieses imaginados racio-
nais ou científicos.
E mesmo que uma tal justificação fosse ideológica e impossível, o
principal argumento utilizado para a defesa da autoridade do patriarca
foi, desde os gregos, a existência de uma hierarquia ou de uma dependên-
cia natural. Essa idéia — que está na base das concepções antigas e
clássicas de família e que se faz notar principalmente na imposição da
autoridade nas relações familiares — curiosamente aparecerá também
como índice, no pólo oposto dessa relação, vale dizer, aparecerá como o
fator de consagração da responsabilidade dos pais diante dos filhos,
assim como do marido diante da mulher.
O que a tradição mostra, enfim, é que a concepção da autoridade é
baseada numa idéia de natureZa, mas ao mesmo tempo essa idéia de
natureza traz uma concepção de responsabilidade muito equivalente.

409

GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA

A primeira explicação para a idéia de que a associação mais primi-


tiva é a família pode ser vista, ainda em Aristóteles, por meio de sua
afirmação de que a família é o resultado da associação daqueles seres que
“não podem, por natureza, ficar separados um do outro”. Refere-se, o
filósofo grego, ao homem e à mulher.
Ou seja: Aristóteles até concebe que as famílias tenham ou não
posses, que tenham ou não filhos, mas não concebe uma família sem a
idéia de casamento, e muito menos concebe as famílias homoafetivas. A
concepção corrente da família brasileira até muito pouco tempo era vul-
garmente aristotélica, ainda que a prática da família brasileira fosse muitas
vezes o inverso da sua imagem...
E porque o novo Código Civil não incluiu as uniões homoafetivas
entre as entidades familiares, talvez seja o caso de dizer que, em termos
oficiais, ainda estamos na visão aristotélica de família, em que essa associa-
ção originária só é legítima se obedecer ao que a sociedade patriarcal
considera normalidade sexual e morai
Mas, enfim, a idéia original é a de que a família é uma associação
decorre da natureza humana na medida em que decorre de uma
que
necessidade de vida em comum, que Aríttóteles, e novamente a tradição
posterior a ele, atribuirá à relação entre homem e mulher.
E que relação é essa? Uma relação física, apenas, ou uma relação
de dependência?
Aristóteles coloca que é uma relação de dependência, especialmente
da mulher em relação ao homem: esta, sozinha, não apenas não é capaz
de procriar, como não seria capaz de subsistir, e muito menos comandar
uma cidade ou um exército. E não seria capaz por quê? Porque, por sua
constituição natural, ela seria mais fraca que o homem, incapaz, enquan-
to só ele estaria capacitado, para a prática de certas ações que demandam
força e prudência.
Aristóteles quer apontar, portanto, uma deficiência, uma debilidade
natural na mulher, visível seja por sua comparação ao homem, seja por
sua própria compleição.
Ora, sob o preconceito dessa idéia de que a mulher é fisicamente,
mas também racionalmente, inferior ao homem, Aristóteles nem sequer foi
um dos primeiros: a idéia já estivera colocada com todas as letras por
Dernócrito de Abdera, quando recomendou que a mulher não se exercite na

410

RESPONSABILIDADE CIVIL NA RELAÇÃO PATERNO-FILIAL

palavra, porque isso é coisa perigosa, ou que ser governado por uma mulher é,
para
o homem, a suprema violência.3
Esse argumento pretensamente naturalista de que a mulher é infe-
rior ao homem hoje nos assusta com sua brutalidade? Pois foi o principal
argumento utilizado em quase toda a história da humanidade para tentar
justificar o poder patriarcal ou masculista4 sobre as mulheres. É esse o
principal argumento utilizado hoje em dia para justificar a violência
doméstica contra as mulheres e meninas no Brasil, assim como a violên-
cia generalizada contra as mulheres e meninas em regimes fundamentalis-
tas como o do Taleban, que por uma certa e infeliz contingência tem sido
constantemente focado e criticado em nossos dias.
Numa palavra, o argumento da debilidade ou incapacidade natural
da mulher é o argumento mais utilizado para tentar justificar a autoridade
do homem em relação à mulher dentro da estrutura familiar, ao mesmo
tempo que a dependência da mulher em relação ao homem, nessa mesma
estrutura.
O nosso tema aqui não é, diretamente, essa relação patriarcalista
entre homens e mulheres, entre maridos e esposas, entre pais e filhas, e
por isso não é o caso de levar adiante a análise e a crítica dessa concepção
irracional que sempre insiste em se manifestar até hoje na concepção dos
papéis do homem e da mulher na família.
Mas é fundamental que tenhamos começado por apontá-la, pois ela
é a base para aquela outra relação que constitui, aqui, o nosso tema
principal: a relação entre pais e filhos.
O que a história mostra, e as histórias do pensamento e das
institui-
ções mostram também, é que, se a relação entre homens e mulheres, em
família, foi sempre baseada numa concepção naturalista de dependência
e subordinação da mulher, com muito mais raZão será apontada uma depen-
dência e subordinação dos filhos em relação aos pais.
Se a própria subordin’ação da mulher era vista como necessária,
mesmo sendo a mulher um indivíduo adulto e experiente, o que dizer
então, e sempre, de pessoas que tinham pouca experiência ou não tinham
experiência nenhuma? Pessoas que não tinham condições de se mante-
3 Respectivamente, fragmentos 110 e 111 dos ditos de Democrito.
4 A expressao maj-cu/ista, em lugar de machista, se deve a Marilena Chauí, em
Repressão sexual, essa

nossa (des,)conhedda.

411

GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA

rem sozinhas? Dir-se-á não apenas que dependiam muito mais dos adul-
tos na relação familiar, mas, conseqüentemente, que deviam, na mesma
proporção, muito mais obediência.
Se a família, nessa concepção clássica e reiteradamente patriarcal,
foi tida como uma relação de poder praticamente despótico, cujo pater era
o detentor exclusivo ou principal de todo o poder de decisão quanto a
liberdade e o destino dos integrantes da família, então os filhos estive-
ram, certamente, numa posição muito próxima à escravidão: sua depen-
dência física, material e moral foi eternamente a causa do seu dever
incessante de obediencia.
Se assim é, o que dizer, então, de uma concepção de família que a
vê como uma associação daqueles que não podem deixar de estar unidos
(Aristóteles), ao mesmo tempo em que o homem é, naturalmente, o cabeça de
sua família (cultura grega, teologia judaico-cristã, direito romano...)?
Nessa associação, o elo e o índice dos deveres não se indicam pelo
amor, não se matizam pela recíproca generosidade, não se caracterizam
pela mútua proteção, mas sim se realizam por meio da dominação. E se
trata de dominação porque, na concepção patriarcal clássica, jamais
haverá um espaço para que a mulher e os filhos assumam, contra a
vontade do pai, o posto que lhes deveria corresponder.
O correr histórico desnudará a certeza de que, para vislumbrar a
igualdade de direitos entre homem e mulher — e também entre pais e
filhos — na condução da família, serão necessários milênios.
Mas esse longo tempo, necessário certamente para a concepção
dessa igualdade de direitos, de certa forma seria necessário, também, para
a concretude da proyria responsabilidade paterna como um dever dos pais, em
lugar de um poder dos pais.
A idéia de responsabilidade paterna que existe hoje não encontra
grandes referências nas concepções antigas de natureza humana e de
família. É verdade que o mundo antigo concebeu deveres dos pais, dos
chefes de família; mas a concepção de responsabilidades tiris é muito mais
recente. Por quê? Porque, se a simples responsabilidade envolvida no
dever de assistência é classicamente determinada pelo poder do pai sobre
sua família, a responsabilidade envolvida nos danos decorrentes da má gestão
dessa
chefia de família não decorre mais do arbítrio desse mesmo pai de família.
Vale dizer: na concepção antiga e tradicional de família, o pater tinha
obrigações, mas tinha também poder suficiente para arbitrar quais seriam
essas obrigações, já que era senhor de suas mulheres e de seus filhos.

412

RESPONSABILIDADE CIVIL NA RELAÇÃO PATERNO-FILIAL


Ao contrário, em concepções mais recentes de família—e que
remontam, no máximo, ao início do período moderno — os pais de família
têm certos deveres que independem do seu arbítrio, porque agora quem
os determina é o Estado.

3 A CONCEPÇÃO JUSNATURALISTA DE FAMÍLIA


E A DISTINTA VISUALIZAÇÃO DO PÁTRIO PODER

A partir do Renascimento e da modernidade, ser chefe de família


continuou significando deter um poder privilegiado e amplo, mas que já
não é mais um poder superior à capacidade — cada vez mais visível — dos
outros integrantes da família. A modernidade abre espaço para uma
transformação lenta, mas radical, na concepção de família, já que investe
pela primeira vez (especialmente no âmbito do jusnaturalismo) na idéia
de igualdade entre homem e mulher quanto à capacidade para chefiar a
família.
Quem mostra isso com muita ênfase desde a década de 1970 é um
dos maiores historiadores do jusnaturalismo, A//red Dufour. Num ótimo
estudo publicado originalmente em 1975, mas retomado e desenvolvido
anos mais tarde, denominado Autoridade marital e autoridade paterna na
escola do direito natural moderno,5 Dufour mostra que uma das maiores
contribuições do jusnaturalismo foi inovar na concepção dos direitos
entre os integrantes da família.
Neste estudo, Dufour mostra que tanto a relação entre homem e
mulher recebeu inovações importantes no ambiente jusnaturalista como
também as recebeu a relação entre pais e filhos, ainda que em menor
medida. No que diz respeito à relação entre homens e mulheres, autores
como John Loc/ee no século XVII, mas também como Christian Wo!~e seu
discípulo Daniel Nettelbladt no século XVIII, investiram na idéia de que a
mulher, como o homem, detém uma autoridade natural sobre os filhos, e
efetivamente equivalente à do homem.
No que respeitasse, pois, à autoridade sobre~os filhos, a mulher
teria os mesmos direitos que o homem, e por razões naturais diferentes

5 DUFOUR, A. Autorité maritale et autorité paternetle dans l’école du droit


naturel moderne.

Archives de phi/osophie da droit, t. 20, Paris: Sirey, 1975.

413

G~SELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA

daquelas que eram alegadas por Aristóteles ou por toda a tradição medie-
val cristã: a mulher, como o homem, é causa da existência dos filhos, e
isso torna a sua autoridade natural. Esta ljgica é menos restritiva do que a
concepção anterior, mas é ainda, sem dúvida, um reconhecimento tímido
do potencial racional da mulher, já que ela não é desenhada, ainda, como
uma possível autoridade equivalente à de seu próprio marido.
No que respeita à relação paterno-filial, por outra parte, nota-se
que as mudanças serão também visíveis, embora se mostrem menores
do que a relativa equalização de direitos ou de autoridade entre homem e
mulher. Todavia, apesar do seu menor peso, dar-se-á igualmente, nesta
circunstância relacional, uma mudança suficiente para caracterizar, en-
fim, a concepção da relação entre pais e filhos como uma relação na qual
sempre haverá uma responsabilidade dos pais em relação ás necessidades dos
filhos, a ponto de se poder dizer que é aí que nasce, propriamente, uma
concepção articulada de responsabilidade dvii na relação paterno-filia!
Esta interferência do jusnaturalismo moderno na reformulação da
concepção em tela, ocorrida nos séculos XVII e XVIII, fez com que se
realizasse, aos poucos, a noção propriamente jurídica de responsabilidade —
que se desenvolve até se tornar responsabilidade dti4 no início do século XIX —
e também porque é aí, na modernidade, que a condição jurídica dos filhos
dentro da família passa a ser apresentada segundo critérios que se preten-
dem racionais ou científicos, para além dos antigos critérios do costume.
É certo que esta concepção jusnaturalista, assim como traçada,
guarda uma grande distância com respeito à concepção contemporânea
ou pós-moderna. Contudo, penso que dedicar uma certa atenção à ma-
neira como os autores modernos trabalharam o assunto pode dizer muito
à contemporaneidade, quando somos convidados a considerar a família
uma entidade real, concreta, cuja significação e cujas necessidades talvez
não estejam mais definidas unicamente pela lei ou pelo arbítrio do juiz.

4 O DESAFIO DA MODERNIDADE PARA DEMONSTRAR,


RACIONALMENTE, OS FUNDAMENTOS
DA AUTORIDADE E DA DEPENDÊNCIA
ENTRE OS SEUS COMPONENTES

Ao tratar da família, os autores modernos tinham, então, o desafio


de demonstrar racionalmente quais os fundamentos da autoridade e da

414

RESPONSABILIDADE CIVIL NA RELAÇÃO PATERNO-FILIAL

dependência entre os seus componentes. E claro que o tema desta


autoridade em família era (como sempre é) um princípio corrente; mas,
por mais consensual que fosse a idéia de autoridade marital e paterna, no
plano da teoria jurídica havia sempre a necessidade de evidenciar os seus
fundamentos. Um dos paradoxos originados dessa tarefa, todavia, foi a
revelação, por vezes, de que uma certa prática por quase todos aceita não
tinha fundamentos tão racionais, com o se poderia imaginar.
Qual efetivamente seria a razão e o fundamento da existência
perenizada de um pátrio poder, a significar uma autoridade dos pais sobre
os filhos, garantida pelo Estado, e que permite àqueles determinar a vida
destes? O que é que, enfim, impulsiona o Estado a conceder e garantir
um tal poder?
A argumentação original é, novamente, a que se aperfeiçoa na
noção da natureza.
Os filhos vêm ao mundo na dependência completa dos pais, e
assim permanecem enquanto não se tornam, eles mesmos, adultos ou
emancipados. A dependência natural é tão certa e inegável que sequer
pode ser recusada pelos pais. Perfeitamente compreensível e aceitável.
Mas a questão que insiste em não calar, e que decorre desta singela
verdade, versa sobre a seguinte dúvida: qual seria a ongem da autoridade dos
pais? Ou, em outros termos, por que a dependência dos filhos equivale a uma
dominação por parte dos pais, a uma autoridade destes sobre aqueles, enfim?
O pátrio poder, justamente, não é um poder acidental, involun-
tário. Ele é exercido pelos pais como dominação sobre os filhos. Já que é
uma dominação, talvez o pátrio poder não envolva nenhum componente
afetivo. Ao menos, nenhum componente positivamente afetivo, como a
generosidade com respeito aos filhos.
Ao contrário, talvez o seu sentido seja sempre, ou prioritariamente,
negativo, no sentido de um aproveitamento ou “usufruto” dos filhos, um
exercício desenvolvido — talvez — mais em benefício dos próprios pais do
que para a alegria ou proveito dos filhos. Por que isso? Porque, de ponta
a ponta, na relação entre pais e filhos simbolizada pelo pátrio poder, os
filhos não têm poder nenhum.
A idéia de pátrio poder, assim, pressupõe algo semelhante à antiga
concepção da subordinação da mulher ao homem: ela é devida segundo a
natureza. Ela é devida porque a parte dominada na relação é mais fraca, é
mais débil... Numa palavra, é dependente da outra.

415

GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA

Talvez.
Mas o que causa esta dependência, de fato? A natureza, como se
fosse uma condição sem conserto ou mudança? Ou as circunstâncias, como
se fosse uma condição determinada unicamente pela maior força do
dominador?
Se a reflexão nos fizer passear os olhos pela história da condição
feminina, facilmente se observará que a causa da dependência reside
exatamente na segunda opção: o que historicamente determinou, às
mulheres, a ausência de direitos e a submissão ao patriarcado foi uma
circunstância de imposição pela força, reiterada pelos costumes e pelas
instituições, ao mesmo tempo que endossada pelo próprio direito.
Desde a Antigüidade, o homem é caput de sua mulher e das mulhe-
res de sua família. Não porque tenha sido um desejo das mulheres. Mas
elas sempre viveram em um mundo dominado por instituições patriar-
cais, cuja estrutura não permitia a própria modificação.
O mesmo pode ser descrito para a situação dos filhos.
Desde sempre, e com mais forte razão, os pais — mas principalmente
o pai — são caput dos infantes. Em parte, por causa de uma concreta
dependência dos filhos, que não têm nem forças, nem meios, nem princi-
palmente experiência para emancipar-se na vida. Mas, em parte porque a
família foi sempre constituída como um domínio particular de quem o
instaurou. O círculo familiar, no qual o chefe de família é senhor dos
demais membros, funciona como uma monarquia particular, como bem
lembraria Cesare Beccaria, no capítulo 26 de seu tratado Dos delitos e das
penas.
A definição tradicional e jurídica de família, então, e por todos os
motivos, está muito longe da definição de uma relação afetiva. Ela define
diretamente uma espécie muito particular de domínio e dominação.
Na família marcada pelo pátrio poder, como compreender, assim,
algum fundamento natural ou racional para a responsabilidade dos pais diante dos
filhos?
Se esta responsabilidade, desde o início, diz respeito a uma depen-
dência dos filhos em relação aos pais, então ela é determinada mais pelos
filhos do que pelos pais?
Ou determinada mais pelo Estado do que pelos filhos?
Num ou noutro caso, n5o é, certamente, uma responsabilidade
determinada pelos próprios pais, porque não cabe a eles decidir a sua
validade ou não. Se lhes coubesse, não seria, então, responsabilidade.
Seria assunção volitiva de obrigação.

416
RESPONSABILIDADE CIVIL NA RELAÇÃO PATERNO-FILIAL

Há, concretamente, uma condição de dependência dos filhos em


relação aos pais que é, sim, uma dependência natural, em dois sentidos:
primeiro, porque os pais são causa dos filhos; segundo, porque os filhos,
para se manterem, precisam do auxílio dos adultos; e como só existem
porque seus pais os deram à existência, são estes que devem ser encarre-
gados da sua subsistência.
A obrigação primeira dos pais em relação aos filhos é, certamente,
a transmissão da cultura. Lévi-Strauss esclarece que, para que se passe da
natureza (os meros impulsos biológicos, nossa parte mais animal) para a
cultura (o humano, o criado), para que se passe do individual para o
social, são necessários três interditos básicos: canibalismo, parricídio e
incesto. Dada a condição humana de indefensabilidade, para que os
filhos sobrevivam, as suas necessidades vitais primeiras serão satisfeitas
pela mãe por um período relativamente prolongado em relação às outras
espécies animais.
Os filhos, assim, sã o um encargo natural trazido pela união dos pais:
o nascimento dos filhos obriga os pais a manterem os próprios filhos,
como se os filhos fossem, de certa forma, um a culpa deles próprios, que
não incumbe ao Estado assumir. Ou seja, mesmo nos termos em que os
filhos dependem dos pais para sobreviver e se desenvolver, não cabe, à
luz do viés da Antigüidade que está em foco, tentar enxergar, aí, nenhu-
ma relação afetiva.
Se ela ocorrer também, tanto melhor, é um excedente. Aos olhos
do Estado, a relação entre pais e filhos é a de uma sociedade causada por
vontades completamente particulares, que não têm poder nem legitimi-
dade para transferir sua causalidade ao Estado, se este não o desejar.
Porque causam os filhos, os pais causam, conjuntamente, todos os gastos
envolvidos na sua manutenção e desenvolvimento.
Se assim é, raciocine-se: por qual motivo o Estado ou outra entida-
de que não os próprios pais poderia ou deveria ser considerado co-
responsável nessa criação? Se — e somente se — considerarmos que por
nenhum motivo, então, de fato, a relação paterno-filial pode ser avaliada
como uma relação de um senhor com seus projrios bens. Apenas isso.
Assim entendida, contudo, a relação paterno-filial não envolve, é
claro, o poder paterno de decidir pela vida ou morte dos filhos (isto era
coisa dos déspotas antigos), mas envolve, sim, uma precedência na determi-
nação externa da vida dos filhos.

417

GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA

Quem deve decidir o destino e as preferências dos filhos, seria o


caso de se perguntar — o Estado ou os pais? Ou, ao menos, quem tem
precedência nessa decisão — o Estado ou os pais? Não importa qual seja a
resposta que se dê, se a opção for por um dos dois — o Estado ou os pais —
se estará, com isso, aceitando a idéia de que os filhos são coisa...
Na verdade, saindo enfim desse plano que concebe a autoridade
paterna como pátrio poder, encontra-se o verdadeiro desafio de definir
quem deve ter precedência para decidir sobre os destinos da criança ou
do jovem atrelado, ainda, à vida em família.
Sem dúvida, a essência da pós-modernidade responde e estampa a
concepção contemporânea mundializada, ao menos em sociedades asse-
melhadas à nossa: é a pro[prü~ criança ou jovem, sempre, que deve ter
precedência
na determinação do seu destino. Sempre. Ainda que esteja sob o pátrio poder,
ou sob o poder familiar, como prefere a nova Lei Civil brasileira,6 ou
ainda que esteja sob a dependência dos pais ou do Estado.
Pais e Estado — assim como toda a sociedade, afinal — não podem,
em momento nenhum, tratar a criança como coisa só pelo fato de ser ela
sem experiência ou sem atividade produtiva, sem maturidade espiritual
ou sem autonomia material. A criança, apesar de seu estado de extrema e
concreta dependência, é um ser humano como qualquer outro, é um ser
desejante e emotivo como qualquer outro, que sente dor diante da
crueldade alheia e revolta por não lhe ser concedida a liberdade que é
capaz de administrar sozinha. E é por ser dotada desse desejo e dessa
necessidade que a criança, enfim, é dotada de dignidade e assim deve ser
respeitada. Não respeitar essas necessidades e negar a relevância do
desejo é tratar a criança como coisa, é efetivamente ser violento com ela,
o que afasta, em definitivo, qualquer relação ética com a criança.7
Se é o caso de pensar a responsabilidade na relação entre pais e
filhos, vale a pena pensá-la apenas pelo viés do direito ou é o caso de
pensá-la a partir especialmente da ética? E o caso de pensá-la em ambos
os planos, necessariamente, inclusive porque nenhum deles é válido sem o
outro, na consideração da responsabilidade.

6 A este respeito, leia-se os bem talhados capítulos Poderfamiliar, de Paulo


Luiz Netto Lobo, e

Parentesco e filiação, de Rosana Fachin, ambos contidos na obra coletiva


coordenada por

Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Bereoice Dias, denominada Direito de família e


o novo Códzgo

Civil. (Belo Horizonte: Dei Rey, 2001).

7 ANDRADE, F. D. “Sobre ética e ética jurídica”,


<http://sites.uol.com.br/grus/eej.htm>

418

RESPONSABILIDADE CIVIL NA RELAÇÃO PATERNO-FILIAL

Qualquer que seja o tema proposto, a respeito da responsabilidade,


ele será um tema tanto jurídico quanto ético. Numa perspectiva ética, como
fica essa responsabilidade? Ela não pode, de forma alguma, negar valida-
de ao desejo da criança. O contrário demonstrará a vida em família como
uma relação de violência, justamente porque é uma relação de neutrali-
zação e de dominação apenas, o que é muito bem mostrado, entre outros
autores, por Michel Foucault~ em seus vários estudos sobre as relações de
poder, mas especialmente a Microfísica do poder e, mais ainda, na sua última
obra, a História da sexualidade.t
Importante também é verificar que as considerações acerca da
responsabilidade na relação entre pais e filhos não devem se reduzir ao
fato de se averiguar quais são as obrigações que já existem, ou que
decorrem desta relação por sua pro[pria condição e estrutura natural, nem de
se averiguar quais são os meios de compensação de danos na má gestão dessa
autoridade paterna, por vez patriarcal.
É claro que envolve estes aspectos também, mas de forma alguma
deve se restringir a eles, pois se as considerações ficarem restritas a essa
perspectiva técnica, talvez não se ampliem satisfatoriamente os horizon-
tes. Talvez seja necessário — e até imprescindível — ir a um ponto outro,
de estranha inversão, e verificar que é preciso conhecer o que há, nos filhos,
que
determina a autoridade dos pais.
Questão muito curiosa, essa, porque parece inverter a própria idéia
de autoridade. Afinal, se alguém tem autoridade sobre um outro, que coisa
mais extravagante haveria do que a idéia de que a autoridade é medida por
quem está a ela subordinado?
De fato, a questão é extravagante.
Mas será que pode ser garantido algum resultado positivo à questão
oposta, que é mesmo a questão clássica, de saber qual é o poder que a
autoridade tem por sua pr4pria vontade ou potência? Ao que parece, ela
sempre foi útil para conceber a relação dos pais com os filhos como um
pátrio podes como uma relação de dominação dos filhos pelos pais. E sendo
apenas isso, os benefícios ou as garantias desta relação, para os filhos, são
mais produto da sorte do que das necessidades dos filhos. Ou não?

8 Análise do assunto se encontra em: ANDRADE, F. D. Filosofia do direito, parte


IV (“Direito e

justiça”), previsto para 2002.

419

GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA

Deixo essa questão em aberto, porque o mais importante, segundo


me parece. é o enfrentamento da outra questão: o que há, nos filhos, que
determina a autoridade dos pais?

5 OS CRITÉRIOS PARA A DEFINIÇÃO DA AUTORIDADE


E, CONSEQUENTEMENTE, DA RESPONSABILIDADE
PATERNO-FILIAL, SOB O ENFOQUE DO
JUSNATURALISMO MODERNO: O FUNDAMENTO,
A TITULARIDADE E A EXTENSÃO

Esta questão é, de certa forma, esboçada pelo jusnaturalismo,


como mostra Alfred Dufour, no estudo antes mencionado, sendo certo
que a partir de então ocorreram algumas inovações de peso na concepção
jurídica da relação entre pais e filhos.
Pela primeira vez, provavelmente, apareceu no pensamento jurídi-
co moderno a idéia de que os filhos não são propriedade dos pais, ainda que
estejam necessariamente sob sua custódia e autoridade. Não há, entre
esses autores do pensamento jurídico moderno, um perfeito consenso em
todos os aspectos, mas há pontos em comum que permitem, imagino,
uma visão sistemática do conjunto.
O que Dufour mostra em seu estudo é que há três critérios distintos
para a definição da autoridade paterna, todos inovadores no sentido de
superarem a antiga concepção de que a autoridade paterna é algo
inquestionável, ou decididamente arbitrário. Esses três critérios, por terem
uma significação moderna, podem soar estranhos à compreensão contemporâ-
nea, mas contêm elementos únicos para que a mesma autoridade paterna, e
a responsabilidade nessa relação, seja repensada hoje em dia. Os critérios
para a definição dessa autoridade, e conseqüentemente das condições da
sua responsabilidade, são: o fundamento; a titularidade; a extensão.
A respeito do critério relativo ao fundamento da autoridade paterna,
há três formas de expressá-la, segundo o jusnaturalismo moderno: uma
fundamentação hierárquica, uma fundamentação convencionalista e uma
fundamentação funcional.
A fundamentação hierárquica lembra, em parte, as concepções antigas
e consiste na concepção de que a autoridade dos pais sobre os filhos no quadro
da sociedade familiar tem como fundamento a natureza. Essa é a posição,

420

RESPONSABILIDADE CIVIL NA RELAÇÃO PATERNO-FILIAL

por exemplo, de Hugo Grotius (autor do tratado Do direito de guerra e depa~,,


de 1625), que considera que os pais, por gerarem os filhos, têm direito
sobre suas pessoas como quem tem direitos sobre qualquer coisa de que
seja o criador. É, na verdade, a primeira das concepções da autoridade
paterna desenvolvida dentro do jusnaturalismo e será, em conseqüência,
muito combatida mesmo dentro de seus domínios, especialmente porque
carrega ainda algo das concepções pré-jus-naturalistas.
Mas ela é inovadora na medida em que coloca como base para a
concepção da autoridade a necessidade de um critério que seja racional. Para
Crotius, esse critério racional é a natureza, mas a natureza que ele ve e
semelhante à que a teologia via quando analisava a relação entre o
homem e Deus: já que Deus é o criador dos homens, os homens são como
objetos que pertencem a Deus; identicamente, já que os filhos são
criação original dos pais, são como que objetos que lhes pertencem, ou
cuja liberdade depende diretamente dos pais.
A linha jusnaturalista de pensamento manterá, nos dois séculos
seguintes, a idéia de natureza como base para se pensar a liberdade e os
direitos; mas trabalhará uma outra idéia de natureza, ou verá, a partir da
mesma natureza, outras necessidades e outros direitos, seja para os pais, seja
para os filhos.
A /undarnentação convencionalista consiste numa idéia que se asseme-
lha muito à concepção jusnaturalista do contrato social, e está presente,
por exemplo, no Leviatà (1651) de Hobbes da mesma forma como a vida
em sociedade só existe porque os cidadãos consentem com sua existên-
cia, a vida em família também só existe porque os filhos assim o consentem.
Mesmo
que a família seja uma associação onde há uma certa relação de poder,
não à toa muito assemelhada com a relação que um monarca tem com
seus súditos, o que ocorre é que esse poder só existe porque os súditos,
isto é, os filhos, o aceitam.
A idéia — ainda que bastante curiosa — é reveladora de um certo poder
por parte dos filhos, coisa que talvez não se visse em Grotius e que
certamente não se via antes do jusnaturalismo. E uma ousadia gigantes-
ca, em tcrmos teóricos, conceber que há algo na vontade dos filhos que
determina o poder dos próprios pais, ainda mais porque se trata de algo
que não está sob o poder dos pais: a razão dos filhos, a vontade dos filhos.
Os pais, de fato, podem obrigar as ações dos filhos, mas não podem
obrigar sua vontade, seu desejo. Da mesma forma como é inútil legislar a

421
GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA

consciência na vida civil, na vida familiar essa tentativa também é


completamente inútil. Isso significa, do ponto de vista de Hobbes, que, se
a sociedade familiar está estabelecida (e ela certamente vem de fatores
naturais), é igualmente verdade que a sua continuidade e perpetuidade
depende diretamente do arbítrio de quem está abaixo do poder. Ora, este
é um modo de análise absolutamente novo na história do pensamento jurídico.
Na mesma linha, um outro autor do século XVII, Samuel Pufendo~f
em seu tratado Do direito de natureza e das gentes (1672), dirá que a
autoridade paterna é a autoridade mais antzga e a mais sagrada que se acha entre
os homens. Ou seja, o que marca a validade dessa autoridade é um valor
moral que Pufendoif atribui à autoridade paterna, porque, para ele, o sagrado
não é aquilo que decorre do divino, mas é aquilo que é tido como moralmente
válido.
É um passo que vai além da simples geração dos filhos como sendo
base para a autoridade paterna (como era em Grotius), porque, segundo
Pufindo~ o que determina a autoridade dos pais sobre os filhos não é a
simples geração, mas a semelhança: há validade na autoridade desde que
os filhos sejam semelhantes a nós e est~iam, como nós, igualmente dotados
daqueles
direitos naturais comuns a todos os homens.
Vale dizer, a autoridade paterna tem um fundamento natural que
envolve, agora, a moral. Num certo sentido, a autoridade depende, tam-
bém, dos filhos, porque ela só é válida na medida em que os pais
cumprem obrigações perante os filhos. Essas obrigações, se não são
impostas pela vontade dos filhos (como talvez fosse o caso em Hobbes),
ao menos são moralmente necessárias, e nenhuma autoridade pode ser
concebida se não houver, reclprocamente, o cumprimento das obrigações
por parte dos próprios pais.
Assim, segundo Pufendo~f a condição paterna envolve moralmente um
encargo, do qual os pais não têm como escapar moralmente (ainda que
possam dele escapar materialmente).
O que se extrai de Hobbes e de Pufendo~/ se tomados em conjunto, é
a revelação de que a paternidade, mesmo que envolva um poder sobre os
filhos, envolve necessariamente um dever quanto aos filhos. Não importa se
em função da vontade dos filhos (concepção de Hobbes) ou se em função
da moralidade da própria relação (como em Pufendoq’3.
Em qualquer caso, não está mais nas mãos dos pais, apenas, todo o
arbítrio sobre o valor dessa autoridade e a sua correspondente responsabi-
422

RESPONSABILIDADE CIVIL NA RELAÇÃO PATERNO-FILIAL

lidade. Essa idéia é extremamente reveladora, porque mostra a fragilidade a


que se pode expor a idéia de domínio dos filhos pelos pais. Esse domínio,
sempre que os filhos não o desejarem porque é violento, ou sempre que for
contrário à necessidade moral da relação, não pode ser legítimo.
Por seu turno, a fundamentação funcional consiste numa concepção
do final do jusnaturalismo que tenderá a ser continuada após o jusnatu-
ralismo moderno: ela considera que a sociedade familiar tem uma finali-
dade — o sustento e educação ou formação dos filhos — e que a autoridade é
válida em função de cumprir essa finalidade.
Se a finalidade é natural ou voluntária, pouco importa; o que
importa é que ela é irrecusável e que nenhuma família poderia ser
concebida sem que tivesse como finalidade conjunta a formação dos seus
integrantes. Na divisão de poderes e funções dentro da própria família,
aos pais cabe, como adultos e ainda como geradores, prover a formação
dos filhos, e a estes cabe obediência na medida em que recebem a
formação ou dependem dela.
Caso não mais dependam, todavia, seja da formação, seja dos pais
para receber a formação, nada mais depotestativo resta como elo para essa
estrutura familiar. Quem formula bases teóricas para uma tal concepção,
por exemplo, são jusnaturalistas do final do século XIX, como o inglês
John Locke, e outros do correr do século XVIII, como Christian Wo/ff
Thomasius, Burlamaqui e Barb~yrac.
Uma passagem de Loc/ee, nesse sentido, é esclarecedora:

“Os filhos, confesso, não nascem [em] estado pleno de igualda-


de, embora nasçam para ele. Quando vêm ao mundo, e por
algum tempo depois, seus pais têm sobre eles uma espécie de
domínio e jurisdição, mas apenas temporários. Os laços dessa
sujeição assemelham-se aos cueiros em que são envoltos e que
os sustentam durante a fraqueza da infância. Quando crescem, a
idade e a razão os vão afrouxando até caírem finalmente de
todo, deixando o homem à sua própria e livre disposição.”9

Talvez esta seja, dentre as concepções elementares do jusnaturalis-


mo em torno da relação paterno-filial, a mais próxima da contemporanei-
9 LOCKE, John. Se~gundo tratado sobre o governo civil, Sao Paulo: Vozes,
(s./d.), cap. VI, § 55.

423

GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA

dade, mas é importante notar o que ela ainda mantém de essencialmente


moderno: a relação de obediência e de autoridade se mantém na medida
em que se mantém, antes de tudo, a relação de segurança e formação.
O que há de novo e importante nessa concepção, buscando
compará-la, inclusive, com as demais que já eram esboçadas no século
XVII, é o fato de que ela diz algo radical: a relação entre pais e filhos deve
ser pensada em benefício, principalmente, dos filhos. E é a primeira vez
em que isso é dito. E é porque a relação entre pais e filhos deve ser
pensada sempre tendo em vista prioritariamente o benefício dos filhos
que aos pais cabe a educação deles, e a estes está legitimada a desobe-
diência em caso de irresponsabilidade ou incapacidade dos pais.

Além da concepção da autoridade paterna a respeito da sua funda-


mentação, há ainda as concepções a respeito da titularidade e a respeito
da extensão:
A respeito da titularidade, a vertente precípua de indagação quer
verificar quem é titular do pátrio poder — o pai ou a mãe? Com esta
questão, dá-se o retorno ao papel da mulher na família. Como aqui a
referência, ainda que temporariamente, está sendo o pensamento moder-
no, ou seja, os séculos XVII e XVIII, é claro que não se encontrará uma
defesa entusiasmada de uma igualdade de direitos para o homem e a
mulher no que respeita a esse título. Pelo contrário, para a maioria dos
pensadores modernos, o pai tem uma autoridade maior que a mae,
inclusive porque a mulher está sob sua autoridade, na mesma família.
Ainda assim, haveria uma defesa de igual titularidade entre homem
e mulher na direção da família, entre os modernos? Sim, houve e ela está,
por exemplo, em autores como John Loc/ee e Thomasitís, quer dizer, aqueles
mesmos autores que, diante da indagação sobre o fundamento da autori-
dade, fixaram-no na obrigação que têm os pais para com a educação dos
filhos. De modo semelhante, eles reconhecerão um igual direito entre o
pai e a mãe quanto à detenção da autoridade sobre os filhos, em função
justamente desse igual poder, ou igual obrigação, para educar.
É possível assim concluir, de uma forma curiosa, acerca da finali-
dade da autoridade dos pais: esta autoridade serve, segundo este pensa-
mento, para indicar a obrigação, dos pais ou de um dos pais, de prover a
educação dos filhos. É para isso que se forma a sociedade familiar e,
talvez mesmo, a sociedade conjugal. De forma que a titularidade de nada

424

RESPONSABILIDADE CIVIL NA RELAÇÃO PATERNO-FILIAL

vale se não for exercida como cumprimento de certas finalidades as


quais, segundo tais autores, são naturais tanto do ponto de vista dos
filhos quanto do ponto de vista dos pais. A educação, portanto, é o índice
principal tanto da autoridade quanto da responsabilidade dos pais, que
somente nessa hipótese se confundem evidentemente.
A respeito da extensão, como elemento identificador e qualificador
da autoridade paterna, caberia indagar: até onde e até quando ela se impõe
sobre os filhos?
E uma questão delicada, na medida em que envolve a concepção
dos filhos como sendo ou não propriedade dos pais. No pensamento
jusnaturalista, essa idéia tende a se enfraquecer pela primeira vez, mas é
ainda um referencial para sustentar a idéia de dependência dos filhos em
relação aos pais. Não importa qual seja a fundamentação da autoridade
paterna, ela sempre tem uma necessidade dejus4/icaçào racional
Mesmo no caso da idéia de uma fundamentação natural (que era a
concepção de Grotius), em que os pais têm autoridade simplesmente por
gerarem os filhos, já existe uma certa restrição do poder paterno, na medida
em que esse poder necessita, mesmo aí, abandonar o arbitrarismo.
Existe, no pensamento moderno, sempre a idéia de uma finalidade,
ou de uma necessidade, a governar a ação humana, e em especial a ação
potestativa. Isso vale diretamente para a autoridade paterna, na medida
em que o pai não pode ir contra as necessidades dos filhos, ou as finalida-
des coletivas dessa relação (como a educação).
Ora, mesmo no caso em que se considera, como em Grotius no
início do século XVII, que só o pai é titular do poder paterno e que este
lhe é devido tão-somente por ser genitor, isso ainda não é suficiente para
dar, a ele, direito de vida ou morte sobre os filhos. Essa restrição ao
arbítrio paterno é constante na figura do pai.
Assim, na definição do direito equivalente, ou seja, do que está em
poder do pai ou dos pais para arbitrar a respeito dos filhos, há uma
tendência nesse pensamento moderno a desenvolver a idéia de que podem
fazer o que não prejudicar a finalidade original da relação de família. Ou
seja, os pais podem fazer o que quiserem com os filhos e com seus os bens,
desde que não signifique isso uma diminuição de segurança dos próprios
filhos. Ao contrário, o que cabe aos pais em termos de segurança dos filhos
é justamente a sua formação em conjunto com a preservação de seus bens.
Isso quando não significar, como em Locke, que a própria formação envolve
ensinar aos filhos a preservar os próprios bens.

425
GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA

A extensão dessa autoridade dos pais equivale, portanto, a consi-


derar que a autoridade continua enquanto continua o processo de forma-
ção dos filhos. A partir do momento em que os filhos já são dotados de
experiência suficiente para se manterem sozinhos em suas próprias vidas,
cessa concretamente a missão original e natural dos pais com respeito à
sua formação e, também, com respeito à tutela dos seus bens.
Mas o resultado desse encerramento, em vez de significar uma
libertação de um poder opressivo, pode significar, como coroação de
toda a história familiar, a fundação de uma identidade entre pais forma-
dores e filhos já formados, equalizados agora não só em seus direitos
naturais, mas no que lhes cabe como direitos civis: ao final do processo
de autoridade paterna, de formação familiar, de dependência dos filhos
em relação aos pais, o que temos é uma outra associação, cujos laços
mais fortes que os laços determinados pela vida civil a todos os cidadãos
são justamente os laços do afeto, quando tais laços tenham tido a devida
oportunidade de se formarem, ao longo de todo esse percurso.

A história das concepções de autoridade paterna não começou no


pensamento moderno e não terminará com ele. E a história propriamente
dita da responsabilidade envolvida nessa autoridade, se aparece com
clareza nos modernos, tenderá a continuar.
De modo que seria possível estender essa história da concepção do
poder paterno, cada vez mais distinto da concepção clássica e mais ainda
da concepção antiga de pátrio poder, para os tempos atuais. Mas não é o
objetivo desta palestra.
A intenção desta referência aos modernos é encontrar, na história
do pensamento jurídico, uma fonte racional para se pensar a responsabi-
lidade paterna fora daqueles moldes que vinham, desde os gregos, fixan-
do a idéia de que os pais têm um poder equivalente à sua vontade ou seu
arbítrio, sem medidas estabelecidas seja pela natureza, seja pela moral,
seja pela razão, seja pelo desejo.
E a modernidade nos apresenta esta medida, certamente pela
primeira vez.
A autoridade paterna existe somente enquanto corresponde a uma
obrigação, obrigação fundamentalmente de prover o sustento e a forma-

426

RESPONSABILIDADE CIVIL NA RELAÇÃO PATERNO-FILIAL

ção; mas essa obrigação é definida cada vez mais pelas necessidades dos
filhos e cada vez menos pelos arbítrios dos pais ou do pai.
A grande prova de que os filhos deixam de ser coisas nas mãos
despóticas dos próprios pais é sua crescente liberdade para interferir na
determinação dos rumos de toda a família. Quando o mundo moderno se
conclui na passagem do século XVIII para o XIX, os filhos já tinham,
dentro do pensamento político e pedagógico, uma importância nunca
antes vista.
Ainda que a prática pedagógica e a prática social, assim como a
própria dogmática civilista, se demorem a absorver essas concepções,
elas são uma conquista estabelecida no interior da modernidade. Como
diz Alfred Dufour

“Ao substituir um universo de hierarquias naturais por um


universo de autoridades consentidas em favor de aplicação, no
domínio das ciências sócio-morais, do método das ciências
físicas e matemáticas, os teóricos do Direito natural moderno
não se contentaram em lançar as bases de uma nova ordem
moral e política emancipada da tutela da teológica.”’0

O que os filósofos jusnaturalistas causaram, com sua revolução


metodológica no tratamento do assunto, foi a necessidade de dar ao
pensamento em torno da autoridade e da responsabilidade paterna bases
exclusivamente racionais, bases necessariamente científicas. E com esse
pensamento moderno, enfim, que o cálculo e a definição dos papéis em
família exige ser pensado fora de modelos, mas unicamente dentro da
observação das relações humanas como elas concretamente se dão.
Tendo isso em vista, podemos passar para um outro registro, que é
o de considerar a validade dessa fundamentação racional da autoridade e
da responsabilidade paterna. A questão é válida desde que se mantenha
válido o princípio de que aos pais não cabe qualquer arbítrio contrário à
necessidade dos filhos. Essa é uma lição dos modernos que cabe direta-
mente a nós, hoje.
Retomemos algo que foi perguntado mais atrás: o que há, nos filhos,
que determina a autoridade dos pais?

10 DUFOUR, A. Op. cit., p. 124.

427

GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA

Essa questão é mais ousada do que parece à primeira vista, porque


pressupõe o questionamento de algo que o costume usa considerar
inquestionável, a autoridade paterna.
Ora, se os pais detêm alguma autoridade sobre os filhos, o que
determina a legitimidade das suas decisões?
Á luz dos modernos, poderíamos dizer que é o benefício dos filhos,
sempre. A julgar pelo que nos esclarece a filosofia jurídica moderna
jamais, não importa qual seja a fundamentação da autoridade, os pais
estão livres de atender às necessidades dos filhos.
Os pais que têm aquele poder quase absoluto sobre os filhos
porque são genitores e estão, na verdade, subordinados a uma necessida-
de da natureza inteira, que é a da preservação de todos os seus elementos
constituintes.
O direito quase divino dado aos pais, segundo Grotius, sobre seus
filhos (porque estes vieram daqueles) não significa, jamais, o direito de
retirar-lhes a vida. Pense-se nisto a partir do ponto de vista do filho. E
claro que não há nada na sua estrutura natural que peça a sua morte, a sua
própria destruição, o seu aprisionamento ou seu suplício. Mas tudo na
sua natureza pede proteção e orientação.
Exatamente como na vida civil. Não há nada no súdito ou no
cidadão que peça a extinção da sua liberdade. Ao contrário, a sua
natureza em sociedade pede liberdades, direitos, segurança da parte do
poder soberano.
Parece-me correto, então, dizer que a relação de obediência e
orientação só é válida na medida em que ofereça segurança aos atores ai
envolvidos, e prioritariamente aos que mais dependem dessa segurança,
na família, isto é, os filhos.
Talvez toda a autoridade dos pais possa, por isso mesmo, ser
reduzida a esse único princípio — sua potência, ou sua responsabilidade,
para garantir segurança aos filhos.
Essa redução, completamente legítima e reveladora do essencial,
dá à idéia de poder paterno um significado que retira qualquer pontifica-
ção negativa. Com ela, o poder paterno não desaparece, mas se torna uma
atividade voltada para o benefício do receptor, portanto para um benefi-
cio que é público e não privado. E essa publicidade do poder paterno,
dentro da sociedade familiar, que permite chamar a esse poder, na
verdade a essa generosidade, uma autoridade em certa medida.

428

RESPONSABILIDADE CIVIL NA RELAÇÃO PATERNO-FILIAL

Quando a autoridade se apresenta não como entidade castradora


ou opressora, mas formadora e protetora, a criança se vê continuada nos
próprios pais. Ao contrário, quando ela se vê explorada ou de alguma
forma neutralizada, o que ela vê não são os seus protetores, mas os seus
inimigos mais diretos.
O índice a determinar se a relação entre pais e filhos é uma relação
entre formadores mútuos ou entre inimigos mútuos é, especialmente, a
necessidade dos filhos.
Essa idéia não estaria, em contrapartida, dando aos filhos um
poder que eles não têm ou não deveriam ter? A saber: o poder de, pelo
próprio desejo, quando não pela própria birra, recusar a orientação e
proteção dos pais?
A idéia de natureza, de certa maneira, se preserva aí, sem, todavia,
deixar uma reserva para a violência agora pelo lado da parte mais fraca, ou
inferior, na antiga hierarquia.
Como diria Espinosa, a essência do homem é o desejo, e não há como
pretender eliminar o desejo em quem quer que seja, muito menos na
criança, que comumente vive em estado de hilaridade.
O perigo para qualquer ser humano em qualquer relação, e isso
vale para pais e filhos na relação de família,não é o desejo que se
manifesta por qualquer das partes, mas a violência que pode decorrer das
próprias ações. A violência é, por definição, a própria ação contrária à
natureza de algo ou de alguém. Se o desejo é natural, um ato violento não
decorre necessariamente do desejo humano, mas de uma compreensão
equivocada do que se deseja ou do que se necessita verdadeiramente.
Isso vale para qualquer relação humana, inclusive para as relações
de família: assim como não cabe aos pais serem violentos com os filhos,
nau cabe aos filhos serem violentos com os pais. O que não representar
violência, todavia, não representa perigo à natureza de cada uma das
partes, e portanto merece toda concessão, ou, para usarmos a palavra que
deve sempre estar presente, merece toda liberdade.

A responsabilidade dos pais consiste principalmente em dar opor-


tunidade ao desenvolvimento dos filhos, consiste em ajudá-los na cons-
trução da própria liberdade. Trata-se de uma inversão total, portanto, da

429
GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA

idéia antiga e maximamente patriarcal de pátrio poder. Aqui, a compreen-


são baseada no conhecimento racional da natureza dos integrantes de
uma família quer dizer que não há mais fundamento na prática da
coisificação familiar.
As relações de família, já que se dão no interior de uma sociedade
tendem a atravessar constantemente essa tensão que ora distancia, ora
aproxima, as relações de poder e as relações de afeto. Consideremos que
a relação em família não precise ser uma relação de poder, ainda que haja
quem considere isso impossível. Mas se ela não é uma relação de poder,
ou de dominação, o que ela é ou pode ser? Somente uma relação afetiva. Isso,
para o que entendemos por família, faz sentido, mas a concorrência entre
afeto e interesses familiares não é tão evidente quanto deveria, o que
exige, do civilista que se dedica hoje ao tema das relações de família, uma
atenção especial à condição dessas pequenas sociedades como ligações
mantidas nuclearmente pelo afeto.11
Conceber as famílias como associações determinadas pelo afeto
significa necessariamente recusar que sejam determinadas por uma rela-
ção de dominação ou poder.
Paralelamente, significa dar a devida atenção às necessidades dos
filhos em termos, justamente, de afeto e proteção. Poder-se-ia dizer, assim,
que uma vida familiar na qual os laços afetivos são atados por sentimentos
positivos, de alegria e amor recíprocos em vez de tristeza ou ódio recípro-
cos, é uma vida coletiva em que se estabelece não só a autoridade parental
e a orientação filial, como especialmente a liberdade paterno-filial
Uma vida familiar que, ao contrário, é marcada pelas relações de
ódio é claramente uma vida na qual se perdeu qualquer equilibrio afetivo,
porque já não se percebem, aí, identidades, semelhanças, generosidades.
Pior: concebe-se que alguma paz só pode ser conquistada se se impuser,
de qualquer das partes, uma tirania da opressão sobre a parte inimiga. Aí
já não se trata mais de responsabilidade numa relação paterno-filial, mas
de uma responsabilidade mais apropriada àquiio que Grotius chamava de
direito de guerra.

11 A propósito, é devidamente inovadora a contribuiçao de Silvana Maria


Carbonera: O papel

jurídico do afeto nas relações de família. lo: FACHIN, L. E. (Org.). Repensando


fundamentos do

direito civil brasileiro contemporãneo. Rio de Janeiro: Renovar, p. 273-315.

430

RESPONSABILIDADE CIVIL NA RELAÇÂO PATERNO-FILIAL

Que contribuição pode dar, assim, a filosofia, e especialmente a


filosofia moderna, para a consideração racional ou ética da responsabili-
dade nas relações de família? Diria que uma contribuição precisa e
espantosamente necessária hoje em dia: a reflexão sobre o sentido, nas
relações de família, dos laços afetivos como laços inquebrantáveis apesar
do próprio desaparecimento dos modelos tradicionais de família.
O que torna esses laços inquebrantáveis é mais que o fracasso ou a
natureza nefasta dos laços de poder e dominação, quando estes infestam
a concepção que uma família pode ter de si própria. Os laços afetivos são
inquebrantáveis porque, como mostrava já Pufendo~f sempre estiveram
na origem das relações de família, porque ela é o lugar natural dessa
prática da identidade entre os seus integrantes.
Seria, posteriormente, a excessiva carga institucional dada às rela-
ções familiares que voltaria a dificultar a compreensão da família como
campo de liberdade coletiva; mas, como o desejo de identidade e união é
mais forte do que o desejo de dominação e disputa, nenhuma autoridade
ou responsabilidade fora desse interesse exclusivo na proteção e na
formação dos filhos pode ser verdadeiramente válida.
E isso, principalmente, o que os modernos nos mostram a respeito
da responsabilidade nas relações de família: elas só são legítimas enquanto se
concentram no interesse pela formação e pela liberdade dos filhos.

6 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, F. D. Filosofia do direito, parte IV (“Direito e justiça”),


previsto para 2002.
“Sobre ética e ética jurídica”, <http://sites.uol.com.br/grus!
eej . htm>
CARBONERA, Silvana Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de
família. In: FACI-IIN, L. E. (Org.). Repensando fundamentos do direito
civil brasileiro contemporáneo. Rio de Janeiro: Renovar.
DINIZ, Maria Helena. Códzgo Civil anotado. São Paulo: Saraiva.
DUFOUR, A. Autorité maritale et autorité paternelle dans l’école du droit
naturel moderne. Archives de philosophie dii droit., t. 20, Paris: Sirey, 1975.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo dz~ São Paulo: Vozes, (s./d.),
cap. VI, § 55.

431

GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA

MELO, Albertino Daniel de. A responsabilidade civil pelo fato de outrem, nos
direitos francês e brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1972.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha; DIAS, Maria Berenice. Direito de família e o
novo Códzgo Civil Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
432

IMPASSES NA CONDIÇÃO DA GUARDA


E DA VISITAÇÃO - O PALCO DA DISCÓRDIA

Leila Maria Torraca de Brito


Doutora em Psicologia (PUC-RJ).
Professora Adjunta do Instituto de Psicologia
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

_________________ Sumário __________________

1. Introdução. 2. Conjugalidade e parentalidade — distinções


necessárias. 3. Flashes do cotidiano. 4. Mudanças de rumo.
5. Conclusões. 6. Referências bibliográficas.

1 INTRODUÇÃO

Visando à contribuição com o debate sobre o instituto da guarda,


pretendo, no presente trabalho, discutir questões relacionadas à guarda e à
visitação de filhos de pais separados, dispensando especial atenção ao
disposto no artigo 1.584 do novo texto do Código Civil brasileiro, aprova-
do recentemente no Congresso. Busco responder se as mudanças previstas
nesta legislação abarcam as transformações necessárias para acompanhar
as realidades e expectativas da família contemporânea.
Art. 1.584. Decretada a separação judicial ou o divórcio, sem
que haja entre as partes acordo quanto à guarda dos filhos,será
ela atribuída a quem revelar melhores condições de exercê-la.
Parágrafo único. Verificando que os filhos não devem permane-
cer sob a guarda do pai ou da mãe, o juiz deferirá a sua guarda à
pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, de

433

LEILA MARIA TQRRACA DE BRITO

preferência levando em conta o grau de parentesco e relação de


afinidade e afetividade, de acordo com o disposto na lei específica.

Para o exame da questão, privilegiar-se-á os dados coletados na


pesquisa Separação, divórcio e guarda de filhos — questões psicossociais
implicadas no
Direito de Família, partindo do entendimento de que a complexidade do
tema impõe a contribuição de diferentes disciplinas. Nesta pesquisa, de-
senvolvida junto ao Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ), procura-se responder, por meio de levantamento de
campo realizado em diversos municípios do estado, como o Direito de
Família brasileiro prevê e determina o exercício dos deveres parentais após
a separação conjugal, verificando como estão sendo seguidas as recomen-
dações da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989).
Objetiva-se, ainda, avaliar como estas determinações são apreendidas e
praticadas pelos genitores, retratando as dificuldades vivenciadas por pais
e mães em seus papéis de guardiães e visitantes.
Acredito que, a partir destes resultados, seja possível dar visibilida-
de aos impasses que se apresentam no contexto da guarda e da visitação,
fornecendo sugestões iniciais a serem incorporadas na nova legislação.

2 CONJUGALIDADE E PARENTALIDADE -
DISTINÇÕES NECESSÁRIAS

Observa-se que a grande influência do Direito Canônico na regula-


mentação das relações familiares conduziu ao entendimento de que, por
meio do casamento, marido e mulher seriam “uma só carne”, “unidos
para sempre”, transmitindo a idéia de um “casamento-fusão”, como
classifica The~y1 no estudo da família nuclear. Neste contexto, havia uma
chefia única, atribuída ao marido, quando das mulheres esperava-se a
equiparação entre a identidade feminina e a maternidade.
Atualmente, as mudanças na concepção de família conduziram à
compreensão de que o matrimônio reúne duas pessoas diferentes ligadas,
em bases igualitárias, pelo vínculo do casamento. Destaca-se que a

1 THERY, 1. L’énigme de l’égalité. Mariage et différence des sexes dans ~ la


recherche du

bonheur. Esprit, Paris, n. 252, p. 128-147, maio 1999.

434

IMPASSES NA CONDIÇÃO DA GUARDA E DA VISITAÇÃO - O PALCO DA DISCÓRDIA


indissolubilidade não se aplica mais à união conjugal, e sim à filiação,
sendo necessário manter a dupla inscrição desse sistema, ou seja, a
linhagem materna e paterna. Concorda-se com Legendre2 quanto à indica-
ção de que o vínculo de filiação e o exercício parental não podem depender
de critérios de negociação entre os pais, mas devem ser assegurados pela
legislação. É esta que oficializa perante a sociedade que “não é o real da
semente que conta, mas as leis ou os costumes que designam aquele que
será o genitor: a função de genitor é uma função social”, como esclarece
Hurstel)
Compreende-se que é o Estado, a partir da montagem ou da defini-
ção de leis e jurisprudências, que confere as categorias estruturais sobre a
parentalidade, fixando lugares deste exercício. Expõe Legendrë~ que,
quando alguém é delegado para representar um lugar, esta designação
reúne tanto significados psicológicos quanto jurídicos, reconhecendo que
o princípio genealógico é, em última instância, um princípio jurídico, e
não biológico.
Em conseqüência, tem sido freqüente a constatação de que as
disposições legais que definem questões relativas à atribuição de guarda
podem trazer sérias repercussões quanto ao exercício da parentalidade,
inclusive acarretando prejuízos na preservação dos vínculos de filiação.
Nesse sentido, pretende-se analisar, inicialmente, a imposição de escolha
daquele que reúna melhores condições para o exercício da guarda, con-
forme dispõe o artigo 1.584 do novo Código Civil.
O entendimento de que, em nome do interesse da criança, os filhos
devem permanecer com o genitor portador de melhor capacidade para
educá-los foi colocado em prática no decorrer das décadas de 1970 e
1980 em muitos países, sendo, posteriormente, desaconselhado, pelo
fato de que as mães, na grande maioria dos casos, çontinuavam com a
guarda dos filhos, permanecendo esporádica a convivência do filho com
o pai. No Direito de Família francês, por exemplo, o critério de interesse
da criança impôs-se quando do abandono da noção de falta conjugal
relacionada à atribuição de guarda. Em 1975, passou-se a confiar a

2 LEGENDRE, P. EI inestimahle ob~ftto de Ia transmisión. México: Siglo


Veintiuno, 1996.

3 HURSTEL, Françoise. La fonction paternelle, questions de théorie ou des bis à


la ioi. ln:

ANSALDI, J. et ali. L.epêre. Paris: Denoêl, 1989, p. 251-252.

4 LEGENDRE, P. EI ines/imahle ob~frto de Ia /ransrnisión. México: Sigbo


Veinriuno, 1996.

435

LEILA MARIA TORRACA DE BRITO

guarda àquele que reunisse melhores condições para exercê-la, segundo o


melhor interesse da criança, critério que substituiu a noção de culpa. Em
1987, através da denominada Loi Ma/huret, o juiz poderia decidir pela
autoridade parental exercida em conjunto, após o divórcio. Finalmente,
em 1993, a legislação aboliu o termo guarda, estabelecendo o exercicio
conjunto da autoridade parental, para cumprir as disposições da Conven-
ção Internacional sobre os Direitos da Criança, que prioriza o direito
desta manter contato estreito com seus genitores.
Constata-se que várias foram as tentativas empreendidas para o
estabelecimento de critérios de avaliação que indicassem o adulto que
deveria ser o responsável pela guarda da criança, derivados principalmen-
te do conhecimento das ciências humanas.5 Laudos, pareceres, perícias
técnicas eram confeccionados, em função da escolha, imposta, da guarda
monoparental. Foi neste momento que se pensou na possibilidade de
listar as qualidades consideradas essenciais para a manutenção da guarda,
quando habilidades passaram a ser exaustivamente avaliadas e medidas
por meio de distintos instrumentos.
Com essa visão equiparava-se a separação conjugal à parental:
ocorrendo a primeira, a segunda tornava-se inevitável; a determinação de
quem iria permanecer com a criança era apenas uma questão de escolha.
Caso o pai, a quem normalmente atribui-se a posição de visitante, quisesse
candidatar-se a guardião, muitas vezes por temor do afastamento dos filhos,
teria de provar que era mais apto a ocupar esse posto, o que, invariavelmen-
te, implicava a desqualificação da ex-esposa na condição de mãe. Res-
tringia-se o interesse da criança à alternativa parental, desprezando a
possibilidade de que tanto o pai quanto a mãe devem ser incentivados a
assumir seu lugar no desenvolvimento infantil. Os prejuízos emocionais
que essa verdadeira batalha acarretava a todos envolvidos eram vistos
como secundários, menosprezados em função da premência da escolha.
Também, exaustivamente, já foram apresentados trabalhos e pes-
quisas que reafirmam o despropósito da procura do melhor genitor para
permanecer com a prole.6 A disputa pela guarda, fomentada ou prevista

5 BRITO, Leiia. De competencias e convlvenclas: caminhos da psicologia junto ao


direito de familia.

In: BRITO, Leiia. (Org.). Temas de psicologia júrídica. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 1999.

6 VILLENEUVE, Catherine. Choisir sim divorce. Beigique: Marabout, 1994.


WALLERSTEIN,

Judith; KELLY,Joan. Sobrevivendo á separarão: como pais e filhos lidam com o


divórcio. Porto

Alegre: Artmed, 1998.

436

IMPASSES NA CONDIÇÃO DA GUARDA E DA VISITAÇÃO — O PALCO DA DISCÓRDIA

na legislação, contribui fatalmente para os enfrentamentos entre os


genitores, além de direcionar o trabalho de seus representantes legais
para a tarefa de compilação de provas que desqualifiquem a outra parte.
A encenação sobre competências e as depreciações de comportamentos e
atitudes tornam-se cena constante, quando em um “teatro de máscaras~’
testemunhas, fatos presenciados e doenças de crianças são usados como
provas e atestados da incompetência de um dos genitores para permane-
cer com a guarda.
Conforme observação de Ramos e Shaine:7

“Os dois trocam acusações graves de incompetência no cumpri-


mento das funções patetna e materna, baseando-se em fatos
que, em outro contexto, seriam irrelevantes. Os detalhes do
cotidiano de qualquer família (como a falta do corte de unhas ou
o esquecimento do material escolar) são pinçados e magnifi-
cados sob uma lente de aumento”.

Muitas vezes, ganhar ou perder do “adversário” torna-se a preocu-


pação maior, quando a aniquilação do ex-cônjuge passa a ser perseguida
como sinônimo da vitória do duelo estabelecido.8 Após eleito o genitor
que reúna melhores condições, pode-se questionar como será classifica-
do o outro, já que numa díade a tendência é a de qualificação por extremos.
Menos adequado? Pior cuidador? E como será interpretada essa situação
pelos envolvidos na disputa? O que será explicado aos filhos? Foi decidi-
do que eu sou melhor e que seu pai não sabe cuidar de crianças?
A exigência de que se avalie quem apresenta melhores condições,
conforme dispõe a lei, contribui sobremaneira com o incremento de
tensões, angústias, hostilidades e agressividade entre as partes, com
repercussões nefastas à nova forma de relacionamento necessária a pais e
filhos após a separação. Arma-se o “palco da discórdia”, com cenário e
roteiro definidos, restando aos atores a interpretação dos papéis já esta-
belecidos, quando o protagonista e o coadjuvante serão escolhidos em

7 RAMOS, Madalena; SHAINF., Sidney. A família em litígio. lo: RAMOS, Madalena.


(Org.).
casal e]~msília como paciente. Sao Paulo: Escuta, 1994, p. 112.

8 BRITO, Lcila. .S’e-pa-ran-do: um estudo sobre a atuaçao de psicólogos nas


varas de família. Rio

de Janeiro: Relume-Dumarâ, 1993.

437

LEILA MARIA TORRACA DE BRITO

um concurso de habilidades. Despreza-se o fato de que está em jogo o


futuro e o desenvolvimento de filhos comuns, colocados no lugar de
“pomo da discórdia” ou ainda levados a tomar partido de um dos pais.
Situações que podem ecoar na forma de sintomas, apresentados pelas
crianças, decorrentes de uma questão que não foi definida por elas, ou
seja, o término do casamento de seus pais.
Assim, cabe ressaltar que, no Brasil, a Lei 6.515/77, que “regula os
casos de dissolução conjugal e do casamento, seus efeitos e respectivos
processos, e dá outras providências”, ainda associa no art. 10 a noção de
culpa — falta grave que resulta na separação matrimonial — à de cuidado
dos filhos, correlação abolida em outros países. No entanto, vários
autores assinalam9 que a nossa jurisprudência remete a questão ao “melhor
interesse da criança”, definindo que os filhos devem permanecer com o
genitor portador de melhor capacidade para educá-los.
Se lembrarmos que o texto da Convenção Internacional sobre os
Direitos da Criança foi aprovado no Brasil em 1990 e que este recomenda
como um dos direitos da criança a possibilidade de ser educada por pai e
mãe, observa-se que, hoje, em matéria de guarda, pode-se: 1) argumentar
a respeito da culpabilidade na separação, 2) eleger o portador de melhor
capacidade ou, ainda, 3) evocar os direitos infanto-juvenis. Critérios que,
em outros países, foram se sucedendo, na medida em que se justificava a
inadequação dos que eram abolidos, conforme ocorreu na França.

3 FLASHES DO COTIDIANO

Perseguindo o objetivo de análise do artigo 1.584 do novo Código


Civil, considera-se importante destacar alguns resultados obtidos na
pesquisa Separação, divórcio e guarda defi/hos questões psicossociais impli-
cadas no direito de família, que tem dentre seus objetivos o de compreen-
der o comportamento e as expectativas de pais separados no que se refere
às questões que envolvem a guarda de seus filhos, ampliando o olhar,
também, para os relacionamentos mantidos entre pais e filhos após o rom-
pimento matrimonial. Nesta investigação de cunho qualitativo, optou-se

9 MALHEIROS, Fernando. Os laços conjugais e os novos rumos da família, lo:


CALLIGARIS,

C. et ali, O/aço conjugal Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994, p. 65-67.


WALD, Amoldo. Direito
de família. Sio Paulo: RT, 1985.

438

IMPASSES NA CONDIÇÃO DA GUARDA E DA VISITAÇÃO - O PALCO DA DISCÓRDIA

pela técnica de entrevista individual, com perguntas previamente elabo-


radas, visando à observação direta de atitudes, sentimentos e opiniões. A
coleta de dados foi realizada em diversos municípios do estado do Rio de
Janeiro.
Foi possível observar na pesquisa que, dos 22 pais e mães entrevis-
tados inicialmente, 17 haviam feito o acordo que denominavam “clássi-
co~’, ou seja, guarda com a mãe, cabendo ao pai visitas de 15 em 15 dias.
Relataram muitos pais o quanto é difícil separar as questões rela-
cionadas ao âmbito conjugal das que dizem respeito ao eixo parental no
contexto da separação. A raiva do ex-cônjuge, a mágoa, o desprezo ou a
incompreensão pela separação podem ter como conseqüência a imposi-
ç~o no distanciamento dos filhos. Muitas vezes, as pessoas não conse-
guem discernir o que é próprio do casal do que é referente à parentali-
dade, provavelmente porque a própria legislação, durante muito tempo,
contribuiu para esta conjunção.

“Na verdade não quero muita aproximação com minha ex-


mulher, por isso vejo muito pouco minha filha.” (pai)
“O relacionamento com os filhos piorou. Não deu mais atenção
nenhuma. Quis se vingar de mim nas crianças.” (mãe)
“Tenho muita mágoa, pois na minha cabeça eu fiz o filho
sozinha, ele me deixou por outra, logo, sou eu quem deve
decidir.” (mãe)

As maiores queixas apresentadas foram de pais visitantes que se


consideravam à margem do processo educativo dos filhos, reconhecendo
que as medidas arbitradas contribuem para a fragilização dos vínculos da
criança com o visitante. Alguns homens argumentavam que a ex-mulher
dificultava o relacionamento deles com as crianças. Muitas, inclusive,
n~o permitiam qualquer participação do ex-marido na educação infantil,
colocando-se como as únicas responsáveis pela transmissão de valores.
Assim, ao responderem como dividiam as tarefas educacionais
após a separação conjugal, foi comum observar respostas como:

“Não há divisão nenhuma, porque ela não deixa. Não há a


menor possibilidade dela permitir qualquer interferência minha.”
(expressa um pai)

439

LEILA MARIA TORRACA DE BRITO

ou

“sinto falta de tomar mais decisões quanto à educação do meu


filho e de ajudá-lo. As coisas chegam até mim resolvidas.”
(lamenta outro pai)

Entretanto, uma mãe visitante também apresentava queixas seme-


lhantes, indicando que esta parece ser uma situação criada pelos lugares
ocupados após a separação, e não por uma questão de gênero:

“Com o passar do tempo, o meu ‘ex’ foi cortando o meu contato


com as minhas filhas... Não participo de decisão alguma. E como
se não tivessem mãe.” (mãe-visitante).

Quando comparam suas atuais atribuições em relação aos filhos


com aquelas que possuíam quando ainda estavam casados, é corrente a
interpretação de que o genitor que não detém a guarda participa bem
menos da educação e do desenvolvimento dos filhos, enxergando a
visitação como uma limitação ao relacionamento.

“Eu pago o colégio e não recebo o boletim. Não tenho a menor


informação, ela me marginaliza. Fui ao colégio e pedi o boletim
e até agora nada.” (explica um pai)
“Fico sabendo de alguma coisa por amiguinhos, as mães da escola
delas; aniversário nunca participo porque ele não deixa.” (mãe)

Alegam que esse fato seria decorrente do entendimento de que


aquele que detém a guarda é quem será o legítimo responsável pela
educação da criança. A resposta dada por uma mãe a respeito das atribui-
ções dela e do ex-marido com os filhos, após o rompimento conjugal,
traduz perfeitamente essa compreensão: “A diversão ficou por conta
dele. A parte educacional sempre foi comigo.”
Entendimento corroborado por outra mãe que, da mesma forma,
explicou: “A parte da educação ficou comigo.”
O genitor visitante, muitas vezes, ocupava o posto de inimigo,
devendo ser afastado, e ressentia—se não só do distanciamento dos filhos,
mas também em relação ao seu núcleo familiar. Queixavam-se da as-

440

IMPASSES NA CONDIÇÃO DA GUARDA E DA VISITAÇÃO - O PALCO DA DISCÓRDIA

cendência e do domínio do guardião sobre a prole, fato que se estendia ao


impedindo de as crianças expressarem livremente seus sentimentos.
“Eles estão perdendo todo um outro lado: os outros primos, os
tios, os avós... Mas eles não se rebelam, são dominados pela
mãe.” (pai)
“Sinto medo no coração delas. Não agem de forma normal
quando encontro com elas e ele junto.” (mãe visitante)

Por outro lado, observou-se também guardiães com queixas de que o


ex-conjuge havia se afastado muito dos filhos. “Passou a não saber e não
participar de nada. Minha filha e ele levaram anos sem se falar.” (mãe).
Neste sentido, ao direcionar o estudo para o entendimento da
função simbólica do pai,1~ depreende-se que a dimensão da paternidade é
de suma importância para o desenvolvimento da subjetivação do ser
humano. Assim, é preciso que o campo social possa garantir a função
paterna; que o lugar do pai seja definido tanto quanto o da mãe, e que os
que assumem essa função possam ter voz e ação. Segundo Legendre,”
humanizar significa estar referido aos que lhe inscrevem na cultura. Cabe,
portanto, ao Judiciário assinalar para o sujeito que este não pode se
afastar do lugar que lhe é designado pelo Direito Civil da filiação, que lhe
impõe direitos e obrigações.
Das 15 mães entrevistadas, 11 assumiram que sentiam-se muito
sobrecarregadas após a separação conjugal, apesar de algumas reconhe-
cerem que esta era uma forma de manter o controle total sobre a edu-
cação da prole.

“É um peso muito grande, mas reconheço que parece que eu


gosto porque assim eu tenho o controle. Gosto de saber que o
filho é meu e sou eu quem resolve tudo.” (mãe)

Algumas colocavam no mesmo plano a sua independência e as


responsabilidades com os filhos, não fazendo distinção entre comporta-
mentos ou entre os interesses próprios e os que diziam respeito às crianças.

10 HURSTEL, Françoise. As novas fronteiras da paternidade. Sao Paulo: Papirus,


1999.

ii LEGENI)RE, P. Pouvoir généalogique de l’état. Autorité,


responsahi/itéparenta/c etprotection de
Ién/ant. Chronique Sociale, 1992, p. 365-373. Collection Synthêse.

441

LEILA MARIA TORRACA DE BRITO

“Eu sempre me responsabilizei por tudo, sempre fui indepen-


dente; acho que de certa forma afastei-o dessas responsabilida-
des.” (mãe)
“Por exemplo, essa casa quem comprou fui eu, com o meu
trabalho, e eu me orgulho disso, de não ter que depender de nada
dele.” (mãe)
“Sempre fui sobrecarregada e continuo assim. Sou muito dona
da verdade. Sou independente sempre. Não conversava com
ele.” (mãe)
“Ele viria a criança o dia que ele quisesse. Eu não precisava
dele.” (mãe)

Se os primeiros estudos sobre a relação materno-infantil indicavam


serem as mulheres portadoras do instinto materno, justificando-se, por
esta via, a concessão da guarda às mães, em caráter prioritário, ainda hoje
são freqüentes os argumentos de que os homens não possuem habilida-
des para cuidar dos filhos corretamente. Constatações aferidas por mu-
lheres que, muitas vezes, lamentam o acúmulo de responsabilidades, mas
não conseguem dividi-las com o ex-conjuge, ocupando o posto de “rai-
nha do lar” ou de “todo-poderosas”, como definiu, Hurste/, 12 na referên-
cia ao grande poder atribuído às que possuem a guarda dos filhos. No
entanto, conforme constatado em diversas pesquisas e nas entrevistas
empreendidas, tal comportamento contribui para a diminuição do direito
de palavra do pai, a quem por vezes só resta a conformidade com o cale-se
que lhe é imposto.
No que tange à educação infantil, muitas mães colocavam-se no
lugar de quem deve permitir, estimular ou desprezar, podendo inclusive
negar a participação dos ex-maridos na educação dos filhos. Para os pais
visitantes, parecia claro que dependiam da decisão do guardião para
poderem ter maior contato com os filhos, sentido-se cerceados no direito
de criá-los.

“Ele sempre participou em tudo e eu sempre fiz questão disso.”


(mãe)

12 HURSTEL, Françoise. Róle social et fonction psychologique du pêre.


Informations Soda/es,
Paris, n. 56, p. 8-17, 1996.

442

IMPASSES NA CONDIÇÃO DA GUARDA E DA VISITAÇÃO - O PALCO DA DISCÓRDIA

“Ele liberava muito nosso filho, e eu não gostava. Agora eu é que


paxe.x Xe deÃxat com o pai. ?asseà a cAeXxar o menino com a vizinha?’
(mãe)
“O que poderia ser diferente seria a nossa convivência. Poderia
ser mais freqüente, se a mãe tivesse mais flexibilidade.” (pai)

Os enquadramentos aos quais devem adaptar-se pais e filhos, decor-


rentes do acordo de visitação, são objeto de crítica de diversos autores, que
constatam um impedimento a um amplo relacionamento, como advertem
Wallerstein et KeI!y.13

“O maior perigo trazido pelo divórcio para a saúde psicológica e


o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes é a materna-
gem/paternagem diminuída ou perturbada, que tão freqüente-
mente acontece depois da ruptura e pode consolidar-se na
família pós—divorcio.~~

Ao mesmo tempo, algumas mães reclamaram das cobranças feitas


pelo ex-cônjuge e pela própria sociedade.
“As responsabilidades são minhas, mas as cobranças vêm de todos
os lados.” (mãe)
O peso da responsabilidade pelos filhos, aliado ao desprezo pelo ex-
marido e à postura que muitas assumiam de educadora única, resultava na
assimilação e tentativa de desempenho dos papéis materno e paterno, sem
a devida percepção de que a separação ocorrida foi no âmbito conjugal. Foi
assim que uma mãe entrevistada, apesar de reconhecer que o ex-marido
ligava diariamente para falar com os filhos, afirmou:
“Continuei fazendo o que já fazia. Só passei a adotar também a
figura de pai.” [sendo que outra afirmou:] “Meus filhos me cha-
mam de ‘pãe’. Ele nunca ligou para as crianças.”

No entanto, com o passar do tempo e com o crescimento dos


filhos, algumas genitoras queixaram-se de que levaram uma vida sobre-
carregada, assumindo as tarefas com os filhos, e que só mais tarde

13 WALLERSTEIN, Judith; KELLY, Joan. Op. cit., p. 347.

443

LEILA MARIA TORRACA DE BRITO

constataram que isso dificultou qualquer tentativa de um novo relaciona-


mento afetivo. Indicavam, assim, o quanto a identidade de mãe acobertou
totalmente a de mulher.

4 MUDANÇAS DE RUMO

A partir da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança


(1989), a questão do interesse da criança em conservar relações pessoais
com ambos os pais passa a ser reconhecido como um direito, conforme
disposto no artigo 9. A desigualdade referente à guarda não pode perma-
necer como um fator natural. Torna-se importante manter a continuidade
da função exercida pelos pais, garantindo-se o vínculo da criança com a
linhagem paterna e materna. Como define a Convenção, cabe ao Estado
a garantia de manutenção da co-parentalidade, independentemente da
preservação ou não do vínculo conjugal. Atualmente o entendimento é
de que a obrigação de educar e cuidar dos filhos é decorrente do vínculo de
filiação, e não do casamento.
Assim, a partir da década de 1990, em decorrência da citada Conven-
ção, observa-se uma grande mudança na concepção sobre a guarda:
passa-se a compreender que a criança pode e deve conviver com o pai e a
mãe, mesmo que estes não formem mais um casal. Conseqüentemente, a
legislação de diversos países foi alterada, tornando o exercício unilateral
da guarda uma exceção. Tal evolução legislativa visa a separações menos
conflituosas e a uma presença mais incisiva de ambos os pais na educa-
ção das crianças. Seguindo este caminho estão vários países, como
França, Suécia, Inglaterra, que utilizam o regime de guarda conjunta, ou
autoridade parental conjunta, visto como o mais adequado às necessida-
des da família no terceiro milênio, na medida em que se procura evitar a
proeminência de um dos pais no cuidado dos filhos. Vi//eneuz~’e’4 explica
que a autoridade parental exercida em conjunto significa que todas
decisões importantes para as crianças, de ordem médica ou escolar, a
respeito de viagens ou sobre religião, devem ser tomadas por ambos os
pais, reconhecendo, ainda, que o dever de visita era uma limitação oficial
ao relacionamento do pai, que não possuía a guarda, com os filhos.

14 VILLENEUVE, Catherinc. Choisir san divorce. Bclgiquc: Marabout, 1994.


444

IMPASSES NA CONDIÇÃO DA GUARDA E DA VISITAÇÃO — O PALCO DA DISCÓRDIA

Argumenta-se que a guarda conjunta pode permitir ao pai que não


~i~twxve com o filhos reforçar os sentimentos de responsabilidade junto a
seus descentes; e interpreta-se que, para o superior interesse da criança,
~x te%g,uatdado o direito de ser educado por pai e mae.

da guarda conjunta, estes devem ser vistos como naturais, em virtude de


alterações na concepção que vigorou por longo tempo. The~yt5 analisa que
as diferenças que possam existir nos códigos educativos de genitores
separados não constituem um problema para as crianças, na medida em
que a constatação da diversidade faz parte da socialização infantil.

5 CONCLUSOES

Os resultados da pesquisa apontam para um nítido descompasso


entre o disposto no artigo 1.584 do novo Código Civil e as dificuldades
vivenciadas por pais e mães no desempenho de suas funções após a
separação, distanciando-se também das recomendações da Convenção
Internacional dos Direitos da Criança. Pode-se interpretar que a escolha
do genitor que revele melhores condições para dispor da guarda não
altera a dicotomia que se estabelece entre a figura do guardião e a do
visitante, interferindo negativamente no direito de a criança ser educada
por pai e mãe. A designação de visitante contribui com a imagem de pai
ausente, dificultando o exercício da função, favorecendo a deterioração
do vínculo emocional, retirando a palavra do pai e reafirmando o conceito
de que só um, geralmente a mãe, é importante e suficiente para propiciar
o desenvolvimento e a educação dos infantes. Pode-se considerar signifi-
cativa, na amostra avaliada, a constatação da acentuada redução da partici-
pação de um dos pais na responsabilidade com a prole após a separação.
Afastamento que não ocorria em função do gênero e, sim, pela posição de
visitante.
A proposta de que seja “aferido” qual dos pais possui melhores
condições para exercer a guarda certamente só contribui para aumentar,
consideravelmente, os conflitos nas Varas de Família, além de manter a

15 THERY, 1. Différcncc dcs scxes et différence dcs générati000. Malaise dans la


filiation. Esprit,
Paris, dcs, 1996, p. 65-90.

445

LEILA MARIA TORRACA DE BRITO

unificação das questões conjugais às parentais. Prioriza-se todo um


contexto que vai contrário às recomendações atuais, que indicam a
adequação de serem reduzidos os desentendimentos, em no me da preser-
vação da saúde mental dos envolvidos nessas situações litigiosas.
Conclui-se que a determinação da guarda conjunta é indispensável
para que as funções paterna e materna possam ser garantidas às crianças
de nossa sociedade, com suportes sociais simbólicos que devem sustentar
a dimensão privada da parentalidade, já que os menores de idade necessi-
tam de pai e mãe para seu completo desenvolvimento. Políticas públicas
e legislações que se preocupem em nao afastar os genitores dos filhos
devem ser implementadas, facilitando inclusive a estruturação de progra-
mas que auxiliem os pais no cumprimento da guarda conjunta após a
separação, incentivando o convívio entre pais e filhos. Observa-se assim
que as Associações de Pais, criadas com a finalidade de lutar pelos direitos
dos homens permanecerem com seus filhos, que só recentemente surgi-
ram no Brasil, podem ser de grande importância social, particularmente
ao promover reflexões sobre as funções parentais.
Também a título de contribuição, cabe ressaltar que foi observado,
no decorrer da pesquisa, certo desagrado, por parte de alguns operadores
do direito, quanto ao instituto da guarda compartilhada, principalmente
por não existir consenso sobre o que esta representaria. Grande parte
deles rejeita a idéia, definindo que a guarda compartilhada significa a
divisão dos dias da semana nos quais cada pai permanece com os filhos
fato com o qual não concordam. Diante do exposto, considera-se urgente
e necessária a realização de amplos debates nacionais, visando não só ao
uso de uma expressão comum como também à devida explicação do que
esta representa.
Conclui-se, portanto, pela indicação de proposição de mudanças
no artigo 1.584 do novo Código Civil, abolindo-se a noção de “melhor
guardião”, que deverá ser substituída pelo exercício conjunto da guarda,
quando, na ribalta, os refletores trazem à cena pai, mãe e filhos.

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei n. 6.515, de 26 de dezembro de 1977. São Paulo: Julex,


1980.

446

IMPASSES NA CONDIÇÃO DA GUARDA E DA VISITAÇÃO - O PALCO DA DISCÓRDIA

BRITO, Leila. De competências e convivências: caminhos da psicologia


junto ao direito de família. In: BRJTO, Leila. (Org.). Temas de psicologia
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Se-pa-ran-do: um estudo sobre a atuação de psicólogos nas varas
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As novas fronteiras da paternidade. São Paulo: Papirus, 1999.
LEGENDRE, P. El inestimable objeto de la transmisión. México: Siglo
Veintiuno, 1996.
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protection de lénfant. Chronique Sociale, 1992. Collection Synthêse.
MALHEIROS, Fernando. Os laços conjugais e os novos rumos da família.
In: CALLIGARIS, C. et ali. O laço conjugal Porto Alegre: Artes e Ofícios,
1994.
RAMOS, Madalena; SHAINE, Sidney. A família em litígio. In: RAMOS,
Madalena. (Org.). Casal e família como paciente. São Paulo: Escuta, 1994.
THERY, 1. Différence des sexes et différence des générations. Malaise
dans la filiation. Esprü Paris, des, p. 65-90, 1996.
L’énigme de l’égalité. Mariage et différence des sexes dans à la
recherche du bonheur. Erpril Paris, n. 252, p. 128-147, maio 1999.
VILLENEUVE, Catherine. Choisir son divorce. Belgique: Marabout, 1994.
WALD, Amoldo. Direito de família. São Paulo: RT, 1985.
WALLERSTEIN, Judith; KELLY, Joan. Sobrevivendo á separação: como
pais e filhos lidam com o divórcio. Porto Alegre: Artmed, 1998.

447

PATERNIDADE BIOLÓGICA, SOCIOAFETIVA,


INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E DNA

Maria Christina de Almeida


Advogada. Mestra em Direito das Relações Sociais pela
Universidade Federal do Paraná. Professora de Direito Civil
da Faculdade do Brasil — UNIBRASIL. Autora da obra
“Investigação de Paternidade e DNA: aspectos polêmicos”.

Abordar o tema da paternidade ou da filiação1 no Direito de Família


contemporâneo implica, necessariamente, enfocar os três momentos que
hoje se interligam na relação paterno-filial: a paternidade jurídica ou
presumida
(dado legal — imposto pela ordem jurídica), a paternidade científica, biol4gica
ou
genética (dado revelado ou conquistado pela medicina genética) e a paternida-
de socioafetiva (dado cultural ou histórico, construído em conformidade à
ordem axiológica de uma determinada época).
A grande indagação, fruto desta interligação de vínculos, é a seguinte:
Qual a verdadeira paternidade? E possível chegar-se a uma verdade real na
revelação da paternidade? Se sim, qual é esta realidade que torna verdadeira a
paternidade? É possível distinguir paternidade e ascendência genética?
Em termos de realidade e veracidade de fatos e vínculos entre pais e
filhos, a história legislativa de nosso país nos conta que a legislação codifi-
cada do inicio do século passado incorporou certos princípios morais2 e
delineou um tratamento tradicional ao vínculo paterno-filial, contido em

1 Diz-se ou porque a abordagem de tal tema pode partir da figura paterna


ou da figura do filho.
Todavia, a opção por uma abordagem ou outra não altera o sentido da reflexão que
ora se apresenta.

2 Carmem Lucia Silveira Ramos aduz que o modelo de família encartado no


Código Civil foi
liberal-burguês, eentrado no casamento, negando concessões, no texto aprovado e
sancionado,
inclusive a algumas categorias de filhos havidos fora do matrimônio. (RAMOS,
Carmem Lucia
Silveira. A paternidade/ora do casamento: análise e crítica do estatuto vigente
no Brasil. Curitiba,
1987. Dissertação (Mestrado) .— Curso de de Pós-Graduação cm Direito do Setor de
Ciências
Jurídicas da Universidade Federal do Paraná).

449

MARIA CHRISTINA DE ALMEIDA

uma classificação decorrente da posição jurídica dos pais: (i) os filhos


gerados por pessoas casadas eram concebidos como legítimos, assentando
tal legitimidade no fato de que relação sexual fértil somente seria merece-
dora de proteção do Estado por meio do Direito se ocorresse no seio do
casamento, componente essencial da família matrimonializada, concebida
esta como comunidade ou aglutinação formal de pessoas3 unidas por
vínculos de sangue, estatuindo nesses moldes a “família legítima” e fazen-
do ponte para a legitimidade dos filhos;4 e (ii) os filhos provenientes de
relações extramatrimoniais, os quais eram concebidos como ilegítimos e
não merecedores da tutela estatal, já que o tratamento diferenciado à prole
se justificava na medida em que a proteção do Estado dever-se-ia dar somente
à família legítima, aquela fundada no casamento.
Esta tradicional classificação importa em afirmar que o legislador
procedeu a um verdadeiro corte nas relações jurídicas de cunho paterno-
filial,5 categorizando a filiação de acordo com a situação jurídica de seus
ascendentes.
Neste rumo, em matéria de liame entre pais e filhos, seja oriundo ou
não do casamento, o Direito construiu um sistema de presunções, cabendo
destacar iicialmente a chamada presunção pater is est relativa à filiação
orü4’nda do casamento, a favor da qual a lei estabelece a presunção legal6 de
paternidade ao marido da mãe, fazendo valer um vínculo de filiação entre a
criança e o homem que contraiu matrimônio com a mulher que gerou esta
criança,7 presunção esta que permanece no atual texto do novo velho
Código Civil brasileiro, sancionado em 11.01.2002.~

3 Nas palavras de Gustavo Tepedino, extraídas da obra Temas de direito


civil Rio de Janeiro:
Renovar, 1999.

4 FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do direito de família. In: LIRA,


Ricardo Pereira
(Coord.). Curso de direito civil Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 107.

5 A propósito, Luir~ Edson Fachin aduz que: “o sistema jurídico promove


uma espécie de corte na
realidade e coloca os fatos que lhe interessam, por um conjunto expressivo dos
valores
dominantes num dado momento, no âmbito daquele sistema”. (FACHIN, Luiz Edson.
Teoria
critica do direito civil Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 106).
6 Neste rumo, o ensinamento de Carlos Alberto Dahus Maluf “a presunção
legal toma alguns
elementos, fáceis de prova, e tem-nos como suficientes para que se considerem
acontecidos, ou
não acontecidos. A presunção simplifica a prova, porque a dispensa a respeito do
que se
presume”. (MALUF, Carlos Alberto Dabus. As presunções na teoria da prova.
Revista de
Processo, São Paulo, o. 24, p. 78, out./nov. 1981).
7 Artigo 338 do CC.
8 Artigos 1.597 e 1.598 do novo Código Civil brasileiro.

450

PATERNIDADE BIOLÓGICA, SOCIOAFETIVA, INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E DNA

A máxima do Direito romano — pater is est quem justae nuptiae


demonstrant — é uma regra essencial ao casamento, e por ela pode-se
definir como a união formal que atribui de pleno direito ao homem os
filhos de sua mulher, sendo o casamento uma forma de dar um pai ao filho,
automaticamente.9
De outro prisma e indo ao encontro da filiação fora do casamento,
considerada a hipótese de filhos não reconhecidos voluntariamente, filiação
esta dependente de provas para ser conhecida e declarada judicialmente, o
Direito utiliza-se da presunção exceptio plurium concumbentium, que se traduz
na ausência de exclusividade por parte da mulher nas relações sexuais
mantidas com o suposto pai de seu filho, o que faz presunção em favor do
apontado pai para excluí-lo da paternidade, diante do comportamento
desonesto’1’ da mãe da criança.
Ainda quanto à filiação fora do casamento, o sistema enquadrou a
presunção de paternidade atribuída ao homem que teve relações sexuais
com a mãe da criança no período da concepção ou se com ela estava
concubinado.”
Mas o sistema jurídico não se valeu somente dessas presunções
para sobrepor ao fato natural da procriação disposições de ordem legal
que obedecem às orientações distintas, conforme a sua origem.
Contou também com expressivas hipóteses legais de óbices na
quebra dessas presunções, a exemplo do que estatuíam’2 os artigos 340, 341,
342, 343, 344, 346 e 178, tudo em prol da manutenção da então família
legítima, mesmo que tal proteção implicasse ocultar a realidade que estava
por trás da aparente verdade.13
Vê-se, pois, que acima da verdade biológica o sistema jurídico brasilei-
ro faz prevalecer a verdade jurídica. Com tal consagração legislativa, a
paternidade legalmente esculpida distancia-se da sua base ou origem biológi-
9 CARBONNIER, Jean. Droit citil2. La famille. L’enfant, lc couple. 20.cd. Paris:
PUF, 1955,
p. 223.

10 Pede-se venha para utilizar tal expressão na atualidade. Mesmo sendo


repugnante seu sentido,

por muito tempo significou o rótulo dado á conduta da mulher.

11 Artigo 363 do CC.


12 Aqui faz-se mister conjugar o verbo no passado por tratar-se de um ranço que
já não mais faz

parte do nosso ordenamento jurídico contemporâneo do Direito de Família


brasileiro.

13 Cumpre salientar que o novo velho Código Civil brasileiro manteve tais
óbices, a exemplo do

que dispõem os artigos 1.600, 1.601, 1.602, 1.604.

451

MARIA CHRISTINA DE ALMEIDA

ca para atender interesses da própria família codificada, colocados pelo


legislador num plano superior ao do conhecimento da verdade biológica.’4
Apesar de todo o esforço estatal em promover a paz doméstica’5 ou
familiar, delineando regras do comportamento sexual e rejeitando ou fe-
chando os olhos às relações interpessoais, seja na forma da aproximação
dos sexos que não pelo casamento, seja na procriação fora do regime
matrimonial, é patente que sempre houve violação às regras estatuídas na
codificação.’6
No curso do século XX, gradativamente a intervenção estatal mani-
festou-se no sentido de estabelecer uma relação de interdependência com a
estrutura da sociedade brasileira ,17 moldando uma nova legislação até
chegar à equiparação dos filhos havidos no casamento, fora dele e por
adoção, trazida pela nova tábua axiológica de valores consagrada na Cons-
tituição Federal de 1988, que estatuiu em seu artigo 227, § ~ o princ~Pio da
unidade da filiação, acabando de vez com toda e qualquer forma de tratamen-
to discriminado à prole, que estava submetida, até então, à espécie de
relação preexistente entre seus geflitOres.
O que se constata hoje é uma dissociação entre casamento e
filiação, ligação esta típica do sistema clássico codificado de 1916, que se

14 CF. reflexão de Lui~ Edson Fachin, “esse distanciamento aparece


claramente na opção feita
pelo legislador. À medida que se limita a contestação da paternidade e que são
colocados óbices
ao reconhecimento, o conceito jurídico da paternidade se separa do seu sentido
biológico. Isso
se vê niridamente no Código Civil brasileiro”. (FACHIN, Luiz Edson.
Estabelecimento da filiação
e paternidade presumida. Porto Alegre, Sérgio Fabris, 1992, p. 22).
15 Termo utilizado por Gustavo Tepedino. (A disciplina jurídica da filiação na
perspectiva civil-

constitucional. In: Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p.


389-431).

16 Na visão de Rodrzgo da Cunha Pereira, embora não recebessem proteção


do Estado, famílias
formadas à margem do casamento e filhos extramatrimoniais e adulerinos sempre
existiram e
sempre existirão. Enquanto houver desejo, ele sempre escapará ao normatizável.
Aduz o autor
que “não se pode esquecer que as normas escritas, ou inscritas, pelo Estado só
existem em
razão de um desejo contrário a elas. Os dez mandamentos da Lei de Deus só foram
escritos
porque há dez desejos contrários a eles. ‘Não cobiçar a mulher do próximo’, está
ali escrito
porque certamente alguém cobiça a mulher do amigo, do parente, do outro ...“.
(PEREIRA,
Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. Belo
Horizonte: Dcl Rey,
1999, p. 54).
17 Esta gradação teve seu marco inicial com o artigo 358 do Código Civil
de 1916, que vedava o
reconhecimento dos filhos então designados como espúrios. Pede-se permissão ao
leitor para
aduzir que a evolução legislativa da proteção aos filhos extramatrimonais está
delineada na
obra Invest~gaçào de paternidade e DNA: aspectos polêmicos. Porto Alegre:
Livraria do Advoga-
do, 2001, de minha autoria.

452

PATERNIDADE BIOLÓGICA, SOCIOAFETIVA, INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E DNA

justificava em benefício da paz doméstica, da proteção do vínculo conju-


gal e da coesão formal da família, ainda que em detrimento da realização
pessoal de seus integrantes, particularmente no que se refere à mulher e
aos filhos, inteiramente subjugados à figura do cônjuge-varão.’8
Uma nova ordem principiológica trazida a partir da Constituição
Federal de 1988, asseverada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
(Lei 8.069/90) e pela Lei de Averiguação Oficiosa da Paternidade (Lei
8.560/92), faz entrar em cena um novo modo de apreensão das relações de
família, que repercute no estabelecimento da filiação, conferido pelo reco-
nhecimento constitucional da família não matrimonializada, esta concebi-
da pela Carta Magna num sentido amplo, abrangendo não apenas a família
fundada no casamento, mas ainda aqueles núcleos familiares em situações
análogas à família matrimonializada, como a união estável, a família forma-
da por um só dos ascendentes ou, ainda, a família adotiva.19
Paralelamente à evolução do Direito, fontes de repercussão no estabe-
lecimento da filiação são, também, as oriundas da evolução da genética,
cuja conquista fundamental deu-se com a descoberta do exame em DNA
(ácido desoxirribonucleico), o único a proporcionar resultado cientifica-
mente comprovado de probabilidade de paternidade de até 99,9999Yo e
exclusão de paternidade de 1 OO~/o. Esta prova, muito embora seja reconheci-
damente a mais precisa prova da revelação da verdade biológica, porém
não única,20 não foi contemplada por nosso legislador ao elaborar o novo
velho Código Civil brasileiro.
Acompanhando a evolução da ciência, grande repercussão causou
e ainda vem causando a questão relativa à inseminação art~/icial e à fertiliza-
çâo in vitro, contempladas sutilmente pelo novo velho Código Civil brasilei-
ro (art. 1.597).
Importante destacar, ainda, que a família constitucionalizada, di-
versamente da encartada no sistema codificado, passa a receber um concei-
to flexível e instrumental, que tem em mira o elo substancial de pelo menos
18 TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil-constitucional das relações familiares.
In:

BARRETO, Vicente (Org.).A novafamília problemas e perspectivas. Rio de Janeiro:


Renovar,

1997, p. 49.

19 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito
de família:

direito matrimonial. Porto Alegre: Fabris, 1990, p. 19.

20 Tal pontuação já foi objeto de reflexão desta autora no artigo “A prova do


DNA: uma

evidência abolsuta?”, publicada na Revista Brasileira de Direito de Família,


Síntese, v. 2.

453

MARIA CHRISTINA DE ALMEIDA

um dos genitores com seus filhos, tendo por origem não apenas o casamen-
to e inteiramente voltada à qualidade da entidade familiar como núcleo
direcionado, precipuamente, à realização espiritual e ao desenvolvimen-
to da personalidade de seus membros.21
A Constituição Federal de 1988 foi, efetivamente, um divisor de
águas no que concerne aos valores da família contemporânea brasileira.
A iniciar pelo art. 1.”, III, que traduz o princípio da dignidade da pessoa
humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, somado
ao art. 3•o, 1, do mesmo diploma legal, que consagra o princípio da
solidariedade, parte-se rumo ao fenômeno da repersonalização das rela-
ções entre pais e filhos, deixando para trás o ranço da patrimonialização
que sempre os ligou para dar espaço a uma nova ordem axiológica, a um
novo sujeito de direito nas relações familiares e, até mesmo, a uma nova
face da paternidade: o vínculo socioafetivo que une pais e filhos, inde-
pendentemente de vínculos biológicos.
Paulo Lui~ Netto L6bo22 assenta que se encontram na Constituição
Federal brasileira três fundamentos essenciais do princípio da afetividade
que delineam o perfil dos personagens da nova família, a saber:

a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem


(art. 227, § 6.0);
b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao pla-
no da igualdade de direitos (art. 227, § 5Y e 6.0);
c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descenden-
tes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família
constitucionalmente protegida (art. 226, § 4.”).

Vê-se, pois, que há vértices distintos na transformação axiológica


do liame paterno-filial na atualidade.
Como primeiro ponto culminante, a proteção integral das entida-
des familiares, em obediência ao princípio constitucional da pluralidade das
mesmas. A Constituição Federal de 1988 não tutela apenas a família consti-
tuída pelo casamento e proíbe qualquer distinção entre filhos biológicos,

21 TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil..., cit., p. 50.

22 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. In:


PEREIRA,

Rodrigo da Cunha (Coord.). Afamília na travessia do milénio. Anais do II


Congresso Brasileiro de

Direito de Família, 2000, p. 250.

454

PATERNIDADE BIOLÓGICA, SOCIOAFETIVA, INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E DNA

havidos ou não da relação de casamento, e adotivos. Ainda, pessoas que


se unem em comunhão de afeto, não podendo ou não querendo ter filhos,
são família protegida pela Constituição.23
O segundo vértice é o relacionado ao significativo avanço científi-
co da engenharia genética para a descoberta da verdade biológica da
paternidade. Com ele, o sistema legal de presunção de paternidade, nas
hipóteses de filiação aparentemente oriunda de um casamento, esvazia-se
diante da verdade genética, que ganha corpo a partir da descoberta do
exame em DNA (diz-se impressões digitais do sangue, dada a precisão e o
caráter personalíssimo deste exame). Também, nos casos de filiação fora
do matrimônio, em que não há presunção de paternidade, mas há a pre-
sunção excpetioplurium concubentium, que tem em mira a conduta da mulher,
a prova científica fez esta arma perder força, já que, muito embora possa
ter havido pluralidade de parceiros, o exame de DNA poderá dizer que,
efetivamente, aquele apontado como suposto pai é, cientificamente, o
genitor da criança.
Este segundo vértice quis enfatizar que o estabelecimento da pater-
nidade hodiernamente constitui-se um direito do pai e do filho, e não mais
uma presunção, seja ela estatuída por lei ou construída pelo raciocínio do
julgador.
O terceiro vértice, e não menos importante, é relativo à atual inquie-
tude decorrente do questionamento da verdadeira relação paterno-filial,
já que não mais pode ser concebida como ficção jurídica nem como dado
puramente biológico, devendo ser construída dentro de uma realidade
histórico-cultural, haja vista a existência — ontem, hoje e sempre — de
liames paternos ou maternos-filiais que prescindem de um vínculo bioló-
gico, a exemplo das famílias recompostas.
Esta inquietude levou João Batista Villela, em 1979, a repensar o
vínculo da paternidade biológica. Seu pensamento foi sábio, e já naquele ano
produziu uma reflexão a que chamou de Desbiologização da Paternidade.24
A partir daí, a biologização da paternidade começa a ser repensada,
hoje mais do que nunca, com o repensar o próprio Direito de Família a
partir do fenômeno da repersonalização dos sujeitos de direito, persona-
gens estes concebidos como integrantes de uma entidade familiar plural,

23 Idem.

24 Trabalho publicado na Revista da Faculdade de Direi/o da Universidade Federal


de Minas Gerais.
Belo Horizonte, n. 21, p. 412, maio 1979.
455

MARIA CHRISTINA DE ALMEIDA

aberta, preocupada, acima de tudo, com o bem-estar dos sujeitos que a


compõem.
Com este repensar, chega-se à seguinte reflexão: diante da consta-
tação histórico-social de que a paternidade não se esgota na visão redu-
cionista do mero ato de geração, mas é construída pelos laços afetivos e
de solidariedade e pela influência do ambiente familiar — visto que os
laços de afeto derivam da convivência, da proximidade, e não do sangue —
os testes científicos não podem, e jamais poderão, alcançar a realidade
que envolve os laços paternais e filiais.
Assim é que se permite afirmar que a vinculação socioafetiva entre
pai e filho prescinde da paternidade biológica. Nesse sentido, o pai é
muito mais importante como executor de uma função do que, propria-
mente, como genitor.25
Esta nova ordem de idéias vem tomando corpo na atual sistemática
de aplicação do Direito de Família26 e consagra-se como uma fase de
proteção aos interesses do filho, sendo o vínculo genético um dos modelos
que definem a qualificação jurídica da pessoa, do status do indivíduo,
todavia, relativizada pelo incremento da paternidade socioafetiva, a ponto
de se afirmar que a revelação da ascendência genética pode vir a ser
sacrificada em respeito ao melhor interesse da criança,27 o qual preside,
hoje, todo o tratamento da filiação no Direito de Família brasileiro.

25 Neste sentido caminha Pau lo Lui~Netto L.óbo, ao afirmar que “a


família recuperou a função que,
por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e
laços afetivos,
em comunhão de vida. O princípio jurídico da afetividade faz despontar a
igualdade entre
irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, além do
forte sentimento
de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de
interesses
patrimoniais. E o salto à frente da pessoa humana nas relações familiares”.
(LOBO, Paulo Luiz
Netto. Op. cit., p. 253).
26 O Ministro Sálvio de F~gueiredo Teixeira percorre esta trilha de
pensamento, consoante se
observa do teor da seguinte decisão: “1 — Na fase atual da evolução do Direito
de Família, é
injustificável o fetichismo de normas ultrapassadas em detrimento da verdade
real, sobretudo
quando em prejuízo de legítimos interesses de menor. II — Deve-se ensejar a
produção de
provas sempre que ela se apresentar imprescindível à boa realização da justiça.
III — O Superior
Tribunal de Justiça, pela relevância de sua missão constitucional, não pode
deter-se em
sutilezas de ordem formal que impeçam a apreciação das grandes teses jurídicas
que estão a
reclamar pronunciamento e orientação pretoriana”. (STJ, Recurso Especial
4.987/RJ, relator
Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 04.06.1991, DJU 28.10.1991).
27 A propósito, Heloisa Helena Barho~a comentou a decisão da Corte de
Cassação italiana 2.315/99,
que tratou de desconhecimento da paternidade na inseminação heteró]oga
consentida pelo
marido. V. por todos o artigo publicado na Revista Trimestral de Direito Civil,
Padma, v. 1,
p. 145 et seq.

456

PATERNIDADE BIOLÓGICA, SOCIOAFETIVA, INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E DNA

Tal relatividade, naturalmente, não afasta a relevância da paternida-


de biológica. Veja-se que o conhecimento da ascendência genética passou
a ser concebido, a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 27),
como um direito elementar, personalissimo, imprescritível e indisponível
que tem a pessoa de conhecer sua origem biológica. Trata-se, efetivamente,
de um direito fundamental à formação da personalidade do homem.
Ainda, a evolução da medicina genética, que fortaleceu a perquiri-
ção da ascendência biológica, pôs o sistema de presunções, do qual se
valeu o Direito até o advento do DNA (seja presunção legal, seja presun-
ção fruto de um raciocínio do julgador), em crise, a ponto de torná-lo
abalado diante do inconteste avanço genético na revelação do vínculo entre
pais e filhos.28
Neste sentido, o ordenamento jurídico brasileiro caracteriza-se
pelo avanço na proteção dos direitos dos filhos, sendo o primeiro destes o
reconhecimento do estado de filiação.
Assim é que a paternidade deixa de ser uma verdade jurídica para
ser fundamentalmente e, antes de tudo, biológica. É o denominado princí-
pio da verdade biológica da filiação,29 e o direito moderno tende a incorpo-
rar os conceitos da ciência biológica derivados dos enormes progressos
científicos, sobretudo da engenharia genética, moderna biotecnologia de
célere aperfeiçoamento, para deles fazer postulados jurídicos.30
A possibilidade de determinação científica da paternidade faz ver-
dadeira revolução na batalha judicial pela busca da paternidade, haja
vista a dificuldade ou mesmo impossibilidade de se obter prova direta do

28 Reflexo do abalo nas presunções de paternidade e nos óbices colocados


pela lei à descoberta do
elo genético da paternidade és decisão proferida pelo Superior Tribunal
deJustiça no Recurso
Especial 194.866-RS, da relatoria do Ministro Eduardo Ribeiro, do qual se extrai
o seguinte:
“Nos tempos atuais, não se justifica que a contestação da paternidade, pelo
marido, dos filhos
nascidos de sua mulher, se restrinja às hipóteses do artigo 340 do Código Civil,
quando a
ciência fornece métodos noravelmente seguros para verificar a existência do
vínculo de
filiação. Decadência. Código Civil, art. 179, ~ 3.”. Admitindo-se a contestação
da paternidade,
ainda quando o marido coabite com a mulher, o prazo de decadência haverá de ter,
como
termo inicial, a data em que disponha ele de elementos seguros para supor não
ser o pai do filho
de sua esposa”. (REsp 194.866/RS, j. 20.04.1999, DJU 14.06.1999).
29 LELLA, Pedro di. Paternidadj pruebas biologicai~~ recaudos y
cuestionamentos. Buenos Aires:
Depalma, 1997, p. 75.
30 PEREIRA, Calo Mário da Silva. Reconhecimento da paternidade e seus
efeitos. Rio de Janeiro:
Forense, 1997, p. 112.

457

MARIA CHRISTINA DE ALMEIDA

relacionamento sexual fértil entre a mãe e o suposto pai.31 Ainda, a evolu-


ção da medicina genética repercutiu a ponto de desmistificar, inclusive, a
idéia de verdade da paternidade baseada nas presunções assinaladas pelo
texto codificado.
É uma nova fase cuja interpretação das provas construtivas do elo
de paternidade não se baseia na letra do Código, mas na verdade dos fatos,
cuja preocupação maior está centralizada no filho como descendente de
sangue, sendo a revelação da ascendência genética direito fundamental
na formação da personalidade do sujeito repersonalizado.
A verdade biológica rompe um compromisso arraigado pelo Códi-
go Civil brasileiro com a verdade jurídica baseada na presunção de paterni-
dade, dando espaço para uma nova verdade, voltada agora para a revela-
ção biológica do vínculo entre pais e filhos, possível somente com o
avanço científico do DNA, pelo qual se reputa determinada paternidade
com confiabilidade absoluta,32 desvalorizando, em muito, as decisões
fundadas apenas em presunções nas lides desta natureza.
É fato que o elo biológico entre pais e filhos não é suficiente para
construir uma verdadeira relação afetiva paterno-filial. Basta verificar
nas demandas de paternidade que, muitas vezes, o filho conhece seu pai por
meio do DNA, mas não é reconhecido por ele por meio do afeto. Em outras
palavras, a filiação não é um dado ou um determinismo biológico, ainda
que seja da natureza do homem o ato de procriar. Em geral, a filiação e a
paternidade sociais ou afetivas derivam de uma ligação genética, mas
esta não é suficiente para a formação e afirmação do vínculo; é preciso

31 Nesse sentido, primando pela valorização da verdade biológica, o


Superior Tribunal de Justiça
decidiu: “Ação de investigação de paternidade. Perícia técnica: exame de DNA. 1
— A
falibilidade humana não pode justificar o desprezo pela afirmação científica. A
independência
do juiz e a liberdade de apreciação da prova exigem que os motivos que apoiaram
a decisão
sejam compatíveis com a realidade dos autos, sendo impossível desqualificar esta
ou aquela
prova sem o devido lastro para tanto. Assim, se os motivos apresentados não
estão compatíveis
com a realidade dos autos, há violação ao art. 131 do Código de Processo Civil.
11 —
Modernamente, a ciência tornou acessíveis meios próprios, com elevado grau de
confia-
bilidade, para a busca da verdade real, com que o art. 145 do Código de Processo
Civil está
violado quando tais meios são desprezados com supedâneo em compreensão
equivocada de
prova científica”. (STJ, REsp 97.148/MG, relator Ministro Waldemar Zi’eite5 j.
20.05.1997,
DJU 08.09.1997).
32 PENA, Sérgio Danilo. Determinação de paternidade pelo estudo direto do
DNA: estado de
arte no Brasil. lo: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Direitos de família
e do menor. Belo

Horizonte: Dcl Rey, 1993, p. 243 et seq.

458

PATERNIDADE BIOLÓGICA, SOCIOAFETIVA, INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E DNA

muito mais. É necessário construir o elo, cultural e afetivo, de forma per-


manente, convivendo e tornando-se, cada qual, responsável pelo cultivo
dos sentimentos, dia após dia.
Tais reflexões demonstram que se vive hoje, no Direito de Família
contemporâneo, um momento em que há duas vozes soando alto: a voz
do sangue (DNA) e a voz do coração (AFETO). Isto demonstra a existên-
cia de vários modelos de paternidade, não significando, contudo, a admis-
são de mais de um modelo deste elo a exclusão de que a paternidade não
seja, antes de tudo, biológica.
No entanto, o elo entre pais e filhos é, princtpalmente, socioafetivo,
moldado pelos laços de amor e solidariedade, cujo significado é muito
mais profundo do que o do elo biológico.
Disso resulta que, neste terceiro Milênio, quando a família assume
o perfil de núcleo de afetividade e realização pessoal de todos os seus
membros, paralelamente à paternidade biológica sem afeto, a posição de
pai é assumida mesmo na ausência de filhos biológicos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

CARBONNIER,Jean. Drozt ctvil2. La famille. L’enfant, le couple. 20. ed.


Paris: PUF, 1955.
FACHIN, Luiz Edson. Estabelecimento da filiação e paternidade presumida.
Porto Alegre, Sérgio Fabris, 1992.
Elementos críticos do direito de família. In: LIRA, Ricardo
Pereira (Coord.). Curso de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
LÕBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação.
In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). A família na travessia do
milênio. Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família, 2000.
LELLA, Pedro di. Paternidadypruebas biol4gicai’~ recaudos y cuestionamentos.
Buenos Aires: Depalma, 1997.
MALUF, Carlos Alberto Dabus. As presunções na teoria da prova. Retista
de Processo, São Paulo, n. 24, p. 78, out./nov. 1981.
OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de; MUNIZ, Francisco José Ferreira.
Direito de família: direito matrimonial. Porto Alegre: Fabris, 1990.

459

MARIA CHRISTINA DE ALMEIDA


PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicana-
litica. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento da paternidade e seus efeitos.
Rio de Janeiro: Forense, 1997.
PENA, Sérgio Danilo. Determinação de paternidade pelo estudo direto
do DNA: estado de arte no Brasil. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figuei-
redo. (Coord.). Direitos de família e do menor. Belo Horizonte: Del Rey, 1993.
RAMOS, Carmem Lucia Silveira. A paternidade fora do casamento: análise e
crítica do estatuto vigente no Brasil. Curitiba, 1987. Dissertação
(Mestrado) — Curso de de Pós-Graduação em Direito do Setor de
Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná.
TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil-constitucional das relações
familiares. In: BARRETO, Vicente (Org.). A nova família: problemas
e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.
A disciplina jurídica da filiação na perspectiva civil-constitucio-
nal. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

460

POSSE DO ESTADO DE FILHO

Denise Duarte Bruno


Assistente Social (PUC-Campinas). Mestra em Sociologia
(UFRGS). Atua como Assistente Social no Foro Central
da Comarca de Porto Alegre (RS).

_________________ Sumário __________________


1. Paternidade x parentalidade socioafetiva. 2. Parentalidade
socioafetiva. 3. Aspectos sociais que podem indicar (ou não)
parentalidade/filiação socioafetiva. 4. Conclusões. 5. Referên-
cias bibliográficas.

Para tratar da posse do estado de filho, optei por falar de algumas


atribuições sociais inerentes à condição de ser pai ou mãe, por entender
que crianças e/ou adolescentes só detêm tal posse com referência a um
adulto que desempenha, com relação a eles, tais funções.
Gostaria, apenas, de começar uma discussão que pode, e deve, ser
enriquecida. Defendo a idéia de que devemos falar de parentalidade
socioafetiva, e não de paternidade socioafetiva.
Na seqüência deste trabalho, apresento uma rápida conceituação
de parentalidade socioafetiva e destaco três elementos que podem deter-
minar a existência ou não desta relação.

1 PATERNIDADE XPARENTALIDADE SOCIOAFETIVA

Antes de mais nada, quero esclarecer que optei por tratar de


parentalidade” soctoafetiva, e não de paternidade, porque me parece

461

DENISE DUARTE BRUNO

que a questão com a qual nos deparamos no contexto judicial não é só


identificar quem é pai social, mas, em muitos casos, também quem é mãe,
socialmente falando.
Daí a necessidade de encontrar parâmetros não biológicos que
identifiquem relações pais/mães-filhos, e, nesse sentido, parentalidade é
o termo mais adequado.
No cotidiano das Varas de Família, com o reconhecimento do
afeto como definidor de relações familiares, nos deparamos com situa-
ções em que precisamos saber se determinados adultos, em termos de
afeto e atribuições sociais inerentes aos papéis de pai e de mãe, desempe-
nham (ou desempenharam) tais funções em relação a uma ou mais crian-
ças. São, portanto, litígios que extrapolam uma mera investigação” de
paternidade. Consistem, na maioria dos casos, em discussões sobre a
possibilidade de “reconhecimentos” de relações filiais-parentais que fo-
gem do determinismo biológico.
Só para ilustrar o fato de o questionamento se dar não só em rela-
ção à paternidade (o pai), posso citar um caso em que se discute a situação
jurídica de uma menina em cuja certidão de nascimento consta como
“mãe” o nome de uma mulher que não a gerou nem a adotou, mas dela
cuidou, oferecendo amor e educação, e a reconheceu como filha.’
Esta Ação Judicial sugere que o objeto a ser discutido são as relações
parentais-filiais, e não apenas a paternidade.
Tendo em vista esse fato, parece-me óbvio que falar em parentali-
dade/filiação socioafetiva é falar em família, e falar em família não é
trabalhar com um conceito unívoco e unanime.
O termo família, especialmente sob a ótica social, refere-se a uma
estrutura que, embora presente em todas as sociedades (e em todos os
estratos dessas sociedades), apresenta diferentes configurações, em dife-
rentes grupos. Além disso, as configurações familiares persistem durante
um certo tempo e mudam em conjunto com as transformações da socie-
dade da qual fazem parte.
O final do século XX e o começo do século XXI estão marcados
por transformações sociais e familiares que não podem ser desvinculadas
no contexto legal em que as relações familiares são tratadas.

1 Ver TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, 1999.

462

POSSE DO ESTADO DE FILHO

Uma das mudanças no trato legal da família relaciona-se à forma


como a prática legal apreende a questão do afeto nas relações familiares.
Como se referiu Silvana Carbonera no 1 Congresso Brasileiro de Direito de
Família:

“Quando a presença do afeto nas relações de família era presu-


mida, sua relevância jurídica consistia em ser tomado como
existente, não dando margem para muita discussão. Porém, a
partir do momento em que sua presença se tornou essencial para
dar visibilidade jurídica a relações familiares, o afeto tomou
outro sentido e passou a ocupar maior espaço no Direito de
Família. “2

Uma das principais conseqüências da segunda forma pela qual as


leis apreendem o afeto como elemento de visibilidade da estrutura fami-
liar é o reconhecimento da “paternidade” ou, como prefiro definir, da
parentalidade socioafetiva.
A parentalidade (e a inseparável filiação) socioafetiva existe quan-
do uma criança ou um adolescente tem, em relação a adulto que não é seu
genitor biológico nem adotivo, a posse do estado de filho, ou seja, existem
entre eles “relações de afeto que se consolidam entre pais e filhos, mesmo
na ausência de vínculo genético”)
Pretendo levantar indicativos sociais para identificar essas relações
familiares de parentalidade/filiação, que transcendem a relação biológica
e a relação jurídica já estabelecida, ou seja, a adoção. Procuro respeitar a
definição de posse do estado de filho utilizada no meio jurídico, que leva
em conta o uso do nome, o tratamento dado e o reconhecimento público.
Para tratar da definição social de parentalidade, optei por me deter
em dois aspectos:
1) a noção de parentalidade socioafetiva, obviamente com ênfase
no social; e
2) algumas peculiaridades da parentalidade, em se considerando
as organizações familiares de diferentes grupos sociais.

2 CARBONERA, Silvana Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de família,


p. 486.

3 SANTOS, Luiz Felipe Brasil. Paternidade socioafetiva, 2000.

463
DENISE DUARTE BRUNO

2 PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA

Quando se fala de parentahdade, fala-se ao mesmo tempo, indistin-


tamente, de ser pai e ser mãe, ou seja, de paternidade e de maternidade.
Embora a maternidade, por razões óbvias, tenha sido conhecida e
identificada desde sempre, Dupuis4 destaca o fato de a “descoberta” da
paternidade poder ser localizada “no quinto milênio”, quando “egípcios e
indo-europeus tomaram consciência do papel do pai na procriação”.
Apesar desse marco temporal, ao historiar o desenvolvimento da
noção de paternidade, o mesmo autor destaca que a paternidade não
esteve sempre relacionada à progenitura biológica, visto que, por exem-
plo, no “direito hindu tradicional, o pai da família pode ter doze tipos de
filhos, a maioria dos quais não tem nenhum vínculo genético com ele.”5
Temos, então, que nossa concepção contemporânea de uma pater-
nidade social não é nada nova, tendo em vista que, ainda segundo o histo-
riador com o qual estamos trabalhando:

“Vêem-se ... diversas sociedades em que o homem manda enquan-


to ‘pai’, muito embora a paternidade genética ainda permaneça
bastante confusa. E uma paternidade sociológica

Nessas organizações sociais (e familiares), o lugar do “pai” ainda não


é necessariamente ocupado pelo homem que gerou o filho, o que só virá a
acontecer com o predomínio da família monogâmica, visto que a mesma:

“... implica uma mudança substancial nos costumes sociais ... A


primeira conseqüência da monogamia é o estabelecimento do
poder do marido enquanto pai dos filhos concebidos com sua
esposa, que fica obscurecida no grupo familiar. (...) As conseqüên-
cias jurídicas desse fato são extensivas a toda a história do Ociden-
te, pela aceitação, desenvolvimento e persistência do sistema
jurídico fixado por Roma, qualificado de clássico ...“~
4 DUPUIS, Jacques. Em nome do pai, p. 2.
5 Ibidem, p. 135
6 Idcm.
7 BENEYTO, Juan. Una historia dei matrimonio, p. 24.

464

POSSE DO ESTADO DE FILHO

Na família monogâmica legalmente constituída, base de praticamen-


te todas as sociedades contemporâneas, há a unicidade entre os papéis de
pai e mãe com a progenitura biológica; e o ordenamento social e jurídico
moderno, conseqüentemente, foi organizado identificando o “pai” e a
“mãe” como aqueles que geraram (ou adotaram) uma criança: o filho.
Nessa estrutura familiar, além de gerarem (ou adotarem) uma
criança, ao pai e à mãe cabem os cuidados, materiais e afetivos, e a socia-
lização do filho.
Quando essa missão de dar cuidados e socialização à criança é desem-
penhada por outros, que não os pais (biológicos ou adotivos), quase todos os
grupos sociais definem esses adultos como pai ou mãe de “criação”.
Já no meio jurídico, uma outra definição é utilizada, especialmente
nas ações de disputa de guarda envolvendo genitores e não-genitores: a
de “pais psicológicos”.8
Tanto o conceito “pais de criação”, implicitamente, quanto o de
“pais psicológicos”, explicitamente, designam aqueles adultos que coti-
dianamente e de forma contínua e interativa atendem as crianças em suas
necessidades de nutrição, normas e afetos.
Embora ambas as denominações possam servir de parâmetro para
a definição de parentalidade socioafetiva, por se referirem a adultos que
exercem as funções parentais, elas apresentam pelo menos uma limita-
ção, quando falamos de parentalidade socioafetiva, especialmente sob a
ótica social.
A limitação advém do fato de que a constituição da identidade
social das crianças se dá a partir de seus genitores e, especialmente em
famílias de estratos mais baixos da população, como veremos a seguir,
nem sempre quem atende às necessidades da criança, quem delas cuida
cotidianamente, são o pai e/ou a mãe, mas estes são suas referências no
processo de identificação.

3 ASPECTOS SOCIAIS QUE PODEM INDICAR (OU NÃO)


PARENTALIDADEIFILIAÇAO SOCIOAFETIVA

A partir da aceitação da existência de uma outra relação parental-


filial que não apenas a biológica ou a adotiva, precisamos avaliar cada

8 Para maiores escLarecimentos ver GOLDSTEIN,Joseph et ai. The bestinterests of


lhe chiid, p. 68.

465

DENISE DUARTE BRUNO

caso concreto em que se presuma a existência de tal relação, consideran-


do pelo menos três aspectos:
1) como o grupo social ao qual pertencem as pessoas que se
relacionam com a criança concebe os papéis de pai e de mãe;
2) a distinção (ou não) entre cuidado e parentalidade, e
3) o papel da religião para os envolvidos.

3.1 Diferenças entre ser pai e ser mãe em cada


grupo social

Cada estrato social apresenta uma estrutura familiar própria, ainda


que, como destaca Sai-ti, mesmo nas famílias de camadas populares:

“na vida cotidiana os costumes prevaleçam sobre regras formaliza-


das e haja uma grande flexibilidade nas normas de convivencia
em situações-limite opera um mecanismo ... graças ao qual se
,, 9

recorre às regras morais sociaimente dominantes

Tal mecanismo nos leva a pensar que a estrutura familiar das cama-
das pobres é a mesma que a das camadas médias e altas, mas tal não ocorre.
Especialmente no que diz respeito ao desempenho da função
parental, que é o que nos interessa neste momento, as funções de pai e mãe
são concebidas de forma muito diferente.
Enquanto para as camadas médias e altas, pai e mãe são os adultos
que mantêm, “amam” e determinam a forma de inserção da criança na
sociedade, inclusive pelo uso do nome de família, nas camadas mais pobres,
“as crianças passam a não ser uma responsabilidade exclusiva da mãe ou do
pai, mas de toda a rede de sociabilidade em que a família está envolvida”.10
Nessas organizações sociais e familiares, embora se diga corrente-
mente que “quem conta é quem está junto”,11 o “verdadeiro” pai, o
biológico, sempre é identificado e valorizado: mesmo não estando junto
com a criança, o pai “de sangue” é o vínculo que prevalece no processo
de identificação e de lealdade.
9 SARTI, Cynthia Andersen. A família como espelho, p. 103.
10 Ibidem, p. 55.
11 Ibidem, p. 58.

466

POSSE DO ESTADO DE FILHO

A antropóloga Claudia Fonseca, ao estudar as famílias das camadas


populares de Porto Alegre, também destaca a importância do pai biológi-
co~ quando constata que, para tais grupos, pai é um elemento fundamen-
tal à construção da identidade do filho, mesmo quando não desempenha
sua função provedora.12
Nas camadas médias, ao contrário, a manutenção, o cuidado e o
afeto têm maior peso, e a importância do nome advém desse “estar junto”.
Para essas camadas, a definição de pai psicológico pode ser utilizada,
especialmente se houver a possibilidade de articular, de fato e/ou de
direito, a possibilidade do uso do nome.
Permito-me aqui, narrar um caso no qual recentemente realizei
laudo de perícia social.’3
Tratava-se de uma ação de guarda de uma menina, que aqui cha-
marei de Ana, inserida numa família pertencente aos estratos médios da
sociedade. O pai biológico de Ana não a reconheceu, e quando ela tinha
um ano sua mãe estabeleceu nova união conjugal, da qual teve outra
filha. Esta situação perdurava até quando da Ação Judicial (e da minha
avaliação) na qual o companheiro da mãe de Ana solicitava ser guardião
da menina, para estender a ela benefícios previdenciários.
Na entrevista, a menina espontaneamente disse pensar que, ao
solicitar sua guarda, o companheiro da mãe poderia lhe dar o nome, pois,
segundo Ana:

“Ele faz comigo tudo que faz com minha irmã, que é filha dele:
ele me cuida quando estou doente, olha meus cadernos, fica
bravo quando eu apronto. Ele é como se fosse meu pai, só falta
me dar seu nome.”

Infelizmente, nem o Autor solicitava a adoção, que daria a Ana o


status legal de sua filha, nem creio que o Magistrado o fizesse de oficio.
Mas estou convicta de ser este um exemplo de que, para os estratos
médios da sociedade, ser pai é cuidar e dar o nome, sendo a definição
jurídica de filiação socioafetiva válida para este caso.

12 FONSECA, Claudia. Caminhos da adoção, p. 89.


13 Estas e todas as falas não identificadas fazem parte de minhas anotações
pessoais dos casos que

atendi durante os 15 anos de atuação no Serviço Social Judiciário do Foro


Central de Porto
Alegre. Os nomes, obviamente, são fictícios.

467

DENISE DUARTE BRUNO

Por outro lado, considerando que nem sempre quem cuida é quem
dá a identidade social nas camadas mais pobres, parece-me que para
esses grupos a avaliação de parentalidade socioafetiva deve levar em
conta outros elementos, dentre os quais a diferença entre “cuidado”,
“guarda” e “parentalidade”.

3.2 Diferença entre “cuidado~~ — “guarda”


e “parentalidade/filiação”

Uma das formas de organizar os cuidados com as crianças e a


educação nas camadas populares é definida por Claut-lia Fonseca como
dada a elas “circulação de crianças”:

“Uma prática familiar, velha de muitas gerações, em que crian-


ças transitam entre as casas das avós, madrinhas, vizinhas e
‘pais verdadeiros’ (...) podem ter diversas ‘mães’ sem nunca
passar por um tribunal”.14 (Aspas no original.)

A “circulação” é definida por esta cientista social como um “pro-


cesso social”, e não um problema.
Nesse processo, as crianças, embora sejam cuidadas por diferentes
pessoas, e provavelmente amadas por elas, ao chegarem à adolescência
(ou mesmo antes), voltam para seus genitores biológicos (especialmente
para a mãe). A “volta” ocorre porque as crianças e adultos envolvidos no
processo de circulação fazem parte de um grupo ao qual o vínculo san-
güíneo é determinante.
Conforme indicam os estudos de “circulação de crianças” realiza-
dos com famílias de bairros periféricos em Porto Alegre, estes são casos
que dificilmente chegam ao Judiciário, pois o fenômeno normalmente
ocorre entre aqueles para os quais há a primazia dos “laços consangüíneos
à relação conjugal; e que a circulação de crianças entre diferentes mães de
criação faz historicamente parte da dinâmica familiar destes grupos”.’5

14 FONSECA, Claudia. Op. eit., p. 9.

15 Ibidem, p. 23. A autora, porém, ressalta que não se deve pressupor que tais
hipóteses “se

apliquem, mecanicamente a ‘grupos populares’ em geral. Minhas teorias deveriam


constar,

entre outras, no repertório de ‘explicações possíveis’, eventualmente úteis pata


esclarecer o

comportamento familiar em determinados grupos.” (Aspas no original.)


468

POSSE DO ESTADO DE FILHO

Quando se instaura um litígio judicial em que se detecta a “circula-


ção de crianças”, freqüentemente um dos lados envolvidos deixou de
respeitar as regras que regem esse processo social.
Ao nos deparamos com tais situações, mais uma vez precisamos ter
cautela em avaliar se há uma parentalidade socioafetiva ou não. De forma
muito clara, nesses casos, a avaliação da existência ou não da posse do
estado de filho da criança envolvida no litígio deve ser criteriosa.
A disputa da guarda de Raí, estabelecida entre Joana e Mansa, é
ilustrativa.
Joana teve Raí no final da adolescência, e o pai do menino não o
reconheceu. A mãe de Joana não apoiou a gravidez da filha e sugeriu que
ela deixasse o bebê com sua prima, Mansa, “que cuidava de crianças”.
Joana seguiu o conselho da mãe, mas relata posteniormente que sempre
ajudou a manter o menino e que o visitava. Mansa diz que isso aconteceu
por algum tempo e que depois Joana “desapareceu”.
Mansa se “apegou” ao menino, enquanto Joana foi trabalhar longe
e se casou com alguém de outro país e de outro nível social. Ela estudou,
aprendeu outro idioma e passou a viver de acordo com o grupo social do
marido. Ambos decidiram que ela deveria reaver a guarda do filho, mas
Mansa passou a dificultar o processo de volta da criança, utilizando,
inclusive, a lealdade de Raí. Apesar de se “recusar” a abrir mão da guarda
fática de Raí, Mansa dizia que sempre teve consciência de que “mãe e
ela” (referindo-se a Joana).
Raí, apesar de até se recusar a passear com Joana, também a identifi-
cava como mãe. Os três diziam, cada qual com suas palavras, terem
consciência de que Joana era “a mãe”, que Mansa só cuidara de Raí e, nas
palavras da própria Mansa: “assim que ele crescer um pouquinho ele
volta pra ela. Ela é a mãe, eu só cuidei. E não devolvi ainda porque ela
ficou rica e procurou a justiça.”
Esse relato caracteriza uma “circulação de criança”, na qual o
cuidado foi delegado e aceito por um tempo, mas a mãe biológica não foi
destituída de sua maternidade, nem a “mãe de criação” foi investida
dessa posição. Raí, mesmo que cuidado, amado e educado por Mansa,
não tinha com relação à mesma, sob a ótica social, a posse do estado de
filho, pois sua identidade era constituída a partir de Joana.
Em outros grupos sociais, porém, em que não se verifica a “circula-
ção de crianças”, muito provavel que, socialmente falando, Raí teria com
relação a Mansa a posse do estado de filho, pois ela cuidara dele como

469

DENISE DUARTE BRUNO

tal, assumira publicamente (na escola, por exemplo) o lugar de sua mãe e,
além disso, insenina o menino em sua comunidade religiosa.
A inserção na comunidade religiosa pode, em muitos casos, segun-
do minha avaliação, definir a panentalidade socioafetiva.
3.3 A religião como definidora de parentalidade/filiação
socioafetiva

A quase totalidade das religiões por nós conhecida tem bem claros,
e valorizados, os papéis de pai e de mãe. Além disso, na maio ria delas, a
inserção da criança na comunidade religiosa se dá através de rituais realiza-
dos pelos pais ou definidos por eles.
O batizado da Igreja Católica é um exemplo emblemático dessa
inserção: são os pais que escolhem os padninhos, aos quais é atribuida
função de substitui-los, caso faltem, e durante o rito, são os pais que apresen-
tam o filho à comunidade religiosa.
Em suma, em termos sociais, poderíamos dizer que pana um adulto
assumir a panentalidade de uma criança é também inseni-la na sua comu-
nidade religiosa, mesmo que no cotidiano a prática religiosa não seja
muito freqüente.
Em um caso sendo questionada a validade de um registro civil no
qual estava declarada como mãe uma mulher que não gerou nem adotou
uma menina, a religião pôde ser usada como indicativo de que a menina
detinha a posse do estado de filha em relação àquela que a criara, educara
e, provavelmente, amara. A mulher que o fizera era uma ex-freira, ou
seja, uma pessoa com marcada postura religiosa, e como destaca o Des.
Lui~< Felipe Brasil Santos ao se manifestar no julgamento em favor da
manutenção do registro civil, considerando a existência do vínculo afetivo
e a proteção do interesse da menina:

“D.... criou essa criança até vir a falecer. Todas as testemunhas


do processo informam que ela apresentava essa criança como
filha. Ela batizou-a — havendo, inclusive, certidão de batismo nos autos —
como filha... Todos sabiam que não era sua filha de sangue, mas
era “filha do coração...”.’6 (grifos meus.)

16 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, 1999.

470

POSSE DO ESTADO DE FILHO

Outro caso exemplar que atendi foi o de um casal que, ao se separar,


acordou que a guarda da filha mais velha seria da avó paterna, e os três
menores ficariam com a mãe. Tal acordo fere o princípio de não separa-
ção dos irmãos, e tive muita dificuldade em entender a situação, visto
que a mãe não admitia a possibilidade de deixar os menores com o pai, e
este morava com sua mãe, que deteria a guarda da filha mais velha.
A mãe justificou o acordo alegando que, devido à iniciação da
menina na religião professada por todos os envolvidos, sua filha substi-
tuiria a avó paterna em uma função religiosa e, para tal, “já deixou de ser
[sua] filha”, pois “é a filhação de santo que conta. Quem manda nela
agora, quem cuida dela, é a avó. O santo já determinou que a mãe dela
agora é a avó.”
Os dois casos referidos nos demonstram que, em algumas situa-
ções, os vínculos e/ou as iniciações religiosas definem a relação parental!
filial, e não podem ser desprezados ou ignorados.

4 CONCLUSÕES
Gostaria de encerrar destacando que, como já observei no início,
os aspectos sociais que relacionei aqui são apenas alguns elementos para
avaliação da relação parental-filial, ou seja, para se identificar se uma
criança detém, sob a ótica social, a posse do estado de filho em relação a
um (ou mais) adultos.
A avaliação social de cada caso concreto, preferencialmente articu-
lada à avaliação psicológica, pode subsidiar a definição jurídica de paren-
talidade (paternidade) socioafetiva.
Especificamente no que me diz respeito, sob a ótica das ciências
sociais, muitos outros elementos ainda podem ser considerados, mas,
como já disse, a intenção foi a de iniciar uma discussão.
Para encerrar, deixo minha lembrança de um filme em que um
homem não cuidou, não amou, nem reconheceu como filho um menino
órfro, mas este o identificou como pai a partir do momento que foi por ele
motivado a usar a força contra outros meninos que o agrediam.
Antes desta cena, o menino “conversava” com o pai biológico que
não conhecera e, a partir daí, deixa de fazê-lo. Ele passa a ter um “pai real”.

471

DENISE DUARTE BRUNO

Não conto o final. Mas digo-lhes que o filme é, O ladrão de Pavel


Chukrai, e diz muito sobre o que é, e o que não é, ser pai (ou ser mãe),
para além da biologia e da adoção.

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENEYTO, Juan. Una historia deI matrzmonio. Madrid: Eudema, 1993.


(Eudema Historia — Perfiles).
CARBONERA, Silvana Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de
família. In: PEREIRA, Rodrigo Cunha (Org.). Repensando o direito de
família. Anais do 1 Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo
Horizonte: Del Rey, 1999, p. 485-511.
CHUKRAI, Pavel (roteiro e direção). O ladrão. Europa Filmes, 2000.
DUPUIS, Jacques. Em nome do pai: uma história da paternidade. São
Paulo: Martins Fontes, 1989. (Coleção Fio da Meada).
FONSECA, Claudia. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 1995.
GOLDSTEIN, Joseph et al. The best interests of the child: the last
detrimental alternative. New York: The Free Press, 1996.
SANTOS, Luiz Felipe Brasil. Paternidade socioafetiva. Palestra proferida na
Jornada de Direito de Família, promovida pelo IARGS, em 26 de agosto
de 2000. (disponível em http://wimv.ajiíris.org.br/esm/artzgo4 1.htm).
SARTI, Cynthia Andersen. A família como espelho: um estudo sobre a
moral dos pobres. Campinas: Editores Associados, 1996.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO
SUL. Embargos Infrigentes n. 59943905, julgados pelo 4•ø Grupo de
Câmaras Cíveis em 8 de outubro de 1999.
472

Ternário IV

INTERFACES E CONEXÕES
DO DIREITO DE FAMÍLIA

O ESTRESSE NO EXERCICIO
DO DIREITO DE FAMÍLIA
A ANGÚSTIA NO JUDICIÁRIO

Giselle Groeninga
Psicanalista do Instituto da Sociedade Brasileira
de Psicanálise — SP. Terapeuta de Sistemas. Mediadora.
Coordenadora de Relações Interdisciplinares do IBDFAM.

“Se, em lugar dos dogmas impostos pelas autoridades, deixássemos


exprimir-se a faculdade de julgamento independente presente
em cada um, mas atualmente em grande parte reprimida, a ordem
social não subsistiria menos. E verdade que surgiria possivelmente
uma nova ordem social que não seria necessariamente centrada de
modo exclusivo nos interesses de alguns poderosos.”’
(Sàndor Ferenczi)2

_________________ Sumário __________________

1. Introdução. 2. Direito à subjetividade. 3. O estresse no


corpo dos Operadores do Direito e no corpo do Judiciário. 4. Os
sistemas. 5. O conflito. 6. O início do uso da subjetividade
como instrumento do conhecimento — o percurso de Freud. 7. O
Direito de Família. 8. Pensar a angústia no cotidiano. 9. Para
finalizar. 10. Referências bibliográficas.

Tradução livre. Conferência Importance de la psychana]yse dans la justice et


dans la société pronun-
ciada na Assodation Nationale der Je~ges ei des Atacats, em 29 de outubro de
1913. Sàndor Ferenczi
Psychanalyse II Oeuvres complêtes 1913-1919, Science de l’homme Payot, 1970,
Paris, França.
2 Psicanalista húngaro, contemporáneo e correspondente assíduo de Frewd,
autor banido das
instituições de ensino da psicanálise durante décadas. Ferenczj— um excluído —
que tem sido só
agora reabilitado graças a um movimento de democratização e de mudança no
sentido das
relações, evidente também nesta ciência. GROENINGA, Giselle. A queda do muro de
Berlim
em Psicanálise. Boletim da Sociedade Psicanalítica de Campinas, 1992.

475

GISELLE GROENINGA

1 INTRODUÇÃO

Tema instigante, um desafio: o Estresse no Exercício do Direito de


Família. Desafio por se tratar da prática de outrem — Operadores do
Direito. Desafio por ser o estresse um termo utilizado pela medicina,
importado da psiquiatria norte-americana. Desafio pensar este tema no
terreno de psicanálise aplicada, ampliação de uma epistemologia e de
uma prática que, ainda timidamente, rompe as fronteiras da própria
instituição e dos consultórios.
O desafio do tema foi-me lançado pelo Dr. Rodn,~go da Cunha Pereira,
que tem realizado a interface do Direito com a Psicanálise. Também na
esfera científica, as fronteiras e as relações se transformam: são tempos
de interdisciplina. Agradeço ao IBDFAM pela oportunidade de refletir a
respeito de tais questões.
Em um mundo em que as fronteiras se modificam, somos chamados
a pensar a complexidade. A época é de globalização, urgindo redimen-
sionar e integrar territórios antes separados: do público e do privado, do
pessoal e do profissional, do trabalho e do prazer, da mente e do corpo —
terreno do estresse.
A presente proposta é de abordar o estresse a partir da interdiscipli-
na, linha de pensamento que permite pensar a complexidade. Serão utiliza-
dos alguns conceitos da psicanálise, para compreender o estresse dos
Operadores do Direito e o estresse do Judiciário, enquanto sistema, e sua
manifestação no cotidiano dos profissionais. O percurso de Freud será
utilizado para ilustrar e inspirar a entrada da subjetividade no campo do
conhecimento científico.

2 DIREITO À SUBJETIVIDADE

O desafio que se apresenta de pensar o estresse no exercício do


Direito de Família é o de defesa do sujeito, sujeito Operador do Direito
ao mesmo tempo em que Sujeito do Desejo. É o desafio de sua escuta,
sujeito corpo e mente, que tem sofrido pressões antes impensadas em
uma época em que as relações familiares, sociais, econômicas e de
trabalho têm se modificado com rapidez impressionante. Tempos de
revolução nas ciências e nas comunicações, em que somos assolados com

476

O ESTRESSE NO EXERCICIO DO DIREITO DE FAMILIA


uma avalanche de informações; tempo em que, subjetivamente e parado-
xalmente a todos os avanços, nos sentimos sem tempo. Isto porque o
tempo da eficiência, ditado inclusive pela economia de mercado, não se
confunde com o tempo para “processar” as angústias, as motivações, os
desejos e os sentimentos, sintonizando-os com o pensamento.
Refletir a respeito do estresse no exercício do Direito de Família
implica pensar a complexidade, o que não permite uma abordagem
inocente, simplista ou unidisciplinar. Para uma compreensão mais abran-
gente em tempos de mudanças, necessitamos do concurso de várias disci-
plinas. As fronteiras das ciências têm se redimensionado, havendo a
complementação das várias áreas de conhecimento. Em todas estas áreas,
defrontar-se com a realidade vista sob uma ótica mais abrangente e que
ressalta sua complexidade tem feito com que reconheçamos nossas limi-
tações e a necessidade de uma colaboração mais efetiva de outras disci-
plinas, de outras práticas para o exercício de nossas profissões, e ouso
dizer, em benefício próprio. Cabe enfatizar que tal complementação não
implica a perda de identidade de cada disciplina. Aliás, ao contrário, na
verdade acaba havendo um fortalecimento da especificidade de cada
conhecimento.3 Estes são tempos de pluridisciplina, multidisciplina,
interdisciplina, transdisciplina.4
Por outro lado, a divisão rígida sujeito/objeto que se fazia tem se
modificado, e verificamos a interferência do sujeito naquilo que é objeto
de investigação e que o próprio conhecimento nunca é desinteressado,
atendendo inclusive às motivações subjetivas, que precisam ser com-
preendidas e inseridas enquanto instrumento do conhecimento científico
e da prática profissional.
A proposta é de refletir a partir do sujeito, de considerar o Sujeito/
Operador do Direito em seu exercício profissional, inversão daquilo a
que estamos acostumados; usualmente, pensamos o objeto do nosso
estudo, de nossa investigação e prática, e os meios para realizar determi-
nados objetivos. O estresse no exercício do Direito de Família implica

3 GROENINGA, Giselle. Mediação: um instrumento da intetdisciplina. Confrréncia


apresentada
no LA.S.P. — Instituto dos Advogados de São Paulo, em junho de 1999.

4 Para uma discussão aprofundada desses conceitos, ver:JAPIASSI.J, Hilton.


Interdirciplinaridade
e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976 e D’AMBROSIO, Ubiratan.
Transdiscejt~’i-
naridade. São Paulo: Falas Athena, 1997.

477

GISELLE GROENINGA

pensar o Operador do Direito em sua subjetividade, ou melhor dizendo, no


direito á sua subjetividade. Subjetividade que tem sido excluída, não pensa-
da no laço relacional, fazendo sintomaticamente sua entrada pela via do
estres se.

3 O ESTRESSE NO CORPO DOS OPERADORES DO


DIREITO E NO CORPO DO JUDICIARIO

Foi Hans S~yIe, psiquiatra norte-americano, que em 1926 utilizou o


termo, emprestado da física, pela primeira vez na área da saúde, para
designar um conjunto de reações não específicas que observou em seus
pacientes. O estresse é definido como uma resposta fisiológica, psicoló-
gica e comportamental advinda da tentativa de ajuste às pressões inter-
nas e externas. E o resultado da adaptação de nosso corpo e de nossa
mente às mudanças ou eventos chamados agentes estressores, requeren-
do esforço físico e psíquico.
Assim, o estresse é um conceito na fronteira entre o físico e o
psíquico e, como tal, sua conceitualização dentro da própria medicina já
contém um embrião interdisciplinar. Como um sintoma multidetermina-
do, deve ser examinado de forma ampla, não a partir de um raciocínio de
causalidade linear.
O estresse no exercício do Direito — o corpo de seus Operadores
que apresenta um sintoma, um sofrimento, um corpo inserido e apropria-
do por outro “corpo” — o Judiciário — que, por sua vez, apresenta sintomas
evidentes de estresse.
O assunto tem sido motivo de preocupação, e diversas recomenda-
ções aparecem nas publicações médicas e nas informações distribuídas
aos leigos,5 como o controle das emoções, diminuir as frustrações, modi-
ficar a rotina de trabalho, não fumar e não beber, praticar exercícios
físicos, o uso “moderado” de medicamentos etc. Recomendações que se
dirigem ao indivíduo, não levando em conta que o estresse é um sintoma
cujo significado requer uma análise mais profunda, que englobe também
o sistema no qual o indivíduo está inserido. As recomendações que

5 Como exemplifica, entre Outras, matéria Como dribtar as doenças da profissâo,


publicada na
seçao Saúde, Espaço CAASP, do Jornal da OAB-SP, out. 2001.

478

O ESTRESSE NO EXERCÍCIO DO DIREITO DE FAMÍLIA

enfocam a pessoa trazem uma mensagem de culpabilização do sujeito por


seus “maus hábitos”, como se bastasse uma modificação no comporta-
mento e como se as emoções pudessem ser simplesmente “controladas
por decreto”.
Já, no que toca ao estresse do Judiciário, as soluções que têm sido
tentadas são, como ressalta a Desembargadora Maria Berenice Dias, à
moda de “cirurgias plásticas ~~6 um sem-número de decretos-lei, novos
códigos, e assim sucessivamente. Comportamento descrito pelo Civilista
Jean Garbonier como um “delírio legiferante”.
Observa-se mesmo a utilização de outras disciplinas (e, por vezes,
a sobreposição indevida de especialidades diversas, sendo comum profis-
sionais do Direito se dizerem um pouco psicólogos), como a psicologia, a
psiquiatria, o serviço social e a psicanálise, como se fossem “calmantes”
para uma ansiedade que, na verdade, necessita ser compreendida. O
mesmo se dá com as indevidamente chamadas formas alternativas de reso-
lução de conflitos, como a mediação e a arbitragem, que têm sua finalida-
de pervertida, sendo utilizadas para “desafogar” o Judiciário, vindo em
socorro a uma instituição em sofrimento.7
Trata-se de um sistema que está em estresse, que apresenta um
sintoma que necessita ter seu significado compreendido. O estresse no
indivíduo deve ser pensado estabelecendo novamente a ligação entre a
mente e o corpo e entre o sujeito e o sistema no qual ele está inserido. O
estresse do corpo do Judiciário simboliza um sintoma de um sistema cujas
finalidades precisam ser repensadas, sistema que reflete a cultura e a socie-
dade na qual está inserido. E um sintoma da apropriação quer do corpo
dos Operadores do Direito quer do “corpo” Judiciário; apropriação do
corpo e dos afetos que também se dá devido a interesses de ordem po-
litica e econômica que, de forma insidiosa, muitas vezes acabam por per-
mear as relações.
É um sistema que sofre e faz sofrer seus operadores, seus sujeitos.
E um sistema em crise — palavra em moda, que indica o momento em que

6 DIAS, Maria Berenice. Nasce um novo (?) Código Civil.Jorna/ Zero Hora de
23.08.2001,Jornal
O Estado de Minas de 29.08.2001.

7 ARRUDA BARBOSA, Âguida; GROENINGA, Giselle; RIBERTI NAZARETH, Eliana.


Mediaçio uma importante ferramenta para a compreensao das demandas judiciais no
Direito
de Família: a experência brasileira. Revirta Brasileira de Direito de Fami/ia,
Sintese/IBDFAM, o. 7,
out./nov./dez. 2000.

479

GISELLE GROENINGA

uma mudança no sistema é iminente. Os tempos são de mudança, as


crises das relações e dos parâmetros que as norteiam refletem-se mutua-
mente nos diversos sistemas, nas instituições como a família, o Estado, o
Judiciário. Os questionamentos que este último tem sido alvo envolvem
não só o objeto dos litígios, mas o próprio sistema utilizado para a com-
preensão e encaminhamento das demandas envolvem os Sujeitos e os
Operadores do Direito, de um modo em que não é mais possível profes-
sar inocentemente uma neutralidade. Tempos de mudanças que, se é
certo que nos angustiam, também anunciam novas possibilidades —
estresse positivo.
Da mesma forma que os sintomas físicos nos contam que algo não
vai bem no corpo, o estresse nos conta que algo não vai bem no sistema
em que estamos inseridos. O problema não pode ser examinado somente
em nível pessoal, individual, é um sintoma que faz parte de todo um
sistema, e dentro desta ótica é que precisa ser compreendido. Podemos
fazer um paralelo de como, atualmente, se pensam as psicopatologias:
levando-se em conta a relação dialética sujeito/ambiente, ou seja, inseridas
em um mundo relacional. A subjetividade de forma geral se funda, se
desenvolve e evolui na intersubjetividade das relações.

4 OS SISTEMAS

Assim, para examinar a angústia no exercício profissional, cabe


to
pensar os sistemas sujeito enquanto um sistema mente-corpo, a Família,
o Judiciário. Os sistemas são uma composição ordenada de elementos em
um todo unificado. Os diversos campos de investigação concentram-se nos
diferentes aspectos ou perspectivas dos elementos e dos sistemas, sendo
necessário o concurso de várias disciplinas para uma abordagem abrangen-
te dos sistemas.
Os sistemas formam-se por um conjunto de elementos em inte-
ração que evolui no tempo e se organiza em função de suas finalidades e
8 A Teoria Geral dos Sistemas ocupa-se das funções e regras estruturais
válidas para todos os
sistemas, independentemente de sua constituição material. As premissas desta
teoria baseiam.
se na intuição de que um sistema em seu conjunto é quaiitativamente diferente da
soma de seu
elementos individuais e comporta-se de modo distinto.

480

O ESTRESSE NO EXERCÍCIO DO DIREITO DE FAMÍLIA

do ambiente. São constituídos de diversos níveis, com características


mais subjetivas ou mais objetivas. Há o nível físico ou somático; o
psíquico dos afetos, dos desejos, o nível psicossocial do exercício dos
papéis, o nível econômico e o nível sociojurídico da repartição dos direitos
e deveres.
As ligações entre os membros do sistema ocorrem em diversos
planos, que vão do mais consciente ao mais inconsciente.
Quando há transposição de níveis e cronificação do conflito, pode-
mos encontrar enfermidade no nível psicológico das emoções e dos
desejos; enfermidade no nível psicossomático — como é o caso do estresse;
problemas sociais, chegando a atos anti-sociais de violência explicita;
empobrecimento no nível econômico e litígios intermináveis no nível
so cio jurídico.

5 O CONFLITO

Os conflitos necessitam ser compreendidos em todos os seus


níveis, de modo a que sejam utilizadas áreas do conhecimento mais ade-
quadas àquela manifestação e de modo a prevenir sua cronificação.
Os profissionais do Direito estão diretamente expostos aos confli-
tos, ao produto de uma luta de forças multideterminadas e que produzem
ansiedade. O conflito e a ansiedade tendem a ser vistos como vilões pela
sociedade de consumo. A ansiedade é uma afeto, uma energia psíquica,
produto de um conflito, que não encontrou seu lugar, sua direção, uma
representação, mas ela sinaliza um perigo. Por não encontrar representa-
ção, a ansiedade fica solta, indo alojar-se, sendo colocada, prqfttada,9 no
corpo, na mente, com diversas manifestações e impedimentos, ou, ainda,
pode ser projetada nas relações. Para dar um exemplo do deslocamento~
da projeção, do afeto e da ansiedade, é comum tentar depositar nossos
sentimentos no outro, por exemplo, quando tentamos encontrar culpados
para nossos sofrimentos e dificuldades.
O estresse, produto de um conflito, é um sintoma vivido no corpo,
na tentativa de dar um lugar para a ansiedade, excluindo a subjetividade.

9 Mecanismo psicológico por meio do qual se busca colocar um conteúdo fora da


mente, na
tentativa dc aliviar o sofrimento.

481
GISELLE GROENINGA

E um sintoma que pode ser positivo, como o pode ser a angústia: um


sinal de alerta, se compreendido.
Os conflitos podem ser vividos em várias áreas, são vários locus de
atualização. Podem ser vividos internamente; podem ser vividos externa-
mente, dentro da família e/ou indivíduo versus o social. O estresse é o
conflito vivido não só na fronteira entre a mente e o corpo, mas entre o
indivíduo e o social, entre o sujeito e o sistema, trata-se do estresse no
exercício profissional. E mais, o conflito vivido pelos Sujeitos do Direito
é deslocado para os profissionais do Direito, sendo por estes absorvido,
muitas vezes, de forma inconsciente.

6 O INÍCIO DO USO DA SUBJETIVIDADE


COMO INSTRUMENTO DO CONHECIMENTO -
O PERCURSO DE FREUD

Guardadas as diferenças entre as disciplinas, e quanto ao objeto de


seu conhecimento e prática, podemos, para ilustrar e inspirar, fazer um
paralelo com o percurso de Sigmund Freud, fundador da psicanálise, que
em sua descoberta do sujeito do Desejo contemplou a entrada da subjeti-
vidade na área do conhecimento científico.
Freud— um neurologista que buscava a objetividade, interessado na
dor e no sofrimento — fez inicialmente estudos a respeito dos efeitos anes-
tésicos da cocaína, tendo ele próprio experimentado. Um interesse em
diminuir a dor e a angústia nos outros e em si próprio.
Iniciou seus estudos com as histéricas, mulheres que apresentavam
sintomas físicos sem explicação objetiva; o problema estava na fronteira
entre a mente e o corpo. Despiu-se das teorias de que dispunha na época
e escutou as pacientes e a si mesmo, dando um lugar à subjetividade,
aliando-se a estas para pensar no significado que tinham seus sintomas.
Buscando sentido, razão, para o que não tinha explicação racional, desco-
briu sentimentos que não ousavam expressar-se abertamente.
Atento aos sentimentos e às expectativas que as pacientes lhe
dirigiam, e que iam além da relação médico-paciente, descobriu o feno-
meno da transjèréncia, que não se restringe à psicanálise. Afetos e expecta-
tivas, dirigidos à figura do profissional, que ultrapassavam a realidade
daquela relação... A semelhança não é mera coincidência, este é um

482

O ESTRESSE NO EXERCÍCIO DO DIREITO DE FAMÍLIA

fenômeno que ocorre em diferentes graus em qualquer relação, sobretudo


nas situações de crise que envolvem as demandas judiciais no Direito de
Família; os profissionais são alvo, sem saber, de expectativas muito além
das que podem atender. Sofrem fortes transferéncias, o que contribui para a
dificuldade de manutenção de uma pretendida neutralidade.
Freud permitiu-se ser objeto da própria investigação, e os psicana-
listas descobriram, em si, sentimentos em relação a seus pacientes que
precisavam ser compreendidos para que fossem utilizados de forma a
melhorar o exercício profissional. Possibilidade que falta, muitas vezes,
aos Operadores do Direito, pressionados pelos prazos e cobrados em
eficiência”. Examinando sua própria subjetividade, Freud descobriu o
fenômeno denominado por seus seguidores de contratransferência — senti-
mentos que de forma inconsciente afetam a relação do profissional com o
cliente. Mais um mito caiu por terra — o de não envolvimento.
O conceito de neutralidade e de não envolvimento tem sido ques-
tionado e modificado em diversas áreas do conhecimento e de atuação.
Impõe-se o mesmo com relação aos Operadores do Direito; o envolvi-
mento que não pode ser pensado e simbolizado faz sua entrada pela
“porta dos fundos da subjetividade”, pelo estresse. Sintoma que expressa
o afeto que faz, de forma deslocada, sua aparição. É o estresse dos Opera-
dores, e é o próprio sistema que se estressa ao tentar subtrair a sub jetivi-
dade, enquadrando os conflitos na moldura objetiva e fria da letra da lei,
sem integrá-la.
Freitd permitiu-se sonhar com uma ciência diferente, fundou a
psicanálise. Permitiu-se analisar seus sonhos e seus desejos, descobrindo
seus significados; despiu-se dos preconceitos e utilizou o mito grego de
Édipo como um paradgima para compreender o ser humano e os impas-
ses da subjetividade.
Da mesma forma que Édipo, frente ao desafio da Esfinge, os
Operadores do Direito sentem o desafio perante a letra fria da lei e a com-
plexidade das relações. Cabe lembrar que, ao lado dos operadores da bolsa
de valores, os Operadores do Direito têm profissão mais estressante, aparen-
temente lidam com valores de outros...
A entrada da subjetividade no conhecimento deu a Freuda permissão
para sonhar, descobrir o significado para os próprios sonhos e para legiti-
mar os desejos em sua possibilidade de satisfação. Brindou-nos com uma
nova ciência, a psicanálise, integrando a subjetividade ao conhecimento.

483

GISELLE GROENINGA

7 O DIREITO DE FAMÍLIA

Fundamental para a nossa humanização e para a humanidade: a


família, em que aprendemos as pautas relacionais que utilizaremos pela
vida. Fundamental para a sociedade, e privilegiado, o exercício do Direi-
to de Família.
A família e as instituições são lugares de desenvolvimento do pen-
samento, que precisa ter em si integrado o sentimento (o termo indica é
sentido); os sistemas servem à realização dos sujeitos em seus diversos
aspectos e de acordo com a finalidade de sua constituição. E não ao contrário
— sujeito escravo das estruturas de poder que se apropriam de seu corpo e
de seus sentimentos, impondo-lhes um outro sentido. Para que o pensa-
mento e as ações se dêem de forma integrada, e de modo a atender à
finalidade de constituição dos sistemas, é necessária uma boa sintonia
entre pensamento e sentimento. Daí a necessidade, não só nas famílias,
mas também para as instituições, de levarem em conta o indivíduo, seus
afetos, seu bem-estar.
Estresse é um carga extra que é colocada no corpo dos Operadores
e no corpo do Judiciário. Ansiedade que tem que ser distribuída, pensada,
simbolizada. O estresse é um sentimento que perdeu seu sentido, sua
direção, transformando-se em angústia. A proposta é a de pensar o Direito
também a partir dos sentimentos de seus Operadores, no “direito à sua
subjetividade”, dando ouvidos ao seu desconforto, encontrando para este
um lugar de legitimidade.
Temos um sistema estressado, operadores estressados e Sujeitos
do Direito insatisfeitos, multiplicam-se as demandas. As histórias, as
queixas e mesmo as piadas, no fundo, não dão conta de uma queixa
maior, legítima: a insatisfação com o sistema e com a forma de atuação.
As ironias procuram dar conta da subjetividade, que encontra aí via de
descarga, mas não necessariamente de elaboração.
É vivência cotidiana no judiciário que seus Operadores sejam alvo
das expectativas, ocupando um lugar afetivo e simbólico para os Sujeitos
do Direito. As questões do envolvimento precisam ser repensadas, sobre-
tudo no Direito de Família, pois seus Operadores passam a fazer parte do
sistema relacional dos sujeitos sem o perceber claramente.
Na área do Direito de Família — esta que tem o afeto como base de
constituição —, há um alto nível de insalubridade num trabalho que lida

484

O ESTRESSE NO EXERCÍCIO DO DIREITO DE FAMÍLIA

com conflitos, que, se não crônicos, tendem a se cronifícar, inclusive


devido ao tratamento que lhes é dado. A questão é que estes se croni-
ficam não só nas demandas, no corpo jurídico, mas também no corpo de
seus operadores.

8 PENSAR A ANGÚSTIA NO COTIDIANO

Para ilustrar brevemente o retorno da subjetividade reprimida nas


relações do Judiciário (não sendo esta a explicação única, linear causal),
gostaria de trazer algumas questões vividas no cotidiano dos Operadores
do Direito. A intenção é mais de exemplificar do que a de oferecer pres-
cnções, à moda de medicamentos. As questões dos honorários e do
tempo fornecem exemplos que poderiam ser identificados simplesmente
como fatores estressores, se utilizássemos um modelo reducionista. Fato-
res que, inclusive, são geralmente utilizados como críticas à atuação do
sistema e dos profissionais.
Muitas vezes acredita-se que os honorários delimitam uma relação
profissional, excluindo-se a subjetividade. E comum ouvir que os profis-
sionais da área do Direito de Família ganham menos do que em outras
áreas, o que não pode ser atribuído somente à finalidade diversa de
outros sistemas como as empresas, mas também à questão de que ocorre,
muitas vezes, uma associação emocional que o profissional não se dá
conta, fazendo um conluio inconsciente que acaba por dificultar a neces-
sária objetividade. Os honorários ganham em importância quando a
relação fica desmesuradamente emocional, podendo ser a preocupação
excessiva com este aspecto um sintoma indicativo de que há necessida-
de, por parte do profissional, repensar seu envolvimento de modo a
objetivar a relação. Já, por parte do cliente, pode-se assistir, por exemplo,
o inverso: a tentativa de subjetivizar e infantilizar a relação, apresentan-
do-se inclusive com menos recursos dos que efetivamente possui, ou
empobrecendo-se no decorrer do tempo de uma demanda judicial.
Um outro fator altamente estressante é o tempo dos processos e os
prazos a que estão sujeitos. Operadores que, como muitos de nós, vêem
seu tempo e emoções capturados pelo trabalho. O tempo aparece como
um sintoma quando não se dá o tempo de elaboração das emoções, dos
conflitos. As questões de Direito de Família envolvem mudanças carre-
485

GISELLE GROENINGA
gadas de emoção, elaborações de lutos, perdas e capacidade de realizar
mudanças. O tempo da subjetividade raramente sintoniza com o tempo
cronológico. Como são situações de crise e, muitas vezes, de sofrimento,
há também a vivência da urgência. Assim os sujeitos do Direito, de
acordo com suas vivências, tentam imprimir um tempo diverso do crono-
lógico, pressionando os profissionais. Estes, por sua vez, sofrem desme-
suradamente em seu cotidiano a pressão dos prazos. Prazos dos proces-
sos ou também urgência ditada pela angústia que busca encontrar um
significado, um remédio, uma sentença. É do cotidiano desses profissio-
nais sentirem-se como que trabalhando em um Pronto Socorro.
Em termos do inconsciente, o tempo inexiste. A pressão dos impulsos
e da angústia busca uma satisfação e solução imediatas; e, em paralelo, a
sociedade de consumo, na era da velocidade das comunicações—feitas
em tempo dito real — demanda e exige rapidez, celeridade. Como se assim
pudéssemos resolver os conflitos, dar cabo da ansiedade e do sofrimento
que a acompanha. Como se pudéssemos acabar com os conflitos e com
os litígios, satisfazer o desejo e viver na paz da eternidade que desconhe-
ce o tempo. Por vezes, é esta uma das bases da queixa da demora do
Judiciário.

9 PARA FINALIZAR

Mais do que um desafio, pensar o estresse no exercício do Direito


de Família representa um convite interdisciplinar para pensar e escutar
não só as insatisfações da prática cotidiana, mas uma possibilidade de
melhor satisfação em sentido amplo: científico, profissional, pessoal. A
idéia é também a de se reapropriar, de retomar o desejo, a motivação, a
vocação, que levaram, em primeiro lugar, a escolher determinada profis-
são; retomar o ideal de realização pessoal do qual o exercício profissional
é mais um local de realização. Falo aqui do desejo, dos sentimentos, que
precisam ser levados em conta para que se retome a motivação, os ideais,
legitimando o desejo no campo de trabalho.
Direito de Família — locus privilegiado do entendimento das rela-
ções e de sua objetivação legal. A partir do entendimento das relações
familiares, do berço do humano e do subjetivo, pode-se passar a pensar
em outros sistemas de acordo com suas finalidades. Mas o essencial pata

486

O ESTRESSE NO EXERCÍCIO DO DIREITO DE FAMÍLIA

a nossa compreensão de outros sistemas humanos está na família e, diria


que, da mesma forma, as questões mais fundamentais do Direito são
discutidas no Direito de Família.
Segundo Dra. Aguida Arruda Barbosa10 e de acordo com a Teoria da
Sociologia Jurídica de Jean Carbonie5 parte-se do Direito Subjetivo para
construir o Direito Objetivo, que se constituirá como uma rede de Direitos
subjetivos. Ainda segundo a autora, isto ocorre como conseqüência do
espaço conquistado pela psicologia e sociologia, pela interdisciplina.
A tendência é a de subjetivação do Direito e a verdade que ele
busca é a verdade das relações. Lembrando o enigma da esfinge no mito
de Édipo, paradigma utilizado pela psicanálise para pensar a humaniza-
ção do ser, “decifra-me ou te devoro”, o mesmo fazem os Operadores do
Direito perante a dita letra fria da lei. Trata-se da necessidade de decifrar
e humanizar as relações.
Como vimos, o envolvimento é via de duas mãos; como osãoa
satisfação dos Operadores e seu conforto enquanto Sujeitos, o que se
reproduz em satisfação e menos sofrimento dos jurisdicionados, e num
melhor funcionamento do sistema, para que atenda efetivamente a suas
finalidades.
Sonhar um exercício do Direito diferente, em que a subjetividade
tenha lugar, em que os desejos e os sentimentos possam ser legitimados,
e não excluídos do exercício do conhecimento, por meio da interdiscipli-
na, é este o sonho que o IBDFAM busca tornar realidade.

10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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psicanálise.
Rio de Janeiro: Revinter, 1999.
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Éditions Erês, 1995.
BATESON, Gregory. Passos hacia una ecologia de la mente: una aproxima-
ción revolucionaria a la autocomprensión deI hombre. Argentina: Gru-
po Editorial Planeta, 1991.

10 ARRUDA BARBOSA, Águida. Palestra preferida na Ordem dos Advogados de


Rondônia, em 1 de

setembro de 2001.

487

GISELLE GROENINGA

BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de


subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
CARBONIER, Jean. Flexible droit~ pour une sociologie du droit sans
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D’AMBROSIO, Ubiratan. Transdisciplinaridade. São Paulo: Palas Athena,
1997.
DAVID-JOUGNEAU, Maryvonne. La médiation familiale: un art de la
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1998.
FREUD, Sz,gmund. Group psychology and the analysis of the ego. The
standard edition of the complete ps~-ychological wor/es of Sígmund Freud. Lon-
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complete psyhological wor/es of Szgmund Freud. Londres: Hogarth Press,
1974, v. XX.
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standard edition of the complete psj’chological worles of St,~gmund Freud. Lon-
dres: Hogarth Press, 1974, v. XVI.
The interpretation of dreams. The standard edition of the complete
p4ychologicalwork,s ofSigmundFreud Londres: Hogarth Press, 1974, v. IV e V.
GAY, Peter. Freud: a life for our time. New York: Norton & Company, 1988.
JAPIASSU, Hilton. Interdisctiplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro:
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PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicana-
litica. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.
ROUDINESCO, Elizabeth. Pourquoi la psjvchana~yse? França: Librairie
Arthême Fayard, 1999.
SEYLE, Hans. Stress. Montreal: Acta, 1951.
SIX, Jean-François. Dinâmica da mediação. Trad. de BARBOSA, Águida
Arruda; NAZARETH, Eliana Riberti; GROENINGA, Giselle. Belo
Horizonte: Del Rey, 2001.

488

AS FAMÍLIAS DO BIOCAPITAL

Betch Cleinman
Jornalista jurídica. Mestra em Cinema
e História pela Ecole des Hautes
Etudes em Sciences Sociales (Paris).

A Michel Lahud, Pasolini, Fassbinde~ Foucau/t

_________________ Sumário __________________

1. Realidade comercial x retórica da defesa da informação


democrática. 2. O mais recente nicho de mercado: as novas
famílias. 3. BaI~y business. 4. Bibliografia.

Atualmente as novas famílias estão sendo definidas por um dos


ramos da indústria biocapitalista financeira: a comunicação, que engloba
mídia e publicidade. A partir da lógica de mercado que rege nossas
sociedades ocidentais contemporâneas, as novas famílias tornaram-se os
mais recentes produtos de consumo, à venda nas boas casas do ramo.
Para o cineasta e poeta Pier Paolo Pasolini:

“Nenhum centralismo fascista conseguiu fazer o que fez o cen-


tralismo da sociedade de consumo. (...) que não mais se contenta
com um ‘homem que consuma’, mas pretende ainda que se
‘‘ 1

tornem inconcebíveis outras ideologias que não a do consumo

Com a vitória do fascismo de consumo (conceito pasoliniano), o


espaço da sociedade foi ocupado pelo mercado. E o cidadão, em nome de

PASOLINI, Pier Paolo. Os jovens infelizes. lo: LAHUD, Michel. (Org.). lo:
Antologia de
ensaios corsários. Sao Paulo: Brasiliense, 1990, p. 57-58.
489

BETCH CLEINMAN

quem o poder é exercido, foi substituído pelas figuras do consumidor,


aquele que tem dinheiro para comprar bens e serviços, e a do excluído, aquele
que nem mais consegue despertar uma ganância sequer para explorar sua
força de trabalho. Produção, segregação, seleção e extermínio dos que
vivem de forma subumana é a outra face do “irracionalismo exuberante
dos mercados”.
E como ficou a informação nesta nova organização social? Fundin-
do exploração e exclusão, limitando a noção de cidadania às noções de
compra e venda, a informação tornou-se uma mercadoria, entendida
tanto como um bem que se adquire e se consome como também como
produtor de mais valia, conceito marxista que designa trabalho humano
concentrado e não pago. Este bem informacional é apresentado ao grande
público como “um atendendo a pedidos”, “uma submissão à audiência”,
dissimulando o caráter impositivo da oferta por parte dos seus donos.
E como são poucos os proprietários dos bens informacionais.
Segundo a especializada publicação norte-americana Varie~y, nos anos de
1999 e 2000, os dez maiores grupos de comunicação no mundo eram: 1)
AOL-Time Warner, 2) Walt Disn~y; 3) Bertelsmann; 4) Neu’s Corp.; 5)
Viacom; 6) Sonji; 7) Universa4 8) AT&T; 9) Comcast, 10) Cox Enterprises.
Recentemente, ocorreram fusões dos seguintes grupos: I/iacom, Paramount,
Bloc/ebuster, Westinghouse e CBS; GE e NBC; Capital Cities, ABC e Disney;
Neavs Cotp., Triangle, 2Oth Centu~y Fox e Metromedia TV; Gannett e
Multimedia; AT&T, NCR e McCaw~, Vivendi e Seagram.
Vejamos mais de perto as conseqüências desta concentração na
difusão de silêncios e notícias:

a) AOL-Time Warner, este grupo é dono das seguintes marcas e


empresas: AOL (American online, que atua na internet), Warner
Music Group (edição musical), Warner Bros (produtora de filmes),
canal Warner ~TV), HBO (canal de filmes), CNN (canal de
informações que pertencia ao grupo Turner), revista Time. Entre
seus principais acionistas, encontram-se: J. P. Mo~an Investment,
American Express, Goldman Sachs, Mer& L~ynch. Autodefinição:
“Valorizamos nossos clientes, colocando suas necessidades e
seus interesses no centro de tudo que fazemos. (...) Temos orgulho
em servir o interesse público bem como os interesses de nossos

490

AS FAMILIAS DO BIOCAPITAL

acionistas”.2 E quem define o que vem a ser interesse público?


Fortes interesses mercantis podem ser os autores desta definição?
b) Vivendi Universal, além de atuar na internet e no setor de teleco-
municações, é dono do Canal + ÇTV paga), Universal Studios (com
um acervo de 9 mil filmes e 30 mil horas de programas de TV), de
selos musicais, detendo ou administrando 800 mil copyrights, que
cobrem 98% do mercado global de música. Na parte editorial,
atua nos setores de jogos, educação, saúde, informação, literatu-
ra. Sua diretoria é formada por representantes das empresas ILouis
Vuitton Moet Henesgy (artigos de luxo), Accor (hotelaria), Alcatel,
Saint Gobain, Seagram (bebida alcóolica), dos bancos BNP Paribas,
Société Générale, principais acionistas. Define sua missão como
sendo a de “promover ganhos consistentes e crescentes para
garantir aos nossos acionistas uma verdadeira criação de valor.
(...) A visão estratégica de nossa empresa é dirigida pelas necessi-
dades do consumidor”.3
c) A rede de TV NBC Nen’s pertence à General Electric, responden-
do por apenas 20/o de seu faturamento; a rede de TV A13C Nens
foi comprada pela Disn~y, que em julho de 2001 adquiriu 1000/o
da Fox Fami!y Worldwide.

Todas estas corporações aproveitam-se do efeito de sinergia pro-


porcionado pelas fusões e aquisições para promover e negociar planetaria-
mente conceitos, produtos, princípios e valores que mais lhes interessam.
Na ciranda mercantil, até mesmo dados pessoais que circulam na rede
transformam-se em mercadorias passíveis de serem comercializadas. In-
vasão de privacidade se traveste assim em atendimento das necessidades
do consumidor. Na busca da otimização de lucros, a maioria dos meios de
comunicação se transforma em sistemas de transmissão de mensagens de
anunciantes. E para imprimir sedução à movimentação de contas e
contos, operam as agências de publicidade, que, seguindo o modelo da
concentração dominante, fundiram-se em cinco grandes grupos de comu-
nicação: os anglo-saxônicos Interpublic, Omnicom, IJ7PP (que representam 70 a

2 Informações obtidas no sire da empresa: www.aol-time warner.com

3 Informações obtidas no sire da empresa www.vivendi-universal.com

491

BETCH CLEINMAN

80% do mercado publicitário mundial) e os franceses Havas Advertising e


Publicis. Só nos Estados Unidos, as despesas publicitárias somam US$
200 bilhões de dólares anuais.
Especialistas apontam a midia como a responsável pelo “consu-
mismo alucinado” característico da contemporaneidade, atribuindo a
origem da supervalorização do consumo à difusão de modelos de sucesso
baseados na associação entre felicidade e posse de objetos e marcas. Entre-
tanto, em presas de comunicação não são entes públicos comprometidos
com o bem comum. Então, elas são o quê? Divisões de grandes corpora-
ções econômicas que, através da posse cruzada de ações, constituem
oligopólios que atuam global e concomitantemente em diferentes seto-
res. Como, então, a comunicação produzida por estes emissores pode
deixar de ser pautada por padrões consumistas? Por que abdicariam da
bocca de la veritá do capital?

1 REALIDADE COMERCIAL x RETÕRICA


DA DEFESA DA INFORMAÇAO
DEMOCRÁTICA
Os veículos de comunicação, no entanto, não se apresentam ante
seus “fregueses” como empresas comerciais, que almejam sobretudo o
máximo de lucro com o mínimo de gastos de fabricação. Em sua face
pública, definem-se como instituições preocupadas com a defesa, difusão
e desenvolvimento da educação, cultura e liberdade de expressão. “Direi-
to de informação é uma conquista da sociedade nos regimes democráti-
cos. Informação e democracia praticamente se equivalem, porque uma
não funciona sem a outra”.4 “Mídia forte é essência da democracia e fator
de expansão cultural”ã
Paralelamente às autodefinições de esteio da democracia, quase
sempre presentes em editoriais e espaços institucionais, as empresas
jornalisticas também fazem campanhas publicitárias, em que anunciam
suas vantagens comparativas em relação aos concorrentes, buscando

4 Editorial do Jornal do Brasil, Sequestro da notícia, 27.08.2001, p. 10.


5 Editorial do Jornal do Brasil, Capital e mídia, 07.08.2001, p.
8.

492

AS FAMÍLIAS DO BIOCAPITAL

do diário paulistano?
atrair consumidores e anunciantes. Na guerra pela audiência, quando
todos os recursos persuasivos são utilizados para aumentar o faturamen-
to, como se encaixam os princípios da ética cidadã crítica?
Otávio Frias Filho, diretor editorial da Folha de 5. Paulo, declarou
em entrevista recente que seu “jornal procura manter compromissos
públicos com as idéias de democracia, participação, mobilização, plurali-
“6

dade e cntlca . Será que estes compromissos estão presentes na publicidade

Vejamos a “campanha de vacina-


1 ção contra a banalização”, datada de
maio de 2000, pois através dela pode-se
analisar o contrato de leitura proposto
aos leitores. No primeiro anúncio, lemos:
“Nem nas nádegas nem na boca. Esta va-
cina vai direto na sua cuca
O emprego da gíria usada por jo-
vens “cuca~~ bem como da expressão “vai
direto” evoca o uso de substâncias tóxi-
cas, ao tentar mimetizar o modo de falar
da juventude sobre experiências alucinó-
genas. Uma informação que entra direta-
mente na cabeça pressupõe a inexistên-
cia ou a ineficácia de barreiras críticas
para recebê-la, denotando por parte do
impor sua visão de mundo ao leitor a
banalização. Mesmo o termo banalização
AEVi4Çk,CaIxt~Á BANAUL1Ø~a
jornal tentativa autoritária de
pretexto de vaciná-lo contra a
encobre a pretensão desta folha de ser a única a poder definir o que vem
a ser uma notícia banal e o seu contrário. Desta maneira, o “cliente da
informação” é considerado um objeto a ser preenchido com sentidos
alheios, com os quais ganhará o estatuto de bem informado aos olhos da
sociedade da comunicação. Para os publicitários que criaram a campanha
e a diretoria do jornal, que a aprovou, o assinante nada mais é que um
tolo que precisa pagar para ser levado pela mão, imagem bem distante da
de um cidadão participante e crítico.

6 Jornal do Brasil, 17.02.2001, caderno B, p. 2.

493

BETCH CLEINMAN

1
na veia.
0800 15 8000
O segundo anúncio é ainda mais dire-
to: uma pistola de vacina, com os dizeres
“informação na veia”. Neste caso, a analogia
com as drogas é ainda mais nítida, pressu-
pondo o leitor como um ser passivo, depen-
dente do jornal para escapar à banalização.
Mais uma vez, emerge uma concepção unila-
teral e autoritária da informação bem como
do destinatário da mensagem, percebido
como um objeto de gozo, uso e troca mer-
cantil, e não como um sujeito de direito, da
história e de desejo.
______________________ A Associação Nacional de Jornais
(ANJ), entidade que congrega as principais
publicações do país, define sua missão como
sendo a de “defender a liberdade de expres-
são, do pensamento e da propaganda, (...) lutar pela defesa dos direitos
humanos, os valores da democracia representativa e a livre iniciativa.”7 E
como estes compromissos incidem em sua campanha publicitária? Veja-
mos os anúncios criados em 2001 para in-
centivar as empresas a comprar espaço em
jornal e não em outros veículos concorrentes.
“O Dia das Mães está chegando. (...)
Não há mídia melhor que jornal para anunciar
o seu produto no Dia das Mães. Sabe por quê?
Em primeiro lugar, porque todo mundo lê jor-
nal: a mãe, que quer ganhar, e o filho, que quer
dar o presente. Em segundo lugar, porque
você pode programar exatamente quando
quer o seu anúncio: muito tempo antes (para
aqueles filhos precavidos) ou só no dia ante-
rior (para os filhos que deixam tudo para a
última hora). Portanto, neste Dia das Mães,
aumente as suas vendas: anuncie em jornal.
Até porque tem uma coisa ainda mais impor-
tante: uma mãe não pode ficar sem presente”.

7 Citaçao extraída do site www.anj.org.br


494

AS FAMILIAS DO B~OCAPITAL

“O Dia dos Pais está chegando. (...) O


que é que vou dar de presente para o meu
pai? Esta é a pergunta que muita gente deve
estar se fazendo agora. A outra pergunta é:
quem vai dar a resposta, você ou seu concor-
rente? Por isso, se você quer falar com mães
e filhos que estão procurando presentes para
maridos e pais, você tem que anunciar em
jornal. Ao contrário do que se pensa, grande
parte dos leitores de jornal são mulheres e
jovens com grande poder aquisitivo. E que
adoram comprar presentes. Ou seja: se você
quer vender muito neste Dia dos Pais, anun-
cie seu produto numa mídia que também faz
a cabeça das mães e dos filhos”.
Eis aí a definição do que é a nova mãe, o novo pai, os novos filhos
das novas fãmílias: consumidores de grande poder aquisitivo, que ado-
ram comprar presentes uns para os outros e que não podem viver sem
presentes.
E quem serão as novas famílias do futuro? Antes de uma família se
constituir, há o casal de namorados e ... o Dia
dos Namorados.
O anúncio dedicado a este tema comu-
nica que “não custa lembrar que nossos leito-
res, além de namorados apaixonados, são
consumidores vorazes, com grande poder
aquisitivo. Por isso, se você quer vender o
seu produto, neste Dia dos Namorados,
anuncie em jornal. Você vai ver o que o amor
e um bom plano de mídia são capazes de
fazer pelas suas vendas”.
E como ficam todos os que não são
consumidores vorazes, nem têm alto poder
aquisitivo? Não namoram? Não constituem
família? Ficam fora do contrato de leitura e
do contrato social ditado pelo mercado?

495

BETCH CLEINMAN

2 O MAIS RECENTE NICHO DE MERCADO:


AS NOVAS FAMÍLIAS

A necessidade de faturar e de criar constantemente novas fontes de


receita, a obrigação de produzir novidades, fazem com que as empresas de
comunicação estejam sempre à espreita das tendências que possam tornar-se
a nova galinha de ovos de ouro. Nesta corrida sem fim pelo lucro, as mudan-
ças nas composições familiares foram percebidas como um novo filão comer-
cial a ser explorado. Assim, em 20 de setembro de 2001, nasceu na França
Triba, a revista das novas famílias, cujo slogan é “a família é uma aventura”.
O jornal Le Monde assim reportou o nascimento do novo pimpolho:

“Porque não existia nenhuma publicação dirigida a estas ‘novas


famílias’; mulheres ou homens sós com crianças; casais criando
juntos filhos de vários casamentos; pais não casados; casais
homossexuais; o presidente do grupo
Nouvel Observateur, Claude Perdrie/, decidiu
~ lançar este projeto, que tem por meta uma
tiragem de 150 mil exemplares em média.
(...) As famílias não usuais viraram prati-
camente a norma. Cada um reinventa seu
modelo. Esta revista será feita para dar
conselhos nas esferas da vida privada, da
educação, da psicologia, das questões de
dinheiro. Pode abordar a mediação fami-
liar ou propor sugestões para famílias ‘elás-
ticas’, que passam de duas a cinco crian-
ças a cada 15 dias. Este projeto conta com
uma verba de cerca de US$1,5 milhão de
dólares, com a previsão de o equilíbrio
financeiro ocorrer em um ano”.8

Entre as várias seções da Triba, como serviços, decoração, beleza,


saúde, existe uma ligada à alimentação. Em seu primeiro número, é abor-
dado o tema do lanche das crianças. Apesar da existência de várias regras
deontológicas que pregam a diferenciação nítida entre as mensagens jor-
8 Jornal Le Monde, 04.09.2001.

496
[tsbatabíe
p.u~
doucurs du 4 heurs
ê.1dt ~ e
de áI.edt.fdã

AS FAMrLIAs DO BIOCAPITAL

nalísticas e as comerciais, esta página é um exemplo claro de simbiose entre o


meio e a mensagem. Os produtos assim apresentados ganham credibilidade
aos olhos do público, pois aparecem como tendo qualidades merecedoras de
figurar em uma reportagem. Já um anúncio publicitário pode despertar
suspeitas nos consumidores porque sua veiculação é feita por dinheiro,
independentemente dos atributos positivos ou não do objeto anunciado.
Ainda no mesmo número da revista
Triba, encontra-se o anúncio da segurado-
ra Ma~f Definindo-se como empresa mili-
tante, apregoa que também faz o seguro
de casais heterossexuais, pois para ela um
lar é sempre um lar, não importando as
pessoas que lá vivam, o estado civil ou sua
orientação sexual.
“Nosso contrato Raqvam, seguro de riscos da
moradia e da vida cotidiana, cobre da mes-
ma maneira todos os casais que vivem sob
o mesmo teto. Mesmo que sejam heteros-
sexuais, até mesmo casados com filhos...”

Através do humor, a publicidade


busca transformar o comum em insólito. Ao causar estranhamento, esta
operação “transformista” abre espaço para a adição de mais consumidores
ao mercado, chamando a atenção geral para o produto/anúncio/anuncian-
te. A partir da construção publicitária, a marca aparece como moderna,
ágil, eficiente, desprovida de preconceitos, apta, portanto, a abocanhar os
contratos dos membros das novas famílias. Mais que uma posição crítica
em relação a uma possível discriminação dos homossexuais, trata-se de um
posicionamento mercadológico visando a seduzir e conquistar o nicho dos
dínks (double income and no kid~ — renda dupla e sem filhos), uma das formas
como é conhecido no meio publicitário o público gqy, sobretudo o masculino.

3 BAB Y BUSINESS

Com o desenvolvimento das ciências e tecnologias da vida, biolo-


gia, biofarmacologia, bio-engenharia, bionomia (manipulação a partir das

497

BETCH CLEINMAN

células), bioterrorismo, o gene tornou-se uma matéria prima como o petro-


leo, o urânio.

‘‘Em torno do mercado de remédios giram bilhões de dólares,


cobrindo doenças como diabete, câncer, obesidade. Estas pes-
quisas passam pela propriedade de bancos de DNA dos doen-
tes, indispensáveis para isolar os genes sensíveis a estas patolo-
gias. De acordo com o Comitê Consultivo Nacional de Bioética,
há 282 milhões de amostras de DNA nos Estados Unidos, dos
quais 2,3 milhões para pesquisa.”9

Na fase atual do capitalismo financeiro biotecnológico, quando a


gestão das técnicas de produção e controle da vida é operada pelas
grandes corporações, as opções sexuais não têm mais a menor importân-
cia. Para o biopoder, o modelo da relação amorosa é o amor entre iguais,
isto é, o amor entre consumidores.
O documentário Southem Comfort,
vencedor do prêmio do Grande Júri do
festival de cinema Sundance de 2001,
mostra os últimos momentos da relação
amorosa de Robert Eads e Lola Cola. A
morte de Robert, aos 53 anos, vitima de
câncer no útero e nos ovários, acabou
com o romance. Além destes represen-
tantes de uma nova família, o filme mostra
vários outros çasais constituídos por trans-
sexuais, que vivem no sul dos Estados
Unidos, terra da Ku-KJux-Kan. Nestas
relações amorosas, juntam-se homens que
originalmente eram mulheres com mu-
lheres que nasceram homens. Nas novas
combinações, há espaço também para o
casal formado por uma transsexual (mu-
lher que virou homem) com uma mulher biológica, cansada de ter sido
enganada, roubada, estuprada por homens. Os hormônios, as cirurgias
“reparadoras”, frutos do casamento da~ ciência com o capital, sustentam a

9 Le Monde D~pIomatique, maio de 2000, p. 24.

498

AS FAMÍLIAS DO BIOCAPITAL

oferta da possibilidade de viver no real a troca do corpo que aprisiona pelo


corpo idealizado. O biocapital acredita não haver fronteiras intranspo-
níveis. Entretanto, toda a testosterona ingerida, responsável por barba e
bigode fartos, não foi capaz de impedir que os órgãos femininos de Robert
fossem capturados pelo câncer.
Nesta fase de hegemonia do biocapital, nada mais rentável para o
sistema do que consumidores de espermas, óvuios, hormônios, técnicas
de reprodução assistida. Afinal, o que poderia ser mais antieconômico do que
um homem e uma mulher se unirem para fazer pelos métodos tradicionais
um filho? Como os laboratórios lucrarão se esta tendência persistir? Como
amortizarão os investimentos feitos em pesquisas para tornar real a
fantasia de homens grávidos, de mulheres gerando filhos sem a participa-
ção de homens? Se a esterilidade de casais foi o pontapé inicial para as
pesquisas, o imperativo de expansão de mercados e de geração de mais
lucros continua seu trabalho de gestação de novos clientes.
A série científica Nova, exibida na rede pública de TV norte-ame-
ricana PBS, em 9 de outubro de 2001, mostrou a existência no mercado
de mais de 30 métodos disponíveis de fazer filho, inclusive para casais do
mesmo sexo. Ei-los: 1) sexo natural; 2) inseminação artificial da mãe com
esperma do pai; 3) inseminação artificial da mãe com esperma do doador;
4) inseminação artificial com óvulo e esperma de doadores, usando mãe
de aluguel; 5) fertilização in vitro usando óvulo e esperma dos pais; 6)
fertilização iii vitro com injeção intracitoplasmática de espermatozóide
(ICSI); 7) fertilização in vitro com embriões congelados; 8) fertilização in
vitro com diagnóstico genético de pré-implantação; 9) fertilização in vitro
com óvulo de doadora; 10) fertilização in vitro com esperma de doador;
11) fertilização in vitro com óvulo e esperma de doadores; 12) fertilização
iii vitro com mãe de aluguel usando óvulo e esperma dos pais; 13) fer-
tilização in vitro com mãe de aluguel e óvulo de doadora; 14) fertilização
zn ouro com mãe de aluguel e esperma de doador; 15) fertilização iii vitro
com mãe de aluguel usando seu óvulo e o esperma do pai da criança; 16)
fertilização iii tibv com mãe de aluguel usando óvulo e esperma de doadores;
17) transferência citoplasmática ainda não disponível, pois aguarda a
aprovação da Food and Drug Administration; 18) transferência nuclear e
clonagem; 19 a 23) associação da injeção intracitoplasmática de esper-
matozóide com as técnicas de 12 a 16; 24) escarificação assistida; 25)
remoção de fragmentos de células; 26) cultura de embriões na trompa de
falópio e no útero; 27) aspiração do esperma testicular; 28) congelamento

499
BETCH CLEINMAN

de um esperma único; 29) após maturação de óvulos imaturos in vitro; 30)


depois do congelamento de óvulos não fertilizados. E por aí vai...
Como a propaganda é a alma do negócio, é preciso anunciar a
existência dessas técnicas para que os clientes potenciais possam exercer
—1 ~ ——

—~ 1 —~
o seu direito supremo: a liberdade de
escolher entre as várias ofertas o pro-
duto mais adequado ao seu bolso e às
suas necessidades.
Na revista australiana ILesbians on
the loose,11 no espaço reservado para anún-
cios relativos à saúde, entre uma ida ao
dentista e outra ao massagista, despon-
ta o Centro de Fertilidade Saint George.
Ele informa “como você também pode
ter um filho”. O “também” é o discreto
indicio de que esta mensagem não se diii-
ge às mulheres em geral, ou às estéreis
em particular. Ela abre a perspectiva
para as lésbicas, leitoras daquela publi-
cação, de tornarem-se mães, desde que
tenham as condições econômicas para levar o projeto até o fim.
No Columbia Dai!y
Spectatos jornal dirigido a alu-
nos e professores da Univer-
sidade de Columbia em
Nova York, encontram-se
anúncios que propõem com-
prar óvulos e espermas. “Aju-
de uma mulher a tornar-se — 4
mãe”; “Dê um presente de
esperança, ajudando muitas ~--~ ~
mulheres a dar início a uma
família usando óvulos doa-

10 http://www.pbs.org/wgbh/nova/baby/l 8ways.html

11 Lesbians on the loo.w, dezembro de 2000, n. 132.

500
1
HOW YOU TOO CAt~
HAVE A BABY

AS FAMÍLIAS DO BIOCAPITAL

dos por outras mulheres”; “Procuramos realizadores de sonhos. Torne-se


uma doadora de óvulo. (...) Neste instante, existem muitos casais que
ansiosamente sonham com um filho. (...) Mulheres entre 21 e 32 anos, de
todos os tipos de ascendência étnica podem participar do programa”.
“Sêmen será usado para inseminação artificial para casais que não podem
ter filhos devido à esterilidade masculina”. Todos estes programas pagam
US$5 mil dólares para os doadores que chegarem ao final dos exames.12
Quando cotejamos anúncios de diversos Centros de Fertilidade perce-
bemos que a dimensão business aparece envolta em roupagens de beneficên-
cia, de ajuda ao próximo que sofre de esterilidade, masculina ou feminina.
HELP A WOMAN
BECOME A MOTHER

DONATE AN EGG

Young donors
wiIl be paid $5000

Please call
(212) 734-5555

Ncw York Futility Instttutc


1016 FIftb As’euue
~.NewYork, NY 10028
SEMEN
DONORS
WAN1ID

— ~ — — n
— « ~•., — — —
Por gume k*nn.Uofl ok
BM~ LAa0A8m~
Na comparação entre eles,
se não se levar em conta a
publicação em que apare-
cem, fica impossível reco-
nhecer a que clientela se
destinam. Mais difícil ain-
da é prever o tipo de famí-
lia que o público alvo vai
constituir: produção inde-
pendente, monoparenta-
lidade programada, casal
homossexual, pais idosos?
A partir da análise dessas
peças publicitárias, fica vi-
sível que a questão da reprodução e da conseqüente constituição de uma
família tornou-se artigo de compra e venda, submetido às leis da oferta e
da procura, como qualquer mercadoria. Pela lógica do mercado, o ser
humano tornou-se mais uma commodi~y.
Apesar dos silicones, das próteses, dos hormônios, das neovaginas,
do babj business, essas novas famílias continuam subordinadas aos precei-
tos ditados e impostos pelo biocapital totalitário, autoritário, disciplinar.
Explorando a ilimitada fantasia humana que, assim como o sonho,
pertence a cada sujeito, o biopoder financeiro busca impor-se como a

12 Columbia Dai/y Spectator, 14 de fevereiro de 2001.

501

BETCH CLEINMAN
única possibilidade de futuro coletivo, mesmo que na forma de uma
sociedade pós-humana, como prevê Fu/e~t~yama.t3
E o Direito nisso tudo? A meu ver, enquanto o Direito limitar-se a
ser apenas uma “máquina de registro das práticas sociais”,14 e não um
instrumento efetivo de contenção do Poder em todas as suas formas e
manifestações (público, privado, biológico, capitalista, do saber, da in-
formação etc), não haverá lugar para o “ínfimo, o inútil, o falho, a falta, a
fala, o verdadeiro capital do sujeito, a expressão de sua singularidade e
dos seus desejos”.t5 Sem limitação da violência arbitrária do Poder, o
cidadão, entendido como sujeito de direito, de desejo e da história, ficará
relegado a mero dejeto anacrônico.

4 BIBLIOGRAFIA

CHOMSKY, Noam; HERMAN, Edward 5. Manufacturing consent, the


political econom~ ofthe mass media. New York: Pantheon Books, 1988.
Media control, the spectacular achievements of propaganda, the open media
pamphlet senis. New York: Seven Stories Press, 1997.
CLEINMAN, Betch. Litígios de estrondo entre os 3 + 1 Poderes da
República. In: cidadania e Justiça. Revista da Associação dos Magistrados
Brasileiros, n. 6, ano 3, 1.0 semestre 1999, Justiça e Informação.
A muralha dos procedimentos inquisitoriais. In: BARANDIER,
Antonio Carlos (Org.). Os novos comités de salvação pública. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2001.
LAHUD, Michel. A vida clara, linguagens e realidades segundo Pasolini. São
Paulo: Unicamp, Cia. das Letras, 1993.

13 Francis Fakujama, o autor que anunciou o fim da história, Sustenta


agora que o “caráter aberto
das ciências contemporàneas da natureza permite-nos supor que daqui a duas
gerações as
biotecnologias nos darão as ferramentas que nos permitirão realizar aquilo que
os especialistas
da engenharia social não conseguiram. Neste estágio, teremos terminado
definitivamente com
a história humana, porque teremos abolido os seres humanos como tais. Começará,
então, uma
nova história, para além do humano”. (O fim da história, 10 anos depois, Le
Monde, 17 de
junho de 1999).
14 LEGENDRE, Pierre. entrevista ao jornal Lo Monde, 22.10.2001.

15 QUINET, Antonio. Descoberta do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 2000.

502

AS FAMÍLIAS DO BIOCAPITAL

McCHESNEY, Robert W. Corporate media and the threat to democraíy, the open
media pamphlet senis. New York: Seven Stories Press, 1997.
PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo eretico, lingua, le/teratura, cinema: le
riflessioni
e le intuizioni dei critico e dell’ artista. 2. ed. Garzanti, 1995.

503
r

PENSÕES SECURITÁRIAS

NO DIREITO DE FAMÍLIA

Guilherme Calmon Nogueira da Gama


Professor-Assistente de Direito Civil na Faculdade de Direito
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Professor-Conferencista de Direito Civil na Escola
da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).
Professor de Direito Civil da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em Direito
Penal pela Universidade de Brasília (UnB). Juiz Federal
no Rio de Janeiro. Ex-Juiz de Direito em São Paulo.
Ex-Promotor de Justiça em Minas Gerais.
Ex-Defensor Público no Rio de Janeiro.

_________________ Sumário _________________

1. Introdução. 2. Proteção ao cônjuge e ao companheiro. 3. Pro-


teção aos filhos. 4. Proteção a outros familiares. 5. Conclusão.

1 INTRODUÇAO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 deu


especial tratamento ao tema Família e Seguridade Social. Nesse sentido,
revela-se o artigo 226, caput, da Carta Magna, que apresenta a correta
dimensão das alterações ocorridas, consubstanciando a regra da especial
proteção que o Poder Público deve prestar às novas famílias — compa-
nheiril, monoparental e assistencial —, sem contudo perder de vista a
tutela da família matrimonial.
Um dos objetivos deste ensaio será retratar as novas famílias no
contexto do Direito Previdenciário brasileiro, no qual assumirá especial
relevância o cotejo entre o Regime Geral de Previdência, em que há enume-

GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA

ração taxativa de beneficiários, ou seja, ordem de vocação para fins de


pensionamento, e os Regimes Especiais de Previdência Social, como
modelos que integram a Seguridade Social, com ênfase nos fundamentos
da solidariedade e necessidade instituídos pelo imperativo legal.
De se notar que, segundo a exegese do artigo 226, caput, essencial
se faz implementar decisivamente os princípios, valores e regras constitu-
cionais pertinentes à família jurídica, objetivando delimitar os dependen-
tes dos segurados/funcionários e, portanto, beneficiários de prestações
previdenciárias lato sensu em razão de contingências verificadas. Neste
mister, há de se observar ainda a disposição do artigo 227, do texto consti-
tucional, que permite reafirmar que ambos os dispositivos concorrem
com destaque para o enquadramento correto das famílias constitucionais
e para a aferição da constitucionalidade a respeito das leis infraconstitu-
cionais editadas anterior e posteriormente à Carta de 1988.
Acerca do Regime Geral de Previdência Social, imagine a hipótese
do segurado casado encontrar-se separado de fato e constituir nova famí-
lia, sendo esta fundada no companheirismo: sua companheira ficaria
privada de qualquer prestação previdenciária? Evidente que não. Desde
que constatado o vínculo familiar entre o segurado e seu parceiro, filho
ou assistido, inequívoca é a condição de dependente do familiar. Do con-
trário, a regra de especial proteção do Estado em favor da família cons-
titucional não estaria sendo cumprida.
As prestações previdenciárias relativas aos dependentes se associam
portanto à solidariedade e à necessidade dos familiares na eventualidade
da ocorrência de alguma das contingências que impeçam a regular assis-
tência material e moral que era prestada pelo segurado/funcionário. Afir-
mar tal fato serve, pois, para analisar o tema envolvendo a configuração
dos dependentes e as circunstâncias em que as prestações securitárias, em
especial as pensões, são devidas a eles.
No Regime Geral da Previdência Social, por força do que dispõem
expressamente o artigo 16, da Lei 8.213/91, e o artigo 16, do Decreto
3.048/99, constata-se a presença de três classes de dependentes, a saber:
a) cônjuge, companheiro, filhos menores de vinte e um anos de idade e
não emancipados (ou inválidos de qualquer idade) e os equiparados a
filhos (enteados e menores sob tutela que não possuam bens suficientes
para o próprio sustento e educação); b) pais; c) irmãos menores de vinte e
um anos de idade e não emancipados (ou inválidos, de qualquer idade).

506

PENSÕES SECURITÁRIAS NO DIREITO DE FAMÍLIA

No Regime Especial da Previdência Social, há que se considerar no


âmbito da União a dependência para fins de pensão militar e de pensão
civil. Sem falar que o mesmo sucede no que pertine aos Estados-mem-
bros, Distrito Federal e Município, cada ente com Regime Especial.
Relativamente à primeira, os artigos 71 e 72, c.c. artigo 156, todos
da Lei 6.880/80, remetem-se à Lei 5.774/71, que nos seus artigos 76 a 78
regula a pensão militar destinada aos dependentes do militar, em seis
classes, na seguinte ordem: a) cônjuge; b) filhos de qualquer condição
ressalvado o filho maior de sexo masculino não-interdito ou inválido e/ou
pessoa que viva sob dependência econômica por, no mínimo, cinco anos,
designada pelo militar viúvo, desquitado ou solteiro, e desde que não haja
subsis-
tido impedimento legal para casamento, sendo que relativamente ao militar
desquitado a designação não poderá ser feita se a ex-esposa era credora de
alimentos; c) netos, órfàos de pai e mãe, ressalvados os maiores do sexo
masculino, não-interditados ou inválidos; d) mãe adotiva, viúva, desquitada
ou solteira, ou ainda casada sem meios de subsistência que viva na dependência
económica do filho (funcionário militar), desde que comprovadamente
separada do marido, e o pai, desde que inválido, interdito ou maior de
sessenta anos; e) irmãs, solteiras, viúvas ou desquitadas, e irmãos menores de
vinte e um anos de idade, desde que mantidos pelo militar, ou maiores
interditos ou inválidos; f) beneficiário instituído desde que seja solteira,
se mulher, ou desde que menor de vinte e um anos ou maior de sessenta
anos de idade, ou interdito ou inválido. Várias destas classes, contempo-
raneamente, não podem mais prevalecer, diante do advento da Magna
Carta de 1988.1

1 Recentemente, o Presidente da República baixou Medida Provisória 2.215-10, de


31 de

agosto de 2001, que em seu art. 27, alterou a sistemática de pensão militar,
estabelecendo três
ordens de vocação para fins de percepção do benefício, in verhis:
Art. 27. A Lei 3.765, de 4 de maio de 1960, passa a vigorar com as seguintes
alterações:
“Art. 1.0 São contribuintes obrigatórios da pensão militar, mediante desconto
mensal em folha
de pagamento, todos os militares das Forças Armadas.
Parágrafo único. Excluem-se do disposto no caput deste artigo:
— o aspirante da Marinha, o cadete do Exército e da Aeronáutica e o aluno das
escolas, centros
ou núcleos de formação de oficiais e de praças e das escolas preparatórias e
eongêneres; e
II — cabos, soldados, marinheiros e taifeiros, com menos de dois anos de efetivo
serviço.” ~NR)
“Art. 3.0-A. A contribuição para a pensão militar incidirá sobre as parcelas que
compõem os
proventos na inatividade.

507

GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA

Quanto à dependência para fins de pensão civil na esfera da União,


o artigo 217, da Lei 8.112/90, dispõe sobre a previsão de classes, com a
subdivisão prévia entre pensões vitalicias e pensões temporárias. Assim,
no tocante às pensôes vitalícias, a ordem de classes é a seguinte: a) cônjuge,
ex-cônjuge desquitado, separado judicialmente ou divorciado com percepção de
alimentos do funcionário e companheiro designado que comprove união
estável; b) mãe e pai, dependentes econômicos do servidor, pessoa desig-
nada, maior de sessenta anos, e pessoa portadora de deficiência, depen-
dentes econômicos do servidor. Enquanto, para as pensôes temporárias, a
ordem de classes é: a) filhos ou enteados menores até vinte e um anos de
idade, filhos ou enteados maiores inválidos enquanto durar a invalidez,

Parágrafo único. “A alíquota de contribuição para a pensão militar é de sete e


meio por
cento. (NR)
“Art. 4•o Quando o militar, por qualquer eireunstáncia, não puder ter descontada
a sua
contribuição para a pensão militar, deverá ele efetuar o seu recolhimento,
imediatamente, à
unidade a que estiver vinculado.
Parágrafo único. Se, ao falecer o contribuinte, houver dívida de contribuição,
caberá aos
beneficiários saldá-la integralmente, por ocasião do primeiro pagamento da
pensão militar.” (NR)
“Art. 7•o A pensão militar é deferida em processo de habilitação, tomando-se por
base a
declaração de beneficiários preenchida em vida pelo contribuinte, na ordem de
prioridade t
condições a seguir:
— primeira ordem de prioridade:
a) cônjuge;

é) companheiro ou companheira designada ou que comprove união


estável como entidade
familiar;
c) pessoa desquitada, separada judicialmente, divorciada do
instituidor ou a ex-convivente,
desde que percebam pensão alimentícia;
ei) filhos ou enteados até vinte e um anos de idade ou até vinte e quatro anos
de idade, se
estudantes universitários ou, se inválidos, enquanto durar a invalidez; e
e) menor sob guarda ou tutela até vinte e um anos de idade ou, se
estudante universitário, até
vinte e quatro anos de idade ou, se inválido, enquanto durar a invalidez.
II — segunda ordem de prioridade, a mãe e o pai que comprovem dependência
económica do
militar;
III — terceira ordem de prioridade:
a) o irmão órfio, até vinte e um anos dc idade ou, se estudante universitário,
até vinte e quatro
anos de idade, e o inválido, enquanto durar a invalidez, comprovada a
dependência economica
do militar;
é) a pessoa designada, até vinte e um anos de idade, se inválida, enquanto durar
a invalidez, ou
maior de sessenta anos de idade, que vivam na dependência econômica do militar.
~ li A concessão da pensão aos beneficiários deque tratam o inciso 1, alíneas a,
é, cc a’, exclui
desse direito os beneficiários referidos nos incisos Ii e III.

508

PENSOES SECURITÁRIAS NO DIREITO DE FAMÍLIA

menor sob guarda ou tutela até vinte e um anos de idade; b) irmão órfão
até vinte e um anos de idade dependente econômico do servidor, irmão
inválido dependente econômico enquanto durar a invalidez, pessoa de-
signada dependente econômico do servidor até vinte e um anos e pessoa
designada dependente econômico e inválida enquanto durar a invalidez.
Nos termos do artigo 218, da Lei 8.112/90, a pensão civil será
concedida integralmente ao beneficiário da pensão vitalícia, sendo o
único (caput do artigo), ou será distribuída em partes iguais entre os
beneficiários da pensão vitalicia (Ç 1.0, do artigo 218). Caso somente haja
beneficiário de pensão temporária, a pensão será concedida integralmen-
te ao único beneficiário ou, havendo mais de um, será rateada igualmente

~ 2.” A pensão será concedida integralmente aos beneficiários do inciso 1,


aligeas a e é, ou
distribuída em partes iguais entre os beneficiários daquele inciso, alíneas a e
e ou é e e,
legalmente habilitados, exceto se existirem beneficiários previstos nas suas
alíneas dc e.
~ 3.” Ocorrendo a exceção do ~ 2.”, metade do valor caberá aos beneficiários do
inciso 1, alíneas a
e e ou é e e, sendo a outra metade do valor da pensão rateada, em partes iguais,
entre os bene-
ficiários do inciso 1, alíneas de e. (NR)
“Art. 15. A pensão militar será igual ao valor da remuneração ou dos proventos
do militar.
Parágrafo único. A pensão do militar não contribuinte da pensão militar que vier
a falecer na
atividade em conseqüência de acidente ocorrido em serviço ou de moléstia nele
adquirida não
poderá ser inferior:
1 — à de aspirante a oficial ou guarda-marinha, para os cadetes do Exército e da
Aeronáutica,
aspirantes de marinha e alunos dos Centros ou Núcleos de Preparação de Oficiais
da reserva;
OU

II — à de terceiro-sargento, para as demais praças e os alunos das escolas de


formação dc
sargentos.” ~NR)
“Art. 23. Perderá o direito à pensão militar o beneficiário que:
— venha a ser destituído do pátrio poder, no tocante às quotas-partes dos
filhos, as quais serão
revertidas para estes filhos;
II — atinja, válido e capaz, os limites de idade estabelecidos nesta Lei;
III — renuncie cxprcssamente ao direito;
IV — tenha sido condenado por crime de natureza dolosa, do qual resulte a morte
do militar ou
do pensionista instituidor da pensão militar.” (NR)
“Art. 27. A pensão militar não está sujeita à penhora, seqüestro ou arresto,
exceto nos casos
especificamcnte previstos cm lei.” ~NR)
“Art. 29. E permitida a acumulação:
— de uma pensão militar com proventos de disponibilidade,
reforma, vencimentos ou
aposentadoria;
II — de uma pensão militar com a dc outro regime, observado o disposto no art.
37, inciso XI,
da Constituição Federal.” (NR)

509

GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA

entre todos (~ 3•o, do artigo 218). E, na eventualidade de haver bene-


ficiários de pensão vitalicia e de pensão temporária, o § 2.0, do artigo 218,
da Lei 8.112/90, determina que metade do valor da pensão caberá ao(s)
titular(s) da pensão vitalicia, e a outra metade caberá ao(s) titular(s) da
pensão temporária.
Constata-se, de acordo com os Regimes de Previdência Social, a
completa diversidade de tratamento legislativo envolvendo a temática
dos dependentes e das pensões.
Entre os diferentes regimes, destaca-se o Regime Geral de Previ-
dência Social pela enumeração clara e direta dos beneficiários, com a
previsão da ordem das classes de maneira transparente, simplificando,
assim, o sistema de habilitação e concessão de pensões, nos termos do
tratamento dado pela Lei 8.213/91.
Os Regimes Especiais de Previdência, no âmbito do Funcionalis-
mo Público da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, demons-
tram, ao contrário, ainda hoje comportam a concessão de privilégios para
determinadas pessoas, discriminando de maneira odiosa os gêneros mas-
culino e feminino, bem como o companheirismo, tudo em flagrante avilta-
mento ao ditame do artigo 226, da CF.

2 PROTEÇÃO AO CÔNJUGE E AO COMPANHEIRO

Nos diversos Regimes de Previdência, afiguram-se o cônjuge e o


companheiro sobreviventes como dependentes situados na primeira clas-
se da ordem de vocação para fins de prestação securitária, principalmente
no que toca à pensão.
Tal previsão legal acerca da pessoa do cônjuge como integrante da
primeira classe tem como fundamento o dever de assistência previsto no
artigo 231, inciso III, do Código Civil, e este, por sua vez, se alicerça na
solidariedade familiar inerente à sociedade conjugal. Quanto ao compa-
nheiro, tal previsão se encontra no artigo 2.0, inciso II, da Lei 9.278/96.
Assim, de maneira a não permitir que o cônjuge e o companheiro
sobreviventes possam sofrer privações, além da própria dor emocional
decorrente da perda do ente querido, o Poder Público os arrola como
integrantes da primeira classe da ordem securitária. Da mesma forma, na
eventualidade da prisão do mantenedor da família, o cônjuge ou compa-
510

PENSOES SECURITARIAS NO DIREITO DE FAMÍLIA

nheiro solto é vocacionado como beneficiário da prestação do auxílio-


reclusão, diante dos fundamentos da solidariedade e da necessidade.
O cônjuge e o companheiro são dependentes econômicos presumi-
dos, diante do dever recíproco entre seus respectivos parceiros de assis-
tência material (ou de socorro), nos termos do ordenamento jurídico
brasileiro, daí a razão da desnecessidade de demonstrar a efetiva depen-
dência econômica em relação ao segurado/funcionário.
Nos termos da Carta, diante da impossibilidade de se distinguir
entre homem e mulher, inclusive quanto aos direitos e deveres decorren-
tes do casamento e do companheirismo, em obediência ao princípio de
igualdade entre sexos, não há mais qualquer possibilidade de se atribuir
direito securitário apenas à esposa, e não ao marido, ou apenas à compa-
nheira, e não ao consorte. Haverá entretanto determinadas situações em
que a distinção é inevitável, diante da existência de justificação e razoa-
bilidade, como a licença-maternidade. Qualquer tratamento diferencia-
do, em relação aos cônjuges e companheiros varão e varoa, é discrimina-
tório, ilegítimo, devendo ser reconhecido como inconstitucional. Esta é a
razão, inclusive, pela qual o artigo 201, inciso V, da Constituição Fede-
ral, ao cuidar da pensão por morte do segurado, no Regime Geral da
Previdência Social, prevê a indistinção do sexo do segurado — homem ou
mulher— para fins de atribuição do direito ao pensionamento em favor do
cônjuge e companheiro sobreviventes.
Questão interessante surge no campo dos benefícios securitários
passíveis de prestação ainda em vida do segurado/funcionário em favor
de seu cônjuge, como dependente. O exemplo do auxílio-reclusão, pre-
visto no inciso IV, do artigo 201, da Constituição Federal, para os
dependentes dos segurados de baixa renda.
De acordo com a previsão constitucional e legal acerca do cônjuge
como beneficiário securitário, indispensável se faz a subsistência do
casamento até a morte do segurado para o reconhecimento da condição
de cônjuge relativamente ao beneficiário da prestação. Nos casos de
dissolução em vida da sociedade conjugal, nos termos do artigo 2.0,
incisos II a IV, da Lei 6.515/77, ou seja, de invalidação do casamento,
separação judicial ou divórcio, deixa de existir o estado civil de casados
entre os ex-conjuges, razão pela qual deixará de haver a condição de
dependente securitário relativamente ao ex-cônjuge.

511

GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA

Nessa matéria, há que ser feita uma ressalva. Nos casos de separa-
ção judicial e de divórcio, como ocorria no antigo desquite, um dos efeitos
possíveis da dissolução da sociedade conjugal entre os ex-cônjuges é a
fixação de alimentos em favor de um deles ou em virtude de acordo em
separação consensual ou por imposição judicial em separação litigiosa.
Sabe-se que o dever de assistência material deixa de existir com a dissolu-
ção da sociedade conjugal, mas no seu lugar a prestação alimentícia
poderá ser instituída com fundamento na solidariedade que ora é reco-
nhecida como um imperativo legal — nos casos de separação litigiosa na
idéia de responsabilidade de um dos cônjuges e inocência do outro —,
além e, fundamentalmente, da necessidade do cônjuge credor. Mais uma
vez, prepondera o binômio: solidariedade e necessidade. Desse modo, uma
vez estabelecida a obrigação alimentar, em razão da dissolução da socie-
dade conjugal em vida dos ex-cônjuges, obrigatoriamente deverá ser atribui-
da pensão securitária em favor do dependente ex-cônjuge diante da ocor-
rência da morte do segurado/funcionário. Esta é a razão da previsão da
pessoa desquitada, separada judicialmente ou divorciada, com percepção de pensão
alimentícia, no artigo 217, inciso 1, b, da Lei 8.112/90, ou do cônjuge
divorciado ou separado judicialmente que recebia pensão de alimentos, no artigo
76,
§ 2.0, da Lei 8.213/91, ou da pessoa desquitada, separada judicialmente, divor-
ciada do instituidor, desde que percebam pensão alimentícia, no art. 70, 1, c,
da Lei
3.765/60 (na redação dada pela Medida Provisória 2.215-10/2001), como
titulares de pensão em virtude da morte do segurado/funcionário.

2.1 Quantum da pensão securitária

Em matéria de pensão atribuida ao ex-cônjuge, credor de alimentos


em vida do segurado/funcionário, o quantum da pensão securitária consti-
tui-se em importante tema ainda não devidamente equacionado. Ora, se
não existia mais a sociedade conjugal entre o casal, por força do divórcio
ou da separação judicial, logicamente que os alimentos foram estabeleci-
dos com base no critério principal da necessidade do credor de alimentos.
Se a pensão securitária visa a substituir a pensão alimentícia que o ex-cônjuge
recebia em vida, logicamente que o quantum da primeira terá que ser exa-
tamente o mesmo dos alimentos prestados em vida, sob pena de verifica-
ção de enriquecimento sem causa. Com efeito, se as necessidades do
credor de alimentos eram restritas, por exemplo, a trinta por cento dos ganhos

512

PENSOES SECURITÁRIAS NO DIREITO DE FAMÍLIA

liquidos do funcionário em vida, não se afigura razoável, ou justificado


nos fundamentos da solidariedade e da necessidade, que o ex-cônjuge
passe a receber a totalidade, ou mesmo cinqüenta por cento, de tais
ganhos, quando da morte do funcionário.2 No entanto, pode eventualmente
ocorrer situação diversa: na eventualidade do falecido haver deixado
vários dependentes na primeira classe da ordem de vocação securitária, e
se verificar que o valor resultante do rateio entre os vários beneficiários
da pensão é inferior àquele recebido em vida. Nesta hipótese, nada
poderá ser feito para melhorar a situação do ex-cônjuge, sob pena de se

2 A despeito de tal observação, a maior parte das leis existentes não restringe
o qaantum da
pensão securitária, como se observa no art. 7.”, ~ 2.” e 3,0, da Lei 3.765/60,
na redação que
lhe foi dada pela Medida Provisória 2.215-10/2001:
“Art. 7•o A pensão militar é deferida em processo de habilitação, tomando-se por
base a
declaraçao de beneficiários preenchida em vida pelo contribuinte, na ordem de
prioridade e
condições a seguir:
— primeira ordem de prioridade:
a) cônjuge;
b) companheiro ou companheira designada ou que comprove união estável como
entidade
familiar;
c~ pessoa desquitada, separada judicialmente, divorciada do instituidor ou a ex-
convivente,
desde que percebam pensão alimentícia;
d) filhos ou enteados até vinte e um anos de idade ou até vinte e quatro anos de
idade, se
estudantes universitários ou, se inválidos, enquanto durar a invalidez; e
e) menor st)b guarda ou tutela até vinte e um anos de idade ou, se estudante
universitário, até
vinte e quatro anos de idade ou, se inválido, enquanto durar a invalidez.
II — segunda ordem de prioridade, a mãe e o pai que comprovem dependência
econômica do
militar;
111 — terceira ordem dc prioridade:
a) o irmão órfiao, até vinte e um anos de idade ou, se estudante universitário,
até vinte e quatro
anos de idade, e o inválido, enquanto durar a invalidez, comprovada a
dependência economica
do militar;
é.) a pessoa designada, até vinte e um anos de idade, se inválida, enquanto
durar a invalidez, ou
maior de sessenta anos de idade, que vivam na dependência econômica do militar.
§ 1.” A concessão da pensão aos benefieiários deque tratam o inciso 1, alíneas
a, é, ce d, exclui
desse direito os beneficiários referidos nos ineisos II e III.
§ 2.” A pensão será concedida integralmente aos beneficiários do inciso 1,
alíneas a e b, ou
distribuída em partes iguais entre os beneficiários daquele inciso, alineas a e
e ou é e e,
legalmente habilitados, exceto se existirem beneficiários previstos nas suas
alineas de e.
§ 3.” Ocorrendo a exceção do § 2.”, metade do valor caberá aos beneficiários do
inciso 1, alineas a
e e ou é e c sendo a outra metade do valor da pensão rateada, em partes iguais,
entre os benefi-
ciários do inciso 1, alíneas de e.” (NR)

513

GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA

lhe atribuir tratamento mais benéfico do que em relação a um familiar do


falecido no momento da morte.

2.2 Extinção da obrigação alimentar

Outro tema intimamente relacionado a este diz respeito às hipóte-


ses que ensejariam a extinção da obrigação alimentar durante a vida do
próprio devedor de alimentos. Nos termos do artigo 29, da Lei 6.515/77,
o casamento superveniente do credor de alimentos extingue a obrigação
alimentar. Ora, mesmo que tenha ocorrido a fixação de alimentos duran-
te a vida, por força de separação judicial ou divórcio, e, conseqüentemente,
tenha sido concedida a pensão securitária por morte do devedor de alimen-
tos, se o pensionista vier a contrair novo matrimônio, deverá ser extinto o
direito à pensão, diante do desaparecimento dos fundamentos que até
então alicerçavam a percepção dos valores da pensão, a saber, a solidarie-
dade e a necessidade. Com efeito, diante do novo casamento, e, logica-
mente, do surgimento dos direitos e deveres matrimoniais, os cônjuges
devem auxílio mútuo e recíproco, não cabendo mais ao Poder Público
substituir a prestação alimentar diante do novo casamento. O mesmo
raciocínio é válido no caso do ex-cônjuge constituir nova família fundada
no companheirismo, diante da existência do dever de socorro também
entre os companheiros.
Há, ainda, a questão envolvendo a separação de fato do casal. Ou
seja: apesar de formalmente o segurado/funcionário ainda preservar o
estado civil de casado, não há mais o casamento de fato. A separação de
fato ganhou extrema importância na Constituição Federal de 1988. O
tema envolvendo a separação de fato e seus reflexos jurídicos deve ser
encarado com muita proximidade à temática do companheirismo, evi-
dentemente com as devidas adaptações e cautelas, pois enquanto a separa-
ção de fato permitirá a desconstituição de uma família, o companheiris-
mo representa a formação de uma nova família.

2.3 Formação e desconstituição da sociedade


conjugal — seus efeitos

Com base no artigo 2.0, capi4 da Lei 6.515/77, a sociedade conju-


gal constituída validamente se extingue, em vida, pela separação judicial

514

PENSOES SECURITÁRIAS NO DIREITO DE FAMÍLIA

ou pelo divórcio. Assim, não há como se pretender que a separação de


fato seja também considerada forma de dissolução da sociedade conju-
gal, levando em conta a circunstância da necessidade da formalização de
tal ruptura, tal como se exigiu na constituição dela própria. No entanto, a
partir do advento do texto constitucional de 1988, com a preponderância
dos valores existenciais, psíquicos, solidaristas e personalistas, é impres-
cindível que se proceda à releitura de várias normas da Lei 6.515/77 e da
legislação em matéria de Seguridade Social — Regime Geral e Regimes
Especiais de Previdência Social —, especialmente em matéria atinente aos
efeitos jurídicos da separação de fato. De maneira antecipada, urge deixar
consignado que o estado civil das pessoas separadas faticamente per-
manecerá sendo o de casado, mas os efeitos jurídicos divergem daqueles
produzidos durante a convivência do casal.
Sabe-se, tradicionalmente, que a dissolução da sociedade conjugal
produz determinados efeitos de natureza pessoal — como, por exemplo, a
cessação dos deveres de coabitação, de fidelidade, e outros de natureza
patrimonial — como, extinção do regime de bens, imposição do dever
alimentar, término do direito sucessório, entre os cônjuges, e também em
relação à prole e a terceiros.
Há, contudo, determinados efeitos que são antecipados no orde—
namento jurídico brasileiro, por força da concessão da medida cautelar de
separação de corpos ou mesmo em virtude de uma separação de fato
precedente, e que são convalidados pela eficácia retroativa da sentença.

2.4 Características e requisitas para a separação


de fato

E necessária a presença de determinados requisitos, de natureza


objetiva e subjetiva, para a configuração da separação de fato como hábil
a produzir determinadas conseqüências jurídicas que, a princípio, somen-
te a dissolução da sociedade conjugal seria o instrumento idôneo. Com
efeito, a própria possibilidade do divórcio direto, evidenciada pela sepa-
ração de fato do casal por dois anos, não necessariamente se verificará
em determinados contextos, como já foi percebido pela doutrina.
Há situações de rompimento da convivência, em que o elemento
anímico que fundamentou a constituição e a própria mantença da união
continua presente, não ensejando, portanto, qualquer consideração acer-
515

GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA

ca da separação de fato. São os casos de: i) internação de um dos cônjuges


por motivo de doença ou acidente, ainda que seja prolongada; ii) os casos
de afastamento por motivo de guerra ou viagens a serviço; e iii) determi-
nados casais que, em homenagem a uma convivência mais salutar de
acordo com seu estilo de vida, optam por manterem residências diversas.
Cabe, por ora, enunciar as características e requisitos indispensá-
veis à configuração da separação de fato. As características são: a) objetivo
de dissolução da família matrimonial anteriormente formada (ainda que de
um somente); b) instabilidade; c) continuidade; d) notoriedade; e) ausên-
cia de formalismo. E, como requisitos, têm-se: 1) os o&etivos~~ a) a existência
de casamento válido; b) ausência de óbice à dissolução da sociedade
conjugal; c) superveniente falta de comunhão de vida; d) lapso temporal
de separação fática; e) falta de justo motivo para a separação; II) os
subjetivos: a) intenção de não mais conviver (impossibilidade de recons-
tituição da vida em comum); b) ausência da affectio ma,italis.
Uma vez configurada a separação de fato de acordo com as carac-
terísticas e requisitos mencionados, e não tendo sido estabelecida a
obrigação alimentar em vida, a hipótese é de cessação da condição de
dependente do cônjuge do segurado/funcionário, o que repercute na
ausência do direito à pensão securitária.
Pode ocorrer, por exemplo, de durante a separação de fato do casal
o homem casado passar a constituir nova união, necessariamente infor-
mal, com outra mulher, e a situação vir a configurar o companheirismo.
Assim, surgiu nova família na posição jurídica de tal pessoa ainda formal-
mente casada, mas se parada de fato.
Na eventualidade de sua morte, deve-se reconhecer a pensão
apenas em favor da companheira, e não da esposa, porquanto não havia
mais solidariedade entre eles, diante da falta dos requisitos para manu-
tenção, de fato, de um casamento, além de inexistir necessidade, já que
durante todo o tempo de separação de fato não houve qualquer pleito
visando à percepção de alimentos em favor de qualquer um dos cônjuges.
A partir do texto constitucional de 1988, mormente da priorização
dos valores existenciais em detrimento dos valores patrimoniais, principal-
mente em matéria de Direito de Família, e, com o advento da Lei 8.408/92
— que diminuiu o prazo da separação-falência para apenas um ano —, e
fundamental que se reconheça que a condição de dependente securitário
do cônjuge deixou de existir no contexto da separação de fato, sob condi-
516

PENSOES SECURITÁRIAS NO DIREITO DE FAMÍLIA

ção suspensiva da dissolução da sociedade conjugal (por morte, separação


judicial, divórcio ou mesmo invalidação do casamento). Trata-se de reler a
normativa infraconstitucional, em especial as Leis 6.515/77, 5.774/71,
6.880/80, 8.112/90 e 8.213/91, à luz dos novos princípios e valores consti-
tucionais, especialmente daqueles que priorizam a valorização do ser, em
detrimento do ter, diante do fenômeno da repersonalização ou despatri-
monialização das relações familiares, que trata notadamente das ques-
tões referentes a afeto, solidariedade, união, harmonia, respeito, confian-
ça, amor, em detrimento da conceituação da família puramente como
sociedade de bens.3
Diversamente da separação de corpos, a separação de fato inde-
pende da iniciativa de instauração da lide processual (daí o informalis-
mo), mas se submete à condição suspensiva quanto à futura dissolução
da sociedade conjugal, sendo hipótese propriamente de condição (e não de
termo, como se poderia supor), levando em conta a possibilidade do desa-
parecimento de um dos requisitos, objetivos ou subjetivos, para a confi-
guração da separação de fato. Imagine-se, por exemplo, que o casal separa-
do de fato reate o relacionamento, terminando com o período de separação
física de corpos.
Desse modo, para evitar soluções injustas, prevenindo o enriqueci-
mento sem causa, além de — e principalmente — cumprir os novos
postulados da Constituição Federal de 1988, urge que se considere que
deixa de ser dependente do segurado/funcionário o cônjuge que haja se
separado de fato, com as características e requisitos enunciados, não
sendo ele credor de alimentos. De maneira correta, o § 2.0, do artigo 76,
da Lei 8.213/91, ao tratar dos casos envolvendo as pessoas separadas
judicialmente e divorciadas, incluiu como beneficiário de pensão securitá-
ria o cônjuge separado de fato que recebia pensão de alimentos em vida,
excluindo, corretamente, os demais.
Atualmente, no Regime Geral da Previdência Social, a previsão
dos companheiros como dependentes recíprocos está contida no art. 16,
inciso 1, da Lei 8.213/91, sendo que no § 3•o, do mesmo dispositivo, há
referência de que a noção de companheiros é aquela contida no art. 226,

3 No entanto, o legislador infraconstitucionai, em regra, prossegue


descumprindo a tábua
axiologica existente a partir de 1988 e continua não ressalvando os caso de
separação de fato
para o fim de não reconhecer direito à pensão (ver a Lei 8.112/90 e a Medida
Provisória
2.21 5-10/2001).

517

GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA

§ 3•o, da Constituição Federal. Contudo, o § 30 do art. 16, da lei citada,


expressamente exclui a possibilidade do dependente ter o estado civil de
casado (evidentemente com terceira pessoa que não seu companheiro).
Tal regra deve ser interpretada no sentido de não se admitir o concubina-
to para efeito de reconhecimento de direito a benefício previdenciário ou
acidentário, e não de excluir qualquer uma das hipóteses de companhei-
rismo, inclusive a da pessoa casada, mas separada de fato por prazo de
dois anos ou mais, e que já esteja neste período mantendo relação
fundada no companheirismo. Caso não seja alcançada tal interpretação,
deve ser reconhecida a inconstitucionalidade da expressão sem ser
casada” contida na disposição em análise, por contrariar a disposição
constitucional que incluiu a pessoa casada, e separada de fato há mais de
dois anos , no conceito de companheira.
Pode-se, tranqüilamente, afirmar que foi justamente na Infortunís-
tica e no Direito Previdenciário que o companheirismo se assentou como
realidade jurídica, deixando de ser estigmatizado e discriminado para
tomar o seu devido assento como fenômeno importante, fato gerador de
família e que, como tal, devia ser tratado.
Outrossim, a atuação de juízes e tribunais na interpretação das
normas de direito social, fulcrada na predominância da eqüidade e no
sentido social, na apreciação dos casos, revelou-se de vital importância,
como aliás freqüentemente ocorre em se tratando de companheirismo.
E, atualmente, como deve ser tratado o companheirismo em mate-
ria de Seguridade Social? Exatamente igual ao casamento, diante do
preceito contido no artigo 226, capu/~, da Constituição Federal, que deter-
mina a especial proteção do Estado, inclusive e principalmente no campo
securitário, à família constitucional, ou seja, inclusive àquela fundada no
companheirismo.
Em virtude das disposições contidas nos art. 16, § 30 da Lei 8.21 3/91,
e artigo 16, § 50 do Decreto 3.048/99, no Regime Geral da Previdência
Social, é considerado dependente do segurado o companheiro, como gêne-
ro — independentemente de sexo —, que se encaixe na noção constitucio-
nal e, portanto, são perfeitamente aplicáveis todas as noções conceituais,
as características e os requisitos mencionados em matéria de companhei-
rismo, sendo possível a existência de companheirismo entre pessoas casa-
das com terceiros, mas separadas de fato, pelo prazo mínimo de dois anos,
desde que observados todos os requisitos previstos.

518

PENSÕES SECURITÁRIAS NO DIREITO DE FAMÍLIA

Observa-se, ainda, que a legislação previdenciária atual não vincula


a caracterização do companheirismo à existência de prole, mesmo para
dispensa de prazo, o que indubitavelmente representa a noção mais con-
sentânea com a realidade fática, no sentido de proporcionar a verificação
efetiva dos requisitos objetivos e subjetivos indispensáveis ao instituto.
Afigura-se, portanto, inconstitucional a disposição contida no arti-
go 16, § 6.0, do Decreto 3.048/99, ao restringir o companheirismo apenas
às pessoas solteiras, separadas judicialmente, divorciadas ou viúvas,
porquanto, conforme foi analisado, a Constituição não restringe o estado
civil dos companheiros, sendo perfeitamente possível que as pessoas
casadas, estando separadas de fato de seus cônjuges, venham a se unir
informal e estavelmente a outra pessoa e, assim, a constituir nova família
fundada no companheirismo, desde que preenchidos os requisitos objeti-
vos e subjetivos assinalados.
A existência (ou não) de filho comum dos companheiros, à evidên-
cia, não pode ser levada em conta como requisito essencial para configu-
ração do companheirismo, servindo, eventualmente, para fins de dimi-
nuição do lapso temporal de convivência, quando este é fixado em patamar
superior a dois anos de convivência. Suponhamos o caso da companheira
estéril, e, portanto, inabilitada para gerar prole: qual seria a razão para
discriminar o companheirismo mantido entre ela e seu parceiro de outra
relação envolvendo duas pessoas que tiveram um filho comum? Pode
ocorrer, inclusive, de no caso da prole comum haver situação típica de
concubinato adulterino, em que, por exemplo, o homem é casado formal
e faticamente com outra mulher e, assim, não constituiu companheirismo
com a mãe de seu filho. Em virtude de tais ponderações, há de se
interpretar o disposto no artigo 16, inciso 1, e § 30 da Lei 8.213/91, à luz
do texto constitucional de 1988, possibilitando a constatação de que
também as pessoas casadas, mas separadas de fato de seus cônjuges,
podem ter constituído nova família e, assim, os companheiros serem
inseridos na primeira classe da ordem securitária como dependentes.
Quanto à pensão militar, no âmbito da União, há claramente várias
incongruências no artigo 78, da Lei 5.774/71, nessa matéria. Nota-se, em
primeiro plano, a existência de limitação ao estado civil do funcionário
militar para fins de designação de dependente econômico. Nos termos do
caput do artigo 78, somente o militar viúvo, desquitado ou solteiro poderá
instituir beneficiário de pensão militar, excluindo, portanto, o militar casa-

519

GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA

do. Assim, tal norma deve ser reinterpretada à luz da Constituição de 1988,
para também incluir o militar casado, desde que configurada a nova família
informal por ele constituída. O § 1.0, do artigo 78, da Lei 5.774/71, esclarece
que, em havendo filhos do militar, a pensão da companheira será apenas
de metade, ao passo que a viúva tem direito à integralidade da pensão:
outra incompatibilidade com a Constituição de 1988, pois em matéria de
proteção do Estado à família não pode haver mais qualquer tratamento
diferenciado no que se refere a direitos e benefícios sociais em favor do
casamento em relação ao companheirismo. Assim, o § 1.0, do artigo 78,
de tal lei, não foi recepcionado pela Constituição de 1988. A necessidade
da aferição do prazo de cinco anos de convivência ainda se mantém,
sendo perfeitamente compatível com a Constituição de 1988, que limita
o prazo ao mínimo de dois anos, podendo ser estabelecido prazo superior
a dois anos para configuração do companheirismo.
A regra que prevê a necessidade de subsistência de impedimento
legal para o casamento entre o militar e o beneficiário da pensão, cons-
tante do caput do artigo 78, também não foi recepcionada pela Constitui-
ção de 1988, pois como visto excluiria a situação de pessoas que vivem
em “uniao estável”.
E, finalmente, a regra contida no § 2.0, do artigo 78, que excluiu o
companheiro da pensão militar, em razão do funcionário militar, separa-
do judicialmente, ser obrigado a prestar alimentos à ex-esposa, contraria
a própria regra constitucional contida no artigo 226, caput, da Constitui-
ção de 1988, pois não enseja proteção à família atual do militar, presti-
giando, tão-somente, a família que deixou de existir. Nesta hipótese, a
regra será a de atribuir pensão militar a ambas: ex-esposa e companheira,
sendo que da mesma forma que foi observado em relação ao casamento o
quantum da pensão militar da ex-esposa se restringirá ao valor da pensão
alimentícia que recebia em vida, e o restante será destinado à companhei-
ra, com a ressalva de que, se a pensão da ex-esposa fosse superior à metade
dos rendimentos do militar, a pensão militar devida a ela não poderá ser
superior à parcela devida à companheira, quando então haveria divisão
igual e eqüitativa da pensão entre elas.4

4 Vale notar que, com a Medida Provisória 2.21 5-10/2001, houve


reformulaç~o da regulamen-
taç~o do companheirismo para fins de pensão militar, n~o sendo mais exigido o
prazo de cinco
anos nem o estado civil restrito de qualquer um dos companheiros.

520
PENSOES SECURITÁRIAS NO DIREITO DE FAMÍLIA

Na hipótese da família fundada no companheirismo ser constituída


por pessoa casada e separada de fato, sem obrigação alimentar da pessoa
do companheiro ao seu cônjuge, não será devida pensão ao cônjuge por
ocasião do falecimento do segurado/funcionário. A família matrimonial
já se encontrava desfeita de fato, e no seu lugar passou a existir nova famí-
lia, ainda que extramatrimonial, mas que, no campo dos efeitos externos
da relação jurídica familiar, em tudo se equipara à família matrimonial. E,
como é posterior à família matrimonial, deve ser contemplada com os
direitos e benefícios securitários previstos em lei, excluindo o cônjuge
que está separado de fato há, pelo menos, dois anos do outro. Somente
haveria a possibilidade do pensionamento securitário em favor do cônju-
ge na eventualidade da estipulação de alimentos em vida deste, e mesmo
assim com limitação quantitativa ao valor da pensão alimentícia recebida
em vida e à metade do valor integral do benefício.
O companheiro somente é beneficiário de pensão securitária se
conviveu com o segurado/funcionário até a época do falecimento deste.
Tal como sucede no casamento, se a sociedade companheiril já havia se
rompido pela separação — na maior parte das vezes — informal dos compa-
nheiros, inexistirá a condição de dependente do ex-companheiro. Ou
seja: ainda que o companheirismo tenha durado vinte anos, mas dois
anos antes do falecimento do segurado, por exemplo, o casal se separara,
não haverá mais a condição de dependente securitário do ex-companhei-
ro e, conseqüentemente, inexistirá qualquer benefício securitário em
favor dele. Há, apenas, uma ressalva: a hipótese de haver sido estabe-
lecida pensão alimentícia em favor do ex-companheiro e, assim, sendo
credor de alimentos, o ex -companheiro terá direito à pensão por morte do
segurado/funcionário, nas mesmas condições de uma pessoa casada —
com as limitações já expostas —, devendo, assim, ser reinterpretada a
legislação infraconstitucional para abranger tal hipótese.5
Não há sentido, com base no artigo 226, capa’, da Constituição
Federal, e nas Leis 8.971/94 e 9.278/96, excluir o ex-companheiro, credor
de alimentos, da ordem de vocação securitária, se em relação aos casados
há regra contida no artigo 76, § 2.0, da Lei 8.213/91, prevendo a conts-
5 Nesse sentido, o art. 70 1, c, da Lei 3.765/60 (com a nova redação dada pela
Medida
Provisória 2.215-10/2001), prevê a pessoa do ex-convivente credora de pensão
alimentícia
como beneficiária da pensão militar.

521

GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA

nuidade do suprimento da necessidade do ex-cônjuge mediante substitui-


ção da pensão alimentícia por pensão securitária.
Todas as observações feitas quanto à extinção do direito ao pensio-
namento por morte do segurado/funcionário, na família matrimonial,
aplicam-se ao companheirismo. Assim, ainda que com o recurso do empre-
go do processo analógico em relação às regras pertinentes ao casamento,
por exemplo o artigo 29, da Lei 6.515/77, o casamento superveniente do
beneficiário de pensão securitária deve, automaticamente, extinguir o
direito à pensão. A própria constituição de nova “união estável”, em
momento posterior ao falecimento do ex-companheiro e ao início da
percepção do benefício securitário, deve gerar a extinção da pensão por
morte, diante da inexistência do fundamento da necessidade, porquanto
será o novo parceiro o responsável em cumprir o dever de assistência
material em relação ao outro, e vice-versa.

3 PROTEÇÃO AOS FILHOS

Acerca das famílias parentais, afigura-se inequívoco que o coman-


do constitucional insculpido no artigo 226, caput, é perfeitamente aplicá-
vel, não sendo possível, assim, que os filhos menores ou inválidos sejam
excluídos da Seguridade Social. Nos termos do artigo 201, incisos IV e
da Constituição Federal, no campo do Regime Geral de Previdência
Social, os filhos menores ou inválidos se inserem na condição de depen-
dentes do segurado, em perfeita consonância com a regra protetiva.
Tal inserção se justifica diante dos dois fundamentos básicos e
essenciais em matéria de Seguridade Social: a solidariedade e a necessida-
de. Sem dúvida, ao lado dos parceiros da conjugalidade e do compa-
nheirato, os filhos menores e inválidos são os familiares que têm maiores
necessidades e demandam a solidariedade de seus pais para sua forma-
ção, desenvolvimento e preparo para a vida comunitária e societária. Em
matéria envolvendo os direitos fundamentais da criança e do adolescente —
e, obviamente, nesse contexto, encontram-se os filhos menores —, o artigo
277, caput, da Constituição Federal, acolhendo expressamente a doutrina
da proteção integral deles, enuncia que:

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e


ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à

522

PENSOES SECURITÁRIAS NO DIREITO DE FAMÍLIA

alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,


à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunltarla

É importante notar que, antes do advento do texto constitucional de


1988, havia tratamento discriminatório quanto à qualificação e direitos dos
filhos, adotando-se como critério a existência ou não de casamento entre os
pais, entre outras otientações. O estigma de determinados filhos, como o
filho adulterino, o filho adotivo, o filho incestuoso, conduziu o legislador
consti-
tuinte a pôr fim ao longo período de exclusão de vários menores e inváli-
dos, ao introduzir o preceito contido no ~ 6.0, do artigo 227, da Magna
Carta, no ordenamento jurídico brasileiro: os filhos, havidos ou não da relação
de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualiflcaçães, proibidas
quaisquer
designaçôes discriminató rias relativas à filiação. Antigamente, por exemplo, o
filho resultante de relação incestuosa entre pai e filha, por exemplo,
som ente poderia ser reconhecido por um deles, sendo peremptoriamente
vedado ao outro o reconhecimento voluntário ou mesmo judicial, diante
do comando — atualmente revogado — contido no artigo 358, do Código
Civil. Contemporaneamente, a situação é completamente distinta, sem a
possibilidade de criar obstáculos, de nenhuma natureza, ao estabelecimen-
to do vínculo de paternidade/maternidade/filiação, ou seja, do vínculo
parental entre pais e filhos. Cuida-se de importante norma principiológica,
com nítido caráter de auto-executoriedade, a terminar com o tratamento
estigmatizante, discriminatório e injusto que se verificava em período
anterior ao texto constitucional de 1988.
Assim, se para resolver problemas concretos, evitando deixar seus
filhos biológicos ao desamparo, muitos pais, estando proibidos de reco-
nhecerem os filhos, acabavam por designá-los como dependentes securl-
tários nas repartições competentes, tratando-se de uma válvula de escape
para atender às necessidades dos filhos menores ou inválidos que, apesar
de não reconhecidos como filhos jurídicos, eram efetivamente filhos e,
portanto, merecedores do sentimento de solidariedade dos segurados/fun-
cionários e, consequentemente, do Estado. Hodiernamente, tal subterfú-
gio não precisa mais ser utilizado, inexistindo razão, portanto, para não
reconhecer voluntariamente o filho como do segurado/funcionário, para
fins de atribuição de inúmeros direitos e vantagens, inclusive no campo
da Seguridade Social:

523

GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA

“Filho é o de qualquer condição: legítimo, legitimado, adulte-


rino, adotivo etc., igualados em direitos pelo § 6.0 do art. 227 da
CRFB.”

A respeito da colocação dos filhos na ordem de vocação secu-


ritária, para fins de reconhecimento do direito a certos benefícios, faz-se
mister apontar que não há como se pensar na equiparação dos filhos
menores aos cônjuges ou companheiros. Os fundamentos jurídicos que
sustentam o pensionamento em favor dos cônjuges ou companheiros são,
em muitos aspectos, diversos das razões que alicerçam o pensionamento
em favor dos filhos menores ou inválidos. Na condição de parentes, pais
e filhos manterão, vitaliciamente, o vínculo parental, que justifica a auto-
ridade parental e, inserido nesta, os deveres de assistência, criação e edu-
cação dos pais em relação aos seus filhos menores e inválidos, nos termos
do artigo 229, da Constituição Federal.
A observação é importante para explicitar que inexiste regra consti-
tucional que determine a equiparação, para fins securitários, dos filhos
aos cônjuges ou aos companheiros. Mas, a despeito da ausência de equipa-
ração, os filhos devem ser protegidos diante do vínculo da parentalidade
que os unem aos seus pais, e uma das formas de proteção estatal se dá
exatamente no campo da Seguridade Social.
Tais ponderações são necessárias para concluir que não existe
hierarquia entre cônjuges, companheiros, filhos menores ou inválidos e
outros familiares que possam vir a ser contemplados na legislação que
regula o Regime Geral e os Regimes Especiais de Previdência Social,
podendo, assim, de acordo com a escolha feita pela lei, haver tratamento
diferenciado, como, por exemplo, o estabelecimento dos cônjuges e com-
panheiros como integrantes da primeira classe da ordem de vocação
securitária, e os filhos menores e inválidos como integrando a segunda ou
posterior classe. Assim, mexi ste incompatibilidade entre a norma constante
do artigo 77, alíneas a e b, da Lei 5.774/71, e os artigos 226, caput e 227,
§ 6.0, ambos da Constituição Federal, já que, no Regime Especial de Previ-
dência Social do funcionário militar da União, a viúva integra a primeira
classe para fins de pensão, excluindo os filhos do benefício da pensão
militar, já que estes integram a segunda classe. Vale observar, no entanto,
que as Leis 8.112/90 e 8.213/91, na parte que regulam, respectivamente,

524

PENSOES SECURITÁRIAS NO DIREITO DE FAMÍLIA

os Regimes Especial do Funcionário Civil da União e Geral de Previdência


Social, seguem tendência de elevar a classe dos filhos menores e inválidos
para integrarem a primeira classe, juntamente com os cônjuges e companhei-
ros, daí o tratamento contido no artigo 16, inciso 1, da Lei 8.213/91, e artigos
217, incisos 1, a, ç II, a, e 218, § 2.0, da Lei 8.112/90.6
A dependência econômica dos filhos, menores ou inválidos, tal
como ocorre em relação aos cônjuges e aos companheiros, é presumida,
sendo desnecessária qualquer demonstração a respeito da insuficiência
de meios para prover o seu próprio sustento, daí a regra constante do § 40
do artigo 16, da Lei 8.213/91. Para a configuração da condição de depen-
dentes do segurado/funcionário, os filhos devem ser menores de vinte e
um anos de idade, não emancipados, ou serem inválidos, a teor dos
artigos 77, b, da Lei 5.774/71, 217, inciso II, a, da Lei 8.112/90, e 16, inciso
1, da Lei 8.213/91.~
Não foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988 as
regras anteriores que distinguiam a prole do sexo feminino daquela do
sexo masculino, em razão de duas regras claras: a) igualdade de direitos e
deveres entre homem e mulher (artigo 50, inciso 1, do texto); b) igualdade
de direitos e qualificações entre filhos, independentemente do sexo
(artigo 227, § 6.0, do texto).
Assim, por exemplo, a regra contida no artigo 77, b, da Lei 5.774/71,
ao estabelecer como beneficiários da pensão militar os filhos de qualquer
condição, exclusive os maiores do sexo masculino, que não s~/am interditos ou

6 Tal tendência também se verifica na nova sistemática da pensão militar


(art. 70, 1, c/, e ~ 2.0
e 3.”, da Lei 3.765/60, na redação dada pela Medida Provisória 2.21 5-10/2001).
7 Interessante mudança foi introduzida pela Medida Provisória 2.215-
10/2001 em matéria de
pensão alimentar, pois, nos termos do art. 70, 1, ti, da Lei 3.765/60 (com nova
redação), os
filhos até vinte e quatro anos dc idade, se estudantes universitários, terão
direito à pensão,
seguindo orientação jurisprudencial em matéria de alimentos:
“Art. 7•o A pensão militar é deferida cm processo de habilitação, tomando-se por
base a
declaração dc beneficiários preenchida em vida pelo contribuinte, na ordem de
prioridade e
condiçóes a seguir:
— primeira ordem de prioridade:

ti) filhos ou enteados até vinte e um anos de idade ou até vinte e quatro anos
de idade, se
estudantes universitários ou, se inválidos, enquanto durar a invalidez;

525
GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA

inválidos, é frontalmente incompatível com os princípios constitucionais


de igualdade entre os sexos e igualdade entre os filhos, não tendo sido
recepcionada a discriminação. Como a hipótese é exatamente a inexistên-
cia do fundamento da necessidade — ao menos presumida — do filho maior,
plenamente apto de suas faculdades mentais e físicas, não há como pre-
valecer a continuidade da regra benéfica às filhas. Outra norma não
recepcionada pela Constituição de 1988 foi aquela constante do parágra-
fo único, do artigo 5.~, da Lei 3.373, de 12 de março de 1958, que previa
a filha solteira como beneficiária da pensão civil por falecimento de
funcionário civil da União, independentemente da idade, somente per-
dendo a condição de dependente quando passasse a ocupar cargo público
permanente.

4 PROTEÇÃO A OUTROS FAMILIARES

Diante do comando constitucional contido no artigo 226, caput, da


Constituição Federal, além das famílias matrimonial, companheiril e
parental, a família assistencial também merece ser protegida, em especial
na pessoa da criança ou do adolescente, com base no caput, do artigo 227,
e § 30 inciso VI, também do texto constitucional. Os deveres do Estado
de ministrar especialproteção à família, nos termos do artigo 226, caput, e de
assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, os direitos à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, à dignidade, ao respeito e à
liberdade,
com base no artigo 227, caput, conjugados com o dever do Estado de
estimular o acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente, ó~/~o
ou
abandonado, com fulcro no artigo 227, § 30 inciso VI, impõem ao Poder
Público a inserção dos menores sob tutela e guarda no âmbito da Seguri-
dade Social na condição de dependentes do segurado/funcionarto.
Dessa forma, o artigo 33 § 30 do da Lei 8.069/90 (conhecida
como ECA), apenas explicitou a condição de dependente da criança ou
ao adolescente inserido na família substituta (guardiã). No Regime Geral
de Previdência Social, com fulcro no artigo 201, incisos IV e V, da Consti-
tuição Federal, inexiste dúvida acerca da inclusão dos menores sob
guarda ou tutela no âmbito da noção de dependência, inclusive para fins de
auxílio-reclusão e de pensão por morte do segurado. Contudo, a condição

526

PENSOES SECURITARIAS NO DIREITO DE FAMÍLIA

de dependente do menor sob guarda ou tutela, relativamente ao segurado/


funcionário, não lhe equipara ao filho, motivo pelo qual é perfeitamente
legítimo e constitucional, por exemplo, que o menor sob guarda ou tutela
seja inserido em classe distinta daquela relativa ao filho, na ordem de
vocação securitária. O que não se afigura constitucional e legítimo, na
ordem jurídico-constitucional pós-1988, é a exclusão de tais crianças e
adolescentes do âmbito de proteção social via Seguridade Social.
Outrossim, a própria determinação constitucional quanto ao estí-
mulo da colocação do menor órfio ou abandonado em família substituta
sob guarda, nos termos do § 30 VI, do artigo 227, da Constituição, não
se restringe, logicamente, a incentivos fiscais e subsídios aos guardiões,
mas extrapola os seus efeitos para inserir tais famílias sob o manto protetor
do Estado. Logicamente, portanto, não há como excluir tais menores da
Seguridade Social, sob pena de se contrariar a Magna Carta. Outro
argumento deve ser apresentado: com a alteração do § 2.0, do artigo 16,
da Lei 8.21 3/91, foram preservadas as referências aos menores sob tutela
e enteados do segurado na condição de equiparados aos filhos como
dependentes, no Regime Geral da Previdência Social. Ora, os enteados
mantêm vínculo de afinidade com o segurado, e, nesse contexto, inte-
gram a família em sentido mais amplo do que a noção de família nuclear
e, na condição de afins, não são mencionados no texto constitucional
para fins de proteção estatal. Assim, afigura-se contraditório e desarra-
zoado que a criança ou adolescente sob guarda seja excluído da proteção
estatal, em contrariedade à regra constante do artigo 226, caput, da
Constituição Federal, ao passo que o enteado seja mantido sob o manto
de proteção do Regime Geral da Previdência Social.
Duas soluções são possíveis, dentro desse contexto: a exclusão do
enteado do rol do § 2.0, do artigo 16, ou o retorno do menor sob guarda
nesse dispositivo. Evidentemente que a solução somente pode ser en-
contrada à luz da Constituição Federal, com a doutrina da proteção
integral da criança e do adolescente, para o fim de se considerar ainda
tutelado pela Previdência Social o menor sob guarda. Ainda: a manuten-
ção do menor sob tutela na redação do dispositivo, por sua vez, também
impõe a continuidade da proteção sobre o menor sob guarda.
Com efeito, a guarda e a tutela são dois institutos expressamente
previstos no ECA como viabilizadores da constituição e manutenção de

527

GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA

família substituta, com diferentes requisitos e efeitos. Contudo, para os


fins assistenciais, inexiste diferença entre tais institutos, já que ambos
visam a atender os interesses da criança e do adolescente, em especial
aqueles relacionados ao resguardo dos seus direitos fundamentais, como
a vida, a liberdade, a dignidade, a convivência familiar, entre outros.
Ora, desse modo, em matéria de especial proteção que o Estado
deve dar à família assistencial, e, principalmente, na pessoa da criança ou
do adolescente, houve equiparação entre os dois institutos. Assim, am-
bos devem ser inseridos no contexto dos Regimes de Previdência Social,
como fez corretamente a Lei 8.112/90, e, originariamente, havia feito a
Lei 8.213/91.
Logo, é inconstitucional o disposto na Lei 9.528/97, retornando à
redação antiga do artigo 16, § 2.0, da Lei 8.213/91. No Regime Especial
de Previdência Social do Funcionário Militar, sob a égide da Lei 5.774/71,
sob o influxo da Constituição de 1988, forçoso se faz incluir os menores sob
guarda e tutela na Seguridade Social no âmbito militar, da União, na
terceira classe da ordem de vocação para fins de pensão militar, junta-
mente com os netos (artigo 77, c, da Lei 5.774/71).8
Há possibilidade dos vários Regimes de Previdência Social incluí-
rem outros familiares que não aqueles tratados nos itens anteriores,
ficando à discrição do legislador a inserção (ou não) de outras pessoas,
sempre com base nos fundamentos de solidariedade e de necessidade.
Normalmente, nesses casos, é necessária a comprovação da necessidade,
conjugada com a dependência econômica do familiar. Contudo, algumas
restrições se verificam nessa matéria, principalmente sob a égide do texto
constitucional de 1988. Assim, por exemplo, não pode haver tratamento
discriminatório, injustificado e desarrazoado, quanto ao sexo, idade,

8 A Medida Provisória 2.215-10/2001 expressamente incluiu tais menores no rol


dos
beneficiários de pensão militar:
“Art. 7. A pensão militar é deferida em processo de habilitação, tomando-se por
base a
declaração dc beneficiários preenchida em vida pelo contribuinte, na ordem de
prioridade e
condições a seguir:
1 — primeira ordem de prioridade:

e) menor sob guarda ou tutela até vinte e um anos de idade ou, se estudante
universitário, até
vinte e quatro anos de idade ou, se inválido, enquanto durar a invalidez.”

528

PENSOES SECURITARIAS NO DIREITO DE FAMILIA

estado civil e alguma outra condição peculiar dos dependentes do segura-


do/funcionário. Sob o próprio manto da proibição constitucional quanto
a tratamento discriminatório em relação aos filhos, é vedado qualquer
benefício para determinados parentes em detrimento de outros, que
guardem semelhante vínculo de parentesco. E, normalmente, o trata-
mento privilegiado deve ser extirpado do ordenamento jurídico-constitu-
cional, diante dos novos valores, princípios e regras constitucionais que,
como visto, estão impregnados de sentido solidarista, humanista, demo-
crático, pluralista e existencial.
Os parentes na linha reta ascendente, em primeiro grau, do segura-
do/funcionário, ou seja, os pais, são normalmente previstos como depen-
dentes desde que comprovada a dependência econômica durante a vida
do segurado/funcionário. A Lei 5.774/71, no artigo 77, cl, prevê uma
regra que deve ser relida à luz da Constituição de 1988, ao cuidar dos pais
como beneficiários de pensão militar. Tal regra é inconstitucional ao
privilegiar a mulher, na condição de mãe do militar, em detrimento do
homem, o pai do militar, o que afronta o artigo 5~O, inciso 1, da Constitui-
ção Federal.
Da mesma forma, tal regra infringe o disposto no artigo 229, parte
final, do texto constitucional de 1988, que cuida do dever dos filhos
maiores de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade, já que
a
norma constitucional, de maneira correta, não distingue o sexo dos pais
para fins de reconhecer o dever de assistência material. Outrossim, a
norma da Lei 5.774/71 impõe como condição o estado civil de viúva,
desquitada (rectius: separada judicialmente e divorciada) ou solteira, admi-
tindo excepcionalmente o estado civil de casada, se ela estivesse separa-
da de fato do seu marido.
Ora, diante dos contornos econômico-sociais de hoje, com graves
crises financeiras, forte exclusão econômica da maior parte da população,
é perfeitamente factível a verificação de situação envolvendo um casal
sexagenário passando por sérias privações materiais, que passe a depen-
der economicamente de um filho, no caso segurado/funcionário. Ora,
exigir a situação de separação de fato do casal para efeito de pensiona-
mento militar é estimular a desagregação familiar, e não dar efetiva
proteção estatal, como exige o artigo 226, capu/~ da Constituição Federal.
Nos termos da Constituição de 1988, a exigência única que deve ser

529

GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA

mantida do texto legislativo de 1971 é a necessidade, ou seja, a compro-


vação da dependência econômica, em vida, dos pais relativamente ao seu
filho, que tinha a condição de funcionário público militar na esfera da
Umao.
Com relação aos parentes na linha reta descendente, em segundo
grau, ou seja, os netos, o único texto pertinente aos Regimes de Previdên-
cia Social na esfera federal que os prevê é a Lei 5.774/71, no artigo 77, c,
sendo estipulado que o direito à pensão militar será reconhecido nas
mesmas condições estipuladas para os filhos. Valem, portanto, relativa-
mente a eles, as mesmas observações já feitas no tocante ao pensionamento
militar, no âmbito da União, em favor dos filhos. Insta apenas acentuar
que os netos integram a terceira classe na ordem de vocação securitária,
no âmbito militar da União, para fins de pensão, e, portanto, se localizam
antes dos pais do militar.
Ainda, no contexto da noção de família em sentido amplo, os
parentes colaterais em segundo grau, ou seja, os irmãos, são arrolados
como beneficiários securitários nos diversos Regimes de Previdência
Social, com algumas diferenças acerca dos requisitos exigidos e o enqua-
dramento na ordem de vocação. A Lei 8.112/90, no artigo 217, inciso II,
c; por exemplo, aponta o irmão como beneficiário de pensão temporária,
mas apenas na eventualidade da inexistência de filhos ou menores sob
guarda ou tutela do funcionário civil, e desde que seja menor órflao não
emancipado ou inválido, comprovada a dependência econômica em
relação ao funcionário.
A Lei 8.213/91, no artigo 16, inciso III, somente atribui pensão no
Regime Geral da Previdência Social ao irmão menor, não emancipado, ou
inválido, desde que não haja qualquer um dos integrantes das duas
primeiras classes na ordem de vocação. Há diferença entre os dois Regi-
mes, o Geral da Lei 8.213/91 e o Especial da Lei 8.112/91, pois o irmão
do funcionário morto poderá ser beneficiário de pensão temporária, mesmo
se houver cônjuge ou companheiro beneficiado pela pensão vitalicia. No
caso da pensão militar, na esfera da União, a Lei 5.774/71, no artigo 77,
e, traz regra que deve ser compatibilizada com a Constituição de 1988.
Serão beneficiados com pensão militar, consoante a redação original: “as
irmãs, germanas ou consangüíneas, solteiras, viúvas ou desquitadas, bem como os
irmãos, germanos ou consangüíneos menores de 21 (vinte e um) anos mantidos pelo
contribuinte, ou maiores interditos ou inválidos”.

530

PENSOES SECURITÃRIAS NO DIREITO DE FAMÍLIA

Evidentemente que esta norma não foi recepcionada em 1988 tal


como foi originariamente pensada pelo legislador ordinário de 1971. O
tratamento diferenciado entre irmã e irmão afronta diretamente o dispos-
to no artigo 5~o, inciso 1, da Constituição Federal, além de inexistir razão
para excluir qualquer estado civil da pessoa do potencial beneficiário da
pensão, sob pena de desmantelamento da família constituída entre o
beneficiário da pensão e seu cônjuge, em contrariedade ao disposto no
artigo 226, caput, da Constituição Federal. Desse modo, tal como se
verifica em relação aos Regimes Geral e Especial, este do Funcionalismo
Púbico Civil da União, a regra contida no artigo 77, e, da Lei 5.774/71, a
respeito dos irmãos, deve ser compatibilizada com a Constituição de
1988, para o fim de exigir apenas a menoridade do irmão, a não-emanci-
pação dele ou a invalidez, bem como a necessidade, ou seja, a comprova-
ção da dependência econômica durante a vida do militar.
Finalmente, não como familiares, algumas pessoas podem ser ins-
tituídas beneficiárias do segurado/funcionário, de acordo com alguns Regi-
mes de Previdência Social. A Lei 8.213/91, na sua redação original,
previa na quarta classe da ordem de vocação securitária a pessoa deszgnada,
menor de 21 (vinte e um) anos ou maior de 60 (sessenta) anos ou inválida. Tal
regra, no entanto, foi revogada pela Lei 9.032, de 28 de abril de 1995, e,
portanto, na atualidade, inexiste regra semelhante. A mudança legislati-
va, nesse particular, não infringiu qualquer valor, princípio ou norma
constitucional, sendo perfeitamente legítima, porquanto tais pessoas não
se inserem no contexto da família constitucional, sendo inaplicável, por-
tanto, o comando constitucional da especial proteção à família. Isso não
significa que o Poder Público não tenha algumas obrigações no campo da
Assistência Social, de caráter universal, exatamente para cuidar de situa-
ções de desamparados e desassistidos, de pessoas excluidas da Previdência
Social.
Outros Regimes de Previdência ainda mantêm a possibilidade da
designação/instituição de beneficiário, como a Lei 8.112/90, no artigo 217,
incisos 1, e, e II, a’, e a Lei 5.774/71, no artigo 77,f Relativamente à pensão
militar, na esfera da União, importante se faz a análise da alinea f do
referido artigo 77, citado: “beneficiário instituído que, se do sexo mascu-
lino, só poderá ser menor de 21 (vinte e um) anos ou maior de 60 (sessenta)
anos, interdito ou inválido e, se do sexo feminino, solteira”. Com efeito, o
tratamento diferenciado entre o beneficiário do sexo masculino em rela-
531

GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA

ção ao do sexo feminino, mais uma vez, afronta o princípio da igualdade


entre homem e mulher em direitos e obrigações, do artigo 5•0, inciso 1, da
Constituição Federal, e, conseqüentemente, não pode subsistir. Assim,
diante da nova ordem constitucional, o beneficiário de pensão militar,
independentemente de seu sexo, somente poderá ser menor de vinte e um
anos não emancipado, maior de sessenta anos de idade, interdito ou
inválido, sendo indispensável a comprovação da dependência econômica
em vida relativamente à pessoa do militar, para que se preserve o funda-
mento da necessidade para a cobertura da contingência envolvendo a
morte do funcionário.

5 CONCLUSAO

Merecem reflexão e registro: i) o reconhecimento da eficácia plena da


norma constitucional contida no art. 226, caput~ da Carta Magna, com a
necessária e obrigatória proteção do Estado a toda e qualquer espécie de
família constitucional, permitindo a adequação dos atos normativos anterio-
res à Constituição de 1988, e o juízo de inconstitucionalidade dos atos
normativos ou posturas estatais contrárias ao princípio protetlvo assegura-
do constitucionalmente; ii) a constatação de que, a verificar-se pela legisla-
ção vigente, a unificação da quase totalidade dos Regimes da Previdência
Social ainda constitui utopia, ocorrendo apenas gradativa diminuição das
diferenças entre os Regimes Geral e Especiais. Entretanto, já se vislumbra
um caminhar na direção de uma futura e inevitável unificação, como se
constata no art. 5•o, da Lei 9.717, de 27 de novembro de 1998.
Aguarde-se, desse modo, que em um futuro não muito distante se
possa afirmar que o Direito brasileiro, em atenção à realidade da vida,
apresente um tratamento condigno, razoável e adequado ao tema Família
e Direito Securitário, implementando os valores e princípios constitucio-
nais insculpidos no texto constitucional de 1988.

532

A TUTELA COMINATÓRIA
NO DIREITO DE FAMÍLIA

RoIf Madaleno
Advogado especializado em Direito de Família.
Diretor Nacional do IBDFAM. Professor de Direito de Família.

_________________ Sumário __________________

1. Introdução. 2. O processo como instrumento de efetividade.


3. Efetividade processual da ação cominatória. 4. O preceito
cominatório. 5. Tutela antecipada e tutela específica. 6. Tutela
específica da obrigação de fazer ou de não fazer. 7. Efetivação
judicial do dever de fazer ou de não fazer. 8. A multa diária —
astn?mte. 9. O valor da multa e sua forma de fixação. 10. A
as/reinte no Estatuto da Criança e do Adolescente. 11. A astreinte
no Direito de Família. 12. A ampliação do espectro de ação da
astreinte no campo do Direito de Família. 13. Bibliografia.

1 INTRODUÇÃO

Desde a época em que prevalecia, num mundo muito pouco infor-


mado, a atuação autodefensiva dos direitos subjetivos até a civilização
que inicia a caminhada temporal do terceiro milênio, tem sido fantásticas
e muitas vezes indescritíveis as mudanças científicas, sociais e jurídicas
sentidas por significativa parcela do tecido social que habita este planeta
Terra, cujas distâncias e espaços vêm paulatinamente encurtando.
Fala-se de um mundo globalizado, da célere informação virtual e
de uma comunicação que precisa ser dinâmica, ágil e eficiente, pois neste
mundo altamente competitivo podemos ser atropelados por máximas
ROLF MADALENO

filosóficas que mensuram o tempo por um equivalente em dinheiro — e


não fazer nada, ou perder tempo fazendo algo que poderia ser realizado
em menor duração, pode nos deixar para trás, enquanto os outros avançam.
Lembra José Rogério Cruz e Tucci’ que nosso Estado contemporâneo
tem por escopo a manutenção da paz social, impondo normas, regulando
a nossa conduta social. Violada a ordem social, quem se diz prejudicado
dispõe dos tribunais para buscar o amparo de seu direito que aventa ter
sido lesado, e para o desenvolvimento desse mecanismo de correção con-
trolada do litígio o Estado confere ao Judiciário a incumbência de decla-
rar quem tem razao.

2 O PROCESSO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVIDADE

O processo é o instrumento destinado à atuação da vontade da lei,


devendo ser desenvolvido mediante um procedimento célere, a fim de
que a tutela jurisdicional emerja realmente oportuna e efetiva, afirma José
Rogério Cruz e Tucci.2 É essencial que a prestação jurisdicional não tarde,
porque de nada serve processo com duração demasiada, pois, como
arremata o José Tucd, os direitos subjetivos dos cidadãos devem ser pro-
vidos da máxima garantia social, com o mínimo sacrifício da liberdade
individual, e, ainda, com o menor dispêndio de tempo e energia.3 Isso
porque estamos impregnados da máxima filosófica que associa nosso
tempo ao dinheiro, limitando o espaço e a extensão dos nossos relaciona-
mentos pessoais e reduzindo sensivelmente a nossa capacidade de tole-
rância. Basta observar que andamos no encalço da praticidade dos nossos
relacionamentos e, ávidos pelas novidades tecnológicas da informática,
nosso precioso companheiro, dele exigimos que nos dê acesso rápido às
informações e à comunicação virtual.
Fácil compreender, portanto, porque ansiamos cada vez mais por
processos que abreviem, com a maior celeridade possível, o tempo da
lesão do direito até a sentença.4 A demora do processo aumenta os custos

1 TUCCI, José Rogério Cruz e. Tempo eprocesso. S~io Paulo: RT, 1997, p. 23.
2 Ibidem, p. 27.
3 Idem.

4 RÚA, Fernando de la. Procesos lentos y reforma urgente. ProcesojJurtitia,


Buenos Aires, Lea,
1980, p. 227. Apud José Rogério Cruz e Tucei, conforme obra citada, p. 27.

534

A TUTELA COMINATÓRIA NO DIREITO DE FAMÍLIA

e pressiona os que são economicamente mais debilitados, servindo a sua


angústia para um forte sentimento de descrença na justiça e uma tendên-
cia em aceitar acordos por valores inferiores à pretensão inicialmente
deduzida. Isso quando não abandonam suas causas e seus advogados,
pela demora exagerada do processo que costuma ser pródigo em desen-
volver uma exaustiva cogniçào. Exatamente por esses motivos é que não
foge à sensibilidade daqueles que operam diretamente com o Direito,
sendo, portanto, digno de encômios, o recente conjunto de reformas
procedidas no processo civil brasileiro, para aproximar o jurisdicionado,
o mais rápido possível, da almejada efetividade da tutela jurisdicional. E
antes de mais nada, como pontua Paulo Lucon,5 um dever estatal de
apreciar as lesões e ameaças a direitos, de modo eficaz e no menor espaço
de tempo possível, “sob pena de consagrar a total falência dos padrões
eleitos de convívio social e das instituições que compõem o Estado
democrático de direito”.
A Comissão Revisora do Código de Processo Civil brasileiro, presi-
dida pelo Ministro S’álvio de Figueiredo Teixeira, informou ser um dos
objetivos das minirrevisões procedimentais:

“Localizar os pontos de estrangulamento da prestação jurisdi-


cional; deixando de lado divergências de ordem doutrinária ou
meramente acadêmicas, assim como outros pontos merecedores
de modificação, apresentar sugestões somente de simplificação,
agilização e efetividade.”

Carreira Alvim qualificou esse estágio, no qual sucederam-se impor-


tantes mudanças na processualística brasileira, como uma imposição dos
novos tempos, no caminho da pacificação dos contendores.6 Humberto
Theodoro Júnioi2 informa ter sido a tarefa da Comissão Revisora afastar os
embaraços que comprometiam o ideal contido nos princípios de econo-
mia e de efetividade do processo.

5 LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Eficácia das decisões e execução provisória.
São Paulo: RT,
2000, p. 181-182.
6 ALVIM, J. E. Carreira. Tutela espec~/ica das obrsgaçães de fazer e não fazer
na reforma processual. Belo
Horizonte: Dcl Rey, 1997, p. 25.

7 THEODORO JÚNIOR, Humberto. As inovaçàes no Código de Processo Civil. 2. cd.


Rio de
Janeiro: Forense, 1995, p. 2.

535

ROLF MADALENO

É porque o excessivo tempo processual tem sido o crônico dilema e o


mais angustiante obstáculo na crença e busca do Judiciário para obtenção da
prestação jurisdicional, sustenta Athos Gusmâo Carneiro8 ser preciso impor
procedimentos menos complexos, na medida em que aumenta o grau de
evidência das pretensões de direito material. Enquanto Cândido Dinamartx2
acrescenta com igual propriedade jurídica que as reformas permitiram uma
justiça mais rápida e mais efetiva, livrando o jurisdicionado de pirotécnicas
construções conceituais, deitadas na processualistica brasileira até então
viciada por um princípio que ignorava que o processo deve estar voltado
muito mais para servir a quem tem direito e menos a quem embaraça esse
direito. Buscar a efetividade é buscar os mecanismos de resultados, é estar na
direção da concreta realização do direito, e não apenas na mera declaração
jurídica desse direito. Reformas que olham partes e processo, sob o prisma da
rapidez da demanda, em detrimento do exacerbado formalismo a que as
partes geralmente são levadas a percorrer até a morosa sentença.
Criando a tutela diferenciada para conceder a proteção do direito
material, antes de exaurida a plena cognição de um extenuante processo
ordinário, através das novas técnicas processuais identificadas pela modali-
dade da tutela antecipada do artigo 273 do CPC e da tutela inibitória do
artigo 461 do mesmo Diploma Adjetivo Civil, foi que o legislador deu um
importante passo para o processo brasileiro melhor cumprir os seus objeti-
vos, de há muito cunhado com o slogan de Giuseppe Chiot’enda:

“Na medida em que for praticamente possível, o processo deve


propiciar a quem tem direito tudo aquilo e precisamente aquilo
que ele tem o direito de obter.”10

3 EFETIVIDADE PROCESSUAL DA AÇÃO COMINATORIA

Na rota das diversas reformas acrescidas ao vigente sistema pro-


cessual, dentre outras, merecem aplausos a Lei 9.079, de 14 de julho de

8 CARNEIRO, Athos Gusmão. Da antecipação de tutela no processo civil Rio de


Janeiro: Forense,
1998, p. 8.

9 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do Código de Processo Civil. São Paulo:


Malheiros,

1995, p. 30.

10 Citado por Paulo Henrique dos Santos Lucon, Eficácia das decisdes e execução
provisória, p. 277.

536

A TUTELA COMINATÓRIA NO DIREITO DE FAMILIA

1995, que integrou no processo brasileiro a ação monitória, e, dentro


desse espírito da maior agilidade da prestação jurisdicional, a Lei 8.952,
de 13 de dezembro de 1994, que cuidou de alterar dispositivos do processo
de conhecimento e do processo cautelar, particularmente no tocante à
tutela antecipada e à tutela inibitória, uma e outra, reguladas respectiva-
mente pelos artigos 273, incisos 1 e II e seus parágrafos, e 461, ~ 1.~, 2.0,
30 4•0 e 5•0 do Diploma Adjetivo Civil. São tutelas objetivando garantir
ou apressar o cumprimento de direito substancial, em que a tutela inibitória
tem por finalidade impedir a prática, a continuação ou a repetição do
ilicito, escreve Lui~ Guilherme Marinoni.11 A inibitória não pode ser con-
fundida com a tutela ressarcitória dirigida à reparação do dano, ela funcio-
na, complementa Marinoni:12

“basicamente, através de uma decisão ou sentença que impõe um


não fazer ou um fazer, conforme a conduta ilícita temida seja de
natureza comissiva ou omtssiva. Este fazer ou não fazer deve ser
imposto sob pena de multa, o que permite identificar o fundamento
normativo desta tutela nos arts. 461 do CPC e 84 do CDC.”

Principalmente buscando, através de condenações pecuniárias


aplicadas pelo juiz, com a intenção de vencer uma histórica resistência do
devedor recaicitrante, pois, como explica António Jeová Santos,13 não é
possível compelir ftsicamente o devedor nem é possível utilizar a violên-
cia para compeli-lo ao cumprimento do que se comprometeu, gerando,
desse modo, na obrigação infungível, o dever de indenizar por perdas e
danos ou, se possível, porque o fato é fungível e não depende da especial
habilidade daquele que se obrigou, mandar executá-la por terceiro, para
posterior débito do devedor.
Como o ordenamento jurídico brasileiro não impunha ao obrigado
um meio coativo de cumprir ao que se obrigara, usualmente o credor
ficava ao inteiro desabrigo de qualquer meio hábil de proteção do direito
ajustado em obrigação de fazer e de não fazer, precisando, assim, se
conformar diante do inadimplemento, com a sua execução por terceiro, à

11 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória (individuale coletiva). São


Paulo: RT, 1998, p. 26.

12 Ibidem, p. 29.

13 SANTOS, Antônio Jeovã da Silva. A tutela antec~bada e execução espec(fica.


Campinas: Copola,

1995, p. 36.

537

ROLF MADALENO

qual precisa adiantar o pagamento da tarefa para depois cobrá-la do devedor


recalcitrante, ou se ver compensado pela indenização por perdas e danos.
Segundo Teori Albino Zavasc/ei:14

“Não havia em nosso ordenamento processual mecanismo que


inibisse, satisfatoriamente, o evento lesivo. Ao credor ameaça-
do apresentava-se como alternativa única buscar tutela median-
te sentença de natureza condenatória, que, quando proferida,
após toda a liturgia de uma ação de conhecimento, provavelmen-
te já seria inútil, pela anterior consumação da ofensa.”

Ao introduzir no processo brasileiro tutelas específicas, como a


cominatória, o legislador arrefeceu bastante o excessivo formalismo até
então em vigor e temperou bem ao gosto da necessária efetividade o real
sentido do princípio constitucional do acesso à justiça.

4 O PRECEITO COMINATÕRIO

O preceito cominatório, antes das atuais reformas que trouxeram


para o processo brasileiro a tutela inibitória do artigo 461, era iluminado
e com outra intensidade de luz apenas pelos artigos 287, 644 e 645 do
Código de Processo Civil. Para Severino Muniz)5 a cominação da pena
pecuniária do artigo 287 do CPC era restrita às obrigações de fazer ou de
não fazer infungíveis, ou seja, sempre que não fosse possível debitar a
terceiro a realização da obrigação. É que sendo fungível a prestação,
pode o credor executá-la, ainda que contrariamente à vontade do deve-
dor, utilizando-se, para tanto, dos serviços de terceiros, e ficando o
devedor responsável pelos respectivos gastos. Sendo infungível a obriga-
ção a ser prestada, a recusa ou demora do devedor importam sua conver-
são em perdas e danos. Entretanto, adverte Athos Gusmâo Carneiro em
14 ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da tutela e obrigações de fazer e de não
fazer. In:

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polémicos da anteczjaçào de


tutela. São
Paulo: RT, 1997, p. 463.

15 MUNIZ, Severino. Açóes cominatórias á luz do art 287 do Código de Processo


Civil São Paulo:
Saraiva, 1983, p. 48.

538

A TUTELA COMINATÓRIA NO DIREITO DE FAMÍLIA

artigo escrito em tempo anterior às reformas processuais, prever o Códi-


go, expressamente, a utilização de multa diária para compelir o devedor a
realizar a prestação de fazer ou de não fazer, porém, desde que a cominação
tenha sido objeto de condenação na sentença que julgou a lide, no processo
de conhecimento.16
Portanto, contrariamente ao sistema hodierno, a tutela inibitória da
pena pecuniária estava posta somente à serviço do demandante que fora
vitorioso na ação de conhecimento, valendo-se da procedência do decre-
to judicial que cominara multa diária para vencer ensaio de recalcitrância
do derrotado devedor, mas privando o credor de operações processuais
mais práticas e efetivas, que, atualmente, permitem a obtenção adiantada
do resultado material ou econômico perseguido pela ação judicial.
Considerando que o art. 287 do Código de Processo Civil apenas
possibilitava que na inicial fosse pleiteado o estabelecimento de multa
para o descumprimento da sentença, e não em decisão liminar ou interlo-
cutória, é que José Carlos Barbosa Moreira17 chamava exatamente a atenção
para a pouca eficácia de uma tutela inibitória relegada ao plano de
exaustão do processo de conhecimento, pontuando que seria fácil assistir
ao risco da lesão material consumar-se na pendência do processo diante
da fatalidade do tempo que se escoaria entre a demanda e o julgamento da
causa, mesmo em condições normais de funcionamento da máquina
judiciária. E recomendava por pesquisa do Direito Processual, que co-
nhecia técnica própria para acudir emergências, que fosse autorizado o
órgão judicial em certas hipóteses a antecipar a prestação da tutela, que
normalmente reclamaria a sentença definitiva por meio de uma ordem
dirigida ao réu com a necessária antecedência, para que se abstivesse da
temida atividade lesiva.
Lui~ Guilherme Marinoni reputa a precedente tutela cominatória do
artigo 287 do CPC como completamente inidônea para garantir uma
18
a multa s
efetiva tutela jurisdicional preventiva, pois ó seria devida se

16 CARNEIRO, Athos Gusmão. Das astreintes nas obrigações de fazer fungíveis.


Ajuris, o. 14,

p. 126.

17 MOREIRA,José Carlos Barbosa. A tutela específica do credor nas obrigações


negativas. Iv: Temas
de direito processual (segunda série). 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 36-
37.

18 MARINONI, Luiz Guilherme. A tutela..., cit., p. 55.

539

ROLF MADALENO

de scumprida a sentença, concluindo José Carlos Barbosa Moreira que “a


partir dessa constatação melancólica”, fazia-se oportuno convocar os
estudiosos a restaurar a dignidade da ação cominatóriaY’
E na esteira desta localização de suplementos jurídicos, de auxílio
e instrumento à estabilidade das decisões judiciais, por certo coloca-se o
preceito cominatório regulado pelo artigo 287 e mais especialmente pelo
artigo 461do CPC.211
Sanções cominatórias constituem uma imposição de caráter pecu-
niário, diz Carreira Alvi’tt, que conclui:

“Destinadas a atuar sobre a vontade da parte que resiste a cumprir


um dever imposto por uma decisão judicial, cujo valor é fixado com
base na capacidade econômica do obrigado, à razão de tanto por
dia, ou outro período, no atraso do cumprimento da obrigação.”21

O preceito cominatório não tem em mira compor o ressarcimento


dos prejuízos, mas sim obter, coercitivamente, o cumprimento da obriga-
ção de fazer ou de não fazer fungível ou infungível. Busca atuar direta-
mente sobre a vontade da pessoa obrigada, estimulando a execução
específica da sua obrigação, já que toda a condenação só pode produzir
efeitos se acatada pelo devedor. Figura a pena pecuniária como um
elemento de apoio ao convencimento do obrigado relutante, que passa a
sofrer uma pressão psicológica pela imposição de multa medida pelo
tempo de sua voluntária resistência em cumprir com a sua obrigação.

5 TUTELA ANTECIPADA E TUTELA ESPECÍFICA

A tutela antecipada do artigo 273 do CPC não se confunde com a


tutela cautelar, embora não se possa perder de vista que a expressão

19 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Tutela sancionatória e tutela preventiva. In:


Temas de direito

processual (segunda série). 2 cd. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 29.

20 MADALENO, Rolf. Ação cominatória no direito de família. In: Direito de


família, aspectos
polémicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 14.

21 ALVIM, J. E. Carreira. Op. cit., p. 109.

540
A TUTELA COMINATÓRIA NO DIREITO DE FAMÍLIA

tutela se estende a todos os provimentos jurisdicionais emitidos no curso


do processo, quer sejam liminar ou não, e que importem em resultados
concretos favoráveis a alguma das partes.22
Segundo dispõe o art. 273 do CPC: “o juiz poderá, a requerimento
da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida
no pedido inicial”, e de modo idêntico observa Ara/een de Assii~

“Formulando o autor pedido condenatório, com o fito de impor


ao réu prestação de fazer ou de não fazer, ao órgão judiciário,
além de conceder a tutela específica, na sentença (art. 461, capta’),
se mostrará licito prover liminarmente a respeito (art. 461, § 3•O),
antecipando, igualmente, semelhante tutela.”23

Tanto a tutela antecipada quanto a específica, dita inibitória, são


aplicáveis ao rito comum, ordinário ou sumário, apenas que a sua aprecia-
ção será de cognição sumária, para ser apresentada e apreciada no corpo do
próprio processo de conhecimento, sempre que presentes os pressupostos
próprios para a sua concessão liminar, antecipando, no caso do artigo 273
do CPC, o direito que a parte pleiteia. Na outra ponta dos provimentos de
tutela por inibição, estando alguém obrigado a realizar um fato, uma presta-
ção de fazer ou de não fazer, e não sendo possível compelir fisicamente o
devedor nem se utilizar de violência para obrigá-lo ao cumprimento do que
se comprometeu, tem lugar a tutela judicial específica. Trata-se de tutela
antecipada, de provimento jurisdicional de conhecimento, com cogniçào
sumária, relativamente exauriente e de cunho satisfativo do direito recla-
mado, ainda que com matizes de restrita provisoriedade e relativa
reversibilidade, diz Reis Friede.24 Sua finalidade é antecipar a tutela buscada
pelo autor em decisão de mérito, mas com a ressalva de ser concessão
provisória, podendo ser revogada ou modificada a qualquer tempo. Deci-
22 TALAMINI, Eduardo. Tutelas mandamental e executiva lato sensu e a antecipação
de tutela

ex vi do art.461, § 3?, do CPC. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.).


Aspectos
polémicos da antecipa(ão de tutela. São Paulo: RT, 1997, p. 145.

23 ASSIS, Araken de. Antecipação de tutela. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim
(Coord.).
Aspectos polémicos da antec~ação de tutela. São Paulo: RT, 1997, p. 13.

24 FRIEDE, Reis. Comentários à reforma do direito processual dvil brasileiro.


Rio dc Janeiro: Forense

Universitária, 1995, p. 173.

541

ROLF MADALENO

são de mérito, explica António Salvador,25 porque julga o pedido e não uma
questão interlocutória, mas também não é sentença, por não extinguir o
processo e não autorizar recurso de apelação.
Já a tutela inibitória é uma tutela específica, pois objetiva conservar
a
integridade do direito, assumindo importância não apenas porque alguns
direitos não podem ser reparados e outros não podem ser adequadamente
tutelados através da técnica ressarcitória, mas também porque é melhor
prevenir do que ressarcir, o que eqüivale a dizer que, no confronto entre a
tutela preventiva e a tutela ressarcitória, deve-se preferência à primeira.t6
O traço em comum, entretanto, entre a antecipação de tutela do
artigo 273 e a tutela específica do artigo 461, ambos do CPC, é que são
duas modalidades da chamada tutela d~ferenciada, que tem por escopo
satisfazer uma pretensão de direito material, que de regra só seria conce-
dida no moroso desfecho do processo. Não são preceitos que se fundem,
porquanto integram o âmbito de alcance da tutela antecipada do artigo
273 do Código de Processo Civil as pretensões embasadas na obrigação
de dar coisa certa ou incerta, enquanto as obrigações de fazer ou de não
fazer compõem o elemento processual de trabalho e incidência da tutela
de inibição do artigo 461 do mesmo Diploma Adjetivo Civil.
Em recente monografia relativa aos deveres de fazer e de não fazer,
pontua Eduardo Talamini que: “o sistema de tutelas estabelecido a partir
do art. 461 não se limita às obrigações propriamente ditas. Estende-se a
todos os deveres jurídicos cujo objeto seja um fazer ou um não fazer.”27
Entende que a tutela específica dá suporte a provimentos destinados a cessar
ou impedir o início de condutas de afronta a qualquer direito da persona-
lidade ou, mais amplamente, a qualquer direito fundamental de primeira
geração, subentendidos direitos como o da integridade física e psicológica,
a liberdade em suas variegadas facetas (como de locomoção, de associa-
ção, de crença, empresa, profissão e assim por diante), além de proteger a

25 SALVADOR, Antônio Raphael Silva. Da ação monitória e da tutela jurisdiciona/


anteczoada. 2. cd.
São Paulo: Malheiros, 1997, p. 60.

26 Lição integralmente extraída do livro Tutela inibitória de Luiz Guilherme


Marinoni. Op. cit.,

p. 28.

27 TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer. São
Paulo: RT, 2001,
p. 127.

542

A TUTELA COMINATÓRIA NO DIREITO DE FAMÍLIA

igualdade, a honra, a imagem, a intimidade, em todos os seus desdobra-


mentos, quer no âmbito público ou privado. Recorda que a tutela de
inibição do artigo 461 também pode ser acionada para coibir condutas
tipificadas como crime, porquanto existirão situações que melhor poderão
ser reprimidas pela tutela jurisdicional civil do que diretamente pela ação
policial. Dentro desse largo espectro de atuação da tutela específica, apa-
rentemente restrita ao campo dos deveres de fazer ou de não fazer do artigo
461 do CPC, encontram-se os direitos contidos no âmbito das relações de
família, que importam na prestação de fatos positivos ou negativos, como
disso são exemplos o afastamento de cônjuge, respeito à posse provtso-
ria, à guarda e à regulação de visitas de filhos.t8

6 TUTELA ESPECIFICA DA OBRIGAÇÃO DE FAZER


OU DE NÃO FAZER

Obrigação é conceito menos amplo do que dever jurídico. O sentido


de dever não se esgota com o cumprimento do ônus, tem vinculação mais
larga, distinguindo-se da obrigação, que se encerra com o cumprimento
do compromisso. A obrigação é apenas uma das categorias do dever
jurídico. Vale ilustrar essa distinção técnica no crédito alimentar quando
focado sob o olhar de dever alimentar em contraponto à obrt,~gação alimentar.
O tema já foi esposado noutra passagem doutrinária,29 quando foi abor-
dado existir uma obrigação alimentar entre os parentes de graus mais
distantes, como avós e netos, entre irmãos, entre cônjuges e pessoas unidas
estavelmente e, por fim, entre pais e filhos já fora da relação de pátrio
poder. Entre essas pessoas, verifica-se uma obrigação de alimentos limi-
tada à proporcionalidade dos rendimentos do alimentante e à necessida-
de do destinatário dos alimentos. Não lhes são impostos sacrifícios, pois
a obrigação pensional fica atrelada à assistência material estipulada,
sempre, nos limites das forças dos recursos do devedor alimentar. Entre
pais e filhos sob o pátrio poder, por não terem atingido ainda a maiorida-
28 Ibidem, p. 128-129.

29 MADALENO, Rolf. Alimentos e sua restituição judicial. In: Direito defamilia,


a.qectos polémicos.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 49-50.

543

ROLF MADALENO

de civil, a solidariedade familiar é ilimitada e vai ao extremo de autorizar


a venda de bens pessoais dos pais alimentantes para o cumprimento
integral de convocação especial e emergencial de alimentos lato sensu.
Amplitude que não se esgota no mero cumprimento da obrigação de dar
pensão na proporção do binômio possibilidade—necessidade, mas que
encontra, sim, no texto constitucional do respeito à dignidade da pessoa
humana, a requisição de todo e qualquer esforço complementar dos pais
para se assegurarem a subsistência e a sobrevivência da prole, ainda posta
sob a sua potestade.
Tocante à natureza de seu objeto, as obrigações são classificadas
nas modalidades de dar, de fazer e de não fazer. Diz Everaldo Cambi&0
que as obrigações de dar consistem na entrega (tradição) de alguma coisa
móvel ou imóvel pelo devedor ao credor e se distinguem da obrigação de
fazer em razão da preponderância dos atos para a realização da prestação,
devendo-se verificar se o dar é ou não conseqüência do fazer. Se o
devedor tiver de confeccionar a coisa para depois entregá-la, a obrigação
é de fazer; se, ao contrário, o devedor não tiver previamente de fazer a
coisa, a obrigação é de dar.31
Dá-se a obrigação de fazer quando o devedor cumpre a prestaçao
realizando determinado comportamento, consistente em praticar um ato
ou fato, que pode ser fungível ou infungível, dependendo da obrigação
ser personalissima ou não. Na obrigação fungível, é possibilitado ao credor
mandá-la executar por terceiros às expensas do devedor, o que não ocorre
na obrigação infungível, que se resolve pelas perdas e danos.
Já as obrigações de não fazer consistem em comportamentos nega-
tivos, em que o devedor assume o compromisso de se abster de realizar
algo.tt Expostas em seus conceitos doutrinários, quando deslocado o
direito das obrigações para o procedimento judicial, a exegese mais ativa
convoca a utilização processual em sua mais ampla acepção, encaixar no
movimento do artigo 461 do CPC o dever de fazer ou de não fazer, sem
limitá-lo ao restrito conceito jurídico de mera obrigação.

30 CAMBIER, Everaldo. .Curso avançado de direito civil. Direito das obrigações.


São Paulo: RT,
2001, p. 49, v. 2.

31 Idcm.

32 Ibidem, p. 55.

544

A TUTELA COMINATÓRIA NO DIREITO DE FAMÍLIA

7 EFETIVAÇÃO JUDICIAL DO DEVER DE FAZER


OU DE NÃO FAZER

Ao longo dos tempos, a resistência do obrigado sempre foi muito


respeitada pelo Poder Judiciário como obstáculo intransponível à efe-
tivação das obrigações de fazer ou de não fazer. Como o devedor não
podia ser coagido fisicamente a cumprir sua obrigação de facere, o seu
inadimplemento era rotineiramente convertido em indenização por per-
das e danos. Antes do advento das reformas processuais, em especial da
criação da tutela específica do artigo 461 do CPC, não havia no ordena-
mento processual brasileiro qualquer mecanismo capaz de inibir com
presteza e efetividade o cumprimento de um dever de fazer ou de não
fazer. A finalidade da tutela inibitória ou específica é de obter o resultado
prático que deveria ser produzido pela execução voluntária da obrigação
ajustada por lei ou por convenção.
J. E. Carreira Alvim bem apanhou o espírito do qual se impregnou
positivamente a tutela inibitória trazida para o processo civil por muta-
ção legislativa do seu artigo 461, ao destacar a especial particularidade
daquele dispositivo legal deferir provimento liminar, que não só antecipa
ao credor a satisfação da obrigação, mediante sumária cognição, mas,
sobretudo, antecipa-lhe os meios coativos que influem na vontade do
devedor.tt Como refere TeoriA lbino Zavascki,34 o legislador não se limitou
a dotar o sistema processual de meios para promover a satisfação específi-
ca do titular do direito, mas preocupou-se sobremaneira, em fazer com que
a prestação fosse entregue em tempo adequado, mesmo antes da sentença,
quando assim fosse necessário para manter a integridade do direito recla-
mado e não resultasse o processo numa vitória de Pirro. Até porque o
legislador da atualidade já não mais se compadece em transformar a
obrigação pura e simplesmente em perdas e danos. Para atender a ansiosa
busca da efetividade processual, e sem se descurar do necessário equih’brio
das partes litigantes, pois o processo não pode ser visto apenas pelo inte-
resse do autor, o legislador criou a cominação de multa pecuniária, dentre
outros mecanismos de motivação da vontade do obrigado devedor.

33 ALVIM,J. E. Carreira. Op. cit., p. 44.

34 ZAVASCKI, Teori Albino. Op. cit., p. 466.

545

ROLF MADALENO

A pena pecuniária busca estimular o cumprimento da obrigação ou


desestimular o seu descumprimento, como técnica de constrição de vonta-
de, que atua sobre a mente e sobre as finanças ou economias do devedor.
Seu único objetivo é pressionar o devedor para que ele cumpra o que lhe
foi determinado por uma decisão condenatória.35
O convite coercitivo ao cumprimento da tutela específica de fazer
ou de não fazer, por cominação de multa pecuniária, está regulado pelos
artigos 287 e 461, parágrafos 2.0 e 40 todos do CPC, podendo ser
concedida a tutela antecipada, deferida de ofício ou atendendo a requeri-
mento expresso da parte, tanto em obrigação fungível como infungível, e
sem ser mais preciso aguardar que a sentença final resultasse descumpri-
da na sua distante fase de execução.
Enfim, não sendo viável impor a multa em ação cautelar para
conferir impacto à ordem judicial, e como o artigo 287 pré-excluira a sua
fixação no correr da demanda, sobrava ao anterior processo brasileiro
contar apenas com a intimidação da ação penal do crime de desobediên-
cia, de óbvias restrições e dificuldades, especialmente no âmbito do Di-
reito de Família, para onde convergem-se os estudos do trabalho, poden-
do ser muito bem mensurado o elevado valor instrumental das astreintes
como tutela jurisdicional voltada para garantir o direito e coibir o ilícito
de resistências que na seara familista quebram rapidamente a segurança e
a estrutura da célula familiar.
Não convém, contudo, deixar passar em branco a advertência levan-
tada por Lui~ Guilherme Marinoni,36 também destacada por Eduardo Tala-
mmi, ao seu tempo e ao seu modo, de que, apesar de a tutela inibitória
regulada pelos artigos 461 do CPC e 84 do Código de Defesa do Consu-
midor fazer referência às ações que tenham por objeto o cumprimento de
obrigação de fazer ou de não fazer:

“não quer dizer que eles tenham por escopo apenas a tutela das
obrigações contratuais na forma específica. Tais artigos podem am-
parar qualquer direito que possa ser tutelado através de uma sentença
que imponha um fazer ou um não fazer, independentemente de o
direito a ser tutelado ser um direito obrigacional ou não.”

35 GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. S~o Paulo: RT, 1998, p. 117.

36 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela específica, cit., p. 89.

546

A TUTELA COMINATORIA NO DIREITO DE FAMÍLIA


E quando aduzem à tutela de qualquer obrigação, acenam para a
sua larga aplicação, num Direito de Família ávido por soluções pro-
cessuais capazes de dar celeridade e estabilidade ao ideal de pacifica-
ção familiar, preservando com liminares e mecanismos de intimidação
sumiria quaisquer direitos encontrados nas diferentes modalidades
obrigacionais.

8 A MULTA DIARIA - ASTREINTE

As astrezntes na doutrina de Sérgio Cruz Arenhart,37 citando Roger


Perrot~

“são um meio de pressão que consiste em condenar um devedor


sujeito a adimplir uma obrigação, resultante de uma decisão
judicial, a pagar uma soma em dinheiro, por vezes pequena, que
pode aumentar a proporções bastante elevadas com o passar do
tempo e com o multiplicar-se das violações.”

Não passa de um gravame pecuniário imposto por acréscimo ao


devedor renitente, como ameaça adicional para demovê-lo a honrar o
cumprimento de sua obrigação.
As multas são associadas ao instituto do contempt ofCourt» porque o
descumprimento de ordem judicial implica uma lesão ao credor e a insu-
bordinação à autoridade judicial, eis que ofendida a autoridade do Estado.
Desse modo, para tornar possível a prestação da tutela específica, o legisla-

37 ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela inibitória da vida privada. São Paulo: RT,
2000, p. 192.
38 A contempt of Courtdo direito anglo-americano é instituto de duplo
aspecto, subdividindo-se em
civil contempt ou criminal contempt. A civil contempt, diz MARINONI, Luiz
Guilherme. Tutela
inibitória..., cit., p. 170): “caracteriza-se como uma medida coercitiva que
atua nas hipóteses de
obrigações (sobretudo de fazer e de não fazer) impostas por decisóes judiciais —
finais ou
lntcrlnats — e que tem por fim assegurar ao credor o adimplemento especifico das
prestações
devidas pelo demandado. O criminal contempt, por sua vez, entra em ação nos
casos de comporta-
mentos que se constituem em obstáculo à administração da justiça, que interferem
inde-
vidamente nessa ou que de qualquer forma representem uma ofensa à autoridade do
juiz; o
criminal conhempt ao contrário do civil contempt, atua apenas no plano do
interesse público no
correto funcionamento da administração da justiça, o que não quer dizer que o
dvii contempt
também não objetive preservar a autoridade do Estado.”

547

ROLE MADALENO
dor conferiu ao juiz poderes para impor multa diária ao réu indiferente ao
expresso pedido do autor, consistente, verdadeiramente, de uma sanção
processual destinada a desestimular — pela coação psicológica do custo
financeiro adicional e até progressivo — a obstinada resistência da pessoa
obrigada e fazer com que se sinta compelida a cumprir o preceito a que
estava obrigada. Como acrescenta Carreira A/vim,39 a multa — a astreinte do
direito francês —. objetiva produzir efeito sobre a vontade do obrigado,
procurando influir no seu ânimo para que ele cumpra a obrigação de que se
está esquivando. E castigo imposto ao devedor, e não meio de reparar o
prejuízo. Tem ela função terapêutica e resta acumulada com as perdas e
danos, conforme claramente exposto no ~ 2.~ do artigo 461do CPC.40
Augusto César Be//uscio define as astreintes como:

condenações de caráter pecuniário que os juízes aplicam a


quem não cumpre um dever jurídico, imposto em uma resolução
judicial, cuja vigência perdura enquanto não cesse a execução,
podendo aumentar indefinidamente.”41

Chamada de tutela inibitória, pois esse é o sentido da imposição da


multa diária como instrumento legítimo de pressão psicológica, a astreinte
deve ser fixada em valor significativo para o demandado, a fim de que o
preceito seja cumprido. Fosse irrisório o valor arbitrado para a multa e
certamente ela estaria longe de cumprir a sua função de inibição à
relutância do devedor. Entretanto, como explica Marce/o Lima Guerra,42
“se não há sobre o que exercer a coerção, a astreinte não deve ser utilizada”,
até porque inútil o seu arbitramento frente ao estado de insolvência do
réu ou mesmo diante da completa ausência de riquezas pessoais que
pudessem garantir a execução da arbitrária pena privada, que pode ser
livremente fixada por exclusiva iniciativa do decisor ou em atenção a

39 ALVIM,J. E. Carreira. Op. cit., p. 113.

40 Art. 461. (...)

§ 1.0 (...);
§ 2.0 A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (art.
287).

41 Citado por MADALENO, Rolf. Ação cominatória no direito de família, cit., p.


15.

42 GUERRA, Marcelo Lima. Op. cit., p. 117.

548

A TUTELA COMINATÓRIA NO DIREITO DE FAMÍLIA

requerimento expresso do destinatário do direito obrigacional de fazer ou


de não fazer.43
Segundo José Santos Luis C!fuentes~ os juizes e tribunais poderão, em
consonância com o artigo 37 do Código Procesal Civil y Comercial da
Argentina, impor sanções pecuniárias compulsivas e progressivas, tendentes
a que as partes cumpram seus mandatos, cujo importe reverterá a favor do
litigante prejudicado pelo incumprimento. O autor arremata: “poderão apli-
car-se sanções cominatórias a terceiros, nos casos em que a lei estabelece.”45
Cabe neste interregno uma pequena incursão no campo da desper-
sonalização da pessoa jurídica — a disregard — como instituto jurídico
auxiliar da tutela cominatória, a ser aplicado no espectro familista com
escora na possibilidade denunciada por Q/uentes de que terceiros podem
ser destinatários da multa cominatória como meio de exercer pressão
psicológica para que executem ou se abstenham de realizar dever
omissivo ou comissivo, vinculado ao ente jurídico, e que ao seu tempo e
ao seu modo possam influir no direito conjugal de alguma das partes que,
em demanda familista, busca regular os efeitos materiais decorrentes da
dissolução de sua convivência conjugal ou de sua relação afetiva infor-
mal, caracterizada pela pública e notória estabilidade.
De qualquer modo, ocorrendo o adimplemento da obrigação den-
tro do prazo marcado pelo decisor, fica o devedor isento do pagamento
da multa, que só é devida depois de expirado o prazo.

9 O VALOR DA MULTA E SUA FORMA DE FIXAÇÃO

Reza o parágrafo quarto do artigo 461 do CPC que o juiz poderá


impor nos casos de incidência do parágrafo precedente (justificado receio

43 Aponta Izc/uardo Ta/amini igual preocupação pela possível banalização


das astreintes, sempre que
o réu “encontrar-se em estado de notória insolvabilidade. Em casos como esse, a
coerção
patrimonial perde a sua razão de ser — cabendo ao juiz adotar, na medida do
possível, outros
mecanismos de indução da conduta do réu (genericamcnte autorizados pelo § 5•0 do
art. 461).”
44 CIFUENTES,José Santos Luis. Astreintes co eI derecho de famiiia. In:
Enciclopedia de Derecho
de Fami/ia. Buenos Aires: Editorial Universidad, 1991, t. 1, p. 435.
45 Com referência a terceiros poderem ser alvo da multa cominatória,
escreve Luiz Guilherme
Marinoni (Tutela inibitória, cit., p. 169) que: “a astrcinte endoprocessual,
segundo a doutrina, é
o único meio dc coerção nos casos em que a parte ou um terceiro deixa de
atenderás determinações
do juiz em matéria de prova.”

549

ROLF MADALENO

de ineficácia do provimento final) multa diária ao réu. A expressa menção


à multa diária fez com que a doutrina ficasse dividida, ora entendendo,
como faz Carreira A/vim, que a multa devesse realmente ser diária, afastan-
do qualquer possibilidade de sua fixação por período diverso de tempo
(semanal, quinzenal, mensal etc.).46 J. J. Ca/mon de Passos, quando de seus
comentários ao antigo artigo 287 do CPC, ao tempo em que a lei limitava a
multa para aplicação apenas na fase sentencial, desde que houvesse pedido
expresso na inicial de cominação da pena pecuniária, refere que era faculta-
do ao credor pedir que o devedor fosse condenado a pagar uma pena pecu-
niária por dia de atraso no cumprimento.47
Não é, entretanto, ponto pacificado na doutrina brasileira e mesmo
na legislação alienígena, pois nem sempre a multa diária servirá de meio
coativo para forçar a execução de uma determinada obrigação, de molde
a que pudesse se acumular dia após dias, acaso seguisse reticente o devedor.
Eduardo Ta/amini tem opinião diferente de Carreira A/vim e entende que,
ao ser autorizada a multa por dia:

“permite-se igualmente a sua incidência em qualquer periodici-


dade decomponível em dias. Mas também a cominação por hora
ou outra unidade inferior ao dia é cabível, quando exigido pela
urgência da situação.”48

Também não haverá qualquer sentido utilizar o mecanismo da multa


diária em obrigação negativa, de não fazer, como mostra Teori A/bino
Zavasc/ei,49 ao mencionar que “a multa diária é mecanismo que induz
prestação de obrigação já violada; a multa fixa, ao contrário, supõe obriga-
ção apenas ameaçada de violação.” Sugere, então, a cominação de valor
fixo e elevado, de uma multa capaz de demover o devedor a não realizar a
ação que lhe custaria multo cara, ao passo que para a obrigação positiva ele

46 ALVIM. J. E. Carreira. Op. cit., p. 171.

Também Reis Friede externa a mesma opinião, ao aduzir que: “Todos os


dispositivos que
impõem a sanção de multa diária (astreinte) têm a finalidade de promover a
efetividade de
alguma decisão judiciária.” lo: Comentários à reforma..., cit., p. 290.

47 PASSOS,J. J. Calmon de. Comentários ao Códego de Processo Civil. Rio de


Janeiro: Forense, 1977,

v. 3, p. 167.

48 TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa..., cit., p. 239.

49 ZAVASCKI, Teori Albino. Anteceôação da tutela..., cit., p. 468.

550

A TUTELA COMINATÕRIA NO DIREITO DE FAMÍLIA

é coagido a realizar a obrigação a que está vinculado, acuado diariamente


pelo cúmulo da multa e pela possibilidade de sua progressiva majoração.
Para Eduardo Ta/amini,50 a c ominação de multa de periodicidade
diária só é adequada quando se está diante de deveres de fazer e de não
fazer, cuja violação não se exaure em um único momento. Há amparo
para a multa fixa em obrigação de uma única execução, como, por exemplo,
o dever de não derrubar uma árvore. Violada a obrigação, a ofensa implica o
pagamento de multa única, porque não haveria sentido em cominar pena
monetária diária nesta situação peculiar.
A multa também pode ser aumentada a critério do juiz, quando este
verificar que a sua progressão é capaz de gerar maior eficácia à execução
indireta e específica, tornando-a adequada aos fatos modificativos, sem
prejuízo da sua progressão já ser adredemente ordenada, na medida em
que passa o tempo e prossegue a tenaz resistência do devedor.
Tangente à oportunidade de fixação das astreintes, elas podem ultra-
passar o valor da obrigação, não se confundindo com a indenização, mas
sendo com ela cumulada. Entrementes, verificando o juiz que a multa não
alcançou a sua finalidade coativa, deve ordenar a sua cessação, pois, se
impossível a prestação pela insolvência absoluta da pessoa obrigada, igual-
mente inatingível a execução específica, acrescentando Marce/o Lima Guerra
que “o caráter coercitivo da multa diária exige que sua aplicação seja subme-
tida ao exame das circunstâncias de cada caso pelo juiz.”51

10 A ASTREINTE NO ESTATUTO DA CRIANÇA


E DO ADOLESCENTE

A pena pecuniária tem previsão em outras disposições do Direito


brasileiro, como no Código de Defesa do Consumidor, na Lei dos Juizados
Especiais (Lei 9.099/95) e, particularmente, no artigo 213 do Estatuto da
Criança e do Adolescente (Lei 8.069 de 13 de julho de 1990)52

50 TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres defa~er..., cit., p. 236-237.

51 GUERRA Marcelo Lima. Op. cit., p. 191.

52 Art. 213. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação dc


fazer ou não fazer, o
juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que
assegurem o
resultado prático equivalente ao adimplemcnto.

551

ROLF MADALENO

Ao contrário do procedimento cominatório do Diploma Adjetivo


Civil, no qual a multa reverte em favor do credor, no ECA, seus valores
serão revertidos para o fundo gerido pelo Conselho dos Direitos da
Criança e do Adolescente do respectivo município, conforme determina-
do no artigo 214 do próprio Estatuto. Para José Lui~ Mónaco da Silva,53 o
artigo 213 do ECA, que trata da tutela pena pecuniária, outorga à
autoridade julgadora o poder de conceder liminarmente ou após prévia
justificação a tutela requerida pela parte. Não apenas quando requerida,
pois é norma discricionária do juiz, ainda mais tratando-se de instrumento
legal saudado por sua modernidade — uma verdadeira revolução copérnica —,
escreveu o Senador Ronan Tito na sua exposição de motivos do Projeto de
Lei, depois convertido no atual Estatuto da Criança e do Adolescente.
Apresentando-se como instrumento legal realmente capaz de ga-
rantir aos menores — crianças e adolescentes — efetiva proteção sociojurídica,
por curial que não poderia restar ausente de seus dispositivos, norma
cominatória capaz de atuar sobre a vontade de quem procura infringir
preceitos estatutários concebidos para dar ampla proteção ao menor.
Didático exemplo da importância da multa pecuniária no ECA pode ser
buscado da eventual infração do seu artigo ~ quando cometida por
editoras de revistas que publicam temas reservados apenas para adultos
ou a indústria do cinema pornográfico, em que por vezes prevalecem seus
interesses econômicos. Certamente algum empresário com deficiência éti-
ca não encontraria maiores óbices na livre divulgação e circulação da sua
produção comercial, e talvez nem o juiz disporia de freio jurídico eficaz para
obstar de plano a infração à sua ordem de vedação da circulação do material
censurado para o público infanto-juvenil. Inexistissem as astreintes no

§ 1.0 (...)

§ 2.” O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor


multa diária ao
réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a
obrigação,
fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.
53 SILVA, José Luiz Mónaco da. Estatuto da criança e do adolescente,
comentários. São Paulo: RT,
1994, p. 376.
54 Art. 78. As revistas e publicações contendo material impróprio ou
inadequado a crianças e
adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com advertência
de seu
conteúdo.
Parágrafo único. As editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens
porno-
gráficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca.

552

A TUTELA COMINATÓRIA NO DIREITO DE FAMÍLIA

Estatuto da Criança e do Adolescente e, em nome do desenfreado lucro


comercial, poderiam ser facilmente desrespeitados os valores morais,
éticos e sociais da pessoa do menor e da família, porque a autoridade
judicial não estaria adequadamente municiada de mecanismos jurídicos
ainda dotados de célere e eficiente carga psicológica de constrangimento
e com força processual capaz de dobrar ao menos pelo bolso, sempre que
frustrada a obediência apenas pelo respeito e por bom senso, porque
prevaleceu a obstinada ganância, o empresário infrator. Também no
amplo direito de proteção da criança e do adolescente, como procedeu o
Tribunal de Justiça de São Paulo no Mandado de Segurança 170.531-4/4,
sugerindo a imposição de multa diária dos artigos 213 e 214 do ECA para
vencer obstáculo criado pelo pai guardião que buscava impedir as visitas
maternas à filha, foi possível encontrar prático exemplo de uso eficaz das
astreintes no Direito de Família.

11 A ASTREINTE NO DIREITO DE FAMÍLIA

Escrevi em precedente trabalho versando sobre o trato da açao comi-


natória no Direito de Família, apesar de ainda sob as opacas luzes do limitado
sistema do antigo artigo 287 do CPC, no qual mesmo com a aplicação
temporal restritiva das astreintes, relegadas que estavam para as sentenças e
acordos homologados em situações colhidas de separações judiciais decreta-
das ou consensualizadas que o manuseio da pena pecuniária abria um leque
inesgotável de alternativas postas a serviço dos personagens de dissensões
judiciais das sociedades conjugais ou paramatrimoniais.55
Na sistemática anterior às últimas reformas processuais, a pena
pecuniária só era aventada no pressuposto de descumprirnento da sen-
tença ou da decisão homologatória de acordo que previsse expressa
cominação de multa, e a sua utilidade no Direito de Família era tímida e
nada profícua. Revista a estrutura processual de aplicação das astrein/es, e
municiado o decisor de técnicas modernas de constrição de vontade, atuan-
do sobre a mente, o bolso e até sobre o corpo do devedor,56 com apoio no

55 MADALENO, Rolf. Direito de família..., cit., p. 14.

56 ALVIM, J. E. Carreira. Op. cit., p. 108.

553

ROLF MADALENO

artigo 50 inciso LXVII da Constituição Federal,57 as sanções comina-


tórias revelaram-se um importante instrumento a serviço da maior exce-
lência e efetividade do processo familista, disponibilizando às partes e ao
juiz mecanismo processual capaz de vencer pela intimidação as rotineiras
resistências, só encontradas na ressentida seara das desavenças afetivas,
que debitam de um lento processo, e pela contumaz desobediência ao co-
mando judicial, o imensurável custo financeiro e psicológico da irreversível
ruptura de um amor.
No amplo raio de ação da jurisdição familista, moucos ouvidos
tomam o lugar da razão; prevalece a insana vingança que caça amores já
não mais acessíveis; seus personagens estão psicologicamente desasso-
ciados da lógica compreensão, que compele as pessoas a atenderem ao
comando judicial, e nesse quadro dos fatos a ordem judicial vira mero
conselho, quase sempre ignorado. Resistências geram tumulto afetivo, e a
reiterada desobediência agride o senso comum, apontando assim para as
astreintes, que talvez carreguem em sua gênese a força mandamental capaz
de reorientar os rumos do processos e de restabelecer uma razoável pacifi-
cação familiar.
Podendo os juizes familistas impor sanções pecuniárias, inclusive
progressivas, como medidas de exceção; e sempre que verificada a ausên-
cia de outro meio legal para obter o cumprimento do mandado judicial,
disponibiliza a autoridade judicial de indispensável instrumento para a
solução dos intermináveis conflitos processuais instaurados entre cônju-
ges, concubinos e parentes desavindos.
José Santos Luis C~fuentes58 ilustra seu trabalho doutrinário com
diversos julgados recolhidos dos tribunais argentinos, onde é largamente
adotada a aplicação incidental de multa pecuniária em litígios familiares.
Conta dentre vários casos pinçados que juiz de primeira instância impôs
uma multa de trezentos pesos diários a um pai que não deixava a genitora
do menor se avistar com o filho, incidindo a multa enquanto persistisse a
sua resistência. A 2,a Câmara de Apelações de La Plata, há mais de quarenta

57 Art. 5•o (...)

LXVII — “não haverá prisão eivil por divida, salvo a do responsável pelo
inadimplemento

voluntário e ineseusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.”

58 CIFUENTES, José Santos Luis. Astreintes en cit p. 436-438.

554
A TUTELA COMINATÕRIA NO DIREITO DE FAMÍLIA

anos já aplicara as astreintes a um marido, até que ele entregasse os filhos


à esposa, de quem havia tomado manu militari a custódia fática.
Por sua vez, a Câmara Civil, Sala D, da Capital de Buenos Aires
também admitiu em 1961 o emprego da muita diária para forçar uma mãe a
cumprir o regime de visitas do pai aos filhos, entendendo, com acerto, que
no poder de julgar está implicito o poder do juiz de fazer cumprir as suas
decisões, sob o risco de completo desprestígio da autoridade judicial.
Por sinal, a aplicação de multa passa a ser importante instrumento
jurídico para substituir de uma vez por todas a abjeta e drástica medida
compreendida pela busca e apreensão de menores, palco de inesgotáveis
traumas contra indefesas e desprotegidas crianças — subtraidas a fórceps
por uma ordem judicial do convívio afetivo do genitor não guardião, que
se descurou do tempo de permanência permitida ao salutar exercício do
seu amor parental, tisnado por cenas dantescas e traumáticas de indes-
critível e dispensável violência processual.
A propósito do tema, F/ávio Guimarães Lau,ia59 escreve não ser
demasia lembrar das graves conseqüências para a criança diante da
diligência de busca e apreensão, não sendo a medida mais adequada de
tutela do direito de visitar e de ser visitado. Defensor intransigente das
astreintes no cumprimento das visitas, prossegue Flávio Launa60 que:

“nessa perspectiva, numa ação de regulamentação de visitas


proposta sob o procedimento ordinário, será lícito ao juiz
determinar a expedição de mandado intimando o pai ou a mãe
recalcitrantes para o cumprimento do regime estabelecido na
sentença ou na decisão antecipatória de tutela, sob pena de
multa diária fixada na própria decisão, a ser revertida em favor
do genitor requerente. A mesma medida pode ser requerida
nos autos da ação de separação judicial ou dissolução de união
estável, caso versem sobre regime de visitação e não depen-
dem da instauração de processo de execução de obrigação de
fazer e não fazer.~~

59 LAURIA, Flávio Guimarães. A regulamentação de visitas e oprinc~pio do melhor


interesse da criança.

Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 135.

60 Iludem, p. 141.

555

ROLF MADALENO

Foi assim e ao seu modo que decidiu acertadamente o Tribunal de


Justiça de São Paulo, através de sua 3•~ Câmara de Direito Privado,
quando por decisão unânime denegou a segurança impetrada por genitor
que na custódia jurídica de sua filha, buscou suspender com o mandamus
os efeitos de carta precatória que designava dia e hora para visita materna
à filha. A irresignação paterna com o ensaio das visitas maternas à filha
decorria da denúncia de negligência da mãe para com a menina diante de
assédio do namorado de sua genitora.
O desembargador Ênio Santare/Ii Zuliani, do Tribunal de Justiça
de
São Paulo, ao relatar o Mandado de Segurança de n. 170.531-4/4, datado
de abril de 2001,61 ao refutar argumento colacionado pelo impetrante,
aduziu em singular passagem de seu voto que:

“O art. 463, do CPC, que encabeça a lista, é totalmente inapli-


cável, porque cuida-se de execução de sentença e não intromis-
são do juiz em situação a ser julgada ou dependente de trânsito
em julgado. Os Juizes impetrados não estão comandando exe-
cução de dívida de dinheiro e independem de apuração do
quantum para cumprir a sentença, o que inviabiliza a citação
dos artigos 586 e 618, 1, do CPC. O impetrante não é devedor
de uma obrigação de dar (entrega de mercadoria ou de valor
monetário), e sim de uma obrigação de não fazer (não obstar o
acesso da mãe à filha sob sua guarda). As medidas tomadas em
busca de reaproximar mãe e filha não são cruéis, e sim ajustadas
ao preceito de dignidade humana, fundamento da Constituição
Federal (art. 1.0, III, da CF). O que a Justiça quer realizar é a
consagração do direito de visita para o bem da menor e de sua
mãe, porque isso consta da sentença e é decisivo para a existên-
cia de ambas... Inocorreu ofensa ao direito liquido e certo do

61 “O exercício de visita da mãe para com o filho menor, supervisionado


no fórum e que foi
estabelecido cm sentença, deve ser cumprido com eficiência pelo juiz da
execução, inclusive
aplicando multa diária para persuadir o opositor a não prejudicar o direito de
convivência,
variante da dignidade humana (art. 1 .“, III, da CF) — Inocorrência de ofensa a
direito do
impetrante, que busca, por vias obliquas, obstaculizar a ordem neste sentido
passada pelo
Ministro relator do recurso especial — Denegação, com observação.” MS 170.531-
4/4 da 3.’
Câmara de Direito Privado do TJSP, Relator o Des. Enio Santarelli Zuliani.

556

A TUTELA COMINATÓRIA NO DIREITO DE FAMÍLIA

impetrante e principalmente da menina L.B.A. Cumpre anotar


que os artigos 213 e 214, da Lei 8.069/90, poderão ser utiliza-
dos pelos impetrados nesta árdua tarefa de fazer cumprir a
ordem do Ministro Bueno de Sou~a, aplicando multas diárias ao
impetrante para persuadi-lo do dever de não prejudicar o direito
de visita.~~

Não se esgota nesses exemplos o leque de opções ventiladas pela


cominação de multa na consecução de ordem judicial emanada em
processo vinculado ao Direito de Família. Vale lembrar a imensidão de
atos jurídicos que os cônjuges, os unidos estavelmente e familiares
devem adotar como linha de comportamento processual, incursionando
por condutas ativas e omissivas e que não mais se restringem às simples
obrigações de fazer ou de não fazer, mas que também devem abarcar, à
exemplo da moderna legislação internacional, deveres de entrega de coisa
ou de pagamento em dinheiro.
Uso curial da multa diária no Direito de Família poderia surgir do
dever conjugal ou concubinário da prestação judicial de contas ou para a
devolução de bens ou valores ilicitamente subtraidos da custódia adver-
sa. Fácil perceber que o consorte constrangido a render contas, ou devolver
bens ou papéis indevidamente retidos, pode preferir apressar-se se for
processualmente admoestado com relevante multa pecuniária, capaz de
realmente persuadi-lo a desistir de eternizar-se na posse e na administra-
ção de bens, valores e documentos do outro cônjuge, tirando proveito
econômico da lentidão da demanda.
A fixação diária de multa também teria importante efeito de persuasão
em situações de divisão judicial e proporcional de imóvel comum, destina-
do ao lazer e que, na tramitação da separação judicial ou do processo de
partilha, permanece indiviso entre os litigantes, determinando o magistra-
do a sua igualitária utilização. Soubesse o cônjuge co-proprietário e possui-
dor que pagaria uma multa diária por não entregar a morada no período
destinado ao uso do co-proprietário conjugal e seguramente o Judiciário
disporia de visíveis elementos destinados a sua maior reflexão, acaso
pensasse em desobedecer a precedente e equitativa ordem judicial de uso
compartido dos bens conjugais, especialmente quando são destinados ao
lazer da família no curto espaço das férias de inverno ou de verão.

557

ROLF MADALENO

(2

Prevendo o artigo 21 da Lei 6.515/77 (Lei do Divórcio)’ a consti-


tuição de garantia real ou fidejussória para assegurar o pagamento mensal
da pensão alimentícia, reside nesse dispositivo uma importante hipótese de
aplicação das astreintes, tendentes a agilizar a determinação de constitui-
ção de capital para garantir o pagamento da pensão alimentícia.
E por que não impor multa diária frente a evidente e obstinada
reticência do separando solvente, que assumiu o dever de pagar na
partilha do acervo comum as custas judiciais, tributos e outros encargos
processuais de sua separação judicial?
E ao magistrado que impõe perícia psicológica, psiquiátrica ou
social como indissociável elemento da instrução processual de separação
litigiosa e dissolução contenciosa de união estável, para colher subsídios
para regular a separação, a guarda e as visitas da prole, não serviria aos
desígnios da celeridade e de presteza da prestação judicial o recurso a
fixação de multa diária, para ser paga pela parte que reluta em dar segui-
mento e obediência à pesquisa judicial? Não seriam as astreintes um
eficiente instrumento para a pronta realização dos estudos interdiscipli-
nares ordenados para subsidiar o processo dos meios científicos probató-
rios imprescindíveis ao melhor e mais justo desfecho processual, mor-
mente quando devem ser considerados interesses superiores dos menores
e o princípio supremo da dignidade da pessoa humana?
A demanda cominatória também teria útil trânsito para compelir a
ex-mulher, vencida na separação judicial ou porque ordenado na ação de
divórcio a retornar ao apelido de solteira, mas que reluta em obedecer a
determinação judicial e assim segue apresentando-se socialmente com o
nome de casada. Multa bem dosada e até progressiva, terá por certo força
propulsiva suficiente para convencer o cônjuge a averbar e finalmente
adotar o seu apelido da família de origem.
Fosse adotado no Brasil o dever de submeter-se à perícia genética
na investigatória de paternidade, assim como os terceiros intervenientes,
no caso de pai biológico já falecido, como ordena na atualidade o Código
de Processo Civil alemão (ZPO), no seu § 372, e o Direito de Filiação
sueco, e certamente a pena de multa diária para a recusa injustificada de
uma pessoa submeter-se aos exames seria um excelente componente de
rápida persuasao.

62 Art. 21. Para assegurar o pagamento da pensão alimentícia, o juiz poderá


determinar a
constituição de garantia real ou fidejussoria.

558

A TUTELA COMINATORIA NO DIREITO DE FAMÍLIA

Existem decisões judiciais e sentenças que acrescentam a obriga-


ção do cônjuge incluir seu consorte como dependente de plano de saúde,
muitas vezes vital à higidez física do cônjuge beneficiado com o plano.
Sem uma fórmula consistente, como as astreintes, talvez se apresentasse
muito mais moroso o atendimento espontâneo da ordem judicial.
Situações corriqueiras de devolução de bens de uso pessoal, inclu-
sive de automóvel sempre utilizado pela esposa e que o marido contrariado
se apossa para dificultar o deslocamento e as atividades diárias do cônjuge
que precisa do carro para agilizar suas tarefas do cotidiano familiar e
transportar os filhos. A cominação de multa tem igual eficiência persuasiva
no ânimo beligerante do marido, cuja cumulação de multas cuidará de
demovê-lo de reter o automóvel da esposa.
A exemplo do Direito americano, com a sua contempt of Court, não
seria de boa técnica impor multa diária para desestimular a ameaçadora
reaproximação de violento cônjuge ou concubino compulsoriamente
afastado do lar.
Devendo certo ascendente encarregar-se da matrícula escolar de seus
filhos ou mesmo estando uma das partes litigantes compelida a cola-
cionar documentos requisitados pela autoridade judicial, não traria efi-
ciência ao processo a imposição de multa, com alto poder de persuasão,
imbuido o comando judicial pecuniário da máxima implícita de que, no
poder de julgar, também se encerra o poder do juiz de fazer cumprir as
suas decisões. Em suma, não teria seguro trânsito judicial toda e qualquer
tutela fundada no princípio da dignidade humana que buscasse por
intermédio das astreintes a sua efetivação processual, notadamente como
visto e defendido, no campo dos direitos sociais, familiares ligados a valo-
res supremos como a saúde, a educação, a subsistência dos dependentes e
a higidez psíquica de cada membro da célula familiar.

12 A AMPLIAÇÃO DO ESPECTRO DE AÇÃO


DA ASTREINTE NO CAMPO DO DIREITO DE FAMÍLIA

No campo do direito aos alimentos, sua cobrança e seu pontual


pagamento inspiram ricos exemplos para aumentar o espectro de aplica-
ção das astreintes no Direito de Família, estendendo-as também para as
obrigações de dar coisa certa fungível, como sucede no compromisso de
entregar determinada quantia mensal em dinheiro, proveniente, por

559
ROLF MADALENO

exemplo, de pensão alimentar. A Câmara Civil, Sala E, da Capital de


Buenos Aires impôs astreintes num caso de alimentos em que o credor da
pensão não obtinha os ingressos de seu crédito alimentar, havendo sido
destacado na fundamentação da decisão judicial que a execução tradicio-
nal dos alimentos demanda uma demora que não se compadece com a
urgência da prestação alimentar.
Noutro julgamento, a Sala A da Câmara Civil aplicou a um devedor
de alimentos sanções cominatórias, destacando ser fundamental em ma-
téria de pensão alimentícia a sua pontualidade, cumprindo as astreintes um
papel preponderante, ao compelir o alimentante reticente a cumprir o seu
dever assistencial.63 Tal é a importância e relevância moralizante que a
multa pecuniária por débito alimentar exerce no Direito argentino que os
juristas Luis Alberto Caimmi e Guillermo Pablo Desimone64 sugerem por
projeto de lei que as astreintes não sejam dispensadas, mesmo quando
aplicada a pena civil de prisão pelo não-pagamento de alimentos, apenas
admitindo o perdão da multa imposta se ausentes bens próprios do devedor
ou na eventualidade de a pena pecuniária prejudicar seriamente as possi-
bilidades econômicas e financeiras do alimentante. Para esses autores,
com o consentimento do devedor, o tribunal poderia substituir a pena
pecuniária por trabalhos e serviços em favor da comunidade, a serem
prestados em organismos da administração pública, como hospícios,
hospitais, unidades sanitárias, abrigos de idosos ou de menores, estabele-
cimentos de ensino ou em qualquer outra instituição que se estime
aconselhável.
Claro que não precisamos ir ao climax da dupla penalização pelo
mesmo fato, sendo muito mais eficaz seguir com a coação física do
recalcitrante devedor alimentar, desde que o legislador não directone o
decisor para o verdadeiro calvário em que tem se tornado a busca proces-
sual de um simples e impontual crédito alimentar, sendo preferível reto-
mar os rumos da sempre eficiente execução indireta do crédito alimentar
através da ameaça prisional.

63 CIFUENTES, José Santos Luis. Op. cit., p. 437.

64 CAIMMI, Luis Alberto; DESIMONE, Guillermo Pablo. Los delitos de


incumplimiento de los

deberes de asistencía familiar e insolvencia alimentaria ftaudedenta. 2 ed.


Buenos Aires: Depalma,
1997, p. 187-188.

560

A TUTELA COMINATÓRIA NO DIREITO DE FAMÍLIA

A multa poderia ter uso corrente na chamada pensão velha, que vai
adiante dos três últimos meses e que a jurisprudência reluta em mandar
prender pela inadimplência, podendo então multar progressivamente.
Possível, contudo, bem dimensionar o valor moral dos constrange-
dores meios ditos indiretos de execução antecipada, mas que de um
modo direto, bastante eficaz, permite passar a acreditar na realidade
efetiva da prestação jurisdicional.
Convém, por fim, manter em linha de consideração a procedente
argumentação de Lui~ Guilherme Marinoni,65 para quem o pequeno credor
é aquele que mais sofre com a demora do processo.” E é para esse pequeno
credor, ora de alimentos ora de outros valores que mais guardam riquezas
de ordem subjetiva do que da subsistência material, que a ciência jurídica
vem desenvolvendo esse eficiente, moderno e célere instituto processual
que busca, no campo do Direito de Família, o espaço pontual que gravita
no sideral universo da sonhada pacificação social.

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65 MARINONI, Luiz Guilherme. Tu/ela eipec~ca..., cit., p. 195.

561

ROLF MADALENO

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A TUTELA COMINATÓRIA NO DIREITO DE FAMÍLIA

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563

TUTELAS ANTECIPADAS E PROVAS


PRË-CONSTITU IDAS NA UNIÃO ESTÁVEL

Newton Teixeira Carvalho


Juiz Titular da 1 •a Vara de Famflia de Belo Horizonte.
Especializado em Direito de Empresa pela Fundação
Dom Cabra!, em Belo Horizonte.
Membro do IBDFAM.

“A justiça atrasada não é justiça,


senão injustiça qualificada e manifesta”
(Rui Barbosa)

__________________ Sumário __________________

1. Introdução. 2. Provas pré-constituídas na união estável.


3. Diferença entre cautelar e antecipação de tutela. 4. Ante-
cipação dc tutela ou cautelar? 5. As diversas ações caute-
lares. 6. Caráter satisfativo da medida cautelar no Direito de
Família. 7. Desnecessidade da utilização das vias ordinárias,
no juízo sucessório, se existentes provas escritas, a comprovar a
união estável, de plano. 8. Conclusão. 9. Bibliografia.

1 INTRODUÇÃO

Antes de adentrarmos no tema em epígrafe, ressaltamos a impor-


tância deste evento para todos nós, que, no dia-a-dia, lidamos com o
Direito de Família. Nesta hora, juízes, advogados, promotores, assisten-
tes sociais e psicólogos, dentre outras profissões, estão todos irmanados
na busca de um Direito dc Família que satisfaça, a contento, as necessi-
dades imediatas da sociedade atual, em constante mutação.

565

NEWTON TEIXEIRA CARVALHO

Assim, felicitamos o IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de


Família), na pessoa de seu dinâmico Presidente, o Professor e Jurista Rt~-
dr~go da Cunha Pereira, por mais esta revista, necessária também para uni-
formização de procedimentos e para permutas de informações entre os
diversos seguimentos da sociedade forense brasileira.
É por meio de trabalhos como este que, com certeza, a Justiça se
democratiza e, por conseguinte, poderá ser prestada com maior rapidez,
eis que a célebre frase de Rui Barbosa, antes transcrita, repetida insistente-
mente por diversos juristas com algumas pequenas alterações, continua
mais viva do que nunca.
Por conseguinte, é importante que os novos mecanismos de agili-
zação da prestação jurisdicional sejam assimilados o mais rapidamente
possível por todos os componentes desta grande família forense, em total
benefício da sociedade em que vivemos.

2 PROVAS PRÉ-CONSTITUÍDAS NA UNIÃO ESTÁVEL

Ao contrário do casamento, emlnentemente formal, a ser compro-


vado apenas através de documento público (art. 195 do CC), a união
estável pode ser demonstrada por intermédio de todos os meios legais e
moralmente legítimos (art. 332 do CPC c/c art. 129 do CC), eis que a lei,
neste caso, não exige ou prescreve forma especial.
Com relação à gravação, a vertente que melhor interpreta o art. 332
do Código de Processo Civil, em consonância com o disposto no art. 5~o,
XII, da Constituição Federal, é a que considera que tal prova não pode
advir de meios invasores da vida privada e da intimidade de cada pessoa.
Deve a gravação ser obtida sem que tenha havido devassa das comunica-
ções produzidas pelo interlocutor. Também não é reconhecida gravação
obtida por terceiro alheio ao diálogo, mediante subterfúgio.
Acerca de gravação para fins de prova em juízo, o Tribunal de Justiça
de Minas Gerais já se pronunciou da seguinte maneira, não deixando
nenhuma dúvida sobre o assunto:

“Há de ser considerada a prova, quando a fita magnética que


reproduz gravação telefônica entre as partes diretamente envol-
vidas na lide e gravada por uma delas foi gerada em conformida-
566

TUTELAS ANTECIPADAS E PROVAS PRÉ-CONSTITUIDAS NA UNIÃO ESTÁVEL

de com os preceitos constitucionais legais. Nada obsta a sua


apresentação, se obtida por meio licito, moralmente legitimo.”1

Do acórdão cuja ementa foi transcrita acima, colhe-se os seguintes


ensinamentos, em ordem de seqüência diversa da ditada pelo eminente
Relator, Des. Alo)sio Nogueira:
“A propósito da consistência da necessidade de provar, o CPC,
art. 332, expressa que todos os meios legais, bem como os
moralmente legítimos, ainda que não especificados no Código,
são hábeis para provar a verdade dos fatos em que se funda a
ação ou a defesa.
Portanto, em face da Constituição, art. 5•o, XIII, e das leis infra-
constitucionais, a mais ampla defesa é assegurada às partes,
desde que feita dentro dos métodos próprios da relação proces-
sual e, por óbvio, não são admitidas, no processo, as provas
obtidas por meios ilicitos.
O CPC, art. 383, prescreve que qualquer reprodução mecânica,
como a fotográfica, cinematográfica, fonográfica ou de outra
espécie, faz prova dos fatos ou das coisas representadas, se
aquele contra quem foi produzida lhe admitir a conformidade.
A gravação fonográfica — gravação de conversas telefônicas —
tem sua utilização admitida pelo Direito, do ponto de vista
processual, se obtida licitamente, pois, caso contrário, se obtida
ilicitamente, a interceptação telefônica é repelida e atenta con-
tra o direito individual.
Nessa conformidade, o Juiz, ao ter que negar ou admitir o meio
de prova, há de recorrer ao direito material e até mesmo à
Constituição, porque em Juízo — ressalta J. Cretella Júnior — o
valor da prova é incontestável. Prova é tudo aquilo que pode
convencer o Magistrado da certeza de algum fato, circunstância
ou proposição controvertida, sendo, assim, o elemento que
determina a convicção do Juiz, fornecendo-lhe base para a
sentença.

Agravo 84.907/5, Comarca de Belo Horizonte, Relator Alqysio Nogueira.

567

NEWTON TEIXEIRA CARVALHO

Assim, há de ser considerada a prova, quanto à fita magnética que


reproduz gravação telefônica, entre as partes diretamente envol-
vidas na lide e gravada por uma delas, gerada em conformidade
com os preceitos constitucionais e legais. Nada obsta à sua apre-
sentação, pois obtida por meio licito, moralmente legítimo ~

Assim e desprezadas, evidentemente, as provas obtidas por meios


ilicitos, a união estável pode ser reconhecida de maneira cabal através de
testamento, escritura pública ou instrumento particular, bem como atra-
vés de contrato escrito, regulando a convivência, ou de casamento religio-
so, bem como através de reconhecimento judicial de forma incidental em
anterior demanda judicial.
Prova-se também a união estável através de contas conjuntas, avisos
de cobranças ou por intermédio de cartas, de colocação do companheiro
como dependente no seguro ou junto ao Instituto de Previdência ou até
mesmo através de assinatura de contrato de locação, seja como locatário
(mero empréstimo de nome) ou como fiador ou através de fotografias.
Inexistindo tais provas, nada impede o manejo da justificação, com
citação dos interessados (art. 862, do CPC), autorizada pelo art. 861 do
CPC, ouvindo-se testemunhas para servir de prova em posterior processo
cautelar ou de conhecimento, com pedido de liminar ou de antecipação
de tutela.
Nessas hipóteses, havendo prova imediata e pré-constituída da rela-
ção estável, poderá a parte prejudicada ofertar toda e qualquer cautelar
prevista no CPC não mais podendo haver diferenciação entre casados ou
companheiros, para o fim de se deferir cautelar, seja ela qual for.
E certo que, principalmente com relação a cautelar de separação de
corpos, jurisprudência existia, numa interpretação literal e restritiva do
art. 888, VI, do CPC, opinando pela impossibilidade de se deferir tal
provimento entre companheiros. Assim, a cautelar de separação de cor-
pos, para esta ultrapassada corrente, somente poderia ser deferida em se
tratando de pessoas casadas.
Entretanto, a questão antes lançada foi irrefutavelmente enfrentada
pelo então Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
hoje ministro do Superior Tribunal de Justiça, Ruy Rosado de Aguiar

“A família, instituição social, é uma realidade que se antecipa e


antepõe à própria lei, e as relações que dela emergem devem ser

568

TUTELAS ANTECIPADAS E PROVAS PRE-CONSTITLilDAS NA UNIÃO ESTÁVEL

compreendidas e resolvidas pelo juiz com a lei, se possível, ou


sem ela, se necessário, na forma do art. 4•O da Lei de Introdução,
com o auxílio dos princípios gerais consagrados pelo ordena-
mento e que agora, no tema, estão expressamente incluídos no
texto constitucional, o qual estende a proteção estatal à união
estável e assegura assistência à família na pessoa de cada um
dos que a integram (art. 226, ~3 3.o e 6.0 da Constituição da
República). A concubina, que vem a juízo pedir proteção para
os maus-tratos do companheiro, praticados contra ela e os filhos,
tem o direito de ver sua pretensão examinada. A separação de
corpos é possível, porque a união deles é uma realidade; se
existentes os motivos invocados, plenamente cabível o pedido
da mulher de ficar na casa com os filhos, saindo dali o réu
causador do conflito. A não ser assim, caberia à mulher, comu-
mente a mais desamparada e com menos recursos ao seu alcan-
ce, e aos filhos, incapazes civil e economicamente, submete-
rem-se à violência do companheiro e pai, como se alega, ou a
aventurarem-se pela rua.”2

3 DIFERENÇA ENTRE CAUTELAR E ANTECIPAÇÃO


DE TUTELA

Como a concessão do provimento jutisdicional não é mais uma


graça do Estado, mas um direito da parte, preparem-se juízes e tribunais
para o exercício de sua nobre missão de outorgar tutela na forma da nova
lei, não devendo o termo ser entendido como um passaporte para a
omissão, deixando para a sentença o que, segundo a lei, deva ser, de logo,
antecipado.3
Com a introdução no Direito Brasileiro da tutela antecipada (art. 273,
do CPC), não há mais necessidade de se ajuizar, indiscriminadamente,
ação cautelar, que persistirá apenas com o escopo de garantir o resultado
do processo principal.

2 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Côtwubinato e Jeniâo estável. 4. ed. Belo


Horizonte: Dei Rey,
1997, p. 131.

3 ALVIM, CarteiraJ. E. Código de Processo Civil reformado. 2. ed. Belo


Horizonte: Dei Rey, 1995,

p. 100.

569

NEWTON TEIXEIRA CARVALHO

Sabido é também que a tutela cautelar não se confunde com a tutela


antecipatória. A primeira visa a garantir a eficácia do provimento jurisdi-
cional a ser proferido no processo principal, sem implicar satisfatividade; a
segunda tem por escopo adiantar o provimento final, objeto do processo
principal, apreciando-se inicio litis o mérito do pedido e antecipando seus
efeitos. Verifica-se assim que, enquanto a primeira tem caráter assecu-
ratório, a segunda é de cunho exauriente, embora reversível.4
Portanto, a tutela antecipada nada mais é que um adiantamento da
prestação jurisdicional, incidindo sobre o próprio direito perseguido. Em
contrapartida, no procedimento cautelar não se antecipada a prestação
jurisdicional perseguida na lide principal.
Certo é, também, que, no nosso Direito Processual Civil, as duas
medidas coexistem, a cautelar e a tutela antecipada, sendo ponto comum
entre ambas o pedido de liminar.
Assim, é importante que os causídicos façam bem a distinção entre
liminar na cautelar e na antecipação de tutela, com o manejo da ação
correta, eis que, em assim procedendo, haverá enorme economia para
todos já que, no caso de antecipação de tutela, não há necessidade de
ajuizamento de cautelar, preparatória do processo principal.

4 ANTECIPAÇÃO DE TUTELA OU CAUTELAR?

Em princípio, a tutela poderá ser antecipada na ação de sociedade


de fato cumulada com outros provimentos pleiteados, como, por exem-
plo, na guarda e visita de filhos ou com alimentos, desde que presentes os
requisitos previstos e exigidos pelo art. 273 do Código de Processo Civil.
Porém, esse dispositivo legal faz inúmeras exigências de difícil
comprovação, de chofre, mormente considerando que estamos diante, na
ação declaratória de união estável, de questões eminentemente fáticas.
Portanto, e mesmo sendo caso típico de ajuizamento apenas da ação
principal, com antecipação de tutela, de ver-se que, por questão prática,
as ações cautelares continuarão sendo usadas em maior número, posto
que os fatos poderão ser comprovados na audiência de justificação, inaudita
altera parte, caso não haja prova documental.

4 PAULA, Alexandre de. Código de Processo Civil anotado. 7. ed. S~o Paulo: RT,
v. 2, p. 1.362.

570
TUTELAS ANTECIPADAS E PROVAS PRÉ-CONSTITU1DAS NA UNIÃO ESTÁVEL

Depois, há entendimento de que não é licito ao julgador conceder


tutela antecipada sem ouvir a parte contrária e também o de que não
pode o Magistrado proceder, na dúvida, quanto à possível existência do
direito a uma cognição sumaria.
O entendimento antes lançado — o de que no bojo de uma ação
principal, com pedido de antecipação de tutela, não é possível o juiz, na
ausência de comprovação, de plano, dos requisitos exigidos pelo art. 273
do CPC, designar audiência prévia, inattdita altera parte, com justificação
e, em razão desta audiência, deferir a antecipação de tutela — já foi
enfrentado por nós, na Primeira Vara de Família de Belo Horizonte,
quando do ajuizamento de uma ação de guarda.
A inicial, na ação antes aludida, não veio acompanhada da prova
dos fatos alegados. Assim, designada foi audiência de justificação e,
ainda na audiência, houve antecipação de tutela, com deferimento da
guarda provisória da criança ao pai requerente.
Dessa aludida decisão houve agravo de instrumento, a ser decidi-
do, em breve, pelo egrégio Tribunal de Justiça de Minas. Esperamos que
a decisão seja confirmada, eis que reforçará, sobremaneira, a utilização
da ação principal, sem necessidade da oferta de uma cautelar prévia.

5 AS DIVERSAS AÇÕES CAUTELARES

No momento presente, e em razão do reconhecimento Constitucio-


nal da união estável (CF, art. 226 § 3~O) e sua posterior e demorada
regulamentação (Leis 8.971/94 e 9.278/96), não há discordância, juris-
prudencial ou doutrinária, acerca da possibilidade do manejo de todas as
cautelares permitidas na ação de separação judicial, também na ação de
dissolução de sociedade de fato.
Assim, vejamos algumas:
Arrolamento de bens (art. 855 do CPC): o juízo cautelar labora com o
provável e o verossímil. Assim, cabível é tal providência para evitar dila-
pidação dos bens, ante o moroso processo de conhecimento. Para tanto,
basta um princípio de prova do concubinato, com formação de patrimô-
nio comum e fundado receio de dissipação desse patrimonlo.
Na prática, tal cautelar é deferida, de imediato, na ausência de
prejuízos outros, eis que a própria parte requerida ficará na posse dos bens,
como depositária, até o desfecho da ação principal.

571

NEWTON TEIXEIRA CARVALHO

Posse em nome do nascituro (art. 877 do CPC): trata-se de medida


pleiteada através de jurisdição graciosa e que tem por escopo permitir a
habilitação do nascituro no inventário do de cujus, de quem será o herdeiro
legal ou testamentário, e na investidura nos direitos daí decorrentes.
Alimentos provzszonazs~~ a Lei 8.971/94 permite, em seu art. 1.0, o
direito do necessitado valer-se do disposto na Lei 5.478/68, desde que
comprove a união estável em concubinato puro e a constituição de família.
Também podem ser ofertadas as cautelares de arresto, seqüestro,
busca e apreensão, enfim, todas cautelares nominadas e inominadas previs-
tas no Caderno Processual Civil, tratando-se de reconhecimento de união
estável.
Cautelar de separação de corpos conforme demonstrado anteriormente,
hoje é perfeitamente admitida, como preparatória da ação de dissolução
de sociedade de fato.

6 CARÁTER SATISFATIVO DA MEDIDA CAUTELAR


NO DIREITO DE FAMÍLIA

Não se pode exigir, tratando-se de Direito de Família, a propositura


da ação principal, no prazo de trinta dias, caso haja liminar em ação
cautelar, eis que: “nas questões de família e no amparo ao menor e ao
incapaz, há uma tendência jurisprudencial a considerar que não ocorre a
caducidade da medida liminar se a ação principal não for proposta em 30
dias.”5
É certo que, em decisão já não tão recente, o Colendo TJMG entendeu
se aplicar, também na medida cautelar de separação de corpos, o disposto
no art. 806 do CPC, ao ementar:

“(...) quando a medida cautelar de separação de corpos tiver


cunho preparatório, sua eficácia submete-se à disposição do art.
806 do CPC, que fixa o prazo de 30 dias para interposição da
ação principal.”6

5 RT 554/214.
6 Jurisprudência mineira, v. 115/194, Ap. Cível 84.884/5, Comarca de Belo
Horizonte, Relator

Desemb. Costa 1/ai.

572

TUTELAS ANTECIPADAS E PROVAS PRÉ-CONSTITUÍDAS NA UNIÃO ESTÁVEL

Porém e data venia, de entender-se de melhor aplicação, in casu, o


voto vencido, da lavra do Des. Artur Mafra:

“V.v.: A separação de corpos, como medida cautelar, pode ser


satisfativa porque, embora insuportável a vida em comum, pode
não interessar aos cônjuges a postulação imediata da separação
conjugal, tornando-se uma prerrogativa facilitadora da solução
desejada, o divórcio direto.”

Portanto, e apesar de respeitáveis opiniões contrárias, de entender-se


que, nas cautelares ofertadas no Direito de Família, desnecessária é a pro-
positura da ação principal, no prazo de 30 (trinta) dias.
A tese acima lançada foi encampada no Colendo TJMG, conforme
julgamento de 01.06.2000, Ap. Cível 000.167.447/00, Relator, Des.
Bady Curi, com a seguinte ementa:

“Exatamente pela gravidade e seriedade das situações que en-


volvem o direito de família, a jurisprudência tem evoluído no
sentido de que as hipóteses de concessão de medida cautelar,
em que estão em jogo direitos relativos à família, menores e
incapazes, não se submetem à égide do art. 806 do CPC.”

Do voto do eminente Relator, Des. Badc/y Guri:


“Mesmo porque, exatamente pela gravidade das situações que
envolvem o direito de família, a jurisprudência tem evoluído no
sentido de que as hipóteses de concessão de medida cautelar,
em que estão em jogo direitos relativos à família, menores e
incapazes não estariam submetidas à égide do art. 806 do CPC.”

Neste sentido:

o bom senso repele caducidade das medidas liminares no


direito de família, quando não proposta a ação principal dentro
de 30 dias”.7

7 RT 648/174, JTJ 147/135.

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NEWTON TEIXEIRA CARVALHO

“Nas questões de família e no amparo ao menor e ao incapaz, há


uma tendência jurisprudencial a considerar que não ocorre ca-
ducidade da medida liminar se a ação principal não for proposta
em 30 (trinta) dias (RT 554/214). Assim, concedidos alimentos
provisórios ou provisionais, não perde a eficácia se não for
proposta ação no prazo de 30 dias”.8

Sobre o tema, diz Galeno Lacerda que o Direito de Família encontra


resistência à aplicação do prazo do art. 806 quando se refere à prestação
de alimentos e à separação de corpos:

“No direito de família e no amparo ao menor e ao incapaz, o


bom senso repele a caducidade. Se o juiz, cautelarmente, decre-
tou separação de corpos, a prestação de alimentos à mulher e ao
filho abandonados, o resguardo do menor contra o castigo imo-
derado ou contra a guarda nociva, a regulamentação do direito
de visita, a destituição provisória de pátrio poder ou de tutor ou
curador, é de evidência meridiana que o não ingresso da ação
principal, no prazo de trinta dias, não pode importar, respectiva-
mente, na reunião de cornos que se odeiam, no desamparo e na
fome da mulher e da criança, na eliminação da visita, no retorno
do indigno ao pátrio-poder, à tutela e à curatela. Façamos
justiça ao artigo 806, que jamais visou objetivos odiosos e nefan-
dos. Interpretemo-lo com inteligência e com bom senso.”9

7 DESNECESSIDADE DA UTILIZAÇAO DAS VIAS


ORDINÁRIAS, NO JUÍZO SUCESSÓRIO,
SE EXISTENTES PROVAS ESCRITAS,
A COMPROVAR A UNIÃO ESTÁVEL, DE PLANO

Os direitos sucessórios, deferidos indistintamente entre ambos os


companheiros, foram definidos, expressamente, nos arts. 2.0 e 30 da Lei
8 RT 496/98, RJTJESP 43/190, 68/268,73/122, 107/169.

9 LACERDA, Galeno. Comentários ao Códe~o de Processo Civil. Rio de Janeiro:


Forense, v. VIII,
t. 1, p. 380.

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TUTELAS ANTECIPADAS E PROVAS PRE-CONSTITUÍDAS NA UNIÃO ESTÁVEL

8.971/94, bem como através do art. 7,0 da Lei 9.278/96, a equiparar,


como não podia deixar de ser, os companheiros aos cônjuges.
Evidentemente que, aberto o inventário, o companheiro sobrevi-
vente comparecerá nos autos do processo e, existindo as provas escritas
anteriormente referidas, o reconhecimento da sociedade, mesmo que de
maneira implicita, poderá ser concretizado nos próprios autos de inventá-
rio, sem necessidade de, primeiro, haver ação declaratória de reconheci-
mento de união estável, no juízo familiar.
Entretanto, poderá haver objeção dos herdeiros quanto à habilita-
ção do companheiro no inventário. Porém e como sabido, simples discor-
dância não é motivo para remeter as partes as vias ordinarias.
E que, tratando-se de inventário judicial, o juiz decidirá as ques-
tões de direito e de fato, desde que, quanto a estas últimas, haja prova
documental, nos termos do art. 984 do Código de Processo Civil)0
Portanto, inexistindo provas documentais que amparem a pretensão
do companheiro sobrevivente, a sua habilitação, de plano, no inventário
restará prejudicada, por ser o mesmo procedimento especial e não admitir
discussão de alta indagação, isto é, aquela que demanda prova a ser colhi-
da fora do inventário, e não, como já se chegou a sustentar de maneira
equivocada em sede doutrinária, uma iutricada e d~/Zci/ questão de direito.
Remetidas as partes às vias ordinárias, para reconhecimento da
união estável e eventual direito à meação, herança ou usufruto, o compa-
nheiro sobtevivente poderá requerer reserva de bens em inventário, nos
termos do art. 1.001 do Código de Processo Civil.

8 CONCLUSAO

O Direito de Família exige soluções rápidas que, se deixadas para


depois, poderão ser de nenhuma utilidade. Assim, não resta dúvida de
que agiu acertadamente o legislador ao determinar, diante da resistência
de alguns juizes, que a questão envolvendo união estável fosse dirimida
na Vara de Família.
Depois, ao reconhecer o legislador a Vara de Família como a compe-
tente para solucionar questões envolvendo sociedade de fato — que, na

10 PFSSOA, Cláudia Grieco Tabosa. Ejeitospatrimoniais cio concubinato. S~o


Paulo: Saraiva, 1997,

p. 241.

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NEWTON TEIXEIRA CARVALHO


verdade, antes de tudo, envolve e prepondera o laço afetivo —, várias ques-
tões restaram superadas, à luz de entendimentos anteriores, principal-
mente no tocante às medidas cautelares e à não-participação do Repre-
sentante do Ministério Público nesses feitos.
Os meios de comprovação da união estável são vários, desde que
não coibidos por lei, conforme demonstrado. Havendo prova documen-
tal, o pedido de antecipação de tutela, se presentes os requisitos do art. 273
do Código de Processo Civil, poderá ser formulado ou, então, de plano
poderá ser ofertada cautelar preparatória para garantia da eficácia do
provimento jurisdicional posterior.
Podemos também afirmar, hodiernamente, que todas as cautelares
possíveis em uma ação de separação litigiosa também o serão com relação
às ações advindas de uma união estável, no momento, infelizmente,
ainda admitida apenas entre homem e mulher.
Não se pode desprezar, no desfecho deste trabalho, o ponto comum
existente entre a união estável e o casamento: o amor. Assim e embora
dissonantes em vários aspectos, principalmente por força de leis específi-
cas, esses dois institutos do Direito de Família na verdade afloram do
afeto, sentimento mais puro do ser humano, despido de qualquer regula-
mentação jurídica e de preconceitos.

9 BIBLIOGRAFIA

ALVIM, Carreira J. E. Código de Processo Civil reformado. 2. ed. Belo


Horizonte: Dei Rey, 1995.
LACERDA, Galeno. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro:
Forense, v. VIII, t. 1.
MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Campinas:
Millennium, 2000, v. V.
PAULA, Alexandre de. Código de Processo Civil anotado. 7. ed. São Paulo: RT,
v. 2.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. 4. ed. Belo Ho-
rizonte: Dei Rey, 1997.
PESSOA, Cláudia Grieco Tabosa. Efeitos patrimoniais do concubinato. São
Paulo: Saraiva, 1997.

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TUTELAS ANTECIPADAS E PROVAS PRÉ-CONSTITUÍDAS NA UNIÃO ESTÁVEL

REAtE, Miguel. O prcy~to do novo Código Cim/. situação após aprovação pelo
Senado Federal. São Paulo: Saraiva, 1999.
REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO DE FAMÍLIA, v. 3, n. 10. Porto
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REVISTA JURISPRUDÊNCIA MINEIRA. Belo Horizonte: Tribunal de
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SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual ciii!. 6. cd. São
Paulo: Saraiva, 1983, v. 3.
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