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Arquivo-Memoria-E-Testemunho Conferencia 1 Odt
Arquivo-Memoria-E-Testemunho Conferencia 1 Odt
Serge Margel
Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo
tempo, um documento da barbárie.
3L’homme Moïse et la religion monothéiste, trad. de l’all. par C. Heim, Paris, Gallimard, 1986,
p. 115.
4Ibid., p. 115.
gênese, de um acontecimento, de uma ruptura, que é preciso doravante
reconstituir, narrativizar, depois analisar e pensar como muitos lugares,
gestos e discursos, na medida de uma nova escritura da história.
5« Traces. Les racines d’un paradigme indiciaire », in Mythes, emblèmes, traces. Morphologie
et histoire, trad. do italiano por M. Aymard, Paris, Flammarion, 1989, p. 139-180. Em
português, GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, Emblemas
e Sinais. Tradução de Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1939.
indícios que traem coisas cuja comunicação não era procurada6.
6L’homme Moïse et la religion monothéiste, op. cit., p. 115. Grifo meu. (Tradução nossa)
E o vestígio dos atos que modificam uma ordem recebida e uma visão
social. Instauradora de signos, expostos a tratamentos específicos, esta
ruptura não é, pois, nem apenas nem primordialmente, o efeito de um
"olhar". É necessário aí uma operação técnica.
9Ibid., p. 271.
momento, aqui e agora, que já não tenha sido determinado em sua gênese
por uma produção técnica de registro, ou de consignação, que não se trate
de uma voz, de uma pele, de uma pegada, de uma pedra talhada, de um
papiro ou de uma película fotossensível, de uma fita magnética ou de um
suporte informático.
Tudo isso para dizer que o arquivo, como produção documentária, como
abstração de uma segunda ordem, como escritura ou impressão gráfica, ou
ainda dispositivo técnico de inscrição, não deve se reduzir ao lugar único
do registro, do armazenamento e da conservação de acontecimentos
passados arquivados. O arquivo faz mais do que registrar um
acontecimento como tal, como aconteceu ou como será realizado
independentemente de seu arquivamento. É o que revela, em última
instância, a operação técnica do arquivo, quando se averigua que a história
se faz sempre por meio de documentos. E agora eu seguirei a hipótese de
Derrida, em Mal de Arquivo, mais um texto sobre Freud:
11Cf. Sonie Combe, Archives interdites. L’histoire confisquée, Paris, La Découverte, 2001, spéc.
p. XVII.
12Cf. Sonia Combe, Thierry Dufrêne et Régine Robin, « Berlin, l’effacement des traces – 1989-
2009 », in Berlin. L’effacement des traces, sous la dir. de S. Combe, Th. Dufrêne, R. Robin, Lyon,
Editions Fage, 2009, p. 7-14.
rastros brutos de vidas, escreve Arlette Farge, que não pediram para
ser contadas assim, e que são obrigadas, porque foram um dia
confrontadas com a realidade da polícia e da repressão. Quer se trate
de vítimas, denunciantes, suspeitos ou delinquentes, nenhum deles
sequer sonharia com essa situação em que são obrigados a se explicar,
se queixar, se justificar diante de uma polícia hostil. Suas falas são
registradas após o acontecimento, e se eles têm, no momento, uma
estratégia, elas não obedecem, como o impresso, à mesma operação
intelectual. Elas entregam o que não teria nunca sido pronunciado se
um acontecimento social pertubador não tivesse acontecido. De
alguma forma, elas entregam um não-dito 14.
15« Nietzsche, la généalogie, l’histoire », Dits et Ecrits, II, Paris, Gallimard, 1994, p. 148.
Esse texto não evoca nenhuma fala consignada, nem fala jurada, nem fé
jurada, mas fala de escritura. Em suma, ele procede por analogia: da mesma
forma que os testemunhos testemunham, “os escritos, eles também
testemunham”. Como uma testemunha que diz a realidade, ou que deve
dizer toda a verdade, sobre a realidade, a escrita ou o documento escrito,
ela também dirá a realidade ou enunciará um certo discurso sobre a
realidade. Mas trata-se de qual realidade? À primeira vista, ou na primeira
leitura, essa realidade não diz respeito ao que chamamos de mundo
empírico dos fatos, dos dados sensíveis, exteriores. O que a escrita
testemunha, como um testemunho testemunha, não se refere ao mundo, à
sociedade ou às práticas sociais propriamente ditas, mas à sua própria
prática de escritura. “Ele testemunha sobre as práticas de escritura”. À
primeira vista, nós estamos aqui mergulhados no registro performativo da
autorreferencialidade. A dimensão testemunhal do documento escrito, ou
do arquivo, ressurge da prática mesmo da escritura, ou, mais exatamente,
de sua inscrição gráfica na escritura da história. Os autores do livro citado
falam ainda de “procedimentos pelos quais os textos do passado são
integrados à escritura dos historiadores”.
18Histoire, Littérature, Témoignage. Ecrire les malheurs du temps, Paris, Gallimard, 2009, p.
13.
Dito de outra forma, a realidade – senão, a verdade – da qual fala o
documento escrito do arquivo, uma vez que ele é tomado por testemunho,
ou à testemunho, diz respeito diretamente aos procedimentos de inscrição
na escritura da história. Referindo-se aos fatos, situações reais,
acontecimentos sociais, o arquivo se coloca sempre em termos de certos
procedimentos de inscrição textual ou gráfica, iconográfica, fotográfica,
informática ou digital, que o integram à escritura da história. E a questão
mais difícil, também a mais sensível, consiste em perguntar em quais
maneiras esses procedimentos de inscrição gráfica, o qual testemunham
todos os documentos de arquivo, não ressurgem já desse “operador de
apagamento” descrito por Michel de Certeau: essa operação técnica, que
desloca “a interrogação genealógica” de onde nasce o arquivo, em
instrumento de produção social, que decide sobre o sentido da história? O
que equivale a dizer que esses procedimentos, esses mecanismos, essas
diversas maneiras de compor graficamente um documento de arquivo se
constituem tanto operadores de apagamento, quanto dispositivos técnicos
criptografados, que desviam, contornam, ocultam e dissimulam ou ainda
rejeitam, reprimem ou denegam, o que existe de absolutamente singular,
mesmo do indizível ou do não-dito, em toda fala consignada.