Você está na página 1de 27

ARQUIVO, MEMÓRIA E TESTEMUNHO

Serge Margel
Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo
tempo, um documento da barbárie.

Walter Benjamin, Sobre o conceito de história.


[Primeira conferência]
Os arquivos, nos limites da escritura e do saber

A linha que separa, partilha e distribui as fronteiras entre literatura e


antropologia é sinuosa, porosa até. Ela existe, entretanto; mas, hoje mais do
que nunca, ela se concebe de diversas maneiras e abre mais do que um
horizonte da história. Será, precisamente, pela questão do arquivo que eu
gostaria de abordá-la, repensá-la e, sobretudo, articulá-la aos conceitos de
testemunho e de memória. O que é o arquivo, nos confins da escritura e do
saber, também nas fronteiras da literatura e das ciências do homem, da
antropologia, da etnologia, da historiografia e mesmo da psicanálise? Seria
preciso dizer o que é o saber na escritura do arquivo ou de seu texto – tanto
sua sintaxe, sua gramática, sua retórica, sua verossimilhança ou sua
credibilidade, quanto suas modalidades de enunciação, seus critérios de
autenticação, seus protocolos de verificação, ou suas capacidades
epistêmicas? Como definir o arquivo em sua textualidade, como repensá-lo,
hoje, em um momento de mundialização mediatizada, uma vez que ele
representa e constitui a fonte documentária do saber? Como pensar o
arquivo, uma vez que ele vale como prova material, que ele testemunha
uma realidade objetiva, engaja uma pretensão referencial, no que se refere a
uma atualidade, uma presença, um acontecimento, um fato, ou, mais ainda,
uma cultura? O arquivo testemunha o passado, ou um passado, não apenas
que desapareceu, que não é mais, mas, sobretudo, um passado que
sobreviveu, como que ressurgido no arquivo, ou reaparecido como essa
mesma “realidade” a qual testemunha o arquivo. É a dimensão
propriamente fantasmal do arquivo, o espaço ficcional no qual se inventam
e se recompõem as fronteiras da escrita e do saber, que lhe permite estar no
contato, ou em contato direto, sensível, material com a historicidade da
memória, com a alteridade e o passado. Ele será sempre definido dessa
maneira: o arquivo constitui um elo no passado, ou reconstitui o elo com o
passado, seja com “isso que acabou de acontecer”, seja com esse presente
do qual fala Agostinho, sempre fugitivo, fulgurante, emergente, como a
atualidade sempre aparente, desaparente e, sobre a qual eu voltarei mais
tarde.

Ora, se o arquivo constitui de fato uma relação no passado, que inventa


uma tradição, elabora uma memória, se ele sempre constrói e institui uma
certa representação do passado, não há, todavia, arquivo, no singular ou no
plural, que não seja já tomado ou estabelecido na constituição de um fundo,
o qual chamamos justamente fundo de arquivos. De um lado, o arquivo
constrói a historicidade do passado, de outro, constitui-se um fundo de
arquivos. E essa “constituição”, que se refere a falar propriamente da
historiografia, da etnografia ou da psicanálise, digamos de uma disciplina
das ciências humanas, implica sempre um dispositivo discursivo de
legitimação. Falar-se-ia de um discurso soberano e dominante, um discurso
político por excelência, que institui um direito de olhar sobre outras
culturas, tanto de fora quanto de dentro, que estrutura a observação, do
investigador ao investigado, que ordena a racionalidade das análises e
determina a pertinência dos métodos, a construção das ferramentas
conceituais e, sobretudo, que decide a escolha dos objetos, dos textos, das
imagens, do que deve ser considerado ou negligenciado, preservado ou
destruído, em suma, do que se tornará documento. De maneira implícita,
existe sempre no arquivo um discurso que divide e separa os objetos, entre
o legitimo e o ilegítimo, o pertinente e o impertinente, o significante e o
insignificante, o mais importante e o menos importante, mas também que
distribui os lugares do saber, do campo ao laboratório, e recorta os espaços,
do cosmos ao topos, do global ao local. Um discurso de legitimação
especificamente testemunhal, nós veremos, que escreve na mesma medida
em que falsifica a história, que produz e que simultaneamente apaga os
traços da história. Um discurso do arquivo, que se enuncia, se formula, se
constrói, com suas regras e seu uso, seu poder e seus limites, mas,
principalmente, que se inscreve nos confins da literatura e das ciências
humanas. Um discurso cuja análise e crítica nos permitirão repensar suas
fronteiras, a linha da divisa, sempre fictícia e fantasmal, que se recompõe
sem cessar, se agencia sobre outros planos, produz novas formas para o
surgimento de novos “contatos” com a historicidade do presente, novas
definições de tempo ou maneiras de “reescrever a modernidade”. Um
discurso no qual se articulam arquivo, memória e testemunho. Um
discurso, em suma, no qual se instituem tanto os diferentes regimes de
alteridade do tempo – a origem, a tradição ou o contemporâneo – quanto os
diferentes modos de temporalidade do outro, dos outros, de outras culturas,
das mais próximas às mais afastadas – os selvagens, os primitivos e os
civilizados, os bárbaros, os antigos e os modernos.

Eu tentarei abordar essa linha de repartição ou de distribuição de


fronteiras, que constitui e institui a escritura dos arquivos, em termos
políticos – a partir de uma escolha de textos, de referências e de autores,
que abrem eles-mesmos uma nova política dos arquivos. Os arquivos são,
antes de tudo, “objetos” e “lugares” políticos: objetos erigidos como
documentos testemunhas de uma cultura, e lugares onde esses mesmos
objetos se consignam, se conservam e se apresentam. Não há lugares de
arquivos ou menos ainda objetos de arquivos antes dessa “grande partilha”
política que delibera na mesma medida que legifera sobre as relações de
espaço e de tempo ou sobre as condições de uma contemporaneidade das
culturas. Em outras palavras, não há nem lugar nem objeto, para os
arquivos, antes da possibilidade de deslocar um rastro em documento, de
transpor um fato em registro, e, portanto, de instituir um acontecimento
como valor cultural. Esse gesto performativo de deslocamento, essa
operação discursiva de desvio, que retira o objeto de seu contexto de
produção para isolá-lo, consigná-lo, preservá-lo – arquivá-lo –,
implicitamente contém, na mesma medida que ele revela, a encenação
política da grande partilha das culturas, dos espaços e dos tempos, da
memória também e da história. Será preciso ler, decifrar, descriptografar
nesse deslocamento do objeto, instituindo-o de um lugar a outro, de um
tempo a outro tempo, a história de uma dominação, ou mesmo de uma
barbárie, a construção de um discurso dominante, a legitimação de uma
soberania. Poderemos ler, em todo seu “frescor”, a descoberta do Novo
Mundo, a história do colonialismo, a ocidentalização e a destruição de
culturas – digamos, uma certa escritura da modernidade. No deslocamento
do objeto, veremos, então, se elaborar um processo não somente de
produção, mas também de destruição cultural, um processo paradoxal e
complexo de instituição da cultura, em suma, na qual se escreve, se lê, em
plena história dos “tempos modernos”, a incessante recomposição da
grande partilha política dos arquivos, que lhe dita sua autoridade, sua
legitimidade, sua soberania.

Desde o fim dos anos 80, em plena mundialização pós-colonial,


deveríamos anunciar “o fim da grande partilha”, uma espécie de crise, um
colapso das disciplinas do saber, o desaparecimento dos campos
tradicionais da investigação, que teríamos sobretudo associado a essa
pretendida “virada literária da antropologia”. O debate é rico, vasto e
complexo, ele valoriza até exacerbar o poder de interpretação, a autoridade
do hermeneuta, e mesmo o pertencimento político do autor. Falar-se-ia de
um gênero híbrido de etno-ficcção, mas sem jamais definir a ficção de
forma outra do que nos termos de construção, ou de fabricação. Esse
debate, no entanto, parece-me incontornável; menos, sem dúvida, por seu
relativismo cultural, do que por ter interrogado, ou em todo caso, salientado
a dimensão fictícia da grande partilha das culturas – eu diria seu espaço
propriamente ficcional. Na verdade, o que entra em colapso aqui, desde
mais de trinta anos, não é bem a partilha em si, mas sim uma certa
soberania do discurso dominante, um controle dos protocolos de
legitimação, que perde o domínio das fronteiras – multiplicando-as assim
de forma abissal –, e portanto, o poder de deliberar sobre a “distância
cultural” que separa o Ocidente do resto do mundo. Uma crise de
soberania, um colapso que, sobretudo, revela o espaço ficcional e fantasmal
no qual se elaboram as condições políticas da partilha. Um espaço, uma
cena, um teatro, ficcional não no sentido de uma invenção poética sem
referência à realidade, mas naquele que ali indefinidamente recompõem-se
novas fronteiras ou deslocam-se outros limites para o surgimento de novas
relações de espaço, de tempo, de história e de memória entre as culturas.
Um espaço ficcional, que permite não somente observar os jogos de
escritura e do saber, no que se refere às novas formas de alteridade, ou que
volta a pensar os limites entre literatura e ciências humanas, mas um
espaço, sobretudo, no qual se toma forma e se institui toda política dos
arquivos.

Falamos, na verdade, de uma política de arquivos que se difere para


o literato ou o historiador, o etnólogo ou o psicanalista, mas que cada vez
diz respeito aos objetos e lugares, documentos, depósitos, notas e
repositórios. Tantos rastros materiais que, tão logo tomam corpo, se
apagam ou desaparecem no espaço instituído da memória, tantos indícios
que marcam as relações de temporalidade, entre o mesmo e o outro, o
próximo e o distante, o local e o global, ou ainda o ver e ser visto. Mas
sobretudo tantos rastros que é preciso reconstituir ou cuja escritura
performativa é preciso analisar, inerente a sua consignação, ou
implicitamente contida em sua função testemunhal, em seu valor de
instituição cultural. Toda política de arquivos, seja ela qual for e qualquer
que seja a disciplina ou o saber, jamais poderá fazer a economia de seu jogo
de escritura, ou do espaço ficcional do discurso que decide novos planos de
historicidade e condições de contemporaneidade entre uma cultura
dominante e seu outro. Jamais nenhum fundo de arquivo deveria desistir
nem cessar de interrogar essa política da partilha, esse discurso da
repartição dos locais, dos lugares, das épocas, dos direitos também e do
saber, em suma, das decisões implícitas nas quais se abre o horizonte
fantasmático do passado. Um horizonte de memória, que se trama e se
apaga, se traça e se elimina dentro do processo de escritura pelo qual a
escolha de um “objeto” lhe desloca, isola, distancia e simultaneamente lhe
institui no lugar da história.

Arquivo, memória, história

1. Do que o arquivo seria nome, de qual tipo de objetos, de que gênero de


acontecimentos o arquivo seria o documento, o vestígio, o rastro? Em
suma, do que o arquivo poderia se dizer testemunha, uma vez que ele
parece confrontado – por mais de trinta anos – pelas condições de sua
gênese e de sua própria emersão? Se alguma coisa mudou na escritura da
história, no estabelecimento das fontes e dos procedimentos de inscrição de
uma memória coletiva, tanto para os historiadores, os etnólogos, os
psicanalistas, como para os literatos e os artistas, seja talvez menos uma
nova definição de arquivos do que uma nova configuração dos lugares de
emersão do arquivo. Aqui, lugar não é espaço. Esse locus não depende
mais de uma arte geométrica, de uma geografia do edifício, de uma
arquitetura das Instituições (os Arquivos, o Museu, a Escola, a Igreja, o
Hospital, a Prisão), mas sim doravante de uma arte do discurso, de uma
técnica de argumentação, ou mesmo de um espaço ficcional de escritura.
Na retórica, um lugar é isso: a operação de um discurso que modifica uma
ordem das coisas, que desloca uma fonte de produção, que reconfigura uma
visão social, que classifica, recorta, reparte ou redistribui os
acontecimentos dentro do campo do saber. Nesse sentido, um lugar é
sempre um lugar de emersão ou de gênese, um lugar “utópico”, diria
Georges Perec, que condiciona – de um lado, permite ou torna possível e,
de outro, que proíbe ou torna impossível. “Tal é a dupla função do lugar”,
escreve Michel de Certeau, de quem lerei algumas passagens importantes
de A escrita da história:

Ele torna possíveis certas pesquisas em função de


conjunturas e problemáticas comuns. Mas torna outras
impossíveis; exclui do discurso aquilo que é sua condição
num momento dado.1

Refaçamos a pergunta. O que é o arquivo hoje, uma vez que ele se vê


confrontado pelo seu lugar de emersão, portanto, por suas condições que
lhe tornam tão logo possível quanto impossível, ou ainda pelos
procedimentos discursivos, pelos gestos que modificam, transformam, ou
ainda falsificam e apagam uma ordem das coisas em uma outra? Em suma,
são esses gestos que fazem a história, mais precisamente, que constitui a
escritura da história:

Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de


transformar em "documentos" certos objetos distribuídos de outra
maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na

1A escrita da história. Tradução Maria de Lourdes Menezes, Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 1982. p.68
realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo simples fato
de recopiar, transcrever ou fotografar estes objetos mudando ao
mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto. Este gesto consiste em
"isolar" um corpo, como se faz em física, e em "desfigurar" as coisas
para constituí-las como peças que preencham lacunas de um conjunto,
proposto a priori. [...] E o vestígio dos atos que modificam uma ordem
recebida e uma visão social. Instauradora de signos, expostos a
tratamentos específicos, esta ruptura não é, pois, nem apenas nem
primordialmente, o efeito de um "olhar". É necessário aí uma
operação técnica. [...] O arquivo substitui nosso produto por um
passado recebido. Ele faz progressivamente esquecer o que lhe é
suposto representar. Ele apaga a interrogação genealógica de onde
nasceu, para tornar-se uma ferramenta de produção (grifo meu. SM.).
No sistema que generaliza essa metamorfose, o arquivo é um operador
que perverte o tempo e o transmuta em espaço a construir. Essa
máquina tem um papel primeiro em nossos teatros de operações2.

Lugares, gestos e discursos que abrem um duplo horizonte de


historicidade, de memória e de herança, de genealogia também. Por um
lado, uma escritura da história, a inscrição de textos, de documentos, de
fotografias na prática dos historiadores ou dos artistas, por outro, uma
falsificação da história, o apagamento de uma gênese, ou de traços
genealógicos de um lugar de emersão, de uma interrogação, de um
questionamento, mesmo um problema ou uma crise. Para de Certeau, e
para Foucault antes dele, não haveria escritura da história sem a vertente
oblíqua de uma falsificação, de um desvio, regrado, organizado,
orquestrado até, que “apaga a interrogação genealógica de onde ele nasceu
para se tornar uma ferramenta de produção”. Mas leiamos atentamente esse
texto para melhor nele discernir o duplo horizonte de historicidade dos
lugares, dos gestos e dos discursos. Se constituir um arquivo começa
2L’écriture de l’histoire, op. cit., p. 100-101.
sempre “com o gesto de separar”, digamos de seletar, de escolher, ou de
selecionar, mas também de recolher, de coletar, de reunir. Separar é reunir.
E nesse simples gesto de deslocamento que transforma em “documento”
uma ordem das coisas, ou certos objetos, certas práticas, se opera um
verdadeiro processo de produção, ou o espaço ficcional de uma
transposição. Produzir um documento, nesse sentido, evidencia uma
metamorfose. Os objetos, quaisquer sejam, ou qual seja o suporte que eles
representam, não somente encontram outro local no espaço, uma outra
vizinhança, e uma nova ordem de repartição ou de distribuição, mas, mais
ainda, eles mudam de estatuto. Eles se tornam “objetos culturais”, valores
instituídos, lugares sociais, lugares de memória, imbuídos de signos, de
indícios, de rastros que agenciam um novo universo do discurso e da
historicidade.

Esse gesto de arquivamento, esse gesto de separação, de encetamento,


esse primeiro gesto de uma gênese que decide uma nova ordem das coisas,
em suma, esse deslocamento que faz a história, simultaneamente apaga seu
próprio processo de produção – “a interrogação genealógica de onde ele
nasceu” – e deixa rastros de seu próprio apagamento – “o vestígio dos atos
que modificam uma ordem pré-concebida e uma visão social”. E agora,
como não retornar, ainda que alusivamente, ao Moisés de Freud, ao qual
Certeau terá consagrado o último capítulo de A escrita da história. Freud
fala do texto bíblico como uma construção de arquivos que
simultaneamente escreve e falsifica a história – do verdadeiro Moisés. Mas
pouco importa aqui a figura do profeta, o que conta, para nós, refere-se a
certo tratamento textual, um suporte gráfico, icônico ou iconográfico, que
Freud chama justamente Entstellung, o “deslocamento”, nesse duplo
sentido que de Certeau retomará:

Ele [esse deslocamento] não deveria somente significar, escreve


Freud: mudar o aspecto de alguma coisa, mas também: mudar alguma
coisa de lugar, lhe deslocar alhures. Em vários casos de Entstellung de
texto, nós podemos, portanto, esperar encontrar, escondido aqui ou lá,
o elemento reprimido e denegado3.
Esse mecanismo de deslocamento é uma operação propriamente textual, ou
ficcional, que já opera na gênese ou no primeiro gesto de arquivamento.
Não apenas ele muda o local e o estatuto dos objetos, dos corpos, das
práticas, erigindo-os como “documentos”, como valor cultural, como
objeto de saber, de memória tanto quanto de esquecimento, mas ainda e
sobretudo denega, oculta e dissimula, criptografa também ou apaga todo o
mecanismo da escritura e as operações ficcionais que permitiram esse
deslocamento, ou a passagem de uma interrogação problematizante a um
instrumento de produção – como veremos, de um acontecimento a sua
denegação. Freud compara esse deslocamento textual de arquivo à
execução de um assassinato. Existiria ali sempre a investigação policial,
criminal ou criminalística na produção de um arquivo, que contrasta com o
sentido da história, como temos decidido há mais de 2000 anos de história
bíblica sobre a morte de Moisés, ou mais exatamente sobre o apagamento
de seu assassinato.

Trata-se do deslocamento de um texto como de um assassinato,


escreve Freud. A dificuldade não está no executar do ato, mas de
apagar seus rastros4.

E a grande hipótese de Freud, que Certeau redefinirá, para


compreender a constituição arquivística da história, para apreender dela a
operação ficcional ou a gênese, consiste em dizer que o apagamento dos
rastros, textuais ou criminais, deixa sempre rastros! E são esses traços, os
rastros do apagamento dos rastros, ou os rastros do apagamento de uma

3L’homme Moïse et la religion monothéiste, trad. de l’all. par C. Heim, Paris, Gallimard, 1986,
p. 115.

4Ibid., p. 115.
gênese, de um acontecimento, de uma ruptura, que é preciso doravante
reconstituir, narrativizar, depois analisar e pensar como muitos lugares,
gestos e discursos, na medida de uma nova escritura da história.

Mas como fazer, como proceder para repensar ou decifrar essas


operações ficcionais, esses gestos, esses lugares, esses discursos, então
“escondidos aqui ou lá”, escreve Freud, criptografados, codificados,
secretamente guardados, ou ao abrigo dos olhares esclarecidos do
historiador? É a encenação de um verdadeiro romance policial, uma
cumplicidade aberta de comissários, de detetives, de criptólogos, de
literatos e etnógrafos para desmascarar a trapaça dos falsários, para
malograr a impostura das falsificações documentárias. Um romance
policial à maneira de um método indiciário, o qual Carlo Ginzburg definirá,
um século mais tarde, de paradigma5. De Freud a Ginzburg, inventara-se
uma metodologia da decifragem do arquivo, que não somente permite
descobrir os detalhes escondidos, os indícios insignificantes na produção de
um documento, na pintura ou na composição de um quadro, no vestígio de
um passo, ou no grão de uma voz, e, sem dúvida em um dia próximo, no
sopro de um aroma, mas também de reconstituir uma nova articulação entre
a ficção e o arquivo, os documentos e a história, os traços e a memória. Por
esse método indiciário, Freud descobre o inconsciente, inventa a
psicanálise, e Ginzburg, uma nova maneira de fazer história. Encontramos
o mesmo proceder detetive-descriptíco nos dois Moisés de Freud. No O
homem Moisés e a religião monoteísta, podemos ler:

É assim que quase todas as partes [do texto bíblico] comportam


lacunas evidentes, incômodas repetições, contradições manifestas,

5« Traces. Les racines d’un paradigme indiciaire », in Mythes, emblèmes, traces. Morphologie
et histoire, trad. do italiano por M. Aymard, Paris, Flammarion, 1989, p. 139-180. Em
português, GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, Emblemas
e Sinais. Tradução de Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1939.
indícios que traem coisas cuja comunicação não era procurada6.

No O Moisés de Michelangelo, referindo-se explicitamente ao historiador


de arte Giovanni Morelli – seu exame sistemático dos detalhes para rastrear
a obra dos falsários –, Freud dirá que a psicanálise é

habilitada em adivinhar as coisas secretas e escondidas a partir de


traços subestimados ou dos quais não tomamos consciência, a partir
do refugo da observação7.

2. A particularidade desses traços, dessas marcas desapercebidas, dessa


rejeição ou “esse refugo da observação” não possuem como função
primeira fazer referência à alguma coisa exterior, na realidade do mundo.
Esse tipo de traços indiciários colocam a difícil pergunta do regime de
referencialidade dos arquivos. O interesse aportado sobre esses traços
mudos, discretos, e, por vezes, indistinguíveis ao olho nu, insensíveis ou
invisíveis, abre um novo olhar sobre o sentido dos arquivos. Dar atenção ao
que não fez do objeto seu interesse, o desafio de nenhuma observação, o
que isso quer dizer na constituição de um arquivo senão que ele é
determinado por saberes implícitos, por gestos, por lugares e por discursos
latentes, cuja gênese ou ficção se apaga mais uma vez para “tornar-se um
instrumento de uma produção”, de uma comunicação, de uma transmissão,
de uma instituição, ou mesmo de uma dominação? Daí a importante
presença de Freud, da psicanálise, do inconsciente, do recalque nos textos
de Certeau e de Ginzburg. O que é necessário ler, decifrar, descriptografar,
mas também detectar no mais profundo desses detalhes aparentemente
insignificantes é sempre o rastro de uma negação, de uma denegação, de
um apagamento que recalca ou rejeita, desvia ou faz recuar o que perturba

6L’homme Moïse et la religion monothéiste, op. cit., p. 115. Grifo meu. (Tradução nossa)

7« Le Moïse de Michel-Ange », in Essais de psychanalyse appliquée, trad. de l’all. par M.


Bonaparte et E. Marty, Paris, Gallimard, 1933, p. 23-24. Trad. mod. Je souligne.
e, principalmente, o que ameaça um equilíbrio, tão psíquico quanto social,
em suma, uma certa ordem dominante, uma autoridade, um poder, uma
tradição, ou ainda simplesmente uma instituição.

Abordar os sistemas indiciários do arquivo tão quanto dos


operadores de apagamento permite, portanto, sair dessa oposição entre uma
abordagem documentária, indexada à realidade empírica do mundo, da
sociedade, da história, e uma abordagem literária, iconográfica, fotográfica,
artística, esta indexada à realidade gráfica dos procedimentos de
narrativização, conversão em imagem ou ainda de escritura da história. De
fato, uma vez que se define o arquivo como um operador de apagamento,
ou seja, como um sistema de rastros que indicam implicitamente o
procedimento pelo qual sua gênese se apaga em instrumento – de
propaganda, de dominação, de sedução – ou se desloca em “prova
documentária” para a veracidade da história, a partir daí então todo arquivo
arquiva ou, principalmente e sobretudo, consigna, porém sempre de forma
escondida ou velada, seu próprio apagamento, sua ficção, e vê-se
imediatamente entrar em colapso sob nossos olhos a diferença oposicional
e tradicional entre abordagem documentária e abordagem literária do
arquivo. O operador de apagamento dos arquivos constitui ele-mesmo esse
sistema indiciário, anterior à oposição dos dois regimes clássicos de
referencialidade: referência empírica – indexada à ordem de uma verdade
objetiva, a realidade, o mundo, a sociedade; e referência gráfica, ou
autorreferência – indexada à ordem de uma prática subjetiva, uma escritura,
uma expressão, uma observação.

Aquém da cisão indexical das referencialidades, empírica ou gráfica,


documentária ou literária, o sistema indiciário de apagamento do arquivo
constitui o que eu chamarei aqui de regime testemunhal. A encenação,
implícita a todos os arquivos, de gestos, lugares, discursos testemunha –
como uma testemunha testemunha – os procedimentos ficcionais pelos
quais se apaga “a interrogação genealógica de onde ele nasceu”. Antes de
chegarmos à questão do testemunho, às formas testemunhais do arquivo,
não esqueçamos de remarcar ou perceber de novo que o arquivo, não
importa qual for, sempre articulou, senão constituiu, uma relação complexa
e diferenciada entre a memória e a história. E, se não há escritura da
história sem o arquivo, não há tampouco memória nem esquecimento se
não há escritura do arquivo. E se, ainda, os arquivos da memória e os
arquivos da história não são idênticos, isso se dá sempre em função de uma
certa constituição que lhes distingue e relaciona a memória e a história. Por
muito tempo, acreditou-se poder resolver a dificuldade ao opor as
sociedades ditas sem escrita, sem história portanto, ou como diz Lévi-
Strauss, que não fazem da história o motor de sua transformação, contra as
sociedades de escrita, cuja história se torna o agente principal de sua
evolução.

Por essa veia clássica, distinguimos também a tradição oral e a


tradição escrita, opondo a priori a fala e a escrita, a fala viva, primeira, e o
gesto secundário de uma inscrição gráfica – ou de uma técnica. Mas não é
por esse caminho que gostaria de me engajar. Pelo contrário, eu gostaria
dele me desvencilhar e mostrar justamente que existe memória na fala e
arquivo na memória; portanto, não há fala nem gesto nem voz nem
tampouco sopro, olhar, escuta sem um arquivo, ou sem que uma escritura
arquivista já tenha testemunhado seu apagamento, sua perda, seu
desaparecimento. Em outros termos, não há memória que não seja
confrontada por sua própria perda, sua insuficiência ou, mais ainda, sua
incapacidade de conservar a singularidade de uma fala; a emersão de um
acontecimento, portanto, que já não esteja inscrito por uma necessidade de
estrutura dentro de um mecanismo de reprodução técnica, ou de repetição,
que, segundo Freud, age sempre sobre um fundo de pulsão de morte, de
perda, de desaparecimento.

É a hipótese máxima: o arquivo representa sempre uma forma de


sobrevivência ou o traço fantasmal de um desaparecimento, que apaga seu
mecanismo de reprodução ainda que deixando os rastros desse apagamento.
É o que eu chamarei de regime testemunhal do arquivo. Rastros fantasmais
que testemunham o apagamento pelo qual se constitui todo arquivo. E,
nesse sentido, os arquivos fantasmas seriam um tipo de arquivo por entre
outros, e, simultaneamente, constituiriam o protótipo do arquivo. Mas não
nos apressemos e retornemos ao texto de de Certeau onde havíamos
parado. Antes de falar de apagamento, de deslocamento, de substituição,
sobre os rastros de Freud, de Certeau, nos recordamos, precisava evocar a
questão da técnica. De memória, eu cito novamente a passagem em
questão. Trata-se sempre do mesmo gesto de arquivamento:

E o vestígio dos atos que modificam uma ordem recebida e uma visão
social. Instauradora de signos, expostos a tratamentos específicos, esta
ruptura não é, pois, nem apenas nem primordialmente, o efeito de um
"olhar". É necessário aí uma operação técnica.

O operador de apagamento dos arquivos produz, portanto, uma


“operação técnica”. Aqui, “técnica” parece se opor à “olhar’, escrito entre
aspas, uma visão, uma abordagem ou uma intenção, digamos uma
experiência natural, que se efetua sem dispositivo instrumental
determinado, nem determinante. A “ruptura” da qual de Certeau fala, que
modifica a ordem das coisas, “uma visão social” que apaga sua própria
gênese, seu processo, seu mecanismo, sua ficção, ainda assim instaurando
“signos ofertados à tratamentos específicos”, não faz daí surgir um “olhar”.
O que rompe aqui com o curso das coisas, o que causa, portanto, ruptura
dentro da história, ou da história, não provém de um novo investimento do
olhar sobre as coisas, sobre a sociedade, nem de uma visão ou concepção
de mundo, mas sim de uma “operação técnica”. O que se deve entender por
isso, e qual lugar deve-se atribuir à técnica, aqui sem precisão, sem
definição nem contexto, dentro do operador de apagamento de arquivos?

Veremos mais tarde em detalhes. Os Gregos, Platão, Aristóteles e


alguns outros filósofos, distinguiram a mnémè, digamos a memória, a
rememoração, a lembrança, entre: de um lado, a anamnèsis, ou a memória
viva, primeira, mental, psíquica, e, de outro, a hypomnèma, a memória
instrumental, a memória técnica, mnemotécnica, gráfica, iconográfica, em
breve fotográfica e áudio-videográfica. Nesse sentido, o arquivo, o rastro,
da pegada ao documento, do papiro ao texto, seriam sempre, e por
definição, hypomnésica. Não há arquivo sem técnica, sem um dispositivo
técnico de inscrição, sem operação gráfica de uma marcação, codificada,
cifrada, criptografada, mas sempre decifrável e descodificável. O interesse
de uma tal distinção especificamente mnésica não aporta apenas sobre o
uso que se faz da história, entre outros, para opor oralidade e escrita, a fala
ou o espírito que vivifica e a letra que mata, sociedades sem história e
sociedades históricas, tradição e modernidade. Bem mais, o interesse
maior, a meus olhos, aporta sobre essa insuficiência constitutiva da
memória, quão viva for, ou mais precisamente sobre uma certa
incapacidade estrutural da memória a guardar, a preservar, a conservar ou
consignar, ao passar do tempo, o que se vive, o que se pensa, o que se diz,
ou que se escuta, troca, partilha ou, ainda, se transmite. Nunca o que
acontece, jamais nenhum acontecimento em sua singularidade absoluta, em
sua emersão poderá ser guardado em memória como tal, se registrar, se
reproduzir em todo seu frescor e assim se transmitir de geração em geração.
Não poderemos jamais reproduzir um acontecimento sem já ter
pressuposto, por antecipação ou projeção, a possibilidade material, física,
corporal, de um suporte, da pedra à tela, que constitui esse acontecimento
em arquivo dele mesmo, e lhe permite assim de se indicar ou de se
referenciar a ele-mesmo, de se repetir no tempo, testemunhando sua própria
gênese, seu lugar de produção, sua emersão única e singular.

Arquivo, espectro, testemunho

1. Como relembra François Hartog, Jules Michelet “se vangloriava de ter


sido um dos primeiros a saber que ‘a história se fazia por meio de
documentos’”8. Entendamos com isso, não mais somente com a única
memória, a transmissão, a narração, mas sim essa operação técnica de
documentação, que transforma a gênese de um acontecimento em
ferramenta de produção. Assim continua Hartog:

a distância entre arquivo e acontecimento, arquivo e memória se


aprofunda. Sobre ela, o arquivo não diz nada ou quase nada. Não mais
dado, mas produzido, ele se torna, com efeito, um objeto de segunda
ordem: abstrato9.

Notemos aqui esses efeitos de secondariedade: a distância, o


sulcamento e a abstração, tantos de rastros e indícios que marcam toda a
ambiguidade dos elos da historicidade entre acontecimento, memória e
arquivo. Descobrir que “a história se fazia por meio de documentos”
produzindo a escritura de arquivos, já é aprofundar uma distância entre o
arquivo e o acontecimento, arquivo e memória, é elaborar uma “outra
ordem”, diria Certeau, uma ordem segunda, uma abstração, segundo
Hartog; eu diria uma ficção. Mas, na verdade, o que uma tal “descoberta”
revela, principalmente, é um certo paradoxo do arquivo: não há
acontecimento sem arquivo. Nada pode surgir nem chegar a um dado

8Evidence de l’histoire, Paris, Gallimard, 2005, p. 271.

9Ibid., p. 271.
momento, aqui e agora, que já não tenha sido determinado em sua gênese
por uma produção técnica de registro, ou de consignação, que não se trate
de uma voz, de uma pele, de uma pegada, de uma pedra talhada, de um
papiro ou de uma película fotossensível, de uma fita magnética ou de um
suporte informático.

Tudo isso para dizer que o arquivo, como produção documentária, como
abstração de uma segunda ordem, como escritura ou impressão gráfica, ou
ainda dispositivo técnico de inscrição, não deve se reduzir ao lugar único
do registro, do armazenamento e da conservação de acontecimentos
passados arquivados. O arquivo faz mais do que registrar um
acontecimento como tal, como aconteceu ou como será realizado
independentemente de seu arquivamento. É o que revela, em última
instância, a operação técnica do arquivo, quando se averigua que a história
se faz sempre por meio de documentos. E agora eu seguirei a hipótese de
Derrida, em Mal de Arquivo, mais um texto sobre Freud:

A estrutura técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo


arquivável em seu próprio surgimento e em sua relação com o porvir. O arquivamento
produz ao mesmo tempo que registra o acontecimento. 10.

Essa hipótese formula perfeitamente bem a situação de “novos


arquivos”, há mais de 30 anos. Dizer que o registro arquivístico produz os
acontecimentos que ele arquiva pode trazer confusão e também, talvez,
deixar entender que o acontecimento “ele-mesmo”, a realidade dos fatos,
dos dados da história, não passa de um “produto” do arquivo, uma
invenção, ou ainda uma ficção.

É o risco, é verdade, mas é sobretudo o desafio desses “novos


arquivos”. Como repensar os elos entre acontecimento, memória e história,
uma vez que os documentos de arquivos, que produzem memória, já

10Mal d’Archive. Une impression freudienne, Paris, Galilée, 1995, p. 34.


“produziram” os acontecimentos da história, ou determinado os
procedimentos pelos quais um documento pode se inscrever na escritura da
história? Esse desafio, esse risco ou esse perigo desafia todas as
concepções da história, mas também da memória et do tempo, e mesmo da
realidade dos acontecimentos, que os ameaça, portanto, de ficção, de
invenção, de fabricação – não falamos, cada vez mais, de uma “negação da
história” e simultaneamente de um “dever da memória”? Diante desse
desafio dos novos arquivos – que descobrem os arquivos proibidos, como
em Paris11, ou o apagamento de arquivos, como em Berlim 12, e que
levantam assim a questão do poder ligado aos arquivos, ao acesso, ao
segredo, segredo de Estado, Estado secreto –, vimos o resultado ou o
horizonte na questão do testemunho. O que eu chamei anteriormente de
regime testemunhal nos permite repensar os elos complexos entre
acontecimento, memória e história, sob o teste da reprodução e das
reconstruções documentárias. Afirmar que o arquivo produz tanto quanto
registra o acontecimento, portanto, que ele condiciona ou determina o
conteúdo arquivável do acontecimento significa dizer, antes de tudo, não
que o arquivo produz a ficção de um acontecimento ou registra um
acontecimento fictício, mas sim que ele faz parte do acontecimento, que ele
participa de sua gênese, implementando ali o espaço ficcional do qual é
testemunha.

Arlette Farge, em O sabor do arquivo, fala acerca “daquele que decide


tomar o arquivo por testemunho”13. Podemos decidir tomar o arquivo por

11Cf. Sonie Combe, Archives interdites. L’histoire confisquée, Paris, La Découverte, 2001, spéc.
p. XVII.

12Cf. Sonia Combe, Thierry Dufrêne et Régine Robin, « Berlin, l’effacement des traces – 1989-
2009 », in Berlin. L’effacement des traces, sous la dir. de S. Combe, Th. Dufrêne, R. Robin, Lyon,
Editions Fage, 2009, p. 7-14.

13Le goût de l’archive, Paris, Seuil, 1989, p. 9.


um documento de autoridade, de repressão, de punição, de controle,
podemos então fazer do arquivo a prova documentária do poder, que decide
o sentido da história, como podemos tomá-lo como testemunha ou para
testemunhar uma fala, de uma singularidade:

rastros brutos de vidas, escreve Arlette Farge, que não pediram para
ser contadas assim, e que são obrigadas, porque foram um dia
confrontadas com a realidade da polícia e da repressão. Quer se trate
de vítimas, denunciantes, suspeitos ou delinquentes, nenhum deles
sequer sonharia com essa situação em que são obrigados a se explicar,
se queixar, se justificar diante de uma polícia hostil. Suas falas são
registradas após o acontecimento, e se eles têm, no momento, uma
estratégia, elas não obedecem, como o impresso, à mesma operação
intelectual. Elas entregam o que não teria nunca sido pronunciado se
um acontecimento social pertubador não tivesse acontecido. De
alguma forma, elas entregam um não-dito 14.

“Suas falas são registrados logo após o acontecimento”. Nessa frase,


todos os termos são decisivos ou aportam todos a decisão de “tomar o
arquivo por testemunho”. Entendamos com isso, dar, retornar ou devolver a
fala àquilo que faz testemunho no arquivo. E, no entanto, uma vez passado,
é “o acontecimento social perturbador” que consigna essa fala, portanto,
que a arquiva, a registra, a documenta, às vezes como uma reclamação,
uma acusação, por outras como um delito, uma confissão, uma justificação,
e que a produz ela-mesma em seu enunciado, seu discurso. Assim, o que se
arquiva ou se consigna no arquivo não é o acontecimento social
perturbador “em si”, a lesão, a disputa, o roubo, mas a entrega de um não-
dito, de uma fala sem lugar ou que não pode mais ter lugar. “Elas [essas
falas] entregam o que não seria jamais pronunciado se nenhum
acontecimento social perturbador tivesse se passado. De alguma forma, elas
14Ibid., p. 12-13.
entregam um não-dito”. No rastro de Michel Foucault, o que Arlette Farge
compreende por acontecimento, aqui, ressurge sempre da perturbação, do
atropelamento ou de uma desordem.

Acontecimento – é preciso entender isto, escreve Foucault, não como


uma decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas uma relação
de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário
retomado e tornado contra seus utilizadores, uma dominação que se
debilita, se distende, se envenena a si mesma, uma outra que entra em
cena, mascarada15.

Nesse sentido, todo acontecimento já seria um “acontecimento social


perturbador”, não somente “uma relação de forças que se inverte”, mas
sobretudo uma virada de situação, ou de dominação, que produz uma força
de ruptura na continuidade da história, e que engendra, sobretudo, um
conflito entre a memória e a história, o testemunho e a narrativa. E essa
produção de ruptura, ou de conflito, nós a vimos em de Certeau, e que eu
aqui retomo, já é um ato de consignação, de gestos, de lugares, de
discursos, que registra e simultaneamente engendra o que nenhuma fala
jamais pode dizer, ou jamais pode pronunciar – esse “rastro bruto de vidas
que não pediram ser contadas assim”. Tomar o arquivo por testemunho
revolve finalmente a pensar que o arquivo testemunha sempre uma fala
consignada, quer dizer, selada, criptografada, retida ou atribuída a um lugar
reservado, guardado, protegido, mesmo tido secreto ou proibido. Mas
tomar o arquivo por testemunho é também considerar o documento em sua
materialidade, em sua singularidade de acontecimento criptografado,
codificado, cifrado. É definir o que Krzysztof Pomian chamava de
sémiophores, esses objetos materiais portadores de signos16, do papiro ao

15« Nietzsche, la généalogie, l’histoire », Dits et Ecrits, II, Paris, Gallimard, 1994, p. 148.

16Sur l’histoire, Paris, Gallimard, 1999, p. 167.


texto, como tantos falamos dos criptogramas, ou dos suportes
criptografados que testemunham seu próprio mecanismo de consignação e
operação ficcional. Nesse sentido, o arquivo não é uma abstração
secundária, ele se torna testemunho de uma singularidade.

O arquivo visado, escreve François Hartog sobre o texto de Artlette


Farge, não é mais uma abstração, um objeto de segunda ordem, mas,
pelo contrário, o documento em sua materialidade, não mais a série,
mas a testemunha [...]. O arquivo é, com efeito, uma testemunha, uma
prova; fala-se de segredo, de dissimulação, de confissão17.

2. A questão do testemunho tem sido uma das grandes questões do


século XX – uma questão pós-genocídio, ligada às guerras, aos massacres,
às ditaduras, às exterminações. É uma velha questão, ainda assim, essa do
martus grego, o testemunho judiciário, político, retórico ou do mártir judeu
e cristão, a testemunha da fé. O testemunho ressurge sempre de um regime
discursivo particular. É um ato de fé contra uma fala jurada, submissa ao
registro da lei, ou que engaja uma responsabilidade diante da lei, aquela de
dizer a verdade: “eu juro dizer a verdade, toda a verdade”, segundo a
fórmula consagrada e que Derrida relembra em mais de um texto. Mas o
que quer dizer essa promessa de verdade ou o que significa essa fala que
promete dizer a verdade, no contexto dos arquivos? Em outros termos, e
mais precisamente, o que testemunha o arquivo, uma vez que ele é ele-
mesmo considerado o lugar de uma fala consignada, um criptograma, um
documento criptografado? Em uma obra coletiva importante, intitulada
História, Literatura, Testemunho: Escrever os infortúnios do tempo,
Christian Jouhaud, Dinah Ribard et Nicolas Schapira colocam a questão,
tecendo um elo dos mais estreitos entre arquivo e testemunho. Eu cito uma
passagem:

17Evidence de l’histoire, op. cit., p. 273-274.


Com efeito, a própria noção de testemunho escrito traz consigo tudo o
que se deve tomar em conjunto na análise : a capacidade da
testemunha de dizer a verdade e a poderosa realidade da escritura ela-
mesma, que classifica, formaliza, comunica. As testemunhas
testemunham – elas se autorizam, se encenam, se mostram, se
legitimam – mas os escritos, eles também testemunham: eles
testemunham acerca das práticas de escrita que é preciso
contextualizar em uma histórias das formas de presença da literatura 18.

Esse texto não evoca nenhuma fala consignada, nem fala jurada, nem fé
jurada, mas fala de escritura. Em suma, ele procede por analogia: da mesma
forma que os testemunhos testemunham, “os escritos, eles também
testemunham”. Como uma testemunha que diz a realidade, ou que deve
dizer toda a verdade, sobre a realidade, a escrita ou o documento escrito,
ela também dirá a realidade ou enunciará um certo discurso sobre a
realidade. Mas trata-se de qual realidade? À primeira vista, ou na primeira
leitura, essa realidade não diz respeito ao que chamamos de mundo
empírico dos fatos, dos dados sensíveis, exteriores. O que a escrita
testemunha, como um testemunho testemunha, não se refere ao mundo, à
sociedade ou às práticas sociais propriamente ditas, mas à sua própria
prática de escritura. “Ele testemunha sobre as práticas de escritura”. À
primeira vista, nós estamos aqui mergulhados no registro performativo da
autorreferencialidade. A dimensão testemunhal do documento escrito, ou
do arquivo, ressurge da prática mesmo da escritura, ou, mais exatamente,
de sua inscrição gráfica na escritura da história. Os autores do livro citado
falam ainda de “procedimentos pelos quais os textos do passado são
integrados à escritura dos historiadores”.

18Histoire, Littérature, Témoignage. Ecrire les malheurs du temps, Paris, Gallimard, 2009, p.
13.
Dito de outra forma, a realidade – senão, a verdade – da qual fala o
documento escrito do arquivo, uma vez que ele é tomado por testemunho,
ou à testemunho, diz respeito diretamente aos procedimentos de inscrição
na escritura da história. Referindo-se aos fatos, situações reais,
acontecimentos sociais, o arquivo se coloca sempre em termos de certos
procedimentos de inscrição textual ou gráfica, iconográfica, fotográfica,
informática ou digital, que o integram à escritura da história. E a questão
mais difícil, também a mais sensível, consiste em perguntar em quais
maneiras esses procedimentos de inscrição gráfica, o qual testemunham
todos os documentos de arquivo, não ressurgem já desse “operador de
apagamento” descrito por Michel de Certeau: essa operação técnica, que
desloca “a interrogação genealógica” de onde nasce o arquivo, em
instrumento de produção social, que decide sobre o sentido da história? O
que equivale a dizer que esses procedimentos, esses mecanismos, essas
diversas maneiras de compor graficamente um documento de arquivo se
constituem tanto operadores de apagamento, quanto dispositivos técnicos
criptografados, que desviam, contornam, ocultam e dissimulam ou ainda
rejeitam, reprimem ou denegam, o que existe de absolutamente singular,
mesmo do indizível ou do não-dito, em toda fala consignada.

Nesse sentido testemunhal do arquivo, todo documento seria já em si


mesmo um criptograma, que, de um lado, apaga sua própria gênese, seu
rastro bruto de uma fala singular, deslocando-o em ferramenta social, de
informação, de comunicação, também de transmissão e, por outro, como
disse Freud, deixa rastros que “traem” esse apagamento, indícios discretos,
detalhes aparentemente insignificantes, que deixam “adivinhar as coisas
secretas e escondidas”. Mas, em toda essa conjuntura de romance policial,
à quem retorna o papel do detetive, do inspetor, do criptólogo – esse
adivinho decifrador das coisas secretas, escondidas em cada uma das falas
consignadas do arquivo, do documento? Quem, então, possui as chaves
para compreender essa fala, essa voz fantasmal ou espectral, assombrando
a cripta do arquivo – o autor do criptograma ele-mesmo, se ele existe, seu
leitor, seu auditor, seu espectador, seu intérprete, seu hermeneuta? Quem
detém o poder de captar os fantasmas, de rastrear os espectros, persegui-
los, capturá-los, figura-los também, ou simbolizá-los, para lhes atribuir um
sentido, um nome, um rosto, ficcionalizá-los e, finalmente, integrá-los ou
perde-los, sufoca-los no fluxo totalizante da história? Eu não tenho
resposta, para dizer a verdade. Mas essa questão me faz principalmente
trazer uma outra. Quem decide tomar o arquivo por testemunho, de qual
maneira e sob quais condições? Quem pode se dar o poder de uma tal
metamorfose de poder, quem pode assumi-lo sem dever imediatamente
responder por uma nova configuração da história, dos elos entre a história e
a memória, a história, a memória e o acontecimento? O regime testemunhal
do arquivo não abre a história, a escritura da história, as práticas da
escritura, os textos, as imagens, os gestos que fazem história, seu próprio
lugar – um horizonte espectral que devolve a ele o sentido do interior? O
testemunho do arquivo, pensado como o lugar mesmo do arquivo, não
produz já ele mesmo “uma ruptura” na continuidade da história que nos
acorda desse longo pesadelo das falas proibidas, denegadas e recalcadas?
“O lugar do arquivo” é um retorno do recalcado, que se enuncia na história
ou que vem mostrar pelas únicas formas de documento gráfico, o que é,
ainda hoje, os não-ditos da história.

Você também pode gostar