Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 8

ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA

SOBRE O
PENSAMENTO
ANTROPOLÓGICO
3 ª edição

Ficha catalográfica elaborada pela


Equipe de Pesquisa da ORDECC

Cardoso de Oliveira, Roberto.


048 Sobre o pensamento antropológico. - Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro; 2003 - 3ª edição.

p. (Biblioteca Tempo Universitário; nº 83)


1. Antropologia Social. 2. Antropologia-epistemologia.
I. Título. II. Série.
TEMPO BRASILEIRO
CDU 572:165
Rio de Janeiro - 2003
A FORMAÇÃO DA DISCIPLINA

CAPÍTULO 1

TEMPO E TRADIÇÃO: INTERPRETANDO A


ANTROPOLOGIA

Há quase trinta anos, em 1955, quando numa reunião como esta


nossa Associação elegia sua primeira diretoria, no mesmo ano e na
Europa, numa pequena cidade da Normandia, o filósofo alemão Mar­
tin Heidegger se questionava sobre o SER da filosofia em sua confe­
rência de abertura de um colóquio internacional.i A importância da
reflexão heideggeriana estava no fato de exprimir - ao formular
aquela questão - uma nova tendência de seu pensamento (que a his-
\tória registraria como o segundo Heidegger) pautada no esmiuça­
mento da tradição e da linguagem, submetidas ambas a um infindável
exercício hermenêutico.
Não é minha intenção tentar aqui igual exercício com relação à
minha disciplina, a antropologia - empresa, aliás, demasiadamente
grande para um etnólogo. Mas, a meu ver, a proposta heideggeriana
bem que pode ser aceita, porém nos termos de uma etnologia moder­
na, ou antropologia social, vista básica, ainda que não exclusivamen­
te, como uma disciplina interpretativa; ela própria possuidora de ins­
trumentos que lhe permitam poder alcançar um grau de compreensão
de si, estranhando-se a si própria de modo a realizar aquele "espan­
to'' de que fala o filósofo e que tão bem caracteriza o SER da filosofia;
e que, de certa maneira, está presente em toda boa etnologia em seu
encontro com o outro. '' O espanto carrega a filosofia e impera em seu
interior" - disse Heidegger naquela oportunidade. Soaria absurdo ginar destituído de qualquer "bias" ou "parti pris", gostaria de dar
se substituíssemos, na frase, filosofia por antropologia? Ou- em ou­ início à minha interpretação da antropologia social ou cultural pelo
tras palavras- não seria a boa etnografia função dessa mesma capa­ registro de meu primeiro espanto: porque nós, autores e atores do
cidade de espantar-se, menos talvez com o outro, mas certamente processo de constituição e desenvolvimento da disciplina (ou 1?esmo
mais consigo mesmo, com esse "estranho" modo de conhecer que de sua transplantação para outras latitudes), tendemos a abdicar de
para nós se configura ser a antropologia? Conhecer o outro e pensá-la em seus fundamentos, i. é, comó uma modalida�e de conhe­
conhecer-se não são, afinal de contas, para essa modalidade de an­ cimento que é, para nos interrogarmos quase que exclusivamente so­
tropologia, as faces de uma mesma moeda? O que é, afinal de contas, bre os modos de viver, de pensar e de conhecer de outros povos ou de
a antropologia? diferentes setores da sociedade a que pertencemos? Se nós mesmos,
Comecemos pelo nosso espanto diante do outro, absolutamente enquanto antropólogos, membros de uma comunidade intelectual,
mais fácil de ocorrer (e de se compreender) na prática da pesquisa et­ constituímos uma sorte de "cultura", cujas origens não estão aqui,
nológica. Espanto que não é difícil de entender quando o objeto é o em nosso continente, mas em nossa formação profissional estão pre­
outro, particularmente outras sociedades, outras culturas, diferen­ sentes, por que então não tomarmos essa "cultura" como objeto pri­
tes da nossa; ou mesmo quando, por uma forma de atitude metodoló­ vilegiado de nossas indagações?
gica, nos transformamos no outro - para usarmos uma expressão Se quisermos evitar uma longa e, neste momento, inviável regres­
merleau-pontyana- e nos voltamos para o estudo de nossa própria são histórica às nossas origens, pelo menos podemos tentar- aqui e
sociedade: de resto, um desideratum, que crescentemente a antropo­ agora- captar a essência das tradições que cultivamos (e muitas ve­
logia atual busca realizar. Mas como- cabe perguntar- podemos zes cultuamos), inscrita nos paradigmas (quem sabe, nossos mitos)
nos espantar com nossa própria disciplina? Ao que parece o nosso es­ que conformam aquilo que se poderia chamar de'' matriz disciplinar''
tranhamento diante do outro inibiu historicamente o nosso espanto · da antropologia. A esta altura, vê-se que estou distinguindo para­
frente à antropologia: produto, ela própria de nossa história, da histó­ digma de matriz disciplinar, ao contrário de Thomas Kuhn - esse
ria do saber ocidental e, de uma maneira toda especial, da cultura excepcional historiador da ciência - que os considera sinônimos,
científica- melhor diria, cientificista- instaurada no Iluminismo e fundindo-os num único conceito. Para mim, uma matriz disciplinar é
tão fortemente presente em nosso campo intelectual. O que esses úl­ a articulação sistemática de um conjunto de paradigmas, a condição
timos três séculos nos ensinaram sobre essa cultura cientificista e o de coexistirem no tempo, mantendo-se todos e cada um ativos e rela-
que este século nos fala sobre a antropologia social, considerando que . tivamente eficientes. À diferença das ciências naturais, que os regis­
se a datarmos a partir de D urkheim, na tradição intelectualista ou ra­ . , tram em sucessão - num processo contínuo de substituição-, na
cionalista européia continental, ou a partir de Rivers na tradição em­ antropologia social os vemos em plena simultaneidade, sem que o
pirista anglo-saxã, ou, ainda, em Boas no culturalismo norte-ameri­ novo paradigma elimine o anterior pela via das '' revoluções científi­
cano, ela estaria prestes a completar um século! Debruçar-se sobre cas" de que nos fala Khun, mas aceite a convivência, muitas vezes
suas raízes - e sobre suas rupturas - é mais do que um exercício num mesmo país, outras vezes numa mesma instituição.
acadêmico. É procurar pensar, como antropólogos, os fundamentos E é assim, com vistas a construir essa matriz disciplinar, que me
de nossa disciplina não raro mitificados no interior de nossas repre­ socorrerei da técnica estrutural de constituição de campos semânti­
sentações (por certo coletivas), sustentadoras de um oficio muitas cos- pelo menos numa primeira etapa dessas considerações. Pode­
vezes realizado tal como um rito profissional, no interior do qual li­ mos partir, assim, da caracterização preliminar das duas tradições a
vros, teses, artigos, comunicações e- por que não?- conferências que me referi: a intelectualista e a empirista, para então cruzá-las,
como esta, constituem sua expressão máxima. uma a uma, com duas importantes perspectivas caracterizadas pela
Mitos e ritos são categorias familiares ao antropólogo e quem sabe "categoria" tempo e presentes em ambas as tradições; uma perspec­
por elas podemos iniciar nosso exame da questão heideggeriana: o tiva seria atemporal, pois mesmo negando o tempo por ele se define,
que é isto que chamamos de antropologia? Sem ironia e sem me ima- outra seria temporal ou histórica, no seu mais amplo sentido. Para fa-
cilitar, vamos designá-las, respectivamente, com os termos, já bas­ tradição empirista cruzada com a mesma perspectiva sincrônica, re­
tante consagrados entre nós, de sincronia e diacronia. Estas duas dundando no domínio do "paradigma estrutural-funcionalista", ex­
perspectivas - como todos sabem - são significativas porque en­ presso na·· Escola Britânica de Antropologia·': (3) no terceiro, conti­
globam, em sua associação binária e antinômica, todos os paradigmas nuando nessa mesma tradição empirista mas cruzando-a com a pers­
reais e possíveis inscritos na matriz. pectiva diacrônica, abrir-se-ia o domínio do "para�ig?1� cultura­
lista", na forma em que é atualizado pela "Escola H1stonco-C�lt�­
ral Norte-americana"; e, finalmente, (4) retomando a trad1çao
intelectualista e cruzando-a com a mesma perspectiva diacrônica,
INTELECTUALISTA EMPIRISTA
o ter-se-ia o quarto domínio - o de um paradigma que apenas nestas úl­
� timas duas décadas começou a repercutir em nossa disciplina por in­

..... "Escola Francesa de "Escola Britânica de fluência de pensadores hermeneutas alemães e franceses e que pode
z
Sociologia" Paradigma Antropologia'' Paradig- aqui ser identificados como "paradigma hermenêutico", gerador de
o racionalista e, em sua ma Estrutural-funciona- uma modalidade de antropologia dita·' interpretativa'', atualmente às

-

u forma moderna, estrutu- lista vésperas de sua consolidação em uns poucos centros universitários
z
ralista norte-americanos.
Cf.l
(1) (2) Para facilitar a realização desta minha etnografia, obviamente in­
completa, das comunidades de pensamento antropológico escolhidas

..... "Antropologia Interpre- "Escola Histórico-Cu!- e que se localizam em países de centro - i. é, de centros irradiadores
z tativa'' Paradigma her- tural" Paradigma cultu- da disciplina, como França, Inglaterra e EE U U - procurarei alguns
o menêutico ralista autores/atores que por seu desempenho tenham contribuído decisi­

-

u vamente para a adoção dos paradigmas apontados na matriz e, de
� certo modo, por ela previstos. A menção às "escolas antropológi­
o (4) (3) cas'' já facilita essa identificação para mim e para os colegas que me
ouvem, e que embora possam discordar sobre um ou outro autor,
Se o visualizarmos geometricamente, veremos que o espaço coberto possam igualmente concordar pelo menos com aquilo que estou cha-
pela matriz está construído e, por conseguinte, limitado, por duas re­ . mando de '' casos exemplares'', como me parecem ser - como já se
tas traçadas a partir de um ponto comum, em ângulo reto, formando · indicou - a "Escola Francesa", a "Britânica", a" Histórico-Cultu­
coordenadas cartesianas: a linha horizontal abrigaria as tradições in­ ral" e a" Interpretativa", esses dois últimos "casos" registrados ti­
telectualista e empirista, escritas nesta ordem; a linha vertical conte­ picamente no ambiente norte-americano. Temos, então, segundo mi­
ria as perspectivas polarizadas no interior da"categoria" tempo (ou nha escolha, respectivamente como principais atores na edificação
crono, se preferirem), sendo umasincrônica (na medida em que neu­ dessas escolas ou orientações da antropologia, ·ourkheim, Rivers,
traliza ou põe entre colchetes o tempo, reduzindo-o a zero) e outra Boas e - como único autor vivo, o quejá indica ajuventude desta úl­
diacrônica (onde o tempo, resgatado e determinador, conforma a tima orientação - Clifford Geertz. Juventude essa - é bom que se
perspectiva). O espaço, assim obtido, fica dividido em quatro domí­ esclareça - apenas de orientação na antropologia e não do paradigma
nios, estruturalmente determinados, e que podemos identificar - para hermenêutico que a sustenta, pois este remonta ao século XIX, a
efeito de uma primeira análise - através de números de 1 a 4 de uma Dilthey pelo menos, para não irmos mais longe ainda.
série ordinária: (1) no primeiro domínio, teríamos a tradição intelec­ O trabalho de Durkheim e de seus colaboradores, como Lévy­
tualista cruzada com a perspectiva sincrônica, criando um lugar a ser Brühl, Henry Hubert e, sobretudo, Marcel Mauss, para destacar
ocupado pelo '' paradigma racionalista'' que, concretamente, tão bem aqueles que considero os principais, resultou na criação de uma in­
a "Escola Francesa de Sociologia" exemplifica; (2) no segundo, a discutivelmente nova disciplina. Com o nome de sociologia era a an-
tropologia social que também nascia, particularmente se considerar­ terra. _Começando p�r
buscar implantar a antropologia social na Ingla
mos O 2. 0 Durkheim, o autor das Formas Elementares da Vida Reli­ d Tylo d Fraz er, e imp?r_tan ?o o di­
uma critica ao evolucionismo e r e e
giosa, e, certamente, a obra de Mauss. Herdeiros da tradição intelec­ atravé s do qual acr dita a estar privilegiando a
f s i·onismo alemão_ e v
tualista franco-germânica, souberam encontrar um espaço próprio de alvos e o es­
�squisa empírica e de campo-, Rivers estabeleceu �s
indagação e sobre ele constituíram uma nova disciplina que não se in loco �os po­
confundisse, nem com a filosofia, nem com a psicologia e certamente ii.Io de uma antropologia comprometida com o estudo
vos aborigenes e apoiada amplamente n? métod
o compa � vo. O
ati
diferente da história enquanto abstraem o tempo do campo de suas pa ticular m nt , no si st�ma d e
preocupações - se me permitem rememorar coisas mais do que sabi­ , prio foco na organização social e, r e e

o u mais aplica do p �qm sador,


das. A partir de uma critica sistemática às categorias do entendi­ �:�entesco, encontrou em Rivers se e

ant rio d Morga n. C m Ri rs º pa­


em que pesem o s tr abalho ?
e res e ve
mento kantianas - conduzida brilhantemente por Durkheim -
s ,
rt u nó nódu o da a tropolo gi ocia l , respons:ivel
rentesco se con ve e l � � s
desvencilhavam-se da canga filosófica (presente tão fortemente na e no penodo
formação intelectual de todos eles) e instituíam uma pe rspectiva ali­ pel as teorias mais sofisticadas produzidas posten�r?1�nt _ _
e empmsta,
mentada pelo método comparativo e voltada para o conhecimento de de consolidação da disciplina, em sua vertente bntamca
s nomes de Ra?cliff�-Brown e de
entre a I .ª e a 2.ª Grande Guerra. O
outras sociedades e as "categorias de entendimento", ou "represen­ ocu­
tações coletivas", de que eram portadoras. Simul taneamente, tendo Malinowski, juntamente com seus discípulos mais eminentes,
i açã , q r como autor s, quer
pam lugar de destaque n essa conso! ? ? � e e
por base a própria noção de representação co letiva, exorcizavam a (d pohtic a ci ntifica , nat ral_ m � nt e ) que
como atores da cena pol ítica e e �
psicologia, como tão bem o mesmo Durkheim, ainda antes de termi­ campo in titucio na de qualqu r di cip lina e em
nar o sécul o XIX, o fazia em seu "Representações individuais e re­ sempre envolve O s l e s

qual quer país . ,, . , . ,


presentações coletivas '' ( I 898). Aberto o espaço para a antropologia,
Mais do que na "Escola Francesa , na bntamca o tempo e colo-
restava-lhes construí-Ia se valendo para tanto de suas própria catego­
cado entre parênteses e pela voz da Radcliffe-Bro�n é expul�o _do
rias, inseridas elas mesmas no campo intelectual do racionalismo
horizonte da disciplina em nome da defe sa do conhecim�n�o ?bJetlvo
francês. T entei mostrar isso num artigo escrito há três anos atrás e
ameaçado pel a "história especulativ a". Junto com a historia e, por
publicado em nosso ANUÁRIO ANTROPOLÓGICO1 ; por isso
motivos ainda mais fortes- à proporção em que o pensamento durk­
não aduzirei aqui mais nenhum outro argumento, senão uma única
heimiano se fazia presente e o ps icol ogismo de Rivers se diluía -,
observação sobre o paradigma racionalista e sua presença na'' Escola Ironicamen­
expulsa va-se o indivíduo como objeto de in_vestigação._
Fr ancesa de Sociologia''. Trata-se do privilegiamento da consciência
te, a antropologia social que viria a se consol idar �cabana por_ren�gar
- e de uma consciência racional - na interioridade mesma dos fe­
ô ps icologismo de seu criador, ps icólogo expenm�nt� de megavel
nômenos sociológicos; claros sintomas desse privilégio da razão po­
mérito. Nesse sentido, Rivers é simultaneamente pmneiro do pensar
demos encontrar na pesada critica que a noção de ''mentalidade pré­
antropológico em seu país e uma figura de transiç_ão, um� vez que em
lógica", cunhada por Lévy-Brühl, receberia no âmbito da própria
"Escola"; e, já em nossos dias, como um desdobramento desse seu próprio itinerário intelectual todas a s questoes estao postas, se
mesmo racionalismo na obra de um Lévi-Strauss, temos o seu "sel­ bem que venham a ser resolvidas somen�e p�r �eu s sucessores.
Reduzido a zero na obsessão smcromca do estrutur�­
vagem cerebral'' - como assim é visto (e .criticado) por Geertz esse
funcionalismo britânico, o tempo - mais do que em sua expressao
Homem criado pelo estruturalismo.4 Um Homem - digo eu - dis­
histórica - é restaurado na "E scola" boasiana surgida nos EE UU
sociado de qualquer historicidade, onde não é difícil deixar de reco­ o
em fins do século XIX e princípios do sécul o XX. Juntamente com
nhecer a presença de um filósofo como Hamelin - colega de Durk­ tempo, Boas e seus alunos d - e ntr e e l es d es taco Kroeb e r - r e cupe­
heim e talvez a melhor expressão do racionalismo francês - com ram a noção de cultura desprezada pelo próprio Rivers e re�egada por
suas tese s sobre a "representação". Radcliffe-Brown. O culturalismo incipiente de Tylor v�i encontrar
Tanto quanto me parecem óbvias as intenções programáticas de
seus intérpretes nos antropólogos culturais norte-americanos _ que,
Durkheim, não me parecem ter sido outras as intenções de Rivers ao
por sua vez, reintroduzem a história no horizonte da antropologia e o
inte resse pelo indivíduo, este últi mo visto em suas relações com a cul­ Gee rtz mostra pri meiramente - e para um auditó ri� da .. Acade mia
tura através da obra de uma Benedict, Margareth Mead, Kluckhohn, Americana de Artes e Ciências'' - que ··a etnografia do pen�ame�­
Sapir, ent re outros, todos descendentes di retos de Boas. Mas é a his­ to como qualquer out ra for ma de etnografia(... ), é uma tent�t1va nao
tó ria, e com ela o tempo, que vai reencontrar na "Escola Histórico­ '
de exaltar a dive rsidade, mas de tomá-la se riame�te_ em s1 me� m

Cultural No rte-americana" o palco de sua realização, poré m numa como um objeto de descrição analítica e de reflexao mterpr�tat1va :
modalidade dife rente daquela que marcou as teorias evolucionistas (p. 154). E que desse objetivo não escapam os n�m esmo nos antro:

·do passado: as grandes teorizações sobre o desenvolvim ento e o pro­ pólogos: "Agora - diz e!�-:- so m?s todos_ nativos . (p. 1� l ). �as e
gresso da humanidade. A histó ria, agora, menos do que se propo r a so mente nos três ensaios fma1s do hvro dedicados ao te ma , a vida da
estabelece r grandes seqüências de eventos culturais, passa a se pro­ m ente" que o programa de Geertz para a antropologia - co o ele
por a estudar "a dinâmica das mudanças que pode m ser observadas �
5
mesm o anuncia na Introdução - de ver os pensamentos co mo cho­
pelo pesquisador" e não mera mente inferidas pela via da reconstru­ ses sociales'' (citado em francês pelo autor), é empiricamente levado
ção especulativa. Mas vale notar aqui que mesmo essa história, vol­ a efeito. Porém, sendo o pensamento uma "coisa social", nem por
tada para entender processos.de mudança, é apreendida em sua exte­ isso deve ser visualizado à m aneira durkheimiana, a saber, como algo
rioridade; a saber, procura-se nela a objetividade dos fatos sócio-cul­ exterior ao antropólogo; antes, pela via da interpretação, essa "coisa
turais. É o tempo do objeto cognoscível - que passa, se transfigura, social'' é transcrita - se assim posso me exprimir - no horizonte do
muitas vezes desaparece - enquanto o sujeito cognoscente perma­ sujeito cognoscente: nas palavras de Geertz, é "tra�uzid_a": a rigor, o
nece estático, mudo intocável po r uma realidade que se m ovimenta _
estudo comparativo, apanágio de toda a antropologia, nao e senao -
ao seu redor. O que significa que a temporalidade do outro nada te m a para Geertz - u ma "tradução cultural" ou melhor, "�ultural tra�s­
ver com a do antropólogo observador, neutro ou, melhor diria, neu­ _
lation'' , forma inglesa que melhor expressa, por sua eti mologia Iatma
tralizado por uma simples questão de método. explícita, o term o'' translationem'', ou mesm o'' transferre'', a trans­
A interiorização do tempo somente vai ocorrer no pensamento ferência de sentido que se quer realizar.
hermenêutico, forjado pelas filosofias de u m Dilthey ou um Ricoeur, E é aqui - se m inha própria interpretação do paradigma herme­
de um Heidegger ou um Gadamer, e apropriado pela antropologia, nêutico for correta - que pode mos entender o processo de transfor­
inicialmente por Geertz, e exercitado agora por um grupo de antropó­ m ação do tempo, enquanto categoria, e m sua passage m da tradição
logos de gerações mais jovens. É conhecido entre nós o seu livroA In­ e m pirista à iradição in�ele�tu�ista. O que �hamei há po�co _ de �n�e-
terpretação das Culturas, publicado em 1973 e traduzido pa ra o por­ . riorização do tempo nao significa outra coisa que a adm1ssao tac1ta
tuguês em 197s6 no qual Geertz divulga um elenco de quinze ensaios pelo pesquisador her meneuta de que a sua posição históricaj�ais é
escritos entre fins dos anos 50 e começos dos 70, oferecendo-nos u ma anulada; ao contrário, ela é resgatada co m o condição do conhecim en­
pri meira proposta de uma"antropologia interpretativa". A essa no­ to. Conhecimento que, abdicando de toda objetividade positivista,
tável seleção de ensaios - que mereceu o '' Prê mio Sorokin'' conce­ realiza-se no próprio ato de "tradução". É a "fusão de horizontes"
dido pelaAmerican Sociological Association, seguiu-se a publicação de que fala a filosofia hermenêutica de um Gadamer ou de u�
- no ano passado - de uma segunda seleção de ensaios produzidos .
Ricoeur. Indica a transformação da história exteriorizada e obJeh­
entre 1974 e 1982, intituladoLocal Knowledge que espero venha a ser vada em historicidade, viva e vivenciada nas consciências dos ho­
logo traduzido para o leitor brasileiro e cujo título, "Conhecimento mens e, por certo, do antropólogo. A fusão de horizontes implic� q�e
Local" ou "Localizado", já indica uma direta defesa da contextuali­ na penetração do horizonte do outro, não abdicamos de nosso �ropno
zação do conhecimento. Um dos ensaios desse livro eu gostaria de horizonte. Assumim os nossos preconceitos. Escreve Ricoeur:
destacar por sua estreita relação co m os meus mais recentes interes­ "Deste conceito insuperável de fusão de horizontes, a teo�a �o pre­
ses de pesquisa: trata-se do ensaio "The Way We Think Now: To­ conceito recebe sua característica mais própria: o preconceito e o ho­
ward an Ethnography of Modem Thought" (ou "Co mo pensa m os rizonte do presente, é a finitude do próximo em sua abertura par� o
atualmente: Por uma Etnografia do Pensamento Moderno"). Nele distante. Desta relação entre o eu e o outro, o conceito de preconceito
recebe seu último toque dialético: é na medida em que eu me trans­ à sua maneira (própria de conhecer), à condi�ão de não se desconhe­
porto no outro, que levo meu horizonte presente, com meus precon­ cerem uns aos outros, vivenciando uma tensao da qual - a m�u v�r
ceitos. É somente nesta tensão entre o outro e eu mesmo, entre o _ nenhum dentre nós pode se furtar de levar em conta na atuali�açao
texto do passado e o ponto de vista do leitor que o preconceito se competente de sua disciplina e de seu ensi�o. N �o se �� ato� aqm, por­
toma operante, constitutivo da historicidade" .
7
tanto, de avaliar a antropologia, buscando identific ar o �i�o e o mor­
Este último paradigma, gerador de um certo interpretativismo an­ to" na teoria antropológica. Limitamo-nos a esse ex�rcic10 de com­
tropológico, não estaria nos levando para os limites da ciência com a preensão - que espero possa merecer dos colegas o mteresse e o es­
filosofia? Ou, melhor, do cientificismo ao humanismo? Ou, ainda, tímulo _ onde incluo as críticas - para que essa ordem de estud_os
nos �eslocando - enquanto antropólogos - da explicação causal ou _
possa se aperfeiçoar entre nós. E se minha interpreta�ao t�ouxer a _m­
funcional-estrutural para a compreensão de sentido, como já sugeriu ·teligibilidade que desejo sobre o SER da antropo!ogia, visto aqm, a
meu antigo mestre, Gilles-Gaston Granger, na conclusão de seu pri­ um só tempo, como estrutural e histórico, como nao ficarmos perple­
moroso ensaio sobre a Filosofia do Estilo. Se seguirmos a numera­
8
xos com certas ''interpretações'' (que aqui uso entre aspas) que a tor­
ção de 1 a 4 dos paradigmas constantes da matriz, verificaremos que nam uma disciplina - por certo �'nacionalizad�" -:- que i�n?ra sua
_ _ ,
histori ent pas amos de uma concepção de ciência marcada por própria história, cuJas rruzes estao fora d� ternt�no brasilerro.? Se
�� � � ainda posso considerar adequadas as consideraçoes q�e fiz sobr� o
uma visao
limites comracionalista <;lo conhecimento,
a filosofia, para ciosa de igualmente
um segundo paradigma, estabelecercioso
seus
SER da antropologia, gostaria de dizer que o toque enra12ad�r da dis­
de diferenciar-se da metafísicà - tal como a especulação filosóficà e ciplina em nossa realidade de país de terceiro mundo, esta - fºr
histórica era assim estigmatizada no interior da tradição empirista. A ,
certo - numa questão de estilo (no sentido de Gran�er), como a !n­
passagem entre esse segundo e o terceiro paradigma, ambos - como dividuação" de uma forma de saber que não �odera ser outra c01�a
se viu - imersos na mesma tradição, representou a recuperação da _
que O resultado de nossa leitura, por certo diligente, de uma matnz
história, encontradiça nos primórdios da disciplina (com Tylor ou disciplinar viva e tensa. Mesmo porque �uitos dos m�is c��ebrados
Morgan, entre outros, todos membros de uma única ancestralidade). antropólogos de ontem e de hoje não se fil!a� de man rra mttda a ne­
Com a recuperação dessa história, deu-se o ressurgimento do tempo �
nhum dos paradigmas, pois vivem eles propnos a ennquecedora te�­
como uma categoria estratégica na conformação da disciplina; não são. Malinowski e Evans-Pritchard foram um deles; Leach, Sc?nei­
obst �e, o ideal cientifico, robustecido pela tradição empirista e pelo der Godelier e Louis Dumont são outros, que transitam, consciente
� _ e c;iticamente, entre os paradigmas, entre as "Escolas". Por outro
prestígio crescente
e, com das ciências
ele, a história fisicasSomente
e a cultura. e naturais,
com "naturaliza"
este último pa­o
tempo ·- lado há outras ''escolas'' - melhor diria, abordagens, como a que se
radigma, o hermenêutico, por meio do qual a antropologia, interiori­ ch�a costumeiramente de "antropologia marxista" - que não se
zando o tempo exorciza a objetividade, é que a vemos reconciliar-se enraíza com exclusividade em nenhum dos paradigmas menci?nados;
com um pensamento não comprometido com o ideário científico ou contudo - é razoável admitir que a antropologia que se faz hoJe sob a
''cientificista''. Visualizando-se a matriz não é dificil perceber o mo­ égide do' marxismo fecundo e enriquecedor seja o produto da tensão
vimento circular que a nossa disciplina parece ter feito em sua própria entre a tradição empirista e a intelectualista, particularmente entre
história - num processo contínuo de ultrapassagem ou de "dépas­ _
um tipo de "materialismo evolutivo" (concernente ao 3. 0 paradigma)
sement" progressivo. 0
e de um "criticismo dialético" (referente ao 4. ) se tormarmos em
Entretanto, para concluir, não se pense que a exemplo das ciên­ conta relativamente a este último paradigma, o fenomenologismo
cias fisicas e exatas - como ensina Thomas Kuhn - os paradigmas hegeliano do jovem Marx. Porém, há de se cuidar não apenas de cer­
se sucedem mercê de ''revoluções científicas'', numa superação con­ tas distorções que se observam em determinadas abordage�s - � om?
tínua na história, como já adverti no início desta conferência. Nas o'' economicismo'' que algumas vezes habita a antropologia de �spi­
ciências humanas e, particularmente, na antropologia, os paradigmas ração marxista -, mas especialmente daquilo que �u gostana de
sobrevivem, vivendo um modo de simultaneidade, onde todos valem chamar de "desenvolvimento perverso" dos paradigmas: falo de
. da antro-
.
ira. .. As_ . categonas. ,do entendimento na formação
' Cf. R. Cardoso de Olive. L5-1 46· inclu do nest e volu me como seu
tropo/og1co/8/. PP·
seus modismos dos quais devemos nos acautelar. No passado não í
muito distante surgiram o hiper-racionalismo e o estruturalismo que, po1og1·.a··. ·1nA 111uírio A11
t in The
í ge: On the work of Claude Lévi- Strauss··.
ao lado do funcionalismo exacerbado, eliminaram a própria história, ���· tºd�ertz, ''The cerebral Sava Lond on. 1975
& C. Ltd . .
o tempo, da história da disciplina; e com o culturalismo, igualmente Interp retai;011 oJCu/t11res. Hutchinson · .
· 11ai:1' & C11/t11re. the Mac-
' Cf. F. Boas, "T he Methods of Ethnology" . 1n Race · L1111�
exacerbado, quase que a disciplina foi levada a um descrédito tal que · i
Mºll Co N Y 1955, p. 285. .
ensaios da coletanea ongin . a,
se precisou discipliná-la por meio de teorias, logo fadadas à obsoles­ � br�si l�ira não foram incluí dos seis dos quinze_
'�a ��içã
ct· - icana ( 1973) quer inglesa ( 1975).
quer na sua e 1çao nort e�amer.
ciência, como o "materialismo cultural" ou a "etnociência", germi­ .
et .
cnt1qu e d e s idéologies" · in Dt'111Y · thi.rntio11
· Cf. P. Ricoeur, ·· Hermeneuttque
et
nadas no solo norte-americano: o primeiro, profundamente anti-dia­ ·
lético em nome de um ecologismo desenfreado; o segundo, embara­ une Phi/osophie du Slyll' • Librai-
!�������� ::�ti;�::��!'�e��iva do original Essai d'
rie Armand Colin. 1968.
çado nas malhas de um formalismo improdutivo. Atentos deveremos
estar, portanto, para o eventual surgimento de novos ismos, como um
certo '' interpretativismo'', já se esboçando em nosso quarto para­
digma. Tais ismos são os nossos mitos! O certo é que será somente
pela via da reflexão critica e da pesquisa séria que esse desenvolvi­
mento perverso e mitificador poderá- e deverá- ser evitado. A an­
tropologia no Brasil já é suficientemente madura para derrogar essa
ameaça e assumir esse ''espanto'' sobre si mesma, sobre seu próprio
SER, uma interrogação permanente a alimentar o exercício de nosso
oficio; oficio que não seja apenas um ritual profissional consagrado à
etemização da academia ou à legitimação da intervenção, estatal ou
particular, naquelas parcelas da humanidade que, ao se entregarem à
nossa curiosidade e às nossas impertinentes indagações, constituíram
a nossa disciplina. A elas rendemos - neste instante - a nossa grati­
dão e a elas prestamos a única homenagem que talvez desejariam: o
compromisso de nossa solidariedade e o nosso devotamento à defesa
de seus direitos. Talvez esteja aqui, neste modo político de conhe­
cermos o outro e de nos conhecermos a nós mesmos, o estilo da an­
tropologia que fazemos no Brasil.

NOTAS
'Conferência proferida na XIV Reunião Brasileira de Antropologia (Brasília, abril de
1984) e publicado no Anuário Antropo/ógico/84, pp. 191-203. O autor agradece às Pro­
fessoras Aleida Rita Ramos e Mariza Gomes Souza Peirano a oportunidade que ambas
lhe deram para debater as principais idéias aqui esboçadas, isentando-as, todavia, de
qualquer responsabilidade sobre o presente texto.
;O título original da conferência é "Was ist das - die Philosophie?", pronunciada em
agosto de 1955 em Cerizy-la-Salle, Normandia, tendo sido traduzida para o português
por Ernildo Stein sob o título "Que é isto - a Filosofia?" (Livraria Duas Cidades,
1971; inserida também no volume Martin Heidegger da série" Os Pensadores", Abril
S.A. Cultural, São Paulo, 1979).

Você também pode gostar