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UMA ESCOLA PERAMBULANTE

Nivea Andrade (Faculdade de Educação -UFF)

Certa vez, visitando o Musée de Orsay, em Paris, me deparei com um quadro de


Van Gogh. Era um entre tantos autorretratos que o pintor produziu em seus 37 anos de
vida. Embora a imagem de Van Gogh me impressione com seu olhar de angústia que
compromete o observador a se angustiar com ele, o elemento que mais me parece
arrebatador neste quadro é o movimento das grossas pinceladas curvas, talvez verdes ou
talvez azuis, que rodeiam o retrato do artista (Se este texto que faço, fosse composto
por sons, e talvez o seja em nossas memórias, eu ouviria com ele a canção de Chico
Buarque: o retrato do artista, quando moço, não é promissora, cândida pintura).
Roland Barthes nos chama atenção para pensarmos os punctus, os elementos das
imagens que, como uma ponta cortante, nos arrebatam, nos incomodam, desviam o
nosso olhar. Sobre o punctus, aquilo que punge, Roland Barthes no explica que basta
sua presença para mudar minha leitura, que se trata de uma nova foto que eu olho,
marcada a meus olhos por um valor superior (BARTHES, 2012). E eram as pinceladas
curvas ao redor da imagem de Van Gogh que me atraíam para o seu universo denso e
me angustiavam a ponto de me sentir escorregando por algumas destas pinceladas.
Em certo momento, me dei conta de que o Museu estava cheio e outras pessoas
poderiam estar desejosas de se colocarem à frente do tal quadro, quando percebi que
não era a única a se perder nas curvas de Van Gogh. Ao meu lado, mergulhado na
pintura e esquecido do seu grupo, um rapaz que acompanhava uma das tantas excursões
japonesas também contemplava e talvez se angustiava com o quadro de Van Gogh,
compartilhando comigo aquele momento, embora nem se desse conta da minha
presença.
Lembrar desta cena invariavelmente me remete a um dos episódios do filme
Sonhos (Yume/Dreams, 1990) de Akira Kurosawa, no qual, um jovem pintor japonês
(personagem de Akira Terao) visita um museu e se sente arrebatado por uma das obras
de Van Gogh, o quadro Pont de Langlois, que retrata uma antiga ponte no canal de
Arles.
Uma característica marcante deste episódio é a quase ausência de som que
somente é rompida quando o jovem pega os seus instrumentos de pintura (as telas e uma
maleta) e se dirige aos quadro de Van Gogh. Os ruídos dos passos do rapaz lentamente
dão lugar à melodia. O som e a imagem se apresentam em unicidade.
Ao som do prelúdio n.15 de Chopin e do barulho das roupas batidas na beira do
rio pelas lavadeiras do Arles, o jovem japonês, que representa o próprio Kurosawa,
impactado pela obra, é absorvido pelo quadro e passa a viajar por diferentes
espaçostempos pintados por Van Gogh.
Encontrando com o próprio Van Gogh, representado pelo cineasta Martin
Scorsese em uma rara atuação como ator, o jovem japonês caminha por um dos cenários
favoritos do pintor, os campos de trigo de Auver-sur-Oise, cidade francesa onde viveu
seus últimos anos de vida. O episódio se passa com Van Gogh se questionando porque
o rapaz não está pintando. Diz que precisa aproveitar a luz- O sol me impele- declara o
artista. – Eu me arremeto feito locomotiva em minha arte.- O jovem passa a contemplar
o sol enquanto não percebe que Van Gogh desaparece.
O jovem japonês então se arremete às pinturas do artista, passeando pelas
grossas pinceladas, buscando encontrar Van Gogh, compondo um belíssimo trabalho
fotográfico de Kurosawa que evidencia os tênues limites entre o onírico e o vivido.
Ao fim do episódio, o jovem japonês novamente encontra Van Gogh, mas este
logo desaparece em meio ao campo de trigo e a revoada de corvos. O prelúdio de
Chopin dá lugar ao som de uma locomotiva, trazendo o rapaz para a sua posição de
observador (mas não apenas) do quadro no Museu. Este não mais se trata de Pont de
Langlois, mas de Campo de trigo com corvos (Champ de blé aux Corbeaux),
possivelmente o último trabalho de Van Gogh, antes do seu suicídio, quando atirou no
peito em meio ao mesmo campo de trigo retratado.
Em um gesto de reverência e/ou de quem volta de uma viagem, o rapaz tira o
chapéu terminando o episódio, nos remetendo à admiração de Kurosawa ao pintor
holandês.
Observar imagens, reconhecendo que não somos meros observadores, nos
permite produzir viagens de pensamentos. Viagens que possibilitam entrelaçar redes de
sentimentos, conhecimentos e significações. Visitar exposições, apreciar arte, seja ela
qual for, amplia as nossas redes e aquilo que Pierre Bourdieu chamou de capital
cultural, embora eu prefira a expressão redes de conhecimentos e significações na
medida em que as redes que desenvolvemos como manifestações culturais são
historicamente anteriores às relações capitalistas.
A noção de capital cultural desenvolvida por Pierre Bourdieu (1998),
compreendida como o conjunto dos elementos materiais e imateriais decorrentes dos
investimentos pessoais e das heranças culturais familiares no processo de formação de
uma pessoa chama atenção para os processos educativos além da relação entre os
investimentos monetários e o desempenho escolar. Bourdieu propunha pensar em
capital cultural como aquisições que podem ser incorporadas (conhecimentos
assimilados/apropriados desde a infância em processos de socialização), objetivadas em
suportes materiais como livros, pinturas entre outros e/ou institucionalizadas, como
diplomas e títulos que são produzidos de acordo com uma decisão coletiva do que é ou
do que não é qualificado.
Sobre as aquisições incorporadas, Bourdieu define o capital cultural como um
ter que se torno ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da
‘pessoa’, um habitus (1998). Penso que a noção de redes vem acrescentar neste
pensamento a compreensão de que os conhecimentos, as heranças culturais e toda sorte
de elementos materiais e imateriais que podem ser reunidos por uma pessoa em seus
processos de aprendizagemensino não são apropriações individualizadas pelas quais as
pessoas adquirem um determinado conhecimento e o guardam consigo mantendo todas
as suas características iniciais.
Acreditando que não existe um conhecimento externo à pessoa que pode ou não
ser adquirido, apropriado e assimilado por esta pessoa de forma isolada e singular,
proponho pensarmos que estes elementos materiais e imateriais são tecidos
permanentemente entre as memórias de experiências anteriores e as experimentações
atuais.
O próprio Kurosawa nos explica: Minhas próprias experiências e as diversas
coisas que li permanecem em minha lembrança e tornam-se a base sobre a qual crio
algo novo.Eu não poderia partir do nada ( Kurosawa, 1990. p. 277). Michel de Certeau,
em Invenções do Cotidiano, também nos ajuda a compreender a memória como
matéria-prima para as nossas práticas. Em uma determinada ocasião, a memória emerge,
é criada a partir das circunstâncias. Dela, nascem as táticas e as transformações. O autor
explicou que
a memória mediatiza transformações espaciais. Segundo o modo do
‘momento oportuno’ (kairós), ela produz uma ruptura instauradora.
Sua estranheza torna possível uma transgressão da lei do lugar. Saindo
de seus insondáveis e móveis segredos, um ‘golpe’ modifica a ordem
local. (CERTEAU, 1994, p. 161).
Dialogando com o pensamento de Michel de Certeau, a noção de conhecimentos
em redes nos mostra que os processos de aprender e ensinar fazem parte de um mesmo
movimento e só existem na relação entre as pessoas, sempre em mão dupla, sempre na
relação entre os processos culturais. Os conhecimentos são, portanto, tecidos em várias
mãos. Por isso, falamos que aprenderensinamos em diferentes espaçotempos, portanto,
em redes com fluxos permanentes e sem lugares de origem e de destino de um
conhecimento seja ele materializado em um livro, ou pintura, seja ele configurado como
uma prática ou um modo de pensar.
Para Nilda Alves, a noção de rede,
substitui a ideia de que o conhecimento se ‘constrói’ daquela
maneira ordenada, linear e hierarquizada, por um único e
obrigatório caminho, pela ideia de que, ao contrário, não há ordem
nessa criação – ou que ela só pode ser percebida e representada
pelo pensamento a posteriori da própria criação.

Neste sentido, aceito a proposta de Nèstor Canclini, no livro Diferentes,


Desiguais e Desconectados, para pensarmos nestes capitais culturais ou nestes
conhecimentos em redes em relações às escolas brasileiras. Para este autor, é preciso
educar para a interculturalidade, um processo pelo qual as culturas de docentes,
discentes e diferentes grupos possam se entrelaçar.
Neste sentido, acredito que não se trata de simplesmente acumular
conhecimentos para compreendermos uma obra de arte como o quadro de Van Gogh no
filme de Kurosawa, mas de ampliar as nossas possibilidades de estabelecer vínculos,
relações, conhecimentos, conferir significados diversos para as manifestações culturais
que vivenciamos. Neste sentido, é preciso compreender o que é ‘cultural’ como um
processo permanente de produção de conhecimentos em redes.
Importa também ressaltar que esta produção é sempre práticateóricaprática em
um mesmo tempo, diria inclusive, em um mesmo espaçotempo. Ao contrário de uma
cultura compreendida como um substantivo com limites previamente definidos, prefiro
compreender como propõe Arjun Apadurrai, o cultural como processo permanente
(1996).1

1
“Se cultura como substantivo parece suscitar a associação com uma qualquer substância de um modo
que esconde mais do que revela, cultural, o adjetivo, transporta-nos para um reino de diferenças,
contrastes e comparações bem mais útil. Este sentido adjetivo de cultura, que se forma no cerne de uma
linguística saussuriana sensível ao contexto e focada nos contrastes, pareceme ser uma das virtudes do
Mas o que isso teria a ver com o título deste livro: Sonhos de Escolas? Por que
escolho este episódio de Kurosawa para pensar alguns projetos de escola?
Nos oito episódios que compõem o filme Sonhos, Kurosawa trata da temática da
morte através de uma composição de luz e sombras que entrelaçam diversos elementos
oníricos representativos de desejos, pulsões, medos, opressões entre outros. Todos
perpassados pela relação entre o homem e a natureza.
Se nos demais episódios (O casamento da Raposa, Jardim dos pessegueiros e
outros) o cineasta expõe a temática da morte mais diretamente com variações que vão
do medo de uma explosão nuclear à comemoração da morte por velhice, no episódio
Corvos, Kurosawa toca na temática da morte através da personagem de Van Gogh que
ao se lançar feito locomotiva em sua arte, chega ao ponto da automutilação, ao cortar a
própria orelha e, posteriormente cometer suicídio nos campos de trigo de Auver-sur-
Oise, em 18902, mesmo ano da pintura do quadro Campo de trigos com corvos.
No episódio de Sonhos, este desejo de se lançar para além dos limites da vida
convive com a ideia de sonho como desejo e projeto de vida, já que Kurosawa era pintor
e em sua juventude chegou inclusive a integrar o Centro de Pesquisa de Arte Proletária.
O sonho de Corvos, portanto, pode ser compreendido como um projeto de vida do
próprio cineasta que integrou o seu projeto pessoal como artista plástico ao ofício do
cineasta.
Fiz este movimento de buscar compreender alguns significados de sonhos para
este episódio do filme de Kurosawa no intuito de chamar atenção para o fato de que os
desejos, os medos, a morte e a vida, a luz e a sombra convivem em nossos sonhos e não
se configuram como oposições.
Então, vejamos nossos sonhos de escolas. Mas, não poderei apresentar os meus
sonhos de escola sem narrar mais uma pequena história, pois, acredito com Certeau
(1994), que as narrativas são as maneiras de pensarmos as práticas.
Eu tinha 5 anos e estava animada com o meu primeiro dia de escola. Via sempre
o ônibus buscando e levando a minha irmã mais velha. Estava ansiosa para fazer o
mesmo. Para a surpresa e uma pontinha escondida de decepção de minha mãe, não

estruturalismo que tendemos a esquecer na nossa pressa de o atacar pelas suas conotações a-históricas,
formais, binárias, intelectualistas e textualistas. (...) Não vale a pena encarar a cultura como substância,
é melhor encará-la como uma dimensão dos fenômentos, uma dimensão que revela da diferença sisuda e
concretizada. Salientar este dimensionamento da cultura em vez da sua substancialidade permite-nos
pensar a cultura não tanto como propriedade de indivíduos e grupos, mas como um instrumento heurístico
ao nosso alcance que falamos de diferença (Appadurai, 1996. p.25/26).”
2
Van Gogh morreu nos braços do irmão Theo, dois dias após o ter atirado em seu próprio peito.
chorei para ficar em casa e até dei um tchau para a minha mãe que queria ficar comigo
no primeiro dia de aula. Subi para o ônibus decidida a me aventurar por esta tal de
escola. E o ônibus pôs-se a andar. Várias crianças fazendo muito barulho, comemorando
quando o ônibus parava na casa de seus amigos. Passados uns 10 minutos, o ônibus
começou a subir em uma pequena ladeira, e reduziu a velocidade até parar em frente ao
grande muro que aos meus olhos, crescia no final da rua e terminava em um imponente
portão de ferro. Lembro muito bem da decepção que se apoderou de mim ao saber que a
tal escola que eu estava gostando tanto, já estava por acabar. Tive que sair do ônibus e
no dia seguinte ninguém conseguia me convencer a voltar.
Este era o meu sonho de escola: vagar, passear, viajar pela cidade ou pelas
cidades, visitar lugares, museus, exposições, laboratórios. O meu sonho era uma
escola/ônibus que passeasse pela cidade, uma escola flanêur, para usar o termo tão caro
a Baudelaire. E no nosso bom português, uma escola caminhante, perambulante que
tecesse redes. Uma escola caminhante, para que como nos propõe Larossa (1998),
levemos o nosso olhar para passear. Nilda Alves (2008) iria além, dizendo que
precisamos levar todos os sentidos para passear já que aprendemosensinamos com todos
os sentidos.
Uma escola perambulante não tem percursos pré-estabelecidos, pois, ela
acompanha as demandas e curiosidades do viajante. Por outro lado, esta escola
perambulante não se movimenta apenas pelas redes do viajante já que ela é
permanentemente móvel e lhe apresenta novos caminhos a todo instante. Há sempre
novas curvas e outras pinceladas que indicam outros percursos. Quando se encontra um
caminho, esta escola perambulante busca evidenciar que há outros caminhos possíveis,
que há sempre outros percursos, outros conhecimentos e sentidos possíveis.
Algumas curvas nos trazem medo: medo da morte da autoridade do professor,
medo de conhecimentos novos, medo de perder o controle do conhecimento entre
outros. Aqui também o nosso sonho de escola é acompanhado dos seus temores e suas
angústias, mas todas as curvas acompanham as suas escolhas que nos permitem voltar
atrás, pois, se na escola perambulante tecemos conhecimentos em redes, não há um
início ou um fim. Há apenas percursos.
Uma escola perambulante tece conhecimentos e significações com os pés,
produzindo narrativas entorno dos espaçostempos visitados. Esta escola visita diferentes
lugares de memória, reconhecendo como nos alerta Pierre Nora que os lugares de
memória são criados a partir do sentimento que não há memória espontânea. Por tal
motivo, compreendendo os processos políticos de produção deste lugares, nossa escola
perambulante visitará, para além dos lugares de memória dedicados a uma elite
econômica e política, os lugares de memória de diferentes grupos sociais de múltiplos
espaçostempos. Uma escola que visitasse os terreiros de candomblé, que ouvisse as
histórias dos moradores dos cortiços, que vagasse pelas ruas das cidades rompendo as
dicotomias entre o que supostamente seria uma cultura erudita e outra popular.
Com esta proposta, a escola perambulante também frequenta os museus, já que
Lúcia Lippi (2008) nos lembra que as instituições mais antigas reconhecidas como
patrimônio cultural são os museus. Frequentar, ocupar culturalmente, compreender os
museus em suas trajetórias históricas e políticas são passos importantes para a escola
perambulante.
Diderot e D´Alembert, na Enciclopédia, contam que museu era um lugar na
cidade de Alexandria onde se reunia homens sábios e onde eram reverenciadas as nove
musas, filhas de Zeus e mnemosine (a memória). A origem dos museus como
compreendemos hoje, possivelmente está atrelada aos gabinetes de curiosidade que
faziam sucesso na Europa antes do Renascimento. Estes gabinetes que se
transformaram, por volta do século XV, em coleções de curiosidades, reuniam objetos
antigos ou considerados ‘bizarros’ pertencentes a povos diferentes do planeta. Com seu
crescimento e complexificação, estas coleções de curiosidades passaram a conferir
prestígio e poder aos seus colecionadores, fazendo surgir a profissão de especialista em
antiguidades, o antiquário. No século XVIII, surgiram os primeiros museus como
compreendemos hoje. Dentre eles, o museu britânico.
O Museu do Louvre, na França, porém, tornou-se um modelo para os museus do
século XIX e XX, na medida em que foi considerado o primeiro museu produzido com
o objetivo de ensinar o “cidadão” a valorizar o patrimônio dos povos do planeta. A
cidadania, compreendida dentro dos ideais iluministas da revolução francesa, passa a ser
um dos propósitos dos museus ocidentais até a atualidade.
Importa ressaltar, porém, as mudanças ocorridas no século XX e início do século
XXI no que se refere aos desenvolvimentos das ciências sociais, gerando consequências
para os projetos educativos dos museus e para toda a educação patrimonial.
Com o fim da busca por uma análise social que se pretenda total e se reconheça
como uma única verdade, os museus ocidentais, em sua maioria, acompanham as
mudanças sociológicas, e passam a valorizar a arte, a história e a cultura das pessoas
comuns. Surgem, no Brasil, o Museu da Pessoa, o Museu da Língua Portuguesa entre
outros. Ao invés de visitas que seguem uma linearidade cronológica, os museus passam
a propor visitas tematizadas que buscam problematizar questões ao invés de projeto
impossível de conhecimento total sobre as sociedades.
Neste sentido, autores como Júnia Pereira e Lana Siman (2009) ressaltam a
importância de pensar o museu como um lugar de trânsito, onde a visita pode ser feita
aos espasmos e não mais como busca de uma historia/visita total, lugar de várias
temporalidades e não mais a mera sequencia cronológica. A finalidade é o percurso.
Neste ponto, os estudantes têm muito a nos ensinar. Observando crianças, jovens
e adultos em visitas em museus e outros lugares de memória, poderemos perceber que,
embora professores e guias muitas vezes apresentem, em suas falas, o desejo de oferecer
o maior número possível de informações sobre objetos, edificações e outros tipos de
patrimônios científicos e artísticos, materiais ou imateriais, os estudantes selecionam os
elementos que lhe são importantes e desenvolvem suas táticas de aprendizado. Alguns
anotam datas e legendas dos objetos, monumentos e edificações, outros preferem tirar
fotos, outros tentam tocar os objetos, e há aqueles que exercitam a prática de desviar o
olhar, procurando uma rachadura na parede do museu, um pombo que se aproxima de
uma estátua ou a sua própria imagem refletida em um espelho.
A escola perambulante é tecida por todos estes percursos de aprenderensinar,
pois reconhece a sua incapacidade de controlar os processos de conhecimento de cada
um. Sendo perambulante, esta escola permite aos estudantes se sentirem pertencentes a
um lugar até então distante de suas redes. Ao caminharem pela cidade, conhecendo ruas,
histórias e lugares, os estudantes tecem novos significações e conhecimentos com seus
passos, se inscrevendo na permanente gestação do tecido urbano.
Para Certeau:
caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente
e à procura de um próprio. A errância, multiplicada e reunida pela
cidade, faz dela uma imensa experiência social da privação de lugar -
uma experiência, é verdade, esfarelada em deportações inumeráveis e
ínfimas (deslocamentos e caminhadas), compensada pelas relações e
os cruzamentos desses êxodos que se entrelaçam, criando um tecido
urbano, e posta sob o signo do que deveria ser, enfim, o lugar, mas é
apenas um nome, a Cidade. (CERTEAU, 2004, p. 183).
Fisicamente, caminhar é se desprender de um ponto em direção a outro.
Caminhar é sempre a prática de procurar um lugar, se desprendendo de um ponto e
buscando algo novo. Ao caminhar pela cidade da qual não se sente pertencente, o
caminhante tece as suas próprias redes, na tentativa de se apropriar do lugar, criando
novos conhecimentos e significações para si, sobre si, para outros, sobre os outros.
Nas saídas pela cidade, nos corredores dos museus, os estudantes caminhantes,
acompanhados por seus professores, tecem relações com o lugar, e estabelecem
apropriações diferenciadas, mas sempre ampliando as suas redes de conhecimentos e
significações. O que até então seria reconhecido lugar, por ser propriedade do outro,
passa a ser tecido como um espaçotempo, por deixar de ser apenas um nome chamado
cidade, para fazer parte das redes educativas onde se aprendeensina.

Referências

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DIDEROT, Denis.; D´ALEMBERT, Jean Batiste Le Rond. Encyclopédie de Diderot et


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Lippi, Lúcia. Cultura é patrimônio. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.


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