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ANDRADE, Nivea - Uma Escola Perambulante PDF
ANDRADE, Nivea - Uma Escola Perambulante PDF
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“Se cultura como substantivo parece suscitar a associação com uma qualquer substância de um modo
que esconde mais do que revela, cultural, o adjetivo, transporta-nos para um reino de diferenças,
contrastes e comparações bem mais útil. Este sentido adjetivo de cultura, que se forma no cerne de uma
linguística saussuriana sensível ao contexto e focada nos contrastes, pareceme ser uma das virtudes do
Mas o que isso teria a ver com o título deste livro: Sonhos de Escolas? Por que
escolho este episódio de Kurosawa para pensar alguns projetos de escola?
Nos oito episódios que compõem o filme Sonhos, Kurosawa trata da temática da
morte através de uma composição de luz e sombras que entrelaçam diversos elementos
oníricos representativos de desejos, pulsões, medos, opressões entre outros. Todos
perpassados pela relação entre o homem e a natureza.
Se nos demais episódios (O casamento da Raposa, Jardim dos pessegueiros e
outros) o cineasta expõe a temática da morte mais diretamente com variações que vão
do medo de uma explosão nuclear à comemoração da morte por velhice, no episódio
Corvos, Kurosawa toca na temática da morte através da personagem de Van Gogh que
ao se lançar feito locomotiva em sua arte, chega ao ponto da automutilação, ao cortar a
própria orelha e, posteriormente cometer suicídio nos campos de trigo de Auver-sur-
Oise, em 18902, mesmo ano da pintura do quadro Campo de trigos com corvos.
No episódio de Sonhos, este desejo de se lançar para além dos limites da vida
convive com a ideia de sonho como desejo e projeto de vida, já que Kurosawa era pintor
e em sua juventude chegou inclusive a integrar o Centro de Pesquisa de Arte Proletária.
O sonho de Corvos, portanto, pode ser compreendido como um projeto de vida do
próprio cineasta que integrou o seu projeto pessoal como artista plástico ao ofício do
cineasta.
Fiz este movimento de buscar compreender alguns significados de sonhos para
este episódio do filme de Kurosawa no intuito de chamar atenção para o fato de que os
desejos, os medos, a morte e a vida, a luz e a sombra convivem em nossos sonhos e não
se configuram como oposições.
Então, vejamos nossos sonhos de escolas. Mas, não poderei apresentar os meus
sonhos de escola sem narrar mais uma pequena história, pois, acredito com Certeau
(1994), que as narrativas são as maneiras de pensarmos as práticas.
Eu tinha 5 anos e estava animada com o meu primeiro dia de escola. Via sempre
o ônibus buscando e levando a minha irmã mais velha. Estava ansiosa para fazer o
mesmo. Para a surpresa e uma pontinha escondida de decepção de minha mãe, não
estruturalismo que tendemos a esquecer na nossa pressa de o atacar pelas suas conotações a-históricas,
formais, binárias, intelectualistas e textualistas. (...) Não vale a pena encarar a cultura como substância,
é melhor encará-la como uma dimensão dos fenômentos, uma dimensão que revela da diferença sisuda e
concretizada. Salientar este dimensionamento da cultura em vez da sua substancialidade permite-nos
pensar a cultura não tanto como propriedade de indivíduos e grupos, mas como um instrumento heurístico
ao nosso alcance que falamos de diferença (Appadurai, 1996. p.25/26).”
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Van Gogh morreu nos braços do irmão Theo, dois dias após o ter atirado em seu próprio peito.
chorei para ficar em casa e até dei um tchau para a minha mãe que queria ficar comigo
no primeiro dia de aula. Subi para o ônibus decidida a me aventurar por esta tal de
escola. E o ônibus pôs-se a andar. Várias crianças fazendo muito barulho, comemorando
quando o ônibus parava na casa de seus amigos. Passados uns 10 minutos, o ônibus
começou a subir em uma pequena ladeira, e reduziu a velocidade até parar em frente ao
grande muro que aos meus olhos, crescia no final da rua e terminava em um imponente
portão de ferro. Lembro muito bem da decepção que se apoderou de mim ao saber que a
tal escola que eu estava gostando tanto, já estava por acabar. Tive que sair do ônibus e
no dia seguinte ninguém conseguia me convencer a voltar.
Este era o meu sonho de escola: vagar, passear, viajar pela cidade ou pelas
cidades, visitar lugares, museus, exposições, laboratórios. O meu sonho era uma
escola/ônibus que passeasse pela cidade, uma escola flanêur, para usar o termo tão caro
a Baudelaire. E no nosso bom português, uma escola caminhante, perambulante que
tecesse redes. Uma escola caminhante, para que como nos propõe Larossa (1998),
levemos o nosso olhar para passear. Nilda Alves (2008) iria além, dizendo que
precisamos levar todos os sentidos para passear já que aprendemosensinamos com todos
os sentidos.
Uma escola perambulante não tem percursos pré-estabelecidos, pois, ela
acompanha as demandas e curiosidades do viajante. Por outro lado, esta escola
perambulante não se movimenta apenas pelas redes do viajante já que ela é
permanentemente móvel e lhe apresenta novos caminhos a todo instante. Há sempre
novas curvas e outras pinceladas que indicam outros percursos. Quando se encontra um
caminho, esta escola perambulante busca evidenciar que há outros caminhos possíveis,
que há sempre outros percursos, outros conhecimentos e sentidos possíveis.
Algumas curvas nos trazem medo: medo da morte da autoridade do professor,
medo de conhecimentos novos, medo de perder o controle do conhecimento entre
outros. Aqui também o nosso sonho de escola é acompanhado dos seus temores e suas
angústias, mas todas as curvas acompanham as suas escolhas que nos permitem voltar
atrás, pois, se na escola perambulante tecemos conhecimentos em redes, não há um
início ou um fim. Há apenas percursos.
Uma escola perambulante tece conhecimentos e significações com os pés,
produzindo narrativas entorno dos espaçostempos visitados. Esta escola visita diferentes
lugares de memória, reconhecendo como nos alerta Pierre Nora que os lugares de
memória são criados a partir do sentimento que não há memória espontânea. Por tal
motivo, compreendendo os processos políticos de produção deste lugares, nossa escola
perambulante visitará, para além dos lugares de memória dedicados a uma elite
econômica e política, os lugares de memória de diferentes grupos sociais de múltiplos
espaçostempos. Uma escola que visitasse os terreiros de candomblé, que ouvisse as
histórias dos moradores dos cortiços, que vagasse pelas ruas das cidades rompendo as
dicotomias entre o que supostamente seria uma cultura erudita e outra popular.
Com esta proposta, a escola perambulante também frequenta os museus, já que
Lúcia Lippi (2008) nos lembra que as instituições mais antigas reconhecidas como
patrimônio cultural são os museus. Frequentar, ocupar culturalmente, compreender os
museus em suas trajetórias históricas e políticas são passos importantes para a escola
perambulante.
Diderot e D´Alembert, na Enciclopédia, contam que museu era um lugar na
cidade de Alexandria onde se reunia homens sábios e onde eram reverenciadas as nove
musas, filhas de Zeus e mnemosine (a memória). A origem dos museus como
compreendemos hoje, possivelmente está atrelada aos gabinetes de curiosidade que
faziam sucesso na Europa antes do Renascimento. Estes gabinetes que se
transformaram, por volta do século XV, em coleções de curiosidades, reuniam objetos
antigos ou considerados ‘bizarros’ pertencentes a povos diferentes do planeta. Com seu
crescimento e complexificação, estas coleções de curiosidades passaram a conferir
prestígio e poder aos seus colecionadores, fazendo surgir a profissão de especialista em
antiguidades, o antiquário. No século XVIII, surgiram os primeiros museus como
compreendemos hoje. Dentre eles, o museu britânico.
O Museu do Louvre, na França, porém, tornou-se um modelo para os museus do
século XIX e XX, na medida em que foi considerado o primeiro museu produzido com
o objetivo de ensinar o “cidadão” a valorizar o patrimônio dos povos do planeta. A
cidadania, compreendida dentro dos ideais iluministas da revolução francesa, passa a ser
um dos propósitos dos museus ocidentais até a atualidade.
Importa ressaltar, porém, as mudanças ocorridas no século XX e início do século
XXI no que se refere aos desenvolvimentos das ciências sociais, gerando consequências
para os projetos educativos dos museus e para toda a educação patrimonial.
Com o fim da busca por uma análise social que se pretenda total e se reconheça
como uma única verdade, os museus ocidentais, em sua maioria, acompanham as
mudanças sociológicas, e passam a valorizar a arte, a história e a cultura das pessoas
comuns. Surgem, no Brasil, o Museu da Pessoa, o Museu da Língua Portuguesa entre
outros. Ao invés de visitas que seguem uma linearidade cronológica, os museus passam
a propor visitas tematizadas que buscam problematizar questões ao invés de projeto
impossível de conhecimento total sobre as sociedades.
Neste sentido, autores como Júnia Pereira e Lana Siman (2009) ressaltam a
importância de pensar o museu como um lugar de trânsito, onde a visita pode ser feita
aos espasmos e não mais como busca de uma historia/visita total, lugar de várias
temporalidades e não mais a mera sequencia cronológica. A finalidade é o percurso.
Neste ponto, os estudantes têm muito a nos ensinar. Observando crianças, jovens
e adultos em visitas em museus e outros lugares de memória, poderemos perceber que,
embora professores e guias muitas vezes apresentem, em suas falas, o desejo de oferecer
o maior número possível de informações sobre objetos, edificações e outros tipos de
patrimônios científicos e artísticos, materiais ou imateriais, os estudantes selecionam os
elementos que lhe são importantes e desenvolvem suas táticas de aprendizado. Alguns
anotam datas e legendas dos objetos, monumentos e edificações, outros preferem tirar
fotos, outros tentam tocar os objetos, e há aqueles que exercitam a prática de desviar o
olhar, procurando uma rachadura na parede do museu, um pombo que se aproxima de
uma estátua ou a sua própria imagem refletida em um espelho.
A escola perambulante é tecida por todos estes percursos de aprenderensinar,
pois reconhece a sua incapacidade de controlar os processos de conhecimento de cada
um. Sendo perambulante, esta escola permite aos estudantes se sentirem pertencentes a
um lugar até então distante de suas redes. Ao caminharem pela cidade, conhecendo ruas,
histórias e lugares, os estudantes tecem novos significações e conhecimentos com seus
passos, se inscrevendo na permanente gestação do tecido urbano.
Para Certeau:
caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente
e à procura de um próprio. A errância, multiplicada e reunida pela
cidade, faz dela uma imensa experiência social da privação de lugar -
uma experiência, é verdade, esfarelada em deportações inumeráveis e
ínfimas (deslocamentos e caminhadas), compensada pelas relações e
os cruzamentos desses êxodos que se entrelaçam, criando um tecido
urbano, e posta sob o signo do que deveria ser, enfim, o lugar, mas é
apenas um nome, a Cidade. (CERTEAU, 2004, p. 183).
Fisicamente, caminhar é se desprender de um ponto em direção a outro.
Caminhar é sempre a prática de procurar um lugar, se desprendendo de um ponto e
buscando algo novo. Ao caminhar pela cidade da qual não se sente pertencente, o
caminhante tece as suas próprias redes, na tentativa de se apropriar do lugar, criando
novos conhecimentos e significações para si, sobre si, para outros, sobre os outros.
Nas saídas pela cidade, nos corredores dos museus, os estudantes caminhantes,
acompanhados por seus professores, tecem relações com o lugar, e estabelecem
apropriações diferenciadas, mas sempre ampliando as suas redes de conhecimentos e
significações. O que até então seria reconhecido lugar, por ser propriedade do outro,
passa a ser tecido como um espaçotempo, por deixar de ser apenas um nome chamado
cidade, para fazer parte das redes educativas onde se aprendeensina.
Referências
ALVES, Nilda. Tecer conhecimento em rede. In: ALVES, Nilda; GARCIA, Regina
Leite (orgs.). O Sentido da Escola. Petrópolis: DP et Alii, 2008a.