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Nelson Rodrigues

Cambalhotas
do Otto
Como bebem as esquerdas! Era uma sexta-
feira e eu fui ao Antonio’s. Hoje, o verdadeiro sá-
bado é a sexta-feira. E, ainda outro dia, dizia-me
um pau-d’água grã-fino: — “Não há mais sábados,
nem há mais domingos”. Depois de mutilar a se-
mana, concluiu, com o olho parado do bêbedo: —
“Sexta-feira é o dia em que a virtude prevarica”.
“A virtude prevarica” já era o efeito literário,
a frase elaborada ainda na lucidez. Seja como for,
a esquerda escolhe a sexta-feira para modular seus
palavrões e babar seus pileques. Não sei se em
toda parte e em todos os idiomas acontece o
mesmo. No Brasil ou, mais precisamente, no Le-
blon, as esquerdas são pornográficas com a maior
efusão e abundância.
Mas por que escolhi o Antonio’s e não, por
exemplo, o Nino ou o Bateau, ou outro qualquer?
Porque só o Antonio’s tem a função e o destino
do boteco ideológico. Repito: — sem o Antonio’s,

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o esquerdista não estará completa e definitiva-
mente equipado. É lá que ele vai ensaiar o seu
gesto, exercitar sua ênfase, empostar sua voz e es-
culpir suas caras.
Justiça se lhes faça: — são as esquerdas mais
plásticas do mundo. Fazem caras, e gesticulam, e
saltam, e sapateiam, e atropelam, e cavalgam as ca-
deiras, e trepam nas mesas. Eis o que eu queria
dizer: — vale a pena atravessar três desertos para
vê-las. Além disso, tinha eu um outro motivo, de
natureza sentimental, para ir ao Antonio’s. Era a
esperança de lá encontrar o meu amigo Otto Lara
Resende. O Otto estava no Rio, ou por outra: —
esteve, porque já voltou para Lisboa.
E o meu amigo, de um lado, e as esquerdas,
de outro, fizeram da última sexta-feira uma noite
inesquecível. Aqui, abro um parêntese para falar
do Otto. Ele apareceu tarde da noite e logo senti
que vivia um grande momento. Sem se atrelar às
esquerdas, está à vontade no Antonio’s como um

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peixinho no seu aquário natal. Mesmo porque os
donos, os empregados e os fregueses o tratam na
palma da mão. No Brasil, ninguém é mais doutor.
O único doutor que ainda se conhece, na vida real,
é o dr. Britto, do Jornal do Brasil. Pois bem: o Otto
é doutor para todos os garçons do Antonio’s.
E há pior: — lá, ele jamais consegue pagar
uma única e mísera despesa. A casa não aceita um
tostão do meu amigo. Mas Otto chegou e alguém,
jamais identificado, enfiou-lhe na mão uma garrafa
de champanha. Não pensou duas vezes. Fez saltar
a rolha e bebeu pelo gargalo. Eis a cena que arran-
cou aplausos até dos mais apáticos: — essa do
Otto beber champanha pelo gargalo.
Nem se pense que parou aí. Contou anedo-
tas. Fez piruetas como o acrobata que testa a pró-
pria elasticidade antes da cambalhota suprema.
Imaginem que, certa vez, confidenciara a um
amigo: — “Eu sou a Idade Média”. A partir de en-
tão, os íntimos passaram a chamá-lo assim. Sábado,

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o Hélio Pellegrino batia o telefone para mim e per-
guntava: — “Viste a Idade Média?”. E eu mesmo,
falando com Waldomiro Autran Dourado, dizia-
lhe: — “Vou-me encontrar com a Idade Média”. E,
no entanto, o Otto de sexta-feira, no Antonio’s,
era muito mais a belle époque do que a Idade Mé-
dia. Ao tomar champanha pelo gargalo, era a belle
époque que irrompia, de repente, ali no Leblon.
Uma euforia datada do princípio do século e, re-
pito, anterior à primeira batalha do Marne. Só fal-
tou beber champanha no sapato de uma cocote.
E, por toda uma noite, o Otto foi a ex-Idade
Média. Neste momento fecho o parêntese sobre
o amigo e volto às esquerdas. Até aqui tenho plu-
ralizado; e, daqui por diante, vou dar-lhes o nome
singular, e mais autêntico, de “a festiva”. Dizia eu,
no início do capítulo, que “a festiva” bebe. Esqueci-
me, porém, de acrescentar a pergunta: e por que
bebe? Sim, por que bebem as esquerdas?
Domingo, fui passear com o Hélio Pellegrino

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e acabamos no parque Laje. A luz dourava a ara-
gem muito leve. E, súbito, não sei se eu, ou Hélio,
disse ao outro: — “O parque Laje é o anti-Anto-
nio’s!”. Em seguida levamos tal descoberta às suas
últimas conseqüências. Aquele domingo, de um
azul jamais concebido, também era o anti-Anto-
nio’s. E a cidade, e as esquinas, a gente, e o próprio
Leblon, tudo era o anti-Antonio’s.
Não exagero. Dizia-me o Pellegrino: — “O
Rio é a cidade mais alegre do mundo”. Ele falava
de uma alegria absurda e total. Segundo o Otto,
até os nossos esgotos, os nossos ralos, são um fes-
tival de ratazanas. E o Antonio’s é a antifesta. Suas
mesas, suas toalhas, seus bifes, estão embebidos
de tristeza. Cabe então a pergunta: — por quê?
Tentarei explicar. Não é uma tristeza própria,
mas adquirida. Repito: adquirida das nossas es-
querdas. Estas vão para lá exalar suas cavas de-
pressões. Claro que há três ou quatro melancolias

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auxiliares de grã-finos errantes na madrugada. To-
davia, a tristeza fundamental se evola da “festiva”.
E, por isso, porque são tristes, as esquerdas
bebem. Pouco a pouco, o álcool vai desatando não
sei que euforias misteriosas e frenéticas. Em seu
estado normal, e enquanto sóbria, a “festiva” não
é festiva. Tem que, primeiro, encharcar-se. De-
pois, então, cada um dos seus membros torna-se
um ser maravilhosamente plástico, elástico, lumi-
noso. É capaz de virar cambalhotas inexcedíveis; e
de equilibrar laranjas no focinho; e de ventar fogo
por todas as narinas.
Alguém poderia perguntar: — e por que “a
festiva” é triste?
Vejamos. O homem comum fica triste
quando se lembra que morre. E a “festiva” bebe
porque há de morrer um dia? Não. Nenhum pe-
rigo a ameaça. Há o Vietnã. E as esquerdas quando
falam da guerra longínqua têm rompantes ferozes.

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Mas o Vietnã está lá e nós aqui. Há uma sábia dis-
tância entre os heróis do Leblon e o perigo.
E, assim, sem arredar pé do Antonio’s, a “fes-
tiva” chegará aos setenta, oitenta e, eu diria
mesmo, noventa anos. Saí do Antonio’s, no fim da
madrugada. Lá ficaram as esquerdas, babando o
seu pileque e arrotando os últimos palavrões.

[O GLOBO, 30/1/1968]

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