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O princípio da capacidade contributiva

JOSÉ RICARDO MEIRELLES

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Capacidade contributiva –


origem e evolução. 3. Conceito. 4. Capacidade
contributiva no direito comparado e brasileiro. 4.1.
A expressão sempre que possível. 4.2. Capacidade
contributiva e impostos indiretos. 4.3. Capacidade
contributiva e isenções. 5. Conclusão.

1. Introdução
Dentro do estudo dos princípios da tribu-
tação podemos destacar o princípio da
capacidade contributiva como aquele que mais
se aproxima do conceito de justiça tributária
entendida sob o ponto de vista econômico-
jurídico.
A distribuição da carga tributária de acordo
com a capacidade contributiva dos indivíduos
nos traz a idéia de que os tributos, tendo como
escopo final o bem comum, devem amoldar-se
às situações individuais, de modo a propiciar
uma posição isonômica dos contribuintes no
que se refere ao seu sacrifício individual em
prol do interesse coletivo. A máxima de Rui
Barbosa no que se refere à isonomia, qual seja,
tratar desigualmente os desiguais à medida que
se desigualam acaba por se concretizar neste
princípio quando efetivamente posto em
prática.
Dessa forma, neste estudo traremos à baila
algumas considerações que reputamos rele-
vantes sobre o princípio da capacidade
contributiva, tecendo, ao final, algumas
considerações sobre sua estrutura tal como se
encontra em nossa Carta Magna.
José Ricardo Meirelles é Procurador da
República em São Paulo, Mestrando em Relações 2. Capacidade contributiva –
Internacionais pela Universidade de São Paulo e origem e evolução
Professor de Direito Internacional Público e Processo
Penal em curso preparatório para concursos. A expressão capacidade contributiva é tão
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antiga quanto a ciência das finanças, tendo com sário à maioria, senão à totalidade, dos orde-
esta uma relação direta e imediata. namentos jurídicos estatais.
Os ideais de justiça distributiva formulados Na realidade, a expressão capacidade
por filósofos gregos já continham em seus contributiva em sua origem foi genericamente
fundamentos as bases do princípio de que os considerada como sinônimo de riqueza ou de
indivíduos deveriam concorrer para as neces- patrimônio, indicando as forças econômicas
sidades da coletividade na medida de suas individuais que propiciavam o pagamento
forças econômicas. Existem registros, em diferenciado dos tributos. A carga tributária
Atenas, de uma contribuição para o custeio da seria então proporcional à riqueza ou ao
marinha nacional, devida por todo cidadão cuja patrimônio acumulado.
fortuna atingia dez “talentos”; escrevendo-se Sobre esta relação, Emilio Giardina4 coloca:
num registro a importância com que cada “Il canone della contribuzione in
cidadão era obrigado a contribuir, observando- ragione delle forze economiche espri-
se as faculdades de cada um1. meva l’esigenza comunemente avvertita
Na Idade Média Santo Tomás de Aquino di una trasformazione in senso reale degli
aduzia que cada indivíduo deveria pagar os ordinamenti tributari allora vigenti. Le
tributos secundum facultatem ou secundum franchigie e i privilegi che caratte-
equalitem proportionis, acentuando a existência rizavano le imposte personali del tempo
de impostos justos e impostos injustos, costituivano una patente violazione del
conforme a obediência a esse critério. Outros- principio della generalità dei tributi e
sim, a locução capacidade contributiva foi della giustizia distributiva. Concepen-
usada em diversas leis tributárias, tais como dosi la capacità contributiva in senso
na Inglaterra, na Elizabethen poor law2. Nas oggetivo, si veniva a porre l’accento sui
obras de Niccolò Machiavelli, podemos beni e sulle sostanze economiche dei
encontrar referências ao princípio da capa- singoli, e si faceva astrazione dalle
cidade contributiva, quando este trata da qualità personali e dalle posizioni sociali
repartição das despesas públicas entre os di ciascuno...”
cidadãos e tece considerações acerca dos valores Não obstante o sentido objetivo do princípio
e defeitos do acúmulo de bens móveis e tal como colocado inicialmente, a evolução da
imóveis3. doutrina trouxe algumas modificações. Com o
Como bem destaca Conti, outra referência aprofundamento do estudo das categorias
ao princípio da capacidade contributiva vem elementares da riqueza, o elemento basilar da
inserida na Declaração dos Direitos do Homem capacidade contributiva passou a ser entendido
e do Cidadão (1789), que em seu art. 13 pela noção de produto e renda, em contra-
estabelece: posição aos conceitos genéricos de patrimônio
“Para a manutenção da força pública e bens.
e para as despesas da administração é Ao mesmo tempo em que se entendia que
indispensável uma contribuição comum; um sistema tributário justo seria aquele fundado
esta deve ser repartida por igual entre na taxação proporcional à renda, entendeu-se
todos os cidadãos, tendo em conta as suas por bem impor uma limitação, baseada no
possibilidades”. conceito do mínimo para a existência. Assim,
Já naquela época, o princípio da capacidade os bens necessários à satisfação das neces-
contributiva disseminou-se em várias Consti- sidades elementares da vida deveriam ser
tuições (v.g. República Romana – 1798; excluídos da imposição tributária, conside-
Piemonte – 1820, Francesa – 1848 etc.) e mais rando-se que aquela parte destinada às
modernamente tornou-se um corolário neces- necessidades elementares do indivíduo eram
consideradas como despesas de produção, não
1
CONTI, José Maurício. Princípios tributários sujeitas à tributação.
da capacidade contributiva e da progressividade. Na realidade não se tratava de um conceito
São Paulo : Dialética, 1996. p. 37. novo, eis que já aplicado na Idade Média no
2
CANNAN. The history of local rates in que concerne aos tributos incidentes sobre o
England in relation to the proper distribution of the consumo. Não obstante, sua retomada apre-
burden of taxation. 2nd ed. London, 1912. p. 22. sentou-se necessária sob o ponto de vista da
3
GARINO CANINA. Problemi de finanza
4
facista. Bologna, 1937. p. 161 e ss: Il pensiero Le basi teoriche del principio della capacitá
finanziario di Niccoló Machiavelli. contributiva. Milano : Giuffré, 1961. p. 12-13.
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justiça tributária, sintetizada na definição de estaria intimamente ligado ao conceito de renda
Rau acerca da capacidade contributiva, como: acabou por ressurgir na doutrina, que também
“La possibilità, fondata sulle condi- trouxe a discussão para o campo das neces-
zioni patrimoniali di una persona, di sidades individuais.
pagare le imposte senza pregiudizio della Segundo Pescatore7, a renda poderia ser
soddisfazione dei bisogni più urgenti”5. dividida em três partes:
Essa nova noção de tributação justa fundada “A despesa, com a qual se faz frente
sobre a renda encontrou respaldo no pensa- às necessidades absolutas e relativas da
mento de Adam Smith6, que sustentou que vida do indivíduo e de sua família; a
“os súditos de cada estado deveriam poupança, que serve para aumentar o
contribuir para a manutenção do governo capital para a melhoria das condições da
tanto quanto possível em proporção às família e os meios, a faculdade que cada
suas capacidades, ou seja, em proporção um tem de contribuir para a sociedade”.
à renda a qual respectivamente usufruem Assim, a capacidade contributiva seria uma
sobre a proteção do Estado...”. variável dependente da necessidade de pou-
Outros autores, sob o prisma do direito pança e da despesa. O fato de os mais ricos
público, passaram a entender a capacidade poderem destinar ao consumo uma parte
contributiva como expressão da influência dos relativamente menor de sua renda seria uma
benefícios públicos gozados pelos contri- conseqüência da menor urgência de suas
buintes. necessidades individuais.
Lindahl, um dos expoentes desta corrente, Verificamos, portanto, em breves consi-
sustentava que o princípio geral da tributação derações, que o conceito de capacidade
era do benefício. A tributação estaria direta- contributiva acabou por sofrer mutações na
mente correlacionada com a utilidade das busca daquilo que mais se aproxima da
despesas estatais aos indivíduos e a valoração almejada justiça tributária.
dessa utilidade emergiria dos fatores que
determinariam a estimação das vantagens 3. Conceito
públicas, vantagens essas de dois gêneros –
objetivo e subjetivo. No que se refere a uma definição do que
As vantagens objetivas consistiriam no seja “capacidade contributiva”, pelo que
aumento da renda e do patrimônio do indivíduo pudemos depreender, os conceitos de patri-
decorrentes daquela atividade estatal. As mônio, renda, utilidade, sacrifício e necessi-
vantagens subjetivas consistiriam no interesse dade são conceitos estreitamente correlacio-
àquele serviço público e na capacidade nados, que guardam uma relação de interdepen-
contributiva. dência entre si.
A medida da capacidade contributiva seria Dessa forma, a doutrina e a jurisprudência
determinada pela utilidade e vantagens acabaram por convencionar que a conceituação
decorrentes das despesas públicas. de capacidade contributiva pressupõe a
Outrossim, após o desenvolvimento do novo referência a uma forza economica complessiva.
conceito de finança pública, o qual negava a Buscando na ciência econômica os indícios
natureza comutativa da relação intercorrente de capacidade contributiva, procurou-se
entre o contribuinte e o fisco, ressaltando a delimitá-los como sendo os seguintes: o
característica obrigacional da prestação conjunto de rendimentos; o conjunto patri-
tributária, o princípio da capacidade contri- monial; o conjunto de despesas; os incrementos
butiva passou a ser intimamente relacionado patrimoniais e os incrementos de valor do
ao conceito de sacrifício. patrimônio.
Contudo, em razão de sua insuscetibilidade Qualquer desses fatos ilumina uma parte
de determinação objetiva, o conceito de da situação econômica do sujeito e todos em
sacrifício acabou sendo considerado inadequado conjunto compõem a situação econômica
para constituir o fundamento do imposto justo. complexa do indivíduo.
Muito embora as nuances verificadas, o A capacidade contributiva seria, portanto,
conceito de que a capacidade contributiva um conjunto de forças econômicas embasado
5
em alguns indícios parciais que, enquanto tais,
GIARDINA, op. cit., p.14. representam manifestação direta de uma certa
6
Pesquisa sobre a natureza e as causas da
7
riqueza das nações. Lisboa, 1950, p. 753. La logica delle imposte. Torino, 1867. p. 18.
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disponibilidade econômica limitada e manifes- do domínio econômico e social, em pleno
tação indireta da disponibilidade econômica exercício de extrafiscalidade. Essa intervenção
complexa. fiscal com fins sociais pode dar-se de dois
Um outro fator, o qual já mencionamos modos: favorecendo as situações econômicas
anteriormente, apresenta-se-nos de extrema que necessitam de proteção ou agravando o peso
valia no que se refere à conceituação proposta. tributário naquelas situações de particular
Com efeito, para que o concurso do fortuna.
indivíduo para com as despesas públicas seja Sobre a extrafiscalidade já havia se
adequado à sua capacidade contributiva, é pronunciado Wagner9, sustentando que os
necessário, além de atingir todos os ganhos tributos, além dos objetivos estreitamente
decorrentes dos indícios mencionados, ter em fiscais, deveriam ter também objetivos
conta sua situação pessoal e familiar. corretivos da estrutura social.
Há, portanto, que se proceder a uma isenção Finalizando o presente tópico, importante
no que se refere à quota necessária ao mínimo ainda que se ressalte que a capacidade
vital pessoal e familiar, eis que a atitude de contributiva pressupõe o alcance tributário de
concorrer às despesas públicas começa somente manifestações econômicas reais, efetivas e não
após a satisfação das necessidades pessoais e meramente fictícias ou hipotéticas, até mesmo
familiares dos contribuintes. Isto, além de
como corolário de princípio de lógica impo-
corresponder a um evidente critério lógico,
harmoniza-se com o caráter solidarístico do sitiva.
dever tributário. Assim, dentro da árdua tarefa de conceituar
Outrossim, o mínimo vital deve corres- capacidade contributiva, temos que pode ser
ponder ao mínimo necessário para uma ela considerada como a força econômica
existência digna e livre, levando-se em conta a complexa e materializada do indivíduo, idônea
situação familiar do indivíduo. a concorrer com as despesas públicas, à luz
Verificamos, portanto, que do conceito de de exigências econômicas e sociais funda-
capacidade contributiva resulta, de imediato, a mentais, respeitando-se o mínimo vital para
ilegitimidade dos impostos que não têm uma existência pessoal e familiar digna e livre.
qualquer ligação com a força econômica do
contribuinte. 4. A capacidade contributiva no direito
Importante assinalar que muito embora a comparado e brasileiro
capacidade contributiva pressuponha a capa-
cidade econômica, com esta não coincide Como já ressaltamos anteriormente, a
totalmente. No conceito de capacidade contri- capacidade contributiva como princípio se
butiva está implícito um elemento de juízo, uma encontra presente nas Constituições de um
valoração sobre a idoneidade para concorrer às grande número de países, tais como: na
despesas públicas. Constituição da República Portuguesa – 1967,
Moschetti 8, citado por Hugo de Brito que sobre ela dispõe no art. 106 – “o sistema
Machado, entendia que: fiscal será estruturado por lei, com vistas à
“a capacidade econômica é apenas uma repartição igualitária da riqueza e dos
condição necessária para a existência da rendimentos”; na Constituição da Espanha –
capacidade contributiva, posto que esta 1978, em seu artigo 31, afirmando que
é a capacidade econômica qualificada por “todos contribuirão para as despesas
um dever de solidariedade, quer dizer, públicas de harmonia com a sua capa-
por um dever orientado e caracterizado cidade econômica, mediante sistema
por um prevalente interesse coletivo, não tributário justo, inspirado nos princípios
podendo considerar a riqueza do indi- de igualdade e progressividade, que em
víduo separadamente das exigências caso algum terá alcance confiscatório”;
coletivas”. na Constituição da República Italiana, no art.
Ademais, importante assinalarmos que hoje 53, que estabelece que
a maioria dos Estados modernos acabam por “tutti sono tenuti a concorrere alle spese
utilizar o tributo como forma de intervenção pubbliche in ragione della loro capacità
8 9
MOSCHETTI, Francesco. El princípio da WAGNER, Adolf. Finanzwissenschaft.
capacidad contributiva. Madrid : Instituto de tradução Francesco Moschetti. Berlim, 1880. p.
Estudios Fiscales, 1980. p. 279. 287-292.
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contributiva. Il sistema tributário e priedade redacional, é no sentido de que
informato a criteri di progressività”10. a ressalva, sempre que possível, só diz
Podemos destacar ainda as Constituições do respeito ao caráter pessoal dos impostos,
Chile, Argentina, México, Grécia, Venezuela etc. não se aplica no que diz respeito à
No Brasil, tem-se que a primeira menção observância do princípio da capacidade
ao princípio da capacidade contributiva estava contributiva”.
inserida na Constituição de 1824, no seu art. Roque Antonio Carrazza13 faz uma análise
175, parágrafo 15, que dispunha “ninguém será jurídica do tópico sempre que possível,
isento de contribuir para as despesas do Estado consignando:
em proporção de seus haveres”. Na Cons- “... A nosso ver, ele não está fazendo
tituição de 1946 o princípio da capacidade – como já querem alguns – mera
contributiva veio expresso em seu art. 202, que recomendação ou um simples apelo para
previa “os tributos terão caráter pessoal, o legislador ordinário. Em outras
sempre que isso for possível, e serão graduados palavras, ele não está autorizando o
conforme a capacidade contributiva do legislador ordinário a, se for de seu
contribuinte”. Não obstante, esse princípio foi agrado, graduar os impostos que criar,
revogado pelo art. 25 da Emenda Consti- de acordo com a capacidade econômica
tucional nº 18 de 1965, não tendo figurado de dos contribuintes.
forma expressa na Constituição de 1967, e O sentido desta norma jurídica é
tampouco na Emenda nº 01, de 1969, muito muito outro. Ela, segundo pensamos,
embora muitos juristas entendessem que o assim deve ser interpretada: se for da
princípio continuava a existir, desde que se índole constitucional do imposto, ele
fizesse um trabalho de hermenêutica constitu- deverá obrigatoriamente ser graduado de
cional sistemática. acordo com a capacidade econômica do
A Constituição de 1988 retomou de forma contribuinte. Ou melhor: se a regra
expressa este princípio em seu art. 145, § 1º, matriz do imposto (traçado na CF)
que dispõe “sempre que possível, os impostos permitir, ele deverá obrigatoriamente
terão caráter pessoal e serão graduados segundo obedecer ao princípio da capacidade
a capacidade econômica do contribuinte...”11. contributiva...”.
Nota-se que inclusão do princípio da O mestre Alberto Xavier 14 leciona no
capacidade contributiva em nosso ordenamento mesmo sentido:
jurídico nacional acabou variando de acordo “É certo que o § 1º do art. 145
com o momento político histórico, demons- condiciona à ressalva ‘sempre que
trando de forma insofismável seu caráter possível’ a imperatividade do caráter
democrático. pessoal dos impostos e a sua graduação
segundo a capacidade contributiva. Mas
4.1. A expressão sempre que possível esta ressalva constitucional deve ser
Tal como definido em nosso direito pátrio, interpretada no sentido de que apenas
o princípio da capacidade contributiva vem não estão submetidos aos referidos
ensejando algumas interpretações divergentes comandos os impostos cuja natureza e
no que se refere ao seu alcance. A expressão estrutura com eles sejam incompatíveis.
sempre que possível diz respeito ao caráter O IOF e o ICM são exemplos de impostos
pessoal dos impostos ou à observância do que não seria possível submeter ao
princípio da capacidade contributiva? princípio do caráter pessoal. Já porém,
Sobre esta questão Ives Gandra12 sustenta no que concerne ao princípio da gra-
que duação, segundo a capacidade econô-
“a melhor interpretação do mencionado mica, não encontramos nenhum caso –
dispositivo, não obstante sua impro- entre a lista de tributos previstos na
10
Constituição – cuja natureza e estrutura
MACHADO, Hugo de Brito. Temas de Direito
13
Tributário. Revista dos Tribunais, 1993. p. 10. Curso de Direito Constitucional Tributário.
11
Sobre evolução deste princípio no direito 4. ed. Malheiros, 1993. p. 60-61.
14
brasileiro ver CONTI, op. cit., p. 38-41. Inconstitucionalidade dos tributos fixos por
12
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Sistema ofensa ao princípio da capacidade contributiva. São
tributário na Constituição de 1988. Saraiva, 1989. Paulo : Separata. RDT, 1991. p. 119. V Congresso
p. 76-78. Brasileiro de Direito Tributário.
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com ele não se acomode, valendo pois a acaba gravando de forma mais onerosa aqueles
referida ressalva para eventuais impostos produtos menos essenciais e vice-versa,
criados ao abrigo da competência incidindo no contribuinte na medida de sua
residual da União, regulada no art. 154”. capacidade contributiva, dentro de sua real
Das considerações elencadas depreende-se significação conceitual.
uma inequívoca obrigatoriedade de aplicação Elizabeth Carrazza, em sua obra IPTU e
do princípio da capacidade contributiva aos progressividade, p. 60, aduz neste sentido:
impostos cuja índole constitucional permita. “Sem dúvida, nos chamados impostos
sobre o consumo, o repasse da carga
4.2. Capacidade contributiva impositiva tributária é um fato eco-
e impostos indiretos nômico presente. Nesta medida, quando
a Constituição Federal menciona a
Outra questão que normalmente surge em seletividade em razão da essencialidade
se tratando do princípio da capacidade dos produtos, está, de um lado, buscando
contributiva é a possibilidade de sua aplicação proteger os menos favorecidos e, de
no que se refere aos impostos indiretos. Com outro, instrumentalizando o princípio
efeito, é sabido que os impostos indiretos são genérico da igualdade”.
aqueles que embora a obrigação de pagar recaia Henry Tilbery16 com precisão esclarece:
sobre determinado indivíduo, chamado de “Recapitulando o princípio básico,
contribuinte de direito, a carga tributária é focalizado nas presentes considerações,
repassada a outra pessoa, ou seja, ao contri- já definido antes no sentido de que a
buinte de fato, devido ao fenômeno da imposição feita pelo Estado, sobre os
repercussão. Considerando assim que as recursos financeiros das pessoas, para
condições pessoais do sujeito passivo na maioria cobrir as necessidades públicas, deve
das vezes não podem ser mensuradas, cria-se a deixar intactos os recursos dos indivíduos
dificuldade de aplicar este princípio. para a satisfação das suas necessidades
Pois bem, em se tratando de impostos essenciais e considerando que a obser-
indiretos, temos possível a aplicação do vância do critério da capacidade contri-
princípio da capacidade contributiva, relem- butiva se concretiza: no imposto direto
brando as lições de Aliomar Balleeiro15: (sobre rendas) – pela isenção do mínimo
“a natureza da mercadoria vale pre- de subsistência; no imposto indireto
sunção de seu destino a pessoas de (sobre vendas) – pela aplicação do
hábitos requintados, largas posses ou que critério da essencialidade de bens;
dispõem de recursos outros além dos chegamos à conclusão de que a faixa de
estritamente necessários à satisfação das dispêndios, a serem atingidos pelos
necessidades fundamentais”. impostos indiretos, é o excedente dos
Com efeito, como já ressaltamos ante- gastos dos consumidores, após satisfeitas
riormente, a capacidade contributiva deve ser as necessidades básicas individuais”.
verificada de acordo com critérios que, Portanto, outra conclusão não pode ser que
analisados conjuntamente, possibilitem sua aquela no sentido da possibilidade de aplicação
mensuração, respeitando-se o limite do mínimo do princípio da capacidade contributiva no que
vital. Assim, a utilização de critérios de se refere aos impostos indiretos, face a
graduação de alíquotas proporcional à essencia- existência de instrumentos para sua aferição.
lidade do produto apresenta-se como fator
proporcionador da mensuração da capacidade 4.3. Capacidade contributiva e isenções
contributiva.
A própria Constituição Federal, ao se referir Outra questão que suscita dúvidas: a lei que
ao Imposto sobre Produtos Industrializados, concede isenção fere o princípio da capacidade
determina que seja seletivo em função da contributiva consagrado na Constituição?
essencialidade dos produtos. Tal determinação Entendemos, em breves considerações, que
acaba espelhando o próprio princípio da a resposta dependerá da índole do imposto, na
capacidade contributiva, à medida que ao ser esteira do raciocínio do mestre Hugo de Brito.
seletivo em função da essencialidade o IPI 16
Direito Tributário atual. São Paulo : Resenha
15
Limitações do poder de tributar. 6. ed. Tributária : IBDT, 1990. p. 2.994. v. 10: O conceito
Forense, 1955. p. 301. de essencialidade como critério de tributação.
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Em se tratando de imposto cuja hipótese de menos incômodo com a cota que lhe cabe
incidência não seja necessariamente um pagar, do que qualquer outra sente,
indicador de capacidade contributiva do pagando a dela”.
contribuinte, a lei que concede isenção não fere
o princípio em estudo, não havendo que se falar
em inconstitucionalidade. Não obstante, em se
tratando de imposto cuja hipótese de inci- Bibliografia
dência espelhe a capacidade contributiva (v.g. ATALIBA, Geraldo. Elementos de Direito Tribu-
imposto sobre patrimônio), a concessão de tário. Revista dos Tribunais, 1978.
isenção pode ferir o princípio, dependendo da BALLEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro.
motivação. É certo que em relação à imunidade 9. Ed. Forense, 1977.
o problema não alcança relevância, por se tratar CANNAN. The history of local rates in England in
de hipótese prevista na Constituição, como uma relation to the proper distribution of the burden
exceção àquele princípio. of taxation. 2nd ed. London, 1912.
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito
Constitucional Tributário. 4. ed. Malheiros,
5. Conclusão 1993.
Após as considerações elencadas, veri- CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito
ficamos que de fato o princípio da capacidade tributário. 6. ed. Saraiva, 1993.
contributiva apresenta-se não somente como um COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à
eficaz instrumento de justiça fiscal, mas Constituição de 1988 : sistema tributário. 5. ed.
também como um corolário lógico do princípio Forense, 1993.
da igualdade, básico em todo e qualquer regime CONTI, José Maurício. Princípios tributários da
capacidade contributiva e da progressividade.
democrático de direito.
Dialética, 1996.
O princípio da igualdade pressupõe um COSTA, Regina Helena. Princípio da capacidade
tratamento desigual dos indivíduos que se contributiva. Malheiros, 1993.
apresentem em situações desiguais, de modo a GARINO CANINA, Attilio. Problemi de finanza
propiciar uma coincidência de tratamentos. No facista. Bologna, 1937 : Il pensiero finanziario
campo tributário não pode ser diferente. Os di Niccoló Machiavelli.
contribuintes devem repartir entre si o ônus GIARDINA, Emilio. Le basi teoriche del principio
tributário na medida de suas desigualdades e della capacità contributiva. Milano : Giuffrè,
de suas necessidades individuais particulares. 1961.
A igualdade tributária, espelhada no MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito
princípio da capacidade contributiva, deve ser tributário. 3. Ed. Forense, 1985.
uma realidade palpável nos regimes demo- __________. Temas de direito tributário. Revista
cráticos, em contraposição aos regimes dos Tribunais, 1993.
autoritários onde normalmente alguns são mais MAFFEZZONI, Federico. Il principio di capacità
contributiva nel diritto finanziario. Torino :
iguais que outros, e por certo a verdadeira UTET, 1970.
justiça fiscal importa em igualdade de MARTINS, Ives Gandra da Silva. Sistema tributário
sacrifícios, dentro de uma máxima política. Sua na Constituição de 1988. Saraiva, 1989.
observância, pois, é imperativa, de modo que MOSCHETTI, Francesco. El princípio da capacidad
as palavras de Stuart Mill17 não se percam no contributiva. Madrid : Instituto de Estudios
vazio: Fiscales, 1980.
“...distribuir a contribuição de cada SMITH, Adam. Pesquisa sobre a natureza e as
pessoa para as despesas do governo de causas da riqueza das nações. Lisboa : Fundação
tal forma que ela não sinta nem mais nem Calouste Gulbenkian, 1950.

17
Princípios da economia política. Cultural,
1983. p. 290. (Os Economistas).
Brasília a. 34 n. 136 out./dez. 1997 339
340 Revista de Informação Legislativa

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