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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências


Humanas
Departamento de Filosofia

RESUMO CRÍTICO:
“O Cinema”, de André Bazin

Nome: Eduardo Carli de Moraes


Período: Noturno
Número USP: 5685911
Disciplina: Estética I
Professor: Franklin de Matos

Julho de 2007

A MUMIFICAÇÃO DO TEMPO
A fotografia e o cinema no pensamento de André Bazin

(todas as citações deste trabalho foram retiradas da obra de ANDRÉ BAZIN, “O Cinema:
Ensaios”, ed. Brasiliense, com tradução de Eloísa de Araújo Ribeiro.)
É comum que nós, privilegiados filhos da tecnologia avançada do século 21, acabemos
frequentemente por nos esquecer do tamanho das vantagens técnicas de que gozamos em
comparação com todas as gerações anteriores. Pensemos, como um mísero exemplo (haveriam
centenas de outros!), no desagrado que qualquer um de de nós sente se, chegando ao local onde vai
passar suas férias, nota que esqueceu em casa sua máquina fotográfica ou filmadora... Que
melancolia não toma conta! Que desastre isso não acaba sendo considerado! Parece que algo do
prazer da viagem acaba de ser prejudicado irremediavelmente com esse impedimento de registrar
os momentos que iremos viver...

Tão acostumados estamos às tecnologias de registro visual e sonoro da realidade que já não
sabemos prescindir dessas nossas máquinas - e pensar que por milênios e milênios a humanidade
viveu assim, sem nenhum modo além da palavra escrita e das artes plásticas para registrar para a
posteridade tudo aquilo que via, ouvia, presenciava e testemunhava... Vejam o tamanho imenso do
nosso prvilégio: nós podemos tirar fotos e fazer vídeos, levando conosco, na bagagem, pedaços
eternizados de nossas vidas, fragmentos sedimentados de nossos destinos, enquanto que por
milhares e milhares de anos o homem viveu sobre a Terra sem poder fotografar os momentos
cruciais de sua existência... Reclamamos de boca cheia.

Talvez por isso se possa dizer o seguinte: que os avanços tecnológicos que culminaram na
invenção da fotografia e do cinema são muito mais do que meras etapas no processo evolutivo dos
meios de registro do real: representam também, se nós abrirmos nosso olhar numa perspectiva mais
vasta, uma vitória da humanidade inteira contra o esquecimento e contra a morte. Antes, o tempo
era um inimigo mais forte e feroz: passava por cima dos momentos vividos sem que pudéssemos
retê-los (nenhuma fotografia da Grécia em seu auge, nenhuma do Império Romano, nenhuma de
toda a Idade Média... nada, nada, nada!); escrevia-se, pintava-se, esculpia-se, sem dúvida – mas
imaginemos que o tamanho de tudo aquilo que foi sedimentado nem se comparada à imensidão
daquilo que foi perdido. Hoje, parece que o tempo passou a ser uma força menos temível, um
inimigo menos poderoso, já que com nossas fotos e nossos filmes conseguimos registrar os
momentos fugazes e sedimentá-los numa forma perene de um modo que a humanidade de todos os
séculos anteriores ao 20 não conheceram...

André Bazin conhecia muito bem a necessidade humana de se defender contra o tempo –
aquele tempo que passa e arrasta consigo, rumo ao esquecimento, o nosso sempre fugaz presente...
Retornando até os primórdios da história humana, Bazin irá perceber no fenômeno egípcio do
embalsamento e da criação de múmias algo que nos explica o porquê da necessidade do surgimento
das artes plásticas. Não seriam as duas coisas, a mumificação e as artes plásticas, de certo modo,
análogas, paralelas, semelhantes em suas inteções secretas? Essa parece ser a hipótese de Bazin,
que destaca que os egípcios, preocupados em encontrar modos para vencer a morte e a passagem
destruidora do tempo, crendo ainda que a conservação material do cadáver serviria como uma
espécie de barreira contra a “nadificação” da pessoa causada pelo falecimento, pôs-se então a tentar
“fixar artificialmente as aparências carnais do ser a fim de salva-lo da correnteza da duração”.

“Uma psicanálise das artes plásticas consideraria talvez a prática do


embalsamamento como um fato fundamental de sua gênese. Na origem da
pintura e da escultura, descobriria o ‘complexo’ da múmia. A religião
egípcia, toda ela orientada contra a morte, subordinava a sobrevivência à
perenidade material do corpo. Com isso, satisfazia uma necessidade
fundamental da psicologia humana: a defesa contra o tempo. A morte não é
senão a vitória do tempo. Fixar artificialmente as aparências carnais do ser é
salva-lo da correnteza da duração: aprumá-lo para a vida.”

Bazin admite que, com o desenvolvimento paralelo da arte e da civilização, e com a


decadência dos povos supersticiosos e das formas primitivas da religião, parou-se de dar tamanha
relevância ao embalsamento ou mumificação de seres humanos, como bem sabemos. Mas isso de
modo algum significaria que a humanidade teria deixado de estar atormentada pela necessidade de
fazer frente ao tempo. Ao invés de se fazer mumificar, um rei ou um imperador, dali em diante, irá
solicitar que algum pintor lhe fixe a aparência num quadro, imortalizando-se a partir desta imagem
sua. A diferença entre fazer-se pintar e fazer-se mumificar é clara, óbvia, gritante; mas talvez
possamos enxergar, nos dois processos, um mesmo anseio humano: o de subtrair-se à
temporalidade. Os pintores, naturalmente impossibilitados de “mumificar” paisagens, cenários e
pessoas, põe-se a pintar tendo como intenção, talvez até mesmo inconsciente, para alguns, de captar
essas aparências efêmeras num canvas que teria vocação para a eternidade.

Portanto, permanece o anseio humano fundamental de procurar vencer a corrente do


esquecimento que nos arrasta a partir dessa “fixação” das aparências, função para a qual as artes
plásticas foram, em sua gênese, concebidas. É o que comenta Bazin:

“É ponto pacífico que a evolução paralela da arte e da civilização destituiu as


artes plásticas de suas funções mágicas (Luís XIV não se fez embalsamar:
contenta-se com seu retrato, pintado por Lebrun). Mas esta evolução, tudo o
que conseguiu foi sublimar, pela via de um pensamento lógico, esta
necessidade incoercível de exorcizar o tempo. Não se acredita mais na
identidade ontológica de modelo e retrato, porém se admite que este nos
ajuda a recordar aquele e, portanto, a salva-lo de uma segunda morte
espiritual.”

*****

A FOTOGRAFIA E O CINEMA

Uma espécie revolução ocorre com os desenvolvimento técnicos e as descobertas científicas


que tornam possível a fotografia (e posteriormente o cinema), um advento que indubitavelmente
causa irreversíveis modificações nas artes plásticas. Se a pintura e a escultura haviam sempre
procurado se basear na verossimilhança, numa certa imitação o mais próxima possível dos objetos
retratados, a partir do surgimento da fotografia percebem-se frente a um concorrente imbatível no
quesito objetividade e verossimilhança. Nenhum pintor, por mais brilhante que fosse, não importa
com que perfeccionismo e dedicação trabalhasse, jamais chegaria a pintar o retrato de uma pessoa
de modo a fazer com que a pintura parecesse mais real do que a fotografia desta mesma pessoa.
Vendo-se irremediavelmente vencida por um concorrente mais forte, as artes plásticas, por assim
dizer, abandonam o ringue na competição pela verossimilhança e passam a intentar outros saltos,
outras viagens, outras estéticas para além do realismo estrito...

“A fotografia, ao redimir o barroco, liberou as artes plásticas de sua obsessão


de semelhança. Pois a pintura se esforçava, no fundo, em vão, por nos iludir,
e esta ilusão bastava à arte, enquanto o cinema e a fotografia são descobertas
que satisfazem definitivamente, por sua própria essência, a obsessão de
realismo. Por mais hábil que fosse o pintor, a sua obra era sempre hipotecada
por uma inevitável subjetividade. Diante da imagem uma dúvida persistia,
por causa da presença do homem. Assim, o fenômeno essencial na passagem
da pintura barroca à fotografia não reside no mero aperfeiçoamento material
(a fotografia permaneceria por muito tempo inferior à pintura na imitação
das cores), mas num fato psicológico: a satisfação completa do nosso afã de
ilusão por uma reprodução mecânica da qual o homem se achava excluído.”
Antes da fotografia, seria inimaginável que as artes plásticas enviezassem pelas veredas do
abstracionismo (quem imaginaria que o surrealismo ou o dadaísmo seriam possíveis antes do
advento da fotografia?), já que a elas cabia a função de reproduzir a realidade tal como ela nos
aparecia. Com o surgimento da fotografia, é esta nova invenção que vai assumir o papel de guardiã
da verossimilhança, libertando assim as artes plásticas para que procurassem outros caminhos,
distanciados do “realismo”. É por essa razão que Bazin comenta que “a fotografia vem a ser, pois, o
acontecimento mais importante da história das artes plásticas. Ao mesmo tempo sua libertação e
manifestação plena, a fotografia permitiu à pintura ocidental desembaraçar-se definitivamente da
obsessão realista e reencontrar a sua autonomia estética.” Enquanto a pintura acabava sempre tendo
impressa em si a marca subjetiva do artista, a fotografia parecia, ao menos à primeira vista, capaz de
uma “objetividade pura”. É o que Bazin destaca quando diz que

“A originalidade da fotografia em relação à pintura reside, pois, na sua


objetividade essencial. Tanto é que o conjunto de lentes que constitui o olho
fotográfico em substituição ao olho humano denomina-se precisamente
‘objetiva’. Pela primeira vez, entre o objeto inicial e a sua representação
nada se interpõe, a não ser um outro objeto. Pela primeira vez, uma imagem
do mundo exterior se forma, automaticamente, sem a intervenção criadora
do homem, segundo um rigoroso determinismo. A personalidade do
fotógrafo entra em jogo somente pela escolha, pela orientação, pela
pedagogia do fenômeno; por mais visível que seja na obra acabada, já não
figura nela como a do pintor. Todas as artes se fundam sobre a presença do
homem; unicamente na fotografia é que fruímos da sua ausência. Ela age
sobre nós como um fenômeno ‘natural’, como uma flor ou um cristal de neve
cuja beleza é inseparável de sua origem vegetal ou telúrica.”

Portanto, a tese de Bazin, bastante plausível e compreensível, é a de que toda pintura, por
mais que se esforçasse no sentido da verossimilhança mais pura, da cópia mais exata da realidade e
das aparências sensíveis, sempre acabava, inevitavelmente, sendo marcada pela subjetividade e
pelas particularidades do pintor. A fotografia surge e obviamente ocorre um “salto” qualitativo
imenso em direção a um grau impensavelmente superior de objetividade. Mas podemos questionar
se, de fato, a fotografia é uma arte assim tão “objetiva”, quando sabemos muito bem o quanto há de
escolhas possíveis para um artista da fotografia, que pode selecionar entre diversos ângulos,
enquadramentos, efeitos ópticos, colorações, tipos de iluminação, filme fotográfico etc. - de modo
que a subjetividade humana desempenha sim um papel importante também na fotografia. Não há
dúvida, porém, de que todo ser humano, ao olhar para uma fotografia, se torna imediatamente
crente de estar sendo um fragmento estático da própria realidade, e não somente de uma
reprodução dela, como era numa pintura. Por isso Bazin insiste que a fotografia “nos arrebata a
credulidade” - poucos de nós ousam, olhando para uma fotografia, dizer “isso é mentira!”? A
tendência a crer nos nossos próprios olhos é mais forte do que qualquer ceticismo. Uma imagem
nos deixa mais crédulos do que mil palavras.

“Esta gênese automática subverteu radicalmente a psicologia da


imagem. A objetividade da fotografia confere-lhe um poder de credibilidade
ausente de qualquer obra pictórica. Sejam quais foram as objeções do nosso
espírito crítico, somos obrigados a crer na existência do objeto representado,
literalmente re-presentado, quer dizer, tornado presente no tempo e no
espaço. A fotografia se beneficia de uma transferência de realidade da coisa
para a sua reprodução. O desenho o mais fiel pode nos fornecer mais indícios
acerca do modelo; jamais ele possuirá, a despeito do nosso espírito crítico, o
poder irracional da fotografia, que nos arrebata a credulidade.”

De certo modo, a fotografia seria, como foram as artes plásticas antes dela, uma espécie de
substituto da múmia: desempenharia para nós, modernos, a mesma função que a mumificação
representava para os antigos egípcios, ou seja, também ela, a fotografia, serve para que nós
exorcizemos o tempo, para que tentemos substrair-nos ao esquecimento, para que algo das
aparências sensíveis possa ser eternizado. Na linguagem de Bazin, o que a fotografia faz é suprir um
anseio do nosso inconsciente: liberar os objetos das “contingências temporais”.

“Por isso mesmo, a pintura já não passa de uma técnica inferior da


semelhança, um sucedâneo dos procedimentos de reprodução. Só a objetiva nos
dá, do objeto, uma imagem capaz de ‘desrecalcar’, no fundo do nosso
inconsciente, esta necessidade de substituir o objeto por algo melhor do que um
decalque aproximado: o próprio objeto, porém liberado das contingências
temporais. A imagem pode ser nebulosa, descolorida, sem valor documental,
mas ela provêm por sua gênese da ontologia do modelo; ela é o modelo. Daí o
fascínio das fotografias dos álbuns. Essas sombras cinzentas ou sépias,
fantasmagóricas, quase ilegíveis, já deixaram de ser tradicionais retratos de
família para se tornarem inquietante presença de vidas paralisadas em suas
durações, libertas de seus destinos, não pelo sortilégio da arte, mas em virtude
de uma mecânica impassível; pois a fotografia não cria, como a arte, a
eternidade, ela embalsama o tempo, simplesmente o subtrai à sua própria
corrupção.”

*****

O CINEMA: FILHO GLORIOSO DA FOTOGRAFIA

Não é difícil perceber, porém, que a fotografia não consegue de fato captar a realidade como
ela é, incapaz que é de reter algo que não sejam momentos estáticos, não podendo nos oferecer uma
imagem da dinâmica própria à realidade e a todas as vivências humanas. A fotografia, sendo uma
mera petrificação de instantes, não consegue nos fornecer algo que se assemelhe à sucessão
ininterrupta de instantes que constitui nossa experiência da realidade. É aí que entra o cinema.
Através da projeção sucessiva de várias fotografias, o cinema conseguiu nos libertar da petrificação
fotográfica e deu mais um passo importantíssimo no sentido da verossimilhança absoluta. A
dinâmica da realidade passou a poder ser embalsamada.

“Nesta perspectiva, o cinema vem a ser a consecução no tempo da


objetividade fotográfica. O filme não se contenta mais em conservar para nós
o objeto lacrado no instante, como no âmbar o corpo intacto dos insetos de
uma era extinta, ele livra a arte barroca de sua catalepsia convulsiva. Pela
primeira vez, a imagem das coisas é também uma imagem da duração delas,
como que uma múmia da duração.”

Segundo Bazin, o cinema se desenvolveu inicialmente como uma espécie de prolongamento


da fotografia (o cinema, bem sabemos, nada mais é do que a projeção sucessiva de quadros estáticos
nos dando a ilusão de movimento...). Mas foi também, desde o princípio, a arte que carregou sobre
si a tarefa imensa de atingir o ideal da verossimilhança absoluta. Segundo Bazin, não se pode dizer
que o cinema foi progressivamente percebendo cada vez maiores potenciais de imitação da
realidade, à medida que os desenvolvimentos técnicos foram possibilitando um grau superior de
registro – desde o seu início, o cinema já tinha como intenção-guia, ou até mesmo como um ideal,
então inalcançável, a imitação perfeita da realidade.

“O mito guia da invenção do cinema (...) é o mito do realismo integral,


de uma recriação do mundo à sua imagem, uma imagem sobre a qual não
pesaria a hipoteca da liberdade de interpretação do artista, nem a
irreversibilidade do tempo. Se em sua origem o cinema não teve todos os
atributos do cinema total de amanhã, foi, portanto, a contragosto e,
unicamente, porque suas fadas madrinhas eram tecnicamente impotentes
para dota-lo de tais atributos, embora fosse o que desejassem. (...) Os
verdadeiros precursores do cinema, de um cinema que só existiu na
imaginação de uns dez homens do século 19, pensam na imitação integral da
natureza. Logo, todos os aperfeiçoamentos acrescentados pelo cinema só
podem, paradoxalmente, aproxima-lo de suas origens. O cinema ainda não foi
inventado.”

O realismo integral que os idealizadores do cinema visavam não podia de modo algum ser
alcançado nos primórdios do desenvolvimento dessa arte. Todos nós percebemos, ao ver alguns dos
primeiros “clássicos” do cinema (os de Meliès, D.W. Griffith, Eisenstein...), o quanto ainda
estávamos distantes duma representação perfeita da dinâmica do real. O cinema já nasce como um
ideal, portanto – de modo que se pode dizer, como Bazin, que o cinema foi se desenvolvendo
tecnicamente para “chegar a si mesmo”, o que significa, em termos mais compreensíveis: nasceu já
com o intento de chegar à concretização do ideal que lhe deu gênese. Exemplifiquemos isso dizendo
que, apesar de ter levado décadas para que o cinema se transformasse de mudo em falado, e mais
um longo tempo até que o preto e branco fosse revolucionado pelo Tecnicolor, isso não quer dizer
que o cinema foi descobrindo seu potencial aos poucos – desde o princípio, ele já fixava o seu olhar
no ideal de “perfeição imitativa” que só muito depois iria atingir!

“O cinema é um fenômeno idealista. A idéia que os homens fizeram dele


já estava armada em seu cérebro, como no céu platônico, e o que nos admira
é mais a resistência tenaz da matéria à idéia, do que as sugestões da técnica à
imaginação do pesquisador. (...) Explicaríamos bem mal a descoberta do
cinema partindo das descobertas técnicas que o permitiram.”

O cinema nasce um tanto desacreditado, recoberto pelo ceticismo daqueles mesmos que o
criaram e que descobriram os apetrechos técnicos que o tornaram possível. Bazin comenta com uma
certa ironia a atitude de Lumière, que não acreditou que a invenção do cinemascópio poderia gerar
uma nova arte e que pretendia usar esse aparelho mais como um curioso brinquedo que
surpreenderia as massas pela sua novidade, mas que posteriormente seria rapidamente esquecido:
“Os que menos tiveram confiança no futuro do cinema como arte e
mesmo como indústria foram, precisamente, os dois industriais, Edison e
Lumiére. Edison contentou-se com seu kinetoscópio individual e, se Lumiére
recusou judiciosamente a Méliés a venda de sua patente, foi porque
provavelmente pensava ter mais lucro ele mesmo se a explorasse, mas
efetivamente como um brinquedo, do qual mais dia menos dia o público se
cansaria.”

Sabemos hoje o quanto estavam errados em diagnosticar que o cinema não tinha futuro nem
como arte nem como indústria! Não demoraria muito para que começassem a surgir os primeiros
grandes artistas de cinema, os primeiros grandes mestres e autores desta arte nascente, dentre os
quais Bazin destaca com ênfase três momentos fundamentais no desenvolvimento dessa que viria a
ser chamada a Sétima Arte:

1- Einseinstein e seu Encouraçado Potemkin:

“Se o Potemkin pôde subverter o cinema, não foi apenas por causa de
sua mensagem política, tampouco por ter substituído o staff dos estúdios
pelos cenários reais e a estrela pela multidão anônima, mas porque
Eisenstein era o maior teórico da montagem de seu tempo, porque ele
trabalhava com Tissé, o melhor operador do mundo, porque a Rússia era o
centro do pensamento cinematográfico, em uma palavra, porque os filmes
‘realistas’ que ela produzia continham mais ciência estética que os
cenários, as iluminações e a interpretação das obras mais artificiais do
expressionismo alemão.”

2 – Orson Welles e seu Cidadão Kane:

“Toda revolução introduzida por Orson Welles parte da utilização


sistemática de uma profundidade de campo inusitada. Enquanto a objetiva da
câmera clássica focaliza sucessivamente diferentes lugares da cena, a de
Orson Welles abrange com a mesma clareza todo o campo visual que se acha
ao mesmo tempo no campo dramático. Não é mais a decupagem que escolhe
para nós a coisa que deve ser vista, lhe conferindo com isso uma significação a
priori, é a mente do espectador que se vê obrigada a discernir, no espaço do
paralelepípedo de realidade contínua que tem a tela como seção, o espectro
dramático particular da cena. É, portanto, à utilização inteligente de um
progresso preciso que Cidadão Kane deve seu realismo. Graças à
profundidade do campo da objetiva, Orson Welles restituiu à realidade sua
continuidade sensível.”

3 – O neo-realismo italiano, simbolizado otimamente pelo Ladrões de Bicicleta de Vittorio


de Sica:

“Ladrões de Bicicleta é um dos primeiros exemplos do cinema puro. Nada de


atores, de história, de mise-en-scene, vale dizer, enfim, na ilusão estética
perfeita da realidade: nada de cinema.”

Bazin destaca ainda que o cinema, como uma arte jovem, nascida no começo dos século 20,
contrapunha-se a outras artes que tinham uma existência milenar, que se afastava séculos e séculos
no passado humano, de modo que foi somente aos poucos ganhando o direito pleno de ser uma arte
respeitada. Sem dizer que, a princípio, imitou e pegou emprestado muito das outras formas de arte:
do teatro e da literatura, principalmente.

“O cinema é jovem, mas a literatura, o teatro, a música, a pintura são tão


velhos quanto a história. Do mesmo modo que a educação de uma criança se
faz por imitação dos adultos que a rodeiam, a evolução do cinema foi
necessariamente inflectida pelo exemplo das artes consagradas. Sua história,
desde o início do século, seria portanto a resultante dos determinismos
específicos da evolução de qualquer arte e das influências exercidas sobre ela
pelas artes já evoluídas. E mais, o imbróglio desse complexo estético é
agravado pelos incidentes sociológicos. O cinema impõe-se, com efeito, como
a única arte popular numa época em que o próprio teatro, arte social por
excelência, não toca senão uma minoria privilegiada da cultura ou do
dinheiro.”

Torna-se claro, portanto, que o cinema, apesar de ter se desenvolvido em seus primórdios se
utilizando um pouco do exemplo das artes consagradas, teve um crescimento tão espantoso, e
disseminou-se como indústria de um modo tão marcante, a ponto de marcar o século 20 (e
certamente também o século 21...) como a maior das artes populares. Hoje, acostumados que
estamos à estética hollywoodiana, aos grandes blockbusters americanos, ao cinema transformado
numa imensa fábrica de entretenimento de massa, talvez nos esqueçamos de como nasceu e cresceu
esta “criança” hoje transformada em gigante. O grande trunfo de Bazin é remontar aos primórdios
do cinema e da fotografia, e mais atrás ainda, em direção às artes plásticas e às práticas egípcias,
percebendo aquilo que há em comum a tudo isso: a angústia humana em relação à passagem do
tempo (o que não passa de um modo sutil de se referir à angústia humana em relação à
mortalidade). Desde o princípio, o ser humano viu-se frente à necessidade de reter algo do mundo
fugaz e efêmero que via passar frente a seus olhos, especialmente aqueles momentos, paisagens e
pessoas que agradavam à sua sensibilidade e foram classificados como “belos”, evitando assim que
isso fosse arrastado em direção ao esquecimento. Por trás de tudo, das múmias egípcias, das
pinturas e esculturas, da invenção da fotografia e do cinema, Bazin reconhece que estaria ali uma
força motriz secreta: o velho anseio humano de salvar-se da efemeridade através da perenização
dos instantes.

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