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RESUMO CRÍTICO:
“O Cinema”, de André Bazin
Julho de 2007
A MUMIFICAÇÃO DO TEMPO
A fotografia e o cinema no pensamento de André Bazin
(todas as citações deste trabalho foram retiradas da obra de ANDRÉ BAZIN, “O Cinema:
Ensaios”, ed. Brasiliense, com tradução de Eloísa de Araújo Ribeiro.)
É comum que nós, privilegiados filhos da tecnologia avançada do século 21, acabemos
frequentemente por nos esquecer do tamanho das vantagens técnicas de que gozamos em
comparação com todas as gerações anteriores. Pensemos, como um mísero exemplo (haveriam
centenas de outros!), no desagrado que qualquer um de de nós sente se, chegando ao local onde vai
passar suas férias, nota que esqueceu em casa sua máquina fotográfica ou filmadora... Que
melancolia não toma conta! Que desastre isso não acaba sendo considerado! Parece que algo do
prazer da viagem acaba de ser prejudicado irremediavelmente com esse impedimento de registrar
os momentos que iremos viver...
Tão acostumados estamos às tecnologias de registro visual e sonoro da realidade que já não
sabemos prescindir dessas nossas máquinas - e pensar que por milênios e milênios a humanidade
viveu assim, sem nenhum modo além da palavra escrita e das artes plásticas para registrar para a
posteridade tudo aquilo que via, ouvia, presenciava e testemunhava... Vejam o tamanho imenso do
nosso prvilégio: nós podemos tirar fotos e fazer vídeos, levando conosco, na bagagem, pedaços
eternizados de nossas vidas, fragmentos sedimentados de nossos destinos, enquanto que por
milhares e milhares de anos o homem viveu sobre a Terra sem poder fotografar os momentos
cruciais de sua existência... Reclamamos de boca cheia.
Talvez por isso se possa dizer o seguinte: que os avanços tecnológicos que culminaram na
invenção da fotografia e do cinema são muito mais do que meras etapas no processo evolutivo dos
meios de registro do real: representam também, se nós abrirmos nosso olhar numa perspectiva mais
vasta, uma vitória da humanidade inteira contra o esquecimento e contra a morte. Antes, o tempo
era um inimigo mais forte e feroz: passava por cima dos momentos vividos sem que pudéssemos
retê-los (nenhuma fotografia da Grécia em seu auge, nenhuma do Império Romano, nenhuma de
toda a Idade Média... nada, nada, nada!); escrevia-se, pintava-se, esculpia-se, sem dúvida – mas
imaginemos que o tamanho de tudo aquilo que foi sedimentado nem se comparada à imensidão
daquilo que foi perdido. Hoje, parece que o tempo passou a ser uma força menos temível, um
inimigo menos poderoso, já que com nossas fotos e nossos filmes conseguimos registrar os
momentos fugazes e sedimentá-los numa forma perene de um modo que a humanidade de todos os
séculos anteriores ao 20 não conheceram...
André Bazin conhecia muito bem a necessidade humana de se defender contra o tempo –
aquele tempo que passa e arrasta consigo, rumo ao esquecimento, o nosso sempre fugaz presente...
Retornando até os primórdios da história humana, Bazin irá perceber no fenômeno egípcio do
embalsamento e da criação de múmias algo que nos explica o porquê da necessidade do surgimento
das artes plásticas. Não seriam as duas coisas, a mumificação e as artes plásticas, de certo modo,
análogas, paralelas, semelhantes em suas inteções secretas? Essa parece ser a hipótese de Bazin,
que destaca que os egípcios, preocupados em encontrar modos para vencer a morte e a passagem
destruidora do tempo, crendo ainda que a conservação material do cadáver serviria como uma
espécie de barreira contra a “nadificação” da pessoa causada pelo falecimento, pôs-se então a tentar
“fixar artificialmente as aparências carnais do ser a fim de salva-lo da correnteza da duração”.
*****
A FOTOGRAFIA E O CINEMA
Portanto, a tese de Bazin, bastante plausível e compreensível, é a de que toda pintura, por
mais que se esforçasse no sentido da verossimilhança mais pura, da cópia mais exata da realidade e
das aparências sensíveis, sempre acabava, inevitavelmente, sendo marcada pela subjetividade e
pelas particularidades do pintor. A fotografia surge e obviamente ocorre um “salto” qualitativo
imenso em direção a um grau impensavelmente superior de objetividade. Mas podemos questionar
se, de fato, a fotografia é uma arte assim tão “objetiva”, quando sabemos muito bem o quanto há de
escolhas possíveis para um artista da fotografia, que pode selecionar entre diversos ângulos,
enquadramentos, efeitos ópticos, colorações, tipos de iluminação, filme fotográfico etc. - de modo
que a subjetividade humana desempenha sim um papel importante também na fotografia. Não há
dúvida, porém, de que todo ser humano, ao olhar para uma fotografia, se torna imediatamente
crente de estar sendo um fragmento estático da própria realidade, e não somente de uma
reprodução dela, como era numa pintura. Por isso Bazin insiste que a fotografia “nos arrebata a
credulidade” - poucos de nós ousam, olhando para uma fotografia, dizer “isso é mentira!”? A
tendência a crer nos nossos próprios olhos é mais forte do que qualquer ceticismo. Uma imagem
nos deixa mais crédulos do que mil palavras.
De certo modo, a fotografia seria, como foram as artes plásticas antes dela, uma espécie de
substituto da múmia: desempenharia para nós, modernos, a mesma função que a mumificação
representava para os antigos egípcios, ou seja, também ela, a fotografia, serve para que nós
exorcizemos o tempo, para que tentemos substrair-nos ao esquecimento, para que algo das
aparências sensíveis possa ser eternizado. Na linguagem de Bazin, o que a fotografia faz é suprir um
anseio do nosso inconsciente: liberar os objetos das “contingências temporais”.
*****
Não é difícil perceber, porém, que a fotografia não consegue de fato captar a realidade como
ela é, incapaz que é de reter algo que não sejam momentos estáticos, não podendo nos oferecer uma
imagem da dinâmica própria à realidade e a todas as vivências humanas. A fotografia, sendo uma
mera petrificação de instantes, não consegue nos fornecer algo que se assemelhe à sucessão
ininterrupta de instantes que constitui nossa experiência da realidade. É aí que entra o cinema.
Através da projeção sucessiva de várias fotografias, o cinema conseguiu nos libertar da petrificação
fotográfica e deu mais um passo importantíssimo no sentido da verossimilhança absoluta. A
dinâmica da realidade passou a poder ser embalsamada.
O realismo integral que os idealizadores do cinema visavam não podia de modo algum ser
alcançado nos primórdios do desenvolvimento dessa arte. Todos nós percebemos, ao ver alguns dos
primeiros “clássicos” do cinema (os de Meliès, D.W. Griffith, Eisenstein...), o quanto ainda
estávamos distantes duma representação perfeita da dinâmica do real. O cinema já nasce como um
ideal, portanto – de modo que se pode dizer, como Bazin, que o cinema foi se desenvolvendo
tecnicamente para “chegar a si mesmo”, o que significa, em termos mais compreensíveis: nasceu já
com o intento de chegar à concretização do ideal que lhe deu gênese. Exemplifiquemos isso dizendo
que, apesar de ter levado décadas para que o cinema se transformasse de mudo em falado, e mais
um longo tempo até que o preto e branco fosse revolucionado pelo Tecnicolor, isso não quer dizer
que o cinema foi descobrindo seu potencial aos poucos – desde o princípio, ele já fixava o seu olhar
no ideal de “perfeição imitativa” que só muito depois iria atingir!
O cinema nasce um tanto desacreditado, recoberto pelo ceticismo daqueles mesmos que o
criaram e que descobriram os apetrechos técnicos que o tornaram possível. Bazin comenta com uma
certa ironia a atitude de Lumière, que não acreditou que a invenção do cinemascópio poderia gerar
uma nova arte e que pretendia usar esse aparelho mais como um curioso brinquedo que
surpreenderia as massas pela sua novidade, mas que posteriormente seria rapidamente esquecido:
“Os que menos tiveram confiança no futuro do cinema como arte e
mesmo como indústria foram, precisamente, os dois industriais, Edison e
Lumiére. Edison contentou-se com seu kinetoscópio individual e, se Lumiére
recusou judiciosamente a Méliés a venda de sua patente, foi porque
provavelmente pensava ter mais lucro ele mesmo se a explorasse, mas
efetivamente como um brinquedo, do qual mais dia menos dia o público se
cansaria.”
Sabemos hoje o quanto estavam errados em diagnosticar que o cinema não tinha futuro nem
como arte nem como indústria! Não demoraria muito para que começassem a surgir os primeiros
grandes artistas de cinema, os primeiros grandes mestres e autores desta arte nascente, dentre os
quais Bazin destaca com ênfase três momentos fundamentais no desenvolvimento dessa que viria a
ser chamada a Sétima Arte:
“Se o Potemkin pôde subverter o cinema, não foi apenas por causa de
sua mensagem política, tampouco por ter substituído o staff dos estúdios
pelos cenários reais e a estrela pela multidão anônima, mas porque
Eisenstein era o maior teórico da montagem de seu tempo, porque ele
trabalhava com Tissé, o melhor operador do mundo, porque a Rússia era o
centro do pensamento cinematográfico, em uma palavra, porque os filmes
‘realistas’ que ela produzia continham mais ciência estética que os
cenários, as iluminações e a interpretação das obras mais artificiais do
expressionismo alemão.”
Bazin destaca ainda que o cinema, como uma arte jovem, nascida no começo dos século 20,
contrapunha-se a outras artes que tinham uma existência milenar, que se afastava séculos e séculos
no passado humano, de modo que foi somente aos poucos ganhando o direito pleno de ser uma arte
respeitada. Sem dizer que, a princípio, imitou e pegou emprestado muito das outras formas de arte:
do teatro e da literatura, principalmente.
Torna-se claro, portanto, que o cinema, apesar de ter se desenvolvido em seus primórdios se
utilizando um pouco do exemplo das artes consagradas, teve um crescimento tão espantoso, e
disseminou-se como indústria de um modo tão marcante, a ponto de marcar o século 20 (e
certamente também o século 21...) como a maior das artes populares. Hoje, acostumados que
estamos à estética hollywoodiana, aos grandes blockbusters americanos, ao cinema transformado
numa imensa fábrica de entretenimento de massa, talvez nos esqueçamos de como nasceu e cresceu
esta “criança” hoje transformada em gigante. O grande trunfo de Bazin é remontar aos primórdios
do cinema e da fotografia, e mais atrás ainda, em direção às artes plásticas e às práticas egípcias,
percebendo aquilo que há em comum a tudo isso: a angústia humana em relação à passagem do
tempo (o que não passa de um modo sutil de se referir à angústia humana em relação à
mortalidade). Desde o princípio, o ser humano viu-se frente à necessidade de reter algo do mundo
fugaz e efêmero que via passar frente a seus olhos, especialmente aqueles momentos, paisagens e
pessoas que agradavam à sua sensibilidade e foram classificados como “belos”, evitando assim que
isso fosse arrastado em direção ao esquecimento. Por trás de tudo, das múmias egípcias, das
pinturas e esculturas, da invenção da fotografia e do cinema, Bazin reconhece que estaria ali uma
força motriz secreta: o velho anseio humano de salvar-se da efemeridade através da perenização
dos instantes.