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LUZ

de cirurgioens
EMBARC ADIS SOS,

QUE TRATA DAS DOENÇAS EPIDE-


micas,de que coftumaõ enfermar ordinaria-
mente todos, os que fe embarcaõ para
as partes ultramarinas, 9/
OFFERECIVA *S

A'Mageftade do Sereniífimo

REY DE PORTUGAL

D. JOAM V.

NOSSO SENHOR
pelo D OvToR

JOSEPH RODRIGUEZ DE ABREU


Medico Ulyfíiponenfe.

LISBOA,

jsja Officina de ANTONIO PEDROZO GALRAM.

Com todas as licenças neccjfarias, Anno dc 1711 •


7
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SENHOR.

OUVA tanto Cicero nas fitas ova-


çoens ao homem agradecido, & obri-
gado (como lealVafJa!lo)ao feu Rey,
que lá vem a femelhallo com os La-
vradores pobres,que ao tempo de ftt(vs
colheytas necejjar iam ente hao de remunerar ao feu
fènhorio o favor, que quiçá muytas vezes lhe cbegao
a dever. Quizera eu, Senhor, (jaqueme faltaóai
rendas annuaes,) nao fojjem taõgrandes as honras,
com que a Realbenevolencia de V. Mageflade coflu-
ma empenhar os ânimos de todos os feusfubait os-, por
que nem a mim, efle, temerário me arrojára a oíjerc
cer aos pés de V. Mageflade efte imitadijfimo papel\
fe aquella me nao roubara com tanto ahinco o Portu-
guez affetto,fazendo-o chegar a tanto extremo o meti
cuydado, que eflimára fojjem mayores as forças, pa-,
ra com demojlraçoens poder igualar, o quanto a V.
Mageflade defejo fervir. O ter trabalhado, nefla
viagem, o humilde do meu engenho no curativo dai
doenças do mar, das quaes ainda que muytos tem
tratado,poucos em a nojfa lingua vulgar, &por efte
eftylo o tem feyto, (circunflancia bem necejfariapara
emendar os grandes erros, que cofiumao fazer fe no
curativo das taes doenças d cu/la de tantas vidai,)
* i divi-
n~ —
dívida he, a que vive obrigado, quem como eu vene-
ra tanto a Real Pcffoa de V. Mageflade; Jupplicando
a [tia Realgradeza,queyra ter por bem,recolher e/la
viftima debayxo das azas do feu amparo, para que
fique fcrvindo a obra de Real defenfa, pois Jemefta
confiança, confeffo naõ tivera ou(adia para me ex-
por ao rife o do combate, nem ao perigo da murmura-
| Çao\ imitando nejla ultima circunflancia, ja que naõ
pojjo na primeira,aosJa gazesjardineiros, pois quan-
do difpõem as tenras, & delicadas plantas, cuydaõ
muyto cm arrima lias a grandes, & poder o/as arvo-
res , que as defendaõ como também os engenho/òs
pintores com os/eus retratos, que para de todo aper-
feyçoarem,o que obrou a futileza dos feuspincéis,coí-
tumao matizallo com o ouro dos mais avantejados
quilates. AJJimferárazao receberV. Mageflade ejle
breve, & pobre Tyrocinio, como feytura de quem faz
alarde de [cr menor e[cravo, & mintmo Vajfallo de
V. Mageflade, naõattendendo ao humilde ferviço,
que lhe faço, fim fá olhando para o agigantado da
vontade com que lho ofereço, como fez aque lie gran-
de Rey da Ver fia Xerxes, quando comfemblante a-
laguenho recebe o hum vazo de agua, que hum humil-
de pajlorfinho lhe offereceo em asfuasmaos. Que eu
deyxo o a?nparo nas da Real grandeza de V. Magef-
tade, cuja Peffoa, & vida guarde Deos, como os fèut
Vafjallos todos havemos mifler.

Jofeph Rodriguez de Abreu,


PROLOGO

AO LEYTOR.

E entre íos tres convidados achou


em hum tempo taõ differentes goí-
tos Horácio , que apenas hum fe
vinha a conformar com o do outro;
com muyta razão devo eu eítar te-
merofo , ( amigo Leytor,) de que me Terá impol-
fivel a fatisfaçaõ de todos no goftorpois,como diz
o provérbio: Quot capita, tot fententia: entendo
diraõ huns,parece desdouro da medicina o expla-
narlhehuma parte fua em língua taõ vulgar, fa-
zendo ainda deite ludibrio alarde em mandalla
dar ao prelo, & folhereftituía a gravidade com
que tal fciencia devo applaudir efcrevendo em la-
tim, como taõ univeríal meyo por donde íe pude-
ra communicar a outras naçoens. Outros dirão, o
eftylo hernuy rafteiro , & o Tratado muybrevey
& muy íuccinto, & que em tal calo não fóaquellc
devia ler mais íubido j mas também efte devia ler

* 3 com

L
com mais largueza,difputando algumas queftoês,
que em taes queyxas ha de difficuldade,fazendo o
Tratado taõ grade como a matéria o pede. A hõs,
& a outros heide refponder, mas tenho para mim
naõ fatisfarei à queyxa:aos primeyros o faço com
lhes dizer não entendia era desdouro para a noíTa
faculdade oefcrever em efta, ouaquella lingua,
quando vejo Hippocrates, Platão, Ariftoteles,
SãoBafilio, & Gregorio Nazianzeno, & outros
muytos Doutores Gregos,eícrevéraõ obras muy-
to mayores do que efta, & não prefumiraõ lhes
íerviraõ de pouco abono o ferem fabricadas na fua
própria linguagem; de mais que efta enfermida-
de de que trata efte breviííimo difcurfo, & o in-
tento com que puz por obra o feu curativo, como
aquella feja própria dos marítimos, & efte feja lo
deputado para os Cirurgioens, que lhes afliftem,
parece fica tãofóra de ler desdouro o elcrevello
em Portuguez,(lingua efta maisintelligivel,) que
a meu ver ainda que de menos credito para a fa-
culdade , fica fendo de mais clareza para os enfer-
mos, pois nelle poderáõ ver os remedios com que
haõ de curar , o tempo coaduno, em q haõ de ap-
plicar, & finalmente aqueyxa, & os feus fympto-
mas como os hão de conhecer, & nifto tenho pa-
ra mim faço algum ferviço a Deos, a Sua Magef-
tade,queDeos guarde, & a todos aquelles que
embarcarem: faço íerviçoa Deos, em querer que
haja
haja quem goze alguma parte dasmuytas rique-
zas , que temos em a lingua Latina, & que fe obre
com mais acerto, do que até aqui íe tem obrado:
faço-o a Sua Mageftade que Deos guarde, em não
fo ter tanto cuydado nos íeus Toldados neíla Ar-
mada , ( em que gratuitamente, & íem algum in-
tereííc me quiz embarcar,naõ havendo Medico,
que aííim o quizeííe fazer,& eílar vago o cargo de
Fifico mor da Armada , ) mas também cuydar
tello com melhor aífiítencia dos Cirurgioens na
cícritadeíle limitado difcurfo, nas mais que da-
qui por diante íe offerecerem, pois ha de permit-
tir Deos dar luz a eftes,para que conheçaõ no que
aqui lhes moftro,deíejo muy to acerte no metho-
do curativo dasqueyxas, que no mar íè lhe offe-
recerem. Ultimamente faço ferviço aos q embar-
carem , pois efcrevendo em Portuguez, pôde ca-
da hum per fi faber o como pode ter melhora na
ília queyxa. Os doutos baftantes livros tem de
que políaõ valeríè, diífimulem o querer dar eíte
goílo aos q o não faõ tanto, & eíles íe contentem
com a lhaneza do eíty lo, pois aelegancia, &oal-
teiar diffículdades não he para quemíómenteef-
cieve o methodo curativo de hum achaque parti-
cular , ofFerecendo àcenfura o que efcolheo de
bons, & graves Autores, & tem vifto por experi-
ência neílas náos ter íervido de proveytoamuy-
tos. Aos fegundos, & últimos refpondo,que o

eftylo
eílylo não lie tão levantado como o meu affe&o
defejava, & a matéria o pedia, mas fim ío he co-
mo a minha capacidade o diótava; & cjuem vio
huma roimarvore fazonar frutos avantejados à
fua qualidade? O fer tão breve,& tão fuccinto não
pode lervir de menoscabo, para quem íouber foy
o termo de mez & meyo,único prazo,em que affe-
<5hiofo o meu cuydado fabricou efta vi&ima, que
facrifico aos teus pés , & em fatisfação quizera
(benigno Ley tor) recebeíTes a minha vontade, &
Pelejo, que tenho de te lervir com eíte pequeno
trabalho, que aqui tenho tido, & íe defta fizeres
algum apreço, & te fervir em alguma coufa de
proveyto,dáa Deos a gloria, que por tudo a me-
rece.

Vale.

AO
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i . s i . ; .. ; . i i • . < ; ^

AO DOUTOR JOSEPH RODRIGUEZ


de Abreu em louvor da lua infigne Defcrip-
ção Epidemica.
vl j. i » t, * .

DECIMA.

TAõ doutamente efcreveis,


Como fiíicafallais,
Que os antigos admirais,
E aos modernos fufpendeis.
Dar bem pode ley às leys,
VoíTaliçaõ peregrina,
Pois íe hoje íe acha efta mina,
A fífica defterrada,
Por vós Te vé reftaurada,
Apollo da Medicina.

Do Capitão Tenente Carlos de Ftgueyroa.

AO
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AO AUTOR
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EPILOGO.

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aUem he da fiíica a flor? O Doutor.
Quem gloria da patria he? Joleph.
Quem liçaõ aos Meftres deu? Abreu.

Se a Corte bem conheceu


taõ fupremas excellencias,
bem faz em chorar aufencias
do Doutorjofeph de Abreu.

De hum Jcu ajfeãuofo fervo.

.w-f

EM
â V âMááMâMââM&âMMáâMMâÈS

g) (SfôXáɧXÊ¥&(^r£

EM LOUVOR DESTA OBRA


f* f\ * ■ •* ~*í • '• . * .« ^

SONETO.
. . . [\ ' '\ "1L* --. I a

ADeíterrar as trevas da ignorancia


Sahe efta luz com maxima advertencia,
Ateada com golpes de experiencia,
Encendida com íopros de elegancia.
Sahe efta luz a luz por prima intrancia,
Aomefmo Sol fazendo competencia,
E porque igual fe oftente na excellencia,
Defpréga luzes desde lua infanda.
Hippocrates debruce hum pouco o collo,
Que Galeno c'os mais também o inclina,
Desde o Tejo, Amazaõ, Nilo, & Paótolo.
Pois na luz, que nos dávoífa doutrina,
Eclipfais (douto Abreu) ao mefmo Apollo,
Flammantes luftres dando á Medicina.

De Felix de Azevedo da Cunha Capitão do Re-


gimento da Armada ReaL

afr* * AO
'â A 4 A A â A A A A A A A A A A5 A A M AA1IA 4 A £ M A
«iBI

AO AUTOR

EPIGRAMM A.

ARtis Apolline^ Jofeph , fecrcta refolvis,


Qui do&os inter publicus artis ines.
Au réus ifte liber toto celebrabitur orbe,
Ingenio vires exfuperante tuas.
Maxima mirantur Medici prarcepta Galeni;
Admirandus erit, fed magis ifte liber.
Teftantur fatorum avulfi ex limine plures,
Túrgida dum Zephiro marmora cJaíIis arat.
Confule diícrimen, íàevo íubje&a Tridenti,
Mirata eft iibrum turba, ièd iiia viri.

t6rih sl i lor o )fi 3ijp t ::o| ca


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Do Doutor Salvador da Silva Brandaõ.

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OA AO
AO AUTOR

SONETO.

SEguis do eftudo a luz fempre applaudida,


Deyxais do ocio o laço fempre forte,
Porque no ocio tendes certa a morte,
Porque no eftudo tendes certa a vida.
Porque grangeais a coroa mais luzida,
Evitar pertendeis da Parca o corte,
Fugis no ocio o rigor da forte,
Buícais no eftudo a gloria appetecida.
Porque ao regalo vos furtais da cama,
N o ardente eftio, no geado inverno,
Mereceis de douto ( Abreu ) a verde rama;
Porque em fim por decreto alto, & fupremo,
Pelo eftudo le adquire immortal fama,
Se pelo ocio efquecimento eterno.

De Belchior da Cunha Furtado.

IN-
INDEX

Dos Capítulos, que fe contem nefta


obra.

DISPUTADA I.

CAp. i. Que coufa feja eíta conftituiçam.


pag.i.
Cap. i. Da parte affeâia defte morbo epidemico.
pag. 9.

DISPUTADA II.

Cap. i. Da caufa próxima immediata. pag. 16.


Cap. i. Da caufa mediata. pag. n.
Cap. 3. Da caufa remota. pag.33.

DISPUTADA III.

Cap. 1. Do prognoílico deíla queyxa. pag. 44.


Cap. 1. Da cura deíla doença. pag. 49.

AP-
Approvações do Santo Officio.

ILLUSTRISSIMO SENHOR.
POr ordem de V. Ululinflima li cite livrinho de Medici-
na, que compoz o Doutor Jofeph Rodriguez de Abreu,
fic.naõachei coufa contraria à noífa Santa Feou bons collu-
mes, falvo &c Lisboa,Convento dc N.Scnhora dejefus 10.
de Novembro dc 1710. tr. Jofeph cio E/pinto Santo.

ILLUSTRISSIMO SENHOR.
POr mandado de V. Illultnflima li eíte pequeno livro dc
Medicina ,compoíto pelo Doutor Joleph Rodriguez dc
Abreu, o qual intenta imprimir Jeronymo Barbofa, & nellc
naô achey coufa alguma contra os bons coflumes, ou noífa
Santa FéCatholica, antes me parece ferá util, & de grande
proveyto para todos, os que fe embarcao para as partes ul-
tramarinas, pois nelle fe trata das doenças, q comummente
padecem, os que andáo embarcados, & dos remédios, que fc
devem applicar para astaes doenças não ferem perigofas >
por iíTo julgo deve V. IIIuAriífima conceder a licença para
íe poder dará eftampa. T rindade em o Convento de N. Se-
nhora do Livramento aos 24. de Novembro de 171 o.
tr- Antonio das Chagas.

LICENÇAS.

VIftasas informações, pode-fe imprimir o livro de Me-


dicina,de quefazmençaõ eíta petição,& impreífo tor-
nará para fe conferir,& dar licença que corra,& fem ella naõ
correrá- Lisboa28. deNovembro.de 1710.

Moni^. Haffe. Monteyro. Kibcyro. Rocha• Fr EncartiaçaÕ.


POde-fc imprimir o livrinho de que trata cila petição, &
impreflo torne para fc conferir,& dar licença q corra,&
fem clía naô correrá. Lisboa 29. de Novembro de 1710.

!Bifpo de Tagajle.
Approvaçaõ do Paço.

POrcrdemde V. Mageílade vi o livro intitulado,Luz dc


Cirurgioens EmbarcadilTos, cm que naõ fófemoilra o
feu Autor cíluaiolo , emes muytos que rcvolveo, tirando
delles a doutrina mais folida, & util ao fi.nque per tende,que
heinflruir comella os Cirurgioens Embarcadiíros paraevi*
tar os graviífimosdanos, que a experiencia tem moitrado
com perda de tantas vidas ; mas também Vaifallo taôzelofo
do ferviçode V.Mageítade, que acuíto dehú laborioíi/Timo
cíiudofahioa luz com cila obra muyto digna dc fc imprimir.
V. Mageftade mandará o que for fervido. Lisboa, & de Ja-
neyro 19. de 1711.

Manoel de ?in>ia Coutinho.

QUe fe poíTa imprimir viftas as licenças do S. Officío, &


Ordinário, & depois deimpreííò tornará àmefa com
leu parecer. Lisboa28.de Janeyro dc 1711.

Lacerda. Carneyro. Cofia. 'Botelho. Andrade. GalVaõ.

Vliftoertarconforme com ooriginal pódecorrer eíte


Livro de Cirurgia. Lisboa 24. de Março de 1711 •

Mom^. Haffe. Monteyro. Ribeyro. Rocha,


tr. Encamaçaõ. Barreto.

POde correr Lisboa 25. dc Março de 1711.


Bifpo de fagasie.

TAxaõefteLivroem 00. reis. Lisboa28.de iMarçodc


1171.
Lacerda. Cotta. Andrade. Botelho. Tereyra•
Pag.i

TRATADO

ÚNICO

DO METHODO CURATIVO DAS DOENÇAS


Epidemicas , dc que coftumaó enfermar os que navegaó para
as partes ultramarinas , repartido cm três Difputadas : na pri-
meyra tratarey daeflencia,& diffiniçaó da queyxa, & parte af-
feóta, que coltuma mortificarfe com a tal doença; na fegun-
dadefcobrirei naó ío acaufa próxima immediata, mas a me-
diata , & remota, vel qu*. producit, tAmquam in ejfetlum fecundtt -
rittm,a caufaproxima;& naterceyrafarey prognofticoao acha-
que , & tiradas as indicaçoens curativas ,exporey os medica-
mentos de que nelta Epidemia fe deve ufar, para totalmente
fe recuperar a faude.

DISPUTADA I-

Dadiffiniçaõ, & eíTencia, & parte affe&adeíle


morbo Epidemico.

CAPITULO PRIMEYRO.

Que coufa feja ejla conftituiçao.

ARA a verdadeyra explicaçaõ, & co-


nhecimento defta queyxa, he primeyro
neceffario declarar a eíTencia, em que
confifte, porque fó defta íorte Te ve o
verdadeyro methodo curativo do achaque ; &
A fazen-
i LUZ DE CIRURGIOENS
fazendo-fe eíte íitio do caminho dos Brafís de-
leitofo, & appetecido, aquelle pela falta de toda
a queyxa, eíle pelo intereííe dosmuytos comér-
cios , hoje taõ contrario à vida humana pela falta
do primeyro, pois as doenças, que em qualquer
navio íe achaõ, faõ tantas, & fazem-fe taõ mor-
taes pelo pouco conhecimento delias; me pare-
ceo muy to util pelas obfervações, que fiz, o bap-
tizallas, & darlhes o nome, até aqui íèm elle, &
capitulallas por febres catarraes malignas.
Nenhuma outra coufa heefta voz catarro
nofentido Hippocratico, mais que hum decú-
bito, ou depofiçaõ de algum humor mais acre em
algum lugar, ou parte determinada, & por razaõ
deita determinação debayxo do nome generico
decatarrosfecomprehendem diarrheas, diabe-
tes , & outras mais doenças Hippocraticas, co-
mo fe nos olhos, optalmias , & epiphoras, fe nos
ouvidos, furdezes, fe nos narizes, corizas, fe na
garganta, efquinencias, íe na pleura, pleurizes,
íè na cavidade do peyto empiemas, fe no bofe af-
thmas, fe no ventrículo,debilidades de cozimen-
to , fe nos inteftinos, variedades de curfos, & o
i] vulgarmente nefta carreyra dos Brafís,& índia
chamaõ Xiringoza , lenogeneronervofo rheu-
matifmos,& ultimamente fe nos artículos,& jun-
tas, dores artrithidas, os quaes achaques todos
EMBARCADIÇOS. 3
infpccie fe tem vulgarmente por catarros, deflu-
xoens, ou decúbitos de limpha tenue, ou ja feja
íoro brando, & infipido , ou acre, alpero, falino.
E iílo he propriamente catarro,nempe^hwmz. pre-
ternaturalalteraçaÕ, ou leíao das funções da na-
tureza, feita em qualquer parte pelo foro , mais
ou menos viciado. Catarro fe deriva do verbo
fluo.
Demais diíto a hypothefi dos antigos nos ca-
tarros, que da intemperie fria do eftomago, & da
quentura do fígado fe elevem às partes fuperio-
res copia de vapores, os quaes juntos em a cabe-
ça, como em alambique,de novo condeníados da
frialdade do cerebro,accumulados em licores,ou
aguas ferofas , depois pelos buracos dooíTo cri-
boiforme, como por nariz de lambique correm
fucceííi vãmente às partes inferiores, como nari-
zes, faces, olhos, ouvidos , afperaarteria , bo-
fes, ventrículo, inteílinos, &c. & deita forte fe
conftituem catarros internos, ou que pelos luga-
res intercutaneos externos, entre as membranas
extimas docraneo fe derive por toda aperiphe-
ria do corpo, & efpalhando-fe pelos artículos, &
juntas fe originaõ achaques fpecie, affeótos ar-
trithicos, & outros femelhantes; porque o efto-
mago pela intemperie fria, gera copia de phleg-
ma, & o fígado pela intemperie calida eftando
A z juat®
4 LUZ DE CIRURGIOENS
junto ao ventrículo refolve efta phlegma em fu-
mos , & vapores, os quaes exhalandoíe copiofa-
mente do ventrículo conftituíaõ catarros, & va-
porantes externos.
Mas efta theorica dos antigos fufficientemen-
te desfaz Vicencio Baronio traft. de Pleurogneu-
morita, Helmontio in eleganti traBatu catarrhormn
delirameta, Schneider o in operibus fuis de catarrhh
lib. ycap./\. pag. 176. &zy6. os quaes trazem,
& defendem fer falfo , & hypotetico o parecer,
que affirma que da cabeça, oucerebro decumbe
o foro para gerar catarros, mas que efte fe fegre-
ga dos vazos das artérias abertas a impulfo da fa-
culdade expultrix da maíTa do fangue tranfudan-
do pelas membranas, & pela variedade deftas,
pelas quaes fe faz efta tranfcolaçaõ , & pela va-
riedade do foro exclufo do fangue pelas artérias
feoriginaõ diverfas efpecies de catarros: a qual
doutrina fegue Schneider o ,èr Helmontio ■> Carlos
Tifo nas [nas obras de colluvie (erofa.
Mas naõ nos apartando do noflo intento, naò
íe devem culpar os antigos em dizerem que o fo-
ro era matéria dos catarros, & os modernos lim-
pha viciofajporque o íoro aglutinado dos antigos
(a quem Helmoncio chama látex aquofo, ou hu-
mor inútil) fallando rigorofamente , he a limpha
«los modernos, & defta forte huma, & outra o-
piniaõ
EMBARCA D1SS0S. 5

piniaõradicalmente convém, &íódifferem em


explicar a caufa, & modo de fe fazerem os catar-
ros à natureza dos vazos, & glandulas limphati-
cas, & ufodeites, ha bem pouco tempo conheci-
dos. Vejafe Silvio lib. i. inpraxi de Ufa tranjcola-
tione lymphtf.
O loro humas vezes he matéria dos catarros,
iminediate,apartado das artérias com o Tangue, 5c
comofeu movimento mais, ou menos impedi-
do, & efpalhado em os efpaços das partes molles,
& carnoias, & outras vezes, primário, &media-
te , intermediando a fua mudança em limpha , fe
tranfcola pelas glandulas conglomeratas, & fe
efpalha por differentes lugares , pelo que a mate
ria dos catarros,fallando rigorofamente,he a lim-
pha das glandulas conglomeratas tanto natural,
como preternatural,eípalhada copiofamente por
differentes partes.
As fontes donde nafee efta, naõ ha duvida (fup-
pofto,que as glandulas eílejaõ occupadas em eJa-
boralla, & diftribuílla ) fera malfado fangue ,&
como a mais frequentiílima textura das glan-
dulas tanto conglobatas , como conglomeratas
exiíta junto ao cerebro, &eílá a circunferência
deite tecido de glandulas mintidiífmas , como
moftra Melpighioin ferutinio vi/íertm, & da meí-
malorte a medulla do proprio cerebro , como
A 3 tara-
6 LUZ DE CIRURGIOENS
também os lugares vizinhos, & lubjacentes ao
mefmo cerebro, olhos, fauces, laringe, ouvidos,
&c. & finalmente ao pefcoço, & à alpera artéria
efteja pegada copia graviílima de corpos glan-
duloíos, & como quer, que a cabeça, & as partes
que fervem para a refpiraçaõ eftejaõ mais expof-
tas ás injurias , & lefoens doar ambiente , do que
outras quaefquer partes, he a razaõ ; porque to-
dos eftes affe&os, &queyxas catarraes ordina-
riamente moleftaõ a cabeça, & depois as partes
vizinhas, como fauces, alpera artéria, & ultima-
mente lá vem a reftagnarfe nos bofes,pey to,& na
fuacavidade, & confecutivãmente nas mais par-
tes inferiores, ifto he por razaÕ da caufa eficien-
te externa material.
Proximè eftaõ eftas partes difpoftas para os
affeétos fluxionarios, conforme a mayor, ou me-
nor expoíiçao da parte às injurias do ar externo,
& leias eftas, fegúdo a fua diverfidade conflituem
diverfo achaque in fpecie. Em quanto às membra-
nas de Scheneidero,eftas as divide em duas pitui-
tárias , huma anterior, & outra pofterior , (co-
mo confta do mefmo livro de catarrhis, em que
com toda a extençaõ, & largueza traz todas as
fuas differenças)pelas quaes a matéria dos catar-
ros, diz, fe transcola, & em o ultimo tomo dos
meímos catarros acreícenta a eftas, as glandulas,
como
EMBARCAD1SS0S. 7
como tapadouras, & coberturas dos vazos. Ha-
defe notar também,& com toda a attençaõ obfer-
var,que algus dizem fer neceííario ajuntar outras
circunftancias , para mais rectamente ferem ori-
gem das queyxas fluxionarias, & em primeyro
lugar como eftas mefmas membranas deSchinei-
dero, tenhaõ pegadas pela parte pofterior copia
de infinitas glandulas, das quaes como de fontes
fe tranfcola pelos vazos excretorios miúdos , que
furaõ eftas mefmas membranas; aífím correndo
naturalmente a limpha por eftas vias, fe vai aglu-
tinando , & pegando a ellas paulatinamente, de
forte que breviílimamente ficaõ padecendo a di-
verfidade in fpecie de achaques fluxionarios.
Por eftas glandulas, que eftaõ junto da cabe-
ça^ limpha,ou excluía por muyto abundante,ou
tranfcolada por viciofa, fe cõftituem os catarros,
ifto he, flue a limpha, ou copiofa, ou viciada, em
primeyro lugar pelas glandulas conglomeratas,
que eftaõ junto da cabeça, fauces, pefcoço,larin-
ge, afpera artéria, & de todas as outras mais par-
tes, &immediafeconftituecatarros. Donde àex-
clufaõ defta. limpha naõ íómente íobrevem Leíoes*
das funções naturaes deitas partes ; mas pelodif-
ferente vicio da limpha fobrevem também vá-
rios fymptomas.
E na verdade defta forte, & nefte íentido nun-
% LUZ DE CIRVRGIOENS
capódeobftar, nem ninguém duvidar, queefla
chimerica queyxa, que nefta carreira dos Brafis,
ôc índia,nefta,& em outra qualquer viagem,traz
taõ perturbados os conhecimentos dos Cirur-
gioens embarcadiíTos, que quando lá imaginaõ
encaminharfe para o acerto, entaõ fe precipitaõ
para o erro,fendo tanto à cufta dequem a padece,
que chegaõ a pagar a divida com perder a vida,
fendo efta remuneração muytas vezes violenta
por forçofiííima inércia de le conhecer a doença,
ninguém pode obftar, como digo, pertencer efta
gravidade de cabeça, eftas dores de lombos, t&
rins, alguma falta no movimento, & fenfibilida-
de de todo o corpo, pulfos febris, a lingua húmi-
da, em huns alguma toíTe, em outros alguns*ef-
carros, em outros alguma rouquidão, em outros
alguma debilidade de cozimento no eftamago,
por vicio de muy ta copia de limpha branda,& in-
íipida fluente a efta parte,em outros variedade de
curfos, & dores pelo ventre, por vicio da limpha
na qualidade faliva, & acre ; outros aperçoens de
inteftinos, a que vulgarmente neftas carreyras
chamao xiringoza por vicio da limpha exulce-
rante,& ultimamente outras variedades de dores
por todo o âmbito do corpo, por vicio da limpha
mordicante, & vellicante, ninguém digo pode
duvidar pertencer efta epidemica queyxa às te-
EMBARCADISSOS. 9

bres fluxionarias, & cacarraes, & pelos fympto-


mas de má qualidade, de que fe acompanha, ter
leus ameaços de malignidade.

CAPITULO SEGUNDO

Da parte afefta clefle morbo Epidemico.

POndo de parte a fonte de todos eíles fymp-


tomas, começaremos adiícorrer no fugei-
to, ou parte affeóta, que neíla queyxa coíluma
mortificarfe; em determinar eíla, mais fácil fe fa-
rá diílinguindo o fugeyto do morbo, o fugeito da
caufa, & em terceyro lugar o fugeyto dos fymp-
tortias; iílohe, que eíla doença como coftuma
moleftar de tres fortes, naõ ferá defacerto fe da
mefma maneyra lhe deícubrir tres partes affe-
(Stas areípeyto do morbo, ou febre; o fugeyto
defta me parece, & naõ ha duvida, fer a maífa do
fangue viciada em o movimento fermentativo
por vicio da limpha; aquella túrgida com os faes
preternaturaes fica fervindo de pabulo a eíles
movimentos febris, & cila mais viciofa, & mais
azeda faz ferver a maííado íangue, donde pro-
vem a eíla a inteníaõ de calor, mas naõ fempre
tão igual, que férmpre tenha a meíma força, por-
que eíla ordinariamente he mayor pelo difcurfo
'1 . j B da
IO LUZ[ DE C1RURGI0ENS
da tarde, razaô de então íenaõ impedir a abun-
dante tranfpiraçaõ da limpha, & licor ferofoda
limpha, & licor íerofo aos quafi invifiveis poros
do corpo,& como efta fe augmenta da movida al-
teraçaõ, copia , & acrimonia do ar la pela tarde,
quando o Sol declina, provem entam à fua tex-
tura^ conftituição o viciarfe em mayor, ou me-
nor qnalidadejeíía parece acaufade íentiríecom
mais, ou menos rigor a exacerbaçaõ da febre.
Arefpeyto do fugeito, ou parte affe&a da
caufa principal do morbo me parece Ter a limpha,
ou licor aquoTo de que trata Hclmontio, tranfco-
lado pelas glandulas, tanto conglobatas, como
conglomeratas, duas eípecies eftas a que per^n-
cem todas as mais, tirando asrenaes. Glandíplas
conglobatas íaõ aquellas, que tem a meíma c^m-
poíição,& Tubítacia, & naõ faõ divididas em par-
tículas,a íubftancia apparece lolida, & continua,
& a íuperficie he igual,& muyto leve,cada huma
deitas por miuda,& pequena que feja,tem fua ar-
téria, (vazo pelo qual entra o Tangue efpirituofo
na glandula j huma vea , que leva o Tangue de-
pois de tranícolado pela meíma glandula ; tem
também Teu vazo excretorio, oulimphatico, o
qual leva, & lança em algum lugar aquelle licor,
que a glandula apartou na tranícolaçaõ damaíía
doíangue: ha humas glandulas, que no centro
tem
EMBARCA DISSOS. n
tem huma cavidade, & huns vazos limphaticos,
os quaes fe encaminhaõ para o receptáculo do
chy lo, ou para o canal,ou para o canal commum,
a quem outros chamão duótocholidocho , como
diz Pctrus Dionyf na íua Anatomia huniam cor-
poris,demonflrationc $.departibwJangumcm puri-
ficantibus,pag. 187. & 188.
As glandulas conglomeratas fa5 asquefe
compõem de muytos corpos glandulofos juntos,
& cubertos com a mefma membrana, quaes fam
as glandulas falivaes, íudoraes, lacrymacs, &c.
qualquer deitas gladulas, além das artérias,veas,
& nervos, de que faõ compoítas, cada huma del-
ias tem feu vazo excretorio ramificado pela fua
própria fubílancia, pelo qual fe defcarregao al-
guns licores ferofos, & tranfcolados fe encami-
nhaõ adiverfas partes do corpo. Os antigos ti-
nhaoparafi, que as glandulas naõ tinham mais
ufo, & ferventia do que fervirem de íuftento à
diftribuiçaõ dos vazos; mas o contrario fe tem
hoje examinado > porque fe naõ foííe aílim, co-
nheceriaõ, como os modtrnos, que fe não pôde
dar nenhuma glandula, que pelalua natural dif-
pofiçaõ naõ aparte cm íi algum licor , da meíma
forma que lança hum crivo pelos feus buracos as
partículas da mefma maneyra, ou de figura ana-
loga aos buracos» Petrus Dionyf. loco fupra citat.
B 1 E

»i LtJZ DE CIRVRGIOENS
E nefta tranfcolaçaÕ , fegundo abca, ou má cjua-
Jidade do foro tranfcolado, fe gerãoas doenças
íluxionarias, de que vamos tratando.
A refpeyto dos fymptomas, que fe feguem
aos catarro*, ie varião pela particular variedade
das fluxoens; mas fallando genericamente, & de
oi dinai iojcoílumao preceder gravidade de cabe-
ça, torpor dos íentidos, & acções animaes , eí-
preguiçamentos, íobrevem íucceífivamente al-
gum frio, húas vezes fe percebe na fuperficie do
corpo,& outras vezes unicamente fe lentem fuás
horripilaçoens pelos lombos, & rins; ajunta-fe à
fluxãomaisdemafíada huma febriculalenta, Sc
cita com feus crecimentos lá pela tarde,& noy te,
& declina pela madrugada 5 & pelo diícurío da
tarde, & noy te , como a natureza eftá mais affli-
&a, fente-fe o corpo com mais quentura,& quan-
donaõ, íentemíe algumas dores, quemoleftão
o âmbito do corpo , & outros fymptomas diffe-
rentes, pela efpecial variedade de fluxoens; eílas
facilmente fe conhecem, principalmente quan-
do ha algúas excreçoens externas, como por na-
rizes , guélla, & outras femelhantes partes, & na
falta deitas,quando ha em alguma parte determi-
nada , dor mais, ou menos vellicante, commum-
mente pelo diícurío do dia mais branda, & pelo
da noy te cõ mais rigor. O mefmo traz JLttmulle-
ro no tomo 1 .fect. 1 x . Mas
EMBARCADISSOS. i$
Mas primeyro que tudo fe deve coriíiderar íe
a fluxao he caufada de limpha tenue, & acre; ou
fe da infipida, & craflaj porque fe pecca a limpha
tenue, acre, azeda, &íalgada, de taide, &de
noyte, quando os poros do corpo eftãomaisa-
bertos, afflige-ie o enfermo cõ lymptomas mais
graves, & ordinariamente nafluxaõ de limpha
tenue, poucas ou nenhumas vezes obfervey neí-
ta viagem excreção, que a natureza fizefle para
os emuntorios; pelo contrario, quando na fluxao
pecca a limpha craíTa, & vifcola, & a eíta junta-
mente íe aglutina o nutrimento proximo dege-
nerado em mucofidades, a todo o tempo íe coítu-
ma affligir o enfermo, & lança a natureza fora
variedades de íoro, pela variedade do traníito da
limpha, fazendo expellillo por inútil.
Em a fluxaõ quente íaõ os fymptomas mais
graves,& intenlos; pelo contrario em a fria, por-
que faõ mais brandos, & com alguma remiflaõ,
como v. g. quando ha rubor, ou vermelhidão de
rofto, ardor, tumor, & dor, que mais molefta
com mais quentura de corpo, como alguma ex-
coriaçao, & ultimamente fobrevem algíia exul-
ceraçao; moítraõ todos eítes fymptomas naicer
de foro tenue, & corrofivo, ou de limpha azeda,
& falgada; mas fe os taes fymptomas forem mais
brandos, ou totalmente faltarem, he a limpha
B 3 con-
i4 LufDE CIRURGIOENS
confecutivamente mais branda , & também le
vem mucofidades craífas, & excrementicias, 8c
vifcofas.
Precedendo cruezas de eftomago paíTaõ ef-
tasavicio de Tangue, & limpha, & íe conhece,
porque asdefluxoens continuam, &iílo,ouao
mefmo lugar recidivando nova queyxa, aonde a
parte aífedta, ou pelo íeu vigor viciado, ou esfor-
ço defigual, attrahe a fi com mais facilidade, &
recebida lança fora prõptamente a limpha vicia-
da , ou quando naõ, no mefmo lugar calie, & flue
de hum em outro, & aífím de novo íe manifeftaõ,
defcobrindo-fe affe&os fluxionarios de cruezas
de eílomago.
Finalmente que a digeítao do eílomago vicia-
da gera fluxoens nafcidas de vicio de limpha, &
fangue, ninguém o pôde duvidar, & antes que
paíle adiante, quero brevemente relatar as cir-
cunftancias, que Ettmullero no tomo i. parte i.
fec. 15.traz,por cuja caufa fe lede afanguiíícação
poryiciodochylo:a primeyrahe, quando o ali-
mento fe naõ digere, & attenua íufficientemente,
nem fe volatiza o que he neceífario no ventricu-
lo:a fegunda,quando fe não tinge re<5tamente pe-
la cólera; & a terceyra, & ultima, quando as par-
tes chylofas, & alimentícias fe naõ apartaõ das
efeorias por beneficio do fucco pancreatico, &
felleo,
EMBARCADISSOS. iy
felleo, vicios eftes porque fe perverte a boa bal-
famica dulccdo dochylo.
E que nafção de qualquer deftes vicios , &
cruezas de eílomago o viciarfe alimpha, & Tan-
gue , fe vé naõ fomente das ourinas, que comum-
mente faõ pállidas5& tenuesjmas também que os
enfermos ordinariamente fempre eftaó a cuípi-
nhar: iftoheoque também obfervou Hxfero/«
Herc. Med.pag. 30. &q naõ poucas vezes coftu-
ma com facilidade moverfe a natureza a fuar,
precedendo vicios de eftomago, como adiante
com mais largueza explicarey: veja-feHelmon-
tio traftat. catarrhorum delir cimenta, & traflat.
tuflis, & ajlbmatic.

DISPU
16

8fc$

DISPUTADA II.

DA CAUSA PRÓXIMA
immediata, mediata, &: remota

defte morbo Epidcmico.

CAPITULO PRIMEYRO

Da canja próxima immediata.

CAUSA próxima immediata deíla


doença fluxionaria he adefgraça, &
depravado movimento do Tangue,
ou o verdadeyro movimento, & cra-
fis do meímo Tangue , perdida a vehementes im-
pulTos das partículas íalivas, as quaes ob[uamhe-
terogeneitatemcumfanguinè non mijei bi/es, ficam
aptiífimas para excitarem hua preternatural Ter-
mentaçao, com que viciaíTe a maíTa do íangue,
quando lhe Talta a devida, & natural craíis lemi-
nal, própria, & peculiar a qualquer individuo.
Hade-Te notar, que qualquer creatura natu-
ralmente Te acha com huma determinada, & pe-
culiar maíTa de Tangue, a qual propriedade,& iin-
gular
EMBARCADIS50S. i>
fular craííis refulta da variedade da compoíiçaÕ
os particulares princípios naturaes, donde pro-
cedem muytas mifturas, & diveríidades de tem-
peramentos. Depende efta craííis da maíía do Tan-
gue iformaliter do habito dos particulares, ou
princípios naturaes alternativamente compo-
nentes da maíía do langue, & radicalmente, &
ejfeãive dos antecedetes progenitores, dos quaes
na concepção, & primeyra formatura do corpo
fe comunica ao feto por razaÕdoefpiritogene-
rante, & aííim como a difpoíiçaõ morbofa, &
craííis viciofa do fangue fe communica dospays,
também pela mefma razão íe ha de fuppor fer o
fundamento da craííis natural confecutivamente
procedido do femen, & do feu efpirito vital.
Pelo que viciada a craííis dofangue, & alte-
rada a devida proporção dos faes, fe vicia tam-
bém , & fe deprava a natural, & vital fermenta-
ção do fangue, vicia-fe a femelhança do chy lo, &
finalmente fujão, & manchao a maíía do íàngue
de íucco viciofo.Efta fermentaçaõ fe lede, & vi-
cia de muytos modos , & principalmente de tres;
em primeyro lugar com algum exceíTo, ou algu.
fervor perigofo , o que fe conhece pelo pulío
grande, accelerado,& frequente,ordinariamen-
te com grande quentura, & ardor no corpo; em
fegundo lugar com alguma falta, de que refultaõ
C nos
* I
18 ; LOZ DE CIRURGIOENS
nos pulfos pequenhez,raridade, & mais vigor,ou
menos vehemencia, falta no corpo de calor, per-
cepçam de grande diminuíçam de efpiritos, o
corpo torpido , & com propenfaõ a elpreguiça-
mcntos; ou em ultimo lugar fe vicia de vários
modos:naõ digo que íó neítes vicios da preterna-
tural fermentação damaíla do fangue haja eíla
variedade de modos, porque também os ha nos
hypocondriacos inveterados,fcorbuticos,nos ac-
cidentes hiftericos, & outros femelhantes, em os
quaes fe percebem muy tas defigualdades de pul-
fos.
Pela variedade deflas differenças na fermen-
tação da maíTa íanguinaria , coítumão nafcer
muy tas fenfiveis mudanças do corpo;porque ho-
ra eítá quente, hora frio, hora pallido, hora rubi-
cundo: a natureza, hora obra naturalmente per
alvi fecefjum , hora fe põem inerte às expurga-
ções quotidianas, & outros femelhantes fympto-
mas, em que entra aquelle quaíi fcifmatico,& pa-
recido achaque, a que neftas viagens chamaõ os
navegantes Xiringofa, tam fácil em lhe dar re-
medio, comodifficultofo em meter na cabeça a
quem lhes aílifte, que eíle per íi nam necefíita de
em primeyro lugar fe lhe applicar remedio; por-
que como fymptoma primeyro he neceífario cu-
rar a doença.
Efe
EMBARCADISSOS.
E fe diíler que achey lugeito, ou fugeitos taõ
amarrados a eíta formidável buzaõ, &iílo fen-
do o feu cargo,& occupaçaõ muyto differente da
aííiítencia dos enfermos, entendo naÕ direy mais
do que experimentey ; que lie dura penfam de
hum pobre Medico o eftar expofto á cenfura de
todos, pois quando mais fe applica para o acerto
do remedio na efperança da melhora, entaõ bal-
buciente fe intimida, quando ouve a quem ne-
nhuma razão tem para o faber, fe faça tal mezi-
nha, pois o fabe por experiencia , valendo mais
neíle cafo a ignorante lingua dequemfem dií-
curfo bacharella, do que oracionavel methodo
de quem affeéhioío conjeétura.
Dizem os praguentos, que a Xiriitgofa nam
he outracoula que huma aperçao dos intejlims, &
iaxidant do mufculo efphinter: dizem he cauíada
de muyta quentura,& immundicie pelo máo tra-
to, que os íoldados, & gente embarcadiíTa da ao
individuo, & mandão com cuidadofo ahinco fa-i
zerhumas mechas , aque vulgarmente chamão
tacos,compoftas de vários ingredientes, como
polvora, alvayade, agua rofada, pannos, ou efto-
pas, & finalmente muyta mais variedade de me-
chadas, que não ponho aqui, por naõ caufar ao
Leitor enfado; & entendendo poderáõ remediar
aqueyxa deita forte, porque aííim fuccedeo a
C i Fu-
3 zzz '
io LUZTDE C1RURGI0ENS
Fulano em Moçambique, & a Sicrano vindo em
outra viagem , experimentam tanto pelo con-
trario, &euobfervei neíta jornada em efta fra-
gata, em que vou embarcado deN. Senhora dos
Fétaes, & na de N. Senhora dos Prazeres , a que
fuy aííiílir, a alguns doentes , aonde durou o fuc-
ceííivo no morrer , em quanto naõ mandei por
termo atalmethodo no curar, naõ havendo ha
tantos annos quem attendeííe, que eíte fympto-
mataõ leu prejudicial nafcia da cõtinuada quen-
tura febril , & foro acre cahido nos inteftinos, &
que do não acodir-le a tempo com o remedio, re-
íultava avellicante mordicaçaõ dosmelmos,&
conlecutivamente pela offenfa das fibras crecia a
febre, augmentando-fe a doença, & com a admi-
niftraçaõdapolvora,eramayor nosinteftinos a
quentura, & a abertura, & finalmente malignan-
do-fe a queyxa, miferavelmente efpiravão os do-
entes,fem fe lhes applicar remedio algú dos gran-
des coaduno ao tal achaque, fervindo de incétivo
mayor para a Tua ignorancia a rebeldia, com que
jaótanciofos fe vangloream no plauíivel da lua
mezinha,attribuindoo com ella o não farar,a que
o enfermo tinha que morrer, & que a demafiada
podridão, que lhe dá nas tripas, era o incentivo
do acabar; naõ advertindo, que ofucceílivo da
muyta quentura dos medicamentos poftos na
EMBARCADISSOS. ~ Fi
via continuados havia fazer certiífimamente cila
mefma agravação; demais que íe por algúa caufa
occafional ouveíTe nos inteílinos carne malefi-
ciada, fem duvida nenhuma íe gangrenariaõ, & a
breve tempo eípirariaõ.
Mas he taõ cego o entendimento humano5que
tendo acçaõ para conhecer, o que he melhor, íe
deyxa depravadamente levar do appetitepara a
operação do mais ruim; mas naÕ me admira efta
incompatibilidade,quando confidero,que fazen-
do-nos Deos no principio do mundo, ainda que
com toda a perfeyção, Faciamm hominem a d ima-
ginem , & fimilttudmem nojlram \ & com toda a
bondade, Vidit Deuscunfta, qu<sfeccraty &erant
•valdebona-i nos fez de hum barro tam peííimo, &
taõ terreno,que efte inclinando-fe ao íeu natural,
naõ he maravilha ponha de parte, o que lhe eftà
melhor por infallivel acçaõ do entendimento ,&
fe abrace com o peyor por depravado appetite da
vontade, & mais quando o fim he para o recupe-
rar da íandej mas he taõ proprio o defvanecimen-
to nos homens, que ate por teyma fazem capri-
cho de perder a vida.
Agora me lembraõ aquellas tres propofi-
çoens, que Pytagoras tinha efculpido à porta de
lua academia;diziaõ ellas. Todo aquelle que naõ
labe, o que ha de laber, he como bruto entreos
C 3 ho-
t

II - fbzf)E CIRURGIOENS
homens. Aquelle que fabe mais do que ha de ía-
ber, he como homem entre os brutos. E aquelle
que fabe tudo o que he neceífario faber, he como
homem entre os deofes. E perguntara eu fe podia
defcobriríe homem , que pudeílem os deoíes ad-
mittillo à fociedade; o que fey he, que Pytagoras
janaquelle tempo fallava com muy ta gente dei-
tas eras; que ferve de abono para o credito de
quem he douto,o faber fazer os feus prognofticos
com certeza. Mas pondo de parte tudo o que íe
apartadonoffo intento , digo que alimpha, ou
foro de fua própria natureza nam fe move com
impeto efpontaneo, fenaõ pela razaõ, que tem
de gravidade, & fluída, & então he mais rapida a
violência do decúbito, quando a limpha he mais
copiofa, ou mais, ou menos viciada.

CAPITULO SEGUNDO

Da caufa mediata.

ACaufà próxima mediata das febres fluxio-


narias, he o chylo menos temperado, &
perdida a fua balíamica dulcedo íe muda em au-
fteridade , & azedos no ventrículo, os quaes cir-
culando pelas íiias vias fe augmentaõ, & impe-
didas as íuas acções mifturando-fe com as partí-
culas
EMBARCADISSOS. 23
cuias alcalis, &olcolas do langue, occafionão
a preternatural fermentaçam febril do proprio
Tangue.
Para mais clareza deílascoufas ha de fe no-
tar, que em primeyro lugar fe hade verdadeyra-
mente conhecer a lefaõ da parte affeóta,& a lefaõ
da privativa digeílao; iílo he, quando algua par-
te íemoleíta, ou por violência externa, ou por
alguma caufa interna, de tal forte, que íe debili-
te, & enfraqueça o elpirito iníito, por eíla cau-
fa faltando a digeílão da tal parte fe gerem as dif-
ferenças dos catarros, & doenças fluxionarias.
Vej a-fe Helmontio traãat. catarrhorum delira-
menta\ Petrm Joannes Fáber tn Jua Pathologia.
Entre outras coufas, que coftumaõ viciar a
limpha, a principal he a viciada digeílao do efto-
mago, quando eftenam pode digerir, & cozer
o alimento, ou naõ pode fazer perfeyto cozimen-
to por qualquer faltadas circunftancias atrazre-
feridas na Diíputada primeyra, cap. 2. o ventrí-
culo nefte caíocolliqua mais os alimetos do que
os coíe,de que procede fazer o chylo mais aquo-
ío, & viciofamente azedo,ou vicioíamente íalga-
do conforme as differentes qualidades do ali-
mento, de que fe ufa, &comoouío dos alimen-
tos do mar naõ fejamais quefecco, & falgado,
por infallivcl confequencia fe verifica ha de re-
fultar
24 DE CTRURGIOENS
faltar do .ca cozimento o chylo vicioTamente Tal-
gado, & viciofamcnte azedo, donde procede na
geração, & tranfmutaçao do chylo em Tangue, o
elaborar-fe efte mais aquofo, mais azedo,& mais
íalgado, como também necefíariamente íe vicia
a limpha nas glandulas elaborada.
Donde daacrimonia do Tangue, ou proce-
dem , & acompanhaõ rouquidoens, toííes, algu-
mas excreções, dores de cabeça, pezo grave de
todo o corpo, amargores de boca, limpha vicio-
fa, & glutinola nas mefmas,dores de tripas, & al-
gumas vezes da demafiada, & continuada quen-
tura febril, & acrimonia do íangue ferolo le laxa
o muTculo Tphinter, & Te abrem os inteftinos por
reTecaçaõ de fibras, & debilidade das faculdades
naturaes , & muytas vezes o Tangue TeroTo Te
põem taõ TeroTo, & rebelde ao cozimento, que la
vem por ultimo a malignarTe a queyxa, & outros
muy tos Tymptomas, que naÕ relato, por me pa-
recer me faltará o tempo, nafcidos da acrimo-
nia da limpha, de que os antigos conjeétural-
mente entenderão, ou fâlfum fundamentuin, nal-
ciao eftas queyxas das deítilações da cabeça.
lfto tudo Te comprova, explicando os Tymp-
tomas deitas doenças com mais clareza, (que lie
o que affeítuoTo delejo, & em que íe eftriba efte
meu laborioTo cuydado, para que poíTa o meu a-
trevi-
EMBARCA D ISSOÒ. i?
trevimetito livrarfe em parte da cenfura de arro-
jado, ) em quanto a alguas horripilações, & frios
com que os doentes cahem, me parece q pertur-
bada a devida fermentaçaõ damaíía do Tangue,
osfaesnam operão como devem, nem as partes
oleofas podem conceber calor debito do movi-
mento fermentativo, de que procede na falta de
calor, fucceder frio com a vellicaçam da limpha
nas partes membranofas.
Em quanto à copia do foro, quefe gera, de
que refultaõ os taÕ continuados íuores,que os en-
fermos na declinação da doença padecem, he ad-
mirável final de íer o acido , & o acre do foro o
faétor deita defcompoftura; porque, que le não
ha de efperar de hum pouco de foro acido,mais q
ao mefmo tempo, que coalha as partes ballami-
cas, & oleofas do fangue, começar a diííolver as
partes aquofas ? ifto le vó, mechanico modo loquen-
do, lançado hum pouco de çumo de limão azedo
em leyte, (mifto efte mais íinonimo a malfa do
fangue,) que ao mefmo paíío, que coalha as par-
tículas cafeofas do leyte, íe defata em diífoluções
de foro.
A limpha fermentando vitiofe de tal forte,
que tenha o predomínio , he authora de todos os
fymptomas; mas vencida do lai volátil, paula-
tinamente fe vai deperdendo, de forte que os ex-
D ceíTos
t6 IXJZ DE CiRURGlOENS
ceíTos antecedentes de frio, fe mudaõ em eleva-
das eíluações de quentura,pelo veloz movimento
da fermentaçaõ das partes oleofas da maíTa do
langue, com predomínio ao lai fixo; dura eíla ate
que pela veloz circulação ,& agitaçam de quen-
tura , (pois nas febres circula o langue com mais
vehemenciado coftumado) íe acquirem acjuelles
tres requiíitos, que Thomas Wíllis trata na fua
Diatriba Pharmaceutica Racional fcc. 5. cap. 1. q
faõ circulaçaÕ no langue rapida; íegunda, que
haja na maíTa do langue may tas partículas aquo-
fas,aque os Doutoreschamão látex aquofo, &
queeftas eílejao diífolutas, & capazes de fe fe-
gregarem do fangue; & finalmente aterceyra,
que os poros das membranas das veas, & glându-
las fe abram, de lorte que dem fácil fahidaaefta
excreção; porque precipitadas as fezes, ou o aci-
do viciolo mudado infalfinntertium, pelo aldia*
li íe embebe no loro, & aííim fegregado íahe nos
repetidos luores, que eftes enfermos padecem.
Depois deita lida íe naõ fe diminue a quentu-
ra da fermentação preternatural febril, relulta o
eícandeícerfc o enfermo tanto por debayxo, que
hetieceflario acodirlhe, &temperar-fe com re-
medios frefeos, & fe o corpo fica quieto, & a fer-
mentaçaõ palliada, nada lente o doente,mais que
iiuma imbecillidade, & fraqueza pelaconfulaõ,
&
EMBARCA D ISSuò. 17
lc refoiução dos efpiritós animaes, & vitaes; da-
qui procede o débil vigor do corpo, & daqui o
naõ poderem-fe paííar as noytes com quietação,
nem dormir com aquelle foíTego igual às fuas
melhoras.
Em quanto a outros fugeytos /;/ fpecie ícorbu-
ticos tiveraõ fuas defluxões acres, & corrofivas
por vicio do eftomago, & depois defte viciar to-
daamaífado fangue, fe vicia também a limpha,
falival, & ficou taõ acre, corroíiva, acida, & íaU
gada, que lhes corroeo as fibras das gengivas,
tornando-as flacidas. Dode a limpha mal afteóta,
tanto das glandulas conglobatas, como das con-
glomeratas, & de outras quaefquer glandulas,he
caufadas febres fluxionarias , mais, ou menos
intcnías, por vicio da mefma mifturada com o
fangue, de que reíulta o turbarfe a fermentaçaõ,
Sc diíporfe para huma preternatural eífervefcen-
cia.
Toda a fluxao por razaõ do modo do molef-
tar fe pode dividir em accidental, & habitual: ac-
cidental he aquella, que deimprovifo, &quafi
de repente íobrevem àparte, & mortifica o elpi-
rito infito da mefma, ficando facilmente deitrui-
da, de que refultaõ rugidos, toífes, febres, &c.
porque a limpha,que naturalmente cahe nas fau-
ces, fe muda a lua natureza, fe fizer acre, & aze-
D i da,
T

i8 LUZ DE CIRURGIOENS
da, & com a lua acrimonia irritar as mefmas fau-
ces com dor, então fefegue mais efluxo dalim-
pha, daqui em femelhante calo fobrevem toííe
catarral.
A habitual he aquella, que muytas vezes, 8c
com mais gravame cahe em o meímo lugar,
& fucceíhvamente debilita o efpirito infito,& re-
petida qualquer leve occafiaõ torna a fobrevir,&
hora por vicio hereditário, hora por notável def-
compoíturada malfado Tangue , radicado firme-
mente na parte, he motivo, &caufa da doença.
O porque chamão a fluxão, que molefta mais
vezes,habitual,ou he por eftar aquella parte,que
hecoftumada aeftarlefa, pervertida a fuatem-
perie por falta do efpirito infito , dequerefulta
laxaremfe as fibras, & por ilío lhe fica fácil a re-
cepção mais copiofadelimpha, a que fe acref-
centa oviciarfe a devida organização das glan-
dulas, as quaes inchaõ, & le fazem túmidas, de
que refulta o lançarem de fi com mais facilidade,
&modopreternatural alimpha. Ou he, porque
fica nas glandulas, & lugares mais, ou menos vi-
zinhos fermento preternatural, nafeidode fe naõ
elaborar perfey ta a digeítaõ, a qual mais, ou me-
nos perturbada, & irritandoeítas fenfiveis partes
provoca, & fazfobrevir a fluxão mais vezes ao
melmo lugar, naõ de outra lorte que hum tal, ou
qual

i
EMBARCAL :

qual fermento deyxado em algum lugar ujcera-


do,faz fobrevir mais vezes,& inflammar a ferida;
aífim da mefma forte o fermento preternatural a-
cido, acre, deyxado em alguma parte faz repetir
mais vezes a eftaasquafi continuas defluxoens;
& ifto, como ja diffe, ou pelo esforço da parte eí-
tar lefo, & defigual, (como bellamente explica
Helmontio,) ou por caufa da fua froxidao,ou por
alguma falta de efpirito inílto, & por iílolelaa
digeftaõ.
A fluxao que vem junta com excreção de al-
guma matéria fenfivel,íe reduz a duas differentes
formas de fubílancia de limpha,hora lie ténue,&
aquoía, mais, ou menos acre, hora craíía, & vif-
cida; aquella lhe chamao fluxão tenue,íalgada,<Sc
acre, efla cozida, & craífa; depois íe devem dif-
tinguir os tempos doparoxiímo catarral, como
no principio de toda a fluxao coíluma vir a maté-
ria mais, ou menos tenue , ou crua, falgada, & a~
cre, & fucceífrvamente fae crafla, & cozida, íe a
limphade algua forte íae fincera limpha, a mef-
ma conflitue catarro tenue, ou cru por razaõ da
limpha; mas quando dura por mais tempo a co-
pia de limpha, pela irritaçaõ fe laxa a parte, &
fucceííivãmente íe exaípera, & entaõ agregando
a íi onutrimento proprio da parte lefa , muda a
limpha, que de antes era tenue, em craíía, de a-
cre
D 3
\

V * " LI-7. DE CIRURGTOENS


crc em temperada, doce, & quafi iníipida, 8c
ifto fe faz em o eftado do paroxifmo, & a iílo lhe
eoftumaõ chamar vulgarmente matéria cozida,
& incraíTada, com aexpulfaõ da qual, & com a
reftituiçaõ efpontanea da parte leia fe grangea a
declinaçaõ dos paroxiímos.
Finalmente a refpey to da qualidade damef-
ma limpha derramada fe ha de obíervar, que ho-
ra he acre, & acida, hora íalgada,mais, ou menos
corrofiva , com acrimonia da qual fe coftunuo
oííender as partes membranofas, & muy tas vezes
efcoriar, de que refulta logo caufar dor, & ficar
rubicundo, & padecer algumas vezes alguma in-
flammaçaõ, como v. g. na optalmia,& epiphora,
palpavelmenteíe eftá vendo,& hora ultimamen-
te,& com mais frequencia neítas partes he a lim-
pha branda, iníipida, &doce.
Deites fymptomas morbofos da fluxam, co-
mo de dor, vermelhidão, & inflammaçaõ, &c. fe
ha de notar a diíFerença, que ha entre o catarro, a
que chamao fluxaõ quente, & fluxaõ fria; porque
naquellas fluxoensde limpha iníipida, &doce,
preternaturalmente craíla, derramada com mais
abundancia, ou aquella, que logo íe lhe ajunta
alguma excreção mucofa, &copioía, he a que
vulgarmente fe chama fluxaõ fria,& pelo contra-
rio, naquellas da limpha acre, & corrofiva por
EMBARCADISSOÒ. 31
caufada excitada inflãmaçaõ das partes afíedtas
de fluxaõ quente.
O mefmo que ate aqui tenho dito, & expli-
cado das rigoroías fluxoens, fe pôde também ve-
rificar das fluxoes,a que chamaõ menos próprias*
que íaõ da infufaõ do foro com o Tangue pelas ar-
térias mudado em limpha, hora tmmediate, hora
mediate, & por irritação de fibras,& mais, ou me-
nos ajuntamento de foro na parte, tanto por lefaõ
mais, ou menos fenfivel, quanto de foro mais,ou
menos infi pido, ou acre fe coftuma fazer a altera-
ção, & lefaõ das funções naturaes,como também
do demafiado frio de alguma parte, depois de al-
gum íuor íe percebe em varias partes do corpo
muículofas, braços, pernas, & outras femelhan-
tes , alguma dor mais, ou menos fenfivel, junta
com fua porçaõ de fluxaõ; porque de repente
claufos os poros , aquillo q fe havia de exalar por
iníenfivel tranfpiraçaõ, íe infpifía, & coagula era
limpha acre, de que fobrevem aos efpaços, que
apertão os mufculos, por irritação da parte, tal
variedade de perturbações morbofas; da meíma
forte dairritaçaõdoforofcorbutico feyta em al-
gum lugar, efpecialmente em os pés, feguindo-fe
alteraçam com dor, caufa dores mordicantes,
principalmente noóturnas, que vulgarmente íe
fvttribue a fluxão, fe houver irritaçaõ, & dor dos
<

31 LUZ DE CIRURGIOENS
dentes, & depois refultar tumor ferofo nafcido
em o apertamento das fibras das faces, da mefma
iorteleattribuea fluxaõ; fedo foro mais acre ir-
4
ritante da pleura,lhe chamao pleuriz notha, naí-
cidode fluxao,& aííim de todas as mais partes.
Eítas fluxoens menos próprias, ou nothas tem
as mefmas cauías,que acima tenho dito das rigo-
rofas; porque em quanto a caufa material lie o
foro, ou immediaie, circulando com o Tangue nas
artérias, ou mediais, mudado primeyro em lim-
pha, em quanto a efficiente occafional, he a leíàÕ
irritada, ou por occafiaõ externa, principalmen-
te por frio da parte,v. g. depois de íuar,ou por re-
frigeração do mefmo loro, & matéria da limpha
acre, azeda, Sc falgada, vellicante das partes ner-
vofas, & membranofas, ou em o mal habitual do
fermento viciofo, pela má digeílaõ privativa do
efpiritoinfito.
Neftas defluxoens catarraes , as mefmas
glandulas pelas quaes fefaz otranfito, &paíía-
gem de limpha viciada , naõ íe oíFendem leve-
mente , porque o feu vigor íe laxa com demaíia,
& eílas mefmas fe põem promptas a lançarem de
fiem mayor quantidade limpha viciada , & do
impulfo das glandulas leias para outras glandu-
las, refulta a moleftiade húa, & outra parte com
facilidade, & mais vezes por cauía interna nafci-
EMBARCADISm: — 35
da de flaxaõ. Finalmente pela variedade das par-
tes afíe&as, em que fe faz a effufaõ, & errada dif-
tribuíçaõ de limpha, fe coítuma chamar a fluxao
por vários, & efpeciaes nomes ; porque a que ía-
he pelos narizes, &moleíta as partes vizinhas,
lhe chamao corifa\ a que molefta os olhos,epipho-
ra; a que a laringe, rouquidão; & a que ultima-
mente as mais partes em geral, rheumatifmo, &c.
Naõ ío neíles epidemicos catarros coftuma
haver febre, também em os mais catarros, & eíta
febre hora mais, ou menos lenta, hora mais, ou
menosintenfa, fegundo o ajuntamento demais,
ou menos vicio de limpha, miíturado com oían-
guenaveaaxillar elquerda, ordinariamente das
glandulas conglobatas, de que também íe excita
a mayor, ou menor effervefcencia febril, princi-
palmente la pela tarde, & noy te.

CAPITULO TERCEYRO

Da caufa remota.
r
r -• - . • 1 ' , f r * r *^ (1

PAra explicar,& dizer, qual neíte cafo, Sc cli-


ma feja a caufa remota, he neceííario pri-
meyrofaber o trato, qosmaritimos daõ ao indi-
viduo , o habito da natureza,& finalmente o bem
regido das coufasnaõ naturaes: o comer em pri-
E meyro
J p
if^^^S^ECIRURGIOENS
meyro lugar, que cá em o mar fe gaita, naõ he
outro mais , que bifcouto, bacalhao, feijoens,
carnes lalgadas,arroz, & vinho, mantimentos
todos, que os que naõ laõ lalgados, naõ fe podem
fazer íem azeyte, & aííim le hus faõ nocivos por
lalinos, os outros também o faõ por oleofos, qua-
lidades eítas pouco convenientes às boas digef-
toens do eítomago: a agua he tam roim , que he
milagre o beber-íe pelo demafiado cheiro, que
acquire nas vaíílhas, por paííar muy tas vezes leis
mezes, oy to, & às vezes dez mezes, que eítá me-
tida em os toneis,& pipas, & eítas ordinariamen-
te ferem de madeira nova, ou concertadas de no-
vo, & o peyorquehe, q nem deílahaalufficien-
te, & fe põem em termos alguns Toldados de be-
berem a própria ourina, como bebem, & eu tef*
temunhey , circunítancias pouco conducentes
paraadigeítaõ do ventrículo.
O ar baila para fer nocivo, o fer humas vezes
demaíiadamente quente, & outras exceffivamen-
tefriojdaquelle reíulta o adelgaçar, &colliquar
de tal forte a maífa do fangue, que a chega a def-
compor pela velocidade, com que circula, fazen-
do-fe pela agitação da quentura febril, o quede
antes por íoífegada lograva huma boa temperie
pelafua devida fermentação, & deita refulta ul-
timamente o inlpiílar de tal forte por conftipa^
dos

»
EMBARCADISSOS.
dos os poros, o que le havia de exalar por itifen-
íível tranfpiraçaõ , cjue coagulado occafiona a
variedade de fluxoens, que com tanta moleftia
padecem ; & outras vezes íe experimenta nefta
viagem,quafí ao mefmo tempo,frio,& quentura,
& ar com qualidades tão contrarias, nunca pode
fervir para a boa confervação da íaude.
As camas faõ os taboados da náo, íem fe def-
pirem, amanhecem muytas vezes nadando em a-
gua , que entra pelas portinholas da artelharia
da cuberta de bayxo; íe fe fechaÕ, arde a cuberta
em fogo, & morrem com quentura, pelo pouco
ar, com que fe ventila; fe fe abrem, entra tanta a-
gua, que quando naõ morrão affogados,recebera
defta frialdade muy ta difpofiçaõ para enferma-
rem.
Oexercicio hetampouco como odeftrito
pequeno dehumanáo, &eítomagos tal vez que
habituados em terra a comerem hum paõ de 1110-
nição, avezados a Campanhas, & exercícios mi-
litares , & cá embarcados, cheyos com os come-
res taõ indigeftos, tanto na quantidade, como na
qualidade, iílo com pouco exercicio, he circun-
ítancia, que naõ pôde deyxar de gravada a natu-
reza difparar em variedade de achaques, & por-
fe inerte às expurgaçoens quotidianas; com que
fallando breviflimamen.te,& com mais clareza,ar
E i no-
36 LUZ DE C1RVRG10ENS
nocivo, alimentos roins, aguas com máo cheyro^
& com difpofiçaõ de podres, más camas, & final-
mente trato de corpo roim , naÕ deyxão de gerar
pelas más digeítôes , que fe fazem no ventrículo,
ou produzir,tamquam in effeãtm fècundartum^hu
acido acre, ou falgado, o qual molefta, & mordi-
ca conforme a fua mayor, ou menor acrimonia as
funçoens naturaes daquella parte, que offende, a
que chamaõ affeóto catarral, como ja atraz fica
dito com mais largueza.
E he de advertir que nem o confiderar íer efte
limitado, & único tratado unicamente dirigido,
naõ fó em primeyro lugar ao verdadeyro metho.
do curativo das doenças epidemicas, de que a
gente marítima neítas viagens adoece; mavS tam-
bém emfegundo o verfe os Cirurgioens,que coí-
tumaõ embarcarfe para o curativo delias,podem
acquirir mais alguma luz para a melhora do bom
fucceíTo, & para eftes fer efcufado tratar de re-
ferir opinioens,& comentar textos, mais que em
methodo romancifta darlhes a entender o affedto
com que os defejo íervir, & a vontade com que
anhelo moftrarlhes, o que cheguey a obfervar;
nem por iíTo digo heide deyxar de dizer, que nef-
te cafo le nam deve excluir a cauía efficiente
formal, a qual he o efpirito impetofaciente, ou
por outras palavras, a natureza, como que he
prin-
EMBARCAI
principio do mo vimento, & lentimento, dizem,
os Filofofos,por caula defta irritação catarral de
limpha, que tenho dito.
As caufas externas, que irritao as partes, 8c
lugares glanduloíos,& que daõ, & fervem de oc-
cafiaõ às fluxoens, laõ efpecialmente as injurias
doar, por razaõ do qual acontecem os catarros
epidemicos neftas viagés,& eftes huns fem ferem
malignos, & outros com malignidade, conforme
a qualidade da limpha viciada,& da mefma caufa
obíervou Petrusjoannes Fáber nafcer aquella ce-
lebre epidemia, & conftituiçaõ de febres catar-
raes malignas, que tanto moleftou aos do feu
tempo.
Eftes epidemicos catarros nafcem,& trazem
a fua origem da infpiração do ar por dous mo-
dos : ou o ar que le infpira por viciado, mancha o
foro ,& a limpha, &daoccafiaõ àfua preterna-
tural fermentaçaõ; ou o melmo ar irrita os luga-
res por onde fe infpira, como narizes, fauces, &c.
& em havendo fermento maligno, la tem as do-
enças feus laivos de contagiolàs ; o fundamento
deitas confifte em hum tal fermento maligno eí-
pirituolo , iftohe, que pela acrimonia maligna
íummamente aótiva intermediando-fe o leu in-
teftino, vermicular , & fermentativo movimento
exifte multiplicável em matéria apta; mas por
cauía
E 3
3S LUZ DE CIRURGIOENS
cauía d.i volátil, & efpirituofa natureza commu-
nicavel aos noffos efpiritos, lera ter algum impe-
dimento aótivo fica lendo penetrável, &difFufí-
vel à parte mais diftante, o qual à maneyra de ar,
ou cheyro, com diminuta formalidade junto aos
noflos efpiritos,fe multiplica por modo de aflimi-
laçaõ por meyo dos eflúvios efpirituofos,& aífim
enferma o faõ,fermentandofe-lhe a malía do fati-
gue , ou diípondofe-lhe por corrofiva para a ma-
lignidade. Da mefma forte, que hum pequeno
de cheyro de fermento pode muytas vezes tur-
bar, & perturbar hum grande almazem de to-
neis de qualquer licor fermentavel,como iníinua
onoíTo Ettmulero tom. z. feft 15. cap. 4. aflim da
meíma forte hum pequeno demialma, ou vicio
contagiofo, muytas vezes por hú poder fermen-
tativo,he capaz de fazer enfermar muytos viven-
tes.
Como efte contagio,ou eíte ar viciado febril,
tranfpirado dos corpos dos doentes foldados pela
pouca ventilaçaõ , que tem neftas naos , pelos
commodos delles ferem as cubertas de bayxo,lu-
gar muy to abaífadiço , coítuma exalar-íe junto
comafubftanciadoeípiritoinfluo,que também
fe exala, eíle em primeyro lugar pela noíía infpi-
raçao fe aglutina ao noíTo balfamo vital, & eípi-
ritual,que he o proprio eíte dos corpos humanos,
&
EMBARCADISSOS. 39

& aíTim fe comunica a própria queyxa fuccefliva-


mente.
Por caufadeílebalfamo contagiofo fepegaõ
as doenças contagiofas mais aos parentesjporque
entre eftes ha huma finonima femelhançade eí-
pirito vital, ou de raiz balfamica,porcaufada
qual com mais facilidade fe pega a doença mais
a eftes , do que aos outros homens. Ettmulevo
tom. 2.
O contagio fe pega de dous modos, hora por
conta&o corporal, hora em partes diftantes: pe-
gafe por contado corporal, ou hnmedtate, pelo
meímo ajuntamento do corpo faõ, ou doente; ou
mediate, intermediando certa ifca, que ferve de
incentivo para o contagio, como v. g. por meyo
dos vertidos, alimentos, & outras coufas feme-
lhantes, em partes diftantes, virtualiter, fe cof-
tuma pegar o contagio, mediando o ar pela infpi-
raçaõ.
Efte contagio virtual, que íe engole com o
ar, as mais das vezes conflitue febre maligna, &
peftilente; efte coftuma inficionar, não ló o fan-
gue, & os mefmos efpiritos, quecirculaõ pelos
bofes; mas também graviííimamente o orifício
fuperior do ventrículo: que immediate fe moleíle
o eítomago, fe moftrados taes enfermos inficio-
nados; porque fe a eftes fe lhes perguta fe fentem
algua
LUZ DE CIRURGIOENS
àlgíia alteraçaõ, de nenhua fe queyxaõ mais, que
da moleftia do ventrículo , leguindo-le a efta
muytas,ouas mais das veze< naufea,& nifto moí-
tra querer o eftomago lançar fora o fermento
maligno; porémfeamaíTa íanguinarianaõlèal-
terar com algum vicio maligno, ( diz Lindano)
muy to menos gravada, & diípofta efta a nature-
za a eftas expurgações.
Muy tas vezes lem vicio epidemico de ar po-
de por outra razaõ dar occaíiaõ , & ler caufa de
fluxoens o ar viciofo, (como diz Ettmulero,) inl-
pirado pelos que trabalhaõ, & tomaõ fumos a-
cres demetaes, & azougues; deftes o acido, &
particulas acres , & azedas fazem eftimular as
membranas dos narizes,fauces,laringe,& a gran-
de copia de glandulas, que ficaõ debayxo deftas
partes, por huma continua irritaçaÕ, que fazen-
do encolher as fibras, gera huma copiofa excre-
ção de limpha,& muy tas vezes íe viciará efta de
tal forte, que acquira huma acrimonia acida, ou
por outro modo huma qualidade viciada.
Da mefma lorte, que o trio externo, median-
do o ar, & infpirado, lede as partes por onde en-
tra , & as dil põem para as fluxões catarraesjcomo
também da inclemencia do ar autunal, do inver-
no , ou do mar, nos tornamos roucos, ou padece-
mos toíTeporinfpiraçaõ defte arextrinfeco irri-
tante
EMBARCADISSOS. 41
tante dos lugares por onde paíía, fazendo reful-
tar na própria limpha huma qualidade viciada,
naõ de outra forte, que em quem efpirra íe irritaõ
com a acrimonia as membranas dos narizes , &
os vazos limphaticos excretorios cõ tanto ah in-
ço, que correndo copia de limpha, depois fe traí-
rnuta em mucoíidades craífas.
Eítalefaõ, 8c irritaçaõ muytas vezes íe dif-
põem de tal íorte,que também o alimento, & nu-
trimento da parte lefa alterado vicofamente, íe
faz inepto para a nutrição de tal forte, que naõ
poucas vezes fe eftá vendo fahir mifturado com a
limpha em fórma de muco craífo, &eípeíTo de
varias cores, & confiftencias. Também muytas
vezes o frio externo depois de hua grande eíiua-
çaõ , 8c canfaço do corpo, ou feyto hum grande
exercício a inclemências do Sol, difpõem prom-
tiífímamente matéria paradiffluxoens, & catar-
ros ; porque entaõ de repente para a infenfivel
tranfpiraçao, que fe fazia pelos poros, & claufos
eftes fe infpiffa o que fe havia de exalar,& íe tranf-
muta em limpha,& como todo o vapor tranípira-
vel fejacompofto, & formado de faes acres, (co-
mo palpavelmente feeftá obfervando em ofuor)
torna-fe a tal limpha mais afpera, mais falgada,&
mais acre, a qual em grande quantidade tranfeo-
lada pelas glandulas em primeyro lugar dacabe-
F ça,
- TUZTDE C1RURGI0ENS
ça, he motivo deíles aífe<5tos fluxionarios.
As caufas eficientes internas, que irritando
os lugares glandulofos ledem algúa parte, & af-
íim ie difpõem para a fluxaõ, fao duas, ou eftá na
mefma parte, ou eíláeípalhada em omeímo fo-
ro, oulimpha; em quanto àprimeyra, quando
alguma coula preternatural comummente acrc,
exifte cm alguma parte leia porcaufa da má di-
geítam, ajuntando-fe cada vez mais fuccefliva-
mente fe radica com pertinacia na mefma,& qua-
fi como fermento acido, falgado, faz moleftia no
ientido da parte, donde por occafiaõ defta irrita-
çaõ íe derrama, por falta dedigeftão particular
nefta tal parte, mayor copia de limpha do lugar
vizinho, & deita forte fe excita a fluxaõ catarral.
Tenhoacabadoas primeyras duasDifputa-
das com a brevidade, que me foy poííivel,mas
não como a minha vontade defejava, fupraeíla
o trabalhofo da impertinência, que padeci, pois
aquella nam chega a dizer por diminuta o que
cheguey a obfervar. Nellas tenho moftrado a
conítituiçaÕ, qual me parece fer, pelos íympto-
mas que experimentey; como fe devem conhe-
cer as queyxas pelos %naes,que tenho relatado,
de que procedaõ, & como íefaçaõ contagiofas;
refta por hora em ultimo lugar fazer prognoítico
aeílas doenças ,& finalizar com expor os reme-
dios,
EMBARCAD1SS0S. 43
dios, que achey íerviaõ de melhora aos enfer-
mos, praza a Deos permittir algu conhecimento
aos aííiílentes, para que com mais clareza faybaõ
daqui por diante, o como íe haõ deportar com
femelhantes doenças ; pois fabem (ou namía-
bem ) nam cumprem a Tua obrigaçam emcuy-
darem , como devem, nas novidades das doenças
dos pobres Toldados, deyxando-os expirar à ne-
ceíIidadederemedios,eíquecendo-fe da neceílí-
dade, & caridade com que os devem tratar, nem
fatisfazem à fua conlciencia, pois cada hum per
íi devia antes de embarcar o examinaríe a íimef-
mo, & confiderar vem íuprindo a falta de hu Me-
dico, que muytas vezes enganando-fe falta à fua
obrigaçaõ , íendo efta a fua faculdade , que a-
prendèraõ, & que exercitaõ, & que quem fahede
hum hofpital com a pratica do curativo de qual
quer inchaço, naõ pode ter lufíiciencia paravii
com confciencia livre, & defembaraçada a occur
par femelhante lugar, (pois vay tanta diíferença
dehuma coufa a outra) queyra Deos como vou
dizendo íirva de algum provey to daqui por dian-
te efte meu limitado ditcurlo , ou ao menos íeja
igual o cuydado ao affeóto, & vontade, com que
me determiney a dar ao prelo eíle unicoTratado,
expondome quiçá às ceníuras de arrojado, & fi-
nalmente aos ludibrios de pouco attento.
F z DISPU-
44

DISPUTADA III.

DO PROGNOSTICO, E

caufa defte morbo Epidemico.

CAPITULO PRIMEYRO

T)o prognojlico.

ODAS as vezes,que o catarro pro-


cede de alguma caufa externa, naõ
fendo ainda muyto antigo , tem
menos perigo, & he mais fácil de
curar, queaquelle, quefe fomen-
ta de caufa interna, ouqueaquelle, que aparte
afíeéta por caufa da lefaõ externa eftá de forte taõ
debilitada, que por particular vicio da mefma
parte continuadas vezes coftuma repetirfe neíla
a fluxaõ, & eftes contumazes, & que facilmente
repetem, coftumaõ feros mais perigofos, razao
damuyta fraqueza que ha pela total debilidade
da parte, & muyta refoluçaõ dos efpiritos.
Demais difto a fluxaõ,que repete mais vezes
ao mefmo lugar, & com a repetida recaída enfra-
quece
EMBARCADISSOS. 45
quece o efpirito infito,& fica débil o vigor da par-
te, facilmente íe difpõem para hu achaque habi-
tual^ com a mefma facilidade fica apta para pa-
decer muytos mais achaques. Fallando em parti-
culares fluxoens,fe eftiver molefto o laringe, ou
a afpera artéria,podem refultar defta vários acha-
ques do peyto.
Se os enfermos por alguma caufa interna fe
lhe continuar a toíTe com mais vehemencia, lerá
neceííario haver alguma cautela, porque le pode
temer venha a padecer o bofe, & le gere alguma
vomica, ou alguma excoriaçaõ dos bofes, & fi-
nalmente fobrevenhaÕ as tificas pulmonaes. De-
mais difto os catarros, & fluxoens, que fobrevem
aos velhos, faõ mais graves, & maisdifficultoíos
de curar: mais graves, porque ha menos forças;
mais difficultofas de curar, pela fubftancia fendo
pouca naõ ter valor para poder com os remedios,
& como una falta eftviriumrobur, (como diz o
noíTo i£tio) fica difficil neftes a cura; porque nef-
tes naõ ha forças fufficientes para o recuperar da
faude , neíles faõ as deílillações mais continuas;
eíía he a razaõ, porque Hippocratesfèft.3. aphorif-
1110 11. como [ett. 1. aphor. 40. Font ano lib.i. cap.i.
methodo cognofcendt morbospag. 44. nomea eítas
entre as doenças dos velhos,& diz ferem difficul-
tofas de curar pela razaõ, que tenho dito, parte
F 3 peias
4<í LUZ DE CTRURGIOENS
pelas mas digeíloens, & em primeyro lugar ao do
eítomago naõ íe elaborar como he neceífario,
parte por fe laxarem as glandulas demafiadamen-
te, &eftarem difpoftas a continuas recidivas de
fluxoens, parte por caufa do robur das partes foli-
das eftarmuy to diminuto pelo vicio, Sc langor do
efpirito infito, & parte ultimamente pelo decú-
bito de foro, ou limpha acre, & azeda em as taes
partes, porrazaõ da qual acrimonia muytas ve-
zes fe obíervaõ em differétes regioens,& particu-
larméte neftesclimas,catarros, & toíTes mais gra-
ves, Sc com mais fymptomas de q em outras; dillo
aííim bellamente Sylvtoprax.lib. i .cap. 49. §.3.(^4.
As fluxoens quando fe lhe impedem o movi-
mento da limpha, & que coílumão inundar o ce-
lebro, faõ mais perigofas, & defta forte faõ moti-
vo de vários , Sc funeftos fymptomas, como le-
thargiricos, paralíticos, & outros achaques per-
tencentes ao lyílema nervofo; porque as glandu-
las miúdas do cerebro como quer que eftejaõoc-
cupadas com limpha, (como a fuaeftru&ura, Sc
compofiçao, Sc lugar íufficientemente oeftáde-
moftrando,) efta fe naõ fegrega daquellas como
he neceífario, tanto na quantidade, como na qua-
lidade , Sc naõ diftribuida aos feus lugares conve-
nientes, mas fim reftagnada em as glandulas da
cabeça inunda o cerebro de tal forte, que lhe oc-
cafiona
EMBARCADISSOS. 47
cafionaosperigofiííimos fymptomas, que tenho
dito.
Pelo contrario he menos perigofaa fluxaõ,cjue
palpavelmente fahe por qualquer parte do corpo,
como por narizes, boca, & mais partes, & de mais
íofpeyta, a que decumbe, & molefta a alpera ar-
téria, ou o laringe,em as fluxoens juntas com fen-
fivel excreaçaõ de matéria, quanto mais depreiía
neítas íe coze , & fe lança, quanto mais feguras
íaõ, & pelo contrario quanto mais tarde, mais pe-
rigolas ie obfervaõ, principalmente precedendo
mao tratamento do corpo; porque fe ha de temer
eíla limpha com a fua acrimonia corroa as partes,
ou as ulcere,como eu obfervei em eíle lymptoma,
a que chamaõ Xiringofa,aonde era taõ acre, mor-
daz, & corrofivo o loro que cahia nos inteílinos,
que totalmente os abria, & debilitava as faculda-
des naturaes deitas partes moleftando as fibras
dasmefmas.
Tenho propofto arefpeyto dafluxaõ, agora
o faço a refpey to da febre. Eítas febres no princi-
pio naõ fe apartaõmuyto doeítado natural, co-
mo as febres chamadas continuas agudas, & bi-
liofas, humas vezes fe curaõ com facilidade, & he
quando felhe acode atempo, & ha bom cuyda-
do no tratamento do enfermo ; outras chegaõ a
perigar, quando lhe faltaõ as circunftancias, que
48 LUZ DE CtRURGIOENS
faõ baíi para o remedio da queyxa, & íe chegaõ a
malignarfe, naõ íaõ fem evidente perigo; ordina-
riamente fe eftendem a quatorze dias,& noy tes,&
muytas vezes com máo íuccelTo.
Finalmente dizia hum curiofo que toda a
queyxa, que lograva tres circunftancias, que elle
apontava, naõ Te lhe podia fazer mào prognofti-
co; era a primeyra a aííiftencia de bom Medico, a
fegundaaadminiftraçaõ do bom enfermeyro, &
aterceyra intima vontade no doente para tomar
tudo o que for conveniente à fua faude: a aííiften-
cia do bom Medico para o cuydado do remedio; a
adminiftraçaõdobom enfermeyro, para naõ fal-
tar ao enfermo com todo o neceíTario a tempo, &
horas; ( que he eíta grande circunílancia para íe
curar o achaque, como diz Martinho de Rolando
ver bis ibi: Medicina ex fe nihiljunt, fi tempore ad-
hibeantur, funt veluti Deorum manus,) & ultima-
mente intima vontade no enfermo para nam te-
diar, & ainda que tedee em tomar tudo o que lhe
for conveniente para o curativo da íua queyxa,
com que vontade, tempo, & remedio faõ requifi-
tos, porque fe naõ pode deyxar de fazer em toda
a queyxa bom prognoftico: iílo dizia hum curioío
como digo, & agora também eu o affirmo pelo
que tenho obfervado. Bafta de prognoftico, va-
mos ao curativo.
CAPI-
EMBARCA D1SS0S. 49

CAPITULO SEGUNDO

Da cura de/la queyxa Epidemicd.

PRimeyro que principie a relatar a verdadey-


ra cura, com que le ha de haver, & deve fa-
zer neftas doenças fluxionarias, fe haõ deobfer-
var tres circunílancias; a primeyra a caufa effici-
ence remota, a fegunda a mefma matéria catarral,
a terceyra a parte affeéta, & a mayor, ou menor
leíaõ deíía mefma parte affeóta. Em quanto à pri-
meyra, por razaõ da caufa efficiente mais, ou me-
nos irritante fe ha de confiderar , fe porventura
a fluxão feja procedida de cauía externa, ou de
caufa interna, &eíta fe feja de limpha, ou de vicio
topico da parte affedta. Em quanto à fegunda fe ha
de obfervar a matéria catarral, fe porventura eíla
feja mais, ou menos acre, ou branda, iníipida, te-
nue, ou craífa. Em quanto à terceyra, por razaõ
da parte affe&a, fe ha de cuydar muyto na prefer-
vaçaò, porque o enfermo naõ recaya, recidivan-
do nova fluxaõ.
A fluxaõ caufada por lefaõ externa,& em par-
ticular por caufa do ar, cura-íe com facilidade, le
fe lhe acode logo ao principio, tirandolhe o fen-
tido da irritação, &aííim acautelando o fluxo da
G lim-
So LUZ DE CIRURGIOENS
limpha. Poreíta razaõ no principio, commoda-
mente,& compalpavel operaçaõ fe devem dar re-
medios diaphoreticos, como tintura de papoulas,
nos navios xaropes de erva bicha,(que he o remé-
dio , que no mar le acha,) & todos os remedios,
que poííaõ iervir para expellir algúa matéria por
luor ; também feexperimentaõ nasqueyxasbom
termo, & alguas vezes muytas melhoras, fe fe lhe
applicaÕ algíis fumos, oudefumadouros pela bo-
ca,& cabeça de ervas aromaticas, como alecrim,
alfazema, &c. O mefmo effeito fazem também as
esfregaçoens da nuca com oleos deftillados das
mefmas ervas aromaticas; porque eftas entorpe-
cendo o fentido demoraõ o movimento dos hu-
mores , & como fal volátil de que faõ organizadas
emendaõ o vicio da limpha, & abrindo pordia-
phorefim os poros lançaõ fora por fuor, ou infen-
(ivel tranlpiraçaõ o vicio topico da parte. Virtu-
de tem também o ambar lançado ao peícoço, que
fique junto da carne, para fazer parar o fluxo da
limpha.
E fe a fluxão, ou a febre fluxionaria nafcer de
limpha viciofa, & de má conílituíçaõ,& cila mef-
ma acre, falgada, & azeda for caufa da vellicaçaõ,
& da corrupção das partes nervofas , entaõ íe en-
caminhará efte foro com remedios diaphoreti-
cos, ou diuréticos,fendo no principio avia daou-
rina,
EMBARCA D TSSOS. yi
rina, ou melhor a do fuor. Ifto he o que aconfellia
na íua praxi Ettmulero tom. i. feft. 11. cap. i. ver-
biúbi: Si vero febres catarrhales onantur exvitio
lympha ptc cantis jpjius quevitiofa conflitutiones,h<£c
ipfa vi tio(a, acriíy) a Ifa, & acida partes nervias vel-
Itcans, & rodem, aromaticis, & volatilibiis in fpecie
fá libus volatilibm oleojis temperatis corrigenda, &
nunc per urinam, nunc, idque optime,perJudorcs eli-
minanda.
Mas amefma limpha craíía, & degenerado
em mucofidades o nutrimento da parte , entaõ
convém attenuar, & incindir, & reíolver; com tu-
do fc fe obfervar a parte com reftituiçaõ à fuade-
vida temperie, entaõ fem remedio algum efpon-
taneamente expelle de fi a natureza tudo, oq até
entaõ a moleítava; & fe naõ expellir, & a queyxa
continuar por alguns dias, ja nenhum deftesre-
medios pode aproveytar, fenaõ paííar a evacua-
çoens univerfaes , & principiando com eítas, íc
principiará também pelo ufo dos bons alimentos,
como galinha, franga, &c. como também pelo
bom regimento de todas ascoufas naõ naturaes,
q naõ relato,pelo tempo naõ dar lugar;tratarfe-ha
de emendar os vicios da primeyra digeftaõ , &
confecutivamente a corrupção de toda a maíía do
fangue(fontes eftasdonde coítumaõ manar todos
os affe&os fluxionarios, como jaatraz fica dito.)
•;> G 2 Os
5i LUZ DE CIRURGIOENS
Os remedios que aqui convém, & que mere-
cem o primeyro lugar,parecem fer os evacuantes;
porque comoaqueyxa he material, & a doença
giande, deve íero remedionaõ ló grande, mas
evacuante, pelo que le ha deattender como,quan-
do^ em que tempo convenhaõ eííes remedios;
íaÕ os caíos aquelles , em que a fluxão he mais
contumaz;o como, quando eíla depender de cor-
rupção da maíTa do langue, de tal lorte que haja
preternatural fermentaçaõ, logo no mefmo inf-
tante fe íangrará; & quando depender do vicio do
eftomago, por fer a primeyra oficina donde fe
coítuma elaborar a matéria, que ha defervir de
nutrição ao individuo, deve-íe acudir aeíta em
primeyro lugar principiando por algum remedio
vomitorio; iftohe o que manda fazer neíle cafo
Vrojper. Martian. inlib. 4 acutor. 1.101. & o noíTo
Riverio faz o mefmo,centur. í. obfervat.yo. E ul-
timamente o quando, aconfelha o noíTo Hip. in
principijs morborum.
Depois de purgar,fe ainda o enfermo tiver al-
guma eftuaçaõ de quentura de tal forte , que nos
pulfos fe conheça alguma celeridade, ou outras
vezes algum incêndio nas aguas, fe tentarão re-
medio da fangria: eíte he omethodo, que com-
mummente legue a torrente de todos os Douto-
res; porque deita forte fatisfazendo à febre,fe aco-
de
EMBARCADíSSOS. 53 ^
de à fua preternaturalfermentaçaõ,tf//íW/>m7//0-
nis, evacuationis, & ventilationix gr alia, (como
enfina Pedro Miguel de Heredia,) remedio efte,
que paulatinamente vay evacuando parte do fo-
ro, que era incentivo para o achaque,ficando a na-
tureza deita íorte quaíi luperior ao morbo, o que
fe ha de íuppor, que ajudando-fe efta com ieus re-
medios attemperantes, tanto por cordeaes, como
por ajudas freícas, & tizanas , íe põem em termos
de o enfermo fe poder purgar , & ficar livre de to-
da a moleftia, & fecom o remedio purgante fe
lançaõ fora os vicios dasprimeyras vias, coma
fangria, cordeaes, tizanas, & ajudas de ameijoada
íe acode à corrupção , & queníura da maíía do
fangue, & na falta deites remedios fe maligna
com facilidade a queyxa, &com a meíma facili-
dade morrem os doentes.
Sabido he, & quafi praxi commua,que em ha-
vendo vifcos no eítomago, & immundicias muco-
fas, coftuma haver geraçaõ de lombrigas, eftas as
ha tantas neítas doenças, que vi fahir em húa oc-
cafiaõ cinco em hum embrulho pela boca, & ao
mefmo tempo huma pelo nariz, a hum pobre foi-
dado do Regimento de Sctuval,que vinha embar-
cado comigo, & aííim em mais, ou menos quan-
tidade as lançavaõ todos os mais enfermos, & ob-
ieryandoeu dalli por diante o mandar darreme-
G 3 «-lios
V4 LUZ DE CIRURGIOENS
dios para lombrigas, naõ deyxando de continuar
o curativo do achaque, achey fe paleava a queyxa
com mais facilidade.
Tres generos de lombrigas, diz Galeno no com-
mcntario ao aphorifmo 17 [eã. 3. fe achaõ em o in-
dividuo; humas redondas, que ordinariamente íe
geraõ em os inteftinos tenues, & delgados, Sc ef-
tas muytas vezes fobem ao ventrículo ; outras
lombrigas tenues aífemelhadas a fios delgados,
as quaes coftumao reíidir em a parte inferior dos
inteftinos craífos ,& junto aomuículo fphinter;
& ultimamente outras a que chamaõ largas; & o-
pinioens ha, q dizem ha outra qualidade delias, a
que chamaõ cucurbetinas, & outras, a que cha-
maÕ comutas: vejafe M. A. N. C. ann.^.obfervat.
63.pag. 109. item bicipites, L.C. obfervatio 84. pag.
141. mas como o noíío intento naõ feja outro,
mais que procurar,& inquirir a caufa das lombri-
gas deftas doenças fluxionarias, baile ao curiofo
Leitor faber,qRondeletio,Platero,Senerto,& ou-
tros muytos Autores fallaõ com efpecialidade, 8c
com largueza nas differentes eípecies deftas bi-
chas.
Da caufa efficiente das lombrigas ha também
muytas controverfias; porq huns dizem q as lom-
brigas nafcem de fua própria femente; o que fe v<*,
que ainda que por obra de algum medicamento
pur-
EMBARCADISSOS. if
purgante fe expilla copia delias, dahi a breve tem-
po repullulaõ de forte, que de novo moleílaõ o in-
dividuo, & de novo feprincipiaõ a lançar: que as
lombrigas renafçaõ da corrupção das outras, tel-
timunha pelas obfervações, que fez Panarolopen-
te c. obfervat. 16 SchenKio Iw. 3. obfervaúomim,
Foreft. lib. 11. obfervat.i6.&c. Borelo lib.i.objer-
vat. 98.
Outros dizem que a verdadeyra caufa efici-
ente das lombrigas he o calor putredinolo,outros
o natural,& outros que hum, & outro concorrem
para eíta geração. Os primeyros dizem q todos os
animaes imperfeitos ( fegundo Ariíloteles, ) íe
naõ podem gerar fenaõ de podridaõ. Os íegundos
affirmaõ, que o calor putredinofo he intenío, Íg-
neo , & deftruótivo, & q naõ he idoneo para a ge-
ração de qualquer corpo vivente, ainda que im-
perfeyto. Os últimos aconfelhaõ , & dizem, que
a matéria para a geraçaõ das lombrigas a difpõem
o calor putredinofo, &que efta allim preparada
por via de cozimento a converte o calor nativo em
bichas,& deita forte concorrem hum,& outro pa-
ra efta geraçaõ; o que parece naõ pode ler, pelo
que fe collige do axioma phyíico, Ejufdemeft ma»
teriam difyonere, & formam inducere. E deita for-
te o preparar a matéria, & o introduzir-lhe a for-
ma deve proceder do mefmo agente. Demaisdif.
to
56 LUZ DE CIRURGIOENS
toem os corpos mortos geraõ-fe bichos, em os
quaes não ha nenhum calor nativo.
Pelo que fe ha de notar,que o calor a quecha-
maõputrcdinoío, arefpeyto da matéria putrek
cente, fe faz nativo a relpeyto das lombrigas; por-
que o calor natural, & putredinal ío differem gra-
dualmente ; mas faõ neceííarios diverfos grãos de
quentura para ageraçaõ de diverfos animaes, 8c
por ilTo o calor, que he putredinofo a refpey to do
noífo,póde fer natural a refpeito de outro animal;
dameímalorteque o calor, q he natural ao leaõ,
para nós he febril, & confecutivamente putrefa-
d:ivo. Muytos fogem para o calor do Sol, o qual
dizem fercaufa univerfal de todas as geraçoens;
mas hade-fe conhecer a caufa peculiar, & que im-
mediate produz a queyxa,concorrendo,& coope-
rando a caufa univerfal.
Mas aqui fe pode arguir hua grande difficul-
dade aíTentado aquelle vulgariflimo theorema,
NihilpoJJefeipfo nobiliuz generare, que ninguém
pode produzir coufa mais nobre,do que íi melmo;
& fendo aííim,naõhe o calor o principal agente
da geraçaõ das lombrigas, porque efte he acci-
dente. Eíla duvida nos encaminha àquella grave,
& enfadonha Difputada da geração equivoca, em
cujas difficuldades muytos infignes Philofofos
moftráraõ em volumes, que efcrevéraó, o quanto
tinha
EMBARC A D TSSOS. 57
tinha e(la matéria quedilputar, pois tanto nefte
calo havia de dizer, em primeyro lugar, Fortuneo
Licctolib. de fpontaneo vive n ti um ortu, & outros
muytos.
Baftame por hora o dizer que a opinião de
muytos fe deduzia,de que como exiítiíTem em va-
rias fubftancias muytas cautas das coufas, as
quaes fahiaõ a luz pelas fuás diverías permuta-
ções, como v. g. a matéria pela podridão, ou ou-
tra qualquer alteraçaõ fica mais difpofta para re-
ceber efta, ou aquella forma, ficando defta for-
te como reedificado o femen mais analogo à lua
difpofiçaõ,introduzindolhe em a matéria forma-
lidade própria à lua femelhança.
Efta opinião naõ fe aparta muyto da Philofo-
fia antiga, o qual enfina, que as formas fe criaõ da
potencia da matéria 5 mas eftes feguem, Sc dizem
fer mais fegura a opinião, que affirma, que as íe-
mentesdas coufas exiftem em a mefma matéria,
as quaes realmente eraõ efficientes, & que a po-
tencialidade da matéria nenhuma força tem de
efficienie, pelo que forçofamente era neceííario
defcubrir, & bulcar neíia matéria algum efici-
ente, que creaífeaquellas formas.
A caufa material das lombrigas he huma tal,
ou qual mucofidade nafcidano eftomago, ou de
fenaõ digerirem os alimentos fufficientemente,
H ou
5* LUZ DE CIRURGIOENS
ou de fe digerirem mais do que era neceíTario; das
quaes mucofidades mediante algum calor bran-
do , &difpofta iucceííívamente a putrefaçaõ , fe
gera a formalidade das lombrigas. Na verdade de
nenhum modo podemos entender fer neceíTario,
q os alimentos idoneos para eftageraçaõ em pri-
meyro lugar íe convertaõ em mucoíidades ; por-
que deftes, immediatèjtm quanto fe fazem fuperf-
ticioíos natureza podem fer caufa, & dar motivo
a geraçaõ das lombrigas, da meíma íorte que efta-
mos vendo em a carne, queijo, peros, & outras
coufas íemelhantes , que produzem bichos por
podridão.
Da meíma forma fe fazem no noíTo corpo, &
ncítas doenças alfim acontece; porque eftomagos
quiçá habituados em terra comerem pouco , Sc
andarem muyto,& em quanto andaõ embarcados
fazendo-o pelo contrario, andarem pouco, & co-
merem muyto , naõ pode deyxar de a natureza,&
o cftomago o fentir, porque dados á glotonaria fe
metem em os acima ditos alimentos, máos na
quatidade, por íer demaíiada,& peyores na quali-
dade,fendo ainda alimétos,terem ja muy tas diípo-
íiçoens de corrupção, & ferem taõ defordenados,
que a todo o tempo andaõ fempre namefmadili-
gencia comendo huns antes de os outros fe dige-
rirem i daqui nalce ficar froxa, & menos amara
abilis,
EM BA RC A DISSOS.
a bilis, & acquirirem podridão havendo geraçaõ
de macofidades, & deita fe originaõ as lombri-
gas , que tanto neílas doenças períeguem os en-
fermos , como bellamente explica Hchnontio.
Ordinariamente as lombrigas, que vi lançar,
eraõ de comprimento de palmo pouco mais, ou
menos, fendo que haver outras de tres covados
obfervou em M. A. N. C. ann. 3. obfervat. 254.
pag. 457. & outras que coítumaõ crefcer até de
comprimento de muytos covados; humas de tres,
& outras de feis vio lançar Joelinpraxi, de feis &
nove covados em M. A.N.C.awi.6. obfervat. 104.
como também Amato Lufo. na centur. 6. cura 74.
obíervou huma lombriga larga lançada por vomi*
to, de quatro covados de comprimento; & final*
mente íe o curiofo Leytor quizer ver muytas, 8c
notáveis obfervaçoens de lombrigas, lea com at*
tençaõ Binnengero. E paffemos aos íinaes.
Davaõ-fe a conhecer as lombrigas commum*
mente do particular cheyro ruim da boca, ever*
gente a azedo, da grande expulfaõdafalivafetí>
da pela boca, miíturadacom alguma naufea, al-
guma dor,& vellicaçaõ de ventre ordinariamente
no principio do dia, (veja-fe Bertholinolitera Ai)
& às vezes com tal excefío, que fe conhece incha-
ção em toda a regiaõ do abdómen, tremores f &
convuifoens, atíilaõ-fe os narizes, acordorofta
H 2 hora
6o LUZ DE CIRURGIOENS
horahe paiida, hora rubra, íinaes todos indica-
tivos de lombrigas, (veja-fe Bartholtn, cittumedic.
Haffnins, volume ^.pag. 150.)
ConteíTa Schenck. no liv.3. nas fuasObfervaç.
que {-azem as lombrigas tal moleília, que muy tas
vezes coftumaõ corroer o inteílino re&o, & pol-
pa das nadegas, & as coxas das pernas, & confti-
tuem ulcus em todas eftas partes, & para quele
veja chegaÕ a fazer fymptomas lethaes, quero
narrar huma oblervaçaõ, (pondo de parte as que
fiz no mar em vários enfermos,) que fiz nefta Ci-
dade do Rio deJaneyro.
A poucos dias de déíçmbarcados, me pedirão
quizeíle vifitar Antonid&a Cunha, fenhor de en-
genho, que tinha vindo da íua fazenda com huma
febre maligna defeonfiado de viver, pois vinha
íangrado dezafete vezes , farjado duas, purgado
com cordeaes folutivos baílantes , remedios at-
temperantes, fufficientes, & com tanta variedade
de remedios eftava cada vez peyor,pois do dia,que
o trouxeraõ para-a Cidade, o tive com Padres, a-
judando-o a bem morrer: vi o enfermo , achey-o
metido em hu affeéto cataphorico, & com muy-
tos dos finaes atraz referidos das lombrigas, co-
mo tremores, movimentos convulíivos, naufea,
fétida a faliva, como também azedo o hálito. Fo-
raõíe-lhe applicando leus remedios amaricantes,
naõ
EMBARCADISSOS. <>i -

naõ deyxando de fatisfcer aos remedios evaca-


antes, & alexipharmacos,começou por bayxo,&
porfima aexpellir tanta quantidade de lombii-
gas, que mediante efta evacuaçaõ começou a ex-
perimentar muytas melhoras; eítas tem fido tan-
tas , que hoje (e vé reftituido à Tua antiga íaude.
N a Armada naõ fallo, porque foy como cou-
fa miraculoía a exhibiçaõ dos amaricantes, &ao
paíTo que fe começavão a dar, logo também as
lombrigas le principiavaõ a expellir. Hum ciiado
meu, & hum negro do Sargento Mayor de Bata-
lha Gafpar daCofta de Ataíde,eftiveram quaíi
metidos na mortalha, &com os remedios paia
lombrigas fe puzeraõ em pé, naõ faltando aos 1 e-
rnedios coadunos à queyxa fluxionaria, que pade-
ci aõ : o mefmo aconteceo a quafi todos os que en-
fermáraõ na não, naõ deyxando nenhum dos que
aífim le curáraõ,de efcapar com vida.
Do que tenho dito le collige q o remedio paia
lombrigas laõ todos os amaricantes,porque eftes,
ou as mataõ, ou totalmente as aftugentaõ; adver-
tindo, que íempre depois no fim da doença he ne-
ceíTario purgar, porque naõ íendo aífim,reíukai ia
da nova corrupção delias outra femelhante ge-
raçaõ. O remedio com que eu acodi a todos eítes
enfermos foy o azebre, de que lhes mandava dar
hum ícropolo desfeito em agua todos os dias de
H 3 nu-
*6i ^ LUZ DE CIRURGÍOENS
manhaa, & que antecedentemente comefTem hua
colher de doce, naõ havendo nefta náo, nem em
nenhuma das outras mais algum remedio, que fc
pudeífe dar contra ellas.
Vontade tive de lhes dar o mercúrio cru, a a-
treverme adallo pela boca, (pois a meu parecer
leva a palma a todos os mais remedios para as
lombrigas,) naõ íou eu ío o íeu affeiçoado ; por-
que também Aíathiolo na Epijlol. 4. a d Stepbanum
L aure um Medico Ce farto, Fallopío traft. de morbo
galhc. cap. 76. Platero em o curativo das lombrigas,
Fabrício H1ldan.0bfcrvat.7x. centur. z. João Bap-
tift.Zappat.lib. de/ecret. mnabilib. cap. 5. Bari-
cello m RortuL Genial. & Sanãor. in method. vi-
tandi errores lib. j. cap. 1. o louvaõ como efpecial
remedio, íem feefperar algum damno ao indivi-
duo ; porque Sanãorio in method. vitaml. error.
diz performaãa verba,ibr.NiJiin lumbricis necandis
ad valida pra/tília confugiamus, ut ad alaem tion lo-
tam,velad mercurijj .efirop.cum aloe^&therebenti-
na>adpilulaperexigu<eformam recepta,nihil fity&c.
Baricel. in Hortul. Genialidts ver bis, ibi: Hydrargy-
rum, quoda multisvenenum exiflimatur ,felicil]imo
fucceffu contra vermes exhibetur, tanta que certitti-
clims iliudm Hifpania reputatur, ut mulieres tenel-
lis pueris, qui laãis vomitu labor ant, ad quantitatcm
granorum trcs, in própria fubjlantiapropinare att-
deant.
EMBARCAD1SS0S. 63'
deant. Hac atitem via mor bui ceffare videtur fre-
quentatisexperimentis.Ego qttidem viduam curavi,
qua novem diertim fpatio vomitibtts continuis ex
vermibm laboraverat, & fere triduo nec comede•
rat, nec cibum retinere valuerat; huic cum hydrar-
gyri efcrop.ij. cumtantillo cidonij mortificatospropi-
najjem, abfqueulla molejlia per alvum centum, &
plures emifit vermes, <z^ etfíe/w die liberat a ejly &/0-
licita exercuit domi, & for is negotia magna profeão
parentum admiratione, cum príus áebilis , ó" bono
femper eventu, domique cotinuo aquam habeojn qua
hydrargyrtwi infufum retineo, illamquepro vermi-
bm libentifjnne concedo , adhuc quempiam ex
illo noxam accepiffe expertmftim. Vfw eft hoc reme-
1lio advermes enecandos Matbiolus, Horatitts,
genius, àrplerique alij celebres viri, qui omnes hujut
auxilij maxirne extollunt beneficia. Datur pueris
in fíibflantia efcrop.j. grandioribus efcrop. ij. vel37.
Corrigitur illud, mortificattir in mortario vitreo
cum faccbaro rubro,& tamdiu contentar-, ut in par-
tes infenftbiles di/Jolvatur. Ne autem in priflinain
formam redeat, oleum amygdalarum dulcium gut-
tuias binas addere oportet, & fie cum faccbaro roja-
ceo, violáceo, veljit une ato,jejum /hm acho languen-
tibuspropinatur. Até aqui Baricel.
Joaõ BaptiílaZappata lib. de fècret. Mirabi-
lib. cap. 5. conta iníignes hiftorias de enfermos
( * cora
V4 LUZ DE CIRURGIOENS
com lombrigas, quecomouío do mercúrio cru
faráraõ, o qual íe lhe dava depois de outros muy-
tos remedios naõ aproveytarem, como azebre,
lofna, & outros mais, de dous modos o applicava.
Era oprimeyro o feguinte.
Rs. mercúrio vivo 3j.beijoimefcrop.B. efpiri-
to de vinho retificado gotas iiij. miílure-íe tudo
em vazo vidrado, depois ajuntefelhe conferva de
rofas , ou de violas q. b. para encorporar, & fa-
zer bollo S. A.o qual toma o enfermo de manhãa.
Era o\ fegundo o feguinte.
Rs. açúcar rubro hum pouco, aguacommua
got. iij. ou iiij. miílure-íe em vazo vidrado, & fe
faça confiílenciade mel,depois fe lhe ajunte mer-
cúrio cru 3). incorpore-fe tudo , acrefcentando
oleo de amêndoas doces got. iiij. ou vj. que em-
peça o mercúrio fe naõ vivifique,miílure-íe tudo,
& finalmente com huma pouca de conferva de ro-
fas fe faça bollo.
Fabrício Hildano obfervat. 71. ceiít. 2. narra
huma obfervaçaõ de huma mulher, a quem elle
aííiílio deyxada ja de Giberto Saracen. com lom-
brigas, & depois da applicaçaõ de muytos reme-
dios louva muyto o mercúrio cru, como fe vé deí-r
tas formaes palavras: Hifee additum eft exhydrar-
gyro praflantilfimum remediam: illudemm adfex-
quidrachmam puram, &per cor iam traje cl um hau-
EMBARCAD ISSO& 65
/?t, & ah eo infeftare ceffarunt cum dira hcec anima-
lia. Platero da meíina Cone:Argenti vivi(diz)gut-
tam un amável alter amávelferop. B.aliqui deglutien-
dumpropinant, quod vermes,quibm maxime adver-
f um, cito fugat, potefique tnnoxie , ut alibi etiam
diftum, fumi.
Falòpio no traciat. demorb. gallic.cap. 76.Si bi~
batur (diz) argentam vivam, illud 11011 facit, quod
unãwn: vidi mulieres, qu<e libras ejus bibebant, ut
abortam facerent; & fine noxa ego exhibeo in ver-
mibus, & nullum parit Jymptoma, fotiim necantur
vermes.
Mathiol. finalmente na Epifiol $.ad Stephanum
L aure um: Cum (diz elle fingulanílimamente ao
noíío intento,) argentum vivam nulla alia leti-
fera facultate, (ut Diofcorid. i n q u i t) inter ima ty
quam, quodfuo ingentipondere intefiina lacerat-, ni-
hil fatie verendum videtur, mínima quantitate id
pojfe moliri umquam,pra[ertim cum fiia gravitate,
é- (pheerica forma facile e corpore per inferior a
labatur. Idcirco mirari non debemtis fi Brafavolus
tam claras atatis noftr<e Medicas, ad necanelos inte-
raneorum vermes dari argentum vivam nullo inco-
modo feriptum re/iquit,& eo tamfeliciter ufusfit al-
lius quidam clarijjmus Medicas Patavinas, quam-
quam parandi, claudique ratione minirríe nmquam
docere voluerit. Atqai ego , etji hoc medicamento
1 num*
9
66 LUZ DE CIRURGIOENS
mmquam fum ujus,vidi tamen dari fape illud fero-
puli, vel fexqiiidrachma pondere, a Glornienjibus
obftctrkibus agre parturientibus multeribus nullo
prorfusíncommodo, Jedfelm fèmper eventu. Até a
qui palavras de Mathiolo.
Por ultima conclufaõ inimigo defeubertohe
o mercúrio das lombrigas,fe com açúcar (a quem
Schordero chama íuco fingular na lua Pharmaca,
lib. i-cap. ij.pag. 398.) fe infundir por algu tem-
po em alguma vafilha vidrada, até q o pó do mer-
cúrio fique de cor leonada, o qual pó he aquelle,
<í o DoutorMichael recomenda muy to na queyxa
das lombrigas,dado de cada vez efcrop.j.até 3B.
Também aaguamercurial, aquém chamaõ
hermetica, ou particular de Helmontio , como
também a que fe faz da infufaõ, agitaçaõ, & ebu-
lição do mercúrio vivo, de que ha taõ grandes ex-
periencias, principalmente feytadamaneyrafe-
guinte.
Rs. de mercúrio vivoonç. j. bem purgado, &
revivificado, infnnda-fe em libr.j. de agua íim-
plez, ou de raiz de grama, ou de ipericaõ, & al-
ternativamente fe agite em hum frafeo de vidro,
ou fe coza efte mercúrio na meíma agua, & de hu-
ma, ou de outra forte feita efta miftura le procure
todo o mercúrio vá ao fundo, & fe coe a agua,
fem que paífe partícula alguma do az ougue.
Nef-
EMBARCAD1SS0S. 6?
Neftes Authores , & outros muytos que nam
relato, tinha eu documentos, para neftes navios
mandar dar o mercúrio vivo aeftes enfermos com
mais reloluçaõ, do que a que me acompanhava,
pois nam havia outro qualquer remedio contra
lombrigas em nenhuma das boticas, que vinhao
nefta Armada: porém como o deíejo que tinha
de os remediar era grande, & a experiencia da ex-
hibiçaõ do mercúrio cru pequena, pode mais em
mim o ahinco do remedio, ainda que diminuto na
virtude, do que a independencia da melhora,pelo
ameaço do perigo.
Com que o remedio , comojadiííe lhes aco-
dira, foy o azebre, principiando a mandarlho dar
depois de alguma deícarga de íangue, naõ impe-
dindo efta, o poderfe-lhe continuar com o aze-
bre. Coftumaõ eftas qneyxas depois do feteno,
quando a natureza fe vé com alguma íuperiorida-
de à doença, terminarfe com alguns luores , 8c
deites algús copiolos, relultandodeftaevacuaçaõ
ordinariamente grande levamen, & muy ta dimi-
nuição nafebre, o q eu coftumava ajudar no prin-
cipio logo do fuor com hum púcaro de agua fria
com leu açúcar; com taõ bom lucceíío, que ne-
nhum daquelles,a que o mandei dar,deyxou de li-
vrar da doença, & de experimentar no mefmo inf-
tante muy tas melhoras.
I 2 A muy-
-<S8 LUZ DE C1RURGI0ENS
A muytos no oytavo, nono,& decimo dia com
cftas evacuaçoens, & oyto, ou dez íangrias para-
va a fluxaõ,como também a fermentaçaõ da maíía
do langue, & fe punhaõ em termos de fe purga-
rem ,o que íe fazia paílado o quatorzeno com a fe-
guinte bebida.
Rs. em q. b. de coziment. comm. fr. feito com
fenn. 3Íij. cremor de tartar. 3j. infunda de bom
rheubarb. com fpica 3j. tora a corpulência desfa-
ça na coadura xarop. perfic. & reg. an. onç. jB.
Purgados fufficientementecom efta,ou fe-
melhante bebida fe punhaõ em termos de conva-
lecer,com o bom regimento de todas as coufas
naõ naturaes. E aquelles, a que fe eílendia mais a
doença,por de nenhum modo querer a fluxaõ por
termo ao correr, & a natureza eftar rebelde para
a cozer, lá vinha a terminar-fe no vinte & hum, &
muytas vezes fe eftendia a mais, por caufa do máo
tratamento. Ajuntava-fe nos inteílinos muytas
vezes algum Í010 acre, eftecom a fua acrimonia
fazia aperçaõ nas tripas, que logo neceífítava acu-
dirfelhe com attemperantes,naõ fó interiores, co-
mo tizanas, amendoadas,& cordeaes freícos, mas
também exteriores, lavando por bayxo, & junta-
mente tomando fuas ajudas de ameijoada para
humedecer, & temperar aquella parte; parada a
fluxaõ logo eftes fe purgavaõ, & fe ficavam com
algu-
EMBARCADIÇOS. 69
alguma quentura,fe ventilavaaíalvatella do fíga-
do com huma até duas langrias. Eíte he o verda-
deyro methodo , que leguem commummente to-
dos os Doutores ; & eftes faõ os remedios, com
que íe achaõ com melhoras, os que no mar pade-
cem eftas queyxas íem genero algum de maligni-
dade.
Efeaqueyxa por algum defmanchofe enca-
minha a máo termo, pelos malignos fymptomas,
de q fe acompanha, para a cura deites fe deve at-
tender, & obfervar os olhos do enfermo, a lín-
gua,& mãos;porque nos olhos pódeconhecerfe o
delirio, que ha de fobrevir,& as convulçoens, que
podem acontecer; porque quando os olhos eftaó
como refplandecentes , rutilantes , & quafi Íg-
neos, ou quando o afpeóto dos doentes eítá feroz,
& carregado, pronofticacertiíTimamente, (como
infinua o noílo Ettmulero,) mais ou menos furio-
fo delirio. Tambem fe haõ de oblervar a lingua,
& as fauces, para que fe conheça fe ha alguma eí-
tuaçaõ, & ardor interno em os precordios; final-
mente haõde-fe obíervar as mãos; porque neftas
doenças fe devem temer muyto as convulçoens;
porque quando eu percebia,pegando no pulío,co-
mo quaíi huma contraçaõ, ou huns demafiados
pulíos dos tendoens em a junta da mão, ainda que
a própria naõ eíliveííe quieta, coníecutivamente
I 3 , fe
7o LUZ DE CIRURGIOENS
íeme entravaõ de movimentos convulfivos.
Neftes cafos fe deve logo acodir, (diz o noífo
Ettmulero) ad illud pr<efertim, quodmagis urgct
e(fe rejpiciendu■ E cuydar em primeyro lugar de a-
placar o movimento fermentativo,& ebulição fe-
bril d a mafía do langue, & depois da eíluaçaõ da
cephalalgia pulfatoria, & dor de cabeça, da vigí-
lia,ou modorra,& de outros mais fymptomas ma-
lignos , que caufa, a que pela variedade das cir-
cunílancias podemos variar de medicamentos.
Em quanto ao movimento febril do fangue, fe
lhe deve acodir abrindo no mefmo inftantea vea,
& repetindo as fangriasdesde o primeyro princi-
pio da enfermidade, mas ha de fer concorrendo
as acima ditas circunstancias, as quaes infinua ad-
miravelmente Thomas V Vil lis na ftia Pharmac.
Ration.pag. 3 89 Juntamente fe devem dar feus ab-
forbentes, & dulcificantes, para correger, & em-
mendar a ebulição do fangue, ou também con-
vém faes voláteis juntos, & mifturados com alexi-
pharmacos, mifturandolhes também algus ácidos
brandos em fórmade cordeaes,(vejafe Paulo Bar-
bete.)
O quanto, que he caufa do movimento febril,
lançafefóra porfangrias, & a qualidade maligna
por remédios generoíos voláteis, theriacaes, &
lemelhantes alexipharmacos, dos que fe podem
recei-
EMBARCADIÇOS. 71
receitar no mar faõ os feguintes em forma liquida.
Rs. aguas cordeaes libr. ij. triaga de efmeral-
das, & confeição de jacint. an^B. pedra cordeal,
pós de diamargarit. fr. coral prep. antimon. dia-
phoretico an. eícrop. j. aljôfar efcrop. B. fal pru-
nel jj. efjpirit. de vitriol. gut. vj. mift.
Em fúrma folula fe podem receitar da fe-
guinteforma.
Rs. Triag. de eímerald. & confeição de ja-
cint.an.3 j. coral pre p.marfim,pòs de diamargarit.
fr. an. 3B.margarit. pedra cordeal an. efcrop. j.
com xarope do azedo da cidra forme bollo, &
doure.
Defte bollo fe desfaz 3B. de cada vez em cal-
do de galinha, & aííim fe vay continuando, Ian-
grando em quanto fe fente turgencia intenla fe-
bril, & juntamente com eftas bebidas corregen-
do a ebulição do fangue.
Em quanto à eftuaçaõ, a eíla fe acode com re-
médios attemperantes,como tizanas, com feus a-
lexipharmacos , lançandolhe hum efcropulo de
pedra cordeal,& margaritas meyo efcropulo,fuas
ajudas de ameijoada feitas em cozimento de mal-
vas , violas, cevada tirada a calca, ameyxas íem
caroços, pevides de melão, & melancia,fazer co-
zimento para ajuda, ajuntandolhe de açúcar maí-
cavado hum quarto, hum ovo freíco, humas go-
tas
7i LUZ DE CIRURGIOENS
tas de agua rolada. A'eíluaçaõ da lingua fe lhe a-
code lavando-a com mucilagens de zaragatoa,
ou vinagre deitemperado para ajudar a humede-
cer as fibras reiecadas porcauía dademafiada ef-
tuaçaõ, que feacha 110 eítomago ; muyto apro-
veyta também ventilar a falvatella do fígado para
expellir algumas fuligens quentes, que motivaÕ
algumademafiada quentura: ifto tudo diz Balio-
mo Pharo Me d. pag. 175.
Coítuma a matéria muy tas vezes por rap ida
o fazer íuaelevaçaõ à cabeça, efta pelas diverías
qualidades de que fe acompanha, faz também di-
verfos fymptomas; porque a huns faz vigias, & a
outros modorras, de toda afoite fazaíFedosco-
matofos ; fe vigias, la fe deve acodir a ellas recon-
ciliando fono, ou feja com amendoadas fey tas da s
íementes frias,& adoçallas com lambedor de dor-
mideyras dadas pela meyanoy te, ou feja como-
xirrhodinos fey tos de azeyte rofado onç.vj. vina-
gre rofad. onç.iiij. agua rofada onç.ij. íandalos
vermelh.3j. mift. Poítos huns panos picados mo-
lhados neíle oxirrhodino morno na cabeça fo-
bre a futura coronal, de tal forte, que fecos huns
le tornem outra vez a molhar. Ou ultimamente íe
tente o remedioopiado, ou feja exterior applica-
dode fonte a fonte , mifturado com unguento de
populeam,& de alabaftro eítendido em huma tira
EMBARCADISSOS. 7J
de pano, que cubra a tefta ; ou feja interiormen-
te applicada, mandando fazer huma paftilha de
laudano opiado gr.iij. para fedar pelas dez,ou
onze horas da noy te, ou mais proprio àquellas, a
que o enfermo era coftumado recolheríe.
Se cahe em modorra , ou letargo acodefe-
lhe, cuydando muyto em dar remedios, que fa-
çaõefpertar o enfermo; convém os remedios de
cantaridas , ou caufticos, ou ventofas farjadas:
vejaíeHoefwo inHcvcul. Mcdic.fag. 181. o qual
encomenda muyto fe uze deites remedios, fazem
grande utilidade,razão daexceííiva reíoluçaÕ,que
fazem do humor às partes inferiores; eííe o moti-
vo porque em primeyro lugar convém em o prin-
cipio, & augmento do eftado univerlal da doença,
que he quando apertaõ, ou ha mayor diípofiçao
de íymptomas mais graves da cabeça, & da facul-
dade animal,os quaes remedios defendem,ou cer-
tamente aliviaõ.
i Tambem tem lugar em eftas febres catarraes
malignas, os caufticos, & as farjas, quando esr
friaõ as extremidades, & as entranhas le abrazaõ,
& finalmente em quaesquer affe&os foporoíos,
principalmente quando ha íufpeita, q o fermento
maligno inficiona mais os efpiritos animaes, &
genero nervofo, ou que de qualquer caufa fe faça
elevação de fangue, ou de outras partes conten-
K tas
74 LUZ DE CIRURG10ENS.
tas a cabeça, (vejafe M.A.N.C. anno2. obferva-
çaõ 114.) diz elle que em os taes cafos admiravel-
mente convém os caafticos nas pernas , ou nade-
gas, ou pontas das efpadoas bayxas, ou altas, ou
nuca, conforme o tempo, que tiver precedido a
elevaçaõ , advertindo, queíeefta fe Fomentar de
vicio deeftomago, hemuyto neceffario dar Teus
copos de cordeaes folutivos interpolados, tantos,
quantos íejaõ iufficientes para a expulfaõ do vicio
do ventrículo,fazendo a natureza nos dias criticos
bom termo, & cozimento da matéria morbifica.
Na verdade tenho para mim que nas íarjas,&
caufticos le naõ faz pequeno milagre na attracçaò
domeaíma maligno, mediante o agitado impeto
dos efpiritos à parte, que doremedio ficou dolo-
roía 5 mas parece remedio taõ afpero, que feguin-
do o que o noffo Mercurial diz, a kmentibm cfl in-
cipkndum, tentava em primeyro lugar a cephali*
ca, (a que vulgarmente chamão unbaca,) & quan-
do efta evacuaçaõ repetida huma, duas, ou tres
vezes, conforme o alivio, que fe oblervava, naõ
bailava para defcarga total do humor, que grava-
va a cabeça, antes feaugmentava, paliava ao re-
medio das íarjas, ajudando eftas os cordeaes frek
cos, com feus abforbentes, & dulcificantes, com
algus ácidos brandos,razaõ de precipitar,adoçar,
& correger naõ fó a iubftancia do langue .5 mas
tam-
'EMSARCAD1SS0S. / 71
também impedir o deprávado movimento com
que circulava mais do coftumado,ajudas de amei*
joada, tizanas , &mais remedios atraz receita-
dos, até terminarfe a doença, não deíprezando de
nenhuma forte os remedios amaricantes porreí-
peyto de alguma geraçaõ de lombrigas. O azebre
he o remedio, que unicamente leacha nasbotr-
cas,que fe embarcaõ nas naos,eftes feitos em pílu-
las , ou em pójfe daõ pelas manhaas; porque como
neftas queyxas haja vifcos de eítómago,& ordina-
riamente fefaça o acido fermentativo, & bílis do
ventrículo menos amara , & mais froxa, & em
havendo efta froxidaÕ naõ pode deyxar de haver
copia de vifcofidades, &deftas fe geraõ as lom-
brigas , como ja acima com mais largueza fica di-
to.
Terminada a queyxa nos dias decretorios def-
tas malignas enfermidades , q regularmente he o
quatorzeno, fe difpõem o enfermo para fe purgar
eradicativamente , para o que tomará huns dias
huns copos de agua quente, & açúcar; & paífados
tres,ou quatro dias para que a natureza nelles naõ
fófedifponha para aexpulfaõ das fezes, quere-
fultaráõ da matéria morbifica; mas também tome
algum alento para poder coma operaçaõ do me-
dicamento, darfelhe-haa purga na feguinte for-
ma; ou outra qualquer femelhante.
76 LUZ DE C1RURGI0ENS.
R,s. em c|.b. de cozimento commumfr. feyto
com Folhas de fen. 3Íj. cremor de tartar.jj. desfa-
ça de diacatholic. onç.B. maná jvj. xarope períic.
& violad.de noveinfufoensan. onç. jB. medid. &
faça bebida breve.
Bem purgado, & purificado o corpo paíTe de
medicamentos aoufo de bons alimentos para a
convalecença, & o bem regido de todas as coufas
naõ naturaes, (que he efta huma das circunftan-
cias,que fe requerem para totalmente fe acabar
de curar, naõfó eíla,mas outra qualquer queyxa.,)
E acabado o methodo curativo deitas doenças, íe
me termina a mim também, o q no principio def-
te papel promettijqueyra o Ceo aproveite, & íeja
tudo para mayor honra, & gloria de Deos.

FINIS, LAUS DEO.

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